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CUIDADORAS NEGRAS DO BRASIL

Paulo Fernando Souza Campos1

Resumo: Este ensaio pretende demonstrar como a visão histórica do processo de formação
profissional na área da enfermagem no Brasil, especialmente no tocante à sistematização da
ação de cuidar/cuidado, permite desvelar impactos da intolerância racial nos primeiros anos
da República, bem como as resistências aos imperativos usados para justificar a exclusão
de negros da vida social mais ampla. Embora o imaginário social construído em torno da
história da enfermagem brasileira tenha, em grande medida, conseguido banir da memória
o papel das amas-de-leite negras, o registro fotográfico testemunha que as ações dessas
cuidadoras está na própria origem daquela história.
Palavras-chave: História; Enfermagem brasileira; Mulheres negras; Imaginário social

BRAZILIAN BLACK WOMEN AS CARETAKERS

Resumo: This essay intends to demonstrate how the historical vision of Nursing as a profes-
sional career in Brazil, specially concerning to the notion of caregiving as a sistematic action,
brings out the impacts of racial intolerance in the first years of the Republic, such as the
resistence to the arguments used to justify the exclusion of the Black people from the ex-
tensive social life. Although the social imaginary built around the history of brazilian nursing
has been able to banish the wet nurse’s role from everyone’s memory in a large scale, photo-
graphic data proves that the action of these caretakers is in the origin of this national history.
Palavras-chave: History; Brazilian nursing; Black women; Social imaginary

Perspectivas renovadas da escrita da história indicam que a análise dos aconteci-


mentos deve considerar, além das noções de tempo e espaço, características culturais que
formalizam as sociabilidades. Do mesmo modo, o trabalho do historiador deve assentar-
-se no uso de documentos, fonte da pesquisa histórica, porém distanciado da narrativa
linear fundada em teorias hermeticamente fechadas. A (nova) escrita da história lançou
perguntas ao passado e questionou informações contidas nos documentos, aproximando
interesses e metodologias de outras ciências e saberes ao propor novos problemas, novos
objetos e novas abordagens aos estudos históricos.
A análise crítica da história pretendeu não mais contar o que aconteceu ou quando,
mas entender o porquê, quais os caminhos percorridos e como os homens e mulheres se
manifestaram, como viviam, se comportavam e significavam suas práticas. Tal perspectiva his-

1
Pós-doutor pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Doutor em História pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Professor da graduação de História no Centro Universitário
Adventista de São Paulo (Unasp). E-mail: pfsouzacampos@hotmail.com
PAULO FERNANDO SOUZA CAMPOS

toriográfica multiplicou estudos interdisciplinares cujas abordagens, ao evocar temas comuns,


provocaram o encontro de campos considerados distintos, mas com interesses convergentes.
A transversalidade do conhecimento ampliou o diálogo entre os saberes, revelando-
-se imperioso para o desenvolvimento da ciência e tecnologia. Os resultados permitiram
o reconhecimento do passado não como algo pronto e acabado, deixando de reconhecer
a História, a ciência do passado. Deste processo emerge a história da enfermagem, pro-
fissão que se encarregou de sistematizar a ação de cuidar/cuidado, iniciando um processo
de formação profissional cuja historicidade, no caso brasileiro, permite desvelar impactos
da intolerância racial nos primeiros anos da República, bem como as resistências aos im-
perativos usados para justificar a exclusão de negros da vida social mais ampla, como este
ensaio pretende demonstrar.

História da enfermagem brasileira


No Brasil, a historiografia dominante produzida sobre a história da enfermagem con-
centra-se na análise do poder simbólico conferido à profissionalização centrada no bojo da
Reforma Sanitária de 1920, movimento sanitarista que reorganizou políticas públicas voltadas
para a saúde nas duas décadas iniciais do século XX. Ao mesmo tempo, o contexto histórico
evoca transformações sociais de grande relevo, com especial atenção para a passagem do tra-
balho escravo para o trabalho livre, instituído a partir da promulgação da República, em 1889.
A maioria dos estudos produzidos sobre o tema considera como marco original da
12 história da enfermagem o trabalho executado por Ethel Parsons, enfermeira norte-ameri-
cana designada para (re)organizar a formação profissional da enfermagem brasileira. Por
intermédio da criação da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde
Pública (DNSP), órgão governamental que se encarregou das transformações no campo
da saúde nos anos 1920, foi instituído como padrão de ensino de enfermagem um modelo
de ensino e formação que gerou o mito fundador da enfermagem profissional brasileira.
Organizado no Sistema Nightingale, o padrão imposto, essencialmente feminino,
desconsiderou práticas de cuidar executadas no Brasil em períodos anteriores, bem como
os agentes históricos que executavam o cuidado durante os quatro séculos de escravidão
negra no Brasil. As análises empreendidas no campo da história da enfermagem raramen-
te consideram as vicissitudes das transformações sociais que construíram a história do
Brasil República como, por exemplo, a utilização da enfermagem como veículo dissemi-
nador do american way of life; questões de gênero, que feminizaram a profissionalização; e
a questão racial, singular na medida em que afro-descendentes foram, por excelência, os
primeiros a exercerem o cuidado no Brasil.
Transformações sociais efetivadas na passagem do Brasil Império para o Brasil
República, caracterizadas a partir da oficialidade de registros emanados do centro, reite-
ravam estereótipos e excluíam pessoas. Experiências anteriores forjaram a memória da
enfermagem a partir das representações dominantes. No caso, os poucos vestígios que
narram experiências anteriores à padronização do ensino no Brasil, conhecido como pa-
drão Anna Nery, aparecem desprestigiados e seu contingente, julgado ignorante e sem

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preparo, construíram o devir histórico da enfermagem brasileira a partir da fundação da


Escola de Enfermeiras do DNSP, em 1920.
Vista por esse ângulo, a historiografia dominante anulou a existência de outros
modelos assistenciais, como o modelo francês (ESPÍRITO SANTO, 2007). A existência

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de espaços formadores da enfermagem anteriores a 1920 não é valorizada pela escrita
tradicional, como é o exemplo da primeira escola de enfermagem do Brasil, a Escola
Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras do Hospício Nacional de Alienados, fundada
em 1890 (atual Escola de Enfermagem Alfredo Pinto [EEAP]), assim como a Escola de
Enfermeiras do Hospital Samaritano, na cidade de São Paulo, genuinamente nightingalena
(MOTT, 1999; CARRIJO, 2007). Ampliando a problemática, as matrizes clássicas da his-
tória da enfermagem brasileira desconsideram o contingente egresso do sistema escravo-
crata, que atuavam como cuidadores, bem como a função social dos cuidados realizados
no âmbito das famílias por mulheres negras, como se pretende evidenciar.
A produção existente no Brasil sobre a história da enfermagem traduz abordagens
clássicas, evocam temas oficiais voltados para o ensino, orientação religiosa e outros aspectos
que recuperam biografias e trajetórias de mulheres ilustres, tais como as primeiras líderes ou
as que participaram de movimentos sociais de grande relevo social, como a Segunda Guerra
Mundial. Ainda que imprescindíveis, torna-se imperioso ampliar o debate, analisar o longo
tempo da história da enfermagem e percebê-la em suas dimensões culturais e antropológicas.
Os registros desse processo, com destaque para a fotografia, são reveladores de
problemáticas internas, pois remontam a adequações, práticas e representações forjadas 13
no branqueamento da memória nacional, da qual a enfermagem é parte integrante. Sin-
tomaticamente, a recente publicação do livro História da Enfermagem Brasileira (PORTO;
AMORIM, 2007) desvelou a presença de mulheres negras diplomadas pela primeira es-
cola de enfermagem profissional do Brasil, anexa ao Hospício Nacional de Alienados, na
cidade do Rio de Janeiro, em 1923. A evidência permite considerar que o modelo oficial
proposto para a formação profissional excluía mulheres negras, identificando-as como
abjetas ou impróprias para o exercício da enfermagem, negando o lastro existente entre
negros e as práticas de cuidar/cuidado no Brasil.
Nesse sentido, abordar o tema por intermédio das representações construídas para
os negros nos anos iniciais da República torna-se particularmente interessante do ponto
de vista histórico, pois a perspectiva apontada eliminou a memória histórica do cuidar/
cuidado exercido durante os quatro séculos de escravidão no Brasil.
Esteticamente, o ideal de enfermeira, representado pela imagem da mulher jovem,
branca, alta, saudável, elegante e culta, impunha restrições às negras. As imagens cultua-
das, aliadas aos padrões de beleza dominantes (pele clara, cabelos lisos e loiros), forjavam
um imaginário que não se coadunava com a realidade estética da maioria das mulheres
brasileiras, negando essencialmente a miscigenação e multiculturalidade característica da
população nacional. A supervalorização do branco escondia a realidade dos fatos: ca-
samentos inter-étnicos permaneciam em escala crescente no Brasil nos anos iniciais da
República, ainda que à revelia. Ainda assim, relações inter-étnicas estabeleciam estreitos
limites de convivência comunitária e reproduziam segregacionismos costumeiros, que po-
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larizavam brancos e negros. A abolição da escravatura, em 1888, associada ao processo


imigratório subsequente, transformou sociabilidades e estabeleceu a cidadania em con-
dição de igualdade de direitos. Contudo, ordens médicas e normas familiares prescritas
como saudáveis e higiênicas, como via de mão única para a boa saúde e vigor físico,
caracterizavam o homem evoluído em proposições biotipológicas, deterministas, as quais
desprestigiavam práticas distintas das propostas pelos manuais do bem viver copiados de
segunda mão do mundo europeu.
Largamente utilizadas, as proposições médicas que imprimiam civilidade e dita-
vam códigos ao bom cidadão imprimiam uma visibilidade social negativa aos homens e
mulheres negros, representando-os como degenerados, comprometidos física e moral-
mente, como se estes fossem naturalmente propensos aos desvios da norma, propensos
à devassidão. Os significados sociais das representações médicas identificavam os negros
como corrompidos biologicamente, cuja personalidade degenerada os conduziria a uma
vida marginal e deletéria. Somente na década de 1950 a representação do negro como as-
sassino, sádico, pervertido perde a força, sem, contudo, desaparecer do imaginário social
(DOMINGUES, 2000; SANTOS, 2002; HOLFBAUER, 2002).

Mulheres negras na enfermagem


A análise histórico-cultural das representações do cuidar/cuidado, ainda que recor-
rente, é pouco estudada no âmbito da pesquisa em história da enfermagem. Particular-
14 mente interessada pelo tema, Julia Hallam (2000) estudou efeitos associados às imagens
da enfermagem e de sua principal personagem, a enfermeira. Suas análises privilegiaram
construções imagéticas da profissão reveladas pela mídia e pela cultura, bem como in-
terferiram na formação da identidade profissional da enfermagem norte-americana. No
Brasil, ao destacar as circunstâncias do advento da enfermagem moderna, Ieda de Alencar
Barreira (1997) revela como o modelo de enfermagem, assumido no bojo da Reforma
Sanitária de 1920, avaliava a questão racial. Ao analisar os processos que conduziram a
“implantação da nova profissão”, a autora permite considerar que as representações cons-
truídas sobre os negros interferiram na formação da identidade profissional. Ao evocar os
primórdios da enfermagem, especificamente a Escola de Enfermeiras do Departamento
Nacional de Saúde Pública, posteriormente denominada Escola de Enfermagem Anna
Nery, a autora evidencia que

várias das candidatas que atenderam aos apelos humanitários e patrióticos dos
médicos sanitaristas provinham da classe média-alta da sociedade, muitas delas
tendo sido diretamente por eles recrutadas. Não obstante, candidatas oriundas de
famílias pobres poderiam ser bem recebidas, mas o mesmo não ocorreria com as
candidatas negras (BARREIRA, 1997, p. 168-169).

Do mesmo modo, ao analisar as influências norte-americanas na instituciona-


lização da enfermagem brasileira, Luis Antonio de Castro Santos e Liná Rodrigues
de Faria (2004, p. 142) afirmam que a questão da raça, no que concerne à história da
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enfermagem no Brasil, “deve ser investigada a fundo”. Seus argumentos reafirmam a


pouca produção acadêmica existente sobre o tema, mas sugere que do ponto de vista
racial, os incentivos e investimentos na formação profissional propiciaram mobilidade
social e ascensão de negros, “mas apenas depois dos primeiros tempos de formação

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dos quadros dirigentes”.
A cristalização das imagens produzidas para o negro no Brasil, que os associavam
às classes perigosas, marcou profundamente as relações sociais entre brancos e negros.
Assimilados como primitivos no estágio evolutivo da espécie humana, homens e mulhe-
res negros eram excluídos da participação mais ampla da sociedade, estigmatizados pela
disseminação de estereótipos que não se afinavam com o ideal social, tampouco com o
ideal de enfermeira. Para tanto, tornava-se politicamente imperioso vetar a possibilidade
de ingresso de negras na enfermagem padrão.
A negação da memória afetiva das cuidadoras negras encontra seu ponto culminan-
te na década de 1920. A imposição do padrão oficial ao ensino da enfermagem no Brasil
pretendeu anular ações de cuidadoras negras, amas-de-leite, babás, pretas-velhas, mulhe-
res que cuidavam de gestantes, essenciais para manutenção da antiga sociedade colonial. A
perspectiva antropológica italiana, assumida como fundamentação teórica à identificação
de desviantes sociais favoreceu ao desaparecimento da ama-de-leite. Tributária das dog-
máticas de Cesare Lombroso, a antropometria pretendia identificar tipos criminosos a
partir da identificação de traços comuns, morfológicos ou anatômicos. A classificação dos
biótipos possibilitaria a detecção do desviante antes mesmo que este viesse a delinquir, 15
forjando uma atuação profilática como propunha o discurso científico fundado na medi-
cina eugênica. Considerados pelos “desvios morais característicos da raça”, negros eram
vistos como comprometedores do projeto republicano, impróprios para assumirem fun-
ções do mundo do trabalho urbano, que se constituía, como aqui avaliado, na perspectiva
da enfermagem profissional (SOUZA CAMPOS; OGUISSO, 2007).
Acontecimentos vividos nas primeiras décadas do século XX permitem interpretar
modificações no conjunto das relações de poder-saber reorganizadoras do Brasil. Se nos
períodos anteriores (Brasil Colônia, Brasil Império) o país era pensado como atrasado e sua
visibilidade disseminada pelos símbolos do degredo, pela ideia de paraíso e pelas utopias do
extraordinário, na República estas imagens assumem um arcabouço científico, pautado no
evolucionismo que caracterizou a ciência durante a emergência da República no Brasil.

Cultura dos cuidados no Brasil


A representação do país como um local de incivilidade, imperfeito, com uma população
degenerada, comprometida do ponto de vista racial, acarretava enorme prejuízo para a imensa
maioria da população brasileira que, nestes termos, se via marginalizada. A europeização dos
costumes e a perspectiva do embranquecimento da população brasileira, intensificada com o
processo imigratório, afastava possibilidades de convívio com aqueles que um dia foram cati-
vos, escravizados e subordinados (MARQUES, 1994; SOUZA CAMPOS, 2003).
A matriz teórica da medicina eugênica, assim como as interpretações médicas acer-
ca da degeneração da raça foram decisivas para o banimento de uma das mais tradicionais
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práticas culturais do Brasil, realizada por mulheres negras chamadas amas-de-leite, mulhe-
res que trabalhavam como cuidadoras de crianças. Durante os períodos que antecederam
a instauração do regime político republicano, a função social das amas pode ser considera-
da como uma das primeiras práticas do cuidado formalmente executadas no Brasil. Ainda
que muitas mulheres negras fossem escravas, estas trabalhavam junto às famílias brancas
como cuidadoras de crianças. Cuidar de crianças era parte do universo das mulheres ne-
gras, habitualmente responsáveis pela amamentação e demais cuidados que se estendiam
durante anos, muitas vezes, gerações.

Fotografia 1: babá com criança

16

Fonte: Fotografia de João Goston, c. 1870. Acervo Instituto Moreira Salles

Famílias senhoriais mantinham em sua escravaria mulheres negras que atendiam


aos filhos de seu senhor como se fossem seus. Mães de criação, como eram chamadas,
essas mulheres também eram parteiras, incorporadas à família senhorial como uma escra-
va especial e quase sempre alforriada. As fotografias que servem de fonte a este ensaio
permitem considerar a existência de uma forte relação sentimental entre mulheres negras
e crianças brancas sob seus cuidados. A análise a contrapelo revela que o mesmo não
acontecia com a mulher branca em relação à criança negra. Monteiro Lobato, em um dos
contos que marcaram a literatura brasileira, apresenta a história trágica de uma menina
“negrinha”, de sete anos, nascida na senzala de uma família senhorial e sua relação com a
senhora, cuja narrativa permite constatar as dicotomias.
Em uma das passagens, o autor retrata, com sarcasmo original, requintes de cruel-
dade executados pela senhora branca em relação à criança negra, desvelando a natura-
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lidade do comportamento violento que tecia as sociabilidades na Colônia. No final do


conto, a menina morre impiedosamente, mas a morte lhe parece um alívio: “Cocres: mão
fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o
torcido, de despregar concha, e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões:

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do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha.
A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma. Divertidíssimo! A vara
de marmelo, flexível, cortante: para doer fino nada melhor!” (LOBATO, 2000, p. 4).
Diametralmente opostas, as imagens que se estabeleciam entre as amas-de-leite,
babás e mães pretas em relação às crianças brancas refletem uma sensibilidade inconteste,
permitindo supor que havia lugar genuíno para o estabelecimento de verdadeiras relações
afetivas entre pessoas com posições hierarquicamente tão distintas. Rafaela de Andrade
Deiab (2005) identifica que nos anúncios de compra e venda de escravos veiculados em
jornais de grandes cidades brasileiras como Salvador, Rio de Janeiro, Recife e São Paulo
a habilidade no trato com crianças era elemento de destaque, revelando que este cuidado
extremado era esperado e desejado pelas famílias.

Fotografia 2: Joaquim Gomes Leal com a ama de leite Mônica (Pernanbuco)

17

Fonte: Villela, C. 1860. Fundação Joaquim Nabuco, Recife.

Gilberto Freyre (1999, p. 331) evoca a importância que essas mulheres negras exer-
ceram tanto no âmbito do cuidado, atendendo crianças e famílias no Brasil colonial, quan-
to na formação da cultura brasileira, indicando que por intermédio dessas negras velhas,

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amas de menino, o legado cultural das tradições e folclores nacionais foram preservados.
E acrescenta:

a ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida:
machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca
do menino branco as sílabas moles […] as Antonias ficaram Dondons, Toninhas,
Totonhas; as Teresas, Tetés; os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés; os Franciscos,
Chico, Chiquinho, Chicó; os Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos, Betinhos.

O papel social desempenhado pelas amas de leite invadia a esfera da vida privada.
Além de manter saudáveis os filhos das senhoras brancas, favoreciam a manutenção do
casamento, pois, ao se ocupar da criança, a ama-de-leite permitia à esposa permanecer
junto ao marido, bem como atender às demandas sociais e sexuais do matrimônio – usa-
das pelas mulheres como estratégia para manter seus casamentos e os maridos afastados
das negras, mulatas e mulheres da terra, as índias.
Inquestionáveis, as representações produzidas em torno da raça tornavam natural
a ideia de inferioridade, veiculadas explicitamente como algo consensual. Para as dogmá-
ticas da medicina eugênica, a imensa maioria da população brasileira era mentalmente
atrasada, não possuindo o poder do raciocínio, devendo, portanto, ser guiada pela razão
de quem sabia raciocinar. As representações derivadas das teorias eugênicas ampliavam
18 o espectro imaginativo em torno das representações do negro. Nesse sentido, relações
sociais inter-étnicas eram interpretadas como comprometedoras, merecendo ser evitadas.
Os significados decorrentes geraram situações que requintavam práticas segregacionistas,
preconceituosas, como exemplifica o jargão comum no período e que simboliza o discur-
so da intolerância racial, vale dizer, “o que sai aos seus não degenera”.
Desse modo, o estabelecimento de normas para regular a vida social das popula-
ções ampliava consideravelmente o campo de atuação dos profissionais da área da saúde,
que se expandia. No sentido de controlar ações humanas e instruí-las para o melhoramen-
to progressivo da espécie, as intervenções médico-sanitárias recusavam práticas tradicio-
nais, culturais, exercidas desde a fase tribal da história da enfermagem (OGUISSO, 2007).
O cumprimento das ordens médicas em torno do desmame também atendia às demandas
do crescente mercado do leite pasteurizado. A modernidade dos produtos industrializa-
dos, bem como seu uso, significava pertencimento e status social, provocando, ao mesmo
tempo, a sensação de distanciamento de costumes e tradições consideradas arcaicas, anti-
quadas e, no caso, impuras (REZENDE, 1998).
Para muitos, a contrariedade das normas médicas implicava em uma natural com-
provação de inferioridade, incapacidade e incivilidade. O discurso médico, transformado
em prática cotidiana afirmava que as amas-de-leite transmitiriam caracteres degenerativos
da raça negra à criança branca durante a amamentação. As orientações médicas que impe-
diram o trabalho dessas mulheres também foram simbolicamente utilizadas para estabele-
cer distinções sociais entre sãos e doentes, puros e impuros, bons e maus. Com a difusão

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do desmame, famílias que permitiam que seus filhos fossem amamentados por amas-de-
-leite negras eram desprestigiadas, o que não ocorria em períodos anteriores.

Considerações finais

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Conforme aponta Roger Chartier (1991), representações são construções que vi-
sam a fins específicos e que, portanto, não podem ser consideradas como discursos neu-
tros, mas como produtores de estratégias e práticas que legitimam determinados projetos.
O autor ressalta, ainda, que “embora aspirem a universalidade, [as representações] são
sempre determinadas pelos interesses de um grupo que as forjam” (1991, p. 17).
Desse modo, é possível considerar que determinações raciais e sua utilização no Bra-
sil contribuíram para a legitimação do discurso científico, oriundo da medicina, que desau-
torizou a prática da amamentação realizada por mulheres negras, trabalhadoras considera-
das como primeiras cuidadoras do Brasil. Remontar esse passado e analisá-lo a partir dos
pressupostos da cultura dos cuidados implica não somente refazer experiências vividas no
longo tempo da história, mas desvelar práticas de cuidar cuja função primordial consistia
na convivência e cuidado integral a criança, do parto à amamentação e, depois, atuando na
higiene, alimentação e repouso, atividades próprias da arte e ciência do cuidado.
O trabalho realizado por amas-de-leite no Brasil, testemunhado pelas fotografias,
assim como os usos sociais dessas imagens, permitem considerar que a história da enfer-
magem brasileira tem sua origem nas ações das mulheres negras cuidadoras de crianças.
As vinculações antropológicas da família como estrutura social, destacam essas mulheres 19
como essenciais, afetiva e socialmente reconhecidas pela presteza de seus cuidados.
Assim, este ensaio considera que a escrita da história pode, estrategicamente, forjar
acontecimentos, reduzir intensidades e movimentos, manipular os fatos, criar mitos e
produzir memórias. A crítica histórica, que se origina da problematização e interpretação
do passado, deve fazer emergir experiências vividas por homens e mulheres, ilustres e ino-
minados. O imaginário social construído em torno da história da enfermagem brasileira
logrou banir da memória as experiências e o exercício de seu trabalho junto às famílias
senhoriais. A memória das mulheres negras do Brasil, cuidadoras de crianças, parteiras,
nutrizes, chamadas de mães de criação, resistiram aos imperativos da escrita oficial da
história da enfermagem. Evocar a memória dessas mulheres pretendeu desvelar a função
social das cuidadoras negras, bem como a construção de sua imagem na sociedade brasi-
leira ao longo de seu processo histórico.

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PAULO FERNANDO SOUZA CAMPOS

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