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Carlos Biasotti

Da Vírgula
(Doutrina, Casos Notáveis, Curiosidades, etc.)

2020
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Da Vírgula
(Doutrina, Casos Notáveis, Curiosidades, etc.)
Carlos Biasotti

Da Vírgula
(Doutrina, Casos Notáveis, Curiosidades, etc.)

2020
São Paulo, Brasil
Da Vírgula
(Doutrina, Casos Notáveis, Curiosidades, etc.)

“As cousas insignificantes produzem a


perfeição, e a perfeição não é cousa
insignificante” (Miguel Ângelo; apud
José Vieira Coelho, Funções do
Artigo, 1949, p. 3; Vitória, ES).

I — Introdução

Por sua feição miúda, a matéria deste artigo – A Vírgula


– talvez não merecesse vir à luz, que não é de bom conselho
nem de bom gosto dar peso à fumaça.

Fico, porém, que o amável leitor – sempre curioso das


questões que respeitam à linguagem (e porventura sob a
influência de bons astros!) – leve à paciência meu arrojo, no
qual protesto não persistirei.

A vírgula, conforme a doutrina comum, “indica uma


pequena pausa na leitura” (1), o que muito ilustra o seguinte lugar
de Rui: “Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar a fé em
Deus, na verdade e no bem”.(2)

(1) Eduardo Carlos Pereira, Gramática Expositiva, 91a. ed., p. 377;


Companhia Editora Nacional; São Paulo.

(2) Oração aos Moços, 1a. ed., p. 49; São Paulo.


8

Faltassem as vírgulas onde as colocou o preclaro escritor,


por força que muito perderia em exação gramatical aquele belo
pensamento!

Vem a ponto, no entanto, a observação de Augusto


Gotardelo: “Não há dúvida de que é a vírgula, também chamada
coma, uma das notações sintáticas de emprego difícil”.(3)

(3) O Emprego da Vírgula, 1958, p. 3; Editora E. Dois Irmãos S.A.; Rio de


Janeiro.
9

II — Noções Gerais

Das regras que lhe disciplinam o emprego, uma é


fundamental: “(...) não se pode pôr vírgula entre o sujeito e o verbo
nem entre o verbo e o seu complemento”.(4) Exemplos:

I — “Ninguém tem o direito de negar o que a evidência mostra”


(Bento de Faria, Código de Processo Penal, 1960, vol. II, p. 131;
Record Editora; Rio de Janeiro).

II — “Deve ter sido um deus o que inventou a divina arte de


escrever” (M. Said Ali, Dificuldades da Língua Portuguesa, 5a.
ed., p. 179; Livraria Acadêmica; Rio de Janeiro).

III — “No princípio criou Deus o céu e a terra”.(5)

Desde que, no entanto, haja frases incidentes, é de rigor a


vírgula, como se extrai destes exemplos:

a) “O bom juiz é, antes de mais nada, um justo” (Hélio


Tornaghi, Curso de Direito Processual Penal, 1980, vol. I, p. XIV;
Edição Saraiva).

b) “Contra ele não fazem argumento as ponderações, ia


dizendo fúteis, que se me opõem” (Rui, Réplica, nº 37).

(4) Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário de Questões Vernáculas, 1a. ed.,


p. 337; Editora Caminho Suave Ltda.; São Paulo.

(5) Exemplo que traz Duarte Nunes de Lião (Origem e Orthographia da


Lingua Portugueza, 1784, p. 338; Tipografia Rollandiana; Lisboa).
10

c) “A mais bela função da Humanidade, disse Voltaire, é a de


administrar justiça” (Henri Robert, O Advogado, p. 139; trad.
J. Pinto Loureiro; Saraiva & Cia. — Editores; São Paulo).

Nos períodos ligados por conjunções subordinativas e


advérbios também é usual o emprego da vírgula, como se vê da
amostra seguinte:

1) “Presume-se a violência, se a vítima não é maior de 14


(catorze) anos” (art. 224 do Cód. Penal).

2) “A receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento


de pena o autor do crime de que proveio a coisa” (art. 180, § 4º, do
Cód. Penal).

3) “A restituição, quando cabível, poderá ser ordenada pela


autoridade policial ou juiz, desde que não exista dúvida quanto ao
direito do reclamante” (art. 120 do Cód. Proc. Penal).

4) “O réu ou seu defensor poderá, logo após o interrogatório


ou no prazo de 3 (três) dias, oferecer alegações escritas e arrolar
testemunhas” (art. 395 do Cód. Proc. Penal).

5) “Diz-se o crime tentado, quando, iniciada a execução, não


se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente” (art. 14,
nº II, do Cód. Penal).

É de boa norma usar a vírgula para separar as conjunções


coordenativas (porém, todavia, contudo, entretanto, não obstante, no
entanto, logo, pois, portanto, por isso, etc.). Exemplos:

a) “Uma página de labéus, porém, outra coisa não mostra


que a bílis de um espírito amargo e a consciência de uma causa fraca”
(Rui, Réplica, nº 32).
11

b) “Entretanto, não constava ao mestre que em época


nenhuma houvesse tido a vírgula essa aplicação” (Idem, ibidem,
nº 334).

c) “As duas palavras são, portanto, inconfundíveis” (Idem,


ibidem, nº 394).

d) “Por derradeiro, logo, nisto se resume o debate (...)”


(Idem, ibidem, nº 254).

e) “Não tenho, pois, de que me arrepender, ou que emendar”


(Idem, ibidem, nº 415).
12

III — Nótulas

1a.) Após a conjunção adversativa mas, somente cabe


vírgula se há ênfase:

I — “Mas, ainda aqui, não se saiu bem do intento” (Rui,


Réplica, nº 115).

II — “Mas, porque me não objetem com a indelicadeza do


ouvido clássico, desçamos aos modernos” (Idem, ibidem, nº 79).

III — “Mas, circunstância curiosa, em que a malícia recebe


uma lição a ponto” (Idem, ibidem, nº 291).

A regra geral, nesse caso, é não empregar a vírgula:

I — “Mas o eminente professor leva em gosto ser-lhe


paraninfo” (Rui, Réplica, nº 126).

II — “Mas baste de razões” (Idem, ibidem, nº 92).

III — “Mas em que as estriba?” (Idem, ibidem, nº 237).

IV — “Mas a minha demonstração vai mais longe” (Idem,


ibidem, nº 24l).

V — “Mas a queixa nem verdadeira é, nem justa” (Idem,


ibidem, nº 355).

VI — “Mas ainda não acabou” (Idem, ibidem, nº 409).

VII — “Mas ainda aqui não é de bom conselho o seu voto”


(Idem, ibidem, nº 215).

VIII —“Mas já é tempo de pôr termo a esta defesa” (Idem,


ibidem, nº 496).
13

2a.) “Um dos mestres contemporâneos da boa linguagem


professa não ser bem portuguesa a colocação da adversativa porém no
princípio de uma oração (Figueiredo, Liç. Prát., v. I, p. 122).
Porém todos os clássicos de todos os tempos ma deparam
frequentemente assim colocada. Vão, em prova, alguns textos e
indicações de textos” (Rui, Réplica, nº 494).

Deveras, Antônio Vieira, “um dos três ou quatro grandes


cimos clássicos do nosso idioma”(6), empregava amiúde a adversativa
porém no início da oração. “Verbi gratia”:

I — “Porém o juízo dos homens, em que não vale emenda,


quem poderá negar que é mais terrível?” (Sermões, 1959, t. I, p.
178; Lello & Irmão Editores; Porto).

II — “Porém, depois disto (...)” (Idem, ibidem, t. II, p. 151).

III — “Porém se advertirmos bem nas palavras do (...)”


(Idem, ibidem, t. XV, p. 257).

Ainda: pp. 88, 94, 140, 162, 210 (Sermões, 1959, t. I); 85,
121, 127, 140, 161, 198, 281, 303, 309, 369 (t. II); 11, 64, 123,
126, 212 (t. XV), etc.

Não se dedignava, entretanto, de empregá-la também na


forma pospositiva:

I — “No meio, porém, deste tumulto popular, se aparece uma


personagem de grande autoridade e respeito, no mesmo ponto abatem
todas as armas, embainham as espadas, aparta-se sem outra violência
a briga, e não há quem se mova” (Sermões, l959, t. II, p. 145).

(6) Rui, Réplica, nº 232.


14

II — “Estou vendo, porém, que me dizem os meus Portugueses:


(...)”(Idem, ibidem, p. 424).

III — Neste estado, porém, ou nesta confusão temerosa, em que


tudo ameaçava a última e total ruína, que fariam os olhos de Deus
sempre vigilantes sobre Portugal?” (Idem, ibidem, t. XV, p. 186).

Mais: pp. 76, 98, 106, 114, 236, 247, 306 (Sermões, 1959,
t. I); 2, 9, 244, 340, 362, 378 (t. II); 51, 62, 107, 121, 173, 200
(t. XV), etc.

3a.) “Antes das conjunções e, nem, ou, como, que e outras


semelhantes só se põe vírgula, quando as palavras e frases que elas
atam excedem a medida comum de uma pausa ordinária pelas orações
incidentes, e complementos que trazem consigo; quando porém as
palavras e frases são curtas e smples, as vírgulas são desnecessárias,
porque as mesmas conjunções servem de separação aos diferentes
sentidos parciais” (Jeronymo Soares Barbosa, Grammatica
Philosophica da Lingua Portugueza, 1862, p. 69; Lisboa).

4a.) “Deve-se evitar o uso excessivo de vírgulas, para que o


discurso não fique truncado. Assim, não se deve escrever Espero que
vocês, hoje, cheguem mais cedo, mas sim: espero que vocês hoje
cheguem mais cedo, ou espero que vocês cheguem mais cedo hoje”
(Des. Alexandre Germano, Técnica de Redação Forense, 3a. ed.,
p. 129; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo).

5a.) Emprega-se igualmente a vírgula para isolar o aposto


e o vocativo. Exemplos:
15

I — Cícero, o príncipe da eloquência romana, foi morto


pelos sicários do triúnviro Marco Antônio.

II — Nélson Hungria, ministro do Supremo Tribunal


Federal, escreveu a monumental obra Comentários ao Código
Penal.

III — Rainha das provas, a confissão do réu tem grande


alcance na pesquisa da verdade nos processos criminais.

IV — “Mas tu não és a musa do sangue, ó liberdade;


tu és o gênio da paz” (Rui, Obras Completas, vol. XXIV, t. I,
p. 126).

V — “E quem é a mãe de todos os crentes senão tu,


ó Roma?” (Vieira, Sermões, 1959, t. VI, p. 63).

VI — “Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos


amarrado ao próprio cadáver?” (Alexandre Herculano, Eurico, o
Presbítero, 1963, p. 222; Difusão Europeia do Livro; São Paulo).

A leitura pontual de bons autores, notadamente em


edições críticas(7), contribuirá muito para a aplicação da vírgula.

(7) “Exempli gratia”: Obras de Machado de Assis (Ministério da Educação e


Cultura), Obras Seletas de Carlos de Laet (Fundação Casa de Rui Barbosa), etc.
16

IV — Vírgula antes de etc.

Sujeitos de altos créditos literários (gramáticos, filólogos


e escritores) têm dado curso à doutrina, segundo a qual,
é defeso empregar a vírgula antes de etc. (abreviatura da
locução latina “et cetera”: “e outras coisas”, “e outros”, “e assim
por diante”, “e o resto”). Entram nesse número autores do tope
de Napoleão Mendes de Almeida(8), Vittorio Bergo(9) e
Júlio Nogueira.(10)

Prática diversa – afirmam esses valorosos guardiões


da pureza da língua – implicava infração de preceito capital
de gramática, a saber: não se usa vírgula antes da conjunção
aditiva e.

Tenho em muito os referidos autores (sobretudo o Prof.


Napoleão Mendes de Almeida, geralmente reputado por um
dos mais insignes, probos e indefessos paladinos da boa
linguagem portuguesa)(*); as razões que alegam, porém, “data
venia”, fazem rosto e encontram abertamente o uso, que é o
mestre de todas as coisas.(11)

(*) “Mas nem tudo nos grandes mestres é de imitar” (Rui, Réplica, nº 43).

(8) Dicionário de Questões Vernáculas, 1a. ed., p. 339; Editora Caminho Suave
Ltda.; São Paulo.

(9) Erros e Dúvidas de Linguagem, 1941, p. 108; Livraria Editora Freitas Bastos;
São Paulo.

(10) Linguagem e Composição, 12a. ed., p. 114; Livraria Editora Freitas Bastos;
São Paulo.

(11) “(...) est rerum omnium magister usus” (C. Julii Caesaris, De Bello Civili,
II, 8).
17

Em verdade, escritores de primeira nota, assim antigos


como contemporâneos, não escrupulizaram em antepor vírgula
à abreviatura etc.

Provam-no sem falta os exemplos seguintes:

1. N. A. Calkins, Lições de Coisas, 1886; trad. Ruy


Barbosa; Imprensa Nacional; Rio de Janeiro: pp. 17, 45, 61,
62, 117, 245, 300, 451, 505, 544, etc.;

2. Guilherme Bellegarde, Lingua Portugueza, 1887;


Rio de Janeiro: pp. 40, 60, 77, 84, 96, 109, 114, 135, 141, 143,
etc.;

3. Francisco Evaristo Leoni, Genio da Lingua


Portugueza, 1858, t. I; Lisboa: pp. 10, 45, 89, 100, 115, 123,
183, 243, 251, etc.;

4. Jeronymo Soares Barboza, Grammatica Philosophica


da Lingua Portugueza, 1862; Lisboa: pp. 35, 47, 51, 59, 90, 93,
196, 234, 328, 333, etc.;

5. Ernesto Carneiro Ribeiro, Elementos de Grammatica


Portugueza, 1932; Bahia: pp. 13, 23, 34, 45, 57, 81, 106, 335,
371, 417, etc.;

6. Mário Barreto, Novíssimos Estudos da Língua


Portuguesa, 1914; Rio de Janeiro: pp. 14, 22, 33, 35, 41, 74, 107,
111, 139, 339, etc.;

7. Castro Lopes, Artigos Philologicos, 1910; Rio de


Janeiro: 132, 158, 190, 200, 221, 227, 265, 315, 393, 521, etc.;
18

8. Heráclito Graça, Factos da Linguagem, 1904; Rio de


Janeiro: pp. 14, 25, 31, 43, 45, 59, 102, 381, 402, 458, etc.;

9. Laudelino Freire, Linguagem e Estilo, 3a. ed.; Rio de


Janeiro: pp. 17, 27, 38, 44, 57, 71, 87, 89, 113, 129, etc.;

10. Julio Ribeiro, Grammatica Portugueza, 1900; São


Paulo: 30, 39, 42, 63, 93, 94, 101, 333, 351, 352, etc.

No italiano passa o mesmo: “Bisogna che tu gli dia il vino, il


pane, eccètera” (P. Petrocchi, Dizionario Scolastico della Lingua
Italiana; 1957, p. 383; “ecc. abbrev. di eccètera”, p. 382; Garzanti;
Milano).

Ainda:

“Es.: uno, due, tre, quatro, cinque, ecc.” (P. Petrocchi, Nova
Grammatica Italiana, 1933, p. 113; Antonio Vallardi Editore;
Milano).

“Ho l’onore d’essere con tutta la venerazione, ecc.” (Silvio


Pellico, Epistolario, 1887, p. 49; Torino).

“Or ti saluto io stesso, e sono di cuore, ecc.” (Idem, ibidem,


p. 175).

“Mi creda con tutti i sentimenti della più affetuosa stima, ecc.”
(Idem, ibidem, p. 21).

A praxe da virgulação antes da abreviatura de etc.,


adotou-a também o estilo forense, conforme se vê das obras e
escritos das mais distintas inteligências do Poder Judiciário.
Haja vista estes exemplos:
19

l. M. da Costa Manso, Casos Julgados, 1920; Livraria


Acadêmica; São Paulo: pp. 235, 249, 268, 269, 282, etc.;

2. Virgílio de Sá Pereira, Decisões e Julgados, 1926; Rio


de Janeiro: pp. 15, 25, 49, 54, 57, 369, 67l, 672, etc.;

3. Valdemar César da Silveira, Sentenças Criminais,


1941; Revista dos Tribunais Ltda.; São Paulo: pp. 15, 50, 71,
107, 128, 140, 198, 437, 495, etc.;

4. Vasco Joaquim Smith de Vasconcellos, Sentenças e


Decisões, 1925; São Paulo: pp. 245, 251, 254, 258, 272, 274, etc.;

5. Auto Fortes, Questões Criminais; Rio de Janeiro: pp.


28, 60, 84, 101, 104, 112, 150, 165, 186, 219, etc.

Em suma, a favor do emprego da vírgula antes de etc.


militam mui forçosas razões:

I) O uso, que, no geral consenso dos doutos, é o


“árbitro soberano da linguagem”.(12)

(12) Ernesto Carneiro Ribeiro, Tréplica, 1951, p. 316; Livraria Progresso


Editora; Bahia.

Ainda:

a) “Mas nas questões de linguagem tudo é o uso (...)” (Rui, Réplica, nº 14);

b) “(...) e o uso como é mais poderoso que as leis, quase sempre prevalece” (Rafael
Bluteau, Prosas Portuguesas, 1728, 1a. parte, pp. 200-201; Lisboa);

c) “Não se pode negar que, em pontos de propriedade e pureza de linguagem, é o


uso um árbitro soberano nos idiomas vivos (...)” (Francisco José Freire, Reflexões
sobre a Língua Portuguesa, 1812, 1a. parte, p. 6; Lisboa);
20

II) O argumento de autoridade:

a) “Use vírgula antes de etc. Embora a expressão original,


et cetera, já contenha e, a abreviatura etc. aparece sempre
precedida do sinal no Formulário Ortográfico, que define a norma
legal do idioma. Essa prática terminou por oficializar o emprego da
vírgula, seguido pela maioria esmagadora dos gramáticos brasileiros”
(Eduardo Martins, Manual de Redação e Estilo de O Estado de
S. Paulo, 3a. ed., p. 118; São Paulo);

b) “A questão da vírgula antes do etc. é simples: deve ser


usada. O argumento de que originalmente a palavra já contém o e
(et) não vale, pois o que conta é o acordo ortográfico vigente (...)”
(Arnaldo Niskier, Questões Práticas da Língua Portuguesa: 700
Respostas, 1992, p. 35; Rio de Janeiro).

d) “(...) pois o uso é soberano senhor” (Mário Barreto, De Gramática e de


Linguagem, 1922, t. I, p. 201; Rio de Janeiro);

e) “(...) o uso, que é soberano senhor da linguagem (...)” (José de Sá Nunes,


Aprendei a Língua Nacional, 1938, vol. I, p. 15; Livraria Acadêmica; São Paulo);

f) “(...) o uso que é o árbitro, o senhor e o regulador único do falar (...)” (Idem,
ibidem, vol. II, p. 124);

g) “É certo que não há melhor mestre que o uso” (Júlio de Castilho, Os Dois
Plínios, 1906, p. 196; Lisboa).

h) “(...) usus, quem penes arbitrium est, et jus, et norma loquendi” . “(...) o uso
(...) é da língua sumo legislador e regra viva” (Horácio, Arte Poética, 1784, pp. 64-
65; trad. Cândido Lusitano; Lisboa).
21

III) Opinião acadêmica. O Vocabulário Ortográfico da


Língua Portuguesa, elaborado pela Academia Brasileira de
Letras, sempre que emprega etc. (para cima de 130 vezes),
nunca o faz sem precedê-lo de vírgula, como a indicar a lídima
forma da representação gráfica da abreviatura.(13)

IV) Estética literária. O uso da vírgula antes de etc. –


como na fórmula “Vistos, etc.” (que serve de preâmbulo às
decisões judiciais) –, além de prevenir a sequência de vozes
peculiares a duas línguas (português e latim), atende a critério
estético. Não admira, pois, que o estilo pretoriano a
conservasse em tal hipótese, que tem força de cláusula salutar.

Com efeito, em M. Costa Manso, antigo ministro do


Supremo Tribunal Federal, lê-se a fórmula “Vistos, etc.”, com a
vírgula antes de etc. (cf. Casos Julgados, 1920, p. 235; Livraria
Acadêmica; São Paulo).

Pelo mesmo teor, João Mendes de Almeida Jr. (cf.


O Processo Criminal Brasileiro, 1959, vol. II, p. 309; Livraria
Freitas Bastos S.A.; São Paulo) e Nélson Hungria (cf.
Comentários ao Código Penal, 1981, vol. V, p. 154; Editora
Forense; Rio de Janeiro), juristas de prol, escritores de força e
ministros de nossa Mais Alta Corte de Justiça.

(13) Cf. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 2009, pp. LXXI-LXXXIV;


Global Editora; São Paulo).
22

Não divergia desta prática o douto magistrado Eliézer


Rosa (apud Romeiro Neto, Defesas Criminais, 2a. ed., p. 356;
Editora Liber Juris Ltda.; Rio de Janeiro).

Donde claramente se mostra que a anteposição da vírgula


ao etc. não viola preceito normativo da língua portuguesa; ao
revés, tem por si venerandos monumentos literários e a lição de
gravíssimos autores.

Que seja esta a doutrina comum, di-lo muito


assisadamente José Maria da Costa, que tem voto valioso no
capítulo:

“Anote-se, todavia, que o acordo ortográfico em vigência


determina que a vírgula deve ser usada em tal caso – isto é, antes
de etc. –, razão pela qual a referida vírgula se torna, então,
obrigatória”.(14)

(14) Manual de Redação Profissional, 3a. ed., p. 491; Millennium Editora; Campinas-SP.
23

V — Etc. e Nomes Personativos

Da significação própria de etc. (abreviatura de “et cetera”)


– que em vulgar quer dizer e outras coisas – alguns autores
inferiram a regra de que se lhe não justificava o emprego com
respeito a pessoas, como na sentença: É prova de patriotismo
honrar a memória de Tiradentes, Anchieta, Rui, etc.

A crítica, posto bem fundada, não procede, porém –


como advertiu o Prof. José de Almeida –, visto que já
consagrado tal emprego “pela sanção do mais esmerado e escorreito
uso da língua, o que comprovam eloquentemente os fragmentos que
seguem (...)”.(15)

Em bem de sua argumentação, arrolou opinados


vernaculistas:

1) “(...) isto é, nada menos que Castilho, Rui Barbosa,


Machado de Assis, Carlos de Laet, José Veríssimo, João Ribeiro,
Pacheco da Silva, Mário Barreto, Silva Ramos, etc.” (Cândido de
Figueiredo, Combate sem Sangue, 1925, p. 315; Livraria
Clássica Editora; Lisboa);

2) “Entendem alguns (Roquette, S. Túlio, etc.)” (Carlos


Góis, Dicionário de Galicismos, 3a. ed., p. 51);

3) “Cândido de Figueiredo, Júlio Moreira, Ernesto Carneiro


Ribeiro, Eduardo Carlos Pereira, Mário Barreto, etc.)” (José
Rizzo, Estudos da Língua Portuguesa, 1922, p. 95; São Paulo).

(15) Estudemos nossa Língua, 1965, pp. 164-165; Editora Obelisco; São Paulo.
24

Do assunto discorreu também Augusto Gotardelo:

“A abreviatura etc. significa, à luz do latim, e os mais, e os


demais, e outros, e os restantes. Cetera é o plural neutro de
ceterus, a, um. Como etc. se refere a coisas, alguns autores condenam
o seu uso antes (aliás, depois) de nomes personativos. Haja vista este:
Muitos escrevem, por ex.: Camões, Castro Alves e outros
(Marques da Cruz, Português Prático, III, p. 292). Estamos diante
de outro caso de esquecimento etimológico. Quando alguém emprega a
referida abreviatura em frases daquele tipo, não tem a mente presa
ao sentido dela. É o que se nota nos exemplos que transcreveremos,
exemplos esses que saíram dos bicos da pena de quem sabia muito bem
a Língua. Ei-los:”(16)

1. “Esta sintaxe é aceita, entre outros, pelos seguintes gramáticos:


Frederico Diez, Darmesteter, Constâncio, Jerônimo Soares Barbosa,
Adolfo Coelho, Pacheco Júnior, Lameira, Maximino, Mário Barreto,
Aureliano Pimentel, Rui Barbosa, etc.” (Carlos Góis, Sintaxe de
Concordância, 1929, p. 173; Imprensa Oficial; Belo Horizonte,
MG).

2. “São exemplos pouquíssimos em comparação do número infinito


de passagens com o emprego de ser entregue, estar entregue, colhidos
em Fernão Lopes, Castanheda, João de Barros, Vieira, etc.” (M.
Said Ali, Dificuldades da Língua Portuguesa, 5a. ed., p. 137;
Livraria Acadêmica; Rio de Janeiro).

(16) Op. cit., pp. 14-15.


25

3. “Conto falar um dia destes ao Sátiro Dias, a alguns de S.


Paulo e Minas, ao Serzedello Correia, etc.” (Machado de Assis,
Correspondência, p. 334).

4. À derradeira, nisto de emprego de etc., na frase, em


relação a pessoas, vem aqui de molde alegar com Francisco
Martins de Araújo, desembargador do Tribunal de Justiça do
Estado de Goiás, jurista exímio e extremado vernaculista.

Em “Questiúnculas de Português”, livro a mais de um


respeito notável, após tratar “ex professo” a matéria (que
enriqueceu com dezenas de exemplos respigados na vasta seara
dos “oráculos da escrita vernácula”), assim concluiu Sua
Excelência:

“Como se vê, depois de tudo o que se leu, linhas volvidas, já não


pode haver hesitação de quem quer que seja quanto ao emprego da
abreviatura latina etc. em referência a pessoas.

E o afirmamos, categoricamente, uma vez que tem ela a seu


prol antecedentes clássicos, ou melhor, a autoridade incontestável e
incontestada dos mestres da mais pura e genuína escritura
vernácula”.(17)

(17) Francisco Martins de Araújo, Questiúnculas de Português, 1981, pp. 253-257;


Editora da Universidade Federal de Goiás.
26

VI — Curiosidades acerca da Vírgula: Questões e Enigmas

O assunto da vírgula, ainda quando não figure no


rol dos mais importantes fatos gramaticais, não pode ser
estigmatizado com a nota de desprezível e inútil como uma
verruga. Haverão de confirmá-lo ao simpático leitor as
questões e enigmas adiante expostos.

1. O eloquente Vieira, após deixar cair dos lábios a


afirmação de que bastava “mudar um ponto ou uma vírgula (...)
para falsificar uma escritura”, entrou a fazer-lhe a prova:

“Surrexit, non est hic”. Ressuscitou, não está aqui.

E:

“Surrexit? Non, est hic”. Ressuscitou? Não, está aqui.

“De maneira que” – remata o divino pregador – “só com


trocar pontos e vírgulas, com as mesmas palavras se diz que Cristo
ressuscitou, e é de fé; e com as mesmas se diz que Cristo não
ressuscitou, e é heresia”.(18)

2. Mestre soberano de nosso vernáculo, sentenciou Rui:

“Nos monumentos escritos da história ou da lei, um ponto ou


uma vírgula podem encerrar os destinos de um mandamento, de uma

(18) Sermões, 1959, t. III, pp. 198-199.


27

instituição ou de uma verdade” (Obras Completas, vol. XXIX,


t. III, p. 195).

3. Que o mau emprego da vírgula seja poderoso para


adulterar e perverter a significação até de texto sagrado,
mostrou à evidência o latinista Arthur Rezende:

“Deus est magnus, peccator. Deus é grande, pecador.

Tirada a vírgula, daria o trocadilho: Deus é grande pecador”


(Frases e Curiosidades Latinas, 1955, p. 151).

4. Resposta sibilina: “Ibis redibis non morieris in bello”.

O sentido dependerá da virgulação:

– “Ibis, redibis, non morieris in bello”.

Irás, voltarás, não morrerás na guerra.

Ou:

– “Ibis, redibis non, morieris in bello”.

Irás, não voltarás, morrerás na guerra.

“É um exemplo de frases anfibológicas que se atribuem aos


antigos oráculos. Esta seria dirigida a um rei que estava para ir à
guerra e tem dois significados contrários conforme a colocação da
vírgula, antes ou depois de non” (Arthur Rezende, Frases e
Curiosidades Latinas, 1955, p. 289; Rio de Janeiro). Ainda:
Napoleão Mendes de Almeida, Gramática Latina, 14a. ed.,
28

p. 333; Edição Saraiva; São Paulo); Paulo Rónai, Não Perca o


seu Latim, 1980, p. 85; Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro;
Giuseppe Fumagalli, L’Ape Latina, 1992, p. 112; Hoepli;
Milano, etc.

5. Análogo a esse é o caso do súdito, preso e arguido de


crime de lesa-majestade por haver escrito, no muro do palácio
real, a seguinte palavra de ordem revolucionária:

Matar o rei não é crime

Prestes a subir ao patíbulo, foi porém absolvido pelo juiz


da inconfidência e mandado em paz, depois que lhe ouviu a
defesa, reduzida a termo nesta substância: Estava ainda a
escrever, quando os esbirros palacianos lhe deitaram a mão, sem tivesse
tempo de pontuar corretamente o mote incriminado, que de novo
lançou num papelucho, agora atendendo à exata colocação dos sinais de
pontuação:

Matar o rei, não; é crime!

6. Outro caso, idôneo para causar perplexidade no espírito


de algum leitor inadvertido:

O lavrador tinha um bezerro e a mãe do lavrador era


também o pai do bezerro.

Uma vírgula solucionará a questão:

O lavrador tinha um bezerro e a mãe, do lavrador


era também o pai do bezerro.
29

7. “Ipsis litteris virgulisque”. Locução adverbial que, traduzida


em vulgar, quer dizer: Com as mesmas letras e vírgulas.

8. O frade e o burro.

Enquanto o frade pensava o burro orava.

Sem vírgula, fica o texto obscuro; a vírgula dá-lhe clareza


e sentido:

Enquanto o frade pensava(*) o burro, orava.

9. No antigo direito civil romano havia “tal conexão entre o


conteúdo e a forma, que a falta de uma vírgula matava o processo:
si virgula nequit, causa cadit (…)” (João Monteiro, Curso de
Processo Civil, 1912, vol. I, p. 56; São Paulo).

10. Lido algures:


a) “Curvo, silencioso, humilde como uma vírgula!”.
b) “A vírgula é um ponto fazendo xixi” (“transeat”).
c) “O maior sonho da vírgula é chegar ao ponto”.
d) “As horas são as vírgulas da eternidade” (Arüss; apud
Pitigrilli, Dicionário Antiloroteiro, 1956, p. 83; trad. Marina
Guaspari; Editora Vecchi; Rio de Janeiro).
e) “Para bom entendedor, uma vírgula basta” (Roberto
Romano, in O Estado de S.Paulo, A2; 27.8.2018).

(*) Pensava, isto é, tratava convenientemente. Pensar significa também pôr pensos em;
aplicar curativo a, etc.: “Pensar um animal, dar-lhe o sustento e o tratamento próprio”
(Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo, 2a. ed.; v. pensar).
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f) “A crase não foi feita para humilhar ninguém, escreveu


Ferreira Gullar. Nem a vírgula, completou José Cândido de
Carvalho” (http://blogs.correiobraziliense.com.br).
g) “No dia seguinte, a mesma fauna estava toda reunida no
palacete (palacete vírgula, palácio) dos condes Matarazzo, na Avenida
Paulista (…)” (Joel Silveira, A Milésima Segunda Noite da
Avenida Paulista, 2003, p. 26; Companhia das Letras).

11. É fama que o assassínio da rainha Joana de Borgonha,


mulher do rei da França Filipe, o Belo, deveu-se a um erro de
pontuação, originado de frase ditada por Buridan (filósofo
escolástico francês, reitor da Universidade de Paris em 1327).
Foi o caso que, tendo-lhe os conspiradores pedido um
parecer sobre grave questão de Estado, respondeu Buridan,
oralmente:
– “Reginam interficere nolite, timere bonum est”. O que,
traduzido em vulgar, queria dizer: Não mateis a rainha, é bom
respeitá-la!
A pessoa que anotou as palavras do oráculo, porém, não
colocou a vírgula no devido lugar – depois da forma verbal
“nolite” –, e o texto corrompido, que os conjurados leram,
ficou assim escrito:
“Reginam interficere nolite timere, bonum est”. Tirada a frase
em linguagem, significa: Não tenhais medo de matar a rainha,
é coisa bem feita!
(Cf. Arthur Rezende, op. cit., p. 685; Nair Lacerda, Grandes
Anedotas da História, p. 68; Círculo do Livro; São Paulo).
31

11. Letra de música:

Vírgula

(Alberto Ribeiro — Eratóstenes Frazão)

Teu amor é fatal — vírgula

qual mulher sensacional — ponto e vírgula

queres dar teu coração — interrogação

Que pecado original — exclamação

Teu amor é fatal — vírgula

qual mulher sensacional — ponto e vírgula

queres dar teu coração — vírgula

mas comigo não — ponto-final

Teu amor — entre aspas

já consegui descrever — reticências

Agora adivinhe o que eu quero dizer — exclamação


http://www.scribd.com/Biasotti

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