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Construindo um lugar para Homero na República de Platão

Na antiga Grécia, Homero era tido como uma autoridade, muitos atribuíam a ele o título de
educador dos gregos, pois seus versos eram comuns e correntes a quase todos os gregos, entre os quais
muitos acreditavam que sua obra tinha o caráter de ensinar. Platão, cuja filosofia é hoje considerada
como uma das maiores obras da tradição, pode ser considerado um revolucionário em seu tempo por
questionar a tradição homérica.

Em seu projeto de construir uma cidade perfeita, Platão, pela boca de seu mestre Sócrates,
expulsa de sua república Homero e toda poesia, exceto os hinos aos deuses e os elogios às pessoas de
bem. A justificativa para tal expulsão se baseia numa análise que conclui que os poetas, sendo aqueles
que estão mais longe da verdade, pois apenas imitam a aparência, e por terem a capacidade de encantar
as pessoas com seus versos, conduziriam estas para caminhos escusos distantes da razão e da virtude.
Platão, no entanto, aprecia os versos de Homero e convida seu defensores a apresentarem alguma
razão para que os poetas sejam acolhidos em sua república, demonstrando se a poesia é apenas
agradável, porém não nociva, ou mesmo se ela tem alguma utilidade para o Estado e para a existência
humana.

Aristóteles, diferentemente de Platão, defende que a tragédia possui a função de purgar as


emoções reprimidas, em vez de torná-las mais fortes que a razão e, por conseguinte, desviando as
pessoas do caminho correto e justo, como dissera seu mestre. Podemos considerar, de certo modo, que
esta noção da tragédia como sendo purificadora é uma razão para não expulsar os poetas da república
platônica, uma vez que atribui à tragédia, por assim dizer, uma função social positiva, pois acalma os
ânimos das pessoas e evita eventuais conflitos provocados por essa sobrecarga emocional. Portanto,
para Aristóteles, a tragédia, assim como a poesia, teriam de certo modo uma utilidade para a existência
humana e para o Estado.

A grande preocupação de Platão era que o poeta não estava em seu lugar apropriado. Muitos
generais liam Homero e se instruíam em seus versos, procurando aprender estratégias de guerra.
Platão, no entanto, indaga quantas pessoas aprenderam a ser médicos lendo Homero. Para ele, se
Homero, assim como os poetas em geral, soubessem algo de fato, algo além da aparência das coisas,
eles então fabricariam essas coisas, assim como o artesão produz a cadeira e o médico produz a saúde,
em vez de se limitarem a apenas reproduzirem suas aparências, pois produzir uma coisa é mais nobre
do que imitá-la. Para Platão, os poetas são aqueles que estão mais distantes da verdade e, portanto, não
devem ser considerados como portadores de nenhum conhecimento que eles aparentem possuir. Platão
desloca Homero de seu lugar como autoridade na tradição grega. Porém, não sabendo que lugar
Homero ocuparia em uma república perfeita, Platão decide expulsá-lo, até que se saiba qual seria o seu
lugar mais apropriado.
Hoje, não nos preocupamos se um poeta produz um poema apropriando-se da linguagem que
usam os médicos. Nenhum de nós pensa em fazer uma consulta médica com um poeta, por mais que
seus versos pareçam com o modo de falar próprio dos médicos. Os nossos poetas são apenas poetas.
Escrevem versos, constróem rimas, ritmos e melodias. Não se confundem com os médicos, os
engenheiros e os advogados. Esta distinção certamente é importante. Porém, diferentemente dos poetas
da antiga Grécia, que assim como Homero eram tidos como pessoas importantes que enunciavam algo
de divino, como flautas sopradas pelos deuses, os nossos poetas ficaram à margem dos valores da
nossa sociedade, muitas vezes depreciados e tidos como inúteis. De fato, eles são mesmo inúteis. Mas
isso não significa que, por não serem úteis, eles não tenham nada a nos dizer por meio da poesia. Eles,
os poetas, os pintores, os escultores e, em geral, todos os que podem ser considerados artistas, têm algo
a nos falar por meio de suas obras de arte. Estas obras de arte de fato não têm serventia, o que na época
da técnica provoca certo desprezo, porém são dotadas de sentido na esfera do humano.

Assim pensou Heidegger e, opondo-se radicalmente ao que dissera Platão, disse que os poetas,
por meio da realização da sua obra, enunciam a verdade. Esta perspectiva é analisada por Heidegger
em A origem da obra de arte, começando por uma análise dos conceitos tradicionais do que seja uma
coisa. Após esgotar todas as definições da coisa, ele conclui que nenhuma delas dá conta de dizer o
que é uma coisa. Pois todas aqueles conceitos que herdamos da tradição, segundo Heidegger, surgiram
já no âmbito do dado da coisa. Por isso precisam ser deixados de lado, para irmos de encontro ao dar-
se das coisas, assim como Sócrates, não se contentando com o já sabido, esquecendo que se sabe para
ir ao encontro do saber.

Heidegger não procura fazer um balanço da obra de arte, uma análise por comparação, porque
diz que o geral é o indiferente, que é o contrário da essência. É preciso ir portanto para a própria obra.
Para isso, Heidegger escolhe Hölderlin porque ele proporciona a experienciação da essência. Por meio
da obra de arte é possível buscar algo que está junto a ela, diferentemente das coisas úteis ou das meras
coisas. Quando se pensa em martelo, pensa-se em construir, martelar. Por outro lado, quando se pensa
nos sapatos de van Gogh, não se pensa em calçá-los, e isso por si só provoca, de certo modo, um
estranhamento, pois pertence a outro âmbito que é alcançado por meio do salto que a obra proporciona.
A obra, segundo Heidegger, vai mostrar o que é a coisa, mas a coisa nunca vai mostrar o que é a obra.
Pois, quando vamos ao encontro das coisas já sabendo para que elas servem, não conseguimos nos
afastar do objeto para descobrirmos sua essência. Esse afastamento é proporcionado pela obra de arte.

Como foi dito, a obra de arte, assim como o artista, possuem fundamental importância na esfera
humana. Neste sentido, talvez Heidegger defendesse que, assim como a obra de arte é o lugar onde se
instaura e se revela a verdade, o poeta deveria ter seu devido lugar garantido na república de Platão.

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