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TQ TQ 32 (2017) 189-216

Questões de
Teologia

Octavius: propostas e
discussões entre um
cristão e um pagão por
volta de 200 d. C.

MOACIR FRANCISCO PEDRINI1

Resumo: este artigo descreve algumas propostas que Minúcio Félix, através da
boca do cristão Otávio, apresenta ao pagão Cecílio na obra “Octavius”, escrita no
início do séc. II, período em que reinava uma grande confusão no campo religioso
do Império Romano. Nesse contexto, o cristianismo vai estendendo suas raízes e se
infiltrando cada vez com novas ideias, diferentes daqueles das seitas ali instaladas.
Assim, a obra de Minúcio Félix aborda as seguintes questões: existência de um
Deus único e providente; razão e fé na religião cristã; a liberdade, esperança e
heroicidade da vida cristã.

1. Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Lateranense.Vice-diretor


administrativo e professor da Faculdade Dehoniana. Presbítero da Congre-
gação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus (Dehonianos). Este artigo
recolhe parte da dissertação de mestrado defendida e aprovada, em 1986, no
Istituto Patristico Augustinianum.

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Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

Palavras-chave: Cristianismo; paganismo; diálogo; providência; liberdade de cul-


to; fé e razão.
Riassunto: Questo articolo descrive alcune proposte che Minúcio Félix, dalla boc-
ca del cristiano Otávio, presenta al pagano Cecílio nell’opera “Octavius”, scritta
all’inizio del secolo II. All’inizio di quel secolo prevalse una grande confusione nel
campo religioso dell’Impero Romano. In questo contesto, il cristianesimo sta es-
tendendo le sue radici e infiltrandosi ogni volta con nuovi ideali, diversi da quelli
delle sette installate lì. Così, il lavoro di Minúcio Félix affronta le seguenti domande:
esistenza di un Dio unico e previdente; ragione e fede nella religione cristiana; Vita
cristiana: libertà, speranza ed eroismo.
Parole Chiave: Cristianesimo; il paganesimo; il dialogo; provvidenza; libertà di
culto; fede e ragione.

Introdução

Marco Minúcio Felix é um apologeta latino do segundo sé-


culo. Escreveu uma pequena obra em forma de diálogo, chamada
“Octavius”2, que conta a problemática relação entre o cristianismo
e o paganismo ocidental no segundo século.
São três os personagens no diálogo: Minúcio Félix, Otávio e
Cecílio. Deles temos poucas notícias. Minúcio Félix, original da Áfri-
ca setentrional, deixa seu amigo Otávio ali e vem para Roma, onde
exerce a profissão de advogado. Era pagão convertido ao cristianis-
mo. Na obra desempenha a função de mediador. Otávio Januário,
outro personagem, deu o título à obra: Octavius. Ele era pagão, mas
converteu-se ao cristianismo. Também ele veio a Roma para tratar
de negócios. Cecílio Natal, terceiro personagem, é o pagão que, con-
vencido por Otávio durante o longo diálogo, torna-se cristão.
O colóquio acontece quando Otávio chega a Roma para fazer
negócios e visitar o amigo Minúcio, que estava gozando férias de
outono. Os dois amigos, depois de terem contado um ao outro as
últimas novidades, foram fazer um passeio na praia de Óstia. Com

2. A obra de Minúcio Félix leva como título o nome de um dos personagens,


“Octavius”. Para evitar possíveis confusões no artigo, sempre será citado o
título da obra em latim, “Octavius”, e o nome do personagem em língua
portuguesa, “Otávio”.

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eles vai também outro amigo de Minúcio, Cecílio. Chegando à ci-


dade e dirigindo-se ao mar, Cecílio, que era pagão, vendo a imagem
de Serápides, mandou-lhe um beijo, algo normal para ele. Otávio
percebendo o gesto chama a atenção de Minúcio. Cecílio enten-
deu muito bem que a advertência era feita indiretamente a ele, e
como consequência ficou silencioso e triste. Minúcio, percebendo
o estado do amigo, vai-lhe ao encontro para saber o motivo de tal
comportamento. Cecílio diz que a atitude de Otávio o ofendeu.
Por isso, quer ter uma conversa com Otávio para esclarecer o pro-
blema. Cecílio então convida Minúcio para que seja o mediador
da conversa.
O diálogo, contudo, foi escrito mais tarde, quando Otávio já
tinha morrido e num período de calma no Império e Roma, por
sua vez, estava sentindo a força do cristianismo que penetrava to-
dos os setores e classes sociais.
No segundo século, apesar de todas as dificuldades, o cris-
tianismo se difundia por todo o Império e o número dos cristãos
crescia sempre mais, graças a propaganda ativa feita nas casas e nas
ruas como nos testemunha o escritor pagão Celso (que viveu pro-
vavelmente entre 110 a 180) na sua obra Alethès Logos (Discurso
Verdadeiro)3 e o próprio Minúcio Félix, no seu diálogo4. A maior
propaganda era o testemunho de vida que os cristãos davam em
todos os lugares. A classe letrada da sociedade romana vivia certa
angústia espiritual5 porque a cultura clássica da Grécia e de Roma
não lhes era mais suficiente e esta aos poucos perdia espaço.
Esta situação ficou documentada na obra de Minúcio Félix,
Octavius. Na obra em forma de diálogo, o pagão Cecílio mostra
toda sua reação contra os cristãos, mas ele, inseguro de si, não con-
segue fugir das contradições. Assim, a alma de Cecílio, como no-la
é apresentada por Minúcio é, ao mesmo tempo, cética e devota. É
um pouco a alma de todo pagão, de modo especial aquele da classe

3. Cf. ORÍGENES. Contra Celso. Tradução de Orlando dos Reis, São Paulo:
Paulus, 2004.
4. Cf. MINUCIUS FELIX. Octavius. Texte établi et traduit J. BEAUJEU. Paris:
Collection des Universités de France, 1964.
5. Cf. V. A. SIRAGO, Involuzione politica e spirituale nell’impero del IIº secolo,
1974, p. 35-60.

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culta. Esta incredulidade infiltrou-se na sociedade romana nos anos


da república e foi sempre aumentando.
Os ritos e as superstições se multiplicavam em Roma, onde
todas as religiões orientais eram acolhidas e os pagãos cada dia iam
adotando novas divindades. Os capítulos da obra6 nos dão uma
ideia desta situação criada não somente em Roma, mas em todo
o Império. A grande confusão dessas crenças havia aumentado a
perturbação e o ceticismo em todas as classes sociais7.
A própria filosofia já não satisfazia. O homem sentia que a
filosofia grega havia cessado de produzir e se havia conformado ao
“[...] quod supra nos nihil ad nos”8, de Sócrates. Esse era o estado
de crise espiritual no momento que, com sua obra, Minúcio apre-
senta a fé cristã. Do paganismo, na sua multiplicidade de formas,
desabrocha a flor do cristianismo. O paganismo em certo sentido
foi propedêutico para o cristianismo. E Minúcio quer que este cris-
tianismo cresça sempre mais e se espalhe por todo o mundo. Por
isso, se propõe à árdua tarefa de fazer conhecer ao mundo pagão as
propostas positivas do cristianismo.
Este artigo toca os pontos essenciais da obra estudada e se
organiza em cinco partes: 1) um Deus único e providente; 2) a fun-
ção da razão humana na religião cristã; 3) o culto da religião cristã;
4) os heróis cristãos, e 5) o testemunho de uma esperança futura.

1. Um Deus único e providente

Podemos dizer que a obra de Minúcio é dominada principal-


mente pela defesa da doutrina da existência de um único Deus e
da sua ação providencial no universo. O cristão Otávio tem que

6. Cf. F. M. MINÚCIO, L´ottavio. Introduzione, nuova traduzione col testo a


fronte e nota di Umberto Moricca. Roma: Ed. Prof. P. Maglione, 1933, Cap.
VI-VII e XX-XXVII. Observação: A obra usada como referência para esta
pesquisa é a citada acima, tradução de Umberto Moricca. Por uma questão
de padronização, será utilizada apenas a abreviação do autor, MMF (Marco
Minúcio Felix), para a obra investigada, L ´Ottavio. Em seguida, em algaris-
mos romanos, serão citados os capítulos e o verso com o número arábico.
7. Cf. MMF, V, 2.
8. MMF, XIII, 1.

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enfrentar as acusações vindas do pagão Cecílio que combate esta


doutrina. Para tal, Cecílio apresenta as três hipóteses sobre a ori-
gem do mundo: a) a teoria órfica da geração dos seres por um deus
macho-fêmea; b) a teoria atômica proposta por Demócrito, Epicu-
ro e Lucrécio; e c) a teoria de Empédocles dos quatro elementos:
fogo, ar, terra e água9.
Para Cecílio, estas teorias antigas vêm provar a não necessida-
de de um Deus Criador. Se o mundo é natural, para que serve esta
crença, este medo, esta superstição? Minúcio aplica a teoria da inu-
tilidade de Deus tanto aos homens como aos animais. Esses devem
o seu nascimento, sua vida e o seu crescimento à combinação dos
átomos aos quais pela sua decomposição todos retornarão ao que
eram no início. Daí, mais uma vez, a afirmação da inutilidade de
um artífice, juiz e criador10.
Pela combinação dos elementos seminais do fogo, produz-se o
sol; dos vapores, se forma a neblina, que forma as nuvens e depois
caem em forma de chuva ou em forma de granizo; pelo choque
das nuvens entre si, produzem-se, os trovões e os raios e estes caem
atingindo os montes, destruindo árvores e sem distinção atingem
lugares profanos e sagrados, matam homens bons e maus. As tem-
pestades imprevisíveis envolvem tudo, sem discernimento. Os nau-
frágios não distinguem os bons e dos maus. Nos incêndios, morrem
juntos inocentes e os culpados. Quando acontece uma peste, todos
os habitantes da cidade são atingidos. Na guerra, geralmente quem
morre são os inocentes. No período de paz, o mau tem melhor
destino do que o honesto11.
Cecílio conclui que se o mundo fosse guiado pela Providência
ou por uma autoridade suprema, o destino de cada coisa seria bem
diferente. As coisas boas da natureza, os lugares sagrados não se-
riam destruídos. O homem bom não pereceria nas catástrofes, pes-
tes e guerras porque seriam protegidos e salvos. Nada neste mundo
seria atingido indiscriminadamente. Para os pagãos, a verdadeira
Providência deveria agir de tal modo que todos os homens fossem
bons, ou que pelo menos a divina providência demonstrasse um

9. Cf. MMF, V, 7.
10. Cf. MMF, V, 8.
11. Cf. MMF, V, 9-11.

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cuidado especial pelos homens bons. Mas, como a história é cheia


de desgraças, Cecílio não pode admitir a existência de uma Provi-
dência como querem os cristãos. Este é o velho dilema bíblico: por
que o mal progride e prospera? Diante de tal incompreensão, Cecí-
lio conclui que tudo está dominado pelo capricho da sorte (acaso),
que age livre de toda lei12 e diante disso é preferível manter-se na
religião tradicional e continuar a adorar os mesmos deuses que fi-
zeram grande todo o império, principalmente Roma13. Cecílio não
pode admitir que outra ideologia ou religião venha destronar a ver-
dadeira doutrina tradicional de tantos séculos14.
Após a defesa dos deuses e da religião pagã, Cecílio passa a
atacar o Deus único dos cristãos. Um Deus que não se sabe de onde
vem, qual sua origem, solitário, desconhecido de todas as nações,
que nem a superstição romana conheceu15. Cecílio acusa os cris-
tãos de esconderem o conceito que têm de Deus. Além disso, esse
Deus dos cristãos não tem os atributos das divindades pagãs, isto
é, os atributos humanos. É totalmente diferente. É um Deus aban-
donado, porque não há ninguém que lhe seja igual. É um Deus
solitário. Não pode ser aquele Deus que conhece todos os aconte-
cimentos da natureza e dos homens como pretendem os cristãos
na sua ignorância.
Os cristãos pretendem para o seu Deus coisas impossíveis
como a onisciência, a onipresença e uma quantidade de milagres e
prodígios, mas, na verdade, esse Deus dos cristãos é um desconhe-
cido, que não pode ser mostrado a ninguém, mas que se intromete
na vida deles a ponto de julgar conhecer os próprios pensamentos
deles. Portanto, se transforma num Deus molesto e curioso, que se
se preocupa das coisas singulares não pode prover o universo, e se
se preocupa do universo e não pode cuidar das coisas singulares.
Os deuses dos pagãos não eram tão molestos ou curiosos e
não se intrometem na vida das pessoas, mas somente as protegem
e as deixam viver na liberdade16. O Deus dos cristãos é um Deus

12. Cf. MMF, V, 9-11.


13. Cf. MMF, VI, 1-3.
14. Cf. MMF, VIII, 1.
15. Cf. MMF, X, 3.
16. Cf. MMF, X, 5.

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impotente, ou mau, porque deixa os seus seguidores na miséria,


sofrendo fome, frio17. Mas onde está este Deus? Os romanos sem
este Deus imperam e reinam sobre todo o orbe terrestre18. Com
isso, Cecílio quer provar a impotência desse Deus dos cristãos.
A esta argumentação de Cecílio contra o Deus único e pro-
vedor do universo, Otávio vem com a sua defesa descrevendo ma-
ravilhosamente a ordem e a harmonia de todo o universo como
prova da existência de um Deus, de uma inteligência superior que
formou e guia tudo o que existe. Para Otávio, tudo prova a sua tese:
o movimento dos astros; o suceder-se dos dias e das noites, das esta-
ções com a sua variedade de clima, frutos e flores; o limite imposto
ao mar; o movimento das águas dos rios; as cadeias de montanhas,
os vales; as árvores que buscam o seu alimento no interior da terra;
a variedade de animais com os mais diversos mecanismos de de-
fesa. Tudo isso, diz Otávio, poderia ser perturbado se faltasse uma
mente suprema e divina que tudo rege19.
Mas, para Otávio, a prova maior da existência de um Deus
único é o próprio homem feito à imagem do próprio Criador. A
estrutura ereta do homem é um convite para que olhe para o alto,
que olhe para Deus, os olhos para contemplar a beleza do universo.
A grande maravilha que existe entre todos os homens é a seme-
lhança entre estes e, por outro lado, os traços que caracterizam
cada homem fazendo-os diferentes uns dos outros. A maravilha da
lei que governa o nascimento de cada criatura humana a começar
do próprio desejo de procriação que cada homem sente dentro de
si. Por trás disso tudo, existe um Deus que tudo governa20.
O Deus dos cristãos é um Deus que providencialmente cui-
da do todo e das partes21. Portanto, do mesmo modo que quando
entramos numa casa encontramos todas as coisas bem ordenadas
e concluímos que ali existe um patrão que a governa, do mesmo
modo, olhando para a ordem do universo, não podemos concluir

17. Cf. MMF, XII, 2.


18. Cf. MMF, XII, 5.
19. Cf. MMF, XVII, 4-10.
20. Cf. MMF, XVII, 1; XVIII, 2.
21. Cf. MMF, XVIII, 3.

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outra coisa, senão que existe um Deus que é providente22.


Na verdade, o mundo pagão já tinha notado a exigência de
um princípio geral da existência de um Ser superior, que Otávio
assume e o leva adiante. No seu discurso, ele não quer contrapor
uma verdade cristã a uma pagã, mas, sim, contrapor uma verdade
mais clara a uma verdade obscura. Otávio se encontra diante de
duas exigências: de um lado, acolher o cristianismo mostrando a
insuficiência do paganismo; por outro lado, não pode repelir em
bloco a cultura pagã, porque seria desrespeitado pelos próprios
destinatários da sua obra. Por isso, ao tratar da unidade de Deus
que caracteriza o cristianismo monoteístico, ele fará uso daqueles
filósofos que ao mesmo tempo combate.
Nesta defesa do monoteísmo é necessário se perguntar se o
reino celeste é regido por um só governo ou mais. Partindo deste
princípio geral, é preciso ir aos princípios particulares para compro-
var a unidade da divindade. Para Otávio, os impérios terrestres são
reflexos dos celestes, e não estes reflexos daqueles. Assim, apresenta
diversos exemplos de reinos terrenos em que a divisão do poder
sempre acabou em sangue: a fábula dos dois irmãos tebanos, onde na
luta pelo poder, perderam a vida, Eteócles e Polinices; o fratricídio de
Rômulo e Remo; as guerras entre o sogro e o genro, César e Pompeu,
quando um Império tão grande não foi suficiente para os dois23.
Depois desta argumentação, Otávio apresenta Deus como Pai
de todas as coisas, que não tem princípio e nem fim, que dá aos
outros a origem e a vida e a sua eternidade, que com a sua razão
regula tudo e com a sua virtude conduz o mundo a sua realização.
Este Deus que é o ordenador de todas as coisas é invisível aos nos-
sos olhos, é intocável porque é superior às nossas faculdades, é in-
finito e conhecedor de si mesmo em toda a sua grandeza. A mente
humana é muito limitada para compreendê-lo. Em uma palavra, é
inestimável. Por isso, é melhor nem nomeá-lo24. O seu único nome
é Deus, Deus nomen est25 e se sua característica é a unidade, a pala-
vra “Deus” diz tudo.

22. Cf. MMF, XVIII, 4.


23. Cf. MMF, XVIII, 5-6.
24. Cf. MMF, XVIII, 7-9.
25. MMF, XVIII, 10.

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Quando Otávio chama Deus de “Pai de todos”, que deu ori-


gem e vida a tudo o que existe, ele não está se referindo à criação
do nada, mas usa esses atributos exatamente para provar que este
Deus é único, porque isso lhe interessa no momento, para contra-
por-se ao politeísmo pagão.
No capítulo XIX, Otávio traz o testemunho dos poetas e de
muitos filósofos que disseram mais ou menos a mesma coisa que
ele diz. Segundo ele, os poetas, que em outra passagem ele havia
chamado de contadores de fábulas, neste capítulo são apresenta-
dos defendendo que um só é o pai dos deuses e dos homens26. É
evidente, que também aqui, Otávio faz uso da literatura existente.
Para testemunhar a sua ideia, cita, entre outros poetas, Virgílio, e
entre os filósofos, Tales de Mileto, Anaxímenes, Diógenes, Anaxá-
goras, Pitágoras, Demócrito, Aristóteles, Heraclídes e, sobretudo,
Platão. Este último mostra certa afinidade com o cristianismo e é
o filósofo mais admirado por Otávio, pois é o que trata com maior
clareza os problemas referentes à divindade. Deus, para Platão,
como é apresentado por Otávio, é o pai do mundo, o criador da
alma, artífice das coisas celestes e terrestres. Mas também Platão
interessa enquanto pode ser evocado como defensor da ideia de
um Deus Único27.
Otávio, depois de expor a ideia desses filósofos, diz: “Demos-
trei como as opiniões de quase todos os filósofos [...] admitem a
existência de um só Deus”28. Otávio quis aproveitar do material
fornecido pela cultura dos seus destinatários. Ele quis mostrar que
a passagem do politeísmo ao monoteísmo já era um caminho per-
corrido rumo ao cristianismo.
Como podemos constatar, Otávio não apresenta algo total-
mente novo nessa defesa do Deus Único. As ideias que apresentou
são existentes na filosofia clássica. Ele utilizou a própria filosofia
para articular um ataque a toda a mitologia pagã29, seus conteúdos
e narrações, utilizando os próprios filósofos pagãos. Com tudo isso,
Otávio queria livrar a elite dessa superstição mitológica mostrando

26. Cf. MMF, XIX, 1.


27. Cf. MMF, XIX, 14-15.
28. MMF, XX, l.
29. Cf. MMF, XX-XXIV.

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que estas narrações são para crianças e não para gente culta. Depois
de descrever todos os erros da mitologia, Otávio elogia Platão por
ter eliminado os poetas narradores de fábulas imorais e, entre esses,
eliminou o famoso Homero que corrompia a mente das crianças30.
Depois desse esforço para provar aos pagãos que existe uma
providência divina (usando como exemplos a ordem do universo,
da natureza e do homem) e para mostrar que este Deus providen-
te é um só, Otávio afirma que o Deus dos cristãos é invisível aos
olhos da carne, mas a sua força pode ser sentida no movimento do
universo: trovões, raios, relâmpagos, serenidade do firmamento31.
Deus está presente em toda parte e não só perto, mas dentro de
cada homem. Nada escapa aos seus olhos. Ele tem tudo presente32.
Ajuda a todos os que lhe são fiéis em todas as suas dificuldades
dando-lhes o prêmio da felicidade futura33.
Para concluir esse aspecto, para os pagãos representados por
Cecílio, não existe uma Providência Divina que rege o universo,
que é regido pela sorte (acaso). Tudo existe pela combinação dos
átomos, dos elementos seminais. Segundo ele, não se pode acre-
ditar num Deus Providente, que deixa perecer os bons. Ele não
consegue entender porque esse Deus que os cristãos têm como
Salvador dorme nesses momentos de necessidade.
Otávio não responde a todas as acusações que o pagão Cecílio
levantou contra o Deus Único, como por exemplo, o problema das
catástrofes que acontecem no mundo, quando perecem indistinta-
mente bons e os maus. Como já dissemos, para os pagãos, a Provi-
dência deveria intervir e livrar os seus protegidos dessas desgraças.
A verdade é que isso continua a ser um grande problema para a
maioria dos cristãos.
Finalmente, este Deus único e Providente, não pode ser de-
finido ou visto porque ultrapassa a capacidade da mente humana,
mas pode ser sentido e conhecido pelo seu operar no mundo. É
esse Deus que Cecílio acaba aceitando.

30. Cf. MMF, XXIII, 1.8.


31. Cf. MMF, XXXII, 4.
32. Cf. MMF, XXXIV, 7.10.
33. Cf. MMF, XXXVI, 9; XXXVII, 2.

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2. A função da razão humana na religião cristã

O pagão Cecílio inicia a sua exposição em defesa da religião


pagã de uma maneira cética dizendo que nas coisas humanas tudo
é dúvida e incerteza, que nada é verdade e que sobre o universo
nem mesmo as escolas filosóficas e os filósofos pronunciaram al-
gum juízo definitivo34. Para Cecílio, a filosofia não pode alcançar
a verdade, mas só alguma coisa semelhante à verdade. Os filósofos
não fizeram nenhum pronunciamento definitivo sobre o universo,
mas continuam a deliberar. Desse modo, o que causa indignação
e aflição é aquela classe de ignorantes, sem nenhuma cultura, que
não sabe fazer nada, nem os trabalhos mais simples, e ainda tem a
ousadia de pronunciar certezas sobre o universo.
O cristianismo tenta fazer uma mediação entre estas duas
classes por meio de pessoas qualificadas como, por exemplo, os
apologistas. Mas Cecílio vê que a pseudo-cultura da plebe cristã
opõe aquilo que a “ipsa philosophia deliberat”. Isso significa que
a filosofia está ainda envolvida nos seus problemas internos. Mas
isso não quer dizer que não tenha alcançado algum resultado, ainda
que não definitivo. Ora, se a razão humana não consegue resolver
os problemas da terra, pela sua mediocridade, quanto menos ela
conseguirá conhecer e compreender as coisas celestes35.
A dúvida de Cecílio é justificável se considerarmos as muitas
dificuldades que a mente humana tem que enfrentar na investi-
gação em torno ao divino. Aquilo que está acima e em baixo de
nós não nos é dado a conhecer, nem permitido perscrutar e não é
nem religioso36. Seria uma impiedade querer ultrapassar os limites
da própria razão humana. Por isso, é melhor ater-se ao “gnosce te
ipsum” do filósofo de Atenas, porque isso nos consentirá de tomar
consciência dos nossos limites. Assim, Cecílio quer dizer que de-
vemos nos ater àquilo que podemos saber, ao que é possível com
a máxima verossimilhança, conjeturar do mundo que nos cerca.
A polêmica de Cecílio não é contra o divino, mas contra a

34. Cf. MMF, V, 2.4.


35. Cf. MMF, V, 4.
36. Com “religio”, Cecílio alude ao puro e simples apelo a imprescrutabilidade
daquelas forças que regem o destino do homem.

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Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

pretensão que os cristãos têm de querer conhecê-lo. Assim, Cecílio


conclui o seu discurso dizendo: “Os cristãos são uma raça de pre-
sunçosos, que pretendem saber mais do possível. Se tivessem um
pouco de bom senso e vergonha deixariam de investigar os misté-
rios do mundo. Os cristãos devem limitar-se onde pisam e isso já é
suficiente para eles”37.
A essa exposição e acusação de Cecílio, vem a resposta de
Otávio, onde desde o início do seu discurso proclama bem alto o
poder da razão humana. “Saibam todos os homens indistintamente
de qualquer idade, sexo ou condição social que possuem em si a
capacidade da razão e da sabedoria”38. Esta é a resposta que Otá-
vio dá ao furor de Cecílio contra os cristãos. O homem foi criado
provido de razão e de inteligência e, por isso, possui em si mesmo
a sabedoria. Pela própria luz da razão, ele pode chegar ao conheci-
mento das verdades religiosas, seja ele filósofo ou analfabeto, rico
ou pobre. Aliás, é necessário que o pagão saiba que os filósofos, an-
tes de serem tais, eram tidos também como homens ignorantes e os
ricos apegados as suas riquezas ficam contemplando o ouro antes
que o céu; enquanto que os cristãos na sua pobreza descobriram a
sabedoria e transmitiram aos outros suas doutrinas. Isso prova que
o entendimento (ingenium), não é dado ao homem segundo as suas
riquezas materiais e nem se adquire somente com o estudo, mas é
engendrado com a criação do próprio espírito (mente)39.
Diante disso, é melhor que o cristão se entregue ao próprio jul-
gamento do que a autoridade dos pais que poderiam enganá-lo, levan-
do-o ao mesmo erro deles. Esta é uma crítica que Otávio faz ao tradi-
cionalismo pagão. Cecílio não deve seguir cegamente as tradições dos
pais, porque essa tradição corrompe. É melhor crer em si mesmo. O
que Otávio não admite é que o homem siga o erro dos outros quando
pode chegar à verdade por suas próprias investigações40.
A seguir, Otávio combate os deuses dos pagãos e a sua irracio-
nalidade. “Insensatos!”, diz Otávio aos pagãos.

37. MMF, XII, 7.


38. MMF, XVI, 5.
39. Cf. MMF, XVI, 5.
40. Cf. MMF, XXIII, 8.

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Vós fabricais vós mesmos as vossas divindades, vãs, as fundis, vós


as esculpis, vós as trabalhais à vossa vontade e depois prestais um
culto, porque vossos pais vos ensinaram a fazer uma tal ação. Vós
sabeis por vossa razão que estes deuses são de pedras, de madeira
e de prata. E então, por que honrá-los? Por que imitar a folia dos
outros, em lugar de entregar-se a vossa própria razão41?

Essa é a ideia de Otávio: o homem não deve deixar-se arrastar


pela corrente, mas, ao mesmo tempo, não exclui a autoridade da ciên-
cia e da filosofia. Toda a apologia de Otávio é um contínuo apelo ao
testemunho dos poetas, dos filósofos. Entretanto, se Otávio gosta de
exaltar o poder da investigação que está no homem, ele não caiu no
erro racionalista. Otávio admite a necessidade do auxílio divino que
vem socorrer a razão humana, pois reconhece que o pensamento do
homem comparado ao pensamento divino não é mais que trevas42.
Otávio, para convencer Cecílio da existência de um Deus úni-
co e da pureza moral dos cristãos, diz que não basta o raciocínio, a
invocação da autoridade dos poetas, dos sábios e dos filósofos, mas
que é necessária a ajuda de Deus e foi graças a esse auxílio que
venceu as últimas resistências do amigo Cecílio.
Segundo Otávio, o homem por si é incapaz de alcançar a sabe-
doria e a felicidade. Por isso, nenhuma felicidade é sólida sem o conhe-
cimento de Deus. Para alcançar esse conhecimento, a razão não é su-
ficiente; o testemunho dos poetas, dos filósofos e dos sábios também
não bastam, pois as duas inteligências mais brilhantes que honraram a
sabedoria antiga, isso é, Sócrates e Platão também erraram43.
Assim, podemos concluir este aspecto dizendo que a ciência é
incapaz por si só de nos fornecer uma explicação ou uma interpreta-
ção plenamente satisfatória do universo. Ela é incapaz de criar uma
moral e de substituir a religião. O homem precisa da fé revelada, além
da capacidade da razão e da possibilidade da constatação.

41. MMF, XXIV, 5-8.


42. “[...] Deus auctor omnium ac Speculatur omnium, a quo nullum potest esse
secretum, tenebris, interest cogitationabus nostris quasi alteris tenebris...”
(MMF, XXXII, 9).
43. Cf. MMF, XXXVIII, 5.

203
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

3. O culto da religião cristã

Segundo Cecílio, diante do mistério do universo, mistério que


o homem não pode penetrar, é inútil querer perscrutá-lo a todo
custo. Diante dessa incapacidade, é melhor que o homem se man-
tenha na tradição dos pais, isto é, na doutrina da verdade como
dizem os pagãos44.
Cada povo adora os seus deuses particulares, mas os romanos
são mais religiosos de todos os povos porque veneram e adoram to-
dos os deuses, até mesmo aos deuses desconhecidos dedicam a eles
altares. E assim se formou um culto, que mesmo com o passar dos
séculos nunca se interrompeu, mas cresceu, porque ritualmente
sempre foi bem celebrado. Os deuses, para Cecílio, nunca falharam
com a sua proteção. Basta considerar os templos e os altares dos
deuses, por meio dos quais Roma é adornada e protegida.45
Ora, depois de tantos séculos de tradição e de fidelidade, aparece
esta raça de homens vulgares, membros de uma seita ilícita e sem ne-
nhuma esperança para atacar os deuses romanos. É uma raça má que
tem que esconder o seu culto. Raça que não tem altar, nem templo e
nem imagens, quando todas as religiões possuem tudo isso e amam a
luz46. Por meio dessa crítica, Cecílio tenta colocar Otávio em dificul-
dades. O comportamento dos cristãos é um comportamento que vai
contra o Estado, pois se associam ilicitamente e celebram seu culto
escondidos. A estas acusações, Otávio responde prontamente:

não temos templos por causa de vocês, pagãos, que nos per-
seguem em tudo e por tudo. Cessem de nos perseguir e en-
tão levantaremos nossos templos e celebraremos ao aberto os
nossos cultos; não temos altares conhecidos, mas nas nossas
reuniões subterrâneas, nas catacumbas, nós temos os sepul-
cros dos mártires sobre os quais oferecemos os nossos sacri-
fícios que são superiores aos sacrifícios pagãos, porque é o
sacrifício de um Homem-Deus47.

44. Cf. MMF, VI, l.


45. Cf. MMF, VII, 5.
46. Cf. MMF, VIII, 4; X, 2.
47. MMF, XXXII, 1-3.

204
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

Otávio não fala nada do culto que é próprio do cristianismo.


A religião para ele se reduz praticamente a honrar a Deus, per-
manecendo em um nível teísta. Para perceber isso, basta constatar
quatro respostas breves e sugestivas que Otávio dá às perguntas
feitas por Cecílio:

a) Nós, não devemos levantar imagens a Deus,


nem representá-lo por imagens, pois o próprio
homem é imagem de Deus.

Nesta resposta, Otávio tem presente todas as aberrações pra-


ticadas pelos pagãos, pois ele mesmo, como pagão, participou dos
mesmos erros. Os pagãos ingenuamente acreditavam nos prodígios
das imagens, que aos simples tornavam-se objeto de culto. Eram
imagens que representavam homens divinizados. Otávio conhecia
muito bem quem eram esses deuses e como haviam chegado a
ser considerados como tais48. Ele conhecia a mitologia. Por isso, no
esforço para combatê-la, convida Cecílio a ler as histórias. Otávio
então apresenta a mitologia49. Ele, como os apologistas gregos pre-
cedentes, não pode suportar este antropoformismo pagão50 e, por
isso, parte para um ataque contra as imagens e os deuses que elas
representam, porque são homens aos quais foram erguidas imagens
fabricadas pela mão do homem. A imagem enquanto está sendo
trabalhada nada representa e não é ainda um deus, mas apenas fica
pronta e então é adorada e consagrada e se torna um deus capaz
de proteger todo um império51. Otávio não pode admitir que o
Deus que ele venera, mesmo invisível, venha a ser representado
por uma imagem. Seria ridicularizar este Deus criador e provedor

48. Cf. MMF, XX, 5; XXIX, 4.


49. Cf. MMF, XXI-XXIV.
50. Antes de Minúcio, todos os apologistas já haviam combatido a mitologia
pagã, e de um modo bem mais aprofundado (cf. M. CAREMA, “La critica
della mitologia pagana negli apologisti greci del Il secolo”, in Didaskaleion 2
(1923), p. 23-55).
51. Cf. MMF, XXIV, 5-8.

205
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

do universo52.
Segundo Otávio, no homem está gravada a imagem de Deus,
desse Deus que é ao mesmo tempo transcendente e imanente. Esse
Deus que é honrado, não é capaz de ser mostrado e nem de visto.
Pode-se crer n’Ele porque pode ser sentido na natureza. É nas suas
obras e em todos os movimentos do universo que se percebe a sua
presença. Ele é invisível aos olhos da carne, mas visível aos olhos da
mente. Com os olhos da carne não se é nem capaz de fixar o sol quan-
to menos, então, fixar o artífice deste mesmo sol. Este Deus onisciente
e onipresente, não só está perto, mas está dentro do ser humano53. Por
consequência, é inútil querer representá-lo por imagens.

b) Qual templo erguer ao Senhor no momento que o


mundo inteiro, que é sua obra, não o pode conter?

“Se um simples homem ama estar em liberdade, como pre-


tenderei trancar num templo tanta majestade?” Novamente Otá-
vio se inspira na Escritura, nos livros proféticos. “O céu é o meu
trono e a terra o escabelo dos meus pés. Que casa me haveis de
fazer, qual será o meu lugar de repouso? Tudo isso foi a minha mão
que o fez” (Is 66,1)54.

52. Refletindo sobre a resposta de Otávio, temos que convir que realmente ele
eliminou de cena todos os deuses pagãos e com isto a própria religião oficial.
Onde ele buscou esta resposta? Pensamos que foi nas Sagradas Escrituras.
Sabemos pela Bíblia, que a Lei de Moisés para impedir que o povo caísse na
idolatria proibia a confecção de qualquer representação da divindade. “Não
terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura,
nem embaixo, na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Ex 20, 3-4). Não
fazer imagem porque o homem é a imagem de Deus. Otávio deve ter tirado
esta passagem do Gênesis: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança
[...]. E Deus criou o homem à sua imagem” (Gn 1, 26-27). Da Epístola aos
Coríntios: “O homem é a imagem e a glória de Deus” (1Cor 11, 7). Da carta
de Tiago: “Os homens feitos à semelhança de Deus” (Tg 3, 9).
53. “Ubique non tantum nobis proximus, sed infusus est” (MMF, XXXII, 7).
54. São Paulo, no seu discurso aos atenienses, se exprime da mesma maneira (cf.
At 17, 24-25). O profeta Isaías, citado por Santo Estevão nos Atos dos após-
tolos afirma: “Deus não mora em uma casa fabricada por mão de homem”
(At 7,48). O pensamento de Otávio vem dessas passagens escriturísticas.

206
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

Salomão construiu um templo magnífico ao Senhor e se per-


gunta se o Senhor virá a habitar e se estabelecerá sobre a terra:
“Mas será verdade que Deus habita com os homens nesta terra? Se
os céus e os céus dos céus não te podem conter” (1Rs 8, 27).
Otávio responde com dois argumentos: Deus tudo criou e
todo o universo não o pode conter, e conclui a resposta afirmando
que o homem não é somente imagem de Deus, mas é também
templo de Deus. Não é a exterioridade que conta, mas o íntimo do
homem porque é ali que Deus quer fazer a sua morada. Deus quer
morar num templo vivo e não num templo de pedra. O coração do
homem deve estar cheio de Deus para poder oferecer o verdadeiro
sacrifício agradável a Ele.

c) Oferecerei a Deus as vítimas que Ele


mesmo me deu para o meu próprio uso?

Deus não necessita de sacrifícios de vítimas, pois tudo criou


e tudo pertence a Ele. Dele as recebemos gratuitamente. Seria da
nossa parte um ato de ingratidão, pois a oferta agradável a Deus é
uma alma pura, honesta e uma consciência sincera55. Assim, Otávio
está plenamente de acordo com o ensinamento da Escritura e com
os apologistas do séc. II.
São Justino afirma que Deus não necessita de dons materiais,
mas o que nos torna agradáveis aos olhos de Deus e a prática das
virtudes: a temperança, a justiça e a caridade56. Atenágoras diz que
Deus é o criador de todas as coisas, não precisa nem de sangue,
nem de gordura, nem de perfumes e nem de flores. Para Ele, o
máximo sacrifício é que o conheçamos bem. Se nós nos apresen-
tarmos diante d’Ele com as mãos puras, que necessidade Ele tem
de holocaustos? O que Ele quer é um sacrifício incruento, um cul-
to racional57. Clemente de Alexandria professa a mesma doutrina:
aquele que honra a Deus por um culto que responde melhor à

55. “[...] cum sit litabilis hostia bonus: animus et pura mens et sincera sententia”
(MMF, XXXII, 2).
56. Cf. IUSTINUS, Apologia I pro christianis X, 1, in PG 6, p. 339-342.
57. Cf. ATHENAGORAS, Supplicatio pro christianis XII, in PG 9, p. 396-915.

207
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

majestade divina é, sobretudo, aquele que ama a Deus58. A melhor


vítima que podemos oferecer a Deus segundo Tertuliano é a oração
que parte da alma inocente e não o incenso, vinho ou sangue de
animais59.
Como podemos constatar, a doutrina de Otávio se aproxima
muito daquela dos profetas60 e dos outros apologetas. E preciso pra-
ticar obras de caridade e de justiça, pois são estas que acompanham a
inocência e a pureza de alma. É isso que o cristão deve fazer para ser
agradável a Deus. Aqui podemos ver com clareza que o culto cristão
se distingue muito do culto pagão pela sua maior interioridade. O
sacrifício agradável a Deus é a pureza de coração, é a retidão de vida
e não a perfeição na execução da cerimônia sacrifical.

d) O verdadeiro culto, a verdadeira religião: é a justiça61

A justiça da qual fala Otávio não compreende somente os


deveres para com o próximo, mas é também os deveres para com
Deus, que se identifica aqui com os deveres para com os homens.
Basta olhar toda a Sagrada Escritura e veremos que a palavra justi-
ça abrange não só os deveres para com o próximo, mas também o
conjunto de todos os deveres que comporta a vida do cristão.
Também nesse aspecto, Minúcio está em sintonia com outros
apologetas. Não podemos passar em revista todos os apologetas,
mas o verdadeiro justo, diz São Justino, é aquele que ama o Se-
nhor Deus de todo o coração, com todas as forças e ao próximo
como a si mesmo62. Aquele que age deste modo observa os dois
mandamentos dos quais depende toda a lei e os profetas (cf. Mt

58. Cf. CLEMENS ALEXANDRINUS, Stromata VII, 21, in PG 9, p. 406.


59. Cf. TERTULIANUS, Apologeticum, xxx, 5, in CCL 1, p.141-142.
60. Mas já no Antigo Testamento Deus havia falado pela boca do profeta Isaías:
“A que me serve a multidão de vossos sacrifícios? Estou farto de holocaustos
de carneiros e de gorduras de bezerros cevados, de sangue de touros, de
carneiros e bodes. Purificai-vos, sejais puros, cessai de fazer o mal, aprendei
a fazer o bem, buscai o direito, corrigi o opressor; fazei justiça ao órfão, de-
fendei a causa da Viúva” (Is 1, 11-17).
61. Cf. MMF, XXXII, 3.
62. Cf. S. IUSTINUS, Dialogus cum Tryphone Judaeo, XCIII, in PG 6, p. 698.

208
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

22, 37-40). Os apologetas são unânimes ao dar à palavra iustitia,


além do significado estrito, esse significado geral que eles tomaram
da Escritura: o verdadeiro justo é aquele que cumpre a lei divina63.
Portanto, do que vimos sobre o culto cristão apresentado
por Otávio, devemos dizer que não é completo, mas aquilo que
ele apresentou não deixa de ser verdadeiro. Dentro do seu ob-
jetivo, ele proporcionou aos pagãos instruídos um culto cristão
realmente distinto daquele pagão pela sua maior interioridade,
onde podemos dizer que o culto se realiza no encontro pessoal
do homem com o seu Deus. Se Otávio põe um forte acento neste
aspecto foi para mostrar a grande diferença, ou a distância, que o
culto cristão toma em relação ao culto dos pagãos, de modo espe-
cial do culto público, que era pura exterioridade: realizar correta-
mente a cerimônia ritual.
Por outro lado, não podemos afirmar categoricamente que
Otávio negue as práticas exteriores do culto cristão, mesmo que
destas ele não fale explicitamente. Ele admite o culto exterior e
reconhece que o homem deve rezar a Deus. Ele mesmo constatou
que o culto que os judeus ofereciam a Deus não era inútil, porque
foi a fidelidade a este culto, unido à observância dos mandamentos,

63. O maior elogio que a Escritura faz a um homem é o de chamá-lo justo (cf.
Gn 4, 9; Eclo 44, 17; Mt 1, 19) porque a justiça na linguagem Bíblica consiste
precisamente na observância dos mandamentos no cumprimento exato da lei.
Eis porque no último julgamento os justos serão os eleitos, os que ocuparão
o lugar a direita de Deus (cf. Mt 25, 37.46). O verdadeiro justo é aquele que
cumpre a lei divina. O mais religioso é aquele que realiza todos os deveres
para com Deus e com o próximo. Não podemos duvidar que este seja o pen-
samento de Otávio. Para provarmos esta afirmação basta ver qual é o teste-
munho que ele dá da religião do povo judeu. Os cristãos honram o mesmo
Deus dos judeus. Os judeus gozaram da proteção de Deus por todo o tempo
que lhe prestaram o culto devido a Ele, por todo o tempo que observaram os
mandamentos, mas foram vencidos quando abandonaram a Deus. Portanto,
o que fez a grandeza dos judeus, foi o culto prestado a Deus, um culto puro,
inocente e sincero. Já que os cristãos honram o mesmo Deus, resulta que para
serem verdadeiros religiosos, devem também observar os mandamentos divi-
nos. Assim Otávio pode concluir justamente: “sic apud nos religiosior est ille
qui iustior”. Assim a justiça que prega aos pagãos não é simplesmente uma
concepção filosófica, mas uma concepção bíblica e consequentemente evan-
gélica (cf. Cf. MMF, XXXIII, 2-3; XXXIII, 4-5; XXXII, 3).

209
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

que fez os judeus afortunados por muito tempo64. Se assim foi,


porque negar esse culto aos cristãos enquanto que é o mesmo Deus
que ambos os povos adoram?

4. Os heróis cristãos

Aos olhos dos pagãos, os cristãos eram uma raça de ignorantes,


a classe mais baixa da sociedade65. Para o cristão, era o contrário. A
pobreza não era vista como infâmia, mas uma glória, porque a ri-
queza corrompe, mas a frugalidade fortalece o espírito66. Quem está
cheio de Deus, não deseja e não necessita muita coisa deste mundo.
Nesse sentido, o cristão é rico porque tem Deus. Pobre, ao contrário,
é aquele que tendo todas as coisas deste mundo não tem Deus.
Feliz é o homem que no caminho da vida não é sufocado
pela ganância do ter, porque o ter sempre tira a liberdade tornando
pesada a vida67. O cristão, quando necessita de alguma coisa, pede
a Deus, que tudo possui e está sempre pronto a conceder. Mas o
cristão, diz Otávio, prefere a inocência e a paciência que as rique-
zas. O cristão sabe que as riquezas desse mundo são um peso para
o espírito porque o mantém voltado para a terra. O coração do
homem não consegue se libertar: “onde está o teu tesouro ali está
o teu coração” (Lc 12, 34); “Felizes vós os pobres, porque vosso e o
reino de Deus” (Lc 6, 20).
Otávio traz a questão da luta da carne e do espírito. Luta que
o apóstolo Paulo experimentou e da qual fala na segunda epístola
aos Coríntios: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a
força manifesta todo o seu poder” (2Cor 12, 9). Otávio, depois de
ter falado do combate provocado pelas paixões humanas, acres-
centa: “Fortitudo enim in infermitatibus roboratur”68. O heroísmo

64. “Templum quod ei extruam, cum totus híc mundus eius opere fabricatus
eum capere non possit” (MMF, XXXII, 1).
65. Cf. MMF, V, 5; XII, 2.
66. “Pauperes dicimur non est infamia nostra, sed gloria; animus enim ut luxu
solvitur, ita frugalitate firmatur” (MMF, XXVI, 3).
67. Cf. MMF, XXXVI, 6.
68. MMF, XXXIV, 8.

210
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

do cristão se fortalece pela resistência que opõe às paixões, e prin-


cipalmente pelo auxílio da graça divina.
Alicerçado na Escritura (cf. Sb 3, 6; Pr 17, 3.21), Otávio de-
fende que é Deus mesmo que põe os seus à prova e isso Ele o faz
por amor, pois Ele quer dar a melhor recompensa àqueles que, na
purificação, souberem permanecer fiéis. Assim, Otávio responde
à acusação de Cecílio: por que Deus, por impotência ou maldade,
não ajuda os seus na provação? Otávio também descreve a gran-
deza moral dos cristãos, que desprezam os suplícios e a morte, rei-
vindicando sua liberdade contra os príncipes e os reis, cedendo-a
somente a Deus, pois a Ele pertencem. Diante dos reis e príncipes,
os cristãos dão testemunho da sua liberdade.
Os cristãos fazem esta entrega total de suas vidas embora ti-
vessem nas próprias mãos o poder de fugir do martírio. Bastava
renegar a fé, renunciar ao nome de cristão e eram deixados em
liberdade. Mas os cristãos dão uma demonstração de total liberda-
de, entregando-se a morte. Os cristãos faziam isto em plena cons-
ciência, como um ato de racionalidade, não como fanáticos, como
eram acusados pelos pagãos69. Para Otávio, o herói cristão é maior
que os e príncipes deste mundo. Não dão importância àqueles que
os condenam. Ele dá a vida, morre não para si mesmo, mas para o
seu Deus e é dele que recebe toda a força necessária para resistir.
Apesar da pouca idade das crianças, elas fazem pouco caso das
cruzes, torturas e feras70. Por isso, merecem serem chamados de
vencedores por excelência.
O herói pagão ao contrário, desespera-se diante da morte.
Não tem coragem para dar a sua vida porque sabe que não terá
auxílio no momento decisivo. Os pagãos não querem entender que
alguém seja capaz de enfrentar a morte livremente. O cristão o faz
em vista de um bem maior.
Os cristãos constituem uma raça de pessoas felizes. Os pagãos,
ao contrário, são infelizes. Os que vivem desse modo são dignos de

69. Cf. MMF, XXVIII. O cristão sabe que na sua luta não é abandonado por
Deus. Sabe que com a morte a vida não termina: “[...] nec morte finitur”
(MMF, XXXVII, 3). Com a morte do corpo, o cristão inicia uma nova vida.
Isto para ele é uma certeza e o melhor conforto para a sua luta.
70. Cf. MMF, XXXVII, l-2.

211
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

compaixão. Sem o conhecimento de Deus, não existe a verdadeira


felicidade. A felicidade sem Deus é irreal e desaparece com a mor-
te física.
Mesmo o rei poderoso teme quanto é visitado pela morte.
Tendo o corpo protegido pelos soldados, diante da morte, ele está
só e ninguém pode protegê-lo. Também o rico confia nas riquezas,
mas o peso destas dificulta o breve caminho desta vida. O rei e o
rico se gloriam da púrpura, da nobreza e dos antepassados71. Mas
tudo isso nada serve, pois é só orgulho e vaidade. Tudo isso passa e
a morte nivela a todos da mesma maneira. A única diferença que
existirá no dia da morte entre o poderoso e o pobre é que no caixão
do pobre haverá menos coisas para serem devoradas pelos vermes.
É exatamente nisso que o cristão se distingue dos outros, ou
seja, sua capacidade de renunciar aos bens deste mundo, ao po-
der, aos espetáculos (corridas, lutas de gladiadores, teatros) porque
tudo isso está cheio de superstições, homicídios, morte e pecado72.
Assim, Otávio apresentou o herói cristão. Este é verdadeira-
mente um homem livre diante de tudo: diante da vida das riquezas
e do poder. O cristão, segundo Otávio, é um homem que olha para
o alto e não para a terra. Nada mais neste mundo impõe-lhe medo.
É livre. Diante da vontade de Deus, cede e se inclina. Só Deus é a
garantia de sua vida e d’Ele o cristão tudo espera.
O herói cristão testemunha ao mundo pagão uma vida no
mais alto grau de liberdade. Esse é um valor desejado por todos os
homens e que Otávio apresentou de uma maneira nova, mas que
só é possível ser vivido por quem conhece Deus e lhe é fiel. Então,
para esse homem, tudo nesse mundo passa a ser relativo, mesmo a
própria vida.

5. O cristão: testemunho de uma esperança futura

Os cristãos viviam neste mundo uma vida orientada para o fu-


turo, na esperança de um encontro com Deus. A vida terrena nada
mais é que uma peregrinação rumo à verdadeira vida, aquela defi-

71. Cf. MMF, XXXVII, 9-10.


72. Cf. MMF, XXXVII, 11-12.

212
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

nitiva com Deus. O mundo intelectual pagão não podia suportar


tal presunção da parte dos cristãos, tida como uma raça ignorante,
que proclamava novas doutrinas e austeros preceitos morais. Por
isso, Cecílio chama os cristãos de amantes das trevas e inimigos da
luz (“latebrosa et lucifuga natio”73), que ameaçam o mundo74 com
suas ideias75. Isso aos ouvidos dos pagãos devia realmente provocar
revolta, porque a proposta do cristianismo implicava uma revira-
volta da ordem de todas as coisas e isso para eles era uma séria
contradição, isto é, uma ordem querida por Deus seria perturbada
pelo próprio Deus.
Mas apesar dessa reação, segundo Otávio, é um erro de gen-
te ignorante não crer nessa verdade. “Non credere vulgaris erroris
est”76. Nenhum sábio põe em dúvida que tudo o que começou a
existir, tudo o que um dia foi criado, também vai ter um fim, logo,
também o universo. Os estóicos, os epicureus e Platão (em parte)
defendem a ideia da conflagração universal. Os filósofos trataram
desses assuntos, mas estes pegaram esta ideia da pregação dos pro-
fetas77. Otávio demonstra aqui que ele conhecia bem a tradição
e pensa como outros apologistas (como Tertuliano e Justino): os
filósofos pagãos devem aos hebreus aquelas poucas verdades que
sabem sobre este aspecto.
Otávio evoca a tradição porque o que interessa é que o cris-
tianismo esteja de acordo, ou pelo menos próximo, dos filósofos.
Com essa atitude, Otávio quer eliminar a barreira que existia entre
a sociedade pagã e o cristianismo, procurando uma harmonia.
O que mais causava repulsa aos pagãos era a ideia da esperan-
ça na Ressurreição. Maior loucura do que isso não podia existir78. O
que provocava desdém aos pagãos não era a crença na imortalidade
da alma, mas da ressurreição da carne, questão que São Paulo já

73. MMF VIII, 4.


74. O apóstolo Pedro, ao falar dos falsos doutores (sábios) entra nesta questão.
“Ora, os céus e a terra de agora, estão reservados pela mesma palavra ao fogo,
aguardando o dia do juízo e da destruição dos homens ímpios” (2 Pd 3,7).
75. Cf. MMF, XI, l.
76. MMF, XXXIV, 1.
77. Cf. MMF, XXXIV, 5.
78. Cf. MMF, XI, 2-3.

213
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

havia enfrentando (cf. 1Cor 15). O que os pagãos não conseguiam


entender é como os cristãos, de um lado defendiam que tudo um
dia vai perecer, mas de outro lado afirmavam que viverão eterna-
mente. Isso para os pagãos não passava de uma contradição.
Otávio, para defender a sua posição, recorre aos sábios e afir-
ma que Pitágoras (mesmo Platão) defendia algo próximo à res-
surreição, mas não na mesma compreensão da fé cristã. Quando
Otávio afirma que os sábios adulteraram a doutrina sobre a res-
surreição, a impressão é que Otávio iria condená-los, mas isso não
aconteceu porque ele conclui que nisso também eles tinham algo
de verdade. Possivelmente, Otávio não quis entrar em choque dire-
to com a cultura filosófica da classe a quem dirigia a sua obra. Por
isso, Otávio peca, por não ser suficientemente claro.
Mas quem é tão imprudente de negar que Deus, que tudo
criou, não seja capaz de ressuscitar o homem depois de morto?
Para Otávio, criar é muito mais difícil do que renovar aquilo que
uma vez já existiu79.
Os pagãos, vendo que os cristãos esperavam a ressurreição,
procuraram encontrar nela a explicação da recusa dos cristãos à
cremação, insistindo na tradição do sepultamento80. Para os pagãos,
o temor da cremação por parte dos cristãos estava ligado à ques-
tão da ressurreição: “Inde videlicet exsecrantur rogos et damnant
ignium sepulturas [...]”81. Na opinião de Cecílio, tanto a cremação
como o sepultamento frustraria a ressurreição destes corpos.
Otávio concorda com Cecílio dizendo também que pouco
importava como vinham a ser destruídos os corpos. Mas, ao pessi-
mismo dos pagãos, que pensavam que corpos fossem aniquilados,
Otávio defendia que os corpos permaneciam conservados, porque
Deus misteriosamente custodiava todos os elementos, sejam eles
pó ou cinza, “Sed deo elementorum custodia reservatur”82, mesmo
que aos nossos olhos pareçam ter desaparecido. Por isso, ao cristão
pouco importa se o corpo se dissolve e se transforma em pó ou em

79. Cf. MMF, XXXIV, 9.


80. Cf. G. SCHNITZER, “ Minúcio Felice e la cremazione”, in Religio (1934), p.
32-34.
81. MMF, XI, 4.
82. MMF, XXXIV, 10.

214
Octavius: propostas e discussões entre um cristão e um pagão...

cinzas, pois o que os cristãos querem é seguir a tradição bíblica da


inumação83, talvez também pelo temor em relação ao fogo, que é
destinado por Deus aos que serão condenados.
Cecílio não conseguia entender quando e como os cristãos res-
suscitariam84. Aqui Cecílio devia ter presente a pergunta que São
Paulo já havia apresentado: “mas dirá alguém, como ressuscitam os
mortos? Com que corpo voltam” (1Cor 15, 35)? Para o pagão, a no-
ção de vida implica uma corporeidade. Para Celílio se trata de algo
impossível: ajuntar todas as partes de um mesmo corpo, corpo que foi
dissolvido, devorado pelos animais, transformado em cinzas ou em pó.
Como pode ser isso possível, isto é, formá-lo depois de muito tem-
po de sua decomposição85? Além disso, ninguém tinha alguma prova
da ressurreição, pois ninguém havia ressuscitado, mesmo por algumas
horas para se poder vê-lo e crer. Por isso, para Cecílio, só gente doente
podia acreditar nessas fábulas de poetas e atribuí-las a Deus86.
Cecílio, no entender de Otávio, não chega a compreender a
essência da fé fundamentada em Deus e que não necessita de uma
confirmação experimental. Não entende que a ressurreição é o
fundamento e não uma prova da fé.
Otávio não responde às objeções de Cecílio sobre como o
corpo vai ressuscitar, mas insiste em defender a realidade da res-
surreição, com os exemplos da natureza: o sol, os astros, as flores, as
sementes87. Assim, Otávio mantém o processo da vida e da morte
em um nível natural, com o intervento contínuo de Deus, naquela
natureza que ele mesmo formou. Otávio coloca o ciclo da exis-
tência humana no plano do ciclo das estações naturais. “O que

83. Cf. MMF, XXXIV, 10.


84. “Vellem tamen sciscitari, utrumne cum corporibus et corporibus quibus, ip-
sisne an innovatis, resurgatur” (MMF, Xl, 7).
85. “Tratando da ressurreição do corpo os apologistas são unânimes em defender
que o corpo ressuscitado é idêntico ao corpo terreno, entendendo-a como
identidade da matéria corporal atual, que Deus pode reconstruir o corpo
assim como era” (cf. A. FIERRO, Las controversias sobre la resurreccion em
los siglos II-V, in EEE, (1968), p. 5-6.
86. “quis unus ullus ab inferis,.. ut exemplo crederemus.., male sanae opinionis
et inepta solacia [...] in deum vestrum turpiter reformata sunt” (MMF, XI,
8-9).
87. MMF, XXXIV, 11-12.

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semeias, não readquire vida a não ser que morra [...]. O mesmo se
dá com a ressurreição dos mortos: semeado corruptível, o corpo
ressuscita incorruptível” (1Cor 15, 36.42).
Otávio se pergunta como é possível negar a ressurreição ten-
do provas como estas. Somente uma má consciência pode fazê-lo.
Cecílio não queria admitir a doutrina cristã da esperança numa
vida futura. Os pagãos temiam o castigo, então ficava mais prático
negar a vida futura88.
Para o pagão Cecílio, os cristãos são injustos. Mesmo que se ad-
mita que sejam justos, a sua ideia de justiça é contraditória, pois o
que os pagãos atribuem à sorte (acaso), os cristãos atribuem a Deus89.
A sorte e Deus estão na origem de todos os atos. O homem é total-
mente condicionado e nem pode fazer-se cristão livremente, porque
é Deus que o quer. Tudo deve ser como Ele quer e o homem deve
somente se submeter. Estando nesta situação, o homem não é livre.
Segundo Otávio, os cristãos não buscam desculpas do seu
comportamento na sorte. A vontade do homem permanece sem-
pre livre. Por isso, a ação cometida deve ser submetida, não à con-
dição social do indivíduo90.
Aqui se encontram as raízes da complexa relação entre uma
consciência de Deus que já conhece o desenvolvimento das ações
humanas, “actus hominis”, e a liberdade, “mens libera”, do agir do
homem. Para Otávio o “fatum” é aquilo que Deus já estabeleceu
para cada um. Mas então como admitir que “mens libera est”? Para
Otávio, a “mens” é livre e, por isso, o seu agir deve estar em harmonia
com aquela liberdade de Deus que é, em diverso grau, explicita em
cada homem.
O cristão é consciente que o seu agir está de acordo com a
vontade de Deus, mesmo que isso lhe custe dores, sofrimentos,
perseguições e martírio. Tudo isto ele suporta com paciência por-
que espera recompensa e a felicidade sem ocaso que Deus lhe re-
servou, porque generosamente combateu até o fim. O cristão não
espera uma coroa tecida de flores, mas a coroa da imortalidade91.

88. Cf. MMF, XI, 5.


89. Cf. MMF, XI, 5-6.
90. Cf. MMF, XXXVI, l-2.
91. Cf. MMF, XXXVIII, 4.

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Conclusão

O cristianismo nasceu em ambiente judaico, monoteísta.


Cedo estende suas raízes para ambientes geográficos onde o po-
liteísmo era aceito naturalmente. O confronto era inevitável. Um
desses ambientes foi a capital do Império Romano: Roma. A in-
culturação do cristianismo não foi tarefa fácil. Este papel coube
principalmente ao apologetas, que vieram do paganismo e se esfor-
çaram para apresentar a nova religião monoteísta.
Propor e provar a existência de um Deus único, causador de
tudo o que existe, foi empreitada complexa. Como argumentar
diante de tantos acontecimentos, catástrofes e desgraças que não
respeitam o inocente? O cristão Otávio recorre à razão e à fé. O
homem foi criado e provido e de inteligência e, por isso, possui
em si mesmo a sabedoria. Pode assim, à luz da razão, chegar ao
conhecimento das verdades da nova religião, seja ele rico ou pobre,
filósofo ou analfabeto. Mas não somente pela razão, porque além
da razão, ele necessita da fé revelada.
O pagão Cecílio não se conforma com o aparecimento dos
cristãos, “raça” que não tem altar ou imagens. Otávio contra-argu-
menta: a nova religião não precisa levantar imagem ou qualquer
outra representação do seu Deus, pois o próprio homem é imagem
d’Ele. O cristão também não precisa levantar templos, pois Deus
habita em seu coração. O cristão também não oferece sangue de
animais sacrificados, pois o verdadeiro culto que o cristão oferece
ao seu Deus é a justiça. O cristianismo é uma religião que implica
o empenho do homem todo: mente, coração e ação.
Diante de todas as provocações, perseguições e humilhações,
o cristão é um verdadeiro herói. O cristão é um homem orien-
tado por Deus, mas plenamente livre. O cristão sabe que neste
mundo tudo é passageiro e sua esperança o leva à liberdade. O
cristão tem consciência que sua vida não termina com a morte:
crê na ressurreição e na vida eterna. Este é o credo do cristão:
creio num Deus único e providente, justo e bom; creio na ressur-
reição e na vida eterna.

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