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Capítulo 3

Pedago.gi'a dos letramentos

Visão geral
Este capítulo se inicia com dois exemplos de sala de aula que ilustram a pedagogia dos letramentos
em contextos de ensino atuais: o primeiro, em um contexto da educação básica em escola da zona
rural da Austrália, e o Jegundo, um projeto desenvolvido com grupo de alunos de uma disciplina
de graduação voltada à formação inicial de professores de línguas de uma universidade pública .
brasileira. Em seguida, o capítulo busca desenvolver uma estrutura para classificar a variedade dos
tipos de atividade que contribuem para uma pedagogia produtiva e intencional dos letramentos,
por meio de "processos de conhecimento", que se dividem em: experiencial ("experienciando o
conhecido" e "experienciando o novo"), conceitual ("conceitualizando por nomeação" e
"conceitualizando com teorià'), analítico ("analisando funcionalmente" e "analisando criticamente")
e aplicado ("aplicando apropriadamente" e "aplicando criativamente"). Esses processos de
conhecimento também estão profundamente enraizados nas tradições das abordagens das pedagogias
dos letramentos que, nos próximos capítulos, chamaremos de "didáticà: "autênticà', "funcional" e
"críticà'. Nesses cápítulos, exploraremos essas abordagens, assim como focalizaremos a questão da
pedagogia dos letramentos que seria mais apropriada para os nossos tempos.

Pedagogia dos letramentos em ação


Apresentamos Diana, professora de uma pequena escola de zona rural da Austrália. Seus alunos
do 6º ano estão desenvolvendo o "Projeto sobre suas paixões", ligado a um tópico estudado durante
o ano letivo, relacionado às áreas de dança, teatro, música, mídia, artes visuais, ciên~, história,
geografia e educação de valores éticos; no desenvolvimento desse projeto, eles tiveram, então, a
oportunidade constante de "experienciar o conhecido" e o "novo". Diana pede a seus alunos que
tragam para as aulas textos com os quais estão familiarizados e intimamente ligados a suas identidades.
Eles também exploram novos sites da internet, desenvolvendo conceitos que descrevem os elementos
do design dos sites, que incluem "ícones" e "links" ("conceitualizar por nomeação"). Os alunos
desenvolvem uma teoria que conecta esses conceitos a generalizações sobre como as pessoas navegam
em sites, assim como os comparam com os jornais impressos ("conceitualizar com a teorià').

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS i 71


Analisam criticamente as características mais e menos bem -sucedidas dos designs dos sites ("analisar
criticamente") e, então, aplicam o que aprendem na criação de um site e de um jornal da turma
("aplicar apropriadamente" e "aplicar criativamente"). O objetivo desse passeio pelos processos de
conhecimento é aproveitar as identidades de cada aluno de duas maneiras: explorar interesses
pessoais e desenvolver expertise para expressar esses interesses em um ambiente da internet. Além
de exigir muita leitura e escrita, o trabalho também visa explicitamente expandir o conhecimento
técnico dos alunos sobre a internet, bem como as maneiras mais eficazes de empregar seus recursos
para construir significados. 1

Esse projeto se tornou um módulo de ensino na plataforma digital de aprendizagem on -line


Scholar, e por meio dele os alunos do 6Q ano contribuem com um relatório de informações sobre
tópicos pelos quais têm grande interesse para a construção de umafanzine on -line. Nesse ambiente,
eles exploram tópicos, público-alvo, propósito, características de relatórios de informações on-
-line, e, em seguida, redigem, fornecem retorno, revisam e, por fim, publicam seus relatórios no
Scholar.
Um outro projeto bastante interessante, que também buscou incorporar e explorar os "processos
de conhecimento", foi desenvolvido pela professora Walkyria Monte Mór, em um contexto
brasileiro de formação de professores. Com base no "Projeto Nacional de Formação de Professores:
2

Novos letramentos, multiletramentos e línguas", que coordenou entre 2009 e 2014, a autora,
tomando como referência a perspectiva da aprendizagem pelo design, 3 desenvolveu estudo de
caso com grupo de alunos de uma disciplina de graduação voltada à formação inicial de professores
de línguas de uma universidade pública brasileira. De viés teórico-prático, esse estudo de caso
juntou conceitos teóricos da disciplina e práticas de narrativas autorais em vídeo construídas
pelos alunos.
Com base no arcabouço teórico da disciplina e na sua relação com a proposta de trabalho com
narrativas, surgiram resultados bastante interessantes que culminaram no replanejamento da própria
disciplina de graduação. Essa parte se constituiu em processo de "conceitualização por nomeação",
que contemplou a aprendizagem dos conceitos sociais de n arrativa, com foco nas narrativas criadas
por tecnologias digitais, e em processo de "conceitualização por teoria", que envolveu leitura e
discussão de teorias sobre narrativas, multimodalidade e construção de sentidos, multiletramentos,
letramentos críticos, autoria e agência. Como resultado, então, os estudantes desenvolveram seus
próprios conceitos para construir uma narrativa multimodal bem-sucedida.
No processo de desenvolvimento dessas narrativas, Monte Mór observou que os alunos se
engajaram na "experienciação do conhecido", ao descrevem seu desafio de enfrentar um vestibular
concorrido para entrada no curso de graduação. Ao mesmo tempo, a maioria deles também
"experienciou o novo", quando tomou conhecimento das n arrativas dos colegas e quando aprendeu
a usar o programa Flash para desenvolver suas narrativas multimodais.
Os participantes também se envolveram em análises teórico-práticas, com base na relação entre
os conceitos teóricos discutidos na disciplina e suas experiências e conhecimentos fora do contexto
universitário. Essa combinação lhes permitiu o engaj amento em outros dois processos de
conhecimento: "analisando funcionalmente", quando tiveram a oportunidade de examinar as funções

1 Cloonan, 2010b; Cloonan, 2015.


2 Monte Mór, 2015.
3 Cope & Kalantzis, 2015d.

72 J LETRAMENTOS
dos sistemas educacionais e de avaliar a adequação do suporte tecnológico para a realização de
suas tarefas, e "analisando criticamente", quando o foco de suas análises recaiu sobre as desigualdade
educacionais e sociais, bem como sobre o acesso a esses sistemas de ensino, rememorando, inclusiYe
suas dificuldades e ansiedades pessoais durante a preparação para o vestibular.
Os alunos, então, trabalharam muito criativamente na reconstrução multimodal de narratiYa
sobre sua entrada na universidade por meio do vestibular. Esse trabalho envolveu discussõe
sobre o que deveria ser priorizado pelo grupo em relação ao tema escolhido (vestibular ,
planejamento e produção de roteiros individuais, filmagens de narrativas individuais, escolha de
um programa de computador para montagem e produção/reconstrução de uma narrativa coletiYa
do grupo.
A produção de uma narrativa multimodal coletiva foi algo inteiramente novo e estimulante para
os alunos, se comparada ao que tradicionalmente se faz no contexto universitário, em que se exigem
atividades de avaliação exclusivamente escritas. Isso fe z com que eles tivessem a oportunidade de
aplicar seus conhecimentos, retratando uma diversidade complexa de situação do mundo real
Nesse sentido, os estudantes puderam "aplicar apropriadamente" o que aprenderam, ao produzirem
uma narrativa em vídeo, e "aplicar criativamente", pois a atividade constituiu algo genuinamente
inovador, enfatizando o que havia sido transformado em suas vidas.

Coisas que se fazem para conhecer


As raízes históricas dos "processos de conhecimento" dos letramentos

Neste capítulo e nos capítulos seguintes da Parte B, tentaremos mostrar que há lições valio a-
a serem tiradas de todas as abordagens de letramento que estamos prestes a explorar: a pedago._., ·a
do letramento na abordagem didática (capítulo 4), a pedagogia do letramento na abordage
autêntica (capítulo 5), a pedagogia do letramento na abordagem funcional (capítulo 6) e a pedago"
dos letramentos na abordagem crítica (capítulo
7). Quando cada uma dessas abordagens se
constitui de forma um tanto unilateral em seus
métodos, precisamos suplementá -la com
aspectos das outras abordagens. Do mesmo
Aplócanao
modo, acreditamos também que precisamos e-
Aplicando
rever nossas abordagens para trabalharmos com · •• apropriadamente

os letramentos, alinhando-nos às condições


contemporâneas de construção de significado
- incluindo a multimodalidade e as diversas
formas de comunicação que encontramos em
uma ampla gama de contextos sociais e culturais
em nossas vidas cotidianas. Para isso, precisamos
refinar e ampliar as tradições pedagógicas sobre
as quais nossa profissão é fundada, propondo,
então, uma classificação em quatro orientações: Figura 3,1: Os "processos de conhecimento".

PEDAGOGIA DOS LETR AMEN TO_ ""3


• experienciando (o conhecido e o novo);
• conceitualizando (por nomeação e por teoria);
• analisando (funcional e criticamente);
• aplicando (apropriada e criativamente).

Chamamos essas orientações de "processos de conhecimento", que se constituem como tipos


fundamentais de pensamento em ação ou "coisas que se podem fazer para conhecer". 4 Fazemos isso
porque queremos enfatizar a pedagogia como "epistemologia", ou as coisas que elas são capazes de
fazer no mundo para conhecê-lo. Os processos de conhecimento também captam a variedade de
diferentes tipos de atividade que os alunos podem realizar como parte de seu processo de
aprendizagem. O Quadro 3.1 mostra as raízes históricas desses processos de conhecimento, embora,
é claro, a "pedagogia ideal" fosse aquela que pudesse envolver uma mistura equilibrada e apropriada
de tipos de atividade.

Abordagem didática Confia extensivamente em "conceitualizar nomeando'; ou ensinando conceitos abstratos


que podem ser aplicados em contextos gerais; no caso da alfabetização, começa com as
regras da fonética, passando pela gramática e, mais tarde, examinando os d ispos itivos e
estilos de alfabetização canônicos. E quando se trata de textos literários, incentiva um tipo
de imersão - "experienciar o novo" (capítulo 4).

Abordagem autêntica Enfatiza fortemente"experienciar o conhecido'; começando com os interesses, as experiên-


cias e as motivações do aluno. No caso da alfabetização, centra-se no método global e no
processo da escrita, valorizando a autoexpressão do aluno na escrita e o prazer significativo
da leitura (capítulos).

Abordagem funcional Preocupa-se muito em"analisarfuncionalmente'; ou em descobrir como os textos são estru-
turados para servir a diferentes propósitos e "aplicar adequadamente'; ou aprender a criar
sign ificados que serão poderosamente eficazes (capítulo 6).

Abordagem crítica Detém-se em "analisar criticamente'; interrogar as motivações relacionadas aos significados
comunicados e criar textos que se envolvam com o mundo de maneira reflexiva; também
explora "experienciar o conhecido'; quando se trata de expressar identidades pessoais e
sociais e "aplicar criativamente': quando se trata de fazer textos inovadores por meio de
novas m ídias (capítulo 7).
Quadro 3.1: Um resumo das raízes históricas dos quatro processos de conhecimento.

Os processos de conhecimento em termos de sala de aula

O Quadro 3 .2 divide cada um dos quatro processos de conhecimento em dois subprocessos,


descrevendo como podem ser traduzidos em atividades de sala de aula. Esses tipos de atividade
fornecem aos professores e alunos mais controle sobre suas escolhas e seus resultados de aprendizagem .
.-ef

Experienciando O conhecido: estudantes trazem para a situação de aprendizagem perspectivas, objetos,


ideias, formas de comunicação e informação que lhes são familiares e refletem sobre suas
próprias experiências e interesses.

O novo: estudantes estão imersos em novas situações ou informações, observando ou


participando de algo novo ou desconhecido.

4 Idem, 2015d.

74 1 LETRAMENTOS
1

Conceitualizando Por nomeação: estudantes agrupam informações em categorias, aplicam os termos de


classificação e definem esses termos.

Com teoria: estudantes fazem generalizações conectando conceitos e desenvolvendo


teorias.

Analisando Funcionalmente: estudantes ana lisam conexões lógicas, relações de causa e efeito, estru-
tura e função.

Criticamente: estudantes avaliam as perspectivas, os interesses e os motivos próprios e


de outras pessoas.

Aplicando Apropriadamente: estudantes testam seus conhecimentos em situações reais ou simu-


ladas para ver se funcionam de uma maneira previsível em um contexto convencional.

Criativamente: estudantes fazem uma intervenção inovadora e criativa no mundo, ex-


pressando distintamente suas próprias vozes ou transferindo seus conhecimentos para
um contexto diferente.
Quadro 3.2: Os processos de conhecimento e sua relação com ati vidade s em sala de aula.

Esses processos de conhecimento foram originalmente formulados pelo The New London Group
(NLG) para a estrutura dos multiletramentos como: prática situada, instrução aberta, enquadramento
crítico e prática transformada. Em aplicações subsequentes dessas ideias em práticas curriculares
com base no projeto da aprendizagem pelo design, reformulamos essas concepções e as traduzimos
em processos de conhecimento mais imediatamente reconhecíveis, relativos ao planejamento, à
documentação e ao rastreamento da aprendizagem. 5

Experienciando Prática situada

Conceitualizando Instrução explícita

Analisando Enquadramento crítico

Aplicando Prática transformada


Quadro 3.3: Relação entre os processos de conhecimento e os quatro elementos
propostos pelo NLG (1996).

Os elementos da aprendizagem pelo design são termos que podem ser usados com alunos na
sala de aula. Ao mesmo tempo, eles captam algumas diferenças profundas entre as formas de
conhecimento ou "movimentos epistêmicos': É interessante, portanto, que os professores também
se familiarizem com esses elementos, mas que não os entendam como uma sequência, já que não
existe uma ordem predeterminada a ser seguida - é possível, por exemplo, começar com conceitos,
tentar aplicá-los e conectá-los à experiência pessoal. Do mesmo modo, não se exige, necessariamente,
a mesma divisão entre os elementos, pois alguns assuntos ou situações de aprendizagem podem
demandar muito trabalho conceitua!, enquanto outros, mais trabalho experiencial. Os processos
.ef
de conhecimento exigem, em vez disso, que os professores reflitam propositalmente sobre como
devem trabalhar os movimentos epistêmicos que fazem em suas salas de aula, podendo, assim,
justificar suas escolhas pedagógicas com base nos objetivos e resultados de aprendizagem para
indivíduos e grupos.

5 Idem, 2009.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS 1 75


Experienciando... Conceitualizando... Analisando ... Aplicando ...

O conhecido: introduzir, mos- Por nomeação: definir ter- Funcionalmente: escrever Apropriadamente: escrever,
trar e falar sobre algo/alguma mos, fazer um glossário, rotu- uma explicação, criar um dia- desenhar, atuar de forma usual
coisa familiar ou "fácil"; ouvir, lar um diagrama, ordenar ou grama de fluxo de dados, de- para resolver um problema.
ver, assistir, visitar. categorizar coisas semelhan- senhar um diagrama técnico,
tese distintas. criar um storyboard, fazer um Criativamente: usar o conhe-
O novo: introduzir algo menos modelo. cimento que aprendeu de
familiar, mas que, pelo menos, Com teoria: desenhar um forma inovadora, assumir risco
faça algum sentido apenas por diagrama, elaborar um mapa Criticamente: identificar lacu- intelectual, aplicar conheci-
imersão; ouvir, assistir, ver, vi - conceituai ou escrever um nas e silêncios, analisar pro pó- menta a um ambiente diferen-
sitar. sumário, teoria ou fórmula que sitos (para esse tipo de conhe- te, sugerir um novo problema,
una os conceitos. cimento), predizer e discutir traduzir conhecimento para
consequências, sustentar um uma mistura de "modos" de
debate, escrever um crítica. significação.
Quadro 3-4: Os processos de conhecimento - Exemplos de atividades de letrament os.

EXPERIENCIANDO APLICANDO

O conhecido O novo Apropriadamente Criativamente

Estar no mundo do aluno Estar em novos mundos Fazer as coisas da maneira Fazer as coisas de maneiras
adequada interessantes
Fazer uso do conhecimento e Introduzir novas experiências
da experiência anteriores do aos alunos - reais e/ ou virtuais. Agir sobre o conhecimento de Fazer coisas de maneiras inte-
aluno, formação da comunida- O "novo" é a partir da perspec- maneira esperada, previsível ressantes, ao levar o conheci-
de, interesses pessoais, expe- tiva do aluno para construir ou típica, com base no que foi menta e os recursos de uma
riência concreta, motivação sentido, pois pode ter elemen- ensinado. Envolve a transfor- determinada configuração e
individual, o cotidiano e o fa- tos familiares. mação do aluno e exige que adaptá-los a uma configura-
miliar. ele tenha oportun idades para ção diferente - tomando algo
demonstrar sua compreensão de seu contexto familiar e fa-
e seu aprend izado. zendo com que funcione em
outro lugar.

CONCEITUALIZANDO ANALISANDO

Por nomeação Com teoria Funcionalmente Criticamente

Conectar o mesmo tipo de Conectar diferentes tipos de Pensar sobre o que algo faz Pensar em quem se beneficia
coisa coisas
Examinar a função ou lógica Interrogar os propósitos hu-
Identificar novos conceitos/ Generalizar e sintetizar concei- do conhecimento, ação, obje- manos, as intenções e os inte-
ideias/temas, incluindo resu- tos, vinculando-os, compreen- to ou sig nificado representa- resses do conhecimento, de
mo, termos generalizados, dendo como contribuem para do. Para que serve? O que isso uma ação, de um objeto ou de
convenções, recursos, estru - o todo, generalizando os rela- faz? Com o funciona? Qual é significado representado.
turas, definições e regras. No- cionamentos de causa e efeito. sua estrutura, função ou quais Quais são suas consequências
mear é o primeiro passo para E se ... ? são suas conexões? Quais são individuais, sociais e ambien-
entender. suas causas/efeitos? tais? Quem ganha? Quem
perde?
Quadro 3.5: Proposta de planejamento curricular com base nos processos de conhecimento.

.ef

Os processos de conhecimento na teoria de aprendizagem

Nesta parte, vamos discutir os processos de conhecimento em termos teóricos. Aprender a


significar é um processo que envolve movimentos de avanços e de recuos através e entre diferentes
formas de construir conhecimento: experiencial, conceitual, analítico e aplicado.

76 1 LETRAMENTOS
Aprendizagem experiencial dos letramentos
"Experimentar o conhecido" envolve aprendizes que possam refletir sobre suas próprias
experiências de vida, trazendo para a sala de aula conhecimento com o qual estão familiarizados
e suas formas de representar o mundo. Na perspectiva dos letramentos, experimentar o conhecido
busca fazer isso de maneira muito direta, pedindo aos alunos que tragam para a sala de aula artefatos
textuais e práticas comunicativas que possam mostrar os significados que constroem em sua vida
cotidiana. Dessa forma, a aprendizagem por meio da experimentação do conhecido se conecta com
as origens culturais, as identidades e os interesses dos alunos, envolvendo a articulação explícita
da experiência cotidiana que muitas vezes está implícita nas práticas, estimulando a autorreflexão
sobre as fontes de seus interesses e perspectivas. Esses tipos de atividade não apenas possibilitam
que os aprendizes introduzam suas experiências invariavelmente diversas na sala de aula, como
também fazem com que os professores e seus colegas comecem a ter uma noção do conhecimento
prévio de cada aluno.
"Experimentar o novo", por sua vez, ocorre com a imersão em novas situações, informações e
ideias. No caso de letramentos, isso significará principalmente se envolver com novos textos ou
textos de uma variedade desconhecida - ler textos escritos, ouvir textos falados ou sons, observar
gestos e, particularmente, textos visuais (imagens estáticas e em movimento). Dessa forma, os
alunos são exposto a novos significados, fora de suas experiências cotidianas, o que, entretanto,
só funcionará como uma experiência de aprendizagem, de fato, se estiver dentro de uma zona de
inteligibilidade e segurança - suficientemente próxima de suas próprias experiências de vida - ,
dentro do que Vygotsky chama de "Zona de Desenvolvimento Proximal" (ZDP). 6 A aprendizagem
experiencial tem sido largamente articulada à tradição do que chamamos "pedagogia autênticà',
relacionada às ideias de Jean-Jacques Rousseau, John Dewey, Maria Montessori e Anísio Teixeira,
em que se aprende aquilo que é socialmente relevante e conectado com as experiências de vida e
as identidades dos aprendizes. No entanto, como uma pedagogia autônoma, ela também foi atacada
e se viu em recuo nas últimas décadas. Discutiremos mais sobre isso no capítulo 5.

Aprendizagem conceituai dos letramentos


"Conceitualizar por nomeação" envolve classificação por propriedades gerais ou comuns, o que
implica estabelecer distinções de semelhança e diferença, categorizando e nomeando os elementos
constituintes sobre aquilo a que o conceito se refere. Na perspectiva dos letramentos, os conceitos
formam uma metalinguagem ou linguagem sobre a linguagem, o que pode incluir conceitos
tradicionais, como "substantivo" ou "narrativa", como também conceitos que descrevem designs
visuais e de novas mídias, como contra-plongée ou hiperlink.
As disciplinas escolares formais consistem em conhecimento especializadéfe disciplinar
baseado em distinções conceituais mais precisas do que aquelas feitas na linguagem cotidiana
no curso da experiência casual. Os termos utilizados por essas disciplinas são de caráter mais
técnico e menos ambíguos do que a linguagem "natural", uma vez que os tipos de distinção que
eles encapsulam são típicos daqueles desenvolvidos por corpos de conhecimento acadêmico
(ciência, história ou estudos literários, por exemplo) e por comunidades de práticas especializadas

6 Vygotsky, 1987 [1934] (ver capítulo 14).

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS 1 77


(profissionais de diferentes áreas, por exemplo). Na perspectiva dos letramentos, para esse processo
de conhecimento, os alunos desenvolvem metarrepresentações com as quais descrevem elementos
do design dos textos, começando com generalizações sobre os sons da fala e sobre imagens na
aprendizagem da primeira infância à educação posterior, analisando estilos literários ou a
gramática dos textos. A "abordagem didática" (ver capítulo 4) tem uma grande ênfase no ensino
da linguagem técnica de uma disciplina: substantivos e verbos, ou regras e convenções da
alfabetização na forma-padrão da língua. No entanto, em uma pedagogia dos letramentos mais
ativa, para além disso, existe a preocupação em conceituar por nomeação, com os aprendizes
sendo convidados a olhar para um texto ou a considerar algo no mundo para criar suas próprias
conceituações, nomeando e classificando de acordo com suas características gerais. Pode ser um
texto com o qual eles estejam familiarizados, ou algo que experimentem no mundo, considerando-o
conceitualmente em termos de suas características gerais e dando a esse fenômeno geral um
nome ("planetà', "narrativa" ou "hiperlink", por exemplo). Esse é um exemplo de "movimento"
que pode ocorrer de forma produtiva entre diferentes processos de conhecimento, buscando,
desse modo, a relação entre uma realidade particular ( esse planeta ou esse texto) e o conceito
abstrato e generalizador, aprofundando as capacidades cognitivas dos aprendizes. Vygotsky
concebe isso como um movimento entre o mundo dos conhecimentos cotidianos ou espontâneos
e o mundo dos conceitos acadêmicos sistemáticos.7 Piaget, por sua vez, concebe esse processo
como uma transição durante o desenvolvimento intelectual da criança, a partir do pensamento
concreto e abstrato. 8 Discutiremos mais sobre isso no capítulo 14.
"Conceituar com teoria" significa fazer generalizações, reunindo conceitos em estruturas
interpretativas. É assim que os aprendizes constroem modelos cognitivos ou representações de
conhecimento, que tipicamente são organizados em esquemas e processos de reconhecimento
de padrões, e passam, então, a ser ferramentas úteis para compreensão, produção e comunicação
do conhecimento. 9 As teorias podem conectar conceitos de várias maneiras diferentes - em uma
conclusão que faz uma afirmação generalizadora sobre a definição de um termo em relação a
outros termos, ou sobre um diagrama ou mapa conceitua!, por exemplo. Esse processo de
conhecimento se insere em uma tradição da "abordagem didáticà', que enfoca o ensino por meio
de instruções explícitas ou diretas, começando com generalizações e exigindo que os aprendizes
as apliquem, mostrando que a teoria é a essência conceitua! de uma disciplina. No entanto,
"conceituar com teoria" pode ir além da abordagem didática quando, em vez de ensinar a teoria
aos alunos, testando -a em seguida para ver se conseguem recordá-la ou aplicá-la, os alunos são
conv/Yà'2i'b~r.ft~;'b"d'aJ;à'23.hscfDil!':t\1i1:\L'11JRJ}%11t;lHi,ms-,~IVl1'b-.·1-,k~~âert.i,d,u. .1uuJ:1..fü1Qrd~.e..1n.per.c.entual
da pedagogia dos letramentos envolve a introdução de uma estrutura conceitua! explícita e
abstrata de metarrepresentações para descrever as estruturas subjacentes de significado que
incluem não apenas textos escritos, mas textos multimodais, como caminhos de navegação na
internet, design de vídeos, ou formas de interação moldadas por espaços físicos. Os câpítulos
de 9 a 13 deste livro apresentarão a estrutura conceitua! dos multiletramentos para descrever o
significado multimodal.

7 Idem.
8 Piaget, 2002 [1923].
9 Bransford; Brown & Cocking, 2000.

78 [ LETRAMENTOS
Aprendizagem analítica dos letramentos
''Analisar funcionalmente" engloba processos de raciocínio, de estabelecimento de conclusões
inferenciais e dedutivas, de relações funcionais (como entre causa e efeito) e de análise de conexões
lógicas, em que os aprendizes desenvolvem cadeias de raciocínio e explicam padrões de conhecimento
e experiência. Na perspectiva dos letramentos, os alunos aprendem a explicar as maneiras pelas
quais os textos trabalham para transmitir significados, ou a maneira como seus elementos de design
funcionam para criar uma representação complexa e significativa. Essa é uma das principais ênfases
da abordagem funcional do letramento, a ser analisada em detalhes no capítulo 6.
''Analisar criticamente", por sua vez, sugere avaliação das perspectivas, dos interesses e dos
motivos daqueles envolvidos na construção de conhecimento, em que os aprendizes interrogam os
propósitos relacionados aos significados ou às ações, com base na interpretação do contexto
sociocultural. Esse é o foco principal da abordagem dos letramentos críticos, que exploraremos no
capítulo 7. Um aspecto fundamental da análise crítica é refletir metacognitivamente sobre a influência
de suas próprias perspectivas e processos de pensamento, buscando torná-los mais eficientes ao
serem acompanhados pelo sistema de metacognição ou monitoramento e reflexão sobre o próprio
pensamento - uma parte integral do movimento entre o novo conhecimento, encontrado nos outros
métodos de conhecimento, e a autorreflexão sobre o próprio conhecimento e processos de
pensamento. 1 º

Aprendizagem aplicada dos letramentos


''Aplicar adequadamente" consiste em empregar conhecimentos de maneira previsível ou
"adequada". Para tomar um exemplo de letramentos que se insere na tradição pedagógica da
abordagem funcional, um aluno pode escrever um relatório de ciências ou um conto de uma forma
que mostre que domina um ou outro gênero. A aplicação apropriada envolve levar o conhecimento
ou o tipo de texto de volta a situações realistas de adequação ao mundo real ou aos espaços que o
simulam, como se fosse um cientista ou um escritor de contos. Tal abordagem dos letramentos se
baseia nas tradições de letramento que enfatizam a prática comunicativa, de caráter aplicado, ou
o aprender fazendo, nas quais a aprendizagem ocorre por meio de um processo de transferência
de conhecimento generalizável para contextos práticos, entrelaçando-se entre o conceitual e o
aplicado. A abordagem do letramento funcional (ver capítulo 6) coloca uma ênfase muito forte na
aplicação apropriada.
Por fim, ''Aplicar criativamente" sugere um uso mais inovador do conhecimento, que pode
envolver, por exemplo, a recombinação de elementos de design para criar um texto híbrido, ou a
construção de um texto multimodal, ou um jogo irônico sobre um tipo de texto canônico. Nessa
perspectiva, busca-se deslocar o conhecimento, ou o tipo de texto, de sua configuração atual ou
previsível para um contexto, uma disciplina ou uma configuração distantes ou não imediatos. Ou,
ainda, contemplar os interesses, as experiências e as aspirações do aluno de tal maneira que seu
emprego seja exclusivo ou distintamente "autoral': Aplicar criativament~ é, portanto, um processo
de tornar o mundo novo com novas formas de ação e percepção. Isso é comumente uma aspiração
da abordagem dos letramentos críticos, conforme veremos no capítulo 7.

10 Idem.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS i 79


Os processos de conhecimento como um repertório de ensino e aprendizagem

Ao reformularem e reconstruírem as tradições fundac ionais das abordagens pedagógicas, os


processos de conhecimento buscam se alinhar e, ao mesmo tempo, expandir nossas experiências
como estudantes e professores, por meio de um repertório de "movimentos epistêmicos", ou
"coisas que os aprendizes podem fazer para conhecer". Nossa intenção ao articular os processos
de conhecimento dessa forma é sugerir que o ensino pode se tornar efetivo quando professores
e alunos têm uma estrutura explícita e deliberada para nomear um conjunto de movimentos
epistêmicos e tipos de atividade que estão construindo, a fim de cumprir seus objetivos de ensino
e aprendizagem.
Nessa concepção, a "pedagogia" se torna um procedimento cuidadoso de escolha de um
conjunto de maneiras de constituir conhecimento por meio de movimentos intencionais com
diferentes tipos de saber, uma vez que entendemos a educação como um processo de ampliação
das capacidades dos aprendizes para construir conhecimento através de diferentes disciplinas e
intenções. Por isso, nosso objetivo aqui não é propriamente fornecer um "modelo" de sequência
de passos para uma ação pedagógica, mas sim expandir os repertórios de construção de
conhecimentos de professores e alunos. Nesse sentido, a pedagogia se constitui como um design
de sequências de ação de conhecimento que possam atender a domínios sociais e acadêmicos
distintos: escolher tipos de atividade, sequenciar atividades, estabelecer a transição de um tipo
de atividade para outro e determinar os resultados dessas atividades. Nas práticas pedagógicas
cotidianas, lidar com sequenciamento de processos de conhecimento se torna um meio através
do qual tanto o professor quanto o aluno podem dizer explicitamente: ''Agora estou usando essa
forma particular de conhecimento e agora estou usando aquela outra forma, e esse é o motivo
pelo qual fiz isso e, então, aquilo". Isso é também uma maneira de identificar um conjunto de
resultados que os aprendizes demonstraram, isto é, possibilita tanto a promoção de ações
pedagógicas quanto a reflexão sobre essas ações.
Assim, ao indicarem e documentarem os movimentos epistêmicos que os alunos fazem, os
professores também podem realizar uma reflexão retrospectiva, avaliando a sequência e a mistura
dos processos de conhecimento utilizados e o quanto se alinham com seus objetivos de
aprendizagem. Nesse sentido, podem desmembrar o leque de possíveis sistemas de conhecimento,
a fim de decidirem e justificarem o que é apropriado para um determinado assunto ou aluno,
sendo, com isso, capazes de perceber como cada um se sai e, ao mesmo tempo, ampliar seus
próprios repertórios pedagógicos de conhecimento, bem como as capacidades de construção de
conhecimento de seus aprendizes. Se usarem uma gama mais ampla de processos de conhecimento,
professores e alunos podem descobrir que a aprendizagem surge à medida que tais processos se
entrelaçam em uma combinação variada, feita de maneira cuidadosamente planejada. Eles também
podem conscientemente selecionar o conjunto e a sequência das ações contínuas de coríÍ ecimento
mais apropriadas a determinada área de sua disciplina, um tópico, um contexto escolar ou certo
grupo de alunos.

80 1 LETRAMENTO S
Sumário

Experienciando:

A cognição humana é situada e contextual.

Os significados são fundamentados nos padrões de experiência do mundo real e na ação e nos interesses subjetivos.

Um movimento pedagógico-chave é a relação entre a aprendizagem escolar e as experiências práticas dos alunos fora da esco-
la, bem como entre textos e experiências familiares e não familiares.

Conceitualizando:

Conhecimentos especializados e disciplinares são baseados em distinções afinadas de conceitos e teorias, semelhantes àqueles
desenvolvidos por comunidades de prática especializadas.

Conceitualização não é meramente uma questão de reprodução de um saber do professor ou do material esco lar, mas um pro-
cesso de conhecimento no qual aprendizes se tornam "conceitualizadores ativos': fazendo do tácito o explícito e generalizando
a partir do particu lar.

Em relação aos letramentos, a conceitua lização ainda envolve o desenvolvimento de metarrepresentações (ou representações
de representações) para descrever os "elementos do design''.

Analisando:

Desenvolvimento de certo tipo de capacidade analítica.

"Analisar" pode significar d uas coisas em um contexto pedagógico: capacidade de descrever funções analíticas ou de aval iar
intenções e motivações humanas.

Em relação aos letramentos, isso ainda envolve analisar funções textuais e questionar criticamente os interesses dos participan-
tes no processo de comunicação.

Aplicando:

Aplicação apropriada e criativa do conhecimento e a compreensão da diversidade complexa de situações do mundo real.

Capacidades de produção com os elementos do design de uma ampla variedade de tipos de texto e propósitos de comunicação.

Em relação aos letramentos, isso significa construir textos e colocá-los em uso na ação comunicativa.

Processos de conhecimento

Experienciando o conhecido
1. Descreva um momento impressionante de aprendizagem em sua vida (na escola ou fora dela)

que ilustre cada um dos processos do conhecimento.

Analisando funcionalmente
2. Tomando como base um capítulo de um livro didático ou uma unidade de trabalho criada por
um professor, "analise" as atividades de aprendizagem de acordo com os '"processos de
conhecimento" discutidos neste capítulo.

Analisando criticamente
3. Quais preconceitos ou limitações você consegue identificar em termos do alcance e da sequência
dos processos de conhecimento em sua unidade de trabalho?

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS 1 81


Aplicando criativamente
4. Que mudanças você faria na sequência dos processos de conhecimento em sua unidade de
trabalho de modo a torná-la mais apropriada ao contexto de ensino ao qual se destina?

Conceitualizando com teoria


5. Escreva uma teoria de aprendizagem de modo que o responsável do aluno possa entender,
usando a concepção dos "processos do conhecimento" apresentados neste capítulo.

82 1 LETRAMENTOS
Capítulo 4
Pedagogia do letramento na
abordagem didática

Visão geral
A pedagogia do letramento na abordagem didática fundou o processo de ensino e aprendizagem
da leitura e da escrita quando se iniciou a educação massiva, compulsória e institucionalizada no
século XIX, sendo, ainda hoje, amplamente advogada e aplicada nas escolas em geral. Na pedagogia
do letramento na abordagem didática, exige-se a aprendizagem das formas de correspondência
entre sons e letras, bem como as regras formais daquilo que se apresenta como a "forma correta
de escrita''. Trabalha-se com a ideia de "compreensão" do que os autores "realmente querem dizer",
buscando aprender a respeitar os textos do cânone literário da alta cultura. Nessa rodagem, o
currículo determina o que deve ser ensinado; assim, o professor segue o material didático, que, por
sua vez, segue o currículo. No final desse processo de ensino e aprendizagem, para ser considerado
"aprovado", o aprendiz deve obter uma "nota'' mínima, baseada, em geral, em testes que exigem as
respostas "corretas".

Sobre os paradigmas dos letramentos


Nos capítulos restantes desta primeira parte do livro, problematizaremos o pensamento subjacente
às quatro abordagens principais da pedagogia do letramento, que nomeamos de "didática'' (este
capítulo), "autêntica" (capítulo 5), "funcional" (capítulo 6) e "crítica'' (capítulo 7). A abordagem
didática tem estado presente desde o início dos tempos modernos, um período que se inicia
aproximadamente a partir da invenção da imprensa, no século XV, e, no século XIX, tornou-se a
base da educação obrigatória em massa. A abordagem autêntica, por sua vez, qúe adota uma
perspectiva de aprendizagem centrada na criança ou "naturalista'', também tem algumas raízes
intelectuais antigas, provenientes das ideias do filó sofo do século XVIII Jean-Jacques Rousseau e,
posteriormente, das teorias e práticas educacionais de educadores "progressistas" do início do século
XX, como Maria Montessori e John Dewey. Por fim, as abordagens funcional e crítica se constituem,
em grande parte, a partir da segunda metade do século XX.
Assim, pode-se dizer que existe uma lógica cronológica aproximada para esses capítulos. No
entanto, também temos uma lógica metodológica por trás da maneira como estamos introduzindo
essas ideias e práticas, que mapeiam os "processos de conhecimento" que mencionamos no capítulo
anterior. Nesse sentido, queremos argumentar que há aspectos de cada uma dessas tradições
pedagógicas que podemos, de alguma forma, querer manter, ampliar e fortalecer. De fato, em vários
momentos do processo de letramento, podemos achar necessário fazer escolhas pedagógicas que
tenham suas raízes em cada uma dessas abordagens.

li
.
l!l .
·.• Veja: "Uma história de duas salas de aula''.

Abordagens Principais representantes Principais ênfases dos "processos de conhecimentos"

Didática (capítulo 4) Petrus Ramus Experienciar o novo: ler textos literários de "alto valor cu ltural".

Conceitualizar por nomeação: aprender termos gramaticais e


conceitos literários.

Conceitual izar com teoria: aprender regras ortográficas e grama-


ticais e as escolas literárias.

Autêntica John Dewey e Maria Montessori Experienci ar o conhecido: explorar os interesses próprios na
(capítulos) leitura e a voz pessoal na escrita.

Funcional Michael Halliday Analisar funcionalmente: analisar como diferentes tipos de


(capitulo 6) textos servem a propósitos sociais distintos.

Aplicar apropriadamente: dominar gêneros textuais socialmen-


te reconhecidos.

Crítica Paulo Freire e Michael Aple Experienciar o conhecido: desenvolver voz e identidade pessoais.
(capitulo 7)
Analisar criticamente: trabalhar agendas sociais e vieses de
textos.

Aplicar cri ativamente: construir textos, incluindo textos das


novas mídias digitais, que expressem as identidades, os interes-
ses e as perspectivas dos aprendizes.
Quadro 4 .1: Principais representantes e ênfases dos processos de conhecimentos nas abordagens pedagógicas.

Neste capítulo, exploraremos as dimensões da pedagogia do letramento na abordagem didática,


mostrando como funciona e o que faz. Para tanto, traremos alguns exemplos reais provenientes de
materiais didáticos brasileiros usados por professores e alunos. Alguns deles lidam com formas
idealizadas de ensino, contendo textos que nos dizem algo sobre os conteúdos a serem ensinados
e como os professores deveriam abordá-los com seus alunos. Assim, para reconstruirmos a forma
de ensinar e aprender em sala de aula na abordagem didática, voltaremos a livros didáticos de
meados do século XX para, de alguma forma, tentar contar a história de aulas de leitura e escrita
que essas obras revelam.
Descreveremos a pedagogia do letramento na abordagem didática com bastante detalhe neste
capítulo, cobrindo o leque de conteúdos e tipos de atividades de sala de aula relacionados a:"práticas
de leitura e escrita, porque os próprios detalhes são fascinantes. Os capítulos 9 e 10, assim como
os recursos on-line que os acompanham, fornecerão as teorias da pedagogia do letramento na
abordagem didática por meio de questões que envolvem a relação entre fonema e grafema, isto é,
sóns da fala e escrita, e questões de ordem gramatical. Um exemplo disso é o trecho abaixo, retirado
dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental, que mostra como a abordagem 1

1 Bra~L 1997,pp. 58 -59 .

84 1 LETRAMENTOS
didática, no que tange justamente à relação entre fonema e grafema, pode ser pensada como critério
de avaliação de língua portuguesa para o 1 Q ciclo:

Escrever utilizando tanto o conhecimento sobre a correspondência fonográfica como sobre a segmentação
do texto em palavras e frases. Com este critério espera-se que o aluno escreva textos alfabeticamente.
Isso significa utilizar corretamente a letra (o grafema) que corresponda ao som (o fonema), ainda que
a convenção ortográfica não esteja sendo respeitada. Espera-se, também, que o aluno utilize seu
conhecimento sobre a segmentação das palavras e de frases, ainda que a convenção não esteja sendo
respeitada (no caso da palavra, podem tanto ocorrer uma escrita sem segmentação, como em "derepente",
como uma segmentação indevida, como em "de pois"; no caso da frase, o aluno pode separar frases
sem utilizar o sistema de pontuação, fazendo uso de recursos como "e", "aí", "daí", por exemplo).

Neste capítulo, focalizaremos a ecologia da sala de aula na abordagem didática, o modo como
a sala de aula é organizada e o que acontece nela. Nosso objetivo é fornecer uma representação
gráfica dos valores, hábitos e propósitos culturais desse tipo de comunidade em sala de aula. Nossa
intenção, com isso, não é simplesmente descartar a abordagem didática por considerá-la antiquada,
mas sim buscar entendê-la, pois ela pode ainda se mostrar relevante, atualmente, em certos contextos
comunitários, para alguns alunos, e em função de determinados aspectos do processo de aprendizagem.
Daí, portanto, a necessidade de, mais uma vez, nos referirmos a letramentos (no plural), incluindo,
nesse caso, não uma única abordagem, mas uma mistura de diferentes abordagens.
Para fins de comparação entre este e os três capítulos seguintes, analisaremos as quatro abordagens
da pedagogia dos letramentos (didática, autêntica, funcional e crítica) a partir de quatro dimensões
(ver Quadro 4.2).

Dimensão 1: conteúdos de letramento O que os estudantes devem aprender.

Dimensão 2: organização do currículo de letramento Como aquilo que os estudantes devem aprender é organiza-
do.

Dimensão 3: aprend izes fazendo letramento As maneiras pelas quais os estudantes pretendem aprender
pa ra construir significados.

Dimensão 4: relações sociais do letramento As re lações entre os estudantes e os letramentos, entre estu-
dantes e outros estudantes e entre estudantes e professores.
Quadro 4.2: Estrutura para análise das ecologias de aprendizagem em sala de aula e as pedagogias de letramento.

Os conteúdos de letramento: Tópicos e abordagens tradicionais


Um exemplo de material usado para alfabetização muito conhecido no Brasil no século passado,
publicado pela primeira vez em 1939 e distribuído por muitos anos pela Companhia Editora
Nacional, é a Cartilha Sodré, de Benedicta Stahl Sodré (Figura 4.1):
A Parte I da Cartilha Sodré ilustra muito bem o que, na literatura sobre alfabetização, chama-se
"método silábico", um método sintético cuja principal unidade a ser trabalhada com os alunos é a
silabação, isto é, a divisão da palavra em sílabas. Para desenvolver o método, escolhe-se, quase sem-
pre, uma ordem de apresentação que busca partir de sílabas que seriam mais "simples" para as mais
"complexas". As palavras usadas, em geral, constituem mero pretexto para indicação das sílabas, que,
por sua vez, são recompostas para formar novas palavras. Nessa lógica de trabalho, o exercício de

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 85


formação de novas palavras para chegar a frases curtas se dá somente por meio das sílabas já apre-
sentadas, como mostra a Parte Ida Figura 4.1, que apresenta sílabas com uma mesma vogal ("sílabas
com a vogal 'à"), explorando as sílabas das palavras "patà' e "nadà', até chegar à frase "A pata nada''.

Depois de dominadas umas b cu ts sllabas, Uesta torma, ao terminar a leitura CJa canuna,
a capacidade retentiva da criança Sf3 d8Senvolverá o 11tuno não &6 lerà a letra de fôrma cano a de m3o
extraordino,:amente, podendo o profMSOr, confor- e, também , saberã escrever. pois a leitura o a es-
mo :i el.1::.:;.o, .:::ivonç.:ir du:ii; ou 3tÓ tr6~ c.il3b:,c p0r crita deverão c:,.minhar Gemprs p.al•lamente.
dia.

E acon1elhive! Que cada aluno tenha seu pr


pello ou cartolina com as silabas estuc'adas. Nesse li PARTE
papel!c o professor escrevera as sllab~s ti medida
que forem sendo ensinadas; cada sllabe deverá ser O prafessor ensinará as vogais CJ .e, 1., u
escrita em Mrril de fdrnJB (em e,zul) e em ~rra de Colocor6 e nt!o no quodro-nogro, por ex.em •
ORIENTAÇÃO PARA O PROFESSOR mão lem vermelho). pio, a sllaba to.. e dirá aos alunos: - O que está
Diariamente o professor faril recordação da escrito? lmed!stamenta ouvirá a resposta: - Ê o ta.
todas as t.ílsbas jã ensinadas. I;, conwniente dei• Em seguida o professor apagarâ o Q/l escre-
,di-las escritas (nas primeiras semanas), no quadro, verá o .e, fazendo os alunos lerem to . Apa-
em lugar bem visível. gando o .e escreveré novamente o ,a. fazendo le-
Todos os d ias o professor faré ditado de PS· rem to.. ; apagando o o., escreverà o e,- fazendo
Ievra1 formadas com as silabas conhecid8s e perm l• lerem .Lo- leste exercício deverá ser rep elido mul-
tirá que o afuno que, t iver alguma dú\'ida para es• tas vezes sem apagar a consoante inici3I) .
crever qualquer palavra, consulte o seu papeUlo, ou
olhe na lista de silabas do quadro . ExérCieiOt , COMO es1e, deverão ser teho:s com
todas as outras consoantes.
A CARTILHA SODRt orgenízada de acor• O professor, depois de mostrar uma gravura Como reforço. para a leitura, o professor
O professor deverâ proceder da mesma forma
do com o Proc eno de A,lfabetlzacito RBoido ou correspondente a lição e após ter conversado com destacará da cartilha as folhas (destacáveis\ com as
silabas em a •• tJpós col/J•lils sobre ctJnoliru,, recor- com as silabas com as vogais ,:i , .i.. IÃ
Prõcesso Sodrft Ide autoria de Abel de F. Sodré e a cla:sse pare despertar o interesse dos alunos, es-
Benedicta Stahl Sodré), obedece a seguinte ordem: creverá na lousa a sentença, que, com o auxilio
tar! o, pedec.1hos. Ceda aluno dever3 ter ume pe·
quena caixa onde gu$'d&rb toda s as suas sllaba!I re-
de perguntas. conseguiu das criani;as. A criança dominará com muita facilidade o jo-
cortadas. Com elas cada aluno formar6 (diariamen·
1 PARTE Dlté então à classe: - Vamos ver q11em é lel Inúmeras palavras, sempre sob a orientação e go com as diversas vogais. Este ioGo constltulrtl
Chave: capaz de ler o que o giz escreve. Mandará que os supervis!o do professor. um verdadeiro divertimento para 65 crianças, se as
estudo das Silabas com a vogal a . alunos leiam (um de cada vez). O run~f!..'l!lor fl()dP..rã levar cada aluno a com- aulas forem bem rri.lnistradas.
Depois escreverá somente a palavra p.o...lo... por suas próprias palavras ou poderà levar tod., a
li PARTE Feito isto, o professor explicará ãs Crianças classe a compor as mesmas palavras. Nota Importante: Nunca sa osaeveril ,to, ,
Jogo com as vogais:
que a palavra p.o.lo., ê pronunciada em duas O professor deverà sempre percorrer as car- {~ , &, . to, , lw., , como no mótodo da
t~) com e vogal o; teiras. observan do se as palavras formadas estão silabação, l)Or(lue dessa forma o aprendizado con•
vezes e então escreverá po.. .ta. .
2?') com a vogal e: correta s. tir'1uarà a ua2er as me,ma:i. dificuldad~ que apre•
3?'} com a vogal I; Apôs isto diré aos alunos: - Vamos epren· sentam outros métodos, pois obrigará a criança a
4?') com a vogal u. dominar mi.is d e 100 s!lab;is e n1lio apenas 20, CO•
der a escrever bem o primeiro pedacinho da pala• BRINQUEDO - O professor escrovorti , com mo no Processo Sodr6.
vra ~ . Escreverá então muitas vezes {es- letras graúdas, em quadrados de papeí!lo. todas 11s
Ili PARTE crevendo e 1alando) a silaba -p,o.. .
Emprego dos ditongos não nasalados e sílab.!ls ensinadas {uma em cada quactadol. Estes
M endaré que alguns alunos acompanhem, serão d ist ribuídos, um a cada aluno.
hiatos. COf"t o giz ou com o ponteiro, o tra çad o do ,p.o. . O professor dlrâ então: - Vamos ver que pa• Ili PARTE
IV PARTE
Convidarâ, também, várias crianças perii irem es- lavn,s lorm11NNnOS. Chamará , por exemplo: pa e
Emprego dos; r, m, n e I no fim das silabas. crever um f-l-0, no quadro-negro. lha_ A r.riança. dnna do papelão onde esta escri• 1~ Ução - O professor escreveris. bem dis-
to o pa, virá t fronte e, depois, a dona do lha. Estes tanciadas, ns lousa, as vogais. Por exemplo: i .u.
Apagando-~e, então, todo o quadro, o pro- dois alunos seguraria os quadrados um ao lado do Mandarâ que os alunos leiam.
V PARTE
Emprego do r e do I interc.!llados. fessor escreverá !com uma boa letra). um ,p.n, ou1ro. Então o professor dirii: - Quem ser6 ca;M:r ,Qirâ &nt l o: - Estas duas Jetrin'IIIS v§o ficar
que servirâ de modelo para a cópia imediata. Essa do adivlnhar (que é como se costuma dizer para a do braços dados. Escrevendo as duas vogais jun·
VI PARTE cópia cada aluno já fará em seu caderno. criança) a pa/avrs formada? Ap61 a leitura, manda- tas { ;t,..t. l. fará os alunos lerem.
Emprego do h, z e os diversos sons do x. A primeira aula de linguagem escrita será rã um dos alu nos da classe escrever a palavra no
ocupada somente com a escrita da silaba tl.O.. . qu.1dro. Com octo brinquodo, t3o c.imploc, :, cl:,.c;ço Ap:ig:mdo o ropotindo it.to véri~s. vozoe., V81"6
VJI PARTE tera um reforço muito grande, tanto na leitura que os outros ditongos I oi. • c,.u. etc.) não
Emprego das vogais e ditongos nasais. O resultado será logo animador. Raros serl'.lo quanto na e scrita de palavras. apresêntarão dificuldades e poderão ~r cnsiMdos
os alunos que não escreverão de maneira muito fe• em uma só aula.
glvel esta silaba, ENTR EGA DA CARTILHA - Dominadas três
ou quatro lições da Cartilha Sodr♦,0 professor de- 2.• Lição - Estando jã dominados os diton-
1 PARTE verá entregá-la ao aluno. Este terá que iniciar a lei- gos. o professor oscreverâ, na lousa, a silaba ..,,,.. 0 .
Na aula seguinte o professor, depois de hover tura da mesmo, desde a primeira llç.'!o. O profasor, M b1)da1A os alunos lerem.
A 1 ~ sentença - o, po.!a. -n..a..dA recor dado a sllaba já -dominada, passarâ a ensinar entretanto, continuará dando lições no quadro, se- Em seguida apagará o 1.J e escreverá o di-
- constituirà a 1 ~ lição. outra ( 1.a...Jseguindo o mesmo processo. guindo o processo da alfabetl.zação. · tongo Ul e farli os alunos terem ....,u.,1•

Figura 4.1: Cartilha Sodré - Parte 1. Cartilha Sodré - Parte li.

Se, por um lado, os métodos sintéticos lidam com a análise que vai das partes para o todo, isto
é, das relações entre unidades sonoras e grafemas (método alfabético e/ou fônico), e entre unidades
silábicas, para a formação de palavras (método silábico), obedecendo a uma certa hierarquização,
que parte da letra ao texto por meio de soletração e silabação, dimensões importantes e necessárias
para o aprendizado da escrita, por outro lado, eles apresentam o grande problema da "artificialização"
de textos, cujo único objetivo é o treinamento e/ou decodificação de letras e sílabas, estando,
portanto, descolados do uso social da escrita. Nesse sentido, o início da Parte I ("O professor, depois
de mostrar uma gravura correspondente à lição e após ter conversado com a classe para despertar
o interesse dos alunos, escreverá na lousa a sentença") parece soar quase como paradoxal, visto que
o trabalho com palavras e frases descontextualizadas, salvo em casos muito excepcionais, d_ijicilmente
despertaria o interesse dos alunos .

. Gramática tradicional

Em uma turma de 7º ano do ensino fundamental, a professora Joana anuncia o seguinte tópico
de sua aula:

86 J LETRAMENTO S
- Nós já começamos a estudar as classes de palavras. Vocês se lembram quais são as classes de
palavras?
Nenhum aluno da turma se manifesta. A professora, então, reforça a pergunta:
- Gente, alguém sabe o que são as classes de palavras?
Como ninguém responde, a professora continua:
- Então, para a gente escrever bem, precisamos saber como as palavras são classificadas. As classes
de palavras é como se classifica as palavras. No português, as palavras são classificadas em dez tipos,
lembram?
A professora continua, então, falando e escrevendo cada uma das classes de palavras na lousa:
Substantivo, Artigo, Adjetivo, Numeral, Verbo, Pronome, Advérbio, Preposição, Conjunção e
Interjeição.
- Na última aula, nós estudamos os substantivos e os artigos. Hoje, vamos ver os adjetivos. Então,
o adjetivo é toda palavra que caracteriza o substantivo, que dá a ele qualidade, defeito, condição, e
por aí vai. O adjetivo varia em gênero, quer dizer, masculino e feminino, número, singular e plural,
e grau, aumentativo ou diminutivo. Por exemplo: "O menino está cansado". Nesse exemplo, quem é
o adjetivo?
- Cansado - respondem alguns alunos em coro.
- Isso. E ''cansado" está se referindo a quem?
- O menino - re~pondem dois alunos.
- Está se referindo ao "menino". E "menino" é uma palavra masculina e está no singular. Então,
o adjetivo ''cansado" também tem que estar no masculino e no singular. Tá bom?
Depois de dar mais dois exemplos de frases com substantivos e adjetivos (um no feminino
singular e outro no masculino plural), a professora escolhe um texto do livro didático, o poema
"Retrato", de Cecília Meirelles, e pede aos alunos que destaquem os adjetivos encontrados e digam
a que substantivo cada um deles se refere e se eles estão no masculino ou no feminino, no singular
ou no plural:

Retrato
(Cecília Meirelles)
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e fri as e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
.-ef
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?

Podemos notar que esse é um típico exemplo de aula na abordagem didática. Vale, porém,
explicar que não há demérito algum em trabalhar conteúdo gramatical em uma aula de língua
portuguesa. Muito pelo contrário: a gramática é parte fundante no processo de ensino e aprendizagem

PED AGOGI A DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 87


de línguas e, em alguns casos, pode ser, de fato, importante saber as regras gramaticais e seu
funcionamento.
Contudo, é preciso dizer que o ensino de gramática só faz sentido quando é contextualizado, isto
é, quando é parte de uma proposta de ensino consciente, para discutir determinado conteúdo do
currículo, em uma situação de aprendizagem específica. Na situação de aprendizagem descrita, notamos
que o empenho da professora Joana está exclusivamente em trabalhar, de forma genérica, os adjetivos
- buscando, inclusive, respostas genéricas em coro da turma - , sem contextualizá-los em relação ao
poema proposto para a atividade, no qual poderiam ser exploradas, por exemplo, questões atinentes
às mudanças ocorridas com o eu lírico e à relação dessas mudanças com os adjetivos usados no poema.
Voltaremos a essa questão do ensino de gramática em detalhes no capítulo 10.

Uso "correto" da língua

Na aula seguinte, ao apresentar a classe de palavras "numeral", a professora Joana escreve na


lousa o seguinte exemplo: "Sobraram três reais". Ela, então, faz o seguinte comentário:
- Prestem bem atenção a esse exemplo: "Sobraram apenas três reais". Três reais é singular ou
plural?
- Plural - respondem alguns alunos.
- Então, o verbo também tem que estar no plural. Por isso, o certo é "sobraram" e não ''sobrou"
três reais. É muito importante escrever e falar corretamente, fazendo a concordância correta.
Uma aluna, então, diz:
- Mas, professora, eu acho que eu sempre falo "sobrou três reais". Nunca falei "sobraram".
- Pois é, tem que falar corretamente, porque assim as pessoas vão ver que você estuda e sabe mesmo
o português.
Esse exemplo, tirado de uma aula sobre classe de palavras, também reforça o ensino de língua
(gramática) na abordagem didática; nele notamos que a professora Joana comenta uma questão de
concordância verbal de forma genérica e descontextualizada. Mais ainda, ao afirmar que "é muito
importante escrever e falar corretamente, fazendo a concordância correta'' e que "tem que falar
corretamente, porque assim as pessoas vão ver que você estuda e sabe mesmo o português", a professora
não apenas desconsidera os diferentes usos sociais da língua, que envolvem diferentes contextos
formais e informais nos quais a questão da concordância verbal pode se fazer ou não presente, mas
também reafirma um certo preconceito linguístico, já que parece estar implícito na sua fala que aqueles
que não "falam corretamente" são vistos como pessoas que não "sabem português", ainda que sejam
falantes nativos e tenham a língua portuguesa como língua nacional/oficial. Vale ainda destacar que,
na aula anterior, curiosamente, a própria professora faz um uso "incorreto" de concordância verbal
em sua aula ao dizer: ''As classes de palavras é como se classifica as palavras': .-.f'

Nomeando estruturas da língua

Dando continuidade ao ensino de classe de palavras com a mesma turma, ao abordar os verbos,
a professora Joana inicia sua aula da seguinte maneira:

88 ! LETRAMENTO S
111----------------------------------------------------
- Então, na última aula, a gente viu que existem três modos: Indicativo, Subjuntivo e Imperativo.
Hoje nós vamos ver como é a conjugação dos verbos no indicativo, começando com os verbos de
primeira conjugação. O que são os verbos de primeira conjugação?
Ninguém responde. Então, ela mesma continua:
- São os verbos que terminam em ''ar", como ''cantar", ''jogar" e ''falar". Vamos ver como fica a
conjugação do verbo ''jalar".
A professora, então, copia na lousa todas as pessoas gramaticais e os tempos verbais do modo
indicativo do verbo "falar" (presente, pretérito perfeito, pretérito imperfeito, pretérito mais-que-
-perfeito, futuro do presente e futuro do pretérito), conjugando cada um desses tempos verbais na
primeira, na segunda e na terceira pessoas do singular e do plural (eu, tu, ele, nós, vós, eles). Em
seguida, ela lê em voz alta cada um deles ("Eu falo, tu falas, ele fala, nós falamos, vós falais e eles
falam. Eu falei, tu falaste" etc.).
Um aluno, antão, repete duas conjugações em voz alta em tom irônico:
- Tu foste! Vós fostes! Que engraçado! Eu não falo assim.
A professora lhe responde da seguinte forma:
- Pode parecer um pouco estranho para vocês o "vós" porque ninguém fala mais hoje em dia, mas
ele existe em vários textos antigos. Por isso, temos que aprendê-lo.
O trecho acima é mais um exemplo de ensino de gramática na abordagem didática, em que se
percebe que a professora Joana trabalha com os tempos verbais por uma lógica de memorização e
de forma descolada de seus significados e de sua função comunicativa, isto é, dos diferentes efeitos
de sentidos que os tempos verbais podem produzir em contextos diversos de uso da língua. Ela
não explora com os alunos, por exemplo, o porquê do termo "pretérito perfeito" ou "pretérito
imperfeito" e as situações reais nas quais esses tempos verbais poderiam ser usados por eles. Ainda
nesse exemplo, poderia ser explorado o fato de o "pretérito mais-que -perfeito" não ser usado na
fala e na escrita cotidianas, nem mesmo em contextos mais formais.
O mesmo poderia ser discutido em relação às pessoas gramaticais, partindo da fala do aluno
que foi irônico e questionou o fato de não usar os pronomes pessoais "tu" e "vós". É interessante
notar nesse caso que a professora até esboça uma explicação para o não uso desses pronomes e
também uma justificativa para aprendê-los ("Pode parecer um pouco estranho para vocês o 'vós'
porque ninguém fala mais hoje em dia, mas ele existe em vários textos antigos. Por isso, temos que
aprendê-lo"), mas tanto a explicação quanto a justificativa são vagas, pois dizer que devemos
aprender a conjugar os verbos na segunda pessoa do plural usando "vós" pelo fato de este aparecer
"em vários textos antigos" não é definitivamente um argumento plausível para ensiná-lo, já que
isso se mostra bastante distante da realidade dos seus alunos. Ainda quanto aos dois pronomes, a
professora poderia também discutir como o "tu" é um pronome comum em algumas regiões do
Brasil, comparando-o com o seu correspondente "você", mais comum atualmente na maior parte
&pili. ~

Leitura e intepretação de textos literários

"História meio ao contrário"


Em uma aula para uma turma do 6º ano, a professora Joana procura trabalhar o trecho inicial
do livro História meio ao contrário, de Ana Maria Machado (Quadro 4.3). Ela inicia sua aula pedindo

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 89


aos alunos que leiam o texto silenciosamente, dando-lhes alguns minutos. Em seguida, escolhe dois
alunos aleatoriamente para ler o trecho em voz alta para a turma .

... E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como o raio de sol e viveram fe lizes para sempre ...

- Tem muita história que acaba assim. Mas este é o começo da nossa. Quer dizer, se a gente tem que começar em algum lugar,
pode muito bem ser por aí. Vai ser a história da filha desses tais que se casaram e viveram felizes para sempre. E a história dos filhos
começa é na história dos pais. Ou na dos avós, bisavós, tataravós ou requetatat ataravós - se alguém conseguir dizer isso e selem-
brar de todas essas pessoas.

- Bem, tem alguém que lembra. Índ io lembra. Em muitas tribos, pelo menos. [... ]
Mas isso é coisa de índio. Homem branco hoje em dia não liga mais para essa s coisas. Prefere saber escalação de time de futebol,
anúncio de televisão, capitais de países, marcas de automóveis e outras sabedorias civilizadas. Você sabe a história dos seus pais?
E dos seus avós? E dos seus bisavós? Eu também não sei muito, não. Mas, quando não sei, invento.

- Tem gente que gosta, acha d ivertido. Tem gente que só quer saber de histórias mu ito exatas e muito bem arrumadinhas - então
é melhor mudar de história, porque esta aqui é meio atrapalhada mesmo e toda ao contrário. Ela nem começou direito e já apare-
ceram aí em cima uns índios que não têm nada a ver com a história. Mas é que eu gosto muito de índios e piratas (por isso adoro
a história de Peter Pan) e toda hora eu lembro deles.

- Mas vamos começar de novo pelo começo .

...E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como um ra io de sol e viveram felizes para sempre ...
Quadro 4.3: Trecho do livro História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. São Paulo, Ática, 1979.

Por fim, a professora propõe duas questões de múltipla escolha sobre o texto:

Questão 1: "História meio ao contrário" se propõe a contar a história de:


a) Índios e piratas
b) Rei, rainha e princesa
e) Peter Pan
d) Pessoas comuns

Questão 2: A autora começa a história pelo final porque:


a) O final das histórias de contos de fadas sempre termina com "e foram felizes para sempre"
b) O começo dos contos de fadas é o que importa, e não o seu final
e) É bastante longa, começando com os requetatatataravós dos personagens
d) Quer que o leitor escreva um final para a história diferente

Já de início, podemos notar que a professora Joana se vale de certos expedientes da abordagem
didática, como a leitura em voz alta. Nesse caso, podemos perguntar: por que escolher dois alunos
aleatoriamente para ler o trecho em voz alta para a turma? Para trabalhar que tipo de conhecifilento?
Em relação ao trecho em questão, podemos dizer que, embora sua escolha tenha sido bastante
interessante para um trabalho de leitura sobre contos infantis, as questões propostas são limitadas
e problemáticas, com localização de informações superficiais e, ao mesmo tempo, ambíguas, que
não buscam, de fato, explorar a complexidade do texto. Além disso, ao se restringirem a questões
de múltipla escolha, as atividades procuram exclusivamente fazer com que o aluno encontre no
texto a resposta única, correta, não valorizando, portanto, a possibilidade de diferentes respostas
que tragam à tona a própria subjetividade dos aprendizes.

90 1 LETRAMENTOS
-7

As atividades de interpretação deixam, assim, de explorar dois pontos cruciais: o primeiro é o


fato de a história se iniciar ao contrário dos contos de fadas, que, em geral, terminam com "e foram
felizes para sempre". Ao anunciar que vai inverter a história, começando-a pelo final, inclusive
misturando-a a outras histórias (como a de "índios e piratas"), a autora busca não apenas trazer
para o seu texto um tom divertido, mas, sobretudo, questionar a própria possibilidade de pessoas
viverem felizes para sempre. O segundo ponto crucial, estreitamente ligado ao primeiro, diz respeito
à linguagem coloquial utilizada, que se aproxima muito de uma conversa informal, inclusive por
meio de questões como "você sabe a história dos seus pais? E dos seus avós?", cujo objetivo é fazer
com que o leitor pense e participe da história junto com a autora.

"Pardalzinho"
Em uma outra aula para a mesma turma, a professora Joana trabalha com os alunos o poema
"Pardalzinho", de Manuel Bandeira:

Pardalzinho
O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos! 2

Assim como na aula anterior, a professora pede aos alunos que leiam o poema silenciosamente
e, na sequência, escolhe um aluno para lê-lo em voz alta para a turma. Depois disso, ela pergunta
às crianças:
- O que vocês entenderam do poema?
- Fala de um passarinho que foi adotado porque tava com a asa quebrada, mas acabou morrendo
- diz uma aluna.
- Isso mesmo - responde, entusiasticamente, a professora.
- Eu já tive um canário belga. Ele morreu no começo do ano - diz um aluno.
- Eu também - diz um terceiro aluno.
- Ok, imagino que alguns de vocês já tiveram animais de estimação que morreram. Mas é assim
mesmo. A morte é uma coisa natural. Faz parte da vida. Agora, vamos voltar ao poema. Eu quero
que vocês prestem atenção às rimas do poema. Quais são as rimas presentes?
- 'Íisa" e "casa" - responde um dos alunos.
- "Vão" e "prisão" - diz um outro.
- "Voou" e "enterrou" - fala um quarto.
- Faltou algum?
-Não.
- Faltou. Vejam que falta "carinhos" e "passarinhos".

2 Manuel Bandeira. "Pardalzinho". Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1976.

PEDAG OGI A DO LETR AMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 91


Assim como no trecho de aula apresentado anteriormente, aqui também a professora Joana
inicia a atividade com a leitura em voz alta para trabalhar o poema, expediente típico da abordagem
didática. Em seguida, ela até procura, de alguma forma, explorar a temática do poema com seus
alunos ao perguntar-lhes o que "entenderam do poema", na tentativa de trazer para a aula a
compreensão, o horizonte de expectativas e os interesses dos aprendizes. Nesse sentido, podemos
notar que a pergunta consegue promover a participação de alguns alunos, que se identificam com
a questão, ao dizerem que também perderam seus pássaros de estimação. Contudo, a professora
interrompe a discussão e logo procura deslocar a atenção da classe para um aspecto formal do
poema: as rimas.
Ao não dar continuidade à exploração da temática da morte, Joana deixa justamente de explorar
a questão central do poema: a morte de um pássaro (um pardalzinho) que não suporta ter sua
liberdade cerceada e, por isso, acaba morrendo. Em outras palavras, podemos dizer que, para o
pássaro, a liberdade vale mais do que sua própria vida, que é alcançada apenas após sua morte. A
professora, nesse sentido, poderia ter explorado essa questão a partir dos relatos de experiências
de seus alunos, comparando-os com o poema e buscando fazer com que eles refletissem sobre o
próprio valor da liberdade, isto é, até que ponto valeria a pena abrir mão de ser livre para conseguir
receber carinho e afeto.

Aorganização do currículo de letramento: Acompanhando o plano


de aula, o livro didático e o professor
Transmitindo conhecimento estruturado e sequenciado

A professora Joana procura seguir à risca o plano de aula anual de sua disciplina no 8º ano, no
qual estão previstas as aulas, bem como o tempo necessário para ser trabalhado todo o conteúdo.
Para isso, ela faz uso constante do livro didático, que está adequado, capítulo por capítulo, semana
a semana, ao plano de aula da matéria.
Ao olhar para o plano de aula anual e verificar os pontos que estão previstos para o 4º bimestre,
uma aluna da turma faz, então, a seguinte reflexão:
- "Predicativo", "Transitividade verbal: objeto direto e indireto", "Adjunto adnominal", "Adjunto
adverbial". Uau! Nem sei o que essas coisas significam. Deve ser difícil!
A aluna, todavia, também sabe que, quando terminar o ano letivo e ela olhar novamente para
o plano de aula, o trabalho que fez meses antes parecerá fácil. Não é estranho que esse conteúdo
lhe pareça tão difícil no começo? No final de cada período, há provas formais, aplicadas para avaliar,
no caso de alguns alunos, o quanto estes aprenderam e estão aptos para seguir para o ano S$guinte,
ou, no caso de outros alunos, o quanto não aprenderam tanto quanto deveriam.
Organizar a transmissão do conhecimento nesse modelo é uma característica peculiar às culturas
modernas letradas e às pedagogias formalmente institucionalizadas. O estudioso francês do século
XVI Petrus Ramus é reconhecido como o precursor desse modelo, que representa um dos aspectos
mais distintivos da pedagogia do letramento na abordagem didática. 3 Um século depois da invenção

3 Ong, 1958.

92 1 LETR AMENTO S
da tipografia por Gutenberg, Ramus levou a lógica cultural da reprodução mecânica da palavra
escrita ao seu modelo de ensino, produzindo exposições detalhadas de conhecimento que mudaram
o seu centro de gravidade, antes localizado no escolasticismo e no diálogo socrático.
l!l
Veja: "Sócrates, a memória e a internet".

Nesse sentido, ao contrário de Sócrates, Ramus dirigiu os alunos para o texto impresso, mantendo
uma cópia idêntica para cada um deles. Seus livros, que chegaram a um número notável de cerca
de 1.100 edições, espalhando-se por grande parte do mundo intelectual da Europa moderna, lidavam
com dialética, lógica, retórica, gramática e matemática.
Do ponto de vista do que deveria ser ensinado, o conteúdo, Petrus Ramus não trouxe nenhuma
inovação. Seus livros eram escritos principalmente em latim, a língua comum da vida intelectual
em toda a Europa da Renascença, com os conteúdos dos textos clássicos - lembrando o antigo
passado europeu - abordando retórica ou dialética, por exemplo, consideradas importantes porque
faziam parte do legado cultural da Grécia e da Roma clássicas. A aprendizagem da gramática, do
mesmo modo, não era mais do que aprender as gramáticas do latim e do grego.

Veja: "Kalantzis e Cope sobre Petrus Ramus".

Contudo, se, por um lado, Petrus Ramus foi "retrógrado" no que diz respeito ao conteúdo,
por outro, seu método não o foi; muito pelo contrário, pois, pela primeira vez, a retórica e a
dialética foram formalizadas e colocadas em uma página de um livro -texto. Nas sociedades às
quais os textos greco-latinos se referiam, essas disciplinas eram aprendidas através da prática, e
não de um conjunto de regras a serem memorizadas. A partir de Ramus, no entanto, o conhecimento
passou a ser associado ao mundo visual silencioso, no qual os textos se constituíam por meio de
livros impressos, que organizavam o conhecimento em um layout de página espacial formalmente
ordenado. Ramus, portanto, inovou no modo como reorganizou e reproduziu o conhecimento
dos autores clássicos, de modo que pudesse ser ensinado, por meio de instruções aos professores,
transmutando -o de sua forma original para outra forma na qual pudesse ser aprendido. Nesse
sentido, pode -se dizer que, ao organizar formalmente o conhecimento a ser ensinado, Petrus
Ramus propôs algo, ainda que remoto, que seria o embrião da noção atual que temos de "currículo
escolar".
[!l·'~~~
~~ Veja: "Da universidade quinhentista de Paris para o mundo: Currículo e método em Petrus
(füj~ Ramus''.

--<
Aplicando o pensamento objetivo

A partir, então, de Petrus Ramus, uma nova lógica foi aplicada à forma como a informação era
organizada: uma lógica que prosseguia, para usar as palavras de Ong, "por definições e divisões a
sangue-frio, levando a ainda mais definições e mais divisões, até que todas as partículas do sujeito

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 93


fossem dissecadas e eliminadas".4 Nesse sentido, havia numerosas seções, divididas em subseções
e "subsubseções"; grânulos de conhecimento ordenados e marcados por uma estrutura feita de
várias camadas de títulos e subtítulos. Assim, o conhecimento ensinável foi estabelecido por meio
de um desdobramento sistemático e lógico, partindo dos grânulos mais fáceis e avançando para os
mais difíceis, usando-se as páginas do livro-texto como espaços a serem divididos em unidades de
tempo de aula. Cada grânulo do texto impresso era uma "aula" ou várias lições, uma seguindo a
outra até que o plano de aula semestral ou anual terminasse. Se o livro-texto nesse sistema pedagógico
se tornou um artefato-chave na transmissão do conhecimento, o professor se tornou um "conduíte"
para o conhecimento impresso, que respeitosamente seguia sua lógica na organização da sala de
aula e na transmissão do conteúdo do currículo.

Depois de várias semanas virando as páginas do livro didático, lição por lição, capítulo a capítulo,
era hora de ver o quanto os alunos da professora Joana tinham aprendido por meio de uma avaliação
ao final do ano. Eles realmente haviam compreendido as classes de palavras? Podiam classificar
todas elas? Sabiam o que era um substantivo comum de dois gêneros? O que era um verbo transitivo
direto? Um advérbio de modo? Tudo isso havia sido "avaliado" por meio de números, dispostos
em uma grade de "progresso escolar" ao longo do ano, no peculiar "jogo da educação".

Aprendizes se envolvendo com letramento: Copiando, repetindo,


memorizando e aplicando regras
"Pesquisando" e copiando textos da internet

Em uma seção do livro didático do 6Qano, há uma atividade relacionada a "fontes renováveis
de energià'. A professora Joana, então, decide levar seus alunos ao "laboratório de informática" da
escola para que pesquisem na internet sobre o assunto. Como há 30 estudantes na turma e o
laboratório possui apenas 15 computadores, Joana os divide (dois alunos por computador). Depois
que todos já estão sentados e quietos, ela pede que abram o Google e pesquisem sobre fontes
renováveis de energia, destacando que eles devem fazer buscas em, pelo menos, três sites distintos.
Passados cerca de 30 minutos, a professora solicita aos alunos que copiem em seus cadernos os
resultados das investigações realizadas, para levá-los para leitura e discussão em sala de aula. No
entanto, como a atividade de cópia dos textos pesquisados toma bastante tempo, a aula termina
antes que a turma possa retornar à sala, o que faz com que Joana adie a atividade pai;a, a aula
seguinte.
Esse exemplo é bem emblemático para percebermos a questão do uso da internet na escola. Isso
porque, apesar de tentar fazer com que seus alunos usem uma "nova tecnologia" - nova em relação
às tecnologias tradicionais de sala de aula, como o livro didático, o giz e a lousa -, a professora
continuou replicando práticas tradicionais de letramento, como a solicitação de cópia à mão dos

4 Idem, pp. 134-135 .

94 i LETRAMENTO S
textos pesquisados na internet, um expediente típico da abordagem didática, que, portanto, não
mobiliza diferentes tipos de valores, prioridades e sensibilidades dos letramentos com os quais
estamos familiarizados. 5

Afamigerada "redação escolar"

Na aula subsequente, a professora Joana trabalha a produção textual com seus alunos. Um dos
tópicos do conteúdo programático previstos para o 4º bimestre é a carta aberta. A professora, então,
inicia a aula dizendo:
- Hoje vocês vão escrever uma carta aberta. A carta aberta é do tipo argumentativo e tem com o
principal característica fazer com que a pessoa que está escrevendo possa expor em público suas
opiniões e suas reivindicações sobre um assunto, buscando convencer alguém sobre suas ideias. M as
a carta aberta é diferente de uma carta pessoal. Na carta pessoal, o que se trata são assuntos, como
o próprio nome diz, pessoais, que não dizem respeito a outras pessoas. Já na carta aberta, o assunto,
o problema, é de interesse coletivo, público. Então, a carta aberta pode ser utilizada para p rotestar
contra esse problema, mas também como um a forma de conscientização das pessoas ou de um
representante político, do governo, por exemplo, sobre esse problema. A carta aberta se divide nas
seguintes partes (a professora escreve na lousa) :

• Título - onde se destaca para quem é a carta aberta.


• Introdução - onde se aponta o problema a ser resolvido.
• Desenvolvimento - onde se apresentam os argumentos relacionados ao problema e o ponto de
vista de quem está escrevendo.
• Conclusão - onde se solicita uma resolução para o problema em questão.

- Agora, eu vou querer que cada um de vocês escreva uma carta aberta de, no máximo, 30 linhas
sobre um tema bastante atual que nós pesquisam os na aula anterior, lembram? Qual foi?
- Energia - responde um dos alunos.
- Isso. Fontes renováveis de energia - diz a professora - Vamos falar a respeito de como pode mos
reduzir os problemas de falta de energia usando f ontes renováveis. O que vocês pesquisaram na aula
passada no laboratório. Lembrando que o texto tem que ter título, introdução, desenvolvimento e
conclusão. E vocês têm até o final da aula para terminar e me entregar, tudo bem?
Podemos notar que, embora a professora Joana tenha trazido para sua aula um gênero textual
específico (a carta aberta) , o modo como ela o explora é típico da abordagem didática, na qual o
trabalho de produção textual se constitui com base no modelo da famigerada "redação escolar':
Primeiramente, ela apresenta formalmente o gênero, por meio de seu conceito e-r ua estrutura, para,
então, solicitar de seus alunos a produção individual de um texto sobre um tema genérico, cuja
única leitora será a própria professora, que, possivelmente na aula seguinte, devolverá as redações
aos alunos "corrigidas" (do ponto de vista ortográfico e gramatical).
Como a atividade de produção textual está centralizada na figura da professora, não há espaço
concreto para a participação coletiva dos alunos, que poderiam debater o problema de forma mais

5 Lankshear & Knobel, 2008 .

PEDAGOGI A DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁT ICA 1 95


específica, discutindo, por exemplo, como uma fonte renovável de energia alternativa poderia
resolver o(s) problema(s) de determinada região; ou, ainda, debater um problema local que alguns
moradores do próprio entorno da escola estariam enfrentando, buscando, desse modo, encontrar
uma solução para ele. Assim, o debate e a produção textual poderiam se constituir, de fato, em uma
oportunidade para a reflexão e a construção de um posicionamento dos alunos, e não em mera
tarefa a ser cumprida para a aula de língua portuguesa.

As relações sociais da aprendizagem no processo de letramento:


Autoridade no conhecimento da língua
"Testando a escrita"

Dez dias depois de os alunos haverem escrito um texto, em sala de aula, sobre o tema "fontes
renováveis de energia", a professora Joana lhes devolve as redações "corrigidas", nas quais destaca
os "erros" gramaticais e notacionais (ortográficos, de pontuação e de acentuação) que cometeram.
Ao valorar exclusivamente questões desse tipo nos textos dos estudantes, a professora corrobora
justamente a lógica de usar a produção textual em sala de aula como pretexto para "testar a escrità'
dos alunos, isto é, para avaliar o quanto estão "escrevendo bem", na perspectiva tradicional de
avaliação escrita.

Valorizando a conformidade
O historiador Harvey Graff descreve o papel do letramento no estabelecimento de um novo
sistema de ensino institucionalizado em massa no século XIX. Segundo o autor, o letramento foi
usado como um instrumento para inculcar "pontualidade, respeito, disciplina, subordinação",
contribuindo, desse modo, para moldar "uma força de trabalho controlável, dócil e respeitosa,
disposta e capaz de seguir as ordens". 6 Em outras palavras, a abordagem didática do letramento na
educação em massa se tornara uma importante ferramenta cultural na construção da sociedade
moderna. 7

[!]li'[!]
[!] ..
}
r,
- ·.• Veja: "Em busca do letramento: As origens sociais e intelectuais dos estudos sobre letramento".

De forma específica, a ordem social moderna na educação se constituiu por meio de uma ordem
espacial da sala de aula (alunos de frente para o professor, e não de frente um para o o__w:ro), de
uma ordem temporal do horário escolar (com um tempo destinado estritamente para a disciplina
voltada à leitura e à escrita e, outras vezes, a cada uma das demais disciplinas) e de um currículo
em geral (que permite avançar um passo após o outro, em uma sequência pré-ordenada).

6 Graff, 1979, p. 262.


7 Idem , 1987.

96 1 LETR AM ENTO S
No coração da abordagem didática está o livro didático, um material formal, autoritário, não
negociável, que não é apenas uma metáfora para um sistema de ordem social, no qual o texto escrito
assume um lugar sem precedentes, mas é, sobretudo, um meio crucial de socializar as crianças na
sociedade moderna. Nesse sentido, a pedagogia do letramento na abordagem didática representa
uma enorme ruptura na história da educação, na qual, com a exceção ocasional e parcial das elites
letradas, a maioria da população funcionava principalmente interagindo entre si, usando textos
orais mais fluidos e intersubjetivos. Antes do ensino obrigatório, a socialização, para a maioria da
população, ocorria apenas informalmente ao longo de suas vidas em suas comunidades. A pedagogia
do letramento na abordagem didática, por outro lado, apresenta uma razão muito particular e
quintessencialmente moderna, que leva massas de jovens para um novo ambiente social, tornando-
-os os tipos de pessoas necessárias para essa mesma ordem social. De fato, isso muda o mundo!
Mesmo no século XXI, a pedagogia do letramento na abordagem didática continua forte em
algumas escolas, constituindo-se, ainda, em uma força cultural muito poderosa, que posiciona o
professor, firme e autoritariamente, no centro do processo "instrucional". Isso é destacado nos PCNs
como uma "pedagogia tradicional", na qual o professor é visto como figura central, cujas funções
são definidas como de vigiar e aconselhar os alunos, corrigir e ensinar a matéria. A esse respeito,
vale trazer aqui todo o trecho do documento, que detalha muito bem como se constitui essa
pedagogia:

A metodologia decorrente de tal concepção baseia-se na exposição oral dos conteúdos, numa sequência
predeterminada e fixa, independentemente do contexto escolar; enfatiza-se a necessidade de exercícios
repetidos para garantir a memorização dos conteúdos. A função primordial da escola, nesse modelo, é
transmitir conhecimentos disciplinares para a formação geral do aluno, formação esta que o levará, ao
inserir-se futuramente na sociedade, a optar por uma profissão valorizada. Os conteúdos do ensino
correspondem aos conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações passadas como verdades
acabadas, e, embora a escola vise à preparação para a vida, não busca estabelecer relação entre os conteúdos
que se ensinam e os interesses dos alunos, tampouco entre esses e os problemas reais que afetam a
sociedade. Na maioria das escolas essa prática pedagógica se caracteriza por sobrecarga de informações
que são veiculadas aos alunos, o que torna o processo de aquisição de conhecimento, para os alunos,
muitas vezes burocratizado e destituído de significação. No ensino dos conteúdos, o que orienta é a
organização lógica das disciplinas, o aprendizado moral, disciplinado e esforçado. Nesse modelo, a escola
se caracteriza pela postura conservadora. O professor é visto como a autoridade máxima, um organizador
dos conteúdos e estratégias de ensino e, portanto, o guia exclusivo do processo educativo. 8

Explorando as conexões entre os "processos de conhecimento" e a


pedagogia do letramento na abordagem didática .-ef

O que podemos aprender com a abordagem didática? Muitas vezes, no passado, essa abordagem,
de fato, funcionou e, em muitos contextos atuais, é ainda bem-sucedida. Mesmo com críticas de
_alguns educadores a partir das perspectivas de outras tradições pedagógicas, como as abordagens
autêntica, funcional e crítica, que descreveremos nos capítulos seguintes, muitos alunos aprenderam

8 Brasil, 199 7, pp. 30-3 1.

PEDAGOGI A DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 97


coisas por meio da pedagogia do letramento na abordagem didática. Quais são, então, os ganhos
dessa abordagem que poderíamos correlacionar com os "processos de conhecimento" da pedagogia
dos multiletramentos?
Um dos pontos fortes da abordagem didática é seu foco no que chamamos de processos de
conhecimento de "conceitualização". Tal enfoque frequentemente envolve instrução explícita,
desvelando os esquemas acadêmicos que são a espinha dorsal de uma disciplina - seus conceitos,
os significados desses conceitos, as instâncias factuais que ilustram os conceitos, as características
desses conceitos e as relações entre conceitos. Nesse sentido, "conceitualizar" se conecta a antigas
tradições da abordagem didática, incluindo suas variantes mais modernas, como a "instrução direta'',
que se centram no conhecimento acadêmico, e não no aluno. No entanto, como é necessário reservar
um lugar para o conhecimento acadêmico estruturado, esse objetivo pode não estar necessariamente
em desacordo com uma abordagem cujo foco seja o aluno.
Tipicamente, o trabalho na abordagem didática é realizado de forma altamente individualizada,
e o conhecimento é considerado precipuamente cognitivo - algo que está na "cabeça do aprendiz",
como as coisas que ele pode absorver e reter na memória e no raciocínio, que gerarão respostas
corretas. A orientação de ensino, nesse caso, é muitas vezes focada em habilidades e treinamento
por meio de repetição.* A psicologia behaviorista estuda a aquisição de conhecimento na abordagem
didática, com sua teoria de estímulo-resposta ou recompensa-punição. Os educadores behavioristas
desenvolvem currículos que são cuidadosamente sequenciados, que progridem em etapas, até
chegarem ao "domínio" de um conteúdo ou disciplina. Quando há pouca motivação imediata ou
intrínseca do conhecimento em si, outras motivações extrínsecas de "recompensa'' e "punição" são
estabelecidas na forma, por exemplo, do famigerado modelo tradicional tripartite "IRA'' (iniciação
- resposta - avaliação), em que o professor inicia com uma pergunta, o aluno responde e o professor,
então, avalia as respostas usando expressões do tipo: "Não, isso não está certo" ou "Muito bem. É
isso mesmo!".
Entre os que defendem a abordagem didática estão Kirschner, Sweller e Clark, que, em um
importante periódico sobre psicologia educacional, argumentam que os aprendizes iniciantes devem
receber orientação instrutiva direta, na forma de informações que expliquem por completo os
conceitos e procedimentos que devem aprender.9 Para tanto, os autores recorrem à ciência cognitiva
para sua argumentação, alegando que a aprendizagem experiencial baseada em problemas coloca
uma carga irreal na memória de curto prazo, à medida que o aluno lida com novas informações.
Relacionar fatos, leis, princípios e teorias de uma disciplina à memória de longo prazo, argumentam
os autores, apoia uma aprendizagem mais duradoura. Então, concluem que "para alcançar a expertise
em uma determinada área de saber, os alunos devem adquirir os esquemas necessários ou estruturas
conceituais que lhes permitam interpretar informações de forma significativa e eficiente e identificar
a estrutura do problema". 1 º
A esses argumentos, também precisamos acrescentar o argumento cultural de que ambientes
imersivos, como as pedagogias do letramento na abordagem autêntica, que são orientadas para a

* Na versão original do livro, os autores fazem um jogo de palavras neste trecho do parágrafo (possível em função das
rimas das palavras na língua inglesa), em que relacionam a orientação de ensino na abordagem didática aos termos
skill and drill, para se referirem a uma caricatura popular, e drill and kill, para atribuírem um tom mais depreciativo.
(N. da T.)
9 Kirschner; Sweller & Clark, 2006.
10 Idem, p. 83.

98 1 LETRAMENTOS
experiência, tendem a favorecer os estudantes cujas culturas familiares e sensibilidades estariam
mais próximas da cultura escolar. Por outro lado, para os alunos cujas experiências se distanciam
mais da cultura de letramento escolar, o ensino explícito pode, às vezes, ser mais eficaz. Some-se
a isso a questão da eficiência - às vezes, pode ser mais eficiente definir conceitos e teorias do que
fazer com que os alunos "reinventem a roda epistêmicà', examinando a montanha de fatos e
redescobrindo procedimentos disciplinares. Finalmente, vale destacar que, enquanto os processos
de conhecimento de aprendizagem experiencial, que sustentam a abordagem autêntica, favorecem
o raciocínio indutivo, que vai do particular ao geral, a aprendizagem conceitual valoriza o raciocínio
dedutivo, que passa a atribuir sentido ao particular, porque o geral já faz sentido.
Outro processo de conhecimento que ainda precisamos mencionar em uma discussão sobre a
pedagogia do letramento na abordagem didática é o "experienciando o novo". Se, por um lado, a
abordagem didática negligencia os textos das vidas cotidianas dos estudantes (culturas familiares,
textos midiáticos ou cultura popular, por exemplo), isto é, não lida com o "experienciando o
conhecido", por outro, encoraja os estudantes a experienciar textos novos e muitas vezes desconhecidos,
considerados de alto valor literário, que lhes possibilitam acesso à cultura nacional.
Assim, apesar de todas as suas falhas, ainda há lugar em nossas pedagogias para algumas das
intravisões, dos métodos e dos tipos de atividades da abordagem didática. Todavia, defendemos
uma pedagogia mais equilibrada, que complemente o processo de conhecimento conceitual com
os outros processos de conhecimento (experiencial, analítico e aplicado).

Sumário

Conteúdo do letramento Regras formais, uso correto, leitura para apreensão do significa-
do e do cânone literário.

Organização do currículo de letramento Programa de estudos, o livro didático e o professor.

Alunos "fazendo letramento" Cópia, repetição, memorização e aplicação de regras.

Relações sociais do letramento Autoridade no conhecimento da língua.

Processos de conhecimento

1. Conceitualizando por nomeação


Inicie uma wiki definindo conceitos-chave na pedagogia dos letramentos: termos importantes na
análise de como a comunicação e a linguagem funcionam e são aprendidas. Mantenha atualizada
e estenda essa wiki enquanto você trabalha com este e os capítulos restantes deste livro.

2. Experienciando o novo
Localize uma fonte a partir da qual você pode ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia
do letramento na abordagem didática. Sua fonte pode ser um livro didático antigo ou uma entrevista
com um professor. Escreva sua própria análise das dimensões da abordagem didática sobre:
a. o conteúdo do conhecimento sobre letramento;
b. a organização do currículo de letramento;

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 99


c. alunos "fazendo letramento";
d. as relações sociais do letramento.

3. Experienciando o conhecido
Descreva um momento de aprendizagem em que você experienciou a abordagem didática. Como
foi esse momento? De que forma foi um momento de aprendizagem eficaz ou ineficaz para você?

4. Aplicando apropriadamente
Neste e nos três capítulos seguintes, você se envolverá com a teoria e a prática das quatro
abordagens principais do letramento: didática, autêntica, funcional e crítica. Escolha um tópico
de letramento que possa ser ensinado em uma aula e que exemplifique a abordagem didática.
Elabore um discurso hipotético professor-aluno no decorrer dessa atividade.

s. Analisando criticamente
Debata a proposta de Bento de Núrsia (São Bento) sobre as condições ideais de aprendizagem
(veja: <http:/ /newlearningonline.com/ new-learning/ chapter-8/ st-benedict-on-the -teacher-
andthe-ensinado> ).

6. Analisando funcionalmente
Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a abordagem didática seria mais e menos
apropriada.

7. Analisando criticamente
Considere uma atividade de aplicação particularmente apropriada da abordagem didática (para
um determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
essa aplicação, cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja o didático.

100 1 LETR AM ENTO S


Capítulo S
Pedagogia do letramento na
abordagem autêntica

Visão geral
As pedagogias do letramento na abordagem autêntica foram primeiramente formuladas como
contraponto direto à abordagem didática. Elas se tornaram bem conhecidas e influentes a partir
do começo do século XX, inicialmente por meio dos trabalhos de John Dewey, nos Estados Unidos,
e de Maria Montessori, na Itália. Quando relacionadas à leitura e à escrita, as pedagogias do
letramento na abordagem autêntica promovem uma espécie de "evolução natural", uma continuação
dos processos de aprendizagem da língua que se iniciaram com a aprendizagem da fala. Para tanto,
a abordagem autêntica recomenda imersão em experiências de leitura e escrita pessoalmente
significativas, com foco nos próprios processos de leitura e escrita, e não nas formalidades de regras
e adesão a convenções; trata-se, por isso, de uma abordagem centrada no aluno, que busca fornecer
espaço para sua autoexpressão. No que se refere à terminologia dos "processos de conhecimentos"
dos multiletramentos, as pedagogias do letramento na abordagem autêntica focalizam principalmente
os processos de conhecimentos experienciais.

***

Vitor é um aluno que acaba de ser matriculado em uma escola municipal que trabalha com a
pedagogia do letramento na abordagem autêntica. Ele foi transferido de uma escola de outra cidade,
.,!"
onde o ensino é pautado pela abordagem didática. Em seu primeiro dia de aula na turma da
professora Joana, Vitor acha tudo bem estranho. Parece que a aula da professora Joana acontece
em todo lugar. A primeira coisa que Vitor percebe é o arranjo das mesas, ordenadas em pequenos
grupos com os alunos de frente um para o outro. Isso é muito diferente da configuração da sala de
aula que havia frequentado na escola anterior.
- Bem-vindos a um novo ano escolar - diz a professora Joana alegremente. - Tenho certeza de
que será um ano maravilhoso!
Oconteúdo de letramento - Significados autênticos
1. Lili
Olhem para mim.
Eu me chamo Lili.
Eu comi muito doce
Vocês gostam de doce?
Eu gosto tanto de doce!

2. Lili em seu piano


Lili toca piano.
Lili toca assim Dó, ré, mi, fá ...
Suzete é a cachorrinha.
Suzete ouve Lili tocar.
Toca Lili, toca dó, ré, mi, fá ...

(A. Fonseca. Cartilha: O livro de Lili, 1961)

Quadro 5.1: Cartilha: O livro de Lili.

Se, no método fónico, o foco está


em como juntar sons para formar
palavras, o método analí.ico faz o
contrário. Inicia-se o processo de
ensino com palavras inteiras, frases
e até historietas completas, como é o
caso do trecho acima, retirado da
cartilha que se baseia na história de
Lili (O livro de Lili). Assim, enquanto
o método sintético, como o fónico,
se volta à decodificação de palavras,
trabalhando a relação entre os sons :
distintivos da língua (fonemas) e a
Eva ve a uva.
A
sua representação por meio de letras
(grafemas), o método analítico parte
Vovô ve o ovo. A

do pressuposto de que a leitura é um


processo natural, como a fala, bus- Yovô VIU a ave.
cando, primeiramente, o reconhe- A ave voa. A

cimento global do texto, da frase ou


da palavra, até chegar às letras e aos .o Ivo VIU a uva.
fonemas, ou seja, a progressão de
unidades de sentido mais amplas às
unidades menores. ~ -a Cl/lH.. V-Ó-Q.

Como podemos ver na figura ao


lado, para ensinar palavras e frases
1-Cvu ~ u ~-
inteiras, a atividade justapõe sen- 3_() j V-O V t,,U.,, O.., U;VU,,.
tenças com imagens, de modo que -!-
estabeleçam uma relação direta entre Figura 5.1: Cartilha das mães, de Arnaldo de Oliveira Barreto.

102 1 LETRAMENTO S
si. Além disso, a atividade explora a repetição de palavras que apresentam um fonema em comum:
/v/ ("Eva", "vê", "uva", "vovô", "ave", "voa", "Ivo" e "viu"). Assim, os alunos têm a chance de se
acostumarem com o som e a grafia das palavras que apresentam esse mesmo fonema, podendo,
então, adivinhá-las, já que, se conhecem algumas palavras na frase, mas não outras, provavelmente
poderão presumir as que não conhecem por meio do próprio padrão geral da sentença e por serem,
de alguma forma, palavras relacionadas a coisas comuns e familiares, isto é, ligadas às suas próprias
experiências de vida.
A Cartilha das mães, de onde a figura acima foi retirada, foi publicada ainda no final do século
XIX, período em que já se iniciavam no Brasil discussões acadêmicas sobre o método analítico.
Nessa cartilha, o foco do ensino da leitura eram as historietas, que resultavam da coordenação de
sentenças e de sua correlação com as imagens. Não havia atividades específicas que trabalhassem
a relação fonema-grafema, já que o ponto de partida era o significado de palavras inteiras, unidas
em sentenças simples. O objetivo, portanto, da atividade não era prover exercícios de memorização,
mas sim buscar a leitura autêntica para construir significados e, então, poder chegar às partes
menores constitutivas das palavras, e não o contrário.
Nesse sentido, diferentemente dos métodos sintéticos, que vão das "partes" para o "todo", os
métodos analíticos partem do "todo" para as "partes", pois representam uma "maneira de ensinar
introdução à leitura que começa com unidades completas de linguagem e mais adiante as divide
em palavras ou as palavras em sons";' uma maneira de "ensinar introdução à leitura começando
por partes ou elementos das palavras, tais como letras, sons ou sílabas, para depois combiná-los
em palavras': 2

Os métodos analíticos contêm alguns insights importantes sobre a natureza da leitura. Isso
porque, quando lemos algo que possui significado, lemos palavras inteiras ou mesmo grupos de
palavras, não sons de letras. Se fôssemos pronunciar isoladamente cada letra enquanto lemos, o
processo de leitura seria dolorosamente lento, e o sentido, se não impossível, difícil de construir.
Nós nos tornamos leitores fluentes não porque lemos cada palavra laboriosamente, mas porque
seguimos o fluxo da linguagem, pulando os detalhes alfabéticos. É por isso que os professores no
passado costumavam dizer aos jovens leitores que não mexessem os lábios durante a leitura silenciosa,
e é por isso que, quando revisamos o que escrevemos, costumamos ter dificuldade para perceber
os erros de digitação.
Um tipo de método analítico é o método "global". Ele destaca que o aluno aprende e desenvolve
sua linguagem em seu aspecto global, uma vez que a leitura seria uma atividade de interpretação
de ideias. Segundo Kenneth Goodman, em vez de "habilidades para atacar palavras, o programa
deve ser projetado para construir estratégias de compreensão. Crianças aprendendo a ler devem
sempre ver as palavras como partes de unidades maiores e significativas". 3 O método fônico,
de acordo com Goodman, é complicado demais para ser ensinado porque suas regras são muitas.
E, ainda que aprendamos as regras, muitas delas nunca se aplicam de forma con'§istente e orga-
nizada.
Para o autor, as regras e convenções que dizem respeito à relação fonema e grafema podem
ser mais bem aprendidas no próprio "curso de aprendizagem da leitura e da escrita, e não como

1 Harris & Hodges, 1999, p. 182.


2 Idem, p. 185.
3 Goodman, 2005, p. 3.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 103


-
um pré-requisito". 4 Assim, por exemplo, em vez de permitir que os alunos sejam prejudicados
pela ortografia, devemos deixá-los usar as grafias inventadas, pelo menos nos primeiros rascunhos,
uma vez que eles podem verificar suas grafias mais tarde ou aprender ortografias quando
encontrarem essas palavras em outros textos e/ou dicionários. Isso porque a leitura é um processo
de atribuir sentido ao significado e não pronunciar os sons das letras; por isso, o estudo da relação
fonema -grafema nunca deve ser desvinculado do contexto de significado das palavras e frases
reais. A linguagem não é uma abstração; é expressão significativa, 5 muito embora, como veremos
mais adiante, os protagonistas do outro lado das linhas de batalha nas "guerras de leitura"
discordem.

Método sintético Método analítico

Consiste em sintetizar sequências, dados ou átomos campo- Parte das sequências completas, sendo a tarefa analisá -las e
nentes. O método de recitação do bê-á-bá encaixa-se nesse ide ntificar os átomos.
tipo.
Mostra prime iro pa lavras ou frases e ensi na a iden tificar
Mostra primeiro as letras, ens ina suas correspondências com nelas as unidades componentes, as letras e os sons que lhes
sons e depois a co mpor com elas as sílabas e palavras. correspondem.
Quad ro 5.2 : Adaptado de Mi riam Lem le. Guia teórico do alfabetizador. São Pa ul o, Atica, 1998, pp. 42 -43 .

Da caneta para a página

Hoje a turma de Vítor está aprendendo caligrafia. O que, no entanto, difere essa aula de uma
"tradicional" é que isso não é formalmente trabalhado. Os alunos da professora Joana não têm que
copiar várias vezes as letras do alfabeto, começando com as linhas de cima para baixo, em seus
cadernos, para, então, escrever repetidas vezes frases sem sentido.* Ao contrário, Joana tem muitas
coisas na sua sala de aula para que os alunos possam ver e sentir as letras, como caixas cheias de
letras do alfabeto, que podem ser usadas para formar palavras. Tem também fotos de animais, com
nomes que começam com uma letra em particular e que tomam forma através das próprias letras,
como, por exemplo, uma serpente na forma da letra "s".


,-1!1·.• Veja: "Maria Montessori".
l!l .
Todos os dias, a professa Joana concede em suas aulas um tempo para os alunos desenharem e
sempre lhes diz para usar palavras que identifiquem seus desenhos. Vítor acha que as identificações
de algumas crianças são muito difíceis de ler. Porém, de vez em quando, a professora Joana diz a
seus alunos:
- Sua letra está ótima!
Ou então:
- Que letra é essa aqui? Vamos fazer essa letra ainda mais bonita?

4 Idem, 1993, p. 50 .
5 Idem, ibidem.
* No texto original, os autores usam o famoso pangrama "Toe quick brown fox jumps over the lazy dog" ("A rápida
raposa marrom pula sobre o cachorro preguiçoso"). Essa frase é bastante conhecida em inglês porque tem apenas
35 letras, sendo, portanto, a menor sentença em que todo o alfabeto da língua inglesa é usado. (N. da T.)

104 1 LETRAMENTOS
Processo de escrita: Pesquisas, rascunhos, conversas e publicação de textos

- Hoje, vamos escrever histórias e cada um vai escolher o seu próprio assunto. Eu quero que vocês
escrevam sobre coisas que realmente gostem, que realmente signifiquem algo para vocês - diz a
professora Joana.
Por mais inteligente que seja, Vitor acha difícil esse negócio de escrever sobre algo de que
realmente goste. Nunca fez isso na sua escola anterior. - Nossa, o que vou escrever? - ele pensa.
Depois de um pouco de agonia e de estímulos de alguns colegas, ele decide escrever sobre o
jogo Minecraft.
- Levaremos algumas semanas para escrever nossas histórias - diz a professora Joana. Isso porque
ela faz uso de uma abordagem que trabalha com um processo de escrita qenvolvendo pesquisas,
rascunhos, conversas e publicação de textos, seguindo alguns passos:
- Passo 1: vamos pensar nas nossas ideias, fazer algumas pesquisas, recolher algumas anotações;
passo 2: vamos escrever rascunhos; passo 3: vamos falar sobre nossos rascunhos; por fim, passo 4:
vamos publicar nosso trabalho finalizado em um pequeno livro que criaremos apenas para essas
histórias.
- Isso vai dar muito trabalho - Vitor pensa consigo mesmo. - Na escola que estudei antes, era
muito mais rápido do que isso para escrever uma história.
Vitor e seus colegas de turma, então, começam a trabalhar. A sala de aula se torna um espaço
de bastante conversa entre os alunos.
- O que você vai escrever? - Vitor pergunta ao colega do outro lado do pequeno grupo de mesas.
- Não sei - ele responde.
A professora Joana começa, então, a andar pela sala de aula para observar as crianças, que
iniciam seus projetos de escrita. Notando que um dos alunos (Jorge) está olhando pela janela, Joana
lhe pergunta:
- Então, o que você gostaria de escrever, Jorge? Me diga algo que o deixou surpreso ou feliz nos
últimos dias.
Ele pensa durante algum tempo e lhe responde:
- Meu time ganhou um jogo no domingo.
- Aí está, você pode escrever sobre a grande vitória de seu time - sugere a professora.
Enquanto isso, o texto de Vitor sobre o Minecraft começa a tomar forma. Ele diz:
- O Minecraft é muito legal porque pode construir um monte de lugar com blocos.
Em seguida, ele escreve algumas coisas sobre o jogo para poder se lembrar posteriormente: -
Joga sozinho, joga com outras pessoas com o avatar, pode faze blocos de madeira, mas tem que corta
árvore, de pedra, daí pega blocos do chão, pode faze fe ramentas de madeira, de ferro e de ouro.
Embora seu primeiro rascunho pareça bastante confuso, a professora Joana lhe diz:
.-ef
- Não se preocupe com isso.
Jorge parou novamente de escrever. Está preso em uma palavra. Então, pergunta:
- Como é que escreve ''empurrao"?
- Não se preocupe com isso agora, Jorge. Apenas escreva a palavra como você acha que é. Nós
vamos depois ver como se escrevem as palavras e como a gente usa a pontuação direitinho - responde
Joana.

PED AGOG IA DO LETR AM ENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 105


Reler, revisar, editar, revisar de novo, reescrever. Primeiro rascunho, segundo rascunho, rascunho
final. Essa turma, de fato, é bastante ocupada. E durante todo esse tempo, a professora Joana continua
andando pela sala, conversando com os alunos.
- Como está a história? Sobre o que ela é? O que você vai fazer? Você precisa de ajuda? - Ela faz
muitas perguntas aos pupilos.
- Agora, crianças, nós vamos ter uma conversa sobre as histórias - diz a professora depois que
eles fizeram um primeiro rascunho de suas histórias.
- Eu quero que todos voltem às suas mesas e leiam a história de um outro colega e digam a ele o
que vocês acham. Vocês vão olhar o seguinte: a história tem informação suficiente? A história tá bem
organizada (tem começo, meio e fim)? A pontuação foi usada corretamente? E as palavras estão
escritas corretamente?
,·[!l

il
l!l .
Veja: "Dwyer sobre escrita de conferência de processos".

Vítor, que ficou com o texto de Jorge, lê sobre os "impuroes" que o colega tomou durante a
partida de futebol. Não é uma história interessante para Vítor, porque ele não gosta muito de futebol.
Ele também não sabe a ortografia correta de "impuroes", mas, depois de pesquisar em um dicionário,
corrige a palavra e a adiciona à sua lista de ortografia pessoal.
Enquanto isso, a professora Joana anda pela sala, conversando com os alunos, um a um, sobre
a publicação do material.
- Vocês verificaram suas informações, a organização, a ortografia e a pontuação? - pergunta. -
Lembrem-se de que a melhor maneira de fazer isso é ler a sua história em voz alta para vocês mesmos
para ver se ela faz sentido para vocês. Usem também o dicionário para verificar qualquer palavra que
vocês não tenham certeza.
O barulho na sala de aula fica mais alto. Então, para a parte mais divertida do processo de escrita,
Vítor pensa: - Vamos fazer o livro!
Todo mundo transforma sua hístória em um pequeno livro, com uma capa de papelão bem
ilustrada e grampeada na borda. Foram algumas semanas de trabalho duro, mas valeu a pena, pensa
Vítor.

Leitura autodirigida

- Agora é a hora da leitura.


Nas aulas de leitura da sua escola anterior, Vítor costumava ler junto com a sua turma, em
uníssono, ou ouvia um aluho após o outro ler uma frase após a outra de trechos comuns dos mesmos
livros. ,ef

Todavia, na aula da professora Joana, existe um centro de leitura em um canto da sala, onde há
vários livros. Como primeira atividade de leitura do ano, a professora pede a cada aluno de cada
um dos grupos que escolha um livro. Depois disso, os alunos passam a receber um novo livro
sempre que tiverem concluído o livro anterior, dependendo de quanto tempo levaram para lê-lo.
- Vocês escolhem os livros. Eu dividi os livros em fácil, médio e difícil. Escolha o tipo de livro ou
o tipo de história que vocês gostariam de ler.

106 1 LETRAMENTOS
De vez em quando, a professora Joana pede a um aluno que comente com o grupo, ou mesmo
com a turma toda, sobre um livro de que tenha gostado particularmente.
A professora Joana lida com uma abordagem de ensino que surgiu na virada do século XX que
chamamos de "pedagogia autênticà'. Também é comumente chamada de "pedagogia progressistà',
mas escolhemos a palavra "autênticà' porque ela capta o sentido de naturalidade e relevância com
o qual esse tipo de perspectiva tentou se distinguir da abordagem didática (ver capítulo anterior).
John Dewey, nos Estados Unidos, foi um dos expoentes inovadores dessa nova filosofia do currículo
e, embora suas ideias possam ser tomadas como típicas de todo o movimento, ele certamente não
estava sozinho. Outros educadores, incluindo Maria Montessori na Itália, apresentavam uma crítica
amplamente similar à abordagem didática.
Pode-se dizer que as aulas de leitura e escrita da professora Joana são organizadas nesse espírito.
Em vez de conceitos abstratos e formais, em vez de uma disciplina para aprender as regras de uso
correto da língua, em vez de ter todos os alunos na mesma página ao mesmo tempo, o foco da
abordagem autêntica está nos significados autênticos, com a escolha de tópicos que realmente
interessam e envolvem os alunos, que são tratados como escritores, leitores e pensadores ativos,
criativos e livres.

Construção ativa de significados

Assim como a abordagem didática foi um produto de seu tempo e lugar, e, nesse sentido, um
produto cultural, a abordagem autêntica também o foi. Desde seu início, refletiu uma visão emergente
do tipo de educação apropriada para a sociedade moderna do século XX, em cujo coração estava
uma ideologia de mudança e progresso. O livro seminal de John Dewey A escola e a sociedade 6 abre
com um capítulo intitulado ''A escola e o progresso social", baseado em uma palestra proferida por
Dewey em 1899. Um aspecto desse progresso era celebrar o domínio da natureza pela moderna
sociedade tecnológica:

[A terra] é o grande campo de cultivo, a grande mina, a grande fonte de calor luz e eletricidade. E a grande
paisagem onde alternam os oceanos, os rios, as montanhas e as planícies de que toda a nossa agricultura
e atividade mineira de exploração florestal, todas as nossas entidades de fabrico e distribuição, não
consistem senão em elementos e fatores parciais. É através de ocupações determinadas por este meio
ambiente que a humanidade tem feito os seus progressos históricos e políticos. É através dessas ocupações
que a interpretação intelectual e emocional da natureza tem vindo a ser desenvolvida. É através daquilo
que fazemos no mundo e com o mundo que lemos o seu significado e avaliamos o seu valor. 7

Essa visão de mundo teve implicações importantes para a pedagogia escolar:Í sso significava
que havia um propósito cultural singular no currículo, que poderia ser atribuído a uma confiança
no progresso inevitável da sociedade industrial moderna. Por essa razão, Dewey centrou-se em
atividades práticas e experienciais, em vez da abordagem didática livresca. Contudo, como destaca
o próprio autor, na instituição escolar, essas atividades não devem se reduzir a meros "expedientes

6 Dewey, 2002 (1900].


7 Idem, p. 27.

PED AGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 107


práticos ou formas de ocupação rotineirà', mas "deverão ser, isso sim, centros ativos de descoberta
científica sobre os materiais e processos naturais, pontos de partida donde as crianças serão levadas
a compreender o desenvolvimento histórico do homem". 8
O progresso não era um valor que, na opinião de Dewey, seria compatível com uma "educação
tradicional", baseada exclusivamente em livros, especialmente manuais escolares, que seriam os
principais "representantes do conhecimento e sabedoria do passado", que ditavam "os padrões de
conduta apropriada" e que, consequentemente, previam que "a atitude dos alunos, de modo geral,
deveria ser de docilidade, receptividade e obediêncià'. 9 A educação progressista, na concepção de
Dewey, foi uma resposta direta à inadequação de um currículo didático que impunha o conhecimento
que vinha de cima e de fora. Para o autor,

à imposição de cima para baixo, opõem-se a expressão e o cultivo da individualidade; à disciplina externa,
opõe-se a atividade livre; a aprender por livros e professores, aprender por experiência; à aquisição por
exercício e treino de habilidades e técnicas isoladas, a sua aquisição como meios para atingir fins que
respondem a apelos diretos e vitais do aluno; à preparação para um futuro mais ou menos remoto, opõe-
-se aproveitar-se ao máximo das oportunidades do presente; a fins e conhecimentos estáticos, opõe-se a
tomada de contato com um mundo em mudança.'º

Dewey também es ava preocupado com a ideia de que um currículo didático tradicional
fosse aquele que impusesse "padrões, matérias de estudo e métodos de adultos sobre os que
estão ainda crescendo lentamente para a maturidade". Segundo o autor, esse tipo de currículo
fora aplicado por pura necessidade, mas seu conteúdo, em sua natureza, estava além do alcance
da experiência que os jovens aprendizes possuíam, e, por ser-lhes imposto, inseria-se em uma
pedagogia que era nada menos do que brutal e que estava prestes a ser vista como sem sentido
pelos alunos.

Figura 5.2: Frontispício de The Chi/d Centered Schoo/, texto escrito por colegas de John Dewey. À esquerda: .ef
"Liberdade! Iniciativa do aluno! Atividade! Uma vida de feliz intimidade - esse é o ambiente da nova escola".
À direita: "Olhos para frente! Braços cruzados! Sentem-se quietos! Prestem atenção!
Contexto de perguntas e respostas - esse era o regime do ouvir".

8 Idem, p. 28.
9 Idem , ibidem.
10 Idem, 1976 [1938], pp. 6-7.

108 J LETRAMENTOS
Aorganização do currículo de letramento: Pedagogia de processos
e crescimento da linguagem natural
Aprendizagem natural

Dewey expressou sua visão alternativa através da metáfora do crescimento orgânico: "dê tempo
à natureza para trabalhar". Isso exigiria uma transformação dos currículos e das salas de aula e iria
à raiz da maneira como o conhecimento é apropriado, até mesmo a ponto de questionar o status
dos próprios fatos.
Em vez de ser um receptor passivo de fatos, na pedagogia de Dewey, a criança assumiria o papel
de questionadora e experimentadora, por meio, então, de uma abordagem mais autêntica, que se
propusesse a remediar três males que, na sua visão, marcariam um currículo na abordagem didática:
o primeiro seria a falta de conexão orgânica com a vida da criança. Sem tal conexão, o conhecimento
e a aprendizagem seriam puramente formais e simbólicos. Dewey não negava que o símbolo era
importante; para o autor, tratar-se-ia de um produto da realidade passada e uma ferramenta para
exploração. No entanto, era preciso que simbolizasse de forma ativa e significativa, constituindo-se,
desse modo, em algo significativo para o aprendiz. Fatos linguísticos da gramática, por exemplo,
teriam que ter um 1-ignificado e um propósito evidentes, caso contrário não permaneceriam mais
do que meros símbolos, mortos e estéreis.
O segundo mal seria o fato de que o ensino tradicional didático, segundo Dewey, não daria
motivos para os alunos se tornarem motivados. Um fim que é próprio da criança a leva a querer
possuir os meios para sua realização. Nesse sentido, o currículo seria mais bem-sucedido em
condições de equilíbrio de demanda mental e suprimento material.
Em terceiro lugar, ele argumentava que um método típico da abordagem didática, para simplificar
as coisas e torná-las lógicas, teria removido a natureza mais complexa e instigante da realidade,
uma vez que o conhecimento seria apresentado como memorização, não como racionalização.
Nesse sentido, Dewey apontava que "a criança não obtém a vantagem nem da formulação lógica
adulta, nem de suas próprias competências nativas de apreensão e reação". 11

Dewey achava que havia uma política na abordagem didática na qual ele não podia se inscrever,
pois, segundo o autor, constituiria um currículo promovedor das virtudes negativas da obediência
e da submissão. Era, então, mais "adequado a uma sociedade autocráticà' do que a uma sociedade
na qual a responsabilidade pela própria conduta e pela conduta do governo recaísse sobre os
cidadãos. Isso teve implicações que influenciaram a micropolítica da sala de aula. Nesse sentido,
"a função do professor deve mudar de um cicerone e ditador para a de um observador e ajudante". 12
Contemporânea de Dewey, Maria Montessori (1870-1952) foi a primeira mulher médica da
Itália. Ela ajudou a estabelecer a Casa dei Bambini, em 1907, uma pré-escola em""'á rea pobre de
Roma, projetada para receber crianças cujos pais trabalhavam fora. Montessori acreditava que o
principal papel dos educadores era ajudar as crianças a ensinarem a si próprias em um ambiente
livre, mas estruturado, e que a separação entre escola e casa (ou comunidade) deveria ser reduzida
o máximo possível.

11 Idem, 195 6 [1902], pp. 24- 26.


12 Dewey & D ewey, 195 6 [1915 ], p. 172.

PEDAGOG IADOLETR AM ENTO NA ABORDAGEM AUTÊ NTI CA 1 109


fl
_
l!l .
·. Veja: "Maria Montessori, a médica que valorizou o aluno".

Montessori ensinava a formação de frases e, apenas incidentalmente, a gramática. Assim, em


vez de segmentar as sentenças, ela fazia com que os alunos formassem suas próprias, organizando
palavras impressas em cartões em frases dispostas em compartimentos de caixas. A esse respeito,
a autora afirmava, com veemência, que a gramática iria parecer, de fato, diferente para o jovem
aluno, se, em vez de ser o cruel assassino que quebrava a frase em pedaços para que nada pudesse
ser compreendido, ela se tornasse a ajuda amável e indispensável para a construção do discurso
conectado. 13

li·,
l!l
Veja: "Parâmetros Curriculares Montessorianos para as Classes do 1 º Segmento do Ensino
. ::, Fundamental - 6 a

Aprendendo a significar
12 anos".

A turma da professora Joana agora está trabalhando com a turma de Vítor um conjunto de
atividades integradas sobre ciências que ela planejou, sem usar um livro didático. Esse conjunto de
atividades prevê um período de quatro semanas para ser concluído, no qual serão muito trabalhadas
a leitura e a escrita. A combinação de atividades de leitura e escrita e de ciências dá aos alunos mais
tempo para realizar o trabalho.
- Agora, vamos estudar ecossistemas. Eu quero que vocês escolham um ecossistema para estudar
- floresta, mar, lago, deserto, o que lhes interessar. Na verdade, se vocês quiserem, podem fazer esse
trabalho em grupos, trabalhando em um ecossistema em que todos estejam interessados. Dessa forma,
vocês podem compartilhar recursos e ajudar uns aos outros com os relatórios que vão fazer sobre os
ecossistemas.
- Vocês vão precisar pegar livros da biblioteca, pesquisar na internet e anotar todas as fontes que
usarem. Vocês também vão precisar fazer um desenho que mostre como funciona seu ecossistema.
Então, vocês vão fazer um projeto descrevendo o funcionamento do ecossistema escolhido. Lembrem-
-se, é um sistema em que as coisas estão interligadas. É por isso que chamamos de ecossistema. Durante
todo o tempo de projeto, vocês vão ter que ler para escrever, escrevendo sobre o que estão lendo e lendo
os textos uns dos outros. E tudo isso para poder fazer um bom projeto de ciência!
- Nossa, é muito trabalho - pensa Vítor. - Como isso vai se juntar para a gente entender o que
realmente acontece em um lago? [ecossistema escolhido por Vítor]
No final do trabalho, contudo, ele se deu conta de que aprendera a pesquisar e a descobrir
informações. Ele também pôde, de fato, perceber, por meio das aulas da professora Joana, o quanto
um relatório científico era diferente do relato que havia escrito em aulas anterioiÍs sobre suas
experiências com o jogo Minecraft.
Além disso, gostou muito de apresentar seu projeto à turma na forma de um pôster, pois Joana
havia colocado todos os cartazes na parede da sala de aula, para que os demais projetos concluídos
pudessem ser vistos e apresentados, mostrando que, apesar de descreverem ecossistemas distintos,
os modelos que os alunos haviam desenhado pareciam bastante semelhantes.

13 Montessori, 1973 [1917].

110 1 LETRAMENTOS
Por que aprender desse modo? Para responder a essa pergunta, recorremos ao termo cunhado
por Kenneth Goodman: "método global",* que defende que o texto permanece significativo e
intencional apenas quando é considerado em seu nível mais amplo (global). A esse respeito,
Goodman usa como analogia o modo como as crianças aprendem a língua oral: um processo de
desenvolvimento na interação significativa de textos orais entre elas e os adultos. Segundo o autor,
como as línguas escritas e orais apresentam todas as mesmas características básicas, as crianças
devem aprender a usar a língua escrita através de um ensino que trabalhe de maneira diretamente
análoga ao modo "natural" como elas aprendem a língua oral. Para Goodman, imersão e muita
leitura e escrita ativas, que estabeleçam relação com os interesses, a experiência e as intenções da
criança, são as melhores maneiras de aprender. Nesse sentido, a aprendizagem deve ser centrada
na relevância, no propósito, no respeito, no significado e no poder, com o aluno estando no controle
dos significados, sentindo algum grau de poder como construtor de conhecimento, vendo-se
envolvido em um trabalho com propósito definido e sendo respeitado por sua contribuição. 14
Um currículo voltado ao método global, como consequência, baseia-se em uma gama de "recursos
autênticos", na experiência do aluno e em suas intenções de comunicação, em vez de fundamentar-se
em fatos formais linguísticos a serem ingeridos. É assim que toda uma abordagem relacionada ao
método global pode ser relevante, na medida em que incentiva o aluno a usar a língua para seus
próprios propósitos, uma vez que esse método não se centra na língua in abstracto, mas no significado
que a criança realmente quer comunicar, respeitando sua individualidade e suas diferentes experiências
de vida. Assim, ao dar aos alunos um senso de controle e apropriação de sua própria língua, em
termos políticos mais amplos, dá-se também uma noção de seu poder potencial como atores sociais.
1!11r;;~r-.~
7-, Veja: "Método global".
r.:
l!Jirj ,J ~
Vitor, então, explica seu processo de leitura e escrita:
- Na primeira vez que li sobre o ciclo de vida de um lago de água doce, eu procurei em uma
enciclopédia. Daí eu fiz uma lista de tópicos. Fiquei pensando: Existe mais um tópico que eu devia
colocar? Agora eu tenho seis: plantas, animais, cadeia alimentar, fotossíntese, nutrientes, poluição.
- Será que é demais? Mas eu tenho muita informação, então agora acho que está tudo bem. Vou
procurar mais dois livros antes de começar meu relatório, porque acho que preciso de mais informações.
- Além disso, tem uma lagoa no final da rua. Tenho que me lembrar das coisas que vi lá.
Vitor acha que tem uma colcha de retalhos de anotações, desenhos e ideias. Gradualmente,
começa a reunir seu trabalho em um relatório científico. No terceiro esboço que faz, já há partes
que ficaram claras:

1. Por que estudamos ecossistemas.


2. As partes de um ecossistema da lagoa.

3. Como funciona um ecossistema da lagoa.


4. Danos aos ecossistemas.
5. Como cuidar de nossos ecossistemas.

* O termo original, em inglês, é whole language, que se constitui em um método analítico que, em português, foi tradu-
zido como "método global". (N. da T.)
14 Goodman, 2005.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 111


Veja: "Graves sobre o ofício da escrità'.

Donald Graves e Donald Murray são grandes referências acerca da noção de "escrita como
processo" que, em contraste com as tradições mais antigas de ensino de escrita, argumenta Murray,
mantém o interesse e a intenção do estudante em seu núcleo. No entanto, ainda segundo esse mesmo
autor, as atribuições do professor inibem o que os alunos têm a dizer.
Nessa perspectiva da escrita como processo, a professora Joana definiu um parâmetro amplo na
turma de Vitor, por meio do conceito de ciência como "ecossistema". Além disso, ela também
propiciou a seus alunos meios através dos quais

o aluno encontra seu próprio assunto. Não é tarefa do professor legislar a verdade do aluno. É da
responsabilidade do estudante explorar o seu próprio mundo com a sua própria língua, para descobrir o
seu próprio significado. O professor apoia, mas não direciona essa expedição à própria verdade do aluno. ' 5

A esse respeito, Graves destaca que as crianças devem escolher seu próprio tópico para ganhar
um senso de propriedade. A partir desse ponto de partida, "o processo de escrita tem uma força
motriz chamada voz", com o papel do professor não sendo o de transmitir conhecimento, mas o
de aguardar para ajudar quando for necessário, enquanto a criança luta pelo controle. Como
resultado, os tópicos e informações iniciados pelos alunos são primários, não são convenções. Nesse
sentido, a escrita na sala de aula é concebida não como uma "questão de aprender e aplicar
corretamente as convenções, mas como uma série de etapas (um processo, aberto a qualquer
conteúdo): pré-escrita, rascunho, conversa, edição, publicação". 16

Aprendizes praticando letramento: Aprendizagem ativa e imersão


experiencial
Aprendizes diferentes veem efazem coisas diferentemente uns dos outros

A professora Joana diz:


- Vamos ler um livro agora.
Espalhados pela sala de aula, alguns alunos estão sentados em suas carteiras, enquanto outros
se encontram deitados no carpete lendo os livros que escolheram. Vitor percebe que a colega da
frente está lendo uma obra lida por ele semanas antes e da qual ele gostou muito; trata-se da história
de um garoto que, vendo uma pessoa em apuros na praia em meio a ondas bem grande~ avisa as
três mulheres salva-vidas, que imediatamente saem para resgatá-la.
Vitor e alguns colegas começam a falar sobre o livro:
- Eu realmente gostei das três salva-vidas. Imagine entrar nessas grandes ondas para salvar uma
.pessoa. Elas foram muito corajosas - diz Luana.

15 Murray, 1982, p. 129 .


16 Graves, 2003, p. 227.

112 [ LETR AMENTO S


- Eu acho que o garoto da história foi o verdadeiro herói - opina Vincent. - Ele viu que havia
uma pessoa com problemas e chamou as salva-vidas.
Quem é o herói da história? a) o menino; b) as salva-vidas; c) as pessoas da ambulância; d) não
há heróis, pois todos estavam fazendo apenas o seu próprio trabalho. Todas as quatro respostas
podem estar corretas.
Como esse tipo de pergunta é bastante comum nas aulas da professora Joana, ela certamente
não esperaria uma resposta certa ou errada. Em vez disso, pergunta:
- O que você entendeu da história?
É claro que há perguntas, cujas respostas seriam consideradas certas ou erradas, como, por
exemplo: Em que dia isso aconteceu? a) sábado; b) domingo; c) quarta-feira; d) o autor não informa
o dia da semana. Nesse caso, bastaria ao leitor procurar no texto o dia da semana correto. No
entanto, Vitor ficou tão envolvido com o fluxo da história que não prestou atenção no dia em que
ela ocorreu. Se a professora Joana fizesse essa pergunta, talvez fosse possível responder corretamente,
mas a informação de fato, não era importante para a narrativa. Em vez disso, Vitor - isso sim é
realmente bem mais interessante - se engaja em uma boa discussão com sua colega sobre o que
faz um herói.
No final da conversa, embora Vítor e a colega tenham chegado a conclusões diferentes sobre a
história, os dois se sentem bem, pois a interpretação de cada um foi valorizada e respeitada. A
leitura é uma atividad não apenas divertida, mas, nesse caso, se torna um meio através do qual os
alunos ressignificam suas identidades, em vez de dizerem um para o outro que estão certos ou
errados.
O trecho acima levanta um ponto importante sobre a leitura. Diferentes leitores leem coisas
diferentes em uma mesma história, dependendo de seus interesses e experiências. A leitura não
é apenas uma questão do que o autor diz, é também uma questão de interpretação. Um leitor,
quando lê bem, não lê a verdade no texto, mas sim seus próprios significados. Nesse sentido, a
leitura constitui um processo de construção de significado ativo, não um canal neutro para
comunicar fatos compreensíveis. Por isso, testes de leitura com respostas de múltipla escolha
parecem bastante limitados para avaliar certos tipos de conhecimento relacionados à compreensão
leitora.

Gerando motivação

No que diz respeito ao processo de ensino e aprendizagem de leitura e escrita, os princípios de


motivação, experiência e atividade de Dewey se traduzem em práticas que marcaram uma ruptura
dramática com a abordagem didática, na medida em que o autor considerava a língua como algo
social e proposital, em vez de algo abstrato e formal. Nesse sentido, a aprendizagem de tÍma língua,
segundo Dewey, deveria envolver atividades em que os alunos tivessem "algo a dizer, em vez de ter
que dizer algo". O ensino de línguas, em outras palavras, deveria ser "feito de forma relacionada,
como a consequência do desejo social da criança de contar suas experiências e receber em troca
as experiências dos outros". 17

17 Dewey, 1956 [190 2], pp. 55-56.

PEDAGOGIA DOLETR AM ENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTI CA 1 113


- Eu acho que o garoto da história foi o verdadeiro herói - opina Vincent. - Ele viu que havia
uma pessoa com problemas e chamou as salva-vidas.
Quem é o herói da história? a) o menino; b) as salva-vidas; c) as pessoas da ambulância; d) não
há heróis, pois todos estavam fazendo apenas o seu próprio trabalho. Todas as quatro respostas
podem estar corretas.
Como esse tipo de pergunta é bastante comum nas aulas da professora Joana, ela certamente
não esperaria uma resposta certa ou errada. Em vez disso, pergunta:
- O que você entendeu da história?
É claro que há perguntas, cujas respostas seriam consideradas certas ou erradas, como, por
exemplo: Em que dia isso aconteceu? a) sábado; b) domingo; c) quarta-feira; d) o autor não informa
o dia da semana. Nesse caso, bastaria ao leitor procurar no texto o dia da semana correto. No
entanto, Vitor ficou tão envolvido com o fluxo da história que não prestou atenção no dia em que
ela ocorreu. Se a professora Joana fizesse essa pergunta, talvez fosse possível responder corretamente,
mas a informação de fato, não era importante para a narrativa. Em vez disso, Vitor - isso sim é
realmente bem mais interessante - se engaja em uma boa discussão com sua colega sobre o que
faz um herói.
No final da conversa, embora Vitor e a colega tenham chegado a conclusões diferentes sobre a
história, os dois se sentem bem, pois a interpretação de cada um foi valorizada e respeitada. A
leitura é uma atividade não apenas divertida, mas, nesse caso, se torna um meio através do qual os
alunos ressignificam suas identidades, em vez de dizerem um para o outro que estão certos ou
errados.
O trecho acima levanta um ponto importante sobre a leitura. Diferentes leitores leem coisas
diferentes em uma mesma história, dependendo de seus interesses e experiências. A leitura não
é apenas uma questão do que o autor diz, é também uma questão de interpretação. Um leitor,
quando lê bem, não lê a verdade no texto, mas sim seus próprios significados. Nesse sentido, a
leitura constitui um processo de construção de significado ativo, não um canal neutro para
comunicar fatos compreensíveis. Por isso, testes de leitura com respostas de múltipla escolha
parecem bastante limitados para avaliar certos tipos de conhecimento relacionados à compreensão
leitora.

Gerando motivação

No que diz respeito ao processo de ensino e aprendizagem de leitura e escrita, os princípios de


motivação, experiência e atividade de Dewey se traduzem em práticas que marcaram uma ruptura
dramática com a abordagem didática, na medida em que o autor considerava a língua como algo
social e proposital, em vez de algo abstrato e formal. Nesse sentido, a aprendizagem~uma língua,
segundo Dewey, deveria envolver atividades em que os alunos tivessem "algo a dizer, em vez de ter
que dizer algo". O ensino de línguas, em outras palavras, deveria ser "feito de forma relacionada,
como a consequência do desejo social da criança de contar suas experiências e receber em troca
as experiências dos outros': 17

17 Dewey, 1956 (1902), pp. 55-56.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 113


Um exemplo notável da adoção desse princípio foi o relato de Dewey de que, em muitas escolas,
tipos móveis de impressão estavam sendo instalados não propriamente para ensinar o ofício
relacionado à impressão de materiais, mas para que as próprias crianças pudessem imprimir alguns
panfletos, pôsteres ou outros documentos necessários. Elas estavam motivadas a fazer isso, não
apenas porque tinham achado o equipamento interessante, mas porque havia uma boa razão para
produzir materiais impressos.
Nessa mesma linha, a experiência da escola de William Wirt, em Gary, Indiana, EUA, foi citada
por Dewey como evidência de que a aprendizagem de línguas seria mais poderosa quando ligada
a uma finalidade prática. Em várias escolas sob a superintendência de Wirt, foram realizadas aulas
de língua inglesa envolvendo atividades de carpintaria e culinária, por exemplo; nelas, questões
gramaticais eram trabalhadas de forma natural, no próprio curso das atividades práticas, mas com
uma finalidade cultural para o ensino: a aquisição "correta" do inglês-padrão, que parecia ser
necessária para propósitos práticos em um ambiente social industrial moderno. 18
Em resumo, o valor para o aluno das aulas de inglês de forma "aplicadà' lhe dá uma "razão para
escrever", com o aprimoramento se tornando "uma demanda natural de experiêncià'. 19 Todavia,
essa concepção de língua não fez concessões ao fato de que as experiências de estudantes fora da
escola podem ser muito diferentes, sejam eles falantes nativos de outras línguas ou falantes de
dialetos não padrão. Nesse sentido, havia pressupostos culturais em ação nessa abordagem, em que
a atividade motivada do aluno representava uma ferramenta pedagógica no interesse do progresso
e da modernidade; porém, mesmo que seus métodos de ensino e aprendizagem fossem diferentes,
esses pressupostos culturais eram tão poderosamente unânimes quanto os da abordagem didática,
como, por exemplo, o objetivo comum de aquisição da gramática "corretà', ainda que tal objetivo
fosse alcançado por outros meios.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que o currículo da professora Joana é um pouco assim também.
Todos os alunos acabarão por ler os mesmos livros: aqueles considerados "bons" ou "adequados"
para eles. Embora use 1.1m meio mais gentil e próximo de seus aprendizes, Joana deseja que todos
eles apreciem a mesma "boa" literatura e aprendam as características universais de uma "boà'
história escrita. Ao longo do caminho, do mesmo modo, ela espera que eles também aprendam a
ortografia correta e os hábitos da "boà' gramática.

As relações sociais na aprendizagem de leitura e escrita:


Autoexpressão em uma pedagogia centrada no aprendiz
Valorando a autenticidade
.ef
Há uma "economia moral" na pedagogia do letramento na abordagem autêntica, para usar uma
frase cunhada pelo historiador E. Thompson.2º Por "economia moral", entendemos as normas sociais
que governam as relações interpessoais - no nosso caso, a relação entre professores e aprendizes,
.à medida que estes aprendem a ler e escrever.

18 Dewey & Dewey, 1956 [1915].


19 Idem, p. 85 .
20 Thompson, 1971.

114 \ LETRAM EN TOS


Na pedagogia do letramento na abordagem autêntica, os interesses e motivações do aprendiz
são o foco da leitura e da escrita, e não as expectativas de leituras fixas e a compreensão de supostos
fatos no texto. Nesse sentido, os professores se tornam fontes profissionais autônomas de aprendizagem,
em vez de intermediários em uma relação rigidamente governada entre conteúdo curricular, livro
didático e avaliações formais. Assim, os docentes constituem não figuras de autoridade que
transmitem conteúdos inegociáveis, mas responsáveis por construir um ambiente mais sintonizado
com os processos de aprendizagem e, mais do que tudo, responsáveis pela criação de um ambiente
acolhedor que contribui para a afirmação e a formação do próprio sujeito aprendiz.
Ao mesmo tempo, a abordagem autêntica abre linhas horizontais de comunicação entre os
alunos; sua visão é direcionada uns para os outros, e não apenas para o professor e sua lousa na
frente da sala de aula. Com isso, os aprendizes conversam muito entre si, não somente quando o
professor pede que eles levantem as mãos para falar e não apenas um de cada vez, como normalmente
acontece na abordagem didática. Os alunos aprendem trabalhando juntos, com a leitura e a escrita
se tornando atividades saciáveis.
Também é possível - até mesmo desejável em alguns momentos - criar instrução individualizada,
apropriada às necessidades dos alunos em diferentes estágios de desenvolvimento de sua aprendizagem,
para que possam, assim, trabalhar no seu próprio ritmo, tanto individualmente quanto em grupos,
nem todos tendo que estar na mesma página do livro didático ao mesmo tempo.

Veja: "Blackburn e Powell sobre a instrução individualizadà'.

Contudo, a pedagogia do letramento na abordagem autêntica não deixa de ter suas limitações,
que inovações pedagógicas posteriores, como as abordagens funcional e crítica do letramento,
tentam, de alguma forma, compensar. A primeira limitação é que os pressupostos culturais subjacentes
à abordagem autêntica são frequentemente menos explícitos do que parecem. No caso de Dewey,
uma visão particular do progresso motivou seus pontos de vista sobre a aprendizagem da língua e
as práticas de leitura e escrita. Nessa visão, a diferença cultural era algo que as escolas precisavam
apagar ou, pelo menos, escamotear. Nesse sentido, Dewey destaca:

Em um país como o nosso, existe uma variedade de raças, afiliações religiosas e divisões econômicas.
Dentro da cidade moderna, apesar de sua unidade política nominal, há provavelmente muito mais
diversidade em termos de comunidades, costumes, tradições, aspirações e formas de governo ou controle
do que existia em um continente inteiro em uma época anterior. 21

Assim, como uma espécie.de "solução" necessária para essa situação, haveria "a força assimilativa
da escola pública americana". Somente através da educação pública, argumentava Dewey, "as
forças centrífugas criadas pela justaposição de diferentes grupos dentro de uma mesma unidade
política podem ser contrariadas". Por essa perspectiva, o currículo em si seria um instrumento
22

para a criação de uma nação moderna, culturalmente uniforme. A "disciplina comum busca
acostumar tudo a uma unidade de perspectiva sobre um horizonte mais amplo do que é visível
para os membros de qualquer grupo enquanto está isolado". 23 Assim, é possível notar que os

21 Dewey, 1966 [1916], p. 25.


22 Idem, ibidem.
23 Idem, pp. 21-22.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA \ 115


objetivos dessa abordagem não mudaram significativamente em relação à abordagem didática,
na qual ainda subjaz a ideia de criação de uma cidadania homogênea que funcionaria em conjunto
com a lógica industrial moderna.

Letramento para o mundo moderno

Havia algumas razões sociais bastante pragmáticas pelas quais o currículo didático não era
mais considerado apropriado na educação do século XX, posto que o mundo se tornara
tremendamente ampliado e complicado, não apenas em termos de transporte e comunicações,
mas em virtude das contínuas descobertas científicas. Era um mundo onde as coisas estavam
mudando o tempo todo, o que tornaria os fatos complicados contraproducentes. Isso só serviu
para destacar ainda mais a crescente irrelevância da abordagem didática - a "desesperança do
ensino com listas de fatos". 24
Ao situar a aprendizagem da leitura e da escrita no contexto dessas grandes mudanças históricas,
a pedagogia do letramento na abordagem autêntica representou uma transformação em relação
ao que Cook-Gumperz chama de preocupação do século XIX com o "letramento como uma
ferramenta de estabilidade social e uma ênfase emergente do século XX no letramento como
uma tecnologia fundamental sobre a qual sociedades modernas dinâmicas e em constante mudança
são construídas". 25
Nesse contexto, o currículo centrado no aluno se tornou, assim, um dos principais dispositivos
da pedagogia do letramento na abordagem autêntica. No entanto, uma das coisas que poderíamos
constatar a partir das aulas da professora Joana seria que, uma vez retirado o livro didático,
ficaria menos claro saber aonde o currículo estaria indo. Além disso, o princípio de aprendizagem
em sala de aula tenderia, nesse caso, a mudar, passando da lógica do "professor que diz coisas
aos alunos", para os alunos que tentam determinar respostas "corretas" às perguntas, adivinhando
as respostas que estão "na cabeça do professor". Nesse sentido, o jogo da aprendizagem continuaria
sendo um jogo para acertar as coisas, com a diferença de que, em vez de fornecer a resposta
certa, o professor estaria tentando levar os alunos à resposta correta por meio de perguntas.

Explorando conexões entre os processos de conhecimento e a pedagogia


do letramento na abordagem autêntica

A pedagogia do letramento na abordagem autêntica enfoca o que chamamos no capítulo 3 de


processos de conhecimento "experienciais". Seus movimentos incluíam, em vários momentos, a
aprendizagem pela descoberta, a aprendizagem pelo questionamento, a aprendizagem bafeada em
problemas e a aprendizagem de projetos. A abordagem autêntica se orienta para o processo e se
centra no aluno. A versão recente mais mencionada dessa abordagem é chamada de "construtivismo",
na qual os alunos constroem seus próprios significados, internalizando o conhecimento e o
reconstruindo para si, com o apoio de um professor experiente. Sua ênfase está na motivação, na

24 Dewey & Dewey, 1956 [1915], pp. 171-172.


25 Cook-Gumperz, 2006, p. 33.

116 1 LETRAMENTOS
participaçã~ e na atividade de aprendizagem fundamentada. No caso da aprendizagem infantil, a
perspectiva construtivista é norteada pelo desenvolvimento natural e por meio de alguns estágios,
envolvendo os processos psicológicos de assimilação de significados novos nas estruturas cognitivas
existentes ou de acomodação desses significados que exigem o ajuste das estruturas cognitivas
existentes. 26
Nas salas de aula construtivistas, os aprendizes geralmente têm a oportunidade de desempenhar
um papel ativo na determinação da área em foco, formulando perguntas e selecionando atividades
nas quais desenvolvem sua aprendizagem por meio de:

• Desafios intelectuais em que têm que "descobrir as coisas por si mesmos", usando informações
gerais ou se valendo das experiências da vida cotidiana.
• Um ambiente de imersão, com uma certa orientação do professor. Os alunos são incentivados
a interagir uns com os outros e a participar de conversas colaborativas.
• "Comunidade de prática", que se constitui por meio de confiança e de uma atmosfera de segurança
estabelecida pelos envolvidos.
• Um conteúdo culturalmente apropriado e sensível aos interesses, necessidades e origens dos
alunos. A identidade é o ponto de partida para a autoconstrução de significados.
• Contexto intrinsecamente motivador, que envolve os interesses do aluno, isto é, que faz sentido
pessoal para ele para que possa ser um construtor ativo de significados.
• Perguntas de orientação diagnósticas em que os alunos são apoiados à autoexplicação, proveniente
de sua compreensão e de seus conhecimentos prévios como ponto de partida para a aprendizagem.
Os alunos assumem, assim, um grau de propriedade e responsabilidade em seu processo de
aprendizado.

Como regra geral, esses pontos envolvem


uma mudança substancial no papel do professor
em relação à pedagogia do letramento na abor-
dagem didática; do "sábio no palco ao guia do
lado".* No entanto, muitos sugerem que se faça
um movimento estratégico que também utilize
a abordagem didática de vez em quando, visto
que há momentos em que é necessário que o
professor ofereça aos alunos instrução explícita,
conceitualizando por nomeação ou com teoria.
Neste capítulo, esboçamos as dimensões da
pedagogia do letramento na abordagem autên-
tica, explorando o pensamento de alguns de seus
fundadores e ilustrando suas práticas com exem-
plos. A mensagem deste livro é que existem
pontos fortes e fracos em cada uma das quatro Figura 5.3 : Aênfase da pedagogia autêntica ("experienciando o conhecido") .

26 Piaget, 2002 [1923]


* No texto original, a expressão apresenta o efeito estilístico da aliteração: "Toe sage on the stage to the guide on the
side". (N. da T.).

PEDAG OGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 117


abordagens principais da pedagogia dos letramentos que emergiram desde o surgimento da edu-
cação institucionalizada em massa no século XIX. Ao correlacionarmos as quatro abordagens com
os processos de conhecimento, buscamos mostrar que podemos aprender com todas elas.

Sumário

Os conteúdos do conhecimento do letramento Significados autênticos

A organização do currículo de letramento Pedagogia de processo e desenvolvimento da língua natural

Aprendizes praticando letramento Aprendizagem ativa e imersão experiencial

As relações sociais da aprendizagem de letramento Autoexpressão em uma pedagogia centrada no aprendiz

Processos de conhecimento

Conceitualizando por nomeação


1. Adicione lexias à sua wiki, definindo os conceitos-chave na pedagogia dos letramentos: termos
importantes na análise dos modos pelos quais a comunicação e a língua funcionam e as formas
como são aprendidas. Mantenha e estenda essa wiki enquanto trabalha com este e os capítulos
restantes deste livro.

Experienciando o novo
2. Localize uma fonte a partir da qual você possa ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia
do letramento na abordagem autêntica. Sua fonte pode ser um currículo sobre o método global
ou a escrita como processo. Pode ser ainda uma entrevista com um professor que acredita ou
lida com a abordagem autêntica. Escreva sua própria análise das dimensões da pedagogia do
letramento na abordagem autêntica em torno de:
a) conteúdo do conhecimento do letramento;
b) organização do currículo de letramento;
e) aprendizes praticando letramento;
d) relações sociais da aprendizagem de letramento.

Experienciando o conhecido
3. Descreva um momento de aprendizagem no qual você experimentou a pedagogia do letramento
na abordagem autêntica. Como foi esse momento? De que forma foi um momento de aprendizagem
eficaz ou ineficaz? .ef

Aplicando apropriadamente
4. Ao longo dos cinco capítulos desta seção do livro, você se envolveu com teoria e prática das
principais abordagens do letramento. Escolha um tema sobre letramento que possa ser ensinado
por meio de uma atividade que exemplifique a pedagogia do letramento na abordagem autêntica.
Escreva uma conversa hipotética entre professor e aluno no decorrer dessa atividade.

118 1 LETRAM EN TOS


Conceitualizando com teoria
5. Escreva um relato da teoria da aprendizagem que subjaz ao método global ou da escrita como
processo. Escolha um teórico como seu ponto de referência, como Ken Goodman, Frank Smith
ou Donald Graves.

Analisando criticamente
6. Debata a proposta de Jean-Jacques Rousseau sobre as condições ideais de aprendizagem (ver
<http://newlearningonline.com/ new-learning/ chapter-2/j eanj acques -rousseau -on -emiles -
education> ).

Analisando funcionalmente
7. Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia do letramento na abordagem
autêntica seria mais e menos apropriada.

Analisando criticamente
8. Considere uma aplicação particularmente apropriada da abordagem autêntica (para um
determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
essa aplicação cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja autêntico.

PEDAGOGI A DO LETR AM ENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 119


Capítulo 6
Pedagogia do letramento na
abordagem funcional

Visão geral
Pedagogias do letramento na abordagem funcional têm como foco a aprendizagem dos alunos
para ler e compor os tipos de textos que lhes permitem ser bem-sucedidos na escola e participar
da sociedade. Seu objetivo é que os aprendizes entendam as razões pelas quais os textos existem e
como isso afeta a forma como são construídos. Ao contrário das pedagogias didáticas, que "quebram"
a língua em partes, a fim de trabalhar as regras fo rmais, a abordagem funcional começa com a
pergunta: "Quais são os propósitos do texto?". E, em seguida, a pergunta: "Como o texto é estruturado
para atender a esses propósitos?". A leitura e a escrita são atividades intimamente ligadas entre si,
na medida em que os alunos exploram as maneiras pelas quais diferentes tipos de textos trabalham
para construir significados diferentes no mundo.
Essa abordagem de letramento enfoca, portanto, os processos de conhecimento "analisando" e
"aplicando". Nesse sentido, a abordagem funcional fornece subsídios aos alunos para que descubram
como os textos são organizados no sentido de alcançar diferentes propósitos e para aprender como
usar esses textos em contextos da vida real a fim de lidar com significados socialmente poderosos.
Visando ilustrar como a pedagogia do letramento na abordagem funcional opera, este capítulo
explora um exemplo que trabalha com a noção de "gêneros textuais".

Oconteúdo do conhecimento de letramento: Aprendendo os gêneros


para ser bem-sucedido na escola
.ef

Opropósito dos textos


- O texto escrito está em tudo o que é lugar - diz a professora Danusa. - Me digam sobre alguns
dos tipos de textos que vocês encontram todos os dias.
- Notícia de jornal - diz um aluno.
- Histórias - diz outro.
- Receitas, gibis, poesias - dizem outros.
Os alunos da turma, então, criam uma longa lista.
- Notem que cada um é diferente do outro. Mas por que eles são diferentes? - pergunta a professora.
Sempre estudiosa, Márcia responde:
- São diferentes porque são sobre coisas diferentes.
- Está certo, Márcia, uma notícia de jornal é diferente de uma receita e um livro de histórias é
diferente de um de poemas, não apenas em seu significado e assunto, mas também na forma como
são organizados e escritos. Nós devemos olhar como esses diferentes tipos de texto têm propósitos
também diferentes.
A pedagogia do letramento na abordagem funcional contempla a construção de significado e a
maneira como a língua é usada em diferentes contextos para alcançar objetivos sociais também
distintos. Nesse sentido, essa abordagem se articula à perspectiva baseada em gêneros textuais, que
explicita os modos pelos quais diferentes tipos de texto são estruturados para servir a diferentes
propósitos. Por exemplo, um relatório é diferente de uma receita, que é diferente de um conto de
fadas, que é diferente de uma notícia, que é diferente de um artigo científico. Cada um desses
propósitos produz um tipo diferente de escrita, cada um com seu próprio padrão de organização.
O ponto de partida para aprender na perspectiva baseada em gêneros textuais é o propósito de
todo texto; em seguida, os estágios estruturais do texto (ou sua macroestrutura); então, somente
depois disso, os padrões linguísticos (ou microestruturas), dentro de cada estágio, no nível dos
períodos, orações, sintagmas e palavras, que dão ao texto suas características distintivas.

Gêneros Propósitos

Notícia de jornal Apresentação de informação reportando diferentes perspectivas.

Fábula Uma estória com uma moral.

Rece ita Ingredientes e passos necessários para preparar algum tipo de comida .

Relatório científico Documento formal no qual constam procedimentos de experiências e métodos relacionados a
pesquisas.
Quadro 6.1: Gêneros distintos, propósitos distintos.

A abordagem funcional seria, portanto, o oposto


da gramática tradicional, que começa com partes
separadas dos textos e, com elas, reúne partes
maiores: de fonemas a palavras, de palavras a
sintagmas, de sintagmas a orações, de orações a
períodos, de períodos a parágrafos, e de parágrafos
a obras literárias. O tip o de pedagogia didática
associada à gramática tradicional é muitas vezes
formal e abstrata, fazendo com que aprendér uma
língua pareça ser uma questão de aprender as regras
apenas porque estas existem para serem aprendidas.
Em contraste, a abordagem funcional enfoca as
intenções comunicativas e as razões para produzir
um determinado texto em primeiro lugar; em outras
palavras, enfoca os propósitos sociais da linguagem
Figura 6.1: Um modelo de texto em contexto - Foco em seu
significado e em sua função. - linguagem para ação e reflexão no mundo real.

122 1 LETR AM ENTO S


Veja: "Trecho do livro Gramática funcional, de Maria Helena de Moura Neves".

- Hoje, turma, vamos começar a trabalhar com um dos tipos de textos escritos mais impor. ·
que usamos na escola, além de ser usado também em muitas situações em nossas vidas: o "relat
Para que usamos relatórios? - pergunta a professora Danusa.
Márcia se lembra que um dia sua mãe chegou do trabalho trazendo um relatório . Ela tam
ouviu falar sobre relatórios do governo em notícias no telejornal e sobre cientistas que escrev
relatórios descrevendo suas descobertas. Mas até aquele momento nunca havia lido um re a .
na escola.
- A maioria dos relatórios fornece informações sobre o mundo e eles podem ser usados • -
documentar e armazenar informações sobre diferentes assuntos - explica a professora. E conf
- Os relatórios classificam e descrevem coisas vivas, como plantas e animais, e coisas não i
como vulcões, tsunamis e estrelas. Eles também classificam e descrevem questões que afetam va
coisas em nossas vidas, como a forma como as pessoas organizam o governo, a escola, as tecno
Campo: Assunto ou tópico que se e por aí vai. Alguns relatórios são escritos para especialistas que trabalha
um campo especial, alguns para iniciantes, que estão apenas começando a ap
estende desde assuntos cotidianos e do
senso comum a tópicos altamente
sobre alguma coisa, e outros para pessoas com interesses e hobbies especiais. •1.
especializados, que podem envolver
vocabulário técnico e convenções vamos escrever nosso próprio relatório de informações sobre mamíferos mari
especiais ~e escrita. que eu quero que todos nós façamos.

Os estágios de um gênero

- As etapas de um relatório normalmente incluem a classificação geral de um assunto. Por exe


em um relatório sobre mamíferos marinhos, vocês vão colocar uma descrição da aparência
comportamentos e dos hábitos especiais ou interessantes desses animais.
Danusa, então, escreve na lousa para orientar a discussão dos alunos:

Gênero Estágios
Relatório sobre mamíferos marinhos • Classificação geral
• Descrição - aparência
• Descrição - comportamentos
• Descrição - hábitos

- Para mostrar como funcionam os relatórios, vamos primeiro trabalhar juntos um relató rios
baleias. Vamos escrever o texto juntos, a turma inteira. Vocês vão juntar as ideias para cada est
que está na lousa e depois me dizer o que escrever em cada um, e eu vou atWtar tudo no quadro.
- Mas, primeiro, vou dar a vocês alguns relatórios para ler sobre todos os tipos de baleias, inclur .
as baleias-minke. Além disso, vejam quais informações vocês podem encontrar na biblioteca ou
internet. Ao ler esses materiais, vejam cuidadosamente o tipo de informação que foi selecionad.1 ~
como ela é organizada para cada relatório.
Depois de atribuir um tempo para leitura e pesquisa, a professora Danusa reúne a turma p
a construção conjunta do relatório.
- Bem, o que sabemos agora sobre as baleias-minke? Como é a aparência delas ... ?

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCI ONA_


- Professora, professora ... - Os alunos estão realmente interessados em dizer à professora Danusa
o que aprenderam com os relatórios que leram e as pesquisas que fizeram.
- Lembra o que lemos sobre baleias-minke?
A professora lê as informações sobre as baleias-minke em livro de uma coleção Abordagem funcional de
especial que havia separado para a elaboração do relatório. Na abordagem letramento: Uma abordagem de
letramento cujo foco é o significado de
funcional de letramento, há muita leitura, mas não é leitura por si só, e sim
te xtos do mundo real e as maneiras
intimamente interconectada com a escrita. Os alunos estão procurando padrões pe las quais diferentes tipos de textos
e escolhas linguísticos, bem como desenvolvendo o conhecimento de conteúdo são estruturados para servir a diferentes
através de suas leituras, que podem ser usadas em seus próprios textos. propósitos.

- As baleias são de duas cores, diz neste livro. O que vamos colocar aqui?
O aluno que está sentado ao lado de Márcia é o primeiro a quem Danusa pede uma contribuição.
Ele tende a se desconcentrar nas aulas, então, buscar envolvê-lo logo no começo da atividade parece
uma boa ideia.
- Mas elas só têm uma cor - diz o aluno. Ele está lendo sobre esse assunto e já aprendeu algumas
coisas sobre baleias que não conhecia antes.
- O que é isso?
- Cinza. Cinza e azul.
Mais alunos entram em cena nesse momento para tentar acertar a mistura de cores.
- Cinza -azulado?
- Sim, é cinza, mas tem azul também - diz um outro aluno.
- Está bem - a professora escreve na lousa: "As baleias-minke são cinza-azuladas".
- Sim?
- Professora, vamos ter que saber como a baleia-minke come? - O aluno ao lado de Márcia parece
estar particularmente interessado nisso.
- Vamos ter sim. Mas em que parte do relatório? - pergunta a professora.
- Comportamentos - respondem alguns alunos em coro.
- Sim. E o que torna as baleias-minke diferentes?
- Elas têm barbas em vez de dentes - Márcia finalmente tem a chance de responder a uma das
perguntas da professora.
- Muito bem, as barbatanas são usadas no lugar dos dentes e ajudam as baleias a filtrar a comida
da água - diz a professora. E continua com uma outra pergunta:
- O que mais sabemos sobre essas baleias?
- Elas são pequenas - diz um dos alunos.
- Isso mesmo. Aliás, um outro nome para a baleia-minke é baleia-anã - diz Danusa.
- E até quantos metros e quantos quilos elas podem chegar?
- 10 metros e... é até 9 . 000 kg - responde uma aluna. .ef

Depois de várias perguntas, a professora Danusa exp õe para os alunos um relatório consultado
do Guia ilustrado de Mamíferos Marinhos do Brasil.1 Em seguida, pergunta:
- Vocês podem ver como é a estrutura desse relatório? Começamos com o nome I Relatório: Um gênero text ual que
científico e os nomes populares da baleia, distribuição, habitat, as características fo rn ece info rm ação.
gerais e como reconhecer esse animal.

1 Disponível em <http://ipecpesquisas.org.br/wp-content/uploads/ 2012/07/GUIA_ILUSTRADO.pdf> .

124 1 LETRAMENTOS
Baleia-minke
Nome da espécie: Ba/aenoptera acutorostrata Lacépéde, 1804.

1 Outros nomes populares:

Distribuição:
Habitat:
baleia-anã, bali ena minke enana, rorcual menor, minke whale,
piked whale, dwarf minke whale.
pode ocorrer em todos os oceanos.
costeiro e oceânico.

Tamanho dos agrupamentos: o ventre totalmente branco, diferente de 8. acutorostrara


De 1a 3 indivíduos. na qual a cor escura do dorso se estende até o ventre na
frente das nadadeiras peitorais como um "semi-tolar"e com
Como reconhecer quando vivo: Balaenoptera borea/is(pg. 28). a qual possui os orifícios res-
Pequena, de cabeça triangular ecom orifícios respiratórios pou- piratórios bem evidentes.
co evidentes. Característica mancha clara na porção mediana
das nadadeiras peitorais. Borrifo pouco evidente, mas espora- Como reconhecer quando morto:
dicamente pode atingir 2 m. Quando na superfície. podem ser Pelo pequeno tamanho e pela cor das nadadeiras peitorais.
evidenciados os flancos claros e a nadadeira dorsal sempre é Possui de 230 a 360 barbatanas em cada face do maxilar, as
exposta simultaneamente aos orifícios res~ratórios. quais medem cerca de 30 cm de comprimento e 12 cm de lar-
gura. sendo predominantemente brancas amareladas, exceto
Com quem pode ser confundido: alguma s da porção posterior esquerda que podem ser pretas.
Com Balaenoptera bonaerensis (pg. 27) que não possui a ■ Número de vértebras: 7 cervicais, 11 torácicas, 12
Mancha branca nas nadadeiras peitorais. entretanto possui lombares e 18 caudais.

W4M
Figu ra 6.2: Ba leia-minke: Guia ilustrado de Mamíferos Marinhos do Brasil.

Estrutura e funções da língua

- Eu aprendi muitas coisas interessantes sobre as baleias ao escrever este relatório - Nhfrcia pensa
consigo mesma.
A professora Danusa continua:
- Agora vocês vão escrever os seus relatórios prestando atenção nos materiais que lemos e nas
discussões que fizemos. Eu quero que vocês escolham um mamífero marinho diferente e construam
independentemente o seu próprio texto.
Seguindo o modelo proposto pela professora, Márcia escreve um relatório sobre os golfinhos,
uma de suas espécies favoritas.

PEDAGOGI A DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 125


Uma abordagem funcional de letramento é explícita sobre modos através dos quais a língua
trabalha para construir significado. É direta e aberta sobre a maneira como diferentes gêneros são
projetados para criar diferentes tipos de significado para diferentes propósitos sociais, pois funções
da língua produzem estruturas linguísticas. Primeiramente, consideramos nossos propósitos de
significado; então, consideramos as maneiras pelas quais podemos usar a língua para realizar esses
propósitos.
Por exemplo, o relatório sobre golfinhos feito por Márcia faz uso de características de um gênero
informativo descritivo de divulgação científica, em vez de características de gêneros narrativos ou
argumentativos. Nesse sentido, não se trata apenas da informação no texto em si, mas também da
forma mais eficaz e bem-sucedida de comunicar essa informação.
Por essa perspectiva, a pedagogia do letramento na abordagem funcional envolve os alunos
no papel de aprendizes, conforme trabalham com o professor, que assume o papel de especialista
linguístico, para desenvolver uma compreensão do sistema e da função da língua. O andaime
pedagógico (Quadro 6.2) é projetado de forma que a responsabilidade pela construção do texto
seja gradualmente transferida do professor para o aluno por meio do ciclo de ensino-aprendizagem.
O andaime pedagógico torna visíveis a estrutura e a sequência do texto, isto é, os passos que
o aluno segue para produzir aqueles gêneros que são valorizados em contextos sociais dentro e
fora da escola. Isso envolve o ensino explícito de gramática, porém uma gramática que considera
o texto como um todo; passa pelos estágios desse texto e, então, examina os detalhes dos modos
através dos quais as palavras em períodos são conectadas em
Modelagem e desconstrução
orações para contribuir com o significado de todo o texto. A
conversa é usada também, individualmente e em grupos, durante Construção conjunta

a fase de construção independente, para auxiliar os alunos na Construção independente


ortografia, na pontuação, no vocabulário e na estrutura de frases Quadro 6.2: Andaime pedagógico.

e parágrafos.
Essa abordagem funcional toma como base a linguística sistêmico-funcional, de Michael Halliday. 2

O que é comum àqueles que trabalham com essa abordagem é a ideia de que o gênero constitui
uma categoria que descreve a relação entre o propósito social do texto e a estrutura da língua. Nesse
sentido, ao se engajarem em práticas de letramento, os estudantes precisam analisar criticamente
os diferentes propósitos sociais que informam os padrões de regularidade na língua; em outras
palavras, os "ondes" e os "porquês" das convenções textuais. 3


· , Veja: "Trecho do livro Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa, de
l!l . Cristiane Fuzer e Sara Regina Scotta Cabral".

2 Halliday, 1975; Halliday, 2004.


3 A linguística sistêmico-funcional de Halliday entende que a relação entre o texto (oral ou escrito) e seu contexto
de situação se constitui por meio de três funções básicas: camp o, sintonia e modo (do inglês, field, tenor e mode).
O campo diz respeito à natureza, ao assunto ou ao conteúdo da atividade social; a sintonia, às relações (hierárqui-
cas) entre os participantes e os papéis que assumem no ato comunicativo; o modo, por sua vez, está relacionado à
forma, ao canal de comunicação, ao meio em que o texto é veiculado e ao papel da linguagem na interação. Por
intermédio das três funções, a linguística sistêmico-funcional busca explicitar os propósitos dos textos, a forma
como são ordenados ou encenados e o modo como aspectos do contexto do uso da língua influenciam os padrões
da gramática (Halliday & Hasan, 1985).

126 1 LETRAMENTOS
Aorganização do currículo de letramento: Lendo modelos de gênero
e escrevendo dentro de estruturas genéricas
Localizando a abordagem funcional

Durante o século XX, muitos educadores começaram a rejeitar a pedagogia do letramento na


abordagem didática, em função, sobretudo, de um paradigma que chamamos de pedagogia autêntica,
que, de vez em quando, exercia o domínio oficial e institucional na educação. Como vimos, essa
abordagem de letramento foi fundada por John Dewey e Maria Montessori, na virada do século
XX, a partir das preocupações com o currículo tradicional. Em momentos distintos ao longo desse
século, o ensino da escrita não costumava dar ênfase a convenções formais da língua, buscando,
em vez disso, se constituir fundamentalmente por meio de uma abordagem do processo de escrita.
Essa abordagem era centrada no aluno e, por isso, o ponto de partida para a escrita era o tema
de interesse do aprendiz. No entanto, críticos argumentavam que tal abordagem prestava pouca
atenção ao conhecimento explícito da língua, o que significa que, para os alunos oriundos de uma
formação letrada, a pedagogia autêntica se mostrava envolvente e eficaz, mas, para aqueles sem
entendimento da língua e seu funcionamento, havia pouca contribuição sistemática ou instruções
diretas para orien*á-los sobre características textuais ou domínio manifesto sobre a língua.
Depois de Dewey e Montessori, os aprendizes cujas experiências em sala de aula eram projetadas
de acordo com a abordagem autêntica deveriam agora ser alunos ativos: aprender fazendo, aprender
por meio da experiência prática, em vez de aprender de forma mecânica. Nesse sentido, a aprendizagem
era para ser algo significativo, e não propriamente formal, o que poderia torná-la mais eficaz, na
medida em que esta ocorreria como algo relevante para o indivíduo, e não como algo institucionalmente
imposto. Nessa perspectiva, o currículo deveria enfatizar o processo, e não o conteúdo; os livros
didáticos que, por sua natureza, pareciam ditar o conteúdo deveriam ser descartados ou reprojetados
para que pudessem ser introduzidos como um recurso instrucional, em vez de fornecer um programa
de estudo. Assim, recursos autênticos, aquilo que os alunos queriam, de fato, ler e escrever e que
era de relevância e interesse para suas próprias vidas, seriam utilizados, fazendo com que o foco
do currículo de leitura e escrita deixasse de ser a língua em abstrato e passasse a se voltar para os
significados construídos pelos alunos.
Longe de fazer parte de movimentos em prol da defesa exclusiva do ensino formal de gramática,
a pedagogia do letramento na abordagem funcional leva em conta as abordagens didática e autêntica.
Do ponto de vista dos defensores da abordagem funcional, a pedagogia autêntica, na prática, muitas
vezes falha em seu objetivo de melhorar os resultados do aluno; segundo eles, mesmo que a dinâmica
da ocorrência da falha tenha mudado, o fato é que a falha persiste.
A pedagogia do letramento baseada em gêneros na abordagem funcional se originou de pesquisas
realizadas sobre os tipos de textos com os quais os aprendizes precisam lidar para ter sucesso na
escola. Por meio de estudos envolvendo a colaboração de professores da educação básica, foram
identificados vários gêneros diferentes escritos por alunos para propósitos distintos e, com isso, foi
desenvolvido um ciclo de ensino que incluía ensino explícito sobre características do texto. 4 Para

4 Callaghan & Rothery, 1988; Martin, 1986.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 127


tanto, procurou -se desenvolver uma "pedagogia visível", com o intuito de melhorar os resultados
educacionais dos alunos marginalizados pela escola regular. 5

Aideia de "gênero"

Para a pedagogia do letramento na abordagem funcional, o "gênero" constitui o elo para conectar
as formas relativamente estáveis de tipos textuais que variam de acordo com suas intenções sociais.
Nesse sentido, textos são diferentes porque fazem coisas diferentes; por isso, qualquer pedagogia
de letramento deve se preocupar não apenas com as formalidades relativas a como os textos
funcionam, mas também com a realidade social viva dos textos em uso, uma vez que o funcionamento
de um texto está relacionado às razões de sua existência (para que ele serve?). Assim, gêneros são
processos sociais 6 que se materializam como textos uniformizados de maneiras razoavelmente
previsíveis, segundo padrões de interação social em uma determinada cultura.
Por essa perspectiva, gêneros são intervenções textuais na sociedade, pois não são simplesmente
criados por indivíduos no momento de sua enunciação; representam padrões familiares de significado,
criados socialmente para propósitos comunicativos específicos. Além disso, diferentes gêneros
podem dar a seus usuários acesso a certos domínios de ação e interação social, espaços particulares
de influência e poder social. Tomemos, como exemplo, a "língua'' do advogado, do jogador de
xadrez ou do cientista. Sabemos que esses são domínios sociais dos quais muitas pessoas estão
excluídas, e esse padrão de exclusão social é marcado pela língua usada em cada ambiente. Aprender
novos gêneros e expandir a gama de gêneros que podemos usar nos dá o poder de escolha e o
potencial linguístico de lidar com novos domínios de atividade e poder social. Não se trata de
substituir a língua e os gêneros que aprendemos nas comunidades às quais pertencemos; trata-se,
pois, de uma questão de expandir nossas capacidades e, assim, nossas oportunidades sociais, para
que possamos escolher dentre uma gama mais ampla de ação social, por meio de mais opções de
gêneros textuais.
No mundo fora da escola, a imersão na prática social de um gênero às vezes é suficiente para
"entender sua língua", por assim dizer, embora haja obviamente outras barreiras institucionais que
ainda podem tornar isso impossível, ou quase impossível. Isso não implica afirmar que os usuários
da língua precisem estar significativamente conscientes do "como" a atividade funciona do ponto
de vista linguístico, mesmo que estejam amplamente cientes do "porquê" social de um determinado
discurso em uso. Nesse sentido, não é necessário saber sobre a língua para poder usá-la, isto é,
conhecer suas características linguísticas para poder usar socialmente o texto e perceber os seus
potenciais "porquês".
No entanto, se, por um lado, a escola é o mais significativo de todos os locais de potencial
mobilidade social, por outro, o papel social (e as limitações inerentes) da ''ê'scolarização
institucionalizada afasta a língua dessa condição usual. Em termos de linguagem, a escolarização
tem o potencial de preparar os alunos para usar uma variedade de gêneros com uma ampla gama
de possíveis aplicações sociais. No entanto, isso não pode ser feito apenas por imersão, tampouco
ser considerado como um uso eficiente de recursos.

s Cope & Kalantzis, 1993.


6 Martin, 1997.

128 1 LETRAMENTOS
essa concepção, a escola é um lugar bastante peculiar, porque sua missão é peculiar, assim
como o são as formas discursivas ou as formas como os textos falam aos alunos, já que a escola é,
ao mesmo tempo, um refletor do mundo exterior e discursivamente bastante diferente dele. Como
precisa concentrar o mundo externo nas generalizações que compõem o conhecimento escolar, a
escola é epistemológica (a forma como ela conhece) e discursivamente (a forma como comunica)
diferente da maior parte da vida cotidiana no mundo externo. Por isso, na escola, faz sentido, por
exemplo, usar conceitos generalizados e abstrações que podem ser transferidos para muitos contextos,
em vez de apenas "pegar as coisas" por imersão.

Exemplos de disciplinas Exemplos de agrupamentos Propósitos e características textuais


escolares a que pertencem alguns
gêneros

Ciências Relata r Fornece informações estrutu radas sobre o mundo natu ral, com
base em informações ou observações.

Língua po rtug uesa Narrar Conta uma história, com uma orientação para personag ens e
cenários, uma complicação que é o ponto da história e uma re-
solução que encerra a hist ória.

História Argumentar Fornece evidências e perspectivas alternativas e tira conclusões


interpretativas.
Quad ro 6.3 : Agrupamentos de g êneros esco lares.

Desenvolvendo uma metalinguagem

Como local de reprodução cultural com uma gama de conteúdos extremamente


etalinguagem: Linguagem que
·az uso de terminologia específica ampla, a educação formal escolar é tipicamente conceitua! em sua orientação,
da língua, permitindo-nos concentrando o conhecimento em generalizações e enquadrando-o em disciplinas
dentifica r e falar sobre diferentes coerentemente articuladas. Quando se trata de um lugar onde se discute a própria
características do texto, incluindo
linguagem - como a linguagem é usada na escola e no mundo exterior, para o
termos gramaticais.
qual é orientada-, a escola necessariamente faz uso de metalinguagem, por meio
da qual consegue fazer generalizações sobre a linguagem.
O uso de metalinguagem envolve maior eficiência no processo de aprendizagem e uma relação
peculiar da escola com o mundo. Nesse sentido, o argumento dos defensores da abordagem
funcional contra aqueles que apoiam a autêntica é justamente o de não abandonar a metalinguagem,
uma vez que a educação é o único espaço social em que a gramática como metalinguagem é
realmente importante. Contra aqueles que defendem a abordagem didática, por sua vez, o
argumento é o de que devemos sempre explicar a metalinguagem em termos de propósito social;
se o projeto da escola é o acesso social e parte disso é o acesso a gêneros de uma vm-iedade de
domínios relacionados ao poder social, então, precisamos explicitar essa conexão entre estrutura
e propósito.
Os "cornos" da língua também precisam ser trazidos à tona na educação formal como consequência
da missão social da escola de proporcionar a todos os alunos, incluindo grupos historicamente
marginalizados, acesso equânime a uma gama tão ampla de opções sociais quanto possível. Isso
pode incluir grupos marginalizados do ponto de vista cultural, social, econômico, linguístico, étnico,
de gênero, de raça etc.

PEDAGOGIA DO LETR AMENTO NA ABORDAGEM FUNCIO NA L 1 129


Por essa perspectiva, a educação, em uma sociedade democrática, deve buscar promover igualdade
de oportunidades, e nós, como educadores, temos o dever de levar isso em conta. No entanto,
aqueles que não compartilham dos discursos e culturas de certos domínios de poder e de acesso
frequentemente descobrem que a aquisição desses discursos requer explicações explícitas - os
modos através dos quais os "cornos" da estrutura textual produzem os "porquês" dos efeitos sociais.
Se o indivíduo convive com os "cornos" em instâncias de sua vida social, em virtude de ter sido
educado com esses discursos, então, estes farão parte mais ou menos "natural" da sua vida. Por
outro lado, estudantes de grupos historicamente marginalizados precisariam de ensino explícito
formal mais do que aqueles que parecem destinados a um passeio confortável nos gêneros e culturas
do poder dominante.

Metalinguagem Encontrar maneiras de pensar e palavras para descrever o


contexto de comunicação.

Encontrar maneiras de pensar e descrever a organização de


todo gênero textual.

Encontrar maneiras de explicar como o texto é estruturado


para gerar significado, incluindo suas macro e microestruturas.
Quadro 6,4: Dimensões da metalinguagem.

Exemplo com um texto de divulgação científica

Em uma outra aula, a professora Danusa traz para uma de suas turmas um texto de divulgação
científica publicado na internet.7 Ela diz a seus alunos:
- Vocês vão ler este texto que fala sobre o impacto do aquecimento global sobre a Floresta Amazônica.
Eu quero que leiam com atenção e vejam como é dividido. (Quadro 6.5)
Os alunos, então, discutem em grupos o texto e fazem algumas anotações conjuntas sobre sua
estrutura esquemática. Depois de um certo tempo, a professora Danusa volta a interpelá-los:
- Podemos notar que há características que fazem parte da estrutura desse gênero que são comuns
a outros textos científicos. O que vocês podem me dizer sobre isso?
Um dos alunos responde em nome do seu grupo:
- Então, professora, a gente viu que o texto é sobre um projeto, o Projeto AmazonFACE, que quer
"entender como o aumento do CO atmosférico afeta a Floresta Amazônica, a biodiversidade que ela
2

abriga e os serviços ambientais que ela provê".


- Isso mesmo - diz a professora. - E como ele é dividido?
Outro aluno toma a palavra:
- Tem três partes: a primeira parte apresenta o que é a pesquisa, a segunda parte é como.-,Ea pesquisa
vai ser realizada e a terceira parte mostra a importância da pesquisa para a região da Amazônia.
- Muito bem. Agora notem como o texto convence o leitor de que o projeto é importante. Primeiro,
ele diz que "falta conhecimento sobre os efeitos do aumento de dióxido de carbono (CO) na atmosfera".
E qual é a importância da pesquisa para tentar lidar com isso? É tentar entender a capacidade da

7 Disponível em <http:/ /www.canalciencia.ibict.br/pesquisa/0296_Impacto_do_aquecimento_global_sobre_a_flores-


ta_amazonica.html>.

130 1 LETRAMENTOS
floresta de absorver o CO 2 lançado na atmosfera pelas atividades humanas. Então, o texto está
mostrando que pode contribuir para melhorar a região amaz ônica em relação ao aquecimento global.
- Por último, vocês também notaram que esse tipo de tex to é bem formal. Quer dizer, tem muitas
palavras técnicas e também não usamos a primeira pessoa do singular ("eu"). Por quê? Porque em
um texto científico não costumamos colocar nossas opiniões pessoais, subjetivas, pois é fundamental
usar conceitos científicos objetivos.

Impacto do aquecimento global


sobre a Floresta Amazônica

Oque é a pesquisa?
As rápidas mudanças do clima do planeta, causadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis e pelo desmatamento,
podem representar uma séria ameaça às florestas da Bacia Amazônica. Apesar de o impacto do aquecimento global sobre a flores-
ta tropical ser desconhecido, já é possível prever temperaturas mais elevadas e secas prolongadas para a região, que poderão
acarretar a diminuição da biomassa florestal.

A falta de conhecimento sobre os efeitos do aumento de dióxido de carbon o (CO2) na atmosfera pode ser superada por meio de
pesquisas a longo prazo que façam avaliações, locais e globais, da vulnerabil idade dos ecossistemas e que proponham intervenções
as quais garantam o futuro da floresta tropical. Afinal, a Floresta Amazônica sobreviverá às secas prolongadas que virão com o
aquecimento global?

Para encontrar essa resposta, David Montenegro Lapola, da Universidade Est adual de Campinas (Unicamp), lidera uma equipe de
pesquisadores que desenvolverá o projeto AmazonFACE para entender como o aumento do CO2 atmosférico afeta a Floresta
Amazônica, a biodiversidade que ela abriga e os serviços ambientais que ela provê. Os pesquisadores acreditam que uma maior
quantidade de CO2 na atmosfera pode beneficiar a floresta porque as árvores intensificam a fotossíntese. Além disso, quanto mais
CO2 na atmosfera, menos os estômatos precisam abrir para capturá-lo durante a fotossíntese. Com menos estômatos abertos, a
planta perde menos água por transpiração. A perda de biomassa decorrente das secas prolongadas seria compensada pela inten-
sificação de fotossíntese e, consequentemente, maior crescimento das árvores e menor perda de água pelas folhas. O CO2, em alta
concentração, seria como um fertilizante para a floresta. Se comprovada essa hipótese, os pesquisadores terão uma visão mais
otimista dos futuros cenários de mudanças climáticas, sempre catastróficos. Todavia, um resultado contrário indicará a susceptibi-
lidade da floresta frente ao aumento de temperatura e à maior variação anua l de chuvas, eventos climáticos já previstos por muitos
pesquisadores.

Como é feita a pesquisa?


O projeto AmazonFACE será implantado na Reserva Biológica do Cuieiras, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (lnpa),
localizada entre Manaus (AM) e Boa Vista (RR), e será formado, a princípio, por quatro áreas de estudo - de tamanho aproximado
2 2
de 7oom cada uma (30m de diâmetro)-, circundadas por tubulações que irão borrifar CO2 para o interior dessas áreas de floresta.
A vegetação do local da pesquisa é uma floresta antiga, com copa fechada e terra firme, não alagável. Os solos são argilosos e bem
drenados, o que favorece o crescimento de floresta com grande biomassa, árvores com 30-45m de altura.
A tecnologia FACE (Free Air CO2 Enrichiment ou enriquecimento de dióxido de carbono ao ar livre) consiste na aspersão constante
de CO2, com o mínimo de perturbação para o ecossistema natural, para verificar se o aumento da concentração atmosférica desse
gás estimula o crescimento das árvores e a resistência à seca. Cada área de flo resta receberá 16 torres dispostas em formato circular,
as quais sustentarão tubos ligados a um tanque de armazenamento de CO2 (fi gura 1). O enriquecimento atmosférico com CO2 ocor-
rerá somente durante o dia, durante todo o ano, de acordo com a direção do vento. Um computador manterá a concentração de
CO2 desejada dentro da área estudada. No centro do círculo de torre s e tubos será instalada uma torre principal que dar:fa'cesso à
copa das árvores. Nessa torre, serão instalados instrumentos para monitoram ento meteorológico. As reações da floresta ao aumen-
to da concentração do CO2 (fotossíntese e respiração nas folhas, crescimento de árvores e.de plântulas, umidade do solo, quanti-
dade de nutrientes no solo, distribuição e desenvolvimento de raízes finas) serão monitoradas. Muitas instituições de pesquisa
serão parceiras na execução do projeto e terão cientistas e estudantes participando do monitoramento.

A implantação da primeira área de estudo será em 2017. Chamado pelos pesquisadores de experimento piloto, ele será importante
para avaliar as dificuldades envolvidas na construção das torres, no transporte e no fornecimento de grande quantidade de CO2 lí-
quido em uma área relativamente afastada de centros urbanos. Outra questão importante que merecerá a atenção dos pesquisa-
dores é a altura das árvores, que poderá dificultar o acesso para a realização das medições que precisam ser feitas bem próximas

PEDAGOG IADOLETR AM ENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 131


às folhas. Os resultados obtidos com o experimento piloto serão comparados ao de uma área controle, que não receberá aporte
de CO2, definida na mesma região do projeto. Resultados e comparações permitirão adaptações e correções no curso da pesquisa,
para que novos experimentos de longo prazo, com duração de pelo menos 10 anos, sejam replicados em outras áreas, para buscar,
então, as respostas da floresta ao aumento da concentração de CO2 atmosférico, incluindo seu impacto sobre o ciclo do carbono
no solo da floresta.

Pesquisas semelhantes ao AmazonFACE, que determinaram a resposta de florestas ao aumento de CO2 atmosférico, já foram rea-
lizadas em regiões temperadas do planeta. Contudo, será a primeira vez que esse tipo de pesquisa avaliará a resposta de florestas
tropicais.

Qual a importância da pesquisa?


Importantes estudos indicam que há risco de o aquecimento global provocar perda de biomassa e substituição da floresta tropical
por vegetação de menor porte. Esse processo é chamado de savanização, ou seja, a transformação da vegetação natural em uma
paisagem que se assemelha à das savanas africanas ou à do cerrado brasileiro (vegetação rala, árvores espaçadas e menor quanti-
dade de folhas). Por isso é fundamental reduzir as incertezas das consequências do aquecimento global e analisar a existência e a
magnitude do efeito de fertilização que o CO2 pode exercer sobre a Floresta Amazõnica, possivelmente estimulando o crescimen-
to das árvores e a resistência à seca.

Se o efeito de fertilização da floresta em decorrência da aspersão de CO2 não for significativo como se espera, provavelmente as
florestas tropicais e sua biodiversidade estarão, de fato, vulneráveis ao aquecimento global. Se a savanização ocorrer em larga es-
cala na Amazônia, trará implicações ambientais e econôm icas importantes para a região que sofrerá com a mudança no ciclo hi-
drológico, regional e global, menor produtividade agrícola e menor produção de energia hidroelétrica.
Os resultados alcançados com o projeto poderão subsidiar a elaboração de políticas de desenvolvimento para a região amazônica
em relação ao aquecimento gtobal, uma vez que revelarão a capacidade da floresta de absorver o CO2 lançado na atmosfera pelas
atividades humanas. São também relevantes para a definição de ações de conservação e uso sustentável da biodiversidade frente
aos cenários futuros de mudanças climáticas, podendo impulsionar o Brasil ao desenvolvimento de pesquisas ecológico-ambientais
mais complexas e abrangentes.

Publicado em 14 de dezembro de 2015.


Quadro 6.5: Texto "Impacto do aquecimento global sobre a Floresta Amazôni ca", para subsidiar a aula da professora Dan usa.

Aprendizes praticando letramento: Andaimes de gêneros e


construção textual independente
Explorando ogênero narrativo conto

A professora Danusa inicia sua aula dizendo:


- Hoje, turma, vamos escrever algo diferente. Desta vez vai ser um conto. Como é um conto? Quais
contos vocês conhecem? Onde encontramos contos? Para que servem os contos?
A classe discute todos os lugares em que podem encontrar contos (livros, internet, cinema,
televisão), assim como aqueles que contamos quando recontamos uma sequência de eventos que
experimentamos em nossas vidas.
- Vamos começar a trabalhar o conto. Primeiro, vamos todos ler contos.
A professora, então, disponibiliza livros de contos para os alunos lerem, compararem e discutirem
entre si. Em seguida, explica:
- O conto é marcado por uma narrativa curta, escrita em prosa, e gira em torno de uma única
situação; por isso é curto e mais simples que o romance. Narra eventos problemáticos, que levam a
uma crise ou a um ponto de virada, uma mudança de algum tipo. Os eventos complicados geralmente
são resolvidos por um personagem principal. Detalhes sobre personagens e situações são importantes

132 1 LETRAMENTOS
para orientar o leitor. Qualquer parte em que o escritor tenta destacar o significado dos eventos em
um estágio específico é uma avaliação. Na parte final da história, há algum tipo de estágio de resolução,
com os problemas que foram estabelecidos na parte anterior do texto sendo resolvidos para melhor
ou para pior. Então, aqui estão os estágios de uma narrativa: introdução, que é a apresentação da
ação que vai ser desenvolvida. Nessa parte inicial, há uma ambientação do local, do tempo, dos
personagens e do que está acontecendo; em seguida vem a complicação, isto é, o desenvolvimento da
ação do conto. Nessa parte, ocorre a maioria dos diálogos dos personagens e é apresentado um conflito;
vem, então, o clímax, que é o momento culminante da narrativa, aquele de maior tensão, no qual o
conflito atinge seu ponto máximo; e.finalmente o desfecho, que apresenta uma solução para o conflito,
muitas vezes surpreendente.
Depois de apresentar as características do gênero, Danusa solicita que cada aluno produza um
conto. Ao longo da elaboração de seus textos, ela os auxilia, retomando e exemplificando as partes
e características do conto, buscando, assim, instalar os andaimes necessários para que seus aprendizes
construam os textos de forma independente.

As relações sociais na aprendizagem de leitura e escrita: Benefícios


de aprender formas textuais poderosas
Os usos de gêneros na escola

A pedagogia do letramento na abordagem funcional é sobre aprender a significar em um contexto


socioeducacional no qual o domínio de gêneros específicos é valorizado. Centra-se, portanto, em
elementos elaborados por especialistas e em andaimes introduzidos por professores, seguidos pelo
estímulo à construção independente de textos que, com maior ou menor sucesso, exemplificam
esses gêneros.
Segundo Dolz e Schenewly, 8 cada gênero textual necessita de um "ensino adaptado, pois apresenta
características distintas. No entanto, os gêneros podem ser agrupados em função de um certo
número de regularidades linguísticas e de transferências possíveis". Assim, os autores reúnem os
gêneros em cinco grandes grupos, com base em seus aspectos tipológicos e sua relação com seus
domínios sociais de comunicação e suas respectivas capacidades de linguagem dominantes, conforme
podemos observar no Quadro 6.6.
A expectativa de vincular a finalidade social à estrutura do texto, por meio da relação entre os
domínios sociais de comunicação mais amplos e suas respectivas capacidades de linguagem
dominantes, leva a uma compreensão da linguagem muito diferente daquela da gramática tradicional.
Começando com a questão do propósito, a análise do texto prossegue observangp sua estrutura
como um todo, para, então, explicar seu progresso em termos do que acontece em períodos e
orações. Nesse sentido, ao contrário da gramática tradicional, cujo foco são as análises morfossintáticas
e raramente vai além destas, a análise de gêneros se preocupa, sobretudo, com textos inteiros e suas
funçõe s sociais. A análise linguística nessa perspectiva é realizada para explicar o funcionamento
do texto como um todo e como este cumpre sua intenção social.

8 Dolz & Schenewly, 2004, p. 120.

PEDAGOG IA DO LETRAMENTO NA ABORDAG EM FUNCIONAL 1 133


ASPECTOS TIPOLÓGICOS
Exemplos de gêneros orais
Domínios sociais de comunicação Capacidades de linguagem
e escritos
dominantes

conto maravilhoso;
fábula;
NARRAR lenda;
Cultura literária ficcional narrativa de aventura;
Mimesis da ação através da criação de narrativa de ficção científica;
intriga. narrativa de enigma;
nove la fantástica;
conto parodiado.

relato de experiência vivida;


relato de viagem;
RELATAR testemunho;
Documentação e memorização de ações curriculum vitae;
humanas Representação pelo discurso de experiên- notícia;
cias vividas, situadas no tempo. reportagem;
crônica esportiva;
ensaio biográfico.

texto de opinião;
diálogo argumentativo;
ARGUMENTAR carta do leitor;
Discussão de problemas sociais
carta de reclamação;
controversos
Sustentação, refutação e negociação de deliberação informal;
tomadas de posição. debate regrado;
discurso de defesa (adv.);
discurso de acusação (adv.).

seminário;
conferência;
artigo ou verbete de enciclopédia;
EXPOR
entrevista de especialista;
Transmissão e construção de saberes tomada de notas;
Apresentação textual de diferentes formas
resumo de textos "expositivos" ou explica-
dos saberes.
tivas;
relatório científico;
relato de experiência científica.

instruções de montagem;
receita;
DESCREVER AÇÕES
regulamento;
1nstruções e prescrições
regras de jogo;
Regulação mútua de comportamentos.
instruções de uso;
instruções.
Quadro 6.6: Agrupamento de gêneros.•

.ef
Aprendendo a usar textos socialmente poderosos

Vimos as fases de aprendizagem de leitura e escrita na prática, a partir dos exemplos apresentados
neste capítulo, divididas em três: a primeira fase é a de modelagem, na qual os alunos são expostos
·a vários textos que exemplificam o gênero em questão. Se, por exemplo, a disciplina escolar é
ciências e o assunto gira em torno de golfinhos, os alunos podem ler textos sobre mamíferos

9 Idem, p. 121.

134 i LETRAMENTOS
marinhos de várias fontes, que, em geral, se constituem em relatórios. Nesse caso, o professor
poderia fomentar uma discussão sobre para que servem tais textos (suas funções), como as
informações nos relatórios são organizadas (sua estrutura esquemática) e quais os aspectos relativos
ao modo como os textos comunicam (palavras e sua sequência).
A segunda fase envolve a negociação conjunta de um texto elab orado pela turma. Os
primeiros elementos nessa etapa são o estudo do campo ( conhecimento especializado) e o
contexto (no qual os eventos estão acontecendo) do gênero: os alunos observam, pesquisam,
entrevistam, discutem, fazem anotações, desenham diagramas e assim por diante. Segue-se,
então, a construção conjunta de um texto de aula, ou seja, os alunos participam do processo
de produção textual de um relatório, orientados pelo professor. Este, por sua vez, atua como
um escriba, na medida em que os alunos contribuem para um texto construído em conjunto,
que se aproxima da estrutura do gênero relatório e emprega as escolhas e sequências de palavras -
-chave características dele.
Na terceira e última fase, os alunos constroem seus próprios relatórios de forma independente,
preparando-se para mais trabalho sobre um determinado assunto, verificando seus esforços
individuais de escrita com os colegas e com o
professor, reavaliando criticamente seus textos
à medida que são editados para publicação e,
por fim, talvez, explo ando criativamente o
gênero para representar outros campos. O ciclo
pode, então, ser repetido, trabalhando aspectos
progressivamente mais sofisticados do gênero

. relatório.

l!I

li
1
-
(!li:i,:

.

· · Veja: "Ciclo de ensino-aprendizagem - Ross
no YouTube".

Ao pensar amplamente em termos dos


propósitos sociais desse processo de aprendizagem,
vemos paralelos entre as demandas linguísticas
de diferentes estágios da ciência da educação e as
Figura 6.3: Ociclo de ensino e aprendizagem:
demandas de linguagem de diferentes empregos Fases de leitura e escrita em uma abordagem de gênero.
em indústrias baseadas na ciência. Por isso, a
passagem de gêneros de caráter pessoal, como um bilhete, a gêneros de caráter profissional, como
um relatório, acompanha, de certa forma, uma progressão do conhecimento do senso comum e
de textos cotidianos a textos que são cada vez mais técnicos e formais. Estes se destinam a ser
lidos por estranhos, muitas vezes distantes daqueles que os escreveram, tornando-se, assim, textos
públicos para fins públicos.
O mundo atual demanda cada vez mais o uso e a criação de documentos escritos de diferentes
ordens, que estão se tornando um elemento cada vez mais importante da vida profissional, para
não mencionar a vida pública bem informada, quando se trata de pensar questões controversas,
como mudança climática, pesquisa com células-tronco ou tecnologias de reprodução humana.
Nesse sentido, a pedagogia do letramento na abordagem funcional visa colocar a estrutura e o
conteúdo de volta ao ensino do letramento.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 135


Veja: "Kalantzis e Cope debatendo alfabetização funcional".

Explorando conexões entre os processos de conhecimento e a


pedagogia do letramento na abordagem funcional
A pedagogia do letramento na abordagem funcion al enfoca sobremaneira os processos de
conhecimento que denominamos "analisar funcionalmente" e "aplicar adequadamente': Deriva de
uma análise do que as pessoas fazem através da linguagem ou, mais especificamente, através da
relação entre forma e função da linguagem, cuja ênfase está na construção de sentido. Portanto,
nessa concepção, aprender a significar é visto como um processo social, em que a linguagem é
aprendida na interação com outros mais capazes.
Essa visão da aprendizagem aproxima a abordagem funcional do conceito de Zona de
Desenvolvimento Proximal, no âmago da psicologia sociocultural de Vygotsky (descrita mais adiante
no capítulo 14): a zona entre o que uma criança pode realizar sozinha e aquilo que pode fazer com
assistência de um par mais competente. Apoiados pelos andaimes fornecidos pelo professor ao
longo do ciclo de ensino, os alunos aprendem a explicar as maneiras pelas quais os textos trabalham
para veicular significados de forma eficaz. Eles, então, aplicam seus conhecimentos de linguagem
e recursos de criação de significado em contextos sociais da vida real para participar, ou mesmo
desafiar, os discursos de suas escolas e comunidades.

Figura 6-4: As ênfases da pedagogia do letramento na abordagem funcional.

136 1 LETR AM ENTOS


Sumário

Pedagogia do letramento funcional

Os conteúdos do conhecimento do letramento Aprendendo os gêneros relacionados ao sucesso escolar e ao


poder social.

A organização do currículo de letramento Lendo modelos de gênero e escrevendo dentro de estruturas


genéricas no contexto de aprendizagem de uma disciplina es-
colar.

Aprendizes praticando letramento Os alunos gradualmente assumem mais responsabilidade pela


construção de textos à medida que avançam no ciclo de ensino-
-a prendizagem, que parte da modelagem d irigida pelo professor
ao trabalho conjunto por ele guiado para a construção in depen-
dente de andaimes.

As relações socia is da aprend izagem de letramento Aprende ndo formas textuais poderosas para o sucesso escolar
e o acesso social.

Processos de conhecimento

Conceitualizando por nomeação


1. Adicione lexias à sua wiki, definindo os conceitos-chave na pedagogia do letramento na abordagem

funcional: termos importantes na análise dos modos através dos quais a comunicação e a língua
funcionam e as formas como são aprendidas. Mantenha e estenda essa wiki enquanto você
trabalha com este e com os capítulos restantes deste livro.

Aplicando apropriadamente
2. Escolha um gênero textual que possa ser ensinado em uma atividade escolar. Elabore uma aula
que exemplifique o ciclo de ensino-aprendizagem do gênero baseado na pedagogia do letramento
na abordagem funcional. Crie um discurso hipotético professor-aluno na fase de construção
conjunta dessa lição.

Conceitualizando com teoria


3. Escreva um relato da teoria da aprendizagem por trás da abordagem funcional. Consulte o
trabalho de teóricos que tematizem os gêneros textuais.

Analisando funcionalmente
4. Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia do letramento na ab0rdagem
funcional seria mais e menos apropriada.

Aplicando criticamente
5. Considere uma aplicação particularmente apropriada da pedagogia do letramento na abordagem
funcional (para um assunto específico ou contexto de aprendizagem que atenda às necessidades
de um determinado grupo de alunos) e desenvolva um plano de aula ilustrando essa aplicação
cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja o funcional.

PEDAGOGIA DOLETRAM ENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 137


Visão geral
As pedagogias críticas lidam com a ideia de que os letramentos estão no plural, reconhecendo
as múltiplas vozes que os aprendizes trazem para a sala de aula, os diversos locais da cultura popular,
as novas mídias e as ~iferentes perspectivas que existem em textos do mundo real. Além disso,
defendem a ideia de que os estudantes são construtores de significado, agentes, participantes e
cidadãos, que usam a aprendizagem dos letramentos como uma ferramenta que lhes permite maior
controle sobre os modos como agem para construir significados em suas vidas, em vez de elemento
destinado a torná-los alienados, inundados ou excluídos por textos com os quais não estão
familiarizados. Mais recentemente, os letramentos críticos também se tornaram elementos próprios
para questionamento e criação de novos textos que circulam em diferentes mídias digitais. Neste
capítulo, exploraremos o conteúdo sobre os conhecimentos relacionados aos letramentos críticos,
sua conexão com as identidades sociais e a organização do currículo crítico de letramentos.

Oconteúdo sobre os conhecimentos relacionados aos letramentos


críticos: Aprendendo sobre diferenças sociais e sobre culturas
populares e de novas mídias
Pensamento crítico por meio dos letramentos

A professora Wanda diz para sua turma: .,.jt

- Vamos falar sobre a nossa própria comunidade local. Quais os maiores problemas que vocês
acham que temos nela?
- O rio fede - diz um aluno. - É cheio de lixo e as fábricas que teYr}-_ ao lado jogam coisas cinzentas
fedidas.
Depois de muita discussão, a turma decide usar o pequeno rio como assunto para uma atividade
que envolve a solução de problemas, como parte de seu programa integrado de ciência e letramento.
- Vamos começar documentando a situação do rio - sugere a professora Wanda. - Vamos ver
essas imagens do Google Earth. O que cerca o rio.
A turma observa os nomes das fábricas próximas e as ruas cujo escoamento provavelmente
acabe no rio. Eles pesquisam poluentes da água em livros na biblioteca e em sites na internet. Tomam
contato com explicações científicas a respeito de como funciona a ecologia dos rios - plantas, peixes,
pássaros e vida animal - e como estes são afetados por poluentes. Em seguida, preparam uma lista
de coisas que irão procurar quando visitarem o rio.
Depois de várias semanas de preparação, chega o dia da inspeção do rio. A professora Wanda
divide a turma em grupos que irão documentar coisas diferentes; a cada grupo é entregue uma
câmera, e, a cada aluno, uma lista de verificação anotada em pranchetas. Um grupo documentará
o lixo que é descartado; outro documentará os drenos que correm para o rio; um terceiro grupo,
as fábricas e casas no entorno; e um último grupo, as evidências dos efeitos da poluição e do lixo
no ecossistema do rio.
De volta às aulas, cada grupo escreve um relatório de suas descobertas usando os novos termos
técnicos que aprendeu. Em seguida, os alunos organizam suas observações de forma estruturada,
e depois montam apresentações sobre seus achados em slides no PowerPoint.
- Quem é responsável pela poluição do rio? - pergunta a professora.
- As fábricas que permitelJ'l o escoamento do poluente - diz um aluno.
- Os donos das casas que lavam os seus carros e deixam os produtos químicos entrarem no ralo
da rua - sugere outro aluno.
- É um grande problema, como os relatórios de vocês mostram. Na verdade, somos todos responsáveis
- diz a professora. - Como comunidade, o que podemos faze r sobre isso?
Depois de alguma discussão, a turma chega à conclusão de que a prefeitura local é a principal
autoridade responsável, e que a classe elaborará uma compilação dos relatórios dos diferentes grupos
sobre o rio e a enviará ao prefeito e também ao setor de proteção ambiental da cidade.
Dias depois, eles conseguem ageudar uma visita à prefeitura. Nela, realizam uma apresentação
para o prefeito e os representantes da Secretaria de Proteção Ambiental. Utilizando o PowerPoint,
exibem uma compilação de pontos-chave das várias apresentações que criaram anteriormente. Em
seguida, entregam formalmente uma versão final de seu relatório ao prefeito.
O trecho acima é um exemplo de letramento crítico, cuja substância é a discussão de questões
do mundo real, criando textos autênticos que abordam questões de interesse para os alunos e sua
comunidade. Michael Apple chama isso de "currículo democrático", não porque exiba os processos
formais de de~ocracia como um sistema político (como votar periodicamente para eleger
representantes, por exemplo), mas porque está fundamentado no que ele chama de "valores
democráticos", que são baseados em uma "fé na capacidade individual e coletiva das pessoas para
criar possibilidades para resolver problemas".' Nesse sentido, um currículo democrático requer
"reflexão crítica e análise para avaliar ideias, problemas e políticas públicas".
2
4

Veja: ''Apple e Beane sobre escolas democráticas".

1 Apple & Beane, 2007, p. 7.


2 Idem, ibidem.

140 1 LETRAMENTOS
Capítulo 7
Pedagogia dos letramentos críticos

Visão geral -
As pedagogias críticas lidam com a ideia de que os letramentos estão no plural, reconhecendo
as múltiplas vozes que os aprendizes trazem.para a'~ala de aula, os diversos locais da cultura popular,
as novas mídias e as- '1iferentes perspectivas que existem em textos do mundo real. Além disso,
defendem a ideia de que os estudantes são construtores de significado, agentes, participantes e
cidadãos, que usam a aprendizagem dos letramentos como _uma ferramenta que lhes permite maior
controle sobre os modos como agem para construir significados em suas vidas, em vez de elemento
destinado a torná-los alienados, inundados ou excluídos por textos com os quais não estão
familiarizados. Mais recentemente, os letramentos críticos também se tornar;:im elementos próprios
para questionamento e criação de novos textos que circulam em diferentes mídias digitais. Neste
capítulo, exploraremos o cont~údo sobte os conhecimentos relacionados aos Íetramentos críticos,
sua conexão com as identidades sociais e a organização do currículo crítico de letramentos.

Oconteúdo sobre os conhecimentos relacionados aos letramentos


críticos: Aprendendo sobre diferenças sociais e sobre culturas
populares e de novas mídias
mento crítico por meio dos letramentos

A professora Wanda diz para sua turma: .-;/f

- Vamos falar sobre a nossa própria comunidade local. Quais os maiores problemas que vocês
acham que temos nela?
- O rio fede - diz um aluno. - É cheio de lixo e·as f ábricas que tem ao lado jogam coisas cinzentas
fedidas .
Depois de muita discussão, a turma decide usar o pequeno rio como assunto para uma atividade
que envolve a solução de problemas, como parte de seu programa integrado de ciência e letramento.
No mesmo espírito, William Ayers faz uma distinção entre educação verdadeira e mero
treinamento, destacando que a primeira "é ousada, aventureira, criativa, vívida, esclarecedora. Em
outras palavras, a educação é para exploradores autoativos da vida, para aqueles que desafiariam
o destino, para ativistas, para os cidadãos". 3 O treinamento, por outro lado, é algo "para súditos
leais, para empregados tratáveis, para consumidores, para soldados obedientes"; "a eq.ucação derruba
muralhas, impede alguém de ser escravo; o treinamento é apenas arame farpado': 4 Assim, o resultado
da educação é transformação pessoal e social, não menos do que isso, pois encontramos a vida
como algo dado, vivenciamos momentos de descoberta e surpresa e ganhamos energia a partir de
reorganização e remodelação; então, alcançamos novas formas de conhecer e agir, horizontes
expandidos e novas possibili4ades.
Paulo Freire e Donaldo Macedo 5 também falam de transformação por meio da educação.
Especificamente em relação à alfabetização, 6 consideram-na como um processo de leitura e escrita
sobre o mundo no qual os cidadãos alfabetizados se tornam "sujeitos" em vez dos "objetos" passivos
de textos; "agentes" de textos em vez de "vítimas" de textos. ~esse sentido, alfabetização não é, para
os autores, uma questão de aquisição de habilidades de comunicação técnica. É um processo de
aprender a construir significados que inserem indivíduos no mundo, que mudam o mundo. Portanto,
a alfabetização é, como tal, um ato político, uma prática emancipatória na qual não se lê apenas a
palavra, mas se lê antes, e sobretudo, o mundo.7

Veja: "Ler palavras e ler o mundo: O método de alfabetização Paulo Freire':

Esse é o primeiro de vários aspectos da pedagogia dos letramentos críticos


Pensamento crítico: Aprender a ver
o mundo a partir de múltiplos pontos
que vamos destacar neste capítulo: uma orientação para textos que exemplificam
de vista, não assumindo que as coisas e requerem pensamento crítico. Outros aspectos que também abordaremos
são exatamente o que os textos dizem estão relacionados às múltiplas identidades dos alunos e às novas mídias populares
que são. Aprender a questionar textos e e de massa.
interpretar os (múltiplos) intermes
humanos neles expressos.
A pedagogia dos letramentos críticos não se concentra nas habilidades
mecânicas ou em aprender fatos ou regras separados de seu uso, como acontece
na pedagogia do letramento na abordagem didática. A pedagogia crítica envolve os estudantes
como atores sociais, levantando questões de interesse tanto local ou pessoal, quanto global ou _
público, fazendo com que possam identificar problemas e desafios atuais. Aborda questões difíceis,
contenciosas e/ou políticas, para as quais não há respostas fáceis, fazendo isso não por causa da
"políticà' em si - embora entenda que todo ato de educação é um ato político -, mas para exercitar
e nutrir certos tipos de hábitos intencionais e reflexivos de mente e ação.
Nessa perspectiva, o objetivo dos letramentos críticos é contribuir para que os alunos possam
entender como os sentidos são construídos no mundo pelos valores e ações das pessoas, entendendo
que o mundo da aprendizagem não é simplesmente uma série de regras a serem obe<f°ecidas, fatos

3 Ayers, 2010, pp. 150-151.


4 Idem, ibidem.
5 Freire & Macedo, 1987.
6 Embora não usem o termo "letramento'; a acepção que Freire & Macedo (1987) atribuem à alfabetização dialoga com
o conceito de letramento na perspectiva crítica; aliás, Paulo Freire foi um precursor dos estudos sobre letramentos/
alfabetização crítica, que muito influenciaram uma série de estudiosos nesse campo em todo o mundo.
7 Freire, 1981.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRÍTICOS 1 141


a serem aprendidos e autoridades de conhecimento a serem seguidas. Em termos textuais, uma
pessoa criticamente letrada identifica tópicos relevantes, permeados por relações de poder, analisa
e documenta evidências, considera pontos de vista alternativos, formula possíveis soluções para os
problemas e talvez também possa colocar em prática essas soluções, chegando, assim, às próprias
conclusões e apresentando argumentos bem fundamentados para defender suas proposições.

Pedagogia dos letramentos na abordagem crítica Pedagogia do letramento na abordagem didática

Valores democráticos - agindo sobre questões e problemas Regras formais, habilidades mecânicas
reais no mundo

. Ativo, participativo Passivo, complacente

Educação . Treinamento

Transformação pessoal e social Reprodução social


Quadro 7. 1: Contrastando valores das abordagens crítica e didática.

Letramentos e identidades

Outro foco da pedagogia dos letramentos na abordagem crítica é o reconhecimento de que toda
representação e toda comunicação envolvem identidades humanas, uma vez que letramentos e
identidades estão inextricavelmente interconectados. Nesse sentido, a "posse" e o "uso" dos
letramentos - práticas letradas particulares - inscrevem as identidades dos usuários ("quem" e "o
que" eles são), que diferem entre si.
Um exemplo interessante de como letramentos e identidades se interconectam como forma de
crítica e resistência é o da prática de um professor, ao trazer para sua aula letras de rap, não apenas
para compará-las com textos tradicionais de poesia para a construção do conhecimento literário,
mas, sobretudo, para envolver ativamente alunos que apresentam histórico de fracassos escolares
em práticas de letramento convencionais. 8

■ Veja: "Língua e identidade: Fios que se entrelaçam mundo afora".

Veja também: "Conhecendo Bell Hooks".

Essa vertente dos letramentos críticos é, algumas vezes, chamada de "educação pós-modernà:
trazendo uma rica cacofonia de vozes estudantis para a sala de aula e validando for~s populares
de falar e de identificar, com os alunos se constituindo em sujeitos que têm agência, isto é, que
determinam quais significados são importantes para si. Nesse sentido, os letramentos críticos
possibilitam um espaço para modos de expressão que historicamente foram escamoteados e/ou
desvalorizados. Aronowitz e Giroux 9 chamam isso de uma "pedagogia fronteiriça da resistência

8 Duncan-Andrade & Morrell, 2008.


9 Aronowitz & Giroux,1991, p. 128.

142 j LETRAMENTOS
pós-moderna", que "confirma e criticamente engaja o conhecimento e a experiência através dos
quais os estudantes criam suas próprias vozes e constroem identidades sociais". Para tanto, essa
vertente dos letramentos críticos exige um certo tipo de introspecção sobre as próprias posturas e
atitudes em relação às diferenças em espectros variados (deficiências, sexualidade, raça, etnia,
gênero etc.).

Abordando a discriminação e a desvantagem


Em outra aula, depois de descobrir que um de seus alunos estaria sofrendo bullying, a professora
Wanda começa dizendo:
- Hoje eu quero que todos vocês escutem esta história sobre duas amigas: Helena e Érica. Um dia,
Helena decide que não gosta mais de Érica porque alguém contou a Helena que Érica teria dito algo
sobre ela e isso a incomodou. Helena diz a todos os seus amigos que eles deveriam parar de falar com
Érica e não a deixar entrar mais em seu grupo. Então, toda vez que Érica chega perto de alguém do
grupo, essa pessoa vai embora rindo e a ignorando. Todos a excluíram do Facebook, e Helena até criou
um grupo sobre Érica do qual muitos colegas já participam.
A professora Wanda oferece a todos um quadro de "conexões comuns" para iniciar seu pensamento
crítico sobre essa sittiação e sua possível relação com suas próprias vidas.
- A parte sobre ...
- Me lembrou de ...
- Porque ...
- Agora, eu não quero que vocês citem nomes - diz a professora Wanda. - Alterem qualquer nome
para que as pessoas reais em seu quadro de conexões comuns não possam ser identificadas.
Os pares compartilham suas histórias. Eles assistem a um vídeo sobre bullying. Enquanto o
fazem, preenchem uma análise de características relacionadas ao alvo (a pessoa que sofre
discriminação), o perpetrador (o iniciador da discriminação), o espectador (que não atua, apenas
observa) e o aliado (que vem em auxílio do alvo).
- Agora, eu quero que vocês, em cada um dos seus grupos, interpretem uma situação de intimidação
na qual cada um de vocês assumirá um desses papéis. Escrevam um roteiro para essa situação, porque
depois vocês vão apresentá-la para a turma.
Os grupos selecionam uma variedade de áreas de discriminação para seus papéis relacionados
ao bullying: assédio sexual, discriminação com base na sexualidade, racismo, discriminação por
idade, discriminação por deficiência. Eles trabalham em seus roteiros e, então, os executam.
A turma escuta atentamente as letras de algumas canções populares que lidam com discriminação.
Os alunos, então, discutem os modos de persuasão usados nessas letras. Eles também assistem a
vídeos de alguns discursos famosos pedindo o fim da discriminação, incluindo o""1Íiscurso "Eu
tenho um sonho", de Martin Luther King. Cada um deles escreve o roteiro de um discurso para os
outros na escola, projetado para inspirar os alunos a tomar uma posição contra a discriminação e
o bullying.
. -:-.•:,ti!]
' Veja: "Projetos de letramento no ensino médio: A WebQuest como proposta pedagógica para
, erradicação do bullying na escolà'.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRÍTICOS 1 143


Como apontamos acima, outra área de enfoque dos letramentos críticos são as novas mídias
da cultura popular, que assumem várias formas , incluindo literatura popular, música, televisão,
filmes, quadrinhos, graphic novels, revistas, internet e videogames. Na pedagogia do letramento
na abordagem didática, a mídia e a cultura populares eram vistas como mero entretenimento,
não como material de aprendizagem sério, relacionado ao letramento. Eram, portanto, consideradas
"cultura de lixo", ern comparação à "alta cultura" de um cânone literário, posto que desprovidas
de valor estético e moral, e associadas às "vulgaridades" do gosto popular, de formas não padrão
do vernáculo, em vez das formas-padrão da língua, usadas em discursos acadêmicos e discussões
públicas formais.
Tendo em vista o mundo globalizado que nossos estudantes habitam atualmente e a proliferação,
a sofisticação e a poderosa influência dos textos da cultura popular, há uma razão clara, um
imperativo, para trazê-la para a sala de aula. Como Giroux observa, "a aprendizagem na era pós-
-moderna está localizada em outro lugar - nas esferas poptilares". O mesmo autor comenta
10

também:

As escolas precisam redefinir os currículos dentro de unia concepção pós-moderna de cultura ligada às
condições globais diversas e mutáveis que exigem novas formas de alfabetização, uma compreensão
amplamente expandida de como o poder funciona nos aparatos culturais e um senso mais agudo de como
a geração existente de jovens está sendo produzida dentro de uma sociedade em que a mídia de massa
desempenha um papel decisivo, se não incomparável, na construção de múltiplas e diversas identidades
sociais. 11

Assim, talvez agora mais do que nunca, é aparentemente necessário que equipemos nossos
alunos com as ferramentas •críticas necessárias para "ler" textos, "ler" o mundo, a fim de que possam
ser capazes de transformar seu mundo e seu lugar nele.
Há muitas razões pelas quais um professor pode querer trazer cultura e mídia populares
para a sala de aula. Pode, por exemplo, querer se conectar com as identidades dos alunos,
partindo do cophecimento 'sabido, antes de passar para o novo, para que possam trazer para o
seu processo de aprendizagem recursos simbólicos poderosos que derivam em grau significativo
da mídia e da cultura populares. Tal abordagem facilita a construção de conexões entre as
práticas de letramentos e a expertise dos alunos fora da escola e os letramentos necessários no
contexto escolar, bem como a mobilização de seus conhecimentos e práticas culturais existentes.
Além disso, a mídia e a cultura populares englobam textos atuais que carregam enorme efeito
emocional e social, constituindo-se em espaços poderosos de atividade de construção de
significado, muito diferentes em sua forma e substância do mundo das gerações anteriores e
do currículo tradicional. Soma-se a isso o fato de que os estudantes, em geral, sentem um prazer
inegável pela cultura popular, o que pode ser aproveitado para motivá-los, envolvê_~ s, sobretudo
aqueles que estão "lutando" contra o ensino tradicional escolar, sendo, portanto, considerados
como alunos "em risco".
No caso da nova mídia digital, o professor pode querer apresentar aos alunos as mídias mais
recentes como um projeto de "empoderamento" dos alunos para acessar recursos culturais e de

10 Giroux:, 1997, p. 32.


11 Idem, 1996, p. 67.

144 i LET RAMENTOS


.
conhecimento e para atravessar a barreira da "exclusão digital". Agora estamos definitivamente
f.tlando de letramentos no plural, que constituem os muitos modos e espaços da mídia contemporânea
e a gama extraordinariamente variada de identidades e interesses expressos nesses espaços.
Ao notar que a própria cultura popular se tornou um foco do novo trabalho sobre mídia
digital e aprendizagem, James Paul Gee 12 analisa os videogames: um ambiente multimodal de
letramentos no qual _os estudantes navegam por narrativas tão poderosas como qualquer outra
no cânone literário. Eles fazem isso como personagens, como atores na narrativa. Eles negociam
texto e imagem.

Aprendizagem ativa Produz e não apenas consome; um forte senso de propriedade e agência; o aluno se oferece e faz
escolhas.

Interatividade Joga como uma forma simultânea de "leitura" (interpretação} e de "escrita" (produção}.

Aprendiz como mentor Ensina os outros, ao mesmo tempo que aprende consigo mesmo; relações horizontais de conhe-
cimento.

Engajamento Tem razões convincentes para se engajar; assume um compromisso emocional; "identidade pro-
jetiva'; criando motivação para um engajamento prolongado.

Identidade Lida com uma economia atenciona l, baseada no desenvolvimento de identidades fortes no jogo;
um gatilho para um investimento profundo por parte do jogador.

Empatia Conversa, pensa e age como se estivesse no jogo; simulação que convida ao investimento emo-
cional.

Comunidade Atua em um espaço de afinidade, um lugar para compartilhamento e colaboração.

Multimodalidade Usa extensivamente os modos visual, linguístico, sonoro (na tela}, tátil, gestual e espacial (como
representado na tela}; modos distintos, repetindo e reforçando os significados um do outro.

Risco Trabalha com a redução das consequências do mundo real; "moratória psicossocial"; sempre se
pode começar de novo, o que reduz o custo do fracasso.

Recompensa Lida com resultados visíveis, com realizações possíveis em diferentes níveis, em relação ao nível
de maestria.

Crítico Procura por enganos embutidos no jogo e tenta encontrar maneiras de ser mais astuto que o jogo.

Conceituai Elabora os princípios do design e o design do jogo, construindo modelos mentais para dominar o
jogo.

Metaconhecimento Informa as capacidades atuais e potenciais; avalia o conhecimento anterior e ajuda os jogadores
a tomar decisões por si mesmos.

Encenação Envolve-se em ciclos de nova aprendizagem, domínio por encenação e competência progressiva;
ciclo de desafio ➔ rotinização ➔ desafio.Além disso, constrói conhecimento intuitivo e tácito, cria
generalizações incrementais que continuam frutíferas em estágios posteriores de aprendizagem;
habilidades básicas são transferíveis, não aprendidas isoladamente ou fora de contexto.
Quadro 7 .2: Análise de Gee sobre videogames como ambientes de aprendizagem.

li :
[!] . .
· Veja: "Gee sobre videogames e aprendizagem':

Outrossim, a pedagogia dos letramentos na abordagem crítica envolve os alunos em trabalhos


"questionadores': ao interrogarem os textos com os quais lidam. Ao fazerem isso, eles "revelam"
visões de mundo, pressupostos, valores e atitudes ideologicamente investidos que servem para

12 Gee, 2007.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRÍTICOS i 145


informar - e são (re)apresentados nos - textos. Nesse sentido, os aprendizes reconhecem que os
textos são construtos ligados a práticas sociais e culturais, carregados de valores e, portanto, nunca
neutros, formando, com · isso, posições alternativas e múltiplos pontos de vista, demonstrando
"reflexividade críticà', o que lhes possibilita posicionamentos de engajamento em atos de intervenção
e transformação textual e.social.
Práticas de letramentos críticos podem, por exemplo, questionar a quem interessam textos
particulares, como funcionam, com que outros textos conflitam, em que contextos históricos e
culturais são produzidos. Isso envolve atividades de ler textos relacionando uns aos outros,
comparar vocabulários e gramáticas de textos relacionados, investigar como os leitores são
posicionados pelas ideologias nos textos, realizando múltiplos passos através deles, redesenhando-
-os e transformando-os. ' 3

Algumas questões para leitores mais jovens Algumas questões para leitores mais velhos
. Sobre o que é esse texto? Como sabemos isso? Quem estaria Qual é o assunto ou tópico?
mais propenso a ler e como podemos saber isso?
Por que o autor escreveu esse texto?

Quem é o público-alvo? Como você sabe?


O que o autor quer que saibamos (sobre o mundo e as pes-
soas nele)? O que as imagens sugerem? O que as palavras
. Que visão de mundo e valores o autor assume que o leitor
possui? Como se pode saber isso?
sugerem? Isso "corresponde" ao que você sabe (sobre o mun-
do e as pessoas)? Por quê?/Por que não? Que conhecimento o leitor precisa trazer para esse texto para
compreendê-lo?

Quem se sentiria "excluído" desse texto e por quê? Isso seria


O que o autor quer que acreditemos sobre o mundo e as
um problema?
pessoas? O que sugere isso para nós? Isso "combina" com o
que você acredita sobre o mundo e as pessoas? Por quê?/Por . Quem acha que as alegações feitas nesse texto colidem com
que não? os seus próprios valores, crenças ou experiências?
. Como o leitor é "posicionado" em relação ao autor (por exem-
. Como podemos reescrever esse texto para que ele "corres-
pio, como amigo, como oponente, como alguém que precisa
ser persuadido, como invisível, como alguém que concorda
ponda" de maneira mais próxima às nossas experiências e se
com as visões do autor)?
encaixe mais efetivamente naquilo que sabemos sobre o
mundo e sobre as pessoas? . Existem "lacunas'; ou "ausências'; ou "silêncios" nesse texto?
Se sim, quais? Por exemplo, há um grupo de pessoas ausentes
que logicamente deveriam ser incluídas? Os diferentes grupos
são mencionados como se pertencessem ao mesmo grupo?
O autor escreve sobre um grupo sem incluir sua perspectiva
sobre coisas ou eventos?
Quadro 7.3: Interrogando textos: Perguntas para os alunos fazerem ."

A professora Wanda está prestes a iniciar um estudo para discutir canais do YouTube como
parte de uma unidade de trabalho da sua disciplina. Ela pergunta aos alunos:
- A quais canais do YouTube vocês mais assistem? 4
A professora, então, os lista na lousa: Mundo Gloob, Bel para Meninas, Julia Silva, Tem Criança
na Cozinha etc. Ao fazer uma rápida pesquisa na turma, Mundo Gloob aparece como o canal mais
popular. Ela então diz:

13 Luke & Freebody, 1997.


14 Knobel, 1998, pp. 97-98.

146 1 LETRAMENTOS
- Ok, vamos falar sobre o canal Gloob do You Tube. Quais são os desenhos animados e personagens
de que vocês mais gostam desse canal? E por quê?
Wanda cria uma pesquisa on-line em que os alunos selecionam seus personagens e desenhos
favoritos relacionados ao canal Gloob e as razões de suas preferências.
- Agora vamos assistir ao canal. Quais são os conteúdos? Como são organizados? - pergunta a
professora.
- Tem Gabby Estrela, detetives do Prédio Azul, Gloob Gamer, Lady Bug. E toda segunda e quarta tem
vídeo novo - dizem alguns alunos, que vão listando e preenchendo o formulário on-line elaborado pela
professora Wanda.
- Tem também várias coisas para comprar - observam alguns alunos.
- Então, se esses desenhos animados já passam na televisão, por que vocês acham que há também
um canal no YouTube? - pergunta Wanda.
- Para mostrar coisas que não tem na televisão - responde um dos alunos.
- Para vender coisas para as pessoas - arrisca outro aluno.
- É, e eles às vezes juntam a história e as coisas que eles vendem. Aí a gente quer comprar ainda
mais - diz um outro.
A professora Wanda faz uma pausa para discutir esse ponto com toda a turma, demonstrando
sua preocupação com o lado manipulador dos canais comerciais do YouTube. Ela explora o assunto
com os alunos, dramando a atenção para as propagandas publicitárias, muitas das quais exibidas
de forma bem sutil, que têm como objetivo induzir as crianças a comprar e consumir os produtos
relacionados aos conteúdos do canal.
É realmente importante incorporar textos da cultura popular no currículo e utilizá-los em nossas
salas de aula de maneira pedagogicamente produtiva e orientada para a crítica. Para fazer isso, os
professores precisam entender os letramentos contemporâneos em seu sentido mais amplo, estando
cientes dos letramentos extraescolares com os quais os alunos se envolvem e valorizando a rica
experiência linguística, social e cultural que trazem consigo para a escola. Além disso, os professores
devem também estar conscientes ao objetificarem e abrirem os textos da cultura popular à análise,
tornando sua, construção perceptível e questionando - e convidando os alunos a fazer o mesmo
- o apelo desses textos, ao mesmo tempo que reconhecem o investimento pessoal e afetivo que os
alunos fazem em relação a eles e o prazer que extraem deles. 15

Aorganização do currículo do letramento: Foco na voz e na agência


Encontrando a voz
..,Jt
Pedagogias dos letramentos críticos são organizadas em torno da voz dos alunos, que, para Peter
McLaren, é o material das "histórias que as pessoas contam",16 pois consiste nas formas de expressão
que os indivíduos usam para articular sua experiência e representar seu conhecimento de fundo.
É o meio que as pessoas têm à sua disposição para "serem ouvidas" e para se definirem e estarem
presentes no mundo, constituindo um dos princípios da democracia: o de que as pessoas são livres

15 Dalley-Trim, 2012.
16 McLaren, 2015, p. 179.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRÍTICOS 1 147


para manifestar seus atos nos processos de governança que afetam suas vidas. Nesse sentido, um
dos objetivos dos letramentos críticos é que os "estudantes possam adquirir a coragem pedagógica
e a responsabilidade moral de participar da vida democrática como agentes sociais críticos,
transformando-se em autores de suas próprias histórias, em vez de serem considerados vítimas
passivas da histórià'.17 A esse respeito, Ira Shor assevera:

A maneira como falamos e falam sobre nós ajuda a nos moldar como as pessoas que nos tornamos. Através
de palavras e outras ações, nos construímos em um mundo que está nos construindo. [... ] O letramento
é entendido como ação social através do uso da linguagem, que nos desenvolve como agentes dentro de
uma cultura maior. 18

li
..
[!] - .
Veja: "Shor sobre letramento crítico".

Por essa perspectiva, encontrar uma voz não significa necessariamente se identificar com
todos ou alguns dos textos ao nosso redor, muito menos adquirir as vozes apresentadas na cultura
popular e na mídia apenas porque estão em toda parte. Ao contrário, pode-se até resistir e, de
fato, rejeitar as vozes e as "histórias" oferecidas. Nesse sentido, Anne Hass Dyson 19 fala da reação
de Tina aos papéis menos ativos das mulheres nas narrativas Ninja. No início, ela, assim como
as outras meninas de sua turma, se afastou das histórias Ninja porque lhe pareciam feitas para
os meninos e não para as meninas. Em uma reviravolta da narrativa, no entanto, Tina reconstruiu
uma dessas histórias para ter um super-herói feminino. A voz, nessa concepção, constitui uma
questão de interpretações variadas, que envolvem ambiguidade, ambivalência, complexidade,
contradição e fluxo.

Tornando-se criadores na nova mídia

As mídias digitais adicionam outra camada de oportunidade pedagógica para os professores,


criando um espaço contemporâneo, onde as vozes dos alunos podem ser expressas. As novas
tecnologias fornecem espaços para os alunos se expressarem na forma de vídeos, podcasts,
blogs ou wikis, que não são diferentes das ferramentas que os usuários mais experientes ou
profissionais têm. Lankshear e Knobel º apontam que essas tecnologias fomentam versões
2

"autênticas" em vez de "fingidas" das práticas sociais em questão. Nesse sentido, Gee2 1 observa
que "ferramentas digitais têm permitido que pessoas comuns possam produzir e não apenas
consumir mídia".

li
l!i_, . :. Veja: "Lankshear e Knobel sobre pedagogia para o i-Mode".

°17 Idem, p. 27.


18 Shor, 2009, p. 282.
19 Hass Dyson, 2001.
20 Lankshear & Knobel, 2006, p. 196.
21 Gee, 2010, p. 12.

148 1 LETRAMENTOS
A professora Wanda deseja que seus alunos utilizem uma nova mídia: o blog. Mas não quer
que eles apenas criem um blog para colocar qualquer tipo de informação. A ideia é que seja
um blog da escola, que contenha informações e discussões para a comunidade escolar e seu
entorno.
Primeiramente, a professora pede que seus alunos pesquisem vários blogs de caráter público
na internet. Os estudantes têm, então, a oportunidade de explorar diferentes blogs, que tratam
de questões bem variadas e fazem uso de recursos distintos. Feito isso, a professora cria um blog
e discute com os alunos o que poderia fazer parte dele. A primeira ideia que surge é colocar na
página o trabalho realizado por eles a respeito da poluição do rio localizado próximo à escola e
que foi entregue ao prefeito da cidade.
Em princípio, é colocada no blog a versão final do relatório e da apresentação em Power Point
que fizeram ao prefeito, com uma compilação de pontos-chave das várias apresentações que
criaram anteriormente. Surgem mais ideias: alguns alunos sugerem que o blog sirva para as
pessoas poderem acompanhar o andamento da resolução do problema de poluição do rio; cada
nova informação sobre isso seria atualizada na página para a comunidade escolar.

Preocupações "pós-modernas"

Educação pós-moderna: Uma A pedagogia crítica tem sido fortemente influenciada pelo que, algumas vezes,
orientação social e de aprendizagem
tem sido chamado de preocupação pós-moderna com as diferenças identitárias.
basea da na ideia de que não existe um
Essa versão crítica da pedagogia dos letramentos tem suas raízes na pedagogia
único modo de ser humano e de que
autêntica de John Dewey e compartilha muitas de suas suposições mais básicas,
não há uma verdade universal. Existe
sim uma ampla gama de perspectivas como atividades, motivação e experiência do aluno, por exemplo.
baseadas em diferentes experiências de No entanto, diferentemente da pedagogia autêntica de Dewey, cuja ênfase
vida, histórias, culturas e interesses.
recaía sobre a cultura singular da modernidade industrial, as ênfases das
pedagogias críticas mais atuais estão na diferença, na descontinuidade e na fragmentação cultural
e linguística irrev~rsível. Em outras palavras, acredita-se que a sociedade seja muito complexa para
que se possa prevê-la ou moldá-la; assim, tudo o que podemos fazer é ouvir uns aos outros. Nesse
sentido, aqueles que promovem a pedagogia crítica frequentemente estabelecem relações diretas
com movimentos intelectuais mais amplos, como o feminismo, os direitos homossexuais e os
movimentos antirracistas, que se tornaram mais vociferantes e eficazes a partir das últimas décadas
do século XX e se concentraram em reconhecer e respeitar diferenças socioculturais e identitárias.
A pedagogia crítica que estamos tentando problematizar neste capítulo está fundamentada nos
sentidos do mundo que prevalecem atualmente, muitas vezes encapsulados na palavra "pós-
-modernismo". Nessa perspectiva, grandes narrativas modernistas de progresso não seriam mais
válidas, uma vez que se reconhece que o mundo todo não caminha em direção ao futúf o único do
desenvolvimento econômico, do capitalismo das empresas privadas e da liberdade social, em que
todos os indivíduos devem ser tratados da mesma maneira. Em vez disso, a perspectiva crítica vê
enormes problemas sociais e ambientais decorrentes desses modelos econômicos.
A cultura ocidental, que está no centro da ideia de progresso e do sistema econômico do
capitalismo, não merece ser vista como a libertadora democrática de todas as sociedades, assim
como o que devemos aprender na escola não deve ser reduzido ao cânone ocidental; devemos

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRÍTICOS j 149


também aprender com outras tradições culturais e seus textos. Assim, não faria sentido querer
estabelecer um modo "correto' de ser ou de falar, ou uma interpretação "corretà' de um texto, posto
que tudo é uma questão de perspectiva; não há uma verdade, apenas pontos de vista. Por isso,
devemos nos regozijar de nossas diferenças, em vez de querer que todos sejamos iguais.
Aronowitz e Giroux 22 chamam a atenção para a decadência de "narrativas mestras", ou histórias
comuns que explicam nosso mundo, e de "metadiscursos': ou explicações que visam apresentar
o conhecimento universal que seria bom para todos. Ao problematizarem o lugar privilegiado
da cultura ocidental, onde esta se valida, os autores buscam "legitimar discursos subalternos
como iguais", 23 focalizando como a língua posiciona o autor e o leitor segundo raça, classe e
gênero.
Assim, a tarefa principal do currículo é ser relevante para os alunos, para que se conecte com
suas vidas e experiências pessoais. Nesse sentido, a pedagogia crítica do pós-modernismo e da
diferença se baseia nos insights da pedagogia autêntica sobre o válor do currículo como algo
ativo, nas mãos dos estudantes, e impulsionado por suas motivações, defendendo, desse modo,
o controle curricular e a diversificação de seus conteúdos, de acordo com a variedade de expe-
riências e interesses dos alunos.
Por exemplo, em uma escola de ensino médio pós-moderna, segundo Aronowitz e Giroux,
estudantes e professores teriam a autoridade final na tomada de decisões curriculares. Nessa
visão, não haveria requisitos impostos de cima, na medida em que os discentes planejariam seus
próprios cursos de estudo. Os professores, por sua vez, poderiam tentar persuadi-los, mas a
opção, em última análise, caberia aos próprios aprendizes, que tanto poderiam escolher cursos
que lhes fossem oferecidos, como, se não se interessassem por nenhum, teriam a liberdade de
optar por um estudo indepen9-ente. Mesmo dentro de uma aula ou curso, diferentes grupos
poderiam, então, trabalhar em coisas diferentes. A esse respeito, Garth Boomer 24 defende esse
senso de abertura do currículo ideal até mesmo na dinâmica do discurso em sala de aula, isto
é, até mesmo nas maneiras pelas quais professores e alunos falam e se relacionam uns com os
outros.
O que isso significa para o ensino e a aprendizagem de línguas? Para começar, há uma crítica
contínua ao ensino do repertório fechado dos "Grandes Livros". No mesmo espírito de Dewey,
Donald Murray critica o treinamento de professores de inglês em sua obsessão por literatura,
escrita e língua: "Então, totalmente treinados na autópsia, saímos e somos designados para ensinar
nossos alunos a escrever, para tornar a língua vivà'.25 Para John Mayer, 26 os produtos, e não os
processos de análise literária, são apresentados aos alunos, e as interpretações-padrão têm que
ser aprendidas por eles para que possam ser avaliadas pelos professores. No final, "nada questionado
significa que nada foi ganho". O trabalho com a escrita se torna, assim, um meio de elitismo e
exclusão, uma espécie de marcador que serve para separar aqueles considerados dignos de serem
os herdeiros do ensino superior e da cultura superior. ..Jt

22 Aronowitz & Giroux, 1991.


23 Idem, p. 14.
24 Boomer, 1982.
25 Murray, 1982, p. 14.
26 Mayer, 1990.

150 1 LETRAMENTOS
Múltiplas variedades da língua .

A pedagogia dos letramentos na abordagem crítica também questiona o valor do ensino de


inglês-padrão; 27 seus defensores argumentam que nenhuma variedade da língua deveria ser
considerada normal ou superior. Em vez disso, a língua rotulada como "padrão" tinha que ser
vista apenas como uma variedade culturalmente específica em um mundo de diferenças dialetais,
em que nenhuma cultura, nenhuma língua e nenhum dialeto poderiam ser considerados
superiores.
Em seu célebre estudo sobre o Black English Vernacular urbano, William Labov28 compara essa
variedade com o inglês-"padrão" da classe média urbana. Para o autor, o inglês-"padrão", além de
ser deficiente em alguns aspectos importantes, é incômodo e detalhado ao descrever assuntos
humanos centrais, como, por exemplo, a morte. Labov ainda destaca que essa última variedade,
como se nota no discurso acadêmico e em livros técnicos ou científicos, é "simultaneamente
específica e vagà', sem a clareza lógica e a gramaticalidade do Black English Vernacular. 29 Por isso,
negar ao Black English Vernacular um lugar legítimo na escola não é apenas condenar um recurso
cultural nascido da experiência de muitos estudantes, uma ferramenta cultural comprovadamente
eficaz, viva e ativa, mas é também prestar um grave desserviço aos seus falantes, assumindo
incorretamente que sua "línguà' e sua história são cognitiva e linguísticamente deficientes. Com
efeito, o problema para os falantes do Black English Vernacular não é sua língua, mas a visão
preconceituosa da escola sobre sua língua.
Uma possível solução para esses dilemas, na pedagogia dos letramentos de abordagem crítica,
é que a escola considere todas as variedades linguísticas - na verdade, todas as formas de usar a
língua - como possíveis: O foco deve estar, portanto, nas diferenças linguísticas e não nos supostos
"déficits" linguísticos. Nesse sentido, a escola deve "rejeitar visões racistas, elitistas e negativas sobre
'pureza linguísticà que limitariam as crianças à linguagem arbitrária 'adequadà", 30 compreendendo
que há diversas formas de falar e escrever, o que, por conseguinte, possibilita a conscientização de
que não há uma única variedade linguística "corretà', mas variedades de diferentes ordens que
integram uma determinada língua e que, em certos contextos, podem ser tão ou até mais adequadas
que a variedade tida como "padrão".
No que tange às variedades linguísticas no contexto escolar, Freire e Macedo 31 asseveram que o
"uso bem-sucedido do universo cultural dos alunos requer respeito e legitimação dos discursos
dos alunos, ou seja, seus próprios códigos linguísticos, que são diferentes, mas não inferiores". Da
mesma forma, no espaço territorial brasileiro, por exemplo, as múltiplas variedades linguísticas da
língua portuguesa usadas fora dos grandes centros urbanos da região Sudeste devem ser reconhecidas
e respeitadas.

27 Nessa parte, na versão original em língua inglesa, embora os autores se refiram ao ensino do inglês-padrão (standard
English), o questionamento também poderia ser estendido ao valor excessivo dado ao ensino de qualquer outra
língua-padrão, isto é, a variedade da língua socioculturalmente reconhecida e usada por grupos hegemônicos em uma
determinada sociedade.
28 Labov, 1972.
29 Idem, p. 222.
30 Goodman, 2005, p. 25.
31 Freire & Macedo, 1987, p. 127.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRÍTICOS 1 151


Ao conceber a mesma tendência na educação linguística em termos políticos mais amplos,
uma abordagem crítica dos letramentos se soma, portanto, a uma "pedagogia da voz", uma
narrativa para a agência, segundo Giroux,32 que faz parte de um "projeto moral e político que
liga a produção de significado à possibilidade de agenciamento humano, comunidade democrática
e ação social transformadora". Assim, no quadro de referência dos letramentos críticos pós-
-modernos, as escolas precisam assumir que não existem verdades literárias ou fatos linguísticos
universais e estáveis, mas apenas variedades da língua, com funções apropriadas e relativas à
experiência sociocultural.

Aprendizes praticando letramento: Engajamento em questões do


mundo real e cidadania ativa
Construindo-se com base na experiência vivida

Na África do Sul, Pippa Stein 33 descreve as sutilezas do que chama de "reapropriação linguística",
na medida em que os alunos em uma sala de aula sul-africana criam histórias bilíngues, baseadas
em tradições de contos africanos, mas cheias de elementos da política contemporânea e de ironia
aguda. Aqui está o início de uma história contada por Nobayeni Ndebele, de 13 anos:

Uma vez lá viveu Mandela [o primeiro presidente negro da África do Sul], Gatsha [o líder zulu do Freedom
Party Inkatha] e De Klerk [o último presidente do Apartheid da África do Sul]. Mandela visitou Gatsha
em sua casa e ele e Gatsha conéordararn em acrescentar uma poção à comida de Klerk para conquistá-lo
e trazê-lo para seu lado. Lá foram eles para a casa de Klerk, com potes de papa (um mingau grosso feito
de milho, a dieta básica da maioria dos sul-africanos negros) e carne. Quando chegaram lá, disseram a
De Klerk: "Hoje nós cozinhamos deliciosamente. Vamos comer juntos agora''. Então todos se sentaram à
mesa e Mandela c~rtou a carne. Ele cortou, cortou, cortou com cuidado e, em seguida, colocou-a sobre
a mesa artisticamente. Mas De Klerk não estava acostumado a comer papa. Mandela disse para ele: "Bem,
não sabemos o que fazer agora porque você não come papa. Nós, por outro lado, somos homens. Nós
comemos papa. Você, receio, nunca será forte". Então Gatsha disse: "Ok, deixe-me ir e comprar pão para
De Klerk". [Tradução da língua zulu]

Segue-se um conto de trapaça e intriga política, com um estudante traduzindo o texto para o
inglês àqueles da turma que não são falantes da língua zulu. Stein chama isso de processo de criação
de um "cânone alternativo': introduzindo formas textuais e linguagens que não são historicamente
valorizadas no currículo de letramento. Os alunos trabalham com esse cânone para aJ:}alisar os
propósitos sociais da produção de textos, discutir as complexidades da tradução, desvelar as múltiplas
camadas de significado e considerar as muitas interpretações possíveis.
Em ambos os casos, os alunos estão envolvidos com questões próximas de seus lares. Eles trazem
· suas identidades e seus interesses, suas experiências vividas, para apoiar o trabalho de letramento,

32 Giroux, 1987, p. 10.


33 Stein, 2001.

152 1 LETRAMENTOS
engajando-se em textos de suas próprias vidas e em um processo participativo de construção de
significados. Essa participação ativa, começando com a voz das próprias pessoas e das comunidades,
torna-se uma base para levar os alunos a novos domínios de motivação, significado e participação
mais expansivos, pessoal e socialmente relevantes.

Trabalhando com as novas mídias participativas


Muitos educadores atualmente veem oportunidades para expandir as possibilidades de participação
na nova mídia digital. Henry Jenkins 34 já observava que uma grande proporção de jovens participa
da mídia on-line, que se constitui na base para o que chama de "cultura participativa", em que as
barreiras ao engajamento da comunidade são baixas; pode-se aprender fazendo e por orientação
informal; os meios de expressão criativa são mais acessíveis; as pessoas sentem que suas contribuições
são importantes; e conexões sociais e vínculos são formados.

li
1 •
l!l!!
·
.
Veja: "Jenkins sobre cultura participativa".

De forma mais específica, James Paul Gee aborda o engajamento e a aprendizagem ativos
como práticas intrínsecas aos videogames. Para ele, os videogames são, em grande parte, "apenas
espaços de solução de problemas e mostram muitos dos princípios de aprendizado que a pesquisa
contemporânea nas ciências da aprendizagem argumentou trabalhar para uma aprendizagem
humana profunda e eficaz". 35 Nesse sentido, os videogames criam estruturas poderosas de
aprendizagem porque apoiam a participação ativa, seja através de comunidades observadoras de
jovens trabalhando corri wikis, blogs, seja por meio de ferramentas de produção de mídia digital
e repositórios na web. Isso mostra, ainda segundo Gee, as maneiras pelas quais a cultura popular
está cada vez mais usando ferramentas digitais e outros dispositivos para se envolver em
pensamentos e aprendizados poderosos, profundos e complexos fora da escola. A participação
significativa, ,portanto, é uma pedra de toque dos letramentos críticos, e as novas mídias podem
criar as condições culturais, para não mencionar as tecnológicas, para que a aprendizagem possa
ser mais ampla e poderosamente participativa.

Conectar-se com as experiên- Introduzir textos da vida dos alunos


cillS vividas

Pensar criticamente Visualizar várias perspectivas e desvelar várias camadas de significado

identificar problemas, preocupações relativas à voz

Reunir provas de urna variedade de fontes

Tomar atitudes Oferecer soluções

Conscientizar os outros, participar


Quadro 7.4: Dimensões dos letramentos críticos.

34 Jerikins, 2006.
35 Gee, 2010, p. 11.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRÍTICOS 1 153


- - ~ ~ - -------......:.

As relações sociais na aprendizagem de leitura e escrita: Letramentos


como ferramentas para assumir o controle da própria vida
Investigando questões sociais desafiadoras e dilemas morais

A professora Wanda passou a ensinar a história do Japão, a partir de uma unidade do livro
didático sobre a Segunda Guerra Mundial, e destacou como esta terminou com a explosão de duas
armas nucleares, destruindo as cidades de Hiroshima e Nagasaki. É um tópico que está longe dos
seus alunos no tempo e no espaço, mas ela quer trazer algumas questões históricas muito difíceis
para os discentes, integrando fortemente essa unidade à sua abordagem de letramento em todo o
currículo.
- Vamos começar usando nossa estratégia de registrar tudo o que já sabemos sobre o Japão - diz
a professora.
A classe se divide em grupos a fim de selecionar alguns tópicos sobre o Japão: comida, língua,
anime, mangá, tecnologia e Segunda Guerra Mundial. Os membros de cada grupo se revezam na
descrição de algo que saibam sobre esse país, incluindo o que já aprenderam em outras aulas.
- Agora, quero que cada grupo desenvolva uma atividade sobre Hiroshima hoje. Cada membro
do grupo vai coletar informações sobre algum aspecto da vidà em Hiroshima: geografia, locais públicos,
locais históricos e educação. Façam sua pesquisa individualmente, em seguida compartilhem o que
pesquisaram com os colegas e, por fim, voltem aos seus grupos para criar um panorama completo
dessas informações.
Há várias anotações, colagens de textos e imagens e muita conversa.
- Na próxima aula, vamos ver o que aconteceu em um dia terrível de 1945.
Na aula seguinte, ao entrarem na sala de aula, os alunos descobrem que a professora Wanda
cobriu as paredes com imagens e textos sobre o ataque a Hiroshima, mostrando a bomba atômica
atingindo a cidade: Ao mesmo tempo, há um videoclipe sendo exibido na lousa eletrônica.
A professora, então, lhes diz:
- Quero que vocês entrem em silêncio e deem uma volta pela sala, absorvendo todas as imagens.
Analisem como se sentem em relação a elas e o que podem aprender observando-as e lendo os textos.
Há um silêncio incomum na sala de aula. Algumas das fotos são chocantes.
- Agora, conversem entre si e decidam quais os aspectos que serão comentados a título de
contribuição ao debate no tempo do círculo. Em seguida, quero que vocês, em grupos de quatro
pessoas, leiam a transcrição de uma entrevista com Mitsuo Tomosawa, um sobrevivente. Para
ajudá-los, vocês receberão uma das seguintes funções de leitura: ilustrador, que desenh ~ algumas
imagens, algumas coisas que possam imaginar ao ler a entrevista. No final, vocês irão compartilhá-
-las e explicá-las para seu grupo; anotador de palavras, que fará uma lista de termos incomuns que
vocês tanto podem nunca ter visto antes, como apenas não ter certeza do significado. Essas palavras
serão discutidas no final; investigador, que agirá como se fosse entrevistar Mitsuo Tomosawa,
elaborando uma lista de perguntas para ele; organizador de discussão, que fará com que seu grupo
fale sobre. a entrevista que acabou de ler, fa zendo-lhe algumas perguntas interessantes sobre a
experiência de Mitsuo Tomosawa.

154 \ LETRAMENTOS
Esse é o começo de uma unidade de trabalho que vai durar várias semanas. Os alunos escrevem
cartas empáticas aos sobreviventes e elaboram uma análise crítica do papel das armas atômicas no
fim da Segunda Guerra Mundial. Eles também pesquisam e relatam a forma como a comunidade
japonesa local em seu país foi tratada durante a Segunda Guerra Mundial, e debatem quão justo
foi esse tratamento.
O trecho acima mostra que, embora o assunto seja distante da experiência dos alunos, a professora
Wanda usa uma série de estratégias que os leva a se tornarem participantes ativos do conhecimento,
começando com aquilo que já sabem. A professora faz com que contribuam com diferentes aspectos
do conhecimento em um quadro holístico, envolvendo-os emocionalmente, ao unir fatos e afeto,
e conectando eventos distantes com eventos locais. Ao fazer isso, ela posiciona seus alunos como
analistas e produtores de texto.
Por trás dos letramentos críticos está uma "economia moral" da aprendizagem, na qual o
equilíbrio da agência se desloca do modelo vertical de transmissão do conhecimento professor-
-aluno, típico da pedagogia didática, para um modelo horizontal aluno-aluno, no qual o conhecimento
é coconstruído em uma comunidade de alunos, o que lhes possibilita condições de uso dos
letramentos para obtenção de maior controle sobre suas próprias vidas.

Diferenças humanas ejustiça social ·

Existem duas vertentes principais para os letramentos críticos, que estão frequentemente
interligadas. Uma é de orientação generalizável, em que a "alfabetização críticà', nos termos
de Paulo Freire, consiste em processos de pensamento e atividades de reflexão sobre a realidade
social. Isso contrasta dirétamente com uma pedagogia didática, em que há "um sujeito narrativo"
(o professor) e o "paciente" ouvindo objetos (os alunos). A narração, feita pelo professor-
-narrador, leva os alunos a memorizar mecanicamente o conteúdo narrado, podendo, no pior
sentido, transformá-los em meros "recipientes", em "receptáculos" a serem preenchidos pelos
professores. 36 ,
..· Veja: "Resenha do livro Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire".
. l!l

A outra orientação é aquela que poderíamos chamar de "pós-modernà', que reconhece um


mundo de diferenças extraordinárias e irreconciliáveis e, por isso, segundo Giroux, 37 torna-se um
encontro de mentes com

um novo tipo de estudante forjado dentro de princípios organizadores moldados pela interseção da
imagem eletrônica, de cultura popular e de uma terrível sensação de indeterminação fí!:], encontrando
seu caminho através de uma paisagem cultural descentralizada não mais presa por uma tecnologia de
impressão, estruturas narrativas fechadas, ou a certeza de um futuro econômico seguro[ ... ], novas práticas
culturais hibridizadas inscritas em relações de poder que se cruzam diferentemente com raça, classe,
gênero e orientação sexual.

36 Freire, 2011 [1970].


37 Giroux, 1996, pp. 73-74.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRÍTICOS 1 155


No começo do século XXI, a pedagogia crítica se deslocou na direção dessa segunda vertente,
rumo a uma teoria da diferença cultural e linguística. Nessa abordagem, não se reconhecem mais
um cânone literário superior e uma forma-padrão oficial da língua nacional, mas apenas diferentes
tradições literárias, discursivas e culturais. Do mesmo modo, também não se reconhece a língua
como algo fixo e abstrato, mas como variedades linguísticas relacionadas a diferentes necessidades
e interesses culturais. Nessa visão plural de letramentos críticos, o conceito de "voz" do aluno passa
a ser central, o que, na prática, em qualquer sala de aula, significa "muitas e diferentes vozes': com
o professor, então, sendo entendido como um facilitador que dá espaço aos alunos para expressar
seus próprios interesses por meio de seus próprios discursos.
Contudo, em algumas ocasiões, essa abordagem pode, no limite, passar a ideia de uma concepção
do tipo "viva e deixe viver" em relação aos padrões de diferença, que, não coincidentemente, também
se alinham a padrões de resultados educacionais e sociais. Em outras palavras, nem todas as
diferenças são iguais e, por isso, simplesmente deixar as diferenças do jeito que estão também pode
significar deixar a desigualdade do jeito que está.
Naturalmente, vivemos em um mundo de diversidade cultural, de múltiplas identidades, de
muitos tipos diferentes de famílias, de subculturas, de estilos, de modismos e fetiches. É um mundo
onde há muitos e muitos canais de televisão, onde milhares e milhares de redes sociais se comunicam
por meio de diversas linguagens e onde os downloads do YouTube são infinitos, alcançando as
almas dos aficionados de todo tipo de discurso peculiar, do fundamentalismo religioso à pornografia
e ao neofascismo. Então, o que mais podemos fazer senão criar uma pedagogia que dê voz às
tendências culturais dos alunos de hoje e ao seu caleidoscópio desconcertante de variedades
linguísticas, dialetos e discursos? Essa questão faz parte das competências gerais da educação básica,
propostas pela Base Nacional C?mum Curricular (BNCC),38 relacionadas aos letramentos críticos,
conforme destacamos no Quadro 7.1.

li
.-
l!I
,
.
· Veja: "Kalantzis e Cope debatendo o letramento crítico':

Explorando conexões entre os processos de conhecimento


e a pedagogia dos letramentos na abordagem crítica

Ao relacionarmos este capítulo ao esquema dos processos de conhecimento que introduzimos


no capítulo 3, podemos notar que os letramentos críticos frequentemente se alinham ao processo
de conhecimento "experienciar o conhecido': no qual os alunos desenvolvem identidades pessoais
e voz. A pedagogia crítica também se alinha fortemente ao processo de conhecimento "analisar
criticamente", na medida em que questiona os propósitos do conhecimento e dos textos, fazendo
com que os discentes se engajem criticamente e os inspirando a se constituírem como agtntes de
mudança. Isso os leva a pensar sobre o mundo em que vivem, (re)considerar suas maneiras de
enxergá-lo e se expressar como um produto de seus pontos de vista ou perspectivas, por essa razão,
muitas vezes bem diferentes uns dos outros. Finalmente, a pedagogia crítica sugere que os alunos
se envolvam com o processo de conhecimento "aplicar criativamente", elaborando e incluindo textos

38 Disponível em <http:/ /basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf>.

156 1 LETRAM EN TOS


inovadores relacionados às novas mídias, que expressem suas identidades, seus interesses e suas
perspectivas.

COMPETÊNCIAS GERAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA


1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e
explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.

2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise
crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar
soluções (inclusive tecnológ icas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.

3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversifi-
cadas da produção artístico-cultural.

4, Utilizar diferentes linguagens - verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e· escrita), corporal, visual, sonora e digital -, bem
como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências,
ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo.

s. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética
nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimen-
tos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.

6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem
entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de
vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e
decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em
âmbitos local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.
Quadro 7,5: Competências gerais da educação básica propostas pela BN CC relacionadas aos letramentos críticos.39

Aplicando
criativamente

Figura 7.1 : Ênfases da pedagogia dos letramentos na abordagem crítica.

39 Brasil, 2 018. Disponível em <http:/ /basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF _ 11051 8 _ versaofinal_site.pdf>.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTO SCRÍTICOS 1 157


Em direção a uma pedagogia dos letramentos robusta

Não é nosso objetivo, neste livro, tomar partido nas disputas e nos conflitos perenes relativos
às pedagogias, visto que vários aspectos das pedagogias didática, autêntica, funcional e crítica
podem ter seu lugar na aprendizagem. Com efeito, o esquema dos processos de conhecimento
que introduzimos no capítulo 3 destaca a gama de tipos de atividades de que um professor pode
fazer uso no trabalho pedagógico, que são típicos de cada uma das pedagogias que descrevemos
nos últimos quatro capítulos (confira o Quadro 3.1 para uma visão geral).
Todavia, vale também destacar que o objetivo do esquema dos processos de conhecimento
não é o de prescrever um percurso pedagógico "correto", mas sim o de fornecer aos professores
ferramentas para mapear os caminhos que eles já seguem ou poderão vir a seguir. Isso pode
envolver enfocar mais ou menos uma determinada abordagem pedagógica, segundo motivos
justificáveis. Além disso, o esquema dos processos de conhecimento também pode ser usado
para se conectar a uma ampla gama de práticas pedagógicas por meio de travessias ou
equivalências relacionadas a cada uma das orientações para o processo de ensino e aprendizagem,
capturadas nos processos de conhecimento, e às principais tradições da educação. Nesse sentido,
os quatro processos de conhecimento são elementos que podem ajudar os professores a cons-
truir o hábito de refletir explicitamente sobre o impacto de suas escolhas nos resultados do
conhecimento.
Raramente qualquer uma das abordagens pedagógicas que descrevemos nesta seção do livro
predomina sem se basear em aspectos de, pelo menos, uma ou mais das outras três. Por exemplo,
em um célebre artigo, Brown e Campione defendem um meio-termo de "descoberta guiadà'.
Segundo os autores, "por um lado, há evidências consideráveis de que o ensino didático leva ao
aprendizado passivo. Mas, por outro, a descoberta não guiada pode ser perigosa",4º quando, por
exemplo, os estudantes inventam concepções equivocadas ou desperdiçam tempo escolar valioso
descobrindo coisas que poderiam ser. mais direta e explicitamente apresentadas a eles. Em vez
de "equilíbrio", o que sugere um certo "enfraquecimento" de diferentes abordagens em prol de
um suposto interesse de "moderação", recomendamos o entrelaçamento intencional entre
diferentes movimentos epistêmicos para resultados explicitamente direcionados, em que cada
um tem seu lugar. Dessa forma, nossa "abordagem intercruzada" procura fazer ligações com
práticas pedagógicas de herança produtiva.
Essa "abordagem intercruzada", em um sentido mais geral, também pode ser usada para
esquemas de objetivos educacionais com pretensão mais abrangente, como, por exemplo, um
mapeamento dos processos de conhecimento para um dos esquemas educacionais mais conhecidos
e amplamente usados, como a Taxonomia de Objetivos Educacionais, de Bloom.4' Produto de
um projeto patrocinado pela American Educational Research Association, publicado .;k
pela
primeira vez na década de 1950 e atualizado regularmente desde então, a taxonomia forneceu
um guia para aqueles que planejam e produzem experiências de aprendizagem e projetam
avaliações.

40 Brown & Campione, 1994, p. 230.


41 Anderson & Krathwohl, 2001.

158 1 LETRAMENTOS
Processos de conhecimento Equivalentes na taxonomia de Bloom (de Exemplos de letramentos
A a D são objetivos de conhecimento; de,
a 6 são os objetivos cognitivos)

Experienciar o conhecido D. Autoconhecimento metacognitivo. Conscientizando-se dos recursos para a cria-


ção de significado, relevância do conhecimen-
1. Processos cognitivos de rememoração: to pessoal e das experiências de textos e um
reconhecer e recordar. sentido de"voz''.

Experienciar o novo A. Conhecimento factual sobre detalhes Construindo sentido de novos significados
específicos, elementos e terminologia. sobre textos (não muito) desconhecidos.

2. Processos cognitivos de compreensão:


inferir, resumir.

Conceitualizar nomeando B. Conhecimento conceituai sobre Conceituando para metarrepresentação que


classificações e categorias. generaliza sobre elementos do design.

2. Processos cognitivos de compreensão:


classificando, exemplificando,
comparando.

Conceitualizar por teoria B. Conhecimento conceituai de princípios, Conectando conceitos para explicar como um
generalizações, teorias, modelos e tipo de texto funciona para fazer sentido, em
estruturas. termos gerais.

2. Processos cognitivos de compreensão:


explicando.

Analisar funcionalmente C. Conhecimento procedimental de Explicando como um texto específico funcio-


habilidade, algoritmos, técnicas e na, aplicando ou testando a teoria na prática.
métodos específicos do assunto
específico.

4- Processos cognitivos de análise:


diferenciando, organizando, atribuindo.

Analisar criticamente D. Conhecimento metacognitivo sobre Interpretando os propósitos de um texto es-


tarefas cognitivas. pecífico, incluindo os interesses humanos
envolvidos.
2. Processos cognitivos de compreensão:
interpretação.

s. Processos cognitivos de avaliação:


verificação, crítica.

Aplicar adequadamente C. Conhecimento processual dos critérios Criando um texto apropriado para um gênero
para determinar quando usar ou que seja viável em um contexto previsível
procedimentos apropriados. de uso.

3. Processos cognitivos de aplicação:


.-;,Jt
executando, implementando.

Aplicar criativamente D. Conhecimento estratégico metacognitivo. Criando um texto híbrido ou transferindo o


conhecimento do texto para um contexto
6. Processos cognitivos de criação: gerando, diferente.
planejando, produzindo.
Quadro 7 .6: Taxonomia de Objetivos Educacionais, de Bloom.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRfTICOS \ 159


Sumário
Pedagogia do letra- Pedagogia do letra- Pedagogia do letra- Pedagogia do letra-
menta na abordagem menta na abordagem menta na abordagem menta na abordagem
didática autêntica funcional crítica

Dimensão 1: Os Regras formais; a única Significados relevantes, Gêneros de sucesso esco- Orientação crítica para o
conteúdos do maneira correta de escre- autênticos e reais, em lar e poder social. mundo; aprendendo so-
conhecimento ver; ler e interpretar o práticas de leitura e escri- bre diferenças de língua-
de letramentos que os textos"realmente" ta. gem, poder, cultura po-
querem dizer; aprecian- pular e novas mídias.
do o cânone literário.

Dimensão 2: A O aluno segue o profes- Pedagogia de processos; Leitura de modelos de Apoio à agência do
organização do sor, que segue o livro di- unidades integradas; uni- gênero; produção textual aprendiz;foco no propó-
currículo de le- ciático, que segue o pro- dades de trabalho pia- de conteúdo próprio sito de construção de
tramentos grama curricular. nejadas pelo profe ssor; dentro ·de estruturas de significados
crescimento natural. gênero.

Dimensão 3: Cópia, repetição, memo- Aprendizagem ativa ; Material projetado por Envolvimento com ques-
Aprendizes pra- rização de regras e con- imersão em experiências especialistas, os andai- tões do mundo real; ex-
ticando letra- venções para obter as de leitura e escrita; peda- mes introduzidos pelo periências de cidadania
mentos respostas "certas''. gogia baseada na desco- professor e gramática ativa; criação de textos
berta pelo próprio aluno. funcional ; construção que se engajem no mun-
independente do aluno. do.

Dimensão 4: As Usando conhecimento Valorizando a autorreali- Aprendendo a significar Usando letramentos para
relações sociais autoritário de fatos obje- zação, pedagogia centra- em um ambiente social e assumir o controle sobre
da aprendiza- tivos; professor autoritá- da no aluno; os valores da em um contexto educa- as condições da própria
gem de letra- rio; disciplina da ordem expressão individual. cional onde o domínio de vida; ser um criador de
mentos espacial da sala de aula e gêneros particulares é significado adepto das
ordem temporal do pro- valorizado. novas mídias.
grama instrucional.

Processos de conhecimento
Conceitualizar nomeando
1. Adicione lexias à sua wiki, definindo os conceitos-chave na pedagogia dos letramentos: termos

importantes na análise dos modos através dos quais a comunicação e a língua funcionam e as
formas como são aprendidas. Mantenha e estenda essa wiki enquanto você trabalha com este e
os capítulos restantes deste livro.

Experienciar o novo
2. Localize uma fonte a partir da qual você pode ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia

dos letramentos na abordagem crítica. Sua fonte pode ser um currículo ou uma·'êntrevista com
um professor que acredita ou pratica a abordagem crítica. Escreva sua própria análise com base
nas seguintes dimensões:

a) os conteúdos do conhecimento de letramen tos;


b) a organização do currículo de letramentos;
c) aprendizes praticando letramentos;
d) as relações sociais da aprendizagem de letramentos.

160 j LETR AMENTOS


Experienciar o conhecido
3. Considere sua própria educação e reflita sobre as experiências nas quais se engajou em relação
à cultura popular e a textos das novas mídias digitais. Foi uma experiência agradável? Você
considera que é uma experiência de aprendizagem "valiosà'? Como essa experiência contribuiu
para formar sua opinião sobre o que você pensa da possibilidade de usar esses textos em sua
própria aula?

Experienciar o conhecido
4. Descreva um momento de aprendizagem em que você experimentou a pedagogia crítica. Como
foi esse momento? Você avalia como um momento de aprendizagem eficaz ou ineficaz? Por quê?

Aplicar apropriadamente
5. Nos capítulos desta seção do livro, você tem se engajado na: teoria e na prática das principais
abordagens dos letramentos. Escolha um tema de letramento que possa ser ensinado em uma
atividade escolar que exemplifique a pedagogia crítica. Escreva uma conversa hipotética entre
professor e aluno no decorrer dessa atividade.

Analisar funcionalmente
6. Analise um jogo de videogame usando a estrutura de análise de James Gee vista neste capítulo.
Encontre exemplos de cada tipo de aprendizagem no jogo em questão. Como os princípios de
aprendizagem do jogo se comparam à sala de aula na pedagogia didática?

Analisar criticamente
7. Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia crítica seria mais ou menos
apropriada.

Aplicando criativamente
8. Considere um aplicativo particularmente apropriado para a pedagogia crítica (para um
determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
esse aplicativo cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja crítico.

Aplicando criativamente
9. Este capítulo explorou a pedagogia dos letramentos na abordagem crítica, com particular ênfase
no uso de tal abordagem em relação à cultura popular e aos textos das novas mídias digitais.
Essa abordagem, no entanto, é aplicável a um exame de toda a gama de textos. Ao mudar a
ênfase da cultura popular e das novas mídias digitais, você deve escolher um livro (pode ser um
texto literário adulto ou infantil), considerando o seguinte cenário para preparar·'f tarefa:
Cenário: A escola na qual você trabalha está comprometida com o desenvolvimento profissional
dos funcionários e, como tal, é uma exigência para toda a equipe apresentar uma "Sessão de
Desenvolvimento Profissional da Equipe". Agora é a sua vez de apresentar sua proposta aos
funcionários da escola. Ao realizar essa tarefa, você é obrigado a preparar uma apresentação em
PowerPoint, com foco na implementação de uma abordagem pedagógica crítica dos letramentos
para o trabalho com o livro que escolheu.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS CRÍTICOS 1 161


Capítulo 8
Letramentos como designs
multimodais de significado

Visão geral
Construir significado é um processo de representação (fazer sentido) e de comunicação (fazer
com que uma mensagem possa ser interpretada por outra pessoa). Este capítulo analisa o processo
de design* atrav&.i do qual as pessoas se apropriam de recursos disponíveis para "significar" e os
usam como blocos de construção para projetar novos significados. Embora sejam frequentemente
semelhantes, os significados então criados nunca são os mesmos que os anteriores, pois se tornam
significados retrabalhados (redesigned) ao entrarem no mundo. Nesse sentido, podemos dizer que,
como o mundo sempre é, em maior ou menor grau, transformado, então, o ciclo de construção de
significado pode começar de novo. Embora seja ainda comum nas escolas separar as práticas de
letramentos que lidam com a mecânica da leitura e da escrita, nossos processos de construção de
significados são sempre, ao menos em certa medida, multimodais, posto que reúnem modalidades
escritas, visuais, espaciais, táteis, gestuais ~ onoras e orais. Isso é ainda mais evidente na
contemporaneidade, uma vez que os novos me10s digitais são intrinsecamente multimodais. Este
capítulo sugere uma abordagem para "análise dos designs': constituindo-se em um prelúdio para
os seis capítulos desta seção do livro, que procurarão esboçar uma gramática multimodal que nos
ajudará a descrever e entender a construção de significado em diferentes modos.

Construção de significado na representação e na comunicação


Construindo significado na atualidade
.-.lf°

Morgan: O Gyarado, ele é um Pokémon de água. Um grande. Você consegue no Shootport City. É no
fundo do mar. Você precisa mergulhar para chegar lá. Você precisa mergulhar e há uma abertura debaixo
d'água. Então você passa por lá.

* O .termo design pode englobar tanto um sentido mais restrito, isto é, uma instanciação de convenções e recursos
construídos e reificados socioculturalmente, como um sentido mais amplo, o de um processo de retrabalho que leva à sua
própria ressignificação, transformação. Dadas a ambivalência do termo e a possibilidade de a tradução para o português
não contemplar ou mesmo distorcer tal ambivalência, a opção aqui foi deixar o termo em inglês. (N. da T.)
Pesquisador: Essa é uma cidade que está submersa?
Morgan: Não, não é debaixo d'água, é no topo. Você vai debaixo d'água. Você aperta a velocidade. Você
sobe, então você [... ] desse jeito, e então você descobre que está nele.
Pesquisador: Então, é uma sorte que você tenha encontrado ou saiba ir até lá?
Morgan: Eu sei ir para lá. No antigo jogo eu passei por isso. Eu passei por tudo e passei e não consegui
o Pokémon grande ...
Pesquisador: Quando você está jogando este jogo, você se sente como se estivesse jogando ou se sente
fora do jogo?
Morgan: Fora do jogo. Sim, mas às vezes eu gostaria que este fosse o mundo Pokémon, mas isso não se
torna realidade.1

Morgan tem 10 anos e é um ávido jogador de Pokémon. No trecho acima, ele conversa com os
pesquisadores que lidam com novos letramentos midiáticos Sue Clancy e Tom Lowrie sobre um
dos jogos mais vendidos de todos os tempos: Pokémon, disponível em diversos tipos de mídias.
Ao jogar, Morgan navega por diferentes paisagens em uma jornada que lhe permite encontrar
muitas das centenas de espécies de Pokémon, envolvendo-se em uma ampla variedade de letramentos:
visual, espacial, auditivo, escrito e gestual. Nesse sentido, vale destacar, por exemplo, as maneiras
pelas quais palavras e imagens representam o espaço do jogo e como Morgan tangivelmente sente
uma espécie de preset1.ça física no espaço Pokémon.
Clancy e Lowrie mostram que, ao jogar Pokémon, o pensamento de Morgan é organizado por
meio de duas narrativas: as narrativas internalizadas, que são "aquelas que os jogadores constroem
enquanto se movem através dos processos reais do jogo", e as narrativas externalizadas, "aquelas
que os jogadores constroem quando estão conversando sobre aspectos dos jogos".2
As narrativas internalizadas são as que chamamos de representações; trata- Representação: Construir signific
-se dos processos de raciocínio que Morgan usa para construir sentidos sobre para si mesmo, usando um sistema
o jogo, isto é, sobre sua natureza, seu propósito e seus personagens, o que lhe sinais para "fazer sentido" sobre o
mundo.
permite fazer escolhas significativas sobre aonde ir e o que fazer para seguir
nele. As narratiyas externalizadas ocorrem quando ele explica a história para Comunicação: Sinais construídos,
outra pessoa, nesse caso, os pesquisadores, o que chamamos de comunicação. outra pessoa pode em algum mome
receber.
Narrativas internalizadas ou representação Processos de pensamento que usamos para construir
sentidos sobre coisas e ações.

Narrativas externalizadas ou comunicação Expressões de significado que construímos para


outra pessoa.
Quadro 8.1: Representação e comunicação.

Sistema de significados e semiose

Os letramentos são processos de construção de significado, às vezes chamados de "semiose", ou


o processo de usar signos. O campo acadêmico de estudo de sistemas de signos é o da semiótica,
que se constitui de forma multidisciplinar, traçando as conexões entre um significante (uma palavra,

1 Clancy & Lowrie, 2005, pp. 143-144.


2 Idem, 2003, p. 129.

166 1 LETRAMENTOS
por exemplo) e aquilo que significa (aquilo a que se refere), e entre os significantes em sistemas de
signos (por exemplo, entre línguas).
Na frase "Nós levamos o cachorro para passear na ruà', "Nós", "levamos", "cachorro", "passear"
e "ruà' são todos significantes: palavras que usamos para representar coisas que existem (isto é, as
coisas que elas significam). No entanto, esses significantes não fazem muito sentido separadamente
um do outro, pois se encaixam em uma frase significativa baseada na relação sistemática entre as
palavras. Por exemplo, a estrutura da oração nos diz que o cachorro não está nos levando para
passear; nós é que o estamos levando para passear. Além disso, há um conjunto maior de significados
não implícitos, isto é, não ditos na mesma frase: "nós" significa "não eu" ou "não apenas um de
nós"; "levamos" significa "não levaremos" (no futuro); "passear" significa "não correr': para mencionar
apenas algumas alternativas contrastantes. Desse modo, a frase faz sentido não como uma colagem
de significantes separados, mas como um conjunto estreitamente interconectado de significados
que se encaixam em um sistema de significado extremamenté complexo da língua como um todo.
Nesse sentido, a realidade em que vivemos não é um conjunto de coisas arbitrariamente lançadas
juntas para significar algo, mas sim significados experienciados, que se juntam em padrões que
fazem sentido em nossa realidade cotidiana. Por isso, quando esses significados, de alguma forma,
contradizem nossas intuições, como, no exemplo inverso, em que "o cachorro nos levou para passear
na ruà: achamos es~ranho e chegamos até a rir dessa situação.
Assim, em um sistema de signos, os significados que criamos entre os significantes são projetados
para corresponder às conexões entre as coisas que estamos vivenciando. Nessa perspectiva, tanto
os nossos significados simbólicos (significantes) quanto nossos significados
Sistema de signos: Uma série de
experienciados (significados) formam um sistema coerente. Quando as coisas
significantes interconectados
5imbolos), que representam uma série estão indo bem, quando as coisas estão fazendo sentido, as conexões entre nossos
de significados interconectados (aquilo significantes nos parecem corresponder muito bem às conexões que estamos
.f pode ser experienciado no mundo).
experimentando no mundo.
As conexões entre significantes e significado Significados simbólicos

são questões de convenção e variam de língua Significante "levamos" --==,


Significante "o cachorro"
para língua. Assim, todos nós podemos saber Significante "Nós"
Significante "para passear"

sobre cachorros, mas é uma convenção da nossa


cultura conectar a palavra "cachorro" ao animal.
Em grego, a palavra para representar esse mesmo
Significado Significado
animal é skili, mas os sons ou a aparência dessa ~ Significado - - - r - - - - -

Significado
palavra não têm sentido se não se conhecem as
convenções do grego como um sistema de Figura 8.1: Um sistema de signo.
signos.
Neste livro, em vez de usar as palavras "semiose" ou "semiótica" para descrever o estudo dos
sistemas de signos, vamos lidar com o conceito mais simples: construção de significa~. A construção
de significado ocorre quando inserimos os significantes juntos em um sistema coerente, que
corresponde mais ou menos aos sentidos do mundo de nossos significados experienciados, ou ao
significado.

li
.
I!]
· ·.• ·Veja: "Arbitrariedade (do signo)".
.

LETRAMENTOS COMO DES!GNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO 1 167


Representação
Tomando como exemplo a experiência de Morgan, que constrói significados no e sobre o seu
espaço Pokémon, podemos dizer que este livro é, de alguma forma, sobre como a escola, apoiada
pelos letramentos, pode ajudar seus alunos a se tornarem capazes de construir significados em uma
época de grandes mudanças de diversas ordens e em todas as áreas do conhecimento, não apenas
naquelas áreas tradicionalmente relacionadas à linguagem. Nesse sentido, temos procurado mostrar
aqui que as mudanças em nossas comunicações e ambientes de aprendizagem são tão significativas
que precisamos expandir nosso quadro de referência, deslocando -nos, com isso, da ideia de
"letramento" para "letramentos". Isso porque, mais do que ler e escrever, atividades tradicionais
relacionadas ao letramento da "letra", também precisamos nos concentrar na criação de significados
multimodais como uma estrutura ampliada para os letramentos no plural, a qual está na base da
teoria dos multiletramentos, que desenvolvemos com colegas ao lorigo de vários anos e que vamos
agora delinear na Parte C deste livro. 3
Como apontamos anteriormente, construímos sentidos para nós mesmos - a representação
(narrativa internalizada de Morgan) - assim como construímos significados que usamos em nossas
interações com os outros - a comunicação (narrativa externa de Morgan) . Naturalmente, esses dois
tipos de construção de sij;n~cado estão intimamente conectados, pois, por exemplo, muitas vezes
pensamos sobre o que varh.os dizer (representação) antes ou conforme dizemos (comunicação).
Nesse sentido, a representação não é apenas um aspecto fundamental do que comunicamos por
meio da fala ou da escrita, por exemplo, mas também do que representamos para nós mesmos
(significados comunicados que ouvimos e lemos dos outros). Isso é chamado
Interpretação: Osentido que alguém
de interpretação. Ensinar e aprender em todas as áreas do conhecimento nos constrói de uma mensagem comunicada
obrigam a conhecer e compreender os processos d istintos envolvidos na por uma outra pessoa.
representação e na comunicação e suas naturezas sobrepostas.
A representação se inicia com o nosso interesse, algo que no momento capturou nossa atenção
ou para o qual direcionamos nosso foco mental. Podemos estar pensando em algo, olhando para
algo, dando sentido a algo que estamos vivenciando, conversando silenciosamente sobre algo, ou
ensaiando em nossas próprias mentes o que podemos dizer a outra pessoa. É claro que as condições
preexistentes suportam esse processo de representação, como a nossa capacidade de enxergar de
forma significativa (entender as coisas que podemos ver e saber o que essas coisas significam);
ouvir de forma significativa (ouvir uma conversa ou uma música, por exemplo); ou usar a linguagem
como uma ferramenta para pensar e também para se comunicar (fala e escrita). Isso é o que
aprendemos; aquilo que nos permite entender o mundo; em outras palavras, é o que nos possibilita
fazer sentido para nós mesmos. Por essa perspectiva, os letramentos se constituem em ferramentas
para construir esse significado para nós mesmos por meio do trabalho cognitivo de representação
que fazemos com nossas mentes, a matéria-prima do pensamento. ---lt

Representação Dizer a si mesmo

Comunicação Dizer ao(s} outro(s}

Interpretação Dizer a si mesmo o que acha que o(s} outro(s} significa(m)


Quadro 8 .2: Representação, comuni cação e interpretação.

3 Cope & Kalantzís, 2009; New London Group, 1996.

168 i LETRAMENTOS
Interpretação
A representação também é muito fluida, pois Representação

~
Comunicação
não é simplesmente uma questão de aplicar as
regras da língua ou as convenções de reconhe-
cimento da imagem. Os construtores de signi- q;ºº ~
------·
ficados não apenas veem as coisas como são;
eles também, até certo ponto, veem as coisas por
meio dos olhos de sua mente, isto é, das manei-
ras que lhes convêm, que se encaixam em seus
preconceitos (ideias preestabelecidas). Nesse
sentido, estão sempre (re)construindo seus
mundos, vendo-os de novas maneiras, pensan -
do novos pensamentos, visualizando coisas por
novas perspectivas e imaginando novas possi-
bilidades. Essa é a fonte da criatividade e da
Figura 8.2: Representação, comunicação e interpretação.
inovação humanas.

Representação
Comunicação
A comunicação ocorre quando uma pessoa
cria uma mensagem - texto oral, escrito ou uma
imagem, por exemplo - que, de alguma forma,
afeta o universo de significado de outra(s) Interpretação
( \
Intenção de comunicar un
mensagem para outros (,
Representar para si a mensagem
pessoa(s). Toda mensagem sugere uma respos-
ta, mesmo que assuma a forma de uma respos-
ta silenciosa ou anônima, como ouvir, ler ou ver,
que pode ser dada até mesmo por alguém que
•--~~w-~------~) Comunicação

--------
Uma mensagem de uma pessoa que ativa uma
não se conhece ou de quem não se esperava interpretação por uma outra, construindo significados
na interação com o(s) outros(s)
receber, mas que, por assim dizer, reagiu à men-
sagem. Figura 8.3: Ociclo de construção de significados.
Nessa perspectiva, a comunicação é algo re-
cíproco; a ação de significado de uma pessoa incita a representação de outra(s) pessoa(s) e, possi-
velmente, também uma ação comunicativa dela(s). É uma troca de significados entre o falante e o
ouvinte, o escritor e o leitor, ou o criador de imagens e o espectador. A representação é individual
e cognitiva; a comunicação é social e interativa. A representação está no pensamento de uma pes-
soa; a comunicação está nas pessoas relacionadas ao pensamento de cada um. ..,;it
Assim, a comunicação requer a criação de algo que pode ser considerado uma mensagem de
uma pessoa (como uma expressão falada, um gesto ou uma imagem apresentada), que somente se
constitui quando uma outra pessoa se conecta com essa mensagem. Contudo, a conexão não é
apenas uma questão de recebimento da mensagem, como um simples modelo de transmissão de
comunicação poderia sugerir (o construtor de significado cria a mensagem ➔ envia a mensagem
➔ o público recebe a mensagem), mas também de interpretação. Por isso, ouvintes, leitores e
telespectadores têm que realizar um trabalho próprio de representação ou de pensamento, a fim

LETRAMENTOS COMO DESIGNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO 1 169


de que a mensagem "converse" com eles mesmos, assim como precisam interpretar a mensagem
para que isso faça sentido para eles.
Com efeito, é preciso considerar que as interpretações sempre podem variar, dependendo do
que as pessoas estão dispostas a ver ou ouvir na mensagem. Portanto, não há duas interpretações
de uma mensagem comunicada que possam ser consideradas iguais, porque duas pessoas nunca
terão a mesma perspectiva de mundo. Quando, por exemplo, a pessoa A pergunta: "Posso ajudar
você?", a pessoa B pode pensar: "ótimo, concluiremos a tarefa mais rapidamente"; porém, ao ouvir
a mesma mensagem, a pessoa C pode pensar: "Será que ela acha que eu não consigo fazer isso
sozinha?':
Assim, o intérprete não absorve a mensagem como se esta pudesse falar por si só, mas, em vez
disso, ele a interpreta em seus próprios termos. Em outras palavras, o intérprete só recebe uma
mensagem, filtrada pelo prisma das maneiras pelas quais aprendeu a representar o mundo para si
mesmo, por meio de suas próprias experiências, interesses e identidades, posto que só ouve ou vê
aquilo que pode ou quer ouvir e ver. Nesse sentido, não há como evitar a tarefa de interpretação
ou dar sentido a uma mensagem para si mesmo. Contudo, isso não quer dizer que os ouvintes
estejam sempre tão preocupados com seus próprios interesses e presos em suas próprias perspectivas,
que se tornem refratários (indiferentes) a ouvir algo novo, mesmo que muitos comunicadores, de
forma frustrada, à~ vezes achem isso. Ouvintes, leitores e espectadores são, em maior ou menor
grau, movidos e modificados pelas solicitações de significado com as quais deparam.
A comunicação pode, às vezes, envolver ciclos de esclarecimento nos quais se repetem coisas
ou se reparam mal-entendidos. Nesse sentido, por exemplo, a frase "agora, eu entendo quando você
diz que ... ?" pode levar a um alinhamento mais próximo da mensagem e a uma rerrepresentação
do significado na interpretação do ouvinte. No entanto, outras vezes, esses ciclos podem demonstrar
um desalinhamento mais amplo de significados do que se pensava originalmente, como na frase
"eu não posso acreditar que você está realmente dizendo isso", que talvez só possa ser dita para si
mesmo, pois, proferida em voz alta, poderia ofender a outra pessoa. Seja qual for o resultado
sociointerativo, o ponto é que a comunicação é uma questão de dar e receber, um processo recíproco
que envolve interpretações bem como solicitações.

il
__ · .. · Veja: "Kress sobre representação e comunicação".
l!I"" .

Construção de significado como um processo dinâmico

Ao entendermos a construção de significado como um processo dinâmico, estamos nos


distanciando das premissas herdadas da pedagogia do letramento na abordagem didática, cuja
.-,r
ênfase está nos significados estáveis e consistentes e na sua transmissão direta, isto é, nos significados
corretos das palavras, na oração gramaticalmente correta, ou naquilo que "o autor quer dizer", por
exemplo. Nessa perspectiva, o processo de representação é uma mera questão de "obter" significados
como se estes fossem estáticos e intrínsecos; como se estivessem em uma espécie de código esperando
para ser decodificados por ouvintes, leitores e espectadores. Se a língua fosse, de fato, um código
objetivo, tudo o que teríamos que fazer seria decodificar seus significados e deixá-los falar por si
mesmos. Na abordagem dos multiletramentos, por outro lado, enfocam-se a inevitável fluidez de

170 1 LETRAMENTOS
significados, suas diferentes interpretações e a necessidade de negociá-los socialmente. Em outras
palavras, reformulamos significados contínua e ativamente, pois estamos sempre atribuindo sentidos
ao mundo de novas maneiras; nossas próprias maneiras. Estamos sempre envolvidos em um trabalho
com significados comunicados, rerrepresentando-os, a fim de que façam sentido para nós. Esse
processo de interpretação pode ser silencioso, quando ocorre em nossas próprias mentes, mas
também pode ocorrer em voz alta, ou visível, solicitando, assim, uma resposta do comunicador do
significado ou de outra pessoa que esteja por perto.
Por essas razões, o processo de comunicação não se reduz apenas a uma questão de "entendimento"
ou "compreensão"; o que o leitor, o ouvinte ou o espectador representa para si mesmo ao interpretar
uma mensagem não é o que a mensagem diz de forma transparente, mas o que faz da mensagem,
a maneira particular de ouvir ou ver a mensagem, o que d 7pende de seus próprios interesses e da
maneira de rerrepresentar a mensagem para si próprio. Por exemplo, a pessoa A pode dizer "gosto
do seu trabalho': A pessoa B pode entender isso, de fato, como um reconhecimento de alguém que
aprecia seu trabalho; para C, isso pode significar que, além do reconhecimento, A poderia querer
copiar seu trabalho a partir de então; enquanto D pode pensar que A está apenas dizendo isso para
fazê-la se sentir melhor, mas realmente não gosta de seu trabalho.
Destaca-se ainda que essa fluidez na construção de significado é contrária aos principais
pressupostos dos testes de leitura que tentam mensurar a "compreensão" leitora, buscando respostas
certas e erradas para questões de múltipla escolha. Isso porque ler não é apenas uma questão do
que o autor realmente quis dizer, mas é, sobretudo, uma questão de interpretação, por isso, na
leitura, as questões mais importantes são, de fato, aquelas mais abertas à interpretação. Saber o dia
exato em que uma ação específica aconteceu em uma determinada história é algo que possivelmente
não estaria aberto a muita interpretação, mas, muito provavelmente também, não seria algo muito
interessante de saber. Por outro lado, aquilo que envolve intepretação, como os tipos de personagens
envolvidos, seria muito mais significativo para a compreensão do aluno. Nesse sentido, por exemplo,
poderíamos fazer uma pergunta muito mais interessante que nenhum teste-padrão de compreensão
leitora faria: "Com qual personagem você se identifica na história e por quê?"; nesse caso, cada
leitor teria uma resposta diferente. Isso, é claro, não quer dizer que vale tudo, ou que tudo é uma
questão de interpretação subjetiva, mas sim que a interpretação é sempre uma parte da equação;
e quanto mais profundas forem as questões em jogo, mais espaço haverá para argumentar sobre

' interpretações alternativas.


'.l!l

li
l!l .
·.• Veja: "O rumor da língua: A morte do autor".

Construção de significado como um processo de design


.,.Jt

Usando recursos para "significar"

Jason Ranker usa a ideia de design dos multiletramentos para analisar os processos de escrita
de John, seu ex-aluno de 8 anos de idade, que inclui a maneira como o menino se comunica e as
representações ou os processos de pensamento que moldam sua comunicação. John está criando
uma história em quadrinhos baseada na história do Grim Reaper.

LETRAMENTOS COMO DES/GNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO 1 171


Jason: De onde você tirou a ideia de ter um personagem chamado Grim Reaper? Isso foi de um programa
de televisão ou um livro ou algo assim? Ou você inventou?
John: Eu inventei ele. Eu não sei.
Xavier [que estava sentado perto e ouvindo a conversa]: do Grim, você sabe, em Grim & Evil. 4
John: Ah, sim. É algo que vem disso. Na verdade, eu acho que é disso ...
Jason: Que partes de seus quadrinhos vêm de Grim & Evil?
John: Grim & Evil dificilmente tem outros monstros nele. Não é bem sobre o Grim Reaper. Ele é apenas
um dos personagens.
Jason: Que outros tipos de programas têm outros monstros neles?
John: Com o Grim Reaper? Nenhum. É mais como uma história em quadrinhos de ação. Como Marvel.
Mais ou menos como uma história em quadrinhos da Marvel.
Jason: O que acontece neles?
John: Bem ... é como uma história em quadrinhos de super-heróis. Os super-heróis lutam.
Jasón: Você lê muito quadrinhos de super-heróis?
John: Sim. Eu tenho alguns em casa, o Homem-Aranha e o Hulk. 5

A história de John sobre Grim Reaper e o meio de comunicação da história em quadrinhos que
ele usa para comunicar sua história são baseados em uma ampla gama de recursos extraídos de
seu mundo de significados: personagens da história, imagens, temas e tipos de diálogo. Mas não é
de forma alguma uma cópia desses recursos, pois, na verdade, John está fazendo uso de uma grande
variedade de recursos para construir significado, incluindo histórias em quadrinhos, internet,
li
televisão e videogames. Ele acaba criando seis rascunhos de sua história em quadrinhos, cada um
transformando ainda mais esses significados, à medida que apresenta sua reformulação particular
da história.

Dois significados para design

Como, então, se constrói significado? Quais são os processos pelos quais pessoas como John
passam? A teoria dos multiletramentos de construção de significado se expande para além de
estruturas mais estáticas, como "gramática tradicional" e "cânone literário", para entender
representação e comunicação, sugerindo uma concepção mais dinâmica de criação de significado
como um processo de design. Escolhemos a palavra design pelo seu duplo Design: um padrão de significado e
significado fortuito. Por um lado, está presente em todas as coisas do mundo, também um processo de construção d
padrões e estruturas que existem em coisas naturais e feitas pelo ser humano, significado.
como na forma do desenho de um relógio de corda ou na folha de uma planta. Assim, todas as
coisas "têm designs", incluindo as intangíveis, abstratas, como conhecimento. Mensagens, por
exemplo, possuem designs; suas partes podem ser identificadas, assim como o mo'tfo como se
encaixam. Design, neste sentido, é o estudo da forma e da estrutura nos significados que
construímos, o que chamamos de "morfologia", e, nessa concepção, o design é usado como um
substantivo.

4 Grim & Evil é uma série de desenho animado americana produzida e exibida pelo canal de televisão Cartoon Network.
5 Ranker, 2007, pp. 418-419.

172 / LETRAMENTOS
Por outro lado, o design constitui também uma sequência de ações, motivada por nossos
propósitos, que torna a representação um processo de pensamento, e a construção de mensagem
um processo de comunicação. Nesse sentido, o design é algo que se faz, um ato de representação
ou comunicação, que produz um alerta em forma de som ou imagem a que outra pessoa pode
responder. Essa segunda acepção de design leva a palavra de volta à sua raiz latina designare, que,
em português, pode ser traduzida como "designar" (um verbo) e, neste sentido, se refere a um certo
tipo de agência ("designar algum sentido"), a algo que se faz.

Design como substantivo A forma e a estrutura de algo, como os componentes do _)


significado e como eles estão conectados {um texto escrito,
um texto falado ou uma imagem, por exemplo).

Design como verbo Uma sequência de ações, como representação➔ comunica-


ção ➔ interpretação.
Quadro 8.3: Significados para design.

Queremos trabalhar com essa duali-


dade de significados para o termo design
a fim de destacar dois aspectos intima- Designs (disponíveis)
Recursos para construção de significado:
mente relacionados a esse vocábulo: artefatos encontrados de comunicação,
ferramentas para representação e
design como estrutura de significado (as materiais expressivos que podem ser
retrabalhados para novas mensagens.
partes que compõem uma oração, uma
música, um livro ou um vídeo, bem
como as conexões específicas que man -
têm essas partes juntas) e design como
agência socialmente influenciada e di- Designing
Redesigned Trabalho de construção de
rigida (nossa intenção de comunicar, a Designs disponíveis novos: traços significado: reconstruindo
recursos disponíveis para
mensagem que criamos e sua interpre- de significado que transformam
o designer e o mundo significar, com a intenção de
atender à representação à
tação para/por outra(s) pessoa(s)). A comunicação.

Figura 8.4 triostra como o design fun-


ciona de acordo com um processo de
construção de significado em ação. Figura 8-4: Oprocesso de significado pelo design.

Designs (disponíveis)

Vivemos em um mundo de designs: padrões de significado disponíveis para nós na forma de


nossa herança cultural e ambiental, que se traduzem em convenções de linguage~ imagens, sons,
gestos, toques e espaço. Ouvimos, vemos e sentimos esses designs, pois vivemos com eles desde
que nascemos. Aprendemos a usá-los para criar significado para nós mesmos e para interagir com
os outros. Os designs estão disponíveis para nós como recursos de construção de significado,
constituindo-se, ao mesmo tempo, em significados no mundo (o "sentido" ou a ordem no universo
que torna as experiências coerentes) e em significados para o mundo (os significados que fazemos
do mundo em nossa "construção de sentido" ou interpretação).

LETRAMENTOS COMO DESIGNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO 1 173


Odesigning

No processo de designing, ao usarmos recursos de construção de significado em/com designs


disponíveis, engajamo-nos em atos de design , criando, assim, novo(s) design(s). No entanto, ao
colocar os designs disponíveis para uso, o construtor de significado nunca simplesmente replica ou
copia os designs encontrados, ainda que as matérias-primas de que faz uso pareçam ter sido
amplamente reproduzidas a partir de padrões bem estabelecidos de construção de significado.
Nesse sentido, o construtor de significados sempre cria um novo design, p~sse design é
inevitavelmente uma expressão de sua voz, que se baseia na combinação única de recursos para a
construção de significado, com base em códigos e convenções disponíveis em seus contextos e
culturas.
Esse momento de design é um momento de transformação, que, de alguma forma, refaz o mundo
projetando-o novamente. Nesse sentido, designing é o ato de fazer algo com designs disponíveis de
significado, seja representando o significado para si mesmo, por meio dos processos ativos,
interpretativos, de ler, escutar, ver; seja comunicando-o aos outros, por meio da criação de enunciados
que podem ser respondidos através da escrita, da fala, de fotos e/ou vídeos. Essa é a razão pela
qual, quando estamos envolvidos no processo de designing, nunca nos limitamos a reproduzir
designs disponíveis, posf;l que sempre retrabalhamos e revemos o mundo como o encontramos.
Por isso, textos, imagens e sons nunca são iguais, mesmo quando esses significados são aparentemente
do tipo mais previsível ou até mesmo clichês.
Aqui, há algo interessante a observar: as últimas poucas centenas de palavras do texto que você,
leitor, acabou de ler nunca foram escritas dessa forma antes, assim como as últimas poucas centenas
de palavras que você proferiu nunca foram ditas dessa mesma maneira antes. Todos aprendemos
muitas palavras junto com um número imenso de estruturas gramaticais, o que nos permite juntar
essas palavras, em padrões inteligíveis, nunca antes reunidas dessa maneira. Com certeza, baseamo-
-nos em blocos de construção para o significado que herdamos de nossa cultura, por meio de
recursos que nos são disponibilizados, o que torna, em certa medida, nossos significados derivados.
No entanto, toda vez que trabalhamos com esses blocos de construção, nós os reunimos de uma
maneira única, que nunca foi feita antes. Usamos os recursos de significado que nos estão disponíveis,
mas sempre adicionamos algo de nós mesmos, na medida em que expressamos esses significados
como nossos. Nesse sentido, sempre recriamos o mundo de uma forma que diz algo sobre quem
somos: uma maneira de falar, um estilo de pensamento, um timbre em nossa voz, uma nuance em
nossa postura, um tom de argumentação; tudo isso constitui o tipo único de pessoa que somos, as
sutilezas da nossa personalidade, o que torna nossos significados tão distintivos uns dos outros.
Assim, quando a língua, a imagem e a criação de espaço são entendidas como processos de
design, cada ato de significado nunca meramente repete ou reproduz recursos de design d~,i'oníveis.
Designing sempre envolve uma injeção de interesses orientadores do designer e de suas experiências
culturais, de sua subjetividade e de suas identidades. As experiências de todos são diferentes,
refletindo uma mistura sempre única de atributos pessoais, materiais (classe social, localidade,
. família), corporais (idade, raça, sexo e sexualidade) e simbólicos (língua, etnia, gênero; veja mais
sobre isso·no capítulo 15).
Tendo concebido a construção de significado dessa maneira, segue-se que a diferenciação, a
criatividade e a inovação são partes normais de nossas naturezas como criaturas pensantes e

174 1 LETRAMENTOS
comunicantes. Poderíamos apenas olhar para trás a partir do ponto de vista da comunicação para
descobrir os significados nas palavras ou imagens, a estrutura de sua composição e a sintaxe de
suas conexões. Poderíamos apenas conduzir uma arqueologia do significado, como se os nossos
recursos para significação nos fossem "dados" para serem usados, ou seja, como algo fixo e imutável.
Todavia, queremos sugerir uma visão prospectiva do significado, que se interessa não apenas pelos
significados que encontramos, mas também pelo (re)trabalho que fazemos com esses significados,
que sempre muda os recursos de sentido que herdamos, pelo menos em alguma medida. Essa é
uma visão que coloca a imaginação e a reapropriação criativa do mundo no centro da representação
e da comunicação e, portanto, da aprendizagem. '--._/

O(re)designed

O processo de designing, de fazer sentido no mundo, frequentemente deixa um traço tangível e


comunicado, como uma imagem, um objeto, um enunciado oral ou um texto escrito. À medida
que o processo de design chega a um encerramento momentâneo, o mundo vai sendo transformado,
não importa quão pequena seja essa transformação, porque o traço deixado para trás é único e
pode afetar outra(s) pessoa(s) se e quando esta(s) receber(em) o significado redesigned como algum
tipo de resposta.

1
Transformação
~
\ j
j Aprendizagem
1 G(re}designed ~ !
Figura B.s: Aprendizagem etransformação.

Contudo, mesmo que ninguém seja tocado pelo significado de uma pessoa - ninguém a ouviu
ou viu sua mensagem -, ainda assim ela terá causado algum tipo de transformação, ·pôis o resultado
de seu désigning pode contribuir para que outra(s) pessoa(s) (re)pense(m) as coisas e as veja(m)
de uma nova maneira, o que pode ocorrer imediatamente ou em algum momento posterior, se e
quando alguém tiver acesso ao resultado do design. Isso ocorre porque o redesigned passa a se
juntar, de alguma forma, ao repertório de designs disponíveis, proporcionando aberturas para novos
designs. Nesse sentido, o redesigned, algo ouvido, fotografado, filmado ou escrito, é devolvido ao
mundo, e esse retorno deixa um legado de transformação que, por sua vez, também transforma o
próprio designer.

LETRAMENTOS COMO DE5/GN5 MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO i 175


O redesigned é, portanto, um resíduo, um traço de transformação que é deixado no mundo social
do significado. Os textos do processo de designing se tornam, desse modo, recursos novos
ressignificados (redesigned) para a construção do significado no jogo aberto e dinâmico de
subjetividades e significados, isto é, o designing de uma pessoa se torna um recurso no universo de
designs disponíveis de outra pessoa. É assim que o mundo muda.
Nesse sentido, o processo de designing é um trabalho transformacional que, na vida do construtor
de significado, representa a essência da aprendizagem, pois o ato de represeniãr'o mundo e as
representações de outros no mundo transformam o aprendiz. Do mesmo modo, comunicar essas
representações de volta para o mundo também transforma o aprendiz, pois, na medida em que este
constrói significados, exerce sua subjetividade nos processos de representação e de comunicação.
Como esses significados resultantes são sempre novos, o designer se refaz em seu trabalho de design.
Essa é uma das principais proposições da teoria dos multiletramentos: que uma teoria do significado
como transformação ou redesign é também a base para- uma teoria da aprendizagem. 6
É possível, então, estabelecer um paralelo entre os três elementos do design (designs disponíveis,
designinge (re)designed) e as três categorias de conhecimento propostas por Cochran-Smith e Lytle: 7
o "conhecimento para a práticà', que se constitui no conhecimento formal ou teórico (os designs
disponíveis) para atuar em uma determinada prática; o "conhecimento na práticà', que foca o
processo vivenciado n.
própria prática (designing); e o "conhecimento da práticà: que já não faz
mais distinção entre teoria e prática ((re )designed), pois ambas já estão, de alguma forma, transformadas.

Design na prática

Ranker conclui seu estudo da história em quadrinhos de John, analisando seu significado
redesigned, ao destacar que a "História de Grim Reaper" (a de John) é o "resultado de designing de
um novo significado, reunindo partes de significados anteriores [... ]. Em vez de produzir uma
replicação direta de fontes culturais populares que lhe interessavam, John projetou (designed) e
redesenhou (redésigned) o significado através de cada história em quadrinhos sucessivà: 8
Podemos dizer que John transformou os designs disponíveis para construir significado, criando,
desse modo, um significado único no mundo, assim como se transformou, tendo moldado a narrativa
de uma maneira que nunca fizera antes. Para reiterar essas generalizações com outro exemplo
concreto, consideramos uma criança pequena que esteja aprendendo a escrever e a ler. Também
consideramos que a escrita e a leitura são processos de design, representando e comunicando um
significado por meio de modos visuais e linguísticos peculiares. O exemplo a seguir é de algo que
pode ser considerado uma protoescrita: uma criança senta no colo de seu pai e diz: "Você quer me
ver? Eu vou fazer um carro ... tenho duas rodas ... e duas rodas na parte de trás ... e duas rodas aqui...
Este é um carro': 9 Kress lê esse sinal duplo de círculos como significando ";odà' e "fodas", como
"carro". O autor, então, pondera que "os círculos são formas aptas para significar as rodas [... ] e as
rodas aqui são uma metáfora para o carro': Essas correlações de signos são o que ele chama de

6 Cope & Kalantzis, 2000; Kalantzis & Cope, 2013; Kress, 2000a.
7 Cochran-Smith & Lytle, 1999.
8 Ranker, 2007, p. 422.
9 Kress, 2003, p. 43.

176 1 LETRAMENTOS
"signos motivados", o "interesse do construtor de significado, no momento de construir o signo,
que leva à seleção dos critérios para representar a ideia de roda [wheel-ness] e de carro [car-ness]".'º
Ao reconhecermos esse exemplo como um processo de design, concedemos a agência a um
jovem criador de signos. No entanto, esse trabalho não pode ser tachado de escrita precoce ou
pré-leitura em um contexto de alfabetização no qual um professor ou um pai está ansioso para
ensinar à criança convenções formais de alfabetização que ela ainda não conhece. Na perspectiva
do design, ao contrário, os recursos disponíveis para a construção de signi~o se constituem a
partir do que a criança conhece e pode
fazer como designer, baseando-se, no caso
do exemplo anterior, em suas experiências
de vida em relação a carros, rodas, círculos
e desenhos. Nesse sentido, a criança se
engaja em um processo de design cujo
resultado é um significado (re)designed, que
ela produz no papel como uma protoescrita
e decodifica como pré-leitura. Designingé,
portanto, essa coisa comum e essa coisa
Figura 8.6: "Isso é um carro".
extraordinária.

li
··
[!] .r •
·.• Veja: "Kress sobre design".

Pedagogia do design

Na pedagogia dos multiletramentos, todas as formas de significação, incluindo a língua, são


consideradas como processos dinâmicos de transformação e, não processos de reprodução, ou seja,
os construtores de significado não reproduzem simplesmente as convenções de design. Tomemos,
como exemplo, as convenções da poesia. Um aluno não apenas aplica as regras ou convenções da
poesia quando escreve um poema, pois, mesmo que as palavras que usa e as regras de poesia para
conectá-las sejam bastante comuns, ele as reformula para compor seu poema de uma maneira
sempre única. Em outras palavras, os construtores de significado não usam apenas o que lhes foi
dado, mas também criam e recriam signos, transformando significados.
As implicações pedagógicas dessa mudança na concepção que subjaz o significado são enormes,
pois uma pedagogia dos multiletramentos requer que reconheçamos o papel central da agência no
processo de construção de significado. Por meio desse reconhecimento, busca-se, assim, criar uma
pedagogia mais produtiva, relevante, inovadora, criativa e até emancipadora. Nesse sentido, o
trabalho com letramentos na escola não se reduz a habilidades e competências, maTvisa contribuir
para formar alunos que sejam designers ativos de significado, com sensibilidade aberta às diferenças,
à solução de problemas, à mudança e à inovação. A lógica da pedagogia dos multiletramentos
reconhece, portanto, que a construção de significado é um processo ativo e transformador, o que
parece ser mais apropriado para o mundo atual de mudanças e diversidades.

10 Idem, ibidem.

LETRAMENTOS COMO DESIGNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO 1 177


Vale também destacar que a pedagogia dos multiletramentos lida diretamente com a questão
das convenções ou dos padrões de design relacionados à construção de significado, não para que
os estudantes possam aprender sua morfologia ou suas estruturas de uma maneira normati~, mas
sim para que possam conectar as convenções com seus propósitos sociais. Nesse sentido, as
convenções sempre têm propósitos que, por sua vez, sempre se constituem a partir de uma base
cultural e situacional. Para entender tais propósitos, estudamos regularidades e padrões, inclusive
quando deparamos com novas situações ou espaços sociais.
Também podemos dizer que não se trata de ensinar estruturas, formas, modalidades, gêneros ou
discursos de cada espaço social concebivelmente relevantes, porque, dadas sua complexidade e sua
diversidade, sobretudo no mundo atual, isso não faria muito sentido. Contudo, podemos criar
experiências de aprendizagem através das quais os alunos possam desenvolver conhecimento e
estratégias para ler o novo e o desconhecido quando o encontram. Por essa visão, não é possível prever
as regras de significado no próximo espaço social que se encontram, mas pode-se aprender a procurar
padrões, a negociar o imprevisível, a começar a interpretar designs de significado que, em princípio,
talvez não façam sentido. A pedagogia dos multiletramentos tem como objetivo desenvolver essas
habilidades e sensibilidades, primeiro formulando a pergunta sobre a forma e a função do design, ou
como os significados são construídos diferentemente para propósitos distintos, e, então, como são
transformados pelos W eresses particulares do comunicador e pelos intérpretes de seus enunciados.


· ·• ·.• Veja: "Bakhtin sobre gêneros discursivos".
[!] . .

Odesigning eas identidades do aprendiz

Chandler-Olcott e Mahar nos apresentam Rhiannon, de 13 anos, que publica sua fanfic 11 em sua
página na internet "Fanmanià: As fanfics lidam com recursos de design disponíveis, reutilizando per-
sonagens tirados de desenhos animados ou videogames e escrevendo novas histórias com esses per-
sonagens. No exémplo em questão, Rhiannon faz uso de um recurso tradicional de animação japone-
sa: o anime. É assim que a garota se apresenta à comunidade mais ampla de fanfics em sua página:

Data de nascimento: 06/21/ -


Comidas fav.: Orange chicken, bife e ovos, ARROZ e... PIZZA!
Comidas menos fav.: Espinafre, Abóbora e grins Cavier. (Eu odeio tanto que nem sei se é assim que se
soletra ... ) Ah, e sardinha também!
Músicas fav.: Eu gosto de Rock, Techno / Dance.
Músicas menos fav.: ACK! POP!! Como Spear Britney... E os Backstreet Bums e NSTYNC .. . BLAH!
Hobbies: desenhar, criar páginas na internet, escrever músicas e fanfics e histórias. Sair com os meus
.-.jf
amigos e meu...
Namorado: Claro!! Meu melhor amigo ... ! Scott!! 12

11 Fan.fic (em português, literalmente, "ficção de tã"), também grafadafan.fiction ou, abreviadamente,jan.fic, é uma nar-
rativa ficcional, escrita e divulgada por fas em blogs, sites e em outras plataformas pertencentes ao ciberespaço, que
parte da apropriação de personagens e enredos provenientes de produtos midiáticos como filmes, séries, quadrinhos,
videogames etc. sem que haja a intenção de ferir direitos autorais ou obter lucros. Portanto, tem como finalidade a
construção de um universo paralelo ao original e também a ampliação do contato dos fãs com as obras que apreciam
para limites mais extensos. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fanfic>.
12 Chandler-Olcott & Mahar, 2003b.

178 1 LETRAMENTOS
As fanfics de Rhiannon têm temas românticos e também mesclam características de vários
gêneros, incluindo ficção científica, fantasia e filmes de "amigos adolescentes". Ser uma fã ávida e
imersa no gênero proporciona a ela não apenas designs para construção de significados em termos
de personagens e narrativa com os quais pode retrabalhar, mas também designs visuais, y.nguísticos,
espaciais e gestuais.
Rhiannon fez o download de imagens bishonen, uma palavra japonesa que os fãs usam para
descrever personagens que acham atraentes. Sua galeria bishonen inclui duas fotos de Scott, com
o comentário de que ela o acha parecido com Squall, herói do jogo Final Fantasy. Reconhecer as
fontes de imagens por atribuição e nomear as fontes e seus criadores originais é algo importante
nesses ambientes on-line, como uma forma de marcar explicitamente que uma imagem ou um
personagem é extraído de designs de significado disponíveis. Todavia, Rhiannon não faz uso desse
espaço apenas para reproduzir os designs disponíveis que encontrou, mas se torna, sobretudo, uma
designer de significados, contando suas próprias histórias de uma forma altamente inovadora, o
que torna, de alguma forma, o mundo um redesigned para os leitores que visitam sua página na
internet. 13

Multimodalidade
Novas mídias e multimodalidade

Segundo os pesquisadores Hull e Nelson, West Oakland, Califórnia, EUA, é uma comunidade
"isolada que tem tido tempos difíceis, com altas taxas de desemprego e criminalidade, uma
infraestrutura em deterioração, escolas em dificuldade e poucos recursos comuns que a maioria
das comunidades considera naturais, como supermercados, livrarias, restaurantes e bancos". As
pessoas que moram lá atualmente são, em sua maioria, "residentes afro-americanos de longa
data, bem como imigrantes recentes do sudeste da Ásia, do México e da América do Sul". 14 Diante
desse cenário, os moradores de lá têm tentado encontrar maneiras de recuperar o senso de
comunidade, e uma delas foi a criação de um centro comunitário chamado de "Digital Underground
StoryTelling for You(th)" (Dusty), que trabalha contação e produção de histórias digitais para a
juventude, combinando imagens fixas e em movimento, incluindo música e texto escrito e oral.
Pelo fato de Oakland ser conhecida como o berço de muitos rappers famosos, a produção de
música digital parece ter evoluído naturalmente como uma parceira para a contação de histórias
digitais.
A esse respeito, Hull e Nelson destacam que, no Dusty, as crianças de 9 e 10 anos, "aspirantes a
artesãos das palavras, podem ser vistas escrevendo suas letras, praticando seus diferentes estilos e
profundamente engajadas no uso de um software sofisticado que permite a cr'Íação de batidas
digitais". 15
Como exemplo, encontramos Randy Young, que estava criando uma peça de narrativa digital
intitulada Lyfe-N-Rhyme. Com pouco mais de dois minutos, sua história, que combina

13 Idem, 2003a.
14 Hull & Nelson, 2005, p. 230.
15 Idem, ibidem.

LETRAMENTOS COMO DESIGNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO \ 179


multimodalmente letras de rap originais com imagens fixas, texto escrito e música, traz sua
autobiografia a partir da experiência de vida em sua comunidade: "Randy aborda os aspectos mais
íntimos e perturbadores de sua vida e de seu mundo, convidando o público a fazer o difícil trabalho
de refletir sobre as preocupações pessoais que eles têm consigo mesmos, com aqueles de quem
cuidam e com a comunidade mais ampla': 16

Hull e Nelson concluem que:

Lyfe-N-Rhyme não é apenas uma história poderosa, mas também uma síntese transcendente de forma e
significado por meio de u_m a variedade de modos semióticos. Sim, somos imediatamente tocados e
perturbados pelas palavras que Randy profere. Sim, a montagem de imagens que ele expõe é organizada
com um efeito impressionante: agora reconfortante, agora chocante e assim por diante. E, sim, nós sentimos
o pulso da música e do verso em nossos peitos e mentes. Crucialmente, porém, enfatizamos que o poder
sentido a partir dessa peça não é equivalente à experiência simultânea, que se adiciona aos efeitos acima
mencionados, como se poderia supor. Mais uma vez, a importância total da tapeçaria semiótica que Randy
fabrica não está apenas na, mas também entre a textura e a trama. 17

No Brasil, um projeto bastante interessante voltado ao estudo de letramentos não escolares foi
desenvolvido por Ana Lócia Silva Souza, 18 descrito por Kleiman, 19 sobre jovens ativistas do movimento
hip-hop. Segundo Kleiman:

a apropriação da escrita permitiu aos participantes da pesquisa, jovens ativistas no movimento do hip-
-hop, redimensionar suas identidades como negros, moradores de periferia e ativistas, ressignificando
seus papéis sociais. Os jovens participantes da pesquisa foram aos poucos ampliando seu raio de ações,
passando da contestação por meio de música e fala engajada, ao trabalho de educação e de formação
em contextos educativos. Nesse processo, eles resistiam a modelos que os tinham excluído do espaço
escolar e usaram a fluidez da expressividade cultural do hip-hop para se tornarem agentes de letramento
que falam a língua de alunos vindos das margens da cidade - sem empregos, sem espaços de lazer, sem
cuidados por parte do Estado - e continuam nas margens do sistema escolar. Foi no seio das práticas
culturais do movimento hip-hop e no decorrer dos densos debates, que a pesquisa de Souza propiciou
o espaço em que os jovens do grupo hip-hop Educando encontraram os modos de falar e escrever e os
acervos de leitura que usaram nas suas atividades com fins educativos, de relevância para membros de
suas comunidades de origem. Fizeram parte desse acervo de materiais com fins educativos, capa de
CD, fanzine, rap, grafite, assim como produções coletivas de organização de eventos. Ao mesmo tempo,
eles iniciavam, cautelosamente a princípio e com plena autoridade mais tarde, a participação em
seminários e palestras sobre relações raciais e discriminação, baseados na leitura de textos sobre a
história da população negra no Brasil, em contextos escolares e universitários. A composição de rap,
a elaboração dos fanzines, os eventos coletivos não apenas "causavam" - davam-lhes notoriedade e
..,Jt
protagonismo - como também tornavam o manejo da língua oral e escrita um poderoso instrumento
formador nas escolas e faculdades que os jovens visitavam (ainda às margens dos esforços educacionais
do centro, é claro), pois eles imprimiam a resistência do movimento a práticas letradas escolares que,
por um lado, valorizavam e, por outro, refutavam, reformulando-as nesse processo. Souza caracteriza

16 Idem, p. 238.
17 Idem, ibidem.
18 Souza, 2009.
19 Kleiman, 2010.

180 i LETRAMENTOS
as práticas dos jovens ativistas como práticas de "reexistência", pois eles não apenas resistiam ao modelo
cultural legitimado, como também permitiam integrar e ressignificar as práticas relacionadas a outras
esferas de atividades do cotidiano, de duração provisória, nos espaços moventes da rua, em que
geralmente atuavam. º 2

Esses exemplos de projetos de letramentos não escolares se constituem em trabalhos de design


de significados altamente inovadores que as escolas podem e devem incentivar. São, de fato, traba-
lhos inovadores e motivadores porque poderosamente possibilitam a expressão das identidades
dos construtores de significados e envolvem o desenvolvimento de habilidades de comunicação
altamente relevantes e transferíveis para os am-
bientes atuais de trabalho, comunitário e educa-
cional. Além disso, esses trabalhos também en-
volvem um domínio sofisticado de alguns dos
processos e meios de expressão mais poderosos
dos nossos tempos contemporâneos para a cons-
trução de significado: a multimodalidade. Com
Multimodalidade: Uso de mais de efeito, embora não seja algo
um modo em um texto ou um evento novo, posto que sempre foi
de construção de significado, uma parte essencial da cons-
trução de significado na história humana, não
importa o quanto as escolas tradicionais tenta-
ram separar as formalidades do letramento al-
fabético, a multimodalidade é, indubitavelmen-
te, muito mais significativa na era das novas
Figura 8.7: Modos de significação em uma teoria
mídias digitais. multimodal de representação e comunicação.

Anatureza da multimodalidade

Na teoria dos multiletramentos, identificamos sete modos de significação: escrito, visual, espacial,
tátil, gestual, auditivo e oral. A multimodalidade é a teoria de como esses modos de significado
estão interconectados em nossas práticas de representação e comunicação. Usamos um estratagema
que chamamos de análise do design para descrever essas interconexões, assim como usamos o termo
design para contornar as limitações do termo "gramáticà', frequentemente associado de forma muito
restrita ao letramento da "letrà' e a uma estruturação tradicional de estudar línguas (fonologia,
morfologia e sintaxe).
Por mais que tentemos separar o modo escrito para lidar com o letramení;jt na abordagem
didática - aprender a ler e escrever na perspectiva tradicional -, toda representação e toda
comunicação são intrinsecamente multimodais. Por exemplo, o uso da escrita pressupõe um estágio
de visualização e de conversa sobre o que se está escrevendo, seguido por um estágio de toque e
movimento da caneta no papel ou de digitação do texto em um computador, o que é também um
processo visual, tátil e linguístico. Durante a leitura, o mesmo acontece: a pessoa rerrepresenta

20 Idem, pp. 391-392.

LETRAMENTOS COMO DES!GNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO 1 181


significados em um discurso interno silencioso, imagina visualmente como as coisas são na escrita
e conversa consigo mesma sobre pensamentos tangenciais causados por sua interpretação do que
está lendo. Em cada caso, o que se representa para si mesmo nunca é exatamente o mesmo que
aquilo que está escrito, passando por uma troca de um modo para outro, que é parte integrante
dos processos de rerrepresentação e transformação de nossos designs de significado.
Essa alternância de um modo para outro é justamente o que nos ajuda a representar significados,
a comunicar e a aprender - ainda que consideremos apenas os domínios da leitura e da escrita
alfabéticas -, uma vez que nos auxilia, entre outras coisas, a visualizar algo em uma imagem, bem
como a descrever a imagem em palavras. É por isso que, em vez de lidar apenas com letramento
da "letra" (no singular), nosso foco na abordagem dos multiletramentos é o dos "letramentos" (no
plural), que pressupõem a criação de significados como processos multimodais de representação
e comunicação, que são multimodais.
É preciso também levarmos em éonsideração nossos ambientes de comunicação contemporâneos
em constante mudança, como dispositivos de fala, que são, ao mesmo tempo, dispositivos de
construção de textos escritos e imagens (como os smartphones). Nesse sentido, de todas as mudanças
no ambiente do design de significado, desde o século XX, um dos desafios para o processo de ensino
e aprendizagem de leitura e escrita que ainda se limita às formas escritas da linguagem é lidar com
a crescente multimodali.íjade das mídias para a representação e a comunicação de significados, em
muitos aspectos, mais poderosas do que a mídia impressa tradicional.

Modos de significação

O Quadro 8.4 mostra os modos de significação que trabalham de forma cada vez mais conjunta,
literalmente, em nossos dispositivos para escrever, ler, falar, ouvir e ver imagens. Organizamos
os modos pelas semelhanças ou conexões práticas que apresentam em relação a seus vizinhos: a
escrita e a imagem são expressas visualmente, isto é, sua experiência se dá no espaço, que é visual;
por isso, imagem e texto escrito podem ser facilmente reunidos em um mesmo local (mais
facilmente, na mídia digital, do que nunca); o tátil, por sua vez, é um encontro corporal com
objetos no espaço; já o gesto é uma relação corporal com o espaço e uma representação com uma
afinidade muito próxima ao toque. O gesto também frequentemente se sobrepõe à fala, colocando
em ação dois modos simultâneos e estreitamente interconectados. Os modos escrito, visual,
espacial e gestual usam nosso sentido de visão; o modo oral, o sentido da audição; o modo tátil,
os sentidos corporais de toque, olfato e paladar; e os modos gestual e tátil, os sentidos de cinestesia
ou presença corporal.
Contudo, para todos os cruzamentos e conexões, classificamos os diferentes modos em categorias
distintas, pois cada um representa um lugar específico onde sistemas discretos de co~ trução de
significado humano ocorrem - como, por exemplo, na distinção entre mandarim como língua
falada e escrita chinesa, posto que essa língua não se constitui com base em um sistema fônico
(relação entre fonema e grafema); ou nas diferenças nos modos de significação entre fotografia,
música, língua de sinais ou arquitetura.
Nesse sentido, cada modo possui seus próprios sistemas de interconexão das partes componentes
do significado. Além disso, modos diferentes de significado e diferentes combinações de modos

182 j LETR AMENTOS


fazem uso de mídias distintas, que definimos aqui como materiais, ferramentas e práticas que nós,
seres humanos, usamos para representar e comunicar significados: por exemplo, caneta e papel,
teclado, tela de toque, óleo e tela, câmera e telefone, dispositivos de gravação de voz e som, vídeos
e videogames que capturam gestos e ferramentas para dar às coisas que fazemos textura, gosto e
cheiro.

Significado escrito (mais sobre isso nos Leitura (representando o significado para si mesmo conforme interpreta a mensagem
capítulos 9 e 10). escrita de outra(s) pessoa(s) - capítulo 9) e escrita (comunicando significados escritos
por meio de traços que podem ser encontrados por outro(s) como um gatilho de men-
sagem - capítulo 10).

Significado visual (mais sobre isso no Construção de imagens estáticas ou em movimento (comunicando significados por meio
capítulo 11). de traços que podem ser vistos por outro(s) como um sinal visual de mensagem); vendo
imagens, cenas (rerrepresentando significados visuais para si mesmo, dependendo da
perspectiva e dos pontos focais de atenção e interesse).

Significado espacial (mais sobre isso no Posicionamento em relação ao(s) outro(s), criação de espaços e formas de se movimen-
capítulo 12). tarem espaços (que outro(s) pode(m) experimentar na comunicação); e experimentação
de significados espaciais (rerrepresentando significados espaciais para si mesmo como,
por exemplo: proximidade, /ayout, distância interpessoal, territorialidade, arquitetura/
construção, paisagem urbana).
1
Significado tátil (mais sobre isso no Construção de experiências e coisas cujos efeitos podem ser sentidos, como toque, oi-
capítulo 12). fato e paladar (comunicação tátil) e rerrepresentação de significados táteis para si
mesmo, na forma de significados que se atribuem às sensações corporais, como senti-
mentos de tocar e ser tocado. Formas de comunicação e representação táteis incluem
sensações da pele (temperatura, textura e pressão), apreensão, objetos manipuláveis,
artefatos, aromas e ações como cozinhar e comer. Para aqueles sem a capacidade cor-
poral de ver, a linguagem escrita pode ser traduzida em sua totalidade em significado
tátil, por exemplo, na forma de Braille.

f Significado gestual (mais sobre isso no Comunicação através de movimentos do corpo: mãos e braços, expressões da face,
capítulo 12). movimentos oculares e visuais, comportamentos do corpo, vestuário e moda, estilo de
penteado, dança, sequências de ação, manifestando-se de muitas formas, incluindo
cerimônias e rituais.

Significado sonoro (mais sobre isso no Comunicação que usa música, sons ambientes, ruídos, alertas (significando interação
capítulo 13). social); e audição (um indivíduo rerrepresentando significados sonoros que encontra
para si mesmo, ou imaginando sons).

Significado oral (mais sobre isso no Comunicação na forma de fala ao vivo ou gravada (representando significado para
capítulo 13). outro(s)); e audição (rerrepresentando significados orais que alguém encontra para si
mesmo, falando consigo mesmo ou ensaiando a fala pretendida).
Quadro 8-4: Modos de significação.

Oprocesso de sinestesia
..,/r
Mesmo lidando com impressos em preto e branco, Mirabelle experimenta cores quando vê
■úmeros. Já Esmeralda, quando ouve a nota C# (dó sustenido), tocada em um piano, vê azul .
.fuabelle e Esmeralda são duas participantes de pesquisa do neurocientista V. S. Ramachandran
I
Jrmância entre modos e ambas têm uma condição chamada sinestesia, um fenômeno que não é
de significar. considerado um distúrbio neurológico como tal, mas sim uma "mistura surreal
de sensação, percepção e emoção", que, no sentido bastante restrito e diagnóstico, é algo que apenas
1111gumaspessoas experimentam. No entanto, o neurocientista argumenta que a sinestesia não lança

LETR AMENTOS COM ODES!GNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO 1 183


luz apenas "sobre o processamento sensorial normal", mas também sobre "alguns dos aspectos mais
intrigantes de nossas mentes, como o pensamento abstrato e a metáforà'.21
Ramachandran descreve o processo neurológico subjacente da sinestesia como "ativação cruzada'',
algo que todos experimentamos quando associamos um tipo de sensação a outro. Isso contribui
para o que o autor chama de "síntese transensorial", "um entroncamento onde as informações sobre
toque, audição e visão fluem juntas para permitir a construção de preceitos de alto nível. Por
exemplo, um gato ronrona e é fofo (toque), ronrona e mia (audição), tem uma certa aparência
(visão) e respiração de peixe (cheiro)':22

Assim, o conceito abstrato de "gato" une uma série de sensações através de um processo de
"síntese transensorial", que é algo que todos nós experimentamos. Ainda segundo Ramachandran,
a metáfora é um processo similar, pois, assim como a "sinestesia envolve a criação de ligações
arbitrárias entre entidades perceptivas aparentemente não relacionadas, como cores e números, a
·metáfora envolve a criação de ligações não arbitrárias entre domínios conceituais aparentemente
não relacionados".2 3
Vale, contudo, destacar que, neste livro, usamos a palavra "sinestesia'' em um sentido mais
amp lo do comumente encontrado na psicologia e na neurociência. Fazemos isso com base em
mecanismos cognitivos fundamentais que
todos compartilhamos, subjacentes à sines-
tesia. Mais especificamente, entendemos a
sinestesia como um processo de alternância
e de mistura de diferentes modos de signi-
ficação, constituindo, assim, uma forma de
expressar um significado em um modo, de-
pois em outro. Por exemplo, é possível des-
crever uma cena em palavras ou retratar a
mesma cena por meio de uma pintura; a
pessoa que interpreta o significado visualiza
a cena de maneira diferente se ouve as pala-
vras ou se vê uma pintura da cena, ainda que
sejam tentativas de representar e comunicar
Figura 8.8: Sinestesia ou alternância de modos. a mesma coisa.

Sinestesia e aprendizagem

A sinestesia é uma maneira poderosa de apoiar e aprofundar o processo de ensino e aprendizagem,


na medida em que se pode escolher expressar algo em palavras ou construir mais senti~ usando
uma figura ou um diagrama. Saber como representar e comunicar coisas de várias maneiras não é
apenas uma questão de habilidade em lidar com diferentes modos, mas, sobretudo, uma questão
de obter uma compreensão mais complexa e, nesse sentido, mais profunda dessas coisas. Uma

21 Ramachandran, 2011, pp. 75-76.


22 Idem, p. 97.
23 Idem, p. 104.

184 / LETRAMENTOS
abordagem sinestésica pode ser usada como suporte pedagógico para aprender a ler e escrever, por
meio da justaposição e da transposição de modos de significado paralelos ou complementares,
como as imagens em um livro infantil, os diagramas em um livro de ciências, ou uma discussão
oral sobre um texto escrito.
Uma professora de ciências está trabalhando com seus alunos do 9Q ano do ensino fundamental
circuitos elétricos por meio de um projeto de pesquisa na perspectiva do Learning by Design. Ela
pede aos alunos que criem uma simulação de apagão após forte temporal ("experimentando o
novo"). O que aconteceria se não houvesse eletricidade por um certo tempo? Ela apresenta aos
alunos o material textual sobre eletricidade e circuitos elétricos em imagens e diagramas, assim
como textos teóricos explicativos ("conceituando por nomeação e por teorià') . Faz os alunos criarem
um alarme antifurto, usando todos os modos tátil e gestual de construção de protótipos ("aplicando
apropriadamente"). Em seguida, também pede que eles criem instruções de instalação para um
eletricista e instruções de uso para leigos ("analisaudo funcionalmente"). Finalmente, a professora
faz os alunos refletirem oralmente sobre a diferença entre vender a seus pais a ideia de instalar um
alarme antifurto e fornecer a um técnico instruções de instalação claras e precisas ("analisando
criticamente").
· Por que focalizar a multimodalidade dos letramentos e o poder da sinestesia? Em parte porque a
multimodalidade sempre existiu, mas tem sido negligenciada em algumas pedagogias, inviabilizando,
assim, a possibilidatle de criação de ambientes de aprendizagem envolventes e eficazes para as crianças.
Os estudiosos e teóricos educacionais mais perspicazes há muito tempo já sabiam disso, como Friedrich
Froebel, o iniciador, no século XIX, da ideia de "jardim da infâncià: e Maria Montessori, que projetou
suas "engenhocas" de aprendizagem altamente táteis na virada do século XX.
No contexto das culturas indígenas brasileiras, por exemplo, um trabalho interessante que
pesquisa o texto multimodal de autoria indígena é a tese de doutorado de Elisa Thiago, que, entre
outras questões, destaca que a sinestesia ajuda a entender os processos comunicativos que ocorrem
no texto multimodal de autoria indígena de duas formas:

através de dispositivos de oralidade inseridos na textualidade da escrita alfabética e através do desenho


no texto visual, como parte do esforço de preencher a lacuna que o autor indígena percebe existir na
escrita. Enquanto performatividade, o uso de dispositivos de oralidade e de desenho tem o sentido de
aproximar o narrador de sua audiência, agora transformada em leitores, e neutralizar, até certo ponto, o
domínio exercido por uma única perspectiva - a do narrador imposta pela gramaticalidade do texto
alfabético, ao introduzir a presença da audiência na tessitura do texto escrito, devolvendo-lhe uma dose
de espontaneidade, própria da performance oral. 24

Para explicar essa relação multimodal entre a oralidade e o desenho, a autora destaca o livro
Mitologia sagrada dos Tukano Hausirõ Porã, 25 em que as figuras (os desenhos) cumru;em o seu papel
de "complementar aquilo que não foi dito em toda a sua extensão no texto alfabético. Nesse sentido,
o 'emprego simultâneo' [co -deployment] de recurso verbal e pictórico assegura uma complementação
da informação, numa relação entre o texto visual e o texto alfabético".26

24 Thiago, 2007, p. 177.


25 Nahuri & Kumarõ, 2003.
26 Thiago, 2007, pp. 211-212.

LETRAMENTOS COMO DESIGNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO 1 185


Essa complementação da informação é o que, segundo a autora, possibilita ao leitor do texto
multimodal de autoria indígena "pular do texto visual e de volta ao texto alfabético a qualquer
momento, ou até mesmo ignorar o texto alfabético de vez': Thiago, então, exemplifica essa relação,
mostrando, a partir do livro Mitologia sagrada dos Tukano Hausirõ Porã, que o nível de detalhamento
de um dos desenhos revela a "importância da relação entre a cosmogonia Tukano e os peixes". 27

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Figura 8.9: Mitologia sagrada dos Tukano Hausirõ Porõ.'8

Veja: "Astronomia Tukano".

Em direção aos letramentos multimodais

Cada vez mais, torna-se premente expandir a ideia de letramento para letramentos multimodais.
Uma das razões es!á relacionada aos conteúdos disciplinares para além das próprias aulas ou
mesmo do currículo de leitura e escrita. Por exemplo, um projeto de história local pode incluir
não apenas a escrita, mas fotografias, uma linha do tempo e uma entrevista oral em vídeo. Do
mesmo modo, o relatório científico de um experimento pode incluir não apenas a descrição de
hipóteses, métodos e resultados, mas ainda diagramas, tabelas e, talvez também, uma gravação
de vídeo mostrando (gestualmente) o experimento em si. Nesse sentido, o melhor tipo de projeto
de história e o experimento científico mais bem documentado podem ser aqueles cujos processos
são comunicados multimodalmente, como, por exemplo, através de dispositivo de gravação digital
- hoje mais possível do que nunca -, uma vez que temos atualmente cada vez mais maneiras
diferentes e acessíveis de registrar e compartilhar as realidades sinestésicas da repre_~ntação e
da comunicação do conhecimento.
Com efeito, considerando as comunicações em geral, os meios de representação se expandiram
enormemente nas últimas décadas, mais significativamente com o surgimento da mídia digital.
. Essa é a consequência, em parte, de uma série de transformações ao longo do século XX nos meios
de produção e reprodução de significado, começando pela fotografia e seus derivados, e passando

27 Idem, ibidem.
28 Idem, p. 212.

186 / LETRAMENTOS
também pela telefonia e pelas possibilidades de gravação de som. No entanto, tem havido uma
aceleração substancial do ritmo de mudança desde a aplicação generalizada das tecnologias digitais
a partir do início do último quarto do século XX.
Nesse contexto, novos letramentos emergem, centrados nas possibilidades dessas novas tecnologias
para a expressão híbrida e multimodal. Até meados do século passado, havia uma separação mais
marcada entre o modo escrito, materializado pela impressão tipográfica (tipografia), e o modo
visual, impressão de imagens (litografia). No entanto, a partir de então, a composição de fotos e a
fotolitografia começaram a aproximar texto e imagem na página impressa. Com as tecnologias
digitais, imagem e texto se tornam ainda mais interligados e uma mídia multimodal verdadeiramente
integrada emerge. A partir de meados da década de 1990, a World Wide Web leva isso ainda mais
longe com a sobreposição de textos, ícones e imagens, e o uso extensivo de metáforas espaciais e
arquitetônicas associadas à navegação pela rede. Essas tecnologias também incluem a capacidade
de sobrepor o áudio porque, em última análise, o som também pode ser transformado no mesmo
material gravável digitalmente por meio de codificações binárias. O efeito de todas essas mudanças
ao longo do último meio século tem sido, entre outras coisas, o de reduzir o lugar privilegiado da
língua escrita na cultura ocidental e, progressivamente, tornar outros modos mais relevantes para
a construção de significado. Projetos de aprendizagem, ensino e avaliação de letramentos precisam
levar em conta essas mudanças, se quiserem manter uma conexão vital com a vida cotidiana das
pessoas em nosso mundo contemporâneo.

Letramentos multimodais Expande a ideia de letramento para além de leitura e escrita.

Inclui os letramentos da nova mídia digital.

Reconhece as oportunidades poderosas de aprendizagem


corno consequência da sinestesia ou de alternância de
modo(s).

Reconhece os alunos corno designers de significados vozeados


de forma única.

Focaliza a construção de significado como transformação, que


muda o construtor de significado e seu mundo.
Quadro 8.5: Letramentos multimodais.

Elementos do design
Descrevendo significado a fim de pensar sobre significado

No letramento da "letrà' tradicional, baseamo-nos no que tem sido chamado de metalinguagem,


ou linguagem para falar sobre a linguagem, que assume a forma de um conjuntô~de convenções
tradicionalmente encapsuladas na forma de regras sobre ortografia ou gramática, por exemplo.
Esse é, portanto, um processo de descrever significado para pensar sobre o próprio significado que
queremos manter, mas sem a sua forma tradicional estática de descrever a língua.
Nesse sentido, é preciso uma metalinguagem para descrever significados multimodais, uma
maneira de falar explicitamente, com o intuito de aprender sobre a forma, a estrutura e o propósito
social da construção de significado. Assim, em vez de "gramáticà', chamamos isso de "descrição de

LETRAMENTOSCOMO DESIGNSMULTIMODAIS DE SIGNIFICADO 1 187


uma metalinguagem de elementos do design", que, na abordagem dos multiletramentos, busca
valorizar uma série de modos de construir significado. Nessa perspectiva, usamos, portanto, a
expressão "análise do design", porque esta engloba uma ideia mais ampla que as metalinguagens
tradicionais, como a gramática, conforme veremos a seguir.

Elementos de uma análise do design

Quais são, então, os elementos básicos do design, os blocos de construção de significado?


Podemos, da mesma forma, fazer essas perguntas sobre o significado, não importa com que modo
estejamos lidando. De todos os modos de significado, quais são os aspectos de significado mais
relevantes que poderíamos abranger na análise do design?
Cada modo significa uma maneira distinta, envolve sentidos humanos diversos e usa diferentes
combinações de meios de comunicação. Examinar os elementos do design do significado dessa
maneira nos permite fazer as mesmas perguntas sobre o significado, independentemente do modo.
A seguir, destacamos cinco questões que podemos levantar a respeito de qualquer significado, em
qualquer modo, que podem ser apresentadas na análise do design, fornecendo uma metalinguagem
comum para trabalhar com as semelhanças e características de cada um dos modos de significado:

• Referir-se: o que os significados descrevem?


• Dialogar: como os significados conectam as pessoas que estão interagindo?
• Estruturar: como os significados em geral se mantêm juntos?
• Situar: como os significados são moldados pelo seu contexto?
• Pretender: a que propósitos e interesses esses significados são destinados a servir?

Referência
,Os significados se referem a .. . quem? E o quê?

Diálogo
Os significados conectam quem e o quê? ... Como?

Estrutura
Os significados se mantêm juntos ... Como?

Situações
Os significados são localizados ... Onde? Quando?

Intenção
Os significados são .. . Para quem? Por quê?

Figura 8.10: Elementos do design.

Toda construção de significado, em todos os modos, opera em cinco níveis para os quais essas
questões se dirigem. Nós nos referimos a coisas, eventos, processos e abstrações; dialogamos

188 i LETRAMENTOS
com nós mesmos e com os outros; estruturamos nossos significados de maneiras que podem ser
tanto convencionais quanto, de alguma forma, sempre inovadoras, na medida em que cada novo
design recombina exclusivamente designs disponíveis e constrói um significado redesigned;
situamos nossos significados em contextos, ou, pelo menos, descobrimos que eles estão situados
em um determinado contexto; e pretendemos fazer algo quando posicionamos ou encontramos
significados em redes de propósito ou agência que expressam nosso interesse. Essas são algumas
das maneiras pelas quais essas cinco perguntas sobre o significado se desenrolam nos diferentes
modos.
A que os significados se referem? A referência pode delinear coisas específicas, por meio da
escrita ou da fala, na forma de substantivos para representar coisas, ou verbos para representar
processos; nas imagens, determinadas coisas podem ser delineadas com linha, forma e cor; no
espaço, com volumes e limites; em representações táteis, com texturas em superfície; com gestos,
em atos de apontar ou sinalizar. A referência também pode ocorrer em relação a um conceito geral
para o qual existem muitos exemplos: uma palavra que se refere a um conceito abstrato; uma
imagem que é um símbolo; um espaço que é caracterizado por sua semelhança com outros; ou um
som que representa uma ideia geral. A referência pode, outrossim, estabelecer: relações (preposições
ou pronomes possessivos, na língua escrita ou oral; posicionamento ou contraste, na imagem);
qualidades (adjetivos ou advérbios, na língua escrita ou oral; ou atributos visuais, em imagens); e
comparações (incluindo justaposições ou metáforas de todos os tipos, em palavras, imagem, som
ou espaço).
É possível, por exemplo, ter a frase "As montanhas são grandes", seguida por uma imagem que
fornece uma expressão inteiramente semelhante, ou bem diferente, da mesma coisa, que pode ter
um caráter complementar, suplementar ou talvez disruptivo. Por mais que desejemos apontar os
paralelos entre os modos, também queremos destacar as diferenças irredutíveis que explicam as
variações e rupturas, e oferecer evidências do valor complementar da multimodalidade. Nesse
sentido, é factível dizer que a escrita consiste em elementos de significado sequenciais que, na língua
portuguesa, ~e constituem por meio de uma palavra implacavelmente de cada vez, da esquerda
para a direita, linha por linha, o que nos exige um caminho de escrita e de leitura que prioriza o
tempo, porque a progressão do texto nos conduz através do tempo. A imagem, ao contrário,
apresenta-nos vários elementos de significado simultaneamente, posto que seu caminho de
visualização prioriza o espaço. No entanto, quando fazemos as duas coisas, isto é, quando lidamos
com a escrita e com a imagem, podemos alcançar um significado mais completo, mais nuançado,
ou, nesse sentido, um significado menos estabelecido.
Como os significados conectam os participantes na construção de significado? Aqui estabelecemos
papéis: orador/ouvinte, escritor/leitor, designer/usuário, produtor/consumidor, gestor/observador,
criador de sons/ouvinte. Direcionamos ou encontramos orientações: na língua, ptlfn.eira/segunda/
terceira pessoa e discurso direto/indireto; em imagem, posicionamento e linhas dos olhos; em gesto,
apontando para si mesmo, para os outros e para o mundo. Também encontramos agência: na língua,
por meio da voz, do humor e da transitividade; na imagem, por meio de planos focais de fixação
e engajamento; no espaço, por meio de aberturas e barreiras. E descobrimos uma gama de elementos
potenciais interpretativos: textos abertos e fechados; imagens realistas e abstratas; gestos diretivos
ou de tomada de turnos; espaços que indicam fluxos deterministicamente e outros que permitem
uma gama de alternativas.

LETRAMENTOS COMO DES!GNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO i 189


Como os significados em geral se mantêm juntos? Em resposta a essa questão, analisamos os
dispositivos usados para criar coesão interna, coerência e limites nos significados. Cada modo
compõe unidades atômicas de significado (morfemas, elementos de imagem, componentes físicos,
materiais estruturais no ambiente construído, traços gestuais) em um certo tipo de ordem, que
pode ser convencional (usando o que chamamos de "designs disponíveis" para o significado) e
inventiva (o processo de "designing"), o que faz com que não haja dois designs de significado iguais.
Existem indicadores internos: pronomes ou conectivos, na língua; chaves e flechas, em imagens;
marcadores de orientação, no espaço; cadência e ritmo, no som. Existe arranjo de ideias: sequência,
no texto; posicionamento de elementos pictóricos, em imagens; a mecânica funcional dos objetos
tangíveis. E existem as formas tangíveis de meios diversos: escrever, falar, desenhar, fotografar, fazer
objetos materiais, fazer música ou gesticular.
Onde o significado está situado? O significado é tanto uma questão de onde está localizado,
quanto do que ele é. Na medida em que o contexto constrói sentido, torna-se uma parte do
significado. Um rótulo em um pacote aponta para o conteúdo desse pacote, que, por sua vez,
"falà' com o supermercado onde ele se encontra à venda. Uma mensagem de texto "descreve" a
localização dos interactantes e das imagens que são postadas junto a ela. Uma cozinha se relaciona
com áreas de estar em uma casa que, por sua vez, se encaixa em padrões mais amplos da vida
cotidiana suburbana. Sinos e campainhas eletrônicas podem significar todos os tipos de coisas,
dependendo do contexto em que se encontram. Em todos os modos, os significados são
enquadrados, uma vez que se referem a outros significados por semelhança ou contraste (motivo,
estilo, gênero), assumindo registros de acordo com os graus de formalidade, profissão, disciplina
ou comunidade de prática.
Finalmente, a que propósitos e interesses esses significados estão destinados a servir? Aqui,
interrogamos os significados que encontramos ou produzimos como evidência de motivação. Como
a retórica funciona em textos, imagens e/ou gestos? Como a subjetividade e a objetividade funcionam
em textos escritos e visuais? Nessas e em outras explorações de interesses, poderíamos interrogar
significados por seus objetivos e interesses entrecruzados, ocultos, dissonantes, ou por uma variedade
de falhas de comúnicação. Podemos explorar a dinâmica das ideologias, explícitas e/ou implícitas,
propagandísticas e/ou "informacionais''. Para isso, precisamos de perspectivas críticas para analisar
interesses que podem ter sido deixados sem descrição ou deliberadamente escondidos em textos,
imagens, gestos, sons ou espaços.
Mas como essas perguntas podem se traduzir em práticas pedagógicas? Anne Cloonan levantou
essas cinco questões a respeito dos "elementos do design': com base em uma unidade didática de
letramento inicial de Robyn, centrada no livro de histórias Rosie's Walk, disponível também como
vídeo animado: "Rosie, a galinha, deixa o galinheiro", começa a sinopse do livro, "e sai para uma
pequena caminhada. Logo atrás dela está a raposa, maliciosamente tentando alcançá-la". A
professora mostrou o vídeo sem som e fez as crianças representarem aquilo a que ás{istiram por
meio de gestos; depois, elas reviram o vídeo com som, identificaram os personagens na versão
do livro ilustrado, criaram um "mapa da história" e, por fim, fizeram um vídeo no qual recriaram
a história. 29 Ao longo de várias aulas, Robyn fez os alunos abordarem cada um dos elementos do
design ..

29 Cloonan; Kalantzis & Cope, 2010.

190 1 LETRAMENTOS
• Referência: quem e o que está na história? (Rosie, a galinha, e a raposa.) Como elas são
representadas em palavras, imagens, sons, espaço e gestos? Que ação é retratada? (A jornada de
Rosie.)
• Diálogo: como o produtor do significado está conectado ao destinatário? (O autor como contador
de histórias, o ilustrador do livro, o videomaker - não fazemos parte da história da mesma
maneira se estamos jogando, por exemplo.)
• Estrutura: como a história se mantém? (A maneira como o texto é apresentado nas páginas do
livro, cada parte da história em uma nova página.) Como as imagens no livro estão relacionadas
ao texto? O que cada exemplo de escrita e de imagem lhe diz que o outro não? Como o vídeo
é usado como um storyboard?
• Situação: onde esse texto pode ser encontrado? Onde vamos ler o livro ou assistir ao vídeo?
Por quê?
• Intenção: quais são os interesses e motivações dos personagens? (Por exemplo, Rosie e a raposa.)
Como estamos posicionados? (O que sabemos que Rosie e a raposa não sabem? Qual é a moral
da história?)

Por meio dessas perguntas, os alunos começaram, então, a desenvolver uma metalinguagem
para descrever os elementos do design desses textos multimodais.

Referência: a que os significados se referem? Qual é o ponto de referência? O que isso denota? Qual(is) é(são)
o(s) seu(s) assunto(s)? - lembrando, é claro, que as respostas a
essas perguntas podem ser fluidas, ambíguas e uma questão de
interpretação.

Diálogo: como os significados conectam as pessoas que estão Como os acontecimentos surgem? Quem/o que faz com que
interagindo? eles se deem e quais os seus efeitos? Como as pessoas estão
interagindo conectadas? Que relações interpessoais, pessoas
em relação a objetos e objetos em relação a pessoas, os signifi-
cados tentam estabelecer? Lembrando, é claro, que os partici-
pantes sociais podem não ver as conexões sociais da mesma
maneira.

Estrutura: como os significados em geral se mantêm juntos? O que faz um sentido se tornar coerente? Qual é a sua compo-
sição? Quais são suas partes e como estas se encaixam? Como
é sua organização e como é sua estrutura? - não que todos
sintam necessariamente que seus próprios sign ificados ou os
significados que encontram são sempre totalmente coerentes
ou que se pode chegar a fundo sobre qualquer assunto que é
comunicado.

Situação: em que contexto(s) os significados estão localizados? Como o significado está relacionado ao seu entorno? Como o
significado se encaixa no contexto mais amplo de significação?

Intenção: a que propósitos e interesses esses significados estão Por que as pessoas estão engajadas em atj.lJ!id ades de constru-
destinados a servir? ção de significado? O que as motiva? Como o significado, seu
contexto e sua recepção revelam os interesses dos envolvidos?
Como o comunicador considera seu público? Quem é mais e
menos poderoso? Os interesses dos diferentes criadores de
mensagens sempre variam, dependendo de quem são, e os
interpretantes dessas mensagens sempre trazem seus interes-
ses e identidades para sustentar o que fazem com os signifi-
cados.
Quadro 8.6: Uma gramática do significado multimodal.

LETRAMENTOS COM ODESIGNS MULTIMODAIS DE SIGNIFICADO J 191


Sumário
• Representação: construindo significados para nós mesmos, incluindo interpretações dos significados de outras pessoas.

• Comunicação: construindo significados para outras pessoas, recebidos por elas como mensagens e interpretados de acordo
com seus interesses e perspectivas.

• Designs (disponíveis): recursos para significação que nos levam ao engajamento em atividades de designing: criando novos
significados por meio do retrabalho com os recursos disponíveis para gerar o (re)designed: novos significados criados por meio
do designing.

• Multimodalidade: construindo significados em mais de um modo.

• Sinestesia: construindo significados por meio da alternância de modos.

• Modos de significado:
- significados escritos: escrita e leitura;
- significados visuais: percepção e imagem;
- significados espaciais: localização e posicionamento;
- significados táteis: toque e sensação corporal;
- significados gestuais: linguagem corporal;
- significados sonoros: som e música;
- significados orais: fala e escuta.

• Elementos do design:
- Referência: o que os significados descrevem?
- Diálogo: como os significados conectam as pessoas que estão interagindo?
- Estrutura: como os significados em geral se mantêm juntos?
- Situação: como os significados são moldados pelo seu contexto?
- Intenção: a que propósitos e interesses esses significados estão destinados a servir?

Processos de conhecimento
1. Conceitualizando por nomeação
Assista a um ou mais vídeos dos que ilustram os multiletramentos na prática em <http://
newlearningonline.com/multiliteracies/videos/>. Identifique semelhanças e diferenças entre essa
pedagogia e a que se enquadraria na pedagogia do letramento na abordagem didática.

2. Conceitualizando com teoria


Monte uma espécie de mapa que ilustre sua compreensão dos conceitos de representação e
comunicação.

3. Analisando funcionalmente
Realize uma análise do design de um texto comum do cotidiano, como um artigo de jornal ou um
vídeo. Identifique no texto os elementos do design usando as cinco questões sobre o significado
apresentadas neste capítulo.

4. Aplicando criativamente
Desenvolva um plano de aula que faça uso de diferentes modos de significado e que envolva a
sinestesia.

192 j LETRAMENTOS
Visão geral
Os próximos dois capítulos examinarão a língua escrita, começando, neste, com uma discussão
acerca de diferentes abordagens para aprender sobre as conexões entre os sons da fala e a representação
escrita desses sons. O objetivo deste capítulo é explorar abordagens voltadas para a leitura,
construindo sentidos a partir de textos escritos. Já o capítulo 10 discute abordagens alternativas
para descrever como a língua escrita funciona, da gramática tradicional da abordagem didática,
passando pela gramática transformacional-gerativa de Chomsky e pela gramática funcional de
Halliday, até chegar à nossa própria abordagem dos multiletramentos, especificamente no que diz
respeito ao seu tratamento para o que chamamos de "elementos do design" de textos escritos.
No decorrer deste e dos capítulos seguintes, exporemos e explicaremos as ferramentas conceituais
e a metalinguagem para analisar os designs dos modos de significação: escrito, visual, espacial, tátil,
gestual, de áudio e oral. Começaremos com o modo escrito, aqui e no capítulo 10, por nenhum
outro motiv~ que não seja o de que a escrita tem sido o foco tradicional do ensino e da aprendizagem
do letramento. Passaremos então a delinear algumas ferramentas para a análise do design de
laálise do design: um processo de significados visuais no capítulo 11, porque a escrita e a imagem compartilham
análise dos elementos do design de importantes características: ambas são apreendidas por nosso sentido de visão
forma mono e/ou multimodal. e, atualmente, designs visuais e escritos estão mais próximos do que nunca. Em
seguida, percorreremos uma análise do design de significados espaciais, táteis e gestuais, no capítulo
12, para, então, vermos os modos sonoro e oral intimamente conectados no capítulo 13. Esses dois
últimos modos são agrupados em um capítulo porque compartilham o sentido da audição como
seu principal meio de apreensão.
Deliberadamente, separamos os significados orais e escritos, colocando-os emiádos opostos da
nossa análise do design, a fim de destacar suas diferenças mais importantes. Isso porque, muito
embora, é claro, os modos escritos e orais estejam intimamente relacionados por meio do fenômeno
da língua, existem algumas diferenças bastante relevantes das quais precisamos estar cientes
nos estudos dos letramentos. De fato, queremos argumentar que os modos escritos e orais são tão
diférentes um do outro quanto cada um dos outros modos entre si, ao mesmo tempo que estão
tão intimamente relacionados quanto todos os demais modos, o que, intrinsecamente, constitui a
própria natureza da multimodalidade.
Capítulo 9
Construindo significados
por meio da leitura

Visão geral
Os próximos dois capítulos examinarão a língua escrita, começando, neste, com uma discussão
acerca de diferentes abordagens para aprender sobre as conexões entre os sons da fala e a representação
escrita desses sons. O objetivo deste capítulo é explorar abordagens voltadas para a leitura,
construindo sentidos a partir de textos escritos. Já o capítulo 10 discute abordagens alternativas
para descrever como a língua escrita funciona, da gramática tradicional da abordagem didática,
passando pela gramática transformacional-gerativa de Chomsky e pela gramática funcional de
Halliday, até chegar à nossa própria abordagem dos multiletramentos, especificamente no que diz
,espeito ao seu tratamento para o que chamamos de "elementos do design" de textos escritos.
: decorrer deste e dos capítulos seguintes, exporemos e explicaremos as ferramentas conceituais
lll!ffltinguagem para analisar os designs dos modos de significação: escrito, visual, espacial, tátil,
gestual, de áudio e oral. Começaremos com o modo escrito, aqui e no capítulo 10, por nenhum
outro motivo,que não seja o de que a escrita tem sido o foco tradicional do ensino e da aprendizagem
do letramento. Passaremos então a delinear algumas ferramentas para a análise do design de
Análise do design: Um processo de significados visuais no capítulo 11, porque a escrita e a imagem compartilham
análise dos elementos do design de importantes características: ambas são apreendidas por nosso sentido de visão
forma mono e/ou multimodal. e, atualmente, designs visuais e escritos estão mais próximos do que nunca. Em
seguida, percorreremos uma análise do design de significados espaciais, táteis e gestuais, no capítulo
12, para, então, vermos os modos sonoro e oral intimamente conectados no capítulo 13. Esses dois

últimos modos são agrupados em um capítulo porque compartilham o sentido da audição como
seu principal meio de apreensão.
Deliberadamente, separamos os significados orais e eséritos, colocando-os em--lãdos opostos da
nossa análise do design, a fim de destacar suas diferenças mais importantes. Isso porque, muito
embora, é claro, os modos escritos e orais estejam intimamente relacionados por meio do fenômeno
da língua, existem algumas diferenças bastante relevantes das quais precisamos estar cientes
nos estudos dos letramentos. De fato, queremos argumentar que os modos escritos e orais são tão
diferentes um do outro quanto cada um dos outros modos entre si, ao mesmo tempo que estão
tão intimamente relacionados quanto todos os demais modos, o que, intrinsecamente, constitui a
própria natureza da multimodalidade.
Análise do design ,. Respondendo às cinco perguntas sobre os significados:
Nomeando os elementos ou componentes do design
• A que se referem os significados (Referência)?
que se combinam para criar padrões de significados:
• Como os significados conectam as pessoas que estão se comunicando
• escrito;
(Interação)?
• visual;
• Como os significados em geral se mantêm unidos (Composição)?
• espacial;
• Onde os significados estão situados (Contexto)?
• tátil;
• A que interesses esses significados servem (Propósito)?
• gestual;

• sonoro;
2. Vendo como os designs são construídos, diferentemente o tempo todo:
• oral.
• a partir de designs (disponíveis);

• para o designing;

• para o (re-)desjgned.
Quadro 9.1: Elementos da análise do design.

No modo escrito: Aprendendo a ler


Em uma aula de leit'Ura no 2º ano do ensino fundamental, a professora Simone trabalha com o
livro infantil A onça e o saci, de Pedro Bandeira. Ela começa a aula falando a respeito do livro da
seguinte maneira:
- O livro é sobre uma onça que quer pegar um saci e, para atraí-lo, põe açúcar no fundo de um
poço d'água. Vocês conhecem essa história?
Como a maioria dos alunos da turma não leu o livro, a professora dá início à atividade lançan-
do mão da estratégia de prever a história, dividindo os alunos em pares para que compartilhem o
que acham que vai acontecer. Em seguida, as crianças leem o livro e compartilham sua resposta
com seu par. Nas atividades que se seguem, os alunos desenvolvem um vocabulário, vinculando
palavras a imagens, usam estratégias fonêmicas para palavras desconhecidas, analisam caracterís-
ticas de linguagem do texto, como a rima, e usam recursos de alfabetização multimodais para
conectar texto e imagem.
Já em uma turma do 42 ano, a mesma professora Simone explora três contos de Monteiro Lo-
bato, do livro Histórias de tia Anastácia, que também trazem a "onça'' como personagem: "O ma-
caco, a onça e o veado': "A onça e o coelho" e "O jabuti e a onça''. A professora procura, então, fazer
com que seus alunos analisem as maneiras pelas quais as narrativas funcionam, desde o nível da
oração, no uso de palavras de ação e de descrição, até o nível do texto como um todo, em termos
das etapas de orientação, envolvendo as sequências de eventos narrativos e a avaliação final. Ao
trabalharem com os três contos, os alunos constroem suas generalizações sobre as forrr1!is como as
narrativas funcionam e aplicam essas generalizações ao escreverem suas próprias histórias.
Agora estamos em uma aula de 82 ano; os alunos trabalham com o livro Tião - Do lixão ao
Oscar, de Tião Santos. Nele, o autor e protagonista da narrativa conta sua incrível história de vida,
que teve_ início no lixão de Gramacho, no município de Duque de Caxias (RJ), onde muito cedo
começou a trabalhar como catador. Sua saga ficou internacionalmente conhecida quando protagonizou
o documentário Lixo extraordinário, do artista plástico Vik Muniz, que foi indicado ao Oscar de
melhor documentário em 2011.

194 1 LETRAMENTOS
No início do processo de análise do livro, os alunos imaginam como seria viver e trabalhar em
um lixão e assistir a um documentário que descrevesse a realidade dessa experiência. Antes de
começarem a ler, eles predizem o que o livro poderia ser. Usando uma estratégia de leitura em
pares, os alunos leem o livro, capítulo por capítulo, recontando e resumindo à medida que discutem
os aspectos da linguagem narrativa.
Por fim, estamos em uma turma do 92 ano, estudando o livro A revolução dos bichos, de George
Orwell. A história se passa em uma granja onde os animais discutem e almejam construir uma
sociedade ideal. Isso porque o dono da granja, Sr. Jones, explora os bichos, deixando-os passar
fome. Revoltados com essa situação de dominação e exploração, os animais, liderados pelo porco
Major, decidem fazer uma revolução, começando pela expulsão do Sr. Jones da granja.
Ao trabalhar com o livro, a professora inicialmente lida com o processo de conhecimento
"experienciando o conhecido" dos seus alunos, discutindo suas experiências de poder e dominação.
As atualizações que se seguem convidam os alunos a explorar a biografia de George Orwell, a
Revolução Russa, o stalinismo e a natureza da alegoria. Em relação às nossas questões de significado,
A revolução dos bichos dificilmente pode ser entendido apenas em termos do que é dito no texto.
Para fazer sentido, deve estar situado no contexto sócio-histórico mais amplo.

Esses exemplos ilustram uma série de estratégias na pedagogia da leitura. Agora, vamos à teoria
subjacente ...

Trabalhando com a leitura


Este capítulo tem como foco a compreensão dos significados construídos através do modo
escrito, mais especificamente pela leitura de textos escritos. Do ponto de vista dos multiletramentos,
a construção de ,significado na leitura lida com a interpretação de mensagens comunicadas por
meio da palavra escrita, ou, mais precisamente, a representação do significado que alguém realiza
para si mesmo, conforme interpreta uma mensagem escrita de outra(s) pessoa(s). Já a leitura de
textos multimodais envolve a interpretação de mensagens com frequência comunicadas visualmente
por meio de textos escritos e imagens, que, na era atual do design do texto digital, se tornaram
inextricavelmente entrelaçados. No modo escrito, os leitores interpretam o que é significado na
língua escrita, o que é mais do que simplesmente decodificar os signos e símbolos da escrita. Nesse
processo, os leitores fazem suas representações pessoais sobre os significados comunicados pelo
escritor, por meio de uma negociação de significados entre eles (escritor e leitor), embora essa
interação seja distante no tempo e no espaço, se comparada às interações orais face ajace, em que
a comunicação ou a troca de significado é mais imediata. As noções sobre língua(gem), significado
e construção de significados nessa visão de leitura são muito diferentes daquelas subjacentes a
algumas das abordagens de letramento já discutidas anteriormente neste livro, como a da pedagogia
didática ou da pedagogia autêntica. A fim de que essas diferenças fiquem bastante claras, o restante
desta primeira parte do capítulo explorará as ênfases variadas na leitura de pedagogias associadas
às abordagens didática e autêntica, enquanto a segunda parte, intitulada "Conectando os sons da
fala a elementos visuais da escrità: considerará abordagens mais integradas para a leitura.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA LEITURA j 195


Método fônico sintético e analítico

A pedagogia do letramento na abordagem didática tende a lidar com a tarefa de aprender a ler
a palavra escrita, concentrando-se nas correspondências entre letra-som, ou nas maneiras pelas
quais os sons da fala são transcritos na escrita alfabética. Nessa concepção, a leitura é principalmente
um exercício de decodificação, em que os alunos, então, decodificam as letras (grafemas) de uma
palavra em sons significativos da língua (fonemas); eles pronunciam a palavra, vocal ou
silenciosamente, e, em seguida, conectam a imagem visual da palavra com o seu som e o seu
significado, assumindo que já conhecem bem seu significado na língua falada.
Assim, quando as crianças aprendem a ler em português, por exemplo, elas também aprendem
que seu código é executado da esquerda para a direita, que os sons das palavras podem ser divididos
em partes distinguíveis e que essas partes podem ser representadas por letras ou grupos de letras.
No entanto, há códigos escritos que não seguem essas convenções: o árabe, por exemplo, ao contrário
do português, vai da direita para a esquerda; o hebraico não inclui as vogais; o chinês representa
principalmente ideias, e não sons, em seus caracteres, muito embora o português também possua
caracteres logográficos, isto é, que representam uma ideia em vez de seus sons (como, por exemplo,
os caracteres "8", "+"e"@"), de maneira semelhante aos logogramas chineses.
Em uma abordagem didática do letramento, a decodificação fônica é um primeiro passo na
mecânica da leitura em língua portuguesa. Nesse sentido, a criança tem que aprender formalmente
a relação entre fonema e grafema, porque não há conexão óbvia, ou natural, entre, por exemplo, a
letra "à' e seu som correspondente, ou a letra "b" e seu som correspondente. Nessa abordagem,
portanto, a criança se torna boa leitora se puder ler em voz alta, clara e fluentemente, ou mesmo
eloquentemente.
Aprender a ler e escrever por meio da relação formal entre fonema e grafema, combinando os
sons das letras em palavras, é basicamente o método fônico sintético (veja também o capítulo 4).
O professor começa ensinando aos alunos os nomes e os sons das letras, geralmente começando
com consoantes seguidas de vogais, para que as crianças possam ler e soletrar palavras monossílabas,
como, por exemplo, no par "pá'' e "pé". Já em uma fase posterior do processo de aprendizagem, são
apresentados os encontros consonantais e dígrafos, como em: "planta" ou "livro", "chuvà' ou "banho",
além dos ditongos, tritangos e hiatos, como em: "boi", "Paraguai" e "baú". Os alunos também
aprendem palavras com mais de uma sílaba, regras ortográficas e pontuação. Essa abordagem, que
parte das letras às palavras, foi abrandada por uma outra conhecida como analítica que, em contraste
com a sintética, parte das palavras às letras, em que os leitores são solicitados a pronunciar palavras
inteiras significativas, identificar seus componentes sonoros e alinhá-los, então, à grafia
correspondente. '

Sintético Analítico

Parte dos sons: g-a+o. Parte da palavra inteira significativa: Gato.


Então, forma-se a palavra: Gato. Então, segmentam-se os sons: g-a-t-o.
Quadro 9.2: Método fónico.

l Schoenfeld & Pearson, 2009.

196 1 LETRAMENTOS
Leitura como decodificação e construção de significado

As pedagogias de letramento na abordagem didática acrescentaram um segundo grande passo


à ideia de decodificação para incluir o processo em que os alunos formam frases por meio de
palavras para entender o significado do autor. É como se, de alguma forma, o leitor pudesse ouvir
o autor falando de forma clara e direta. Essa etapa de decodificação adicional se tornou parte
importante do repertório da abordagem didática com a introdução do teste de múltipla escolha de
compreensão leitora.
Como já foi apontado anteriormente (ver capítulo 5), ainda na primeira metade do século XX,
as pedagogias do letramento autênticas se estabeleceram como uma grande alternativa às abordagens
didáticas, com um novo foco no significado e em textos autênticos da vida real. Seus defensores
afirmam que aprender a ler através do método fônico, estritamente falando, é impossível, e que
instrução fônica sistemática atrapalha o propósíio da leitura, que é a construção do significado.
Desde então, o que se seguiu foi uma batalha em curso entre as duas abordagens, que, de certa
forma, continua até hoje.
Embora, ao longo do século XX, abordagens autênticas conseguissem se sustentar por várias
vezes, nas primeiras décadas do século XXI, as pedagogias didáticas voltaram a ocupar uma posição
de domínio institucional na forma de programas de "consciência fonêmici', inclusive fomentando
a alfabetização precoce para crianças ainda na fase da educação infantil.
Curiosamente, enquanto trabalhávamos justamente neste capítulo da versão em português do
livro, o governo federal brasileiro publicou o decreto 9.765, de 11 de abril de 2019, que instituiu a
Política Nacional de Alfabetização, cuja ênfase é o ensino do método fônico, em que se destacam
dois componentes considerados essenciais para a alfabetização: a consciência fonêmica e a instrução
fônica sistemática.

li
[!l .
·.• Veja: "Decreto 9.765, de 11 de abril 2019':

A essa nova diretriz de alfabetização do governo federal, que vem causando bastante polêmica,
diversos especialistas em educação se manifestaram contrários, pois consideram que o método
fônico deve fazer parte do processo de alfabetização, mas, além de aprenderem a relação entre
grafemas e fonemas, os alunos precisam compreender, acima de tudo, os usos sociais da leitura e
da escrita.

f■.,
· l!l·. Veja: "Pensar que se resolve a alfabetização com o método fônico é uma ignorância".
l!l ..

Aabordagem de leitura "olhe-diga" took-say' r 1 1


)

Uma primeira tentativa de contornar esses problemas relativos ao uso do método fônico foi a
que veio a ser chamada de abordagem "olhe-digi' ("look-say" approach), palavra inteira, ou global.
Nessa abordagem, defende-se que as crianças deveriam aprender palavras inteiras como unidades
de sentido, isto é, as palavras como um todo, incluindo sua pronúncia, antes de aprender os elementos
que as compõem.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA LEITURA 1 197


Nessa concepção, as palavras inteiras eram aprendidas pelo sentido da visão, com o professor
colocando rótulos em alguns itens da sala de aula ("mesà', "cadeira': "janela", "portà') e as crianças
associando o significado da palavra inteira à coisa que rotulava. Uma das séries de leituras mais
conhecidas para trabalhar a palavra inteira eram os livros de Dick and Jane, publicados por Scott,
Foresman & Co. na década de 1930. A esse respeito, Savage destaca:

Dick, Jane, sua família e seus animais de estimação tornaram-se famosos pelo seu mundo onde a noite
nunca chega, os joelhos nunca se arranham, pais nunca gritam, e a diversão nunca para. A editora Scott
Foresman, na qual Dick e Jane apareceram pela primeira vez, influenciou enormemente a maneira como
se ensinava a ler. As crianças usavam o método da palavra inteira com um texto estritamente controlado,
que as ajudava a aprender as palavras que apareciam com figuras, reconhecendo as palavras inteiras só
de olhar, em vez de pronunciá-las letra por letra. O sucesso comercial da coleção da editora Scott Foresman
levou outras editoras a lançar os seus clones de Dick e Jane (pares de crianças como Alice e Jerry, Jack e
Janet e os respectivos elencos de apoio) em programas similares, que continuaram a perpetuar o método
de "olhe-diga': ou de palavra inteira, no ensino da leitura para crianças. Embora alguns professores usassem
a fônica como adjunto suplementar ou incidental em seu ensino, a abordagem olhe-diga dominou a
educação até os anos 1960.2

Os proponentes de pedagogias de leitura autênticas argumentam que, quando lemos para


construir significado, não olhamos as letras de forma isolada, mas sim a forma e a aparência de
palavras inteiras. Nossos olhos se movem ao longo da linha em movimentos pequenos, rápidos e
bruscos entre pontos de fixação, saltando o olhar de um pequeno grupo de palavras para outro.
Assim, não olhamos atentamente para todas as palavras nem damos a todas elas a mesma atenção.
Nossas mentes podem preencher muitas das palavras apenas porque sabemos quais serão os possíveis
vocábulos nas lacunas. Às vezes, quando o significado não se fixa, voltamos a olhar para uma palavra
ou grupo de palavras. Quando ficamos presos a determinada palavra, adivinhamos seu significado
pelo contexto ou pensando em palavras semelhantes, e, nesse caso, a última coisa que fazemos é
pronunciá-la, pois isso é, de uma certa forma, trabalhoso e atrapalha os processos de pensamento
do significado.
Por essa perspectiva, aprender a ler pode ser tão natural quanto aprender a falar, pois, assim
como uma criança pequena começa a falar porque precisa participar do mundo social do significado
falado, o mesmo faria em relação à leitura, isto é, faria isso por imersão. Nesse sentido, como as
regras da correspondência letra-som são numerosas, variadas, nem sempre sistemáticas e até
entediantes, a criança aprenderá a ler por imersão em textos escritos, desenvolvendo sua compreensão
de significados escritos. Nesse sentido, Smith aponta que:

vinte e dois pares de músculos faciais são constantemente orquestrados para exibir pelo menos quatro
mil expressões diferentes, todas produzidas e entendidas universalmente sem qualquer instr~ o. Algumas
expressões básicas de emoção - como medo, raiva, surpresa, desgosto, tristeza e prazer - podem ser
instintivas, mas a maioria é aprendida logo cedo na vida ... Quando alguém foi ensinado a interpretar
tudo isso, a ler rostos? [... ] Ler um texto impresso é tão natural quanto ler rostos. 3

2 Savage,2015,p.20.
3 Smith, 2004, p. 3.

198 1 LETRAMENTOS
Essa abordagem naturalista, portanto, associa a aprendizagem de leitura à imersão em muitos
"textos autênticos", começando com textos mais fáceis e passando para textos mais difíceis - incluindo
histórias excitantes, informações interessantes e signos funcionais. Uma das ideias-chave dessa
abordagem analítica, conhecida como whole language, que, como foi visto no capítulo 5, foi traduzida
para o português como "método global", concentra-se em estratégias para encontrar significados
e contrasta diretamente com o método fônico sintético, que pode exigir que os alunos soletrem
letras e sílabas descontextualizadas, bem como palavras isoladas.

Veja: "Método global".

Método fônico sintético Método fônico analítico

Reunir palavras inteiras a partir dos sons de suas letras. segmentar palavras inteiras que são reconhecidas pela visão e,
então, procurar padrões nas letras.

Aprender regras para aplicá-las; aprender ortografia por me- Inferir regras por exposição repetida a exemplos.
morização, incluindo exceções às regras.

Escrever é codificar; ler é decodificar significado, ou "com- Escrever é criar significado; ler é interpretar significado.
preensão".

Requer uma metalinguagem para descrever padrões na língua, Requer imersão na língua escrita para aprender a ler e escrever
ou pensamento conceituai.

Aprender a ler e escrever é bem diferente de aprender a ouvir Ler e escrever podem ser aprendidos naturalmente, da mesma
e falar. forma que ouvir e falar.
Quadro 9.3: Comparação dos métodos tônicos sintético e analítico.

Leitura e modelos mentais

O raciocínio teórico por trás do método global se baseia na psicolinguística, uma subdisciplina
na interseção da psicologia e da linguística, que enfoca, entre outras questões, os fatores psicológicos
que influenciam a aprendizagem e o uso da linguagem, entendendo que a leitura não é um processo
de produzir sons, mas sim um processo de pensamento. Por exemplo, a palavra "mesà' só significa
algo porque temos uma experiência com mesas. Classificamos algumas coisas de aparência muito
diferente ("mesa de sala de jantar", "mesa de centro", "mesa de café" e "mesa de tênis de mesa") em
torno de suas características distintivas, de semelhanças na sua aparência ou daquilo para que são
confeccionadas. Fazemos isso para os propósitos práticos de atribuir sentido a esses objetos quando
os vemos e os colocamos em prática em nossas vidas. Se deparamos com a palavra "oscitação" em
uma frase, mas n:urica a vimos no mundo real, nem ao menos vimos uma foto de algJ,1ém praticando
oscitação em um livro, soletrar as letras dessa palavra não nos ajuda a entender seu significado (se
você não sabe o que é "oscitação", pesquise o termo em um dicionário, mas, mais importante do
que encontrar sua definição, é procurar algumas imagens da coisa real, o que certamente fará com
que o significado permaneça com você). Em outras palavras, a legibilidade significativa das palavras
"mesà' ou "oscitação" está conectada às nossas experiências com mesas ou oscitações, que são
ajudadas pelos nossos poderes de percepção, língua(gem) e cultura, fazendo com que criemos
categorias de objetos na nossa experiência para que estes sejam significativamente nomeados.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA LEITURA 1 199


A categoria de "mesà' também se encaixa em nossos modelos mentais de mundo ou em nossos
"esquemas", os quais unem vários conceitos relacionados, que, nesse caso, incluem mobília
(abrangendo uma teoria de funcionamento de como as mesas se relacionam com cadeiras) e
restaurantes (com muitas mesas e cadeiras e um padrão peculiar de relações sociais em que essas
mesas e cadeiras estão configuradas). Por sua vez, usamos nosso modelo mental de "restaurantes"
para negociar o próximo restaurante que visitaremos, o que conseguimos fazer ainda que não
tenhamos estado lá antes. Do mesmo modo, aplicamos também modelos mentais à nossa leitura.
Por exemplo, quando lemos: "Chegamos ao restaurante e já fomos levados à mesa pelo garçom",
aplicamos nosso modelo mental à compreensão desse significado escrito. Contudo, se nunca
estivemos em restaurante nem assistimos a uma cena de chegada de alguém a restaurante em um
filme, será difícil entender essa frase, não importa quão bons sejamos em soletrar grafemas. Ler
para significar é predizer a partir de nossa experiência. Ao lermos: "Chegamos ao restaurante e
depois .. :: antes mesmo de ler o restante da frase, podemos antecipar finais previsíveis para ela,
uma vez que finais completamente imprevisíveis não fariam sentido para nós. As surpresas, sim,
podem fazer sentido (por exemplo, "tropecei no caminho para a minha mesa .. :'), porque vêm do
leque de alternativas razoáveis e da nossa compreensão das possíveis "complicações", que são a
razão pela qual contamos histórias. Todavia, uma frase como "e esta é a razão pela qual dois e
dois são quatro,.,_ muito provavelmente não faria sentido como final para essa sentença, porque
não se encaixaria na gama de possibilidades de significados que teriam alguma coerência, que
seriam previsíveis de acordo com nossos modelos mentais da experiência de chegar a um restaurante.
Por essas razões, os educadores da pedagogia de leitura autêntica argumentam que a melhor
estratégia para determinar o significado de uma palavra não familiar é trabalhá-la a partir do
contexto, aplicar seus modelos mentais de experiência coerente ao texto e tentar preencher a lacuna
de significado representada por uma palavra difícil. Pode-se prever o significado da palavra estranha
a partir dos significados dos vocábulos ao seu redor; pode-se comparar na própria mente tal palavra
com uma outra conhecida similar. Pode-se ainda pular a palavra, esperando que o texto faça sentido
sem ela, o que Smith chama de "identificação de palavra mediadà'. 4
Assim, ler é uma relação entre o texto e nosso pensamento, pois lemos significados em textos,
conectando-os com nossos conhecimentos, experiências e interesses. Quando lemos para construir
significado, aplicamos modelos mentais ou estruturas cognitivas, mantidos em nossa memória de
longo prazo, ao texto que vemos, 5 que variam de leitor para leitor. É por isso que todo ato de
compreensão de leitura é um processo de interpretação ou de "levar" os nossos próprios significados
para o texto; aquilo que fazemos com o texto não é algo apenas individual e nunca é exatamente a
mesma coisa.
Abordagens mais recentes para a compreensão do ensino estendem essa visão cognitiva da
leitura para incluir o ensino explícito de habilidades e estratégias de compreensão leitora que os
../t
leitores usam para atribuir sentido aos textos e extrair significado deles. 6 Nesse sentido, Paris 7
distingue entre habilidades de leitura restritas, que podem ser dominadas em um período de tempo
relativamente curto (por exemplo, conhecimento de letras e habilidades de decodificação)_, e

4 Idem, p. 55.
5 Anderson & Pearson, 1984.
6 Harvey & Goudvis, 2007; Paris & Stahl, 2005.
7 Paris, 2005.

200 j LETRAMENTOS
habilidades de leitura não restritas (por exemplo, vocabulário e compreensão), que se desenvolvem
ao longo da vida em vários contextos. Assim, a leitura, como o próprio pensamento, envolve
indivíduos em estratégias deliberadas e situadas (em contraste com as habilidades de decodificação
automatizadas e descontextualizadas), que conectam conhecimentos prévios a novas referências,
identificando informações literais explicitamente declaradas no texto, fazendo inferências baseadas
em conteúdos do texto e em seu próprio conhecimento prévio, questionando ou prevendo, ao
construir imagens mentais, e resumindo informações do texto.

Leitura como design de significado

Neste ponto, gostaríamos de reformular o processo de leitura descrita na seção anterior como
design. Isso porque acreditamos que nossa abordagem do design permite capturar as complexidades
e o dinamismo relativos à construção de significado. Para reiterar os conceitos que introduzimos
no capítulo 8, nossos "designs disponíveis" são as categorias de significado que temos e os modelos
mentais do mundo que unem essas categorias; são, portanto, significados dos quais nos lembramos
e com os quais nos conectamos ao texto conforme o lemos. Algumas dessas lembranças assumem
a forma de significados visuais, espaciais, gestuais e outros: por exemplo, restaurantes que visitamos
ou vimos em fotos ou filmes.
Enquanto lemos a frase "Chegamos ao restaurante .. :', aplicamos nossas categorias e nossos
modelos mentais a ela, atribuindo-lhe um significado baseado em nossa experiência. Este nunca é
o mesmo que o atribuído por outro leitor, posto que nossas experiências particulares são diferentes
(o modelo mental que uma pessoa acostumada a restaurantes do tipo fast-food traz para o texto
será diferente daquele de alguém que está acostumado a ir a restaurantes chiques, com toalhas de
mesa e garçons que recebem os clientes na porta). Nesse sentido, a experiência de leitura, de alguma
forma, nos transforma porque permanece em nossa memória como um novo significado - podemos
nunca antes ter tido a experiência de ir a um restaurante sofisticado ou ouvido o termo "menu de
degustação", mas aprendemos algo sobre esses significados a partir de uma nova leitura ou de um
filme. A experiência textual se torna, assim, uma extensão incremental do alcance de nossa
compreensão sobre restaurantes, o que podemos lembrar em nossa visita seguinte a um deles ou
em nossa próxima leitura ou produção textual relacionada a um estabelecimento comercial onde
se servem refeições.

Leitura como design

Designs (disponíveis) Vemos a palavra, um sintagma ou gênero textual e experien-


damos seu significado-ou, pelo menos, temos pistas suficien-
tes para construir sentidos, mesmo que algumas partes rí1ô
sejam familiares.

Designing Ao lermos o texto, somos ajudados pelas imagens mentais que


criamos. Entendemos o texto de maneiras particulares, com
base em nossas experiências e nossos interesses.

O (re-)designed Ficamos com a nossa interpretação do texto, a nossa memória


do que diz e como o diz. O nosso mundo de significados é, de
alguma forma, transformado pelo texto que acabamos de ler.
Quadro 9.4: Construção de significado por meio da leitura como design.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA LEITURA J 201


Abordagens híbridas de leitura

Embora os defensores da pedagogia autêntica do letramento tenham alguns argumentos


poderosos, que reformulamos aqui em termos de uma abordagem de design multilateral, eles
também foram criticados pelas limitações de sua abordagem, não apenas pelos defensores da
pedagogia didática, mas até mesmo por pessoas simpáticas a muitas das suas intenções.
Os pedagogos mais ferrenhos da pedagogia autêntica de leitura argumentam contra as
metalinguagens de qualquer tipo. A esse respeito, Smith8 assevera que "não há provas de que tornar
estruturas de texto explícitas melhora a sua compreensão''. No entanto, para voltarmos aos argumentos
gerais descritos com mais detalhes no capítulo 5, o modelo de imersão não é necessário nem eficiente
nas escolas. Não é necessário porque, ao contrário da aprendizagem da fala, quando aprendem a
língua escrita, as crianças têm um recurso para categorizar e criar modelos mentais que elas não
tinham quando aprenderam a falar, o que é próprio da língna. Nesse sentido, se podemos generalizar
sobre a língua, isso ajudará os alunos a entender como usá-la e a fazer isso de uma maneira mais
eficiente do que por meio de repetição de exemplos. Além disso, a abordagem por imersão funciona
melhor para os alunos que são capazes de "obter" o significado de textos escritos instintivamente,
porque vêm de ambientes que usam muita escrita e nos quais o valor da leitura e da escrita se
constitui como autoevidente. Em outras palavras, há preconceito em relação aos alunos com certos
tipos de experiência anterior, assim como há preconceito em relação a certos tipos de textos.
Como forma de superar as polaridades que surgiram no ensino de leitura, Richard Anderson e
seus colegas propuseram uma "abordagem equilibradà' ("balanced approach"). Em um relatório
inovador, o autor diz que as visões comuns de que a leitura é um processo em que

a pronúncia das palavras dá acesso aos seus significados, depois às orações, depois aos textos são apenas
parcialmente corretas. Um texto não é tanto um recipiente que contém significado, mas uma fonte de
informação parcial que permite ao leitor usar o conhecimento já possuído para determinar o significado
pretendido. Afônica não deve ser descartada, mas seus objetivos devem ser mais amplos do que aprender
uma lista interminável de regras.[ ... ] O objetivo da fônica não é que as crianças sejam capazes de declarar
as "regras" que governam as relações entre sons e letras. Pelo contrário, o propósito é atravessar o princípio
alfabético, o princípio de que existem relações sistemáticas entre letras e sons. 9

Em um espírito similar, Allan Luke e Peter Freebody desenvolveram um modelo de "Quatro


Recursos" ("Four Resources") 1 º ou de "Quatro Papéis" ("Four Roles"), 11 que consiste, em primeiro
lugar, na asserção de que os leitores eficazes são code-breakers, captam o espírito fônico (relação
fonema-grafema), isto é, são capazes de reconhecer as conexões entre os sons e a grafia das palavras,
mas também de identificar convenções estruturais maiores nos textos. Em segundo lugar, eles são
"construtores de significados", no sentido sugerido pelos defensores da pedagogia autêntid, aqueles
que participam na compreensão dos textos e os conectam aos significados recolhidos de seus
próprios modelos mentais. Em terceiro lugar, eles são "usuários de texto", capazes de realizar coisas
por meio da leitura e da escrita de textos, o que dialoga com o espírito das abordagens funcionais

8 Smith, 2004, p. 48.


9 Anderson et ai., 1985, pp. 8 e 35.
10 Freebody & Luke, 1990; Luke & Freebody, 1997.
11 Freebody, 2007.

202 1 LETRAMENTOS
descritas no capítulo 6, isto é, eles leem para aprender e aprendem como os textos são usados para
atingir objetivos sociais e culturais intencionais. Finalmente, leitores efetivos podem ser "analistas
textuais", que interrogam o texto a fim de levantar os pontos de vista e os interesses que este
representa, comparando-os com suas próprias interpretações de experiência e com as de outros.
Em uma abordagem funcional da leitura, a análise de modelos textuais fornece o caminho para
que os professores possam tornar seus alunos decodificadores, participantes e usuários de textos
competentes. Há também fortes ressonâncias nessa quarta perspectiva com as abordagens críticas
de letramentos que delineamos no capítulo 7.

Quebrador de código (Code-breaker) Construtor de significado (Meaning-maker)

Competência de codificação: quebrar o código de textos escritos, Competência semântica: participar da compreensão e da com-
reconhecendo e usando características e arquiteturas fundamen- posição de textos escritos, visuais e falados significativos, levan-
tais, incluindo alfabeto, sons em palavras, ortografia, convenções do em consideração os sistemas de significado interiores de
e padrões estruturais. cada texto em relação ao conhecimento disponível do leitor e
suas experiências de outros discursos, textos e sistemas de sig-
nificado.

Usuário de texto (Text user) Analista textual (Text analyst)

Competência pragmática: usar textos funcionalmente, conhe- Competência crítica: analisar criticamente e transformar eles,
cendo e atuando sobre as diferentes funções culturais e sociais agindo com base no conhecimento de que eles não são ideolo-
que os diversos textos desempenham dentro e fora da escola, e gicamente naturais ou neutros; que representam pontos de
entendendo que essas funções moldam o modo como os textos vista particulares enquanto silenciam os outros e influenciam as
são estruturados, seu tom, seu grau de formalidade e sua se- ideias das pessoas; e que seus designs e discursos podem ser
quência de componentes. criticados e redefinidos de maneiras novas e híbridas.
Quadro 9.5: Modelo de "Quatro Recursos" ("Four Resources" mode/) (Adaptado de Freebody, 2007; Freebody & Luke, 1990; Luke &
Freebody, 1997).

Aprendendo a ler

Cumming-Pot,vin descreve a expenencia de Nicholas, um garoto do 82 ano do ensino


12

fundamental, participando de um círculo de leitura, que incentiva o hábito de ler. Em sua própria
opinião, Nicholas acha difícil ler; ele descreve essa atividade como "soletrar as letras". Evidentemente,
as aulas de alfabetização no início de sua vida escolar deixaram uma impressão duradoura. Sua
turma está lendo um romance, Tuck Everlasting, uma aventura em que o herói acaba ajudando uma
pessoa que cometeu um crime grave. Para conectar o tema principal da história às experiências
vividas dos alunos e desenvolver seu engajamento em seus significados mais difíceis e controversos,
o professor pede que o círculo de leitura de Nicholas discuta a natureza do crime. Nesse sentido,
"crime" não é apenas uma palavra para ser decodificada, mas é, sobretudo, uma ideia que o romance
explora com profundidade e sutileza, uma vez que a maneira como a palavra é usada, ó'iignificado
central do romance, pode desafiar e estender os modelos mentais de crime que os alunos trazem
para a leitura. Para fomentar, então, uma discussão, a professora pergunta aos alunos:
- É crime andar de bicicleta sem capacete?
Onde Nicholas mora, isso é considerado ilegal; as crianças, contudo, cometem essa infração e,
mesmo percebendo tratar-se de uma tolice, em sua maioria não consideram que seja um crime.

12 Cumming-Potvin, 2007.

CO NSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA LEITURA 1 203


Com base nessa questão, a professora propõe para a discussão nos círculos de leitura o seguinte
tema: "Todos os que cometem um crime devem ser punidos". Nesse momento, um pesquisador se
junta à discussão no grupo de Nicholas.
Pesquisador: - E se você sempre fosse de bicicleta para a casa de seu amigo sem capacete? Isso seria
crime?
Nicholas: - Sim.
Martin: - Não.
Nicholas: - Sim, sim é crime.
Pesquisador: - Você acha que é um crime...
Kevin: - Porque é a lei ...
Pesquisador: - Porque é contra ... porque é ilegal? É contra a lei. Ok, isso é um crime. E se você
jogasse uma bola e, por acidente, você estava brincando, digamos ... no seu gramado da frente e você
jogasse a bola e ela batesse na janela do vizinho por acidente e quebrasse a janela?
Martin (risos): - Eu já fiz isso.
Kevin: - Isso não é um crime.
Nicholas: - Não! Não! Isso é um acidente.
Pesquisador: - Não? Por quê? Isso é um acidente?
Nicholas: - Mas então você teria que pagar por isso.
Pesquisador: - Ok, então...
Nicholas: - Não é como se você quisesse entrar na casa dele e pegasse algumas coisas.
Essa discussão busca construir andaimes relativos aos significados mais importantes no romance,
que envolvem questões de interpretação sutil e não redutíveis às respostas ABCD dos testes
tradicionais de múltipla escolha de compreensão leitora. A discussão também procura estabelecer
uma conexão com a identidade do leitor que dá à leitura maior profundidade de propósito, mesmo
para um leitor em dificuldades como Nicholas.

Conectando·os sons da fala a elementos visuais da escrita


Abordagens do método fônico

Queremos reformular a essência da abordagem didática do letramento como "conceituai" e


a abordagem autêntica, como "experiencial". A maneira mais eficaz de aprender a ler é se
entranhar pelos "processos de conhecimento" conceituais e experienciais, o que já discutimos
no capítulo 3.
Nesse sentido, não queremos tomar partido nas disputas sobre o melhor tipo de abordagem ou
método de alfabetização/leitura. Não porque desejamos ter uma posição neutra ou i'1Ítermediária,
mas porque entendemos que a postura conceitualmente focalizada da abordagem didática é, em
alguma medida, adequada, embora não seja suficiente, assim como o é a postura focada na experiência
da abordagem autêntica. Com efeito, como a que parece ter motivado a publicação do decreto
9.765,.que instituiu no Brasil a Política Nacional de Alfabetização, o melhor seria complementar a
abordagem didática, cujo foco primário são os processos de conhecimento conceituai, com processos
de conhecimento experiencial, e complementar a abordagem autêntica, cujo foco primário são os
processos de conhecimento experiencial, com processos conceituais de conhecimento, o que tornaria

204 1 LETRAMENTOS
essas abordagens mais eficazes do que são. Excelentes professores buscam justamente misturar e
combinar diferentes tipos de atividades ou processos de conhecimento. No espírito dessa perspectiva,
a BNCC do ensino fundamental aponta que:

as habilidades não descrevem ações ou condutas esperadas do professor, nem induzem à opção por
abordagens ou metodologias. Essas escolhas estão no âmbito dos currículos e dos projetos pedagógicos,
que, como já mencionado, devem ser adequados à realidade de cada sistema ou rede de ensino e a cada
instituição escolar, considerando o contexto e as características dos seus alunos. 13

Embora haja uma ênfase maior nos primeiros anos em habilidades técnicas de decodificação,
o desenvolvimento de práticas de leitura intelectual e cultural em torno da criação de significado
e participação em textos também é explicitamente abordado no mesmo documento oficial:

Nos dois primeiros anos do ensino fundamental, a ação pedagógica deve ter como foco a alfabetização,
a fim de garantir amplas oportunidades para que os alunos se apropriem do sistema de escrita alfabética
de modo articulado ao desenvolvimento de outras habilidades de leitura e de escrita e ao seu envolvimento
em práticas diversificadas de letramentos. [... ] A centralidade do texto como unidade de trabalho e as
perspectivas enunciativo-discursivas na abordagem, de forma a sempre relacionar os textos a seus contextos
de produção e o desenvolvimento de habilidades ao uso significativo da linguagem em atividades de
leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e semioses. 14

Alfabetização

Quando adotamos uma abordagem conceitua! no processo de alfabetização, os professores


precisam saber alguns pontos básicos relacionados às conexões entre os sons da fala e os grafemas
(ver Quadro 9.6). Tão logo as crianças sejam capazes de compreender esses conceitos, é bom
nomeá-los exI?licitamente e fazer com que elas generalizem sobre como a língua falada e a língua
escrita estão conectadas. Isso é frequentemente chamado de "princípio alfabético", mas, como
veremos, há mais nesse princípio do que os sons das letras do alfabeto.

1 Fonemas: as letras do alfabeto, sozinhas (por exemplo: "a'; "b'; "c") ou em grupos
(por exemplo: "qu'; "gu" ou "rr"), representam fonemas.

2 Vogais e consoantes: existem dois tipos de sons da fala - vogais ou sons que são
feitos quando suas cordas vocais vibram (a, e, i, o eu) e consoantes, que são pro-
duzidas quando se usa a boca ou a língua para causar algum tipo de obstrução do
som (b, c, d, f etc.).

3 Sílabas: as sílabas são unidades da língua que têm sempre uma vogal e poderrf"
incluir uma ou mais consoantes (por exemplo, as palavras "casa" e"Brasil"têm duas
sílabas cada uma).

4 Palavras: as palavras são unidades de significado que podem ter uma ou mais sí-
labas. Podem-se reconhecer palavras pelos espaços entre elas na escrita.
Quadro 9.6: Um instantâneo da relação entre grafemas e fonemas.

13 Brasil, 2018, p. 30.


14 Idem, pp. 57 e 65.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA LEITURA ! 205


ESTAS SÃO AS VOGAIS COMPLETE COM A VOGAL QUE ESTÁ FALTANDO.

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Figura 9. 1: Aprendendo as vogais.
U:fANTt _RUBIJ

Uma visão geral dos conceitos tônicos

Aqui está a versão curta da história de como traduzir os sons da fala em grafemas.

Fônica e cognição
As crianças precisam entender a relação entre os sons da fala e os grafemas para poder ler e
escrever. Parece enganosamente fácil, mas, na verdade, é difícil, tanto que é possível se maravilhar
com as deslumbrantes capacidades representacionais da espécie humana que se materializam quando
os aprendizes, em seus primeiros anos de escola, aprendem algo tão complicado. Notemos o quanto
é difícil: por exemplo, a relação de "à' e "b" com seus respectivos sons é puramente abstrata, pois
não há pistas contextuais para ajudar no seu aprendizado. A palavra "cão", do mesmo modo, é uma
abstração, mas se aprende com a repetida justaposição de palavra e do animal no mundo da
experiência. Não há nada sobre a relação entre "a" e seu som para ajudá-lo, a não ser por meio da
estranha experiência de leitura e escrita. Como Snow, Burns e Griffin apontam em seu influente
relato sobre a leitura, "letras do alfabeto são referencialmente sem sentido e fonologicamente
abstratas".15 Essa é uma generalização, de fato, verdadeira no que diz respeito às relações entre todo
fonema (som significativo da língua) e grafema (representação gráfica do som). Contudo, as crianças,
ainda em uma idade tão precoce, conseguem aprender muitas dessas abstrações para poderem ler,
sem pistas provenientes da escrita em si.
Dito isso, há outra camada de abstração. É útil poder usar conceitos abstratos, como "alfabeto",
"sílabà', "palavra", "vogal", "consoante" e até mesmo "fonemà', à medida que se aprende a ler e a
escrever. Muito embora a criança não tenha necessitado de uma metalinguagenryara aprender a
falar sua própria língua no contexto familiar, pode ser muito proveitoso ter ferramentas para análise
de design ou metalinguagem sobre a língua escrita ao aprender a ler e escrever na escola. Jeanne
Chall já chamava isso de "aspectos formais e abstratos da linguagem", 16 que ajudam a pensar

15 Snow; Burns & Griffin, 1998, p. 22.


16 Chall, 1983, p. 25.

206 1 LETRAMENTOS
conceitualmente e tornam o aprendizado mais eficiente, pois possibilitam generalizar e transferir
essas generalizações de uma instância de uso de linguagem para outra.
Essas conexões entre os sons da fala e os grafemas que as crianças precisam aprender à medida
que se tornam leitores e escritores são, em si, extraordinárias e, certamente, mais conceitualmente
desafiadoras do que qualquer coisa que tenham encontrado até então em suas curtas vidas. Essas
conexões se constituem com base no seguinte esquema conceitua!:
1) Palavras - Os significados escritos são expressos em palavras ou grupos de palavras na forma
de sintagmas, orações e períodos.
2) Sílabas - Palavras são compostas de unidades sonoras chamadas sílabas.
3) Vogais e consoantes - As sílabas conectam dois tipos de som: consoantes e vogais.
4) Fonemas - Os fonemas são sons que correspondem a sua representação escrita como grafemas.
Se os professores optam por usar todos esses conceitos em seu processo de ensino e se os
enfatizam nomeand9-os explicitamente ou permitindo que os conceitos surjam durante a imersão
experiencial em leitura e escrita, o desafio conceitual é o mesmo.

Fônica e suas complexidades


Existe uma versão ainda mais compli-
cada da história. Aprender a ler já seria um
passarinho
desafio conceitual suficiente se tivéssemos
que aprender apenas os quatro conceitos
mencionados na seção anterior. Todavia,
não há como manter essas regras, pois elas
funcionam mais ou menos algumas vezes,
porém, durante uma grande parte do tem-
po, não funcionam ou se tornam numero-
sas e complicadas demais para valer a pena
memorizá-las ,na escola. Para cada regra, Veja o passari nho.
Ele bicou o pêssego.
teríamos que aprender os milhares de vezes
O pêssego ficou furado.
em que ela não funciona ou as ocorrências
em que outra regra é necessária. Em suma,
existem importantes relações entre os sons assa pássaro isso
assado passa osso
da fala e os grafemas que são complicadas, massa passado ossudo
sutis, numerosas e difíceis de aprender. amassa passeio assina
tosse pessoa assobio
A questão-chave para os educadores se-
ria quanto de fônica é apropriado e sufi-
ciente, já que, se há uma coisa certa sobre Complete:
fônica, é que ninguém pode aprender tudo,
em parte, porque as variações são infinitas.
O passarinho bicou o ................................ .
Por outro lado, pode-se conhecer uma
O .............................. ficou furado.
qua~tidade razoável, que só é possível
aprender na forma de regras abstratas, na -76 -
medida em que padrões de significado na Figura 9.2: Página da cartilha Caminho suave.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA LEITURA 1 207


relação letra-som são abstrações. Não importa quão bons sejam o leitor e o escritor, não importa
quantas regras eles aprendam; eles ainda encontrarão palavras que não viram ou ouviram antes,
ou ainda precisarão escrever palavras que sabem pronunciar, mas não sabem soletrar. Nessas cir-
cunstâncias, as estratégias e o conhecimento fônicos são essenciais.
Portanto, não há regras claras ou confiáveis que ajudem a aprender palavras; apenas se devem
aprender muitas palavras, conectando a maneira como elas se parecem com a forma como são
soletradas; o modo como soam com o que significam. 17

Fonemas - Chamam-se fonemas os sons elementares e distintivos que o homem produz quando, pela voz,
exprime seus pensamentos e emoções.

Fonemas não são letras - Desde logo uma distinção se impõe: não se há de confundir fonema com letra.
Fonema é uma realidade acústica, realidade que nosso ouvido registra; letra_é o sinal empregado para repre-
sentar na escrita o sistema sonoro de uma língua. Não há identidade perfeita, muitas vezes, entre os fonemas
e a maneira de representá-los na escrita, o que nos leva facilmente a perceber a imposs ibil idade de uma or-
tografia ideal. Temos, como veremos mais adiante, sete vogais orais tônicas, mas apenas cinco símbolos grá-
ficos (letras): a, e, i, o, u.

Quando queremos distinguir um e tônico aberto de um e tônico fechado- pois são dois fonemas distintos
- geralmente utilizamos sinais subsidiários: o acento agudo (fé) ou o circunflexo (vê). Há letras que se escrevem,
por várias razões, mas que não se pronunciam, e portanto não representam a vestimenta gráfica do fonema;
é o caso do h em homem.

Por outro lado, há fonemas que se ouvem e que não se acham registrados na escrita; assim, no final de canta-
vam, ouvimos um ditongo em -am cuja semivogal não vem assinalada lcantóvãw/. A escrita, graças ao seu
convencionalismo tradicional, nem sempre espelha a evolução fonética.
Quadro 9.7: Trecho da Moderna gramática portuguesa.'•

Aprioridade da grafêmica sobre a fonêmica em significados escritos

Se há uma generalização importante, esta diz respeito às regras grafêmicas (combinações de


letras da palavra escrita), não às fonêmicas (os sons da fala). As crianças que aprendem a escrever
têm um ouvido engenhoso para os sons da língua, porém escrever não é soar convenções ou gravar
os sons da língua, mas sim convenções alfabéticas, que são registradas em dicionários. O que as
crianças escrevem em forma de "grafias inventadas" são aproximações maravilhosas e educacio-
nalmente inestimáveis de palavras, que, no entanto, são formalmente consideradas como "erros",
mesmo que possam conter visões maravilhosas sobre os sons da fala. O que devemos, então, fazer
com esses erros?
Em primeiro lugar, não devemos chamar tais aproximações de erros, porque são grafias basea-
das exatamente no que as crianças ouvem e aprendem a fazer quando estão sen49- alfabetizadas,
buscando correspondências entre letras e sons da fala. Em um estágio posterior de aprendizagem
da sua escrita (para não interromper sua linha de pensamento ou expressão de significado no
momento em que está aprendendo), elas podem, então, se mover dos sons da língua para as con-
venções da escrita, que, em muitos casos, não apresentam correlação com os sons da fala. Isso
porque as conexões entre os sons da fala e os grafemas, como já vimos, são tão sutilmente variáveis

17 Gunning, 2008; Goodman, 1993.


18 Bechara, 2009, pp. 57-58.

208 i LETRAMENTOS
que não podem ser capturadas com precisão
em um conjunto de regras fonéticas gerenciá-
veis ou suficientemente abrangentes.
Como adultos, fazemos praticamente ames-
ma coisa quando realizamos aproximações or-
tográficas nas frases que estamos digitando, não
querendo interromper o fluxo de nossos pensa-
mentos, mas sabendo que o corretor ortográfi-
co fará sugestões e, assim, nossa ortografia po-
derá ser alterada posteriormente. Do mesmo
modo, essa nossa primeira aproximação orto-
gráfica não está errada, porque nos serve muito
bem no momento para registrar um pensamen-
to que poderia escapar de nossa memória de
curto prazo. É melhor errar naquele momento
do que procurar a palavra e perder a linha de
pensamento. De fato, essa é exatamente a ma-
neira como nós, adultos, trabalhamos hoje com
verificadores gramaticais e ortográficos em com-
putadores ou em nossos smartphones.
No final das contas, escrever é saber lidar
com textos escritos corretamente. Na leitura,
é o padrão formal da escrita que nos dá uma
indicação bastante aproximada dos sons da Figura 9.3: Texto criado por uma criança de 7 anos de idade.
língua, e não o contrário, o que é proveniente
de uma lógica cultural mais ampla em uma sociedade que, pelo menos nos últimos séculos, privi-
legiou a escrita sobre a fala e os demais modos de significação.

Aprendendo significado escrito em ambos os modos

A complexidade fônica não deve nos fazer pensar que não devemos aprender suas regras e
focar apenas na grafêmica ou no reconhecimento visual das palavras. E se aprendêssemos apenas
muitas palavras e suas correspondências - sua aparência, seus sons e seus significados no nível
da palavra inteira? Esse era mais ou menos o método visual dos leitores dos livros de Dick and
Jane, que, como vimos anteriormente, representaram uma das leituras mais conhecidas para
trabalhar a palavra inteira. Tal abordagem, por si só, reduziria a aprendizagem -dé uma língua a
uma espécie de memorização, pelas crianças, da "aparência" de palavras comumente usadas, a
fim de reconhecê-las automaticamente quando as vissem. Essa é uma tarefa tão assustadora
quanto aprender regras fônicas, seja na versão mais simples que apresentamos anteriormente,
seja na versão mais complicada.
Com efeito, lemos conhecendo muitas dessas palavras comumente usadas, pois, como leitores
experientes, soletramos apenas palavras que ainda não reconhecemos como palavras inteiras ou
cujos significados não são óbvios pelo contexto. Nesse sentido, o método fônico se torna uma

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA LEITURA i 209


estratégia limitada raramente necessária a leitores competentes, que somente é aplicada quando,
por exemplo, alguém depara com uma palavra desconhecida ou um nome próprio que, por algum
motivo, precisa ser falado. No entanto, para os que estão sendo alfabetizados, pode ser muito útil
aprender a relação entre sons da fala e grafemas, dado que o português é uma língua alfabética, em
especial as generalizações simples, das quais a escola precisa fazer uso para tornar os processos de
aprendizagem mais eficientes do que as abordagens de imersão ou baseadas somente na experiência.
Existem algumas relações úteis entre fonemas e grafemas, muito embora se tornem mais complicadas
à medida que se aprende mais e sejam, em última instância, pouco confiáveis e de valor muito
limitado para leitores mais experientes.
Assim, devemos trabalhar a relação entre sons da fala e grafemas e fazê-lo bem, porque isso
pode, de fato, ser bastante útil na alfabetização inicial. E, quanto mais adentramos as profundezas
arcanas das correspondências parciais e não correspondências entre sons e a imagem visual da
escrita, mais aprenderemos. Com efeito, o método fônico pode ter alguma serventia - ainda que
limitada - mais tarde na vida, como uma das várias estratégias possíveis de utilizarmos quando
deparamos com palavras desconhecidas. Todavia, voltamos ao ponto-chave que levantamos
anteriormente: desenvolver e aplicar conceitos que associam algo tão abstrato quanto as relações
de significados entre sons da fala e grafemas é um dos grandes desafios cognitivos da vida de toda
criança. É um desafio com o qual, quase milagrosamente, dada a sua escala, a educação inicial é
impelida a lidar.
Contudo, mesmo quando expostas a regras e conceitos fônicos, as pessoas precisam aprender
muitas palavras por meio de exposição repetida, uma por uma, visto que os sons da fala, não raro,
estão muito pouco conectados a suas representações gráficas, o que, de certa forma, nos obriga a
aprender essas representações e os respectivos sons a elas conectados. Em outras palavras, preci-
samos aprender a reconhecer a "aparêncià' da palavra cuja combinação de letras se torna uma
marca implacável do processo de alfabetização; o som correspondente da palavra (levando em
consideração que os sons da fala e as letras apresentam correspondências apenas aproximadamen-
te e apenas em parte do tempo); e o significado da palavra (levando em conta que as palavras não
correspondem a unidades de significado, ou morfemas). Diante disso, podemos dizer o quão ma-
ravilhoso é o fato de os seres humanos poderem dominar um artefato tão estranho, abstrato e in-
tangível como a escrita, ainda em uma idade tão precoce. Por essas razões, sugerimos uma pers-
pectiva para o processo de alfabetização que possa combinar a tendência conceituai das pedagogias
do letramento na abordagem didática com a tendência experiencial das pedagogias do letramento
na abordagem autêntica.

Estratégias para desenvolver vocabulário, compreensão e leitura crítica


...Jt

Mais do que decifrar o código alfabético, a leitura envolve compreender, interpretar, avaliar e
refletir sobre o significado dos textos. Em busca de sentido no modo escrito, os leitores efetivos se
engajam em uma série de estratégias deliberadas e direcionadas ao processamento de palavras e
outros _símbolos visuais para, assim, extrair significados dos textos. 19 Através de repetidas leituras
e exposição a uma ampla gama de experiências textuais, os alunos começam a reconhecer as palavras

19 Afilerbach; Pearson & Paris, 2008.

210 i LETRAMENTOS
que ocorrem com maior frequência em uma determinada língua. No entanto, para lidarem com
palavras desconhecidas, complexas ou polissilábicas, as crianças precisam estar equipadas com
estratégias deliberadas ou técnicas de solução de problemas, pois muitos termos não podem ser
decodificados fonicamente; assim, para o reconhecimento dessas palavras, elas necessitam de uma
série de pistas contextuais, semânticas e gramaticais. Tais estratégias de processamento de texto
permitem que os leitores prevejam, reconheçam palavras, elaborem vocábulos desconhecidos,
monitorem suas próprias leituras, identifiquem e corrijam erros, leiam e releiam o que escreveram.
Como essas estratégias envolvem comportamentos conscientes e aprendidos, elas podem ser
ensinadas por meio de modelagem, instruções metacognitivas sobre como e por que usar estratégias
e práticas guiadas e orientadas. 2 0
Assim, nos primeiros anos, as crianças podem aprender a decodificar fonicamente palavras
monossílabas regulares usando estratégias como:

• soletração;
• associação de palavras novas a palavras que já conhecem ("decodificação por analogià'),
usando rimas, e o conhecimento sobre a origem e as famílias das palavras;
• aplicação de regras fônicas.

Os professores podem modelar estratégias para ajudar os leitores mais jovens a aprender a
associar as formas, os nomes e os sons das letras - por exemplo, apontando a primeira letra do
nome de uma criança, chamando atenção para formas e nomes de letras através de jogos e ativi-
dades práticas e cantando músicas sobre o alfabeto. Estratégias para identificação de letras, deco-
dificação, leitura oral e compreensão
podem ser significativamente incorpo-
radas à leitura dialógica e à conversa em
fônica torno de textos autênticos, que precisam
língu língua ser cuidadosamente selecionados para
envolver as crianças em ricas experiên-
cias literárias que se conectam a suas
experiências vividas. Gráficos em pa-
redes e bancos de palavras de alta fre-
quência podem ser exibidos em sala de
repres
aula para apoiar o vocabulário visual.
gráfic Nos anos iniciais, os alunos continuam
líng a desenvolver suas habilidades de
identificação de palavras, usando uma
série de estratégias, de fõ'rma isolada ou
Figura 9-4: Leitura e escrita do ponto de vista conceituai. em conjunto, que inclui:

• análise fônica: os alunos usam seus conhecimentos a respeito das correspondências fonema-
-grafema, regras fônicas e padrões de ortografia;

20 Idem, ibidem; Harvey & Goudvis, 2007; Paris & Stahl, 2005.

CON STRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA LEITURA 1 211


• decodificação por analogia: os alunos usam seus conhecimentos de fonogramas para deduzir
a pronúncia ou a grafia de uma palavra desconhecida;
• análise silábica: os alunos separam palavras em silabas e decodificam cada sílaba, usando
seus conhecimentos de fonética;
• análise morfêmica: os alunos aplicam seus conhecimentos sobre radicais das palavras, prefixos
e sufixos para ler novas palavras. 21

Os leitores mais experientes também usam seus conhecimentos sobre função sintática, estruturas
de texto e contexto como pistas para facilitar o reconhecimento e a compreensão das palavras. O
objetivo da instrução estratégica explícita é levar os alunos à prática independente e à fluência em
suas leituras, para que possam se tornar leitores e produtores textuais bem-sucedidos. Nesse sentido,
Snow, Burns e Griffin asseveram:

A compreensão pode ser aprimorada por meio de instruções focadas na ampliação de conceitos e do
vocabulário e em conhecimento prévio, instrução sobre a sintaxe e estruturas retóricas da língua escrita
e instrução direta sobre estratégias de compreensão, como resumir, predizer ·e monitorar. A compreensão
também requer prática, que é obtida pela leitura independente, pela leitura em pares ou grupos e pela
leitura em voz alta. 22

Em contraste com abordagens didáticas tradicionais, que ensinam a decodificação como uma
habilidade isolada, por meio do uso de textos controlados, abordagens híbridas e equilibradas,
atualmente adotadas por autoridades educacionais e curriculares, enfatizam uma perspectiva
integrada e situada para a decodificação. A compreensão da escrita é importante desde o início,
porém o ensino explícito sobre decodificação é mais eficiente no contexto da leitura de textos de
literatura infantil autêntica e de textos informativos, como parte de um programa maior de
alfabetização. Ao selecionarem um texto, os professores devem considerar os propósitos gerais de
aprendizagem, os principais conceitos que esse texto incorpora, o tipo de texto e suas características,
sua legibilidade,e sua adequação ao foco de ensino.
Para prepararem os alunos para a leitura, os professores planejam, assim, uma série de atividades
em todo o currículo a fim de construir conhecimentos básicos prévios e introduzir um vocabulário
não familiar ou especializado e técnico antes de apresentar um novo texto. Nesse sentido, precisam
demonstrar como palavras e imagens funcionam juntas para construir significados. À medida que
as crianças, nos primeiros anos do ensino fundamental, vão aprendendo a identificar as ideias
principais num texto, a ler e reler, os professores passam a ensinar explicitamente estratégias de
decodificação e compreensão, modelando (por exemplo, pensando em voz alta para demonstrar
seu raciocínio), explicando e defendendo modos de leitura adequados para que elas possam ter
consciência e monitorar suas próprias formas de compreensão e leitura. Algumas es~tégias-chave
de leitura estão resumidas no Quadro 9.8.

21 Tompkins; Campbell & Green, 2012.


22 Snow; Burns & Griffin, 1998, p. 7.

212 / LETRAMENTOS
Engajando-se ainda mais nos textos
O que vimos aqui é apenas parte da história da construção de sentidos a partir da leitura. Nas
concepções contemporâneas de letramento, não se podem ignorar os contextos nos quais as crianças
se envolvem durante a leitura, em particular aqueles em que textos multimodais saturados de
imagem, encontrados em ambientes digitais da internet, fazem parte das primeiras experiências
de letramento de muitas crianças quando aprendem a ler. Várias características desses ambientes
contribuem para uma tarefa mais complexa para os leitores - estruturas de informação com
hiperlinks, interatividade e formatos semelhantes a jogos, com uma ampla variedade de ícones de
navegação, imagens e vídeos -, que precisam desenvolver habilidades adicionais para localização,
integração e avaliação da informação de forma bem-sucedida, particularmente quando se tenta
integrar significados, cujos modos de construção diferem uns dos outros.
Como muitos elementos de textos típicos da iRternet, seus layouts e princípios de design se
espalharam em textos impressos; esses elementos vêm mudando a maneira como os leitores se
engajam nos textos atuais, tendo em vista que a leitura e seu processo cognato de visualização são
inseparáveis quando as crianças lidam com textos que incorporam uma variedade de pistas
multimodais. Voltaremos à noção de design de significado nos capítulos seguintes.

Ativando, expandindo e refinando o Conectar - texto a si mesmo, texto a texto, texto ao mundo
conhecimento prévio. para acessar o que já sabemos e para ajudar a entender
novas informações.
Expandir e refinar o conhecimento prévio.

Fazendo previsões sobre o texto. Prever - usando pistas como capa, título, autor, ilustrações
e tipo de texto para prever eventos futuros em um texto.

Monitorando a compreensão. Questionar - ajuda-nos a entender o texto.


Esclarecer o conteúdo.
Autocorrigir-se e reler - e outras estratégias de correção.

Recuperando informações. Identificar informações literais explicitamente declaradas no


texto.
Visualizar - criando imagens mentais de elementos em um
texto.
Organizar - informação de um texto.

Interpretando texto. Fazer inferências - com base nos significados implícitos no


texto e no seu conhecimento prévio.
Interpretar o texto e ler nas entrelinhas.
Determinar o que é importante - encontrar as ideias mais
importantes de um texto.
Resumir - criar uma versão resumida das ideias prin~ is
do texto.
Sintetizar - integrando ideias e informações do texto com o
que j á se conhece para desenvolver ideias e compreensões
novas.

Refletindo sobre o texto. Refletir criti camente sobre conteúdo, estrutura, língua e
imagens usadas para construir significado em um texto.
Quadro 9.8: Estratégias de compree nsão e processos de leitu ra.

CONSTRUINDO SIGNI FICAD OSPOR MEI ODA LEITU RA 1 213


Sumário

Leitura na abordagem didática Leitura na abordagem autêntica Pedagogia dos letramentos


e análise do design

Fônica: Aprender correspondências en- Significados: Aprender o sign ificado de Entender padrões em significado: Nem toda
tre som da fala e grafemas. palavras inteiras (whole language), atri- regra de correspondência letra-som, mas a
buindo sentido às palavras a partir do ideia geral de que pode haver correspondên-
Compreensão: Obter as respostas certas contexto: aprendizagem natural, imersa cias de padrões no texto como um todo.
sobre o que os textos •realmente" dizem. em textos significativos. Ser capaz de navegar através de textos in-
teiros, entendendo seus propósitos sociais
e suas arquiteturas.

Processos de conhecimento

1. Experienciando o conhecido
Em termos das pedagogias de leitura descritas neste capítulo, como você descreveria sua própria
experiência de aprender a ler? Quais abordagens você achou pessoalmente mais eficazes?

2. Experienciando o novo
Leia uma atividade altamente roteirizada de "instrução explícità' ou de programa de leitura
básico. O que você acha atraente ou alienante nessa perspectiva para aprender a ler?

3. Analisando criticamente
Debata a proposição de que o método fônico sintético é o caminho mais eficaz para a leitura
precoce de alunos de famílias pobres e desfavorecidas. Para isso, leia textos dos proponentes de
ambos os lados nesse debate.

4. Conceitualizando por nomeação


Faça um registro dos conceitos sobre língua discutidos neste capítulo. Defina-os em um glossário.
Talvez isso possa assumir a forma de uma wiki colaborativa, em que diferentes alunos possam:
a) nomear e definir conceitos;
b) fornecer exemplos;
c) sugerir momentos de ensino quando esses conceitos puderem ser usados para aprender a ler.

5. Conceitualizando por teoria


Crie um mapa conceitua} conectando os termos definidos à atividade anterior.

6. Aplicando apropriadamente
Desenvolva um plano de aula que aplique os conceitos de análise do design às atividades de
leitura para alunos com diversas necessidades de aprendizagem. Elabore atividades de aula para
proporcionar experiências de aprendizagem diferenciadas para crianças em processos de
alfabetização.

214 i LETRAMENTOS
Capítulo 10
Construindo significados 1

por meio da escrita

Visão geral
Este capítulo continuará examinando a língua escrita, porém, desta vez, pela perspectiva da
representação e da comunicação do significado escrito. Começaremos observando, por meio de
uma discussão de como a fala e a escrita diferem entre si, como o significado no modo escrito se
desenvolve. Em seguida, exploraremos abordagens alternativas para descrever como a língua escrita
funciona, passando pela gramática tradicional da abordagem didática, pela gramática gerativo-
-transformacional de Chomsky e pela gramática funcional de Halliday. Terminaremos o capítulo
com nossa própria abordagem dos multiletramentos, que descreve o que chamamos de "elementos
do design" de textos escritos.

Aprendendo a escrever
Rita van Í-Iaren, Brielle Riley, Michelle Hodge e Sue Gorman têm trabalhado com um projeto
que criaram em conjunto para suas aulas do 3º ano do ensino fundamental. Nesse projeto, os alunos
"experienciam o conhecido", ao falarem sobre como a água é usada em diversas situações em suas
vidas; "conceituam com teoria", ao classificarem as palavras para diferentes usos em categorias;
"analisam funcionalmente': ao escreverem sobre a aparência da água, seu cheiro e seu gosto; "analisam
criticamente", ao discorrerem, em pares, sobre a água e a sobrevivência humana; e "aplicam
criativamente': ao criarem um pôster cujo objetivo é convencer outras pessoas a economizar água.
Já em uma turma de 7º ano, os alunos de Rita van Haren, Anne Dunn e Robyn Kiddy estão
escrevendo uma narrativa inspirada no conto alegórico "A ilhà' ("Toe island") ..Jittes leem o texto
("experienciam o novo") e, em seguida, examinam as características da narrativa, incluindo
orientação, complicação, resolução e coda ("conceitualizam por nomeação'); exploram características
linguísticas espe_cíficas da narrativa, tais como linguagem figurada, circunstâncias expressas por
advérbios, elementos em sintagmas nominais e uso de sentenças complexas ("conceitualizam por
nomeação"); analisam como todas essas coisas funcionam juntas para criar um conto alegórico
("analisam funcionalmente"); e, então, escrevem seu próprio conto alegórico ("aplicam criativamente").
Enquanto isso, os alunos da aula de produção escrita do 92 ano da professora Prue Gill estão
escrevendo uma biografia como parte de um projeto chamado "Pessoas comuns, destinos
extraordinários': Como segmento do movimento pedagógico "Explorando o conhecido", eles
discutem o que pode tornar uma pessoa comum extraordinária; eles, então, "experienciam o
novo", ao assistirem a algumas palestras do programa TED e a vídeos de heróis da CNN; depois
disso, leem a biografia de Eddie Mabo, um australiano comum oriundo das ilhas do Estreito de
Torres, que se atreveu a desafiar a "lei da terra"; Mabo dizia que, tradicionalmente, ele e seu povo
não possuíam terras, mas que conseguira ganhá-las na Justiça e restabelecer o direito sobre elas
para australianos indígenas; em seguida, "analisam funcionalmente", ao explicarem as maneiras
pelas quais textos informativos, em geral, e biografias, em particular, trabalham para comunicar
aspectos relevantes de uma história de vida; "conceitualizam por nomeação", ao discutirem as
características linguísticas típicas de uma biografia; depois, "conceitualizam com teoria", ao
analisarem as características gerais do design de um texto informativo; passam, então, a "ap_licar
apropriadamente", ao começarem a escrever a biografia de uma pessoa de sua escolha, cujo início
de vida pode ter sido bastante simples, mas que tenha deixado alguma contribuição extraordinária.
Os critérios de revisão por pares criados pelos professores-autores desse projeto levantam noções
de estilo formal, descrição da informação, organização textual, coesão e referenciação, que os
alunos já haviam identificado no texto de exemplificação do projeto sobre Eddie Mabo; por fim,
"analisam criticamente", ao checarem os textos uns dos outros e oferecerem um retorno crítico
e construtivo a seus colegas.
Mencionamos ainda o trabalho sobre Hamlet, desenvolvido pelas professoras Prue Gill,
Rachael Radvanyi e Jennifer Not com seus alunos do 1 º ano do ensino médio. Eles começam
esse estudo "experienciando o conhecido", com uma atividade que lhes pede que reflitam sobre
os momentos de conexão de relacionamentos familiares; então, "experienciam o novo", ao
discutirem um vídeo sobre como a língua inglesa mudou ao longo do tempo e ao assistirem ao
vídeo Contos animados de Hamlet (Animated tales of Hamlet); "conceitualizam por nomeação",
ao examinarem a natureza da caracterização na pessoa de Hamlet; depois, "analisam
funcionalmehte", ao discorrem sobre o papel da cena fantasma na narrativa; "aplicam
apropriadamente", ao escrevem um ensaio de crítica literária, em que exploram os temas da
vingança ou da loucura em Hamlet; "analisam criticamente", ao checarem os ensaios uns dos
outros; e, então, "aplicam criativamente", ao produzirem uma apresentação oral sobre o
desenvolvimento de um personagem na peça.
Então, o que está acontecendo nessas salas de aula? O que é produção escrita e como a construímos?

Trabalhando com a escrita


Falando e escrevendo

Escrever é difícil e, em alguns sentidos, um trabalho não natural que resulta na produção de
um artefato escrito, que precisa ser inteligível para aqueles envolvidos na troca de significado
mediada por esse artefato. Nesse sentido, a escrita exige que os autores escolham entre os recursos
de significado disponíveis em seus sistemas de escrita, transformando sua língua oral em escrita

216 j LETRAMENTOS
por meio de um processo de sinestesia ou alternância de modo. Embora, é claro, vinculada à língua
falada, a escrita é surpreendentemente diferente da fala, algo que exploraremos mais profundamente
quando discutirmos significados orais no capítulo 13. Com efeito, há um grande salto entre falar
com os outros, ou silenciosamente para si mesmo, e criar texto escrito cujos significados são
recebidos em tipos de comunicações em que o autor não tem um retorno ou capacidade de resposta
imediatos. Por isso, a escrita não é apenas uma transcrição da fala; o processo de sinestesia necessário
para alternar do modo oral para o modo escrito é muito mais complicado do que isso, uma vez
que escrita e fala envolvem processos mentais bem diferentes. É mais como "aprender a ouvir e
pensar sobre a língua de uma maneira diferente". 1

Fazer escolhas através da escrita às vezes pode ser agonizante ("é isso mesmo que eu quero
dizer?"). Não raro, questionamo-nos e alteramos palavras que acabamos de escrever, substituindo-
-as por outras que terminamos de procurar e que podem captar melhor nosso significado. Fazemos
mudanças em nosso texto todo o tempo, trabalhando sobre ele, elaborando-o até que estejamos
mais ou menos satisfeitos com ele e consideremos que pode, então, "ficar em pé sozinho", sem a
nossa presença para explicar seu significado, que envolve uso de unidades fundamentais e
cuidadosamente ordenadas: ortografia, morfologia, sintaxe, pontuação, parágrafo, seção, subtítulo,
título e uma assinatura de autoria, especificamente projetados para enquadrar o significado escrito.
Tudo isso exige muito tempo e esforço mental para ser bem organizado.
Por exemplo, só para ficarmos nas duas primeiras unidades, aprender a ortografia e a morfologia
da língua portuguesa não é, de forma alguma, um processo natural; requer compreensão consciente
sobre o sistema de escrita e os recursos disponíveis para construir palavras por meio de
representações de sons da fala e seus significados, constituindo-se em uma língua morfofonêmica.
Isso envolve o uso de múltiplas fontes de conhecimento sobre: (i) como os sons da fala são
organizados em unidades mínimas significativas da língua (fonologia); (ii) quais sequências de
letras irão funcionar e quais grafemas usar, especialmente porque não há uma simples
correspondência entre fonemas e grafemas (ortografia); (iii) a estrutura das palavras, como
radicais, sufixos e prefixos, que carregam determinados tipos de significados (morfologia), e
como estes são influenciados pela origem de uma palavra (etimologia); (iv) e, finalmente, o
elemento visual da palavra, que permite identificar o padrão visual de uma palavra, enfatizado
em abordagens de leitura de caráter global.
Do mesmo modo, o processo de produção de significado na escrita pode ser também muito
diferente da fala. Por exemplo, quando escrevemos um texto formal, começamos planejando
cuidadosamente o que vamos escrever, da primeira à última parte. Então, lemos várias vezes esse
texto para obter a estrutura e o tom adequados para tentar estabelecer coesão entre orações,
períodos e parágrafos, e para ter certeza de que escolhemos as melhores palavras para servir aos
nossos propósitos de construção de significado, buscando, entre outras coisas, evitar repetições
desnecessárias. A escrita é um produto estruturado, fruto de um processo multilinear em todas
as direções do texto.
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li
1.
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·:
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Veja: "Regras ortográficas".

1 Olson, 1998, p. 32.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 217


Oimpacto das tecnologias no processo de escrita

As tecnologias para trabalhar com textos escritos mudaram radicalmente a partir das últimas
décadas do século XX, o que facilitou, entre outras coisas, o trabalho metódico que a escrita exige
para a produção de um texto escrito. Para os mais jovens pode parecer estranho, mas houve um
tempo em que se escrevia tudo à mão ou à máquina de datilografar, e as alterações feitas nos textos
causavam muita bagunça na página. Além disso, era demorado e trabalhoso fazer vários rascunhos
e ir escrevendo ou datilografando o texto novamente, do começo ao fim, até obter uma cópia limpa
e revisada. Até o surgimento do computador pessoal e de outros dispositivos digitais, como
ferramentas quase universais para a escrita, isso era o que as pessoas faziam.
Pode-se, assim, dizer que algo significativo aconteceu com o modo como escrevemos, com a
chegada do computador pessoal e, especificamente, dos programas de processamento de texto.
Fazer alterações no texto se tornou tão fácil quanto exduir e redigitar ou recortar e colar. Podemos
fazer quantas mudanças quisermos e, a menos que desejemos que outra pessoa veja as alterações
que fizemos ativando a função de revisão ou acompanhamento, podemos alterar um texto com a
frequência que desejarmos e ele ainda será tão organizado quanto o produto final. Quando
trabalhamos em um computador ou em outro dispositivo eletrônico, temos muito mais flexibilidade
para retroceder e avauçar nos processos multilineares de produção e revisão textual. Isso nos dá
mais oportunidades do que já tivemos em toda a história da escrita de trabalhar cuidadosamente
sobre um texto escrito, inclusive com os suportes de verificadores ortográficos e gramaticais,
dicionários de sinônimos, modelos e definições de estilos, ferramentas de rastreamento e anotação
para auxiliar na autoria colaborativa de um texto compartilhado; tudo isso em um único espaço
digital de escrita formal.
No outro extremo do espectro, tecnologias mais recentes de mídias sociais têm facilitado novas
formas de escrita, como mensagens de texto em diferentes redes sociais, que, de muitas maneiras,
se assemelham muito mais a situações informais de fala, em sua sincronicidade e seu potencial
para interação, do que ao esforço deliberado e consciente exigido dos tipos convencionais de escrita
formal que emergem das tecnologias de impressão e processamento de texto. Discutiremos o
fenômeno do texto quase oral mais adiante, no capítulo 13.

Erros e mudanças no texto escrito

A fim de analisarmos os elementos do design da língua escrita, vamos nos concentrar nas escolhas
que fazemos e, particularmente, nos tipos de mudanças que podemos incorporar à medida que
vamos trabalhando em um rascunho. Na abordagem dos multiletramentos, que vem sendo delineada
neste livro, reconhecemos que a língua funciona de maneira diferente em diferentes"1ugares para
diferentes propósito·s, o que, portanto, relativiza a ideia de "erro". É claro que existem erros, no
sentido mais amplo, na medida em que uma pessoa pode não conhecer algumas das convenções
de escrita que poderiam ajudá-la de maneira mais eficaz na construção de significado intencional
em uma situação particular. A tentativa inicial de uma criança de criar um significado através do
desenho e da escrita (Figura 10.1) ilustra esse ponto.

218 1 LETRAMENTOS
Na nossa análise dos multiletramentos, os elementos
primordiais estão centrados nas escolhas de significado
para atender ao seu público-alvo e a seus propósitos co-
municativos específicos. Assim, em vez de falar sobre algo
tão rígido e definitivo quanto um erro, sugerimos ideias
de mudança e melhorias que caracterizam o processo de
escrita. A primeira tentativa de escrever algo pode ser
perfeitamente adequada como uma primeira aproximação
- pode haver uma questão ortográfica a ser verificada
posteriormente, um tom que seria mais apropriado para
determinado contexto, ou outra palavra que captaria o
significado pretendido de forma mais efetiva. Há sempre
opções e mudanças à disposição do escritor, à medida que
ele passa a buscar vocábulos e a elaborar ordens de pala-
vras que se aproximem progressivamente do significado
que deseja expressar e que melhor se ajustem aos propó- Figura 10.1: Desenho e escrita de uma criança.
sitos ou convenções do contexto específico.
Nessa concepção, nossa ênfase recai na preparação de escritores para trabalhar efetivamente em
suas escolhas de signfficado voltadas a uma variedade de propósitos que julgam importantes e que
serão mais eficazes em contextos específicos. Fazemos isso porque acreditamos que a ativação da
agência, da motivação e da criatividade é importante nos contextos formais de aprendizagem escolar,
nos quais os artefatos da escrita tenderam, no passado, a estar ligados à cultura da escola, de suas
disciplinas e, não raro, de ideias excessivamente rígidas sobre o que é "correto" ou não. Nos mundos
reais dos cidadãos, trabalhadores e membros de comunidades, as pessoas labutam para melhorar
as coisas em vez de obtê-las na sua forma "correta", já acabada, desde o início.
Portanto, escritores eficazes, tanto nas escolas quanto no cotidiano, sabem trabalhar
cuidadosamente seus textos, realizando mudanças à medida que vão dando forma aos seus
significados, pensando explicitamente sobre as razões pelas quais fazem essas modificações, com
base no propósito de sua produção textual. Por exemplo, as possíveis alterações feitas ao reler o
rascunho de um texto próprio podem incluir a reformulação de algo que se considera passível de
dizer de maneira melhor, ou uma modificação sugerida pelo verificador ortográfico ou gramatical
do computador, ou ainda uma alteração proposta por um leitor; pode-se concordar e fazer a
mudança, ou discordar do verificador ortográfico ou da sugestão do leitor; aquela palavra que se
pensou ser um erro de ortografia é, de fato, o nome de um lugar, ou uma transcrição do som de
determinado dialeto; essa frase que se considerou gramaticalmente defeituosa por causa de sua
construção passiva foi, na verdade, uma construção proposital do escritor, porque este não quis
enfatizar o papel do ator na ação. Nesses casos, portanto, o que foi considerado um..Jférro" ou um
problema de estilo é, na verdade, uma questão de julgamento, perspectiva e interpretação variáveis .
..... ,J • U d Assim, nossa análise do design das características de escrita não é um catálogo
- ■es,gn : m processo e
- ementas do design de um de regras de uso correto ou de erros potenciais. É, pois, uma taxonomia de
do escrito ou multimodal. opções de design que permite diferentes tipos de alteração textual e uma lista
de perguntas que aquele que escreve faz a si mesmo enquanto trabalha com um texto, ou que um
revisor elabora ao escritor para que este tenha a possibilidade de reformular seu texto, atendendo,

CO NSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 219


assim, a seus objetivos de forma mais eficaz; a resposta do escritor às suas próprias perguntas, às
perguntas de seu leitor ou à sugestão do computador pode ser a execução de uma alteração. No
entanto, se o escritor, uma vez consciente, faz ou não essa mudança é uma questão da própria
compreensão do significado que deseja construir e da escolha que fez para expressar esse significado,
pelo menos até encontrar uma maneira que melhor se adapte à sua intenção, ou descobrir que não
foi devidamente compreendido. A questão convida à deliberação, sugere escolhas alternativas e
permite que opções sejam justificáveis para propósitos particulares; assim, não existem escolhas
inevitáveis e universalmente certas e erradas na criação de significado. Contudo, podemos supor
que, quando um autor cria um texto ou faz uma alteração em um texto escrito, ele o faz por um
motivo que diz algo sobre o seu conhecimento de como a língua e a comunicação funcionam, o
contexto da comunicação, suas preferências, ou os elementos do design que deseja escrever, com o
intuito de melhorar o texto e torná-lo mais eficaz.

Significados escritos: Análise do design

Mais adiante, neste capítulo, ofereceremos breve resumo de uma taxonomia de opções de design
para a língua escrita, que se constitui nas escolhas que um escritor pode fazer, em uma primeira
instância, mas que, p01 reflexão ou sugestão de um leitor, podem ser mudadas. Supõe-se que, na
maioria das vezes, se o escritor faz a mudança é porque considera que ela servirá melhor a seus
propósitos de construção de significado do texto em um contexto particular, e porque será
interpretado com precisão, como pretendido. Todavia, antes de discutirmos isso, queremos,
primeiramente, apresentar vários outros paradigmas para compreender as estruturas das línguas
escrita e falada: a gramática tradicional, a gramática transformacional e a gramática sistêmico-
-funcional.

Gramática tradicional
Classes de palavras na gramática tradicional

A gramática tradicional consiste nos rótulos que descrevem as formas e relações estruturais das
palavras na língua. O gramático Evanildo Bechara, em sua Moderna gramática portuguesa, aponta
que "dentro da diversidade das línguas ou falares regionais se sobrepõe um uso comum a toda a
área geográfica, fixada pela escola e utilizada pelas pessoas cultas: é isto o que constitui a língua
geral, língua-padrão ou oficial do país". O registro dos fatos dessa "língua-padrão" seria, de acordo
2

com o autor, o objeto da gramática, estabelecendo os "preceitos de como se fala e escr-.we bem ou
de como se pode falar e escrever bem uma línguà'. 3
Para, então, "falar e escrever bem'', a gramática tradicional, as palavras, por exemplo, são
categorizadas em diferentes classes, que, segundo Bechara, são em número de dez:

2 Bechara, 2009, p. 24.


3 Idem, ibidem.

220 1 LETRAMENTOS
1) SUBSTANTIVO: é o nome com que designamos seres em geral - pessoas, animais e coisas.
2) ADJETIVO: é a expressão modificadora que denota qualidade, condição ou estado de um
ser.
3) ARTIGO: é a palavra que se antepõe aos substantivos que designam seres determinados
(o, a, os, as) ou indeterminados (um, uma, uns, umas).
4) PRONOME: é a expressão que designa os seres sem dar-lhes nome nem qualidade, indicando-
-os apenas como pessoa do discurso.
5) NUMERAL: é a palavra que denota nome de número.
6) VERBO: é a palavra que, exprimindo ação ou apresentando estado ou mudança de um
estado a outro, pode fazer indicação de pessoa, número, tempo, modo e voz.
7) ADVÉRBIO: é a expressão modificadora que denota circunstância (de lugar, tempo, modo,
intensidade, condição etc.).
8) PREPOSIÇÃO: é a expressão que, posta entre duas outras, estabelece subordinação da
segunda à primeira.
9) CONJUNÇÃO: é a expressão que liga orações ou, dentro da mesma oração, palavras que
tenham o mesmo valor ou função.
10) INTERJEIÇÃO: é a expressão com que traduzimos os nossos estados emotivos.

Com efeito, essas classes gramaticais apresentam uma nomenclatura mais complicada do que
essa divisão parece indicar. Vejamos o detalhamento, apenas em parte do sumário, da Moderna
gramática portuguesa, descrevendo distinções mais refinadas das divisões das classes de palavras
no Quadro 10.1:

,) Substantivo
• concreto e abstrato;
• próprio e comum;
• formação do plural do substantivo;
• substantivo coletivo;
• gênero do substantivo.

2) Adjetivo
• adjetivo explicativo e restritivo;
• substantivação do adjetivo;
• flexões do adjetivo em grau.

3) Artigo
• espécies de artigo.

4) Pronome
..,/t
• classificação dos pronomes;

.• pronomes pessoais;
pronomes possessivos;

.• pronomes demonstrativos;
pronomes indefinidos;
• pronomes interrogativos;
• .pronomes relativos.

s) Numeral
• espécies de numeral .

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 221


6) Verbo
• pessoas do verbo;
• tempos do verbo;
• modos do verbo;
• vozes do verbo;
• voz passiva e passividade;
• formas nominais do verbo;
• conjugar um verbo;
• verbos regulares, irregulares e anômalos;
• verbos defectivos e abundantes;
• locução verbal: verbos auxiliares;
• auxiliares causativos e sensitivos;
• elementos estruturais do verbo: os sufixos e as desinências verbais;
• tempos primitivos e derivados;
• a sílaba tônica dos verbos: formas rizotônicas e arrizotônicas;
• alternância vocálica ou metafonia;
• verbos notáveis quanto à pronúncia ou à flexão;
• variaçôes gráficas na conjugação;
• erros frequentes na conjugação de alguns verbos;
• paradigma dos verbos regulares;
• conjugação de verbos auxiliares comuns;
• conjugação composta;
• conjugação do verbo pôr;
• conjugação de um verbo composto na voz passiva: ser amado;
• conjugação de um verbo na voz reflexiva: apiedar-se;
• conjugação de um verbo com pronome oblíquo átono: tipo pô-lo;
• conjugação dos verbos irregulares:
• 1• conjugação;
• 2• conjugação;
• 3• conjugação.

7) Advérbio e os denotativos
• locução adverbial;
• circunstâncias adverbiais;
• os vocábulos denotativos;
• advérbios de base nominal e pronominal;
• gradação dos advérbios.

8) Preposição
• locução prepositiva;
• acúmulo de preposições;
• combinação e contração de preposição com outras palavras;
• a preposição e sua posição;
• principais preposições e locuçôes prepositivas.

9) Conjunção
• tipos de conjunção;
• locução conjuntiva;
• conjunções coordenativas;
• conjunções subordinativas;
• conjunções e expressões enfáticas.

10) Interjeição•
• locução i nterjetiva.
Quadro 10.1 : Parte do sumário relativa às classes gramaticai s (Moderna gramática portuguesa, 2009).

222 1 LETRAMENTOS
Sintaxe na gramática tradicional

Existe uma gama infinita de escolhas que podemos fazer em sintaxe - tão expansivas, na verdade,
que dois trechos envolvendo várias centenas de palavras recém-criadas nunca serão iguais. Nesse
sentido, a sintaxe é a parte da gramática que lida com a combinação de diferentes classes de palavras
em sintagmas, orações e períodos. Assim como as classes de palavras, a sintaxe envolve uma
nomenclatura complexa, que destacamos no Quadro 10.2, também com base na Moderna gramática
portuguesa:

SINTAXE

A) Noções gerais

1) Que é oração
2) Entoação oraciona 1
3) A importância da situação e do contexto
4) Constituição das orações
sl Estruturação sintática: objeto da sintaxe
6) A oração na língua falada e na língua escrita
7) Sintaxe e estilo: necessidade sintática e possibilidade estilística
8) Tipos de oração

B) O período simples

C)Núcleo

1) Termos essenciais da oração


sujeito;
predicado;
omissão do sujeito ou do predicado;
sujeito indeterminado;
orações sem sujeito;
os principais verbos impessoais;
tipos de predicado: verbal, nominal e verbo-nominal;
predicativo;
verbos de ligação.

2) Constituição do predicado verbal


verbo intransitivo;
verbo transitivo;
espécie de complementos verbais;
sentidos do objeto direto;
sentidos do objeto indireto;
objeto direto preposicionado;
objeto direto interno;
concorrência de complementos diferentes.

3) Complementos nominais
substantivos;
• adjetivos.

4) Adjunto: seus tipos


adjunto adnominal;
adjunto adverbial;
advérbios de base nominal ou pronominal.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA j 223


s) Agente da passiva

6) Aposto: seus tipos


aposto;
aposto em referência a uma oração inteira;
aposto circunstancial.

7) Vocativo

D)O período composto

1) Orações independentes e dependentes


oração independente;
• oração dependente.

2) Oração principal
mais de uma oração principal;
oração principal não é a 1• oração;
oração principal nem sempre é a do sentido principal;
tipos de orações independentes: coordenadas e intercaladas;
as orações dependentes são subordinadas;
coordenação;
subordinação;
classificação das orações quanto à ligação entre si.

3) Interrogação direta e indireta

4) Orações coordenadas conectivas

s) Orações intercaladas

6) Orações subordinadas
substantivas: funções sintáticas exercidas pelas substantivas;
características das orações substantivas;
• adjetivas: função sintática exercida pelas adjetivas;
adjetivas restritivas e explicativas;
outros sentidos das orações adjetivas;
adverbiais: função sintática exercida pelas adverbiais.

7) Orações reduzidas
que é oração reduzida;
orações reduzidas independentes;
orações reduzidas dependentes:
a) substantivas;
b) adjetivas;
c) adverbiais.
orações reduzidas fixas;
orações reduzidas do tipo: deixei-o entrar;
quando o infinitivo não constitui oração reduzida;
quando o gerúndio e o particípio não constituem oração reduzida.
Quadro , 0.2: Parte do sumário relativa à sintaxe da língua portuguesa (Moderna gramótica portuguesa, 2009).

Tudo isso é apenas o começo. A gramática tradicional pode se tornar muito mais complicada,
porque construir sentido é algo rico, complexo e variado. Trouxemos a esta seção partes dos
sumários das classes de palavras e da sintaxe de uma gramática tradicional, porque aqueles de
nós que trabalham com o ensino de língua materna precisam conhecer esses termos básicos, que

224 1 LETRAMENTOS ,
surgem o tempo todo, especialmente de pessoas que aprenderam a ler e escrever por meio da
pedagogia do letramento na abordagem didática, ou que estudaram outra língua da maneira
tradicional.

li
l!l ..
Veja: "Afinal, que é gramática tradicional?".

Complexidades e desafios na gramática tradicional

A principal razão de as gramáticas serem tão complicadas é que a língua é algo fluido e complexo,
que, em sua plenitude, desafia definições e classificações simples. Por exemplo, podemos dizer que
um substantivo é uma pessoa, lugar ou coisa, mas os substantivos também incluem acontecimentos
e estados que muitas vezes se assemelham a verbos ("correr" eni "Correr é bom para você"). Com
efeito, não é difícil transformar verbos em substantivos, para soar mais objetivo ("Nossa investigação
revelou .. :', em vez de "Investigamos .. :'), por meio de um processo chamado nominalização. Da
mesma forma, os adjetivos podem se tornar advérbios (quando, por exemplo, "rápido" se torna
"rapidamente").
Além disso, há o desafio de definir unidades gramaticais, como morfema, palavra, oração ou
frase. Isso parece dep~nder muito mais de quão grande e multifacetado é o pensamento que se quer
expressar, que pode ou não ser resumido em poucas palavras. Nesse sentido, podemos tomar o
caminho mais fácil e dizer, por exemplo, que uma frase sempre começa com uma letra maiúscula
e termina com um sinal de pontuação("::"?","!"), porém isso não descreve como ela é construída,
mas apenas como deve se parecer depois de ter sido construída.
Quando passamos para as classes gramaticais, podemos tentar defini-las pelas coisas que realizam,
como, por exemplo, os substantivos, que nomeiam as coisas. No entanto, como vimos, qualquer
classe gramatical pode funcionar como substantivo pelo processo de nominalização em uma dada
oração. Assim, a distinção entre substantivos e verbos fica menos clara, sobretudo em relação às
formas nominais dos verbos, que podem funcionar como substantivos e adjetivos. Em outras
palavras, diferentes classes gramaticais podem ter diferentes funções, dependendo de onde elas
ocorrem na estrutura de uma oração. Portanto, o conhecimento acerca das distinções de classes de
palavra é útil, mas apenas até certo ponto.
Assim, o que se nota é que, quanto mais se usa a gramática tradicional, mais complicada ela se
torna, pois mais qualificações para as regras são necessárias. Quanto mais se estuda esse tipo de
gramática, mais óbvio é que a língua não se encaixa em categorizações e classificações bem
organizadas. A esse respeito, estudiosos de um campo chamado "Processam~nto de linguagem
natural'' (PLN) lidam com a linguística computacional com o intuito de buscar fornecer aos
computadores a capacidade de entender e compor textos, por meio de lógicas que ~ scam ler as
conexões de palavras em textos, o que consideram incrivelmente difícil. Comparados com a sutileza
e a fluidez da língua, até mesmo os programas de computador mais inteligentes do mundo são
coisas muito simples e mecânicas. Muitas vezes, o melhor que podem fazer é coletar grandes
conjuntos de texto, chamados de corpora, e tentar prever padrões estatísticos a partir das massas
de uso de palavras e combinações de palavras.

CO NSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 225


Escolhas da língua etipos de mudança

Em nossa abordagem dos multiletramentos, sugerimos, alternativamente, as ideias de "escolha


da línguà' e "tipo de mudançà' para a análise do design que queremos usar para construção de
significados. Isso substitui a ideia inequívoca de gramática "corretà' e "incorreta", que é característica
do ensino tradicional de línguas. Enquanto escrevemos, deparamos com inúmeras opções relacionadas
aos nossos propósitos, em que mais de uma alternativa pode estar "certà' ou ser mais "corretà' para
um texto em um determinado contexto do que para outro texto em outro contexto. Por exemplo,
rever uma primeira tentativa de expressão escrita e substituí-la mais tarde por algo que parece
funcionar melhor é uma questão de aperfeiçoar a escolha de elementos do design em relação ao
propósito de construção de significado. Nesse sentido, por exemplo, a representação de uma palavra
digitada às pressas pode ser entendida como "corretà' para um determinado propósito, podendo
ser alterada posteriormente com a ajuda do corretor ortográfico. Em um contexto específico, uma
palavra pode ser entendida como a melhor que se pode encontrar para capturar um significado, e,
por isso, ser "correta" como uma primeira aproximação, até que se possa alterá-la posteriormente
por outra que funcione melhor naquele contexto.
Tais escolhas e mudanças podem ocorrer tanto na representação (fazendo sentido para si mesmo,
silenciosamente pe.')Sando "devo dizer isso ou aquilo?") quanto na comunicação com outros (como
alguém anota seu texto escrito, ou pede esclarecimentos, por exemplo). Em outras palavras, o
processo de projetar e alterar um texto poderia tomar a forma de uma espécie de debate, que um
autor tem em mente enquanto escreve e revisa seu texto, digitando uma frase e depois a substituindo
por outra mais adequada aos seus propósitos, ou de uma audiência de potenciais leitores, que lhe
pareça mais clara, precisa ou vividamente expressa, ou ainda de um ponto de discussão em um
contexto de escrita no qual um editor de texto, professor ou amigo crítico faz uma sugestão de
mudança.
Assim, nada na escrita está necessariamente ou sempre errado, posto que esta é provisória,
sempre aberta à discussão, com o autor sempre podendo fazer alterações que considere, de alguma
forma, uma melhora no sentido de resultar em um texto mais adequado a seus propósitos de
representação e de comunicação. No processo de revisão, do mesmo modo, o texto pode ser alterado
novamente, desde que essa mudança represente, apenas provisoriamente, uma melhora em
determinado excerto.

Gramática gerativo-transformacional
As estruturas profundas de significado e as estruturas de superfície da lín_WJª

A gramática gerativo-transformacional teve seu início em 1957, com a publicação pelo linguista
Noam Chomsky de seu livro Estruturas sintáticas (Syntactíc structures). Chomsky considerava que
o estruturalismo linguístico não explicava como a língua funcionava em um nível profundo e
estrutural em relação ao significado, construindo, então, novas bases para o estudo da
linguagem. Assim, o autor chegou à conclusão de que existem estruturas profundas de significado
subjacentes às sentenças, que, em si, estariam apenas no nível superficial. O processo de transformar

226 i LETRAMENTOS
estruturas profundas de significado (a maneira como se pensa) nas características da superfície da
língua (o que se diz e o que se ouve) foi chamado por Chomsky de "transformacional" ou "gerativo".
Em outras palavras, uma lógica no fundo do cérebro transforma significados em linguagem ou gera
linguagem, isto é, as estruturas da superfície da língua são geradas a partir das estruturas de
significado localizadas profundamente na mente. Nesse sentido, a tarefa da gramática gerativo-
-transformacional seria, de alguma forma, a de descompactar as estruturas subjacentes do significado.

Agramática de Chomsky

Assim como na gramática tradicional, a unidade básica de análise de Chomsky é a sentença (S),
mas esta, para o autor, não é simplesmente descrita como tendo um sujeito, um verbo e um
complemento. As descrições de sentença de Chomsky incluem um substantivo (Sub), sintagma
nominal (SN), pronome (Pron), auxiliar (Aux), determinante (Det) e um verbo, que pode ser
transitivo (VT), intransitivo (VI) ou de ligação s
(VL). Isso é apenas o começo de sua análise, pois Advtemp
há muito mais. As sentenças podem, então, ser
mapeadas em um diagrama em forma de árvore,
chamado de "marcador de sintagma" (phrase
marker), para mostrar sua estrutura (Figura 10.2),
sob a qual há um número de regras. Para efeito de
exemplo, apresentaremos apenas uma dessas regras
no Quadro 10.3 . Figura 10.2: Sentenças com o mesmo marcador de sintagma.

s ~{(enf)} SN sv (Adv lug) (Adv temp) (Agt) (S)


(Q)
Sen- pode ser elementos elementos elementos
tença reescrita opcionais necessários opcionais

ênfase ou Sintagma Sintagma Advérbio Advérbio Agente Sentença


questão ou Nominal Verbal de lugar de tempo adicionada
negativa ou
combinação
de questão e
negativa

Quadro 10.3: Uma regra de estrutura sintagmática que se aplica às sentenças na Figura 10.2.

O objetivo de Chomsky foi criar um conjunto de regras gerais a partir das quais•fosse possível
gerar cada sentença gramaticalmente correta na língua, por meio de uma representação de significados
linguísticos cujas raízes estivessem na matemática e na lógica formal. Ao desenvolver essas
ferramentas abstratas, Chomsky mostrou as maneiras pelas quais as estruturas do pensamento
humano são representadas na linguagem, com cada tipo de unidade de significado (uma palavra
ou sintagma, isto é, um conjunto significativo de palavras) podendo ser preenchido com qualquer
conteúdo existente que se queira (por exemplo, as palavras "gato" e "cachorro" são substantivos, e
suas diferenças não são relevantes para as estruturas profundas do significado. Uma palavra pode

CON STRUI NDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 227


facilmente ser substituída por outra, e a estrutura gramatical da declaração permanecerá exatamente
a mesma - embora, naturalmente, o significado específico mude). Assim, as palavras podem ser
recombinadas da maneira que se deseja, aplicando as regras gramaticais à sua conexão, de modo
que nenhum trecho com mais do que algumas poucas palavras será exatamente igual a outro.
Nessa abordagem, a língua consiste em tipos de palavras e cálculos mentais, procedimentos
cognitivo-computacionais que conectam corretamente as palavras - considerando todo o enunciado,
e não as suas partes. As gramáticas tradicionais, ao contrário, trabalham com a suposição de que
existe valor na nomeação e na aprendizagem de palavras isoladas, assim como na ordem das palavras
e nas estruturas das sentenças.
Podemos, assim, dizer que a abordagem chomskyana tenta explicar como conseguimos colocar
palavras em uma ordem gramatical quando aplicamos corretamente as regras gerais. Nesse sentido,
suas regras subjacentes produzem ou geram significados, até m_esmo aqueles significados particulares
que nunca poderiam ter sido pensados ou ditos antes (por exemplo: "O cachorro verde valsou de
cabeça para baixo no céu espinhoso"). No conjunto de regras de sua "gramática gerativà: Chomsky
mostra como nós, seres humanos, somos capazes de produzir qualquer número de novas variações
nas estruturas cognitivas subjacentes, na medida em que as transformamos nas "estruturas
superficiais" da linguagem e no alcance infinito de seus significados particulares.

Cultura e aprendizagem na visão chomskyana

Chomsky tira algumas conclusões importantes sobre cultura e aprendizagem a partir de sua
teoria. Sobre cultura, ele acredita que todas as línguas têm as mesmas estruturas profundas para
construir significado, ou seja, o cérebro de todo ser humano é ligado da mesma maneira, mesmo
que as expressões superficiais dessas funções cerebrais sejam diferentes de língua para língua. Em
outras palavras, as características superficiais de cada idioma podem ser diferentes (seu vocabulário,
a ordem d~s palavras ou a gramática, por exemplo), mas os tipos subjacentes de unidades de
significado (substantivos, verbos e afins) e as regras lógicas para sua interconexão são sempre os
mesmos em todas as línguas humanas. É por isso que Chomsky e seus seguidores costumam chamar
sua gramática de "gramática universal", posto que as palavras são diferentes em diferentes línguas,
mas as estruturas subjacentes são sempre as mesmas.
Em relação à aprendizagem, Chomsky argumenta que as estruturas lógicas da língua são tão
complicadas que não poderiam ser aprendidas no curto espaço de tempo. Com base nesse argumento,
ele demoliu as teorias de aprendizagem da psicologia comportamentalista em seu artigo de 1959,
pois os behavioristas acreditavam que a língua seria um comportamento adquirido por imersão
em um ambiente onde esse comportamento poderia ser ensinado e aprendido. Chomsky, no entanto,
argumentou que deveria haver um conjunto de conceitos inatos ligados ao céreb'fo ao qual a criança
teria acesso por meio dos sons particulares que constituem as palavras da língua desde seu nascimento.
Nesse sentido, as estruturas profundas da gramática universal são transformadas nos níveis
superficiais da língua que a criança passa a aprender, por acidente da circunstância dada ao grupo
em que nasce.
Incluímos esse breve resumo da gramática gerativo-transformacional neste capítulo porque se
tornou um paradigma importante para a compreensão de capacidades e processos humanos de
produção de significado. No entanto, não provou ser particularmente útil para educadores - não

228 1 LETRAMENTOS
que tenha sido destinada a sê-lo. Pode parecer estranho que uma teoria que explique como a língua
funciona e como é aprendida não possa ser prontamente aplicada à educação. De fato, as razões
pelas quais isso acontece são importantes.
Primeiramente, a teoria é abstrata e formal, tornando-se cada vez mais complexa quanto mais
se aprofunda na língua. Esse é um problema para todos os sistemas que visam ao desenvolvimento
de regras abrangentes, que se tornam mais e mais difíceis de compreender à medida que mais
detalhes são elaborados. De fato, o sistema gerativo-transformacional não só tem se tornado cada
vez mais complicado ao longo das décadas, como também alguns de seus fundamentos provaram
não funcionar e tiveram que ser mudados. Tornou-se difícil manter a distinção entre estruturas
profundas e superficiais, de modo que ela foi posteriormente substituída pelas ideias da "forma
lógicà' ("logical form") e "forma fonética" ("phonetic form"), e depois "línguas internas" ("internai
ianguage") e "línguas externas" ("externai language"). Mais tarde, qualquer tentativa de fazer esse
tipo de distinção foi, então, abandonada, visto que as "regras" pareceram ser uma ideia demasiado
rígida e determinista, sendo, portanto, substituídas pela ideia mais maleável de "princípios"
(''principies"). Alguns chegaram a argumentar que um sistema pesado como esse, com o tempo,
começa a desmoronar sobre si mesmo, uma vez que lida com as complexidades humanas de algo

•;:~ como a linguagem. 4

li
·: ,
l!l
. : Veja: "Estudn do idioma pirahã desafiou teoria consagrada da linguísticà'.
.
Qual é a lição útil que podemos tirar da história da gramática gerativo-transformacional? A
linguagem é incrivelmente complexa, o que torna o ensino de suas regras necessárias também algo
complexo demais. Isso não quer dizer, no entanto, que devamos nos reverter totalmente para a posição
dos pedagogos da abordagem autêntica, que defendem que a aprendizagem de línguas ocorre "fazendo':
na prática, por meio de leitura e escrita na escola. Com efeito, o tipo de experiência com a língua que
uma criança consegue obter ao usá-la nos primeiros anos de vida não pode ser reproduzido no tempo
de aula e nos períodos comparativamente curtos dedicados ao ensino de língua portuguesa no
calendário es~olar. Nesse sentido, estabelecer padrões gerais na língua - que é o que uma gramática
faz - torna-se um conveniente atalho pedagógico. Além disso, uma abordagem de imersão também
parece difícil quando a "conversà' incessante, que é uma base tão importante para o aprendizado de
idiomas nos primeiros anos da criança, é desencorajada ou limitada no tempo escolar.
Por razões práticas, precisamos falar sobre a língua, aberta e explicitamente, para aprender a
escrever na escola, porém não podemos lidar com a língua apenas por meio de regras estritas e
pensar que essa perspectiva pode servir para todas as línguas, ou mesmo para todas as formas de
usar determinada língua. Em outras palavras, precisamos de uma linguagem mais ampla para falar
sobre língua (uma metalinguagem), ou, para lançar isso no quadro de referência mais abrangente
da construção de significado multimodal, precisamos de uma "análise de ddígn" explícita e
generalizada, capaz de descrever "elementos do design" e como estes trabalham para criar significado.
Além disso, há também a questão do argumento de Chomsky sobre a natureza inata da linguagem.
Se a linguagem é inata, isto é, se já vem incorporada ao conjunto de habilidades naturais de uma
pessoa, então, o que fazemos nas escolas? Como explicamos diferentes tipos e níveis de uso de qualquer
língua por um aluno? Nesse caso, poderíamos também fazer a seguinte pergunta: se as diferenças de

4 Searle, 2002.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 229


inteligência entre os alunos são inatas, então o que fazemos nas escolas? Há um perigo nesse tipo de
pensamento que pode levar os alunos a serem rotulados de forma negativa no contexto escolar.
Sabemos que as identidades e as condições sociais têm um enorme impacto nas habilidades,
nos conhecimentos e no conforto com o processo de aprendizagem escolar formal. Em relação à
linguagem, não devemos cometer o erro de pensar que uma pessoa seria mais capaz, no sentido
inato do termo, de construir significados mais poderosos do que outra. Chomsky, é claro, nunca
pretendeu dizer isso, porém essa pode ser uma consequência infeliz do determinismo biológico.
Sabemos que as capacidades de fala e de escrita das pessoas e, portanto, a expressão prática de
suas habilidades para pensar e se comunicar podem variar enormemente e que podemos explicar
essas variações em termos de contexto social, história de vida, motivações e oportunidades de
aprendizagem. Nesse sentido, os argumentos do inatismo não são prováveis nem representam uma
contribuição muito útil a uma agenda pedagógica. Por isso, é melhor que nos concentremos no
que podemos fazer para ajudar os alunos a expandirem suas forrrras de construir e expressar
significado e, assim, pensarem em formas progressivamente mais amplas, mais eficazes e mais
poderosas de agir no mundo.
Contudo, mesmo na discussão da linguística de Chomsky, a questão da diferença individual ou
cultural também surge. Como educadores, é possível vermos nossos alunos e suas culturas de duas
maneiras: podemos dizer que são fundamentalmente a mesma coisa. Nesse caso, afirmaríamos, em
última análise, que todos queremos significar as mesmas coisas, mas queremos dizê-las de maneiras
superficialmente diferentes, o que nos faz considerar as diferenças de nossos alunos como algo que
está apenas na "superfície" e que, portanto, é passível de ser descartado. Alternativamente, podemos
considerar suas diferenças como importantes, pelo menos tão importantes quanto as semelhanças;
pessoas e culturas, com certeza, são semelhantes em aspectos significativos, mas são diferentes em
outras formas igualmente significativas, por isso não faz sentido tentar reduzir cada diferença a
uma similaridade subjacente.
Por exemplo, os sistemas interpessoais de pronomes (relações), os sistemas dos tempos verbais e
as relações de ação de transitividade (atividades), apenas para ficar em alguns pontos relativos à
gramática, são frequentemente muito diferentes entre uma língua e outra. Fornecemos alguns exemplos
disso a partir das "primeiras línguas'; que descrevemos no capítulo 1. O mesmo poderia ser dito em
relação à fala ou à escrita dos alunos, à expressão única e individual de suas vozes, que aparece no
processo de "design" e até mesmo nas coisas que escrevem, as quais, no esquema chomskyano, seriam
consideradas "não gramaticais". Há um significado profundo nessas diferenças, que não deve ser
simplesmente ignorado ou descartado como "erro'; nem submetido a regras mais profundas que buscam
de forma automática tornar as coisas tão aparentemente diferentes em coisas essencialmente iguais.
Finalmente, há algumas características comuns entre gramáticas tradicionais e gramáticas
gerativas. Ambas têm "classes de palavras" que possuem os mesmos tipos de p~..9,blemas de definição
e distinção. Nesse sentido, simplesmente aprender a nomear o rótulo de uma classe de palavra - um
substantivo, um verbo, uma preposição - não nos ajuda a conhecer todas as coisas importantes
que uma instância dessa palavra faz ao construir significado. Além disso, ambas tentam encontrar
regras gramaticais universais que conectem essas classes de forma "corretá', como, por exemplo,
por meio de concordância verbal e nominal, e relações entre orações e períodos. Com ambas as
gramáticas, é, portanto, difícil ir além da unidade de significado da sentença, pois os significados
no nível textual são negligenciados, bem como os contextos necessários para que esses textos façam
sentido. Além disso, ambas são excessivamente formais, dando nomes técnicos às coisas e analisando

230 j LETRAM EN TOS


as lógicas subjacentes de maneiras que logo se tornam muito complicadas para a tarefa prática de
ajudar as pessoas a aprenderem a usar a língua ou a escreverem de maneira mais eficaz.

Agramática sistêmico-funcional
O principal teórico da gramática sistêmico-funcional (GSF) é Michael Halliday. Como os
gramáticos tradicionais e os gerativistas, Halliday também estava interessado em entender o
funcionamento da língua como um sistema de significado integrado. No entanto, além disso, ele
tinha interesse em saber como as pessoas significam ao usarem a língua, isto é, como esta funciona
em ambientes para interação social. Em cada momento de fala ou de escrita, fazemos escolhas entre
formas alternativas de significado, a fim de atender aos nossos propósitos de construção de
significados, que são sempre situados, ou seja, faum sentido em contextos específicos, pois são
negociados em função de vários propósitos comunicativos e, não apenas de uma lógica interna
embutida nos significados, como se pode depreender das gramáticas tradicionais e gerativas, cuja
ênfase se restringe ao sistema. Diferentemente dessas gramáticas, a relação entre forma e função
na GSF é, portanto, uma relação de princípio, orientada para o significado.

Agramática de Halliday

Halliday descreve a gramática como "um recurso para construir sentido [... ], que incorpora uma
teoria da vida cotidiana'',5 para dar sentido a nossas experiências vividas. Na gramática funcional
de Halliday, as escolhas gramaticais nos permitem cumprir três funções principais ou metafunções
da linguagem: 6

• Metafunção ideacional: expressar e conectar ideias, o que nos permite falar sobre coisas e
acontecimentos, bem como sobre nossas experiências no mundo;
• Metafunção interpessoal: interagir com outras pessoas, o que nos permite estabelecer e
manter relacionamentos sociais e comunicar nossos sentimentos e atitudes em relação a
pessoas e experiências;
• Metafunção textual: organizar o significado para fazermos conexões internas dentro de um
texto e para nos referirmos a aspectos da situação em que o texto está localizado, o que nos
permite criar textos coesos através dos quais nos comunicamos sobre o mundo e nossos
relacionamentos nesse mundo.

Podemos examinar a estrutura de todo o texto, ou mesmo uma única frase ·tu
oração, e ver
todas as três metafunções em ação, uma vez que "todo ato de significado incorpora todos os três
componentes metafuncionais".7 Para tanto, os significados são realizados pelos textos de três
maneiras, como mostra o Quadro 10.4.

5 Halliday, 2009, p. 142.


6 Halliday & Hasan, 1985.
7 Halliday, 2009, p. 265.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 231


~ããããã--=11!!!!!!!!!!!!!!!!!==-------------------------------------------~---- -

Significados em uma situação Significados expressos através Significados em um texto


das metafunções
Campo, ou o que está acontecendo Metafunção ideacional Significados experienciais

Sintonia, ou como as pessoas que estão Metafunção interpessoal. Significados interpessoais


participando estão conectadas

Modo, ou o papel da língua Metafunção textual Significados textuais


Quadro 10.4: Três maneiras pelas quais os significados em situações podem ocorrer em textos, segundo a GSF.

Veja: "Resenha do livro Introdução à gramática sistémico-funcional em língua portuguesa, de


Cristiane Fuzer e Sara Regina Scotta Cabral".

Essa é uma visão geral simplificada da GSF de Halliday, que, como todas as demais gramáticas,
torna-se mais complicada e altamente qualificada quanto mais se presta a considerar a língua em
sua totalidade. Além disso, todas as três metafunções são perspectivas de significado que se aplicam
a toda e qualquer oração, sem exceção, em toda sua sutileza e complexidade. Mesmo o mais
aparentemente comum dos significados na língua é enganosamente complicado, porque está sempre
realizando as três coisas e tudo de uma só vez. Nesse sentido, podemos nos maravilhar com a
consciência humana, que é capaz de pensar tanta coisa ao mesmo tempo, embora possamos saber
quais aspectos do significado devemos observar durante um determinado momento, porque são
aqueles que, naquele momento, consideramos os mais relevantes, o que nos faz deixar outras coisas
no fundo da mente ou na consciência periférica.

Metafunção Exemplos

Significados experienciais (influencia- Os participantes podem ter papéis diferentes, incluindo os de ator (por exemplo,
dos pelo campo do discurso) reúnem "eu" em "eu pulo"), portador ("eu sou alto"), beneficiário ("ele" em "eu dei a ele o
participantes (quem está envolvido). presente") e objetivo ("presente" em "eu dei a ele o presente").
processos (o que está acontecendo) e Os processos conectam os participantes por meio do que está acontecendo, incluin-
circunstâncias (onde, quando, como e por do processos materiais (por exemplo,"pular" em "eu pulo"), processos verbais ("dizer"
que isso está acontecendo). em "eu digo"), processos relacionais ("ter" em "eu tenho um presente") e processos
Recursos gramaticais p~ra construir senti- mentais ("pensar" em "eu penso").
do são padronizados em torno da transi- As circunstôncias elaboram sobre quando, onde, por que e como, incluindo, por
tividade (quem ou o que faz o quê para exemplo, o modo (por exemplo, "como?""de trem"), causa ("por quê?'"'para você"),
quem ou o quê). companh ia ("com você").
As conexões podem ser receptivas, quando um destinatário pode, de fato, ter algo
feito para elas ("eu dei a ele o presente"), e operativas, quando algo que eu faço não
pode afetar diretamente outra pessoa ("me perguntei").

Significados interpessoais (influencia- . O modo pode ser declarativo (por exemplo, "estou andando"), interrogativo ("Você
dos pela sintonia do discurso). vai andar?") e imperativo ("ande agora!").
Recursos gramaticais para a criação de A modalização se refere a níveis de certeza, que podem ser baixos (por exemplo,
significado são enquadrados pelas esco- "pode'; "poderia"), medianos ("seria") e altos ("tem que'; "deve").
lhas relativas ao modo e à modalização. ...$
Significados textuais (influenciados pelo O tema é o tópico de uma oração (por exemplo, "eu e ela" em "eu e ela andamos
modo de discurso). pela rua"); o rema, que segue o tema e contém novas informações ("estamos andan-
do pela rua" em "eu e ela estamos descendo a rua").

Recursos para construir sentido são mol-


. A coesão consiste em d ispositivos de conexão que mantêm um texto unido como
dados por padrões de tema e de coesão. uma série coerente de ideias, e que também apontam para coisas no mundo exter-
no: referência (por exemplo, "ela" se refere a "Maria~ que foi mencionada no texto,
ou se ela não foi mencionada, é porque as pessoas na situação sabem quem ela é);
e conjunção ("e'; "enquanto isso'; "embora").
Quadro 10.5: Significado e função na gramática sistémi co-funcional.

232 1 LETRAMENTOS
Comparando a gramática de Halliday com outras gramáticas

Enquanto as gramáticas tradicionais e as gerativas enfocam quase exclusivamente a oração ou


o sintagma, a GSF se atém às múltiplas camadas (estratos) da língua, que vão de suas formas de
expressão em fonologia e grafologia, passando por padrões léxico-gramaticais, a estruturas de textos
inteiros e seus propósitos sociais. Por exemplo, uma matéria jornalística sobre nova descoberta
médica, uma história sobre determinada doença e sua cura ou uma conversa médico-paciente são
todas consideradas diferentes gêneros ou tipos de texto completo. O termo gênero aqui é usado
para indicar o tipo de texto estruturado para se adequar a um propósito de significado geral, em
vez de seu estilo, como nos estudos literários.
Um gênero tem um propósito social geral, que é "encenado no sentido de que tem começo, meio
e fim característicos e é composto de orações que assumem formas experienciais, interpessoais e
textuais distintas". 8
Por exemplo, o gênero escrito notícia pode ser estruturado da seguinte maneira:

Evento noticioso ➔ circunstâncias de fundo ➔ elaboração sobre incidentes e fontes

E pode focalizar processos e circunstâncias.


O gênero escrito história em quadrinhos pode ser estruturado assim:

Orientação ➔ complicação ➔ resolução

E pode focalizar processos mentais ligados por conjunções temporais.


Já o gênero oral consulta médica pode ser estruturado do seguinte jeito:

Saudação inicial e convite para descrever sintomas ➔ descrição de sintomas ➔ diagnóstico ➔


prescrição ➔, cumprimentos

Em cada caso, uma troca social de significados produz uma estrutura diferente e um conjunto de
escolhas de palavras, em que a escrita se torna um processo de fazer escolhas que são mais eficazes
no contexto da significação. Nesse sentido, por exemplo, pode não ser tão produtivo fornecer a alguém
uma narrativa sobre como preparar uma refeição, quando seria mais conveniente fornecer um
procedimento escrito na forma de uma receita; ou recontar seus sentimentos sobre um experimento
científico pode ser menos que útil quando se espera que se escreva um relatório sobre causas e efeitos
científicos. Em cada caso, o gênero será uma chave para a eficácia da construção de significado.
Como as outras gramáticas, a abordagem sistêmico-funcional fornece muito mais ffiformação do
que se pode direcionar para auxiliar a aprendizagem da leitura e da escrita, pois muita coisa acontece
simultaneamente na língua para que seja possível conscientemente separar cada elemento. Os linguistas
fazem isso porque esse é o seu trabalho, que comporta todos os tipos de aplicações: da tradução
automática aos mecanismos de busca semanticamente informados na internet, à avaliação automatizada
da escrita dos alunos. No entanto, há muitas coisas sobre a língua, tanto oral quanto escrita, que os

8 Martin, 1992, p. 546.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 233


usuanos simplesmente não precisam conhecer, pois, na maior parte do tempo, eles já sabem
intuitivamente o que querem dizer sem precisar de explicações técnicas de como o fazem.
Nesse sentido, questiona-se se o conhecimento gramatical tem algum benefício quando se trata
da questão prática de construir significado. Essa crítica vem sendo feita há bastante tempo em
relação ao ensino da gramática nas escolas, que tem sido visto como sem sentido e irrelevante para
a aprendizagem dos alunos, particularmente pelos defensores mais obstinados do que chamamos
de pedagogia autêntica. No entanto, como professores, é importante entender essas diferentes
ênfases e abordagens em um cenário de práticas e políticas em constante mudança, com diferentes
pressupostos sobre língua e aprendizagem que podem estar subjacentes a essas questões.
Como já descrito anteriormente neste capítulo, historicamente, o estudo da gramática nas escolas
envolveu a análise de orações e a rotulação de várias categorias gramaticais, o que é frequentemente
chamado de ensino de gramática tradicional. Todavia, tal gramática, voltada para o ensino e a
aprendizagem, muitas vezes não tem tanta relevância para o que os aprendizes, de fato, fazem com
os textos, tanto no contexto escolar, quanto em suas vidas cotidianas.
Currículos orientados para uma abordagem funcional enfatizam que o objetivo de ensinar
gramática deve ir além da aprendizagem de rótulos sobre várias categorias gramaticais pelos
aprendizes. Nessa perspectiva, reconhece-se que um conhecimento consciente sobre os recursos
para construção de significado da gramática é importante para as crianças quando estão aprendendo
a escrever. Todavia, as crianças precisam saber, sobretudo, que escolhas podem levar a uma lógica
e expressão mais claras, melhores argumentos ou enredos mais imaginativos. Em outras palavras,
elas precisam ser capazes de converter esse conhecimento sobre a língua em "um recurso efetivo
para ler, ouvir, escrever, falar".9 O Quadro 10.6 fornece uma breve comparação de diferentes
abordagens relacionadas à gramática e ao seu ensino:

Tradicional Gerativa Funcional

Visão de língua Língua é um conjunto de re- Língua é criativade governada por Língua é um processo social
gras regras

Visão de gramática Regras de formação e uso Um dispositivo inato na mente Um recurso para a construção de
humana significado em contextos sociais

Derivação Grego e latim antigos Teoriza sobre princípios universais Analisa o que as pessoas fazem
da língua por meio da língua

Disciplinas relacionadas Filosofia Filosofia; psicologia cognitiva Sociologia; antropologia

Forma x função Preocupada principalmente Ênfase na estrutura sintática; ai- Foco na relação entre forma e
com a forma gum interesse na semântica função

Modo(s) enfatizado(s) Modo escrito Não preocupado com o modo Modos escrito e falado

Unidade de análise Classe de palavras e suas com- Dos fonemas às formas sintáticas Texto, período, oração, palavra,
binações complexas fonema
-
,

Principais nomes Dionísio da Trácia Chomsky Halliday

Implicações para a sala Ensino explícito de regras, O conhecimento do professor Discussão do ponto gramatical
de aula frequentemente com o fim em sobre a seleção de guias de se- relevante no contexto específico
si mesmas quência de aquisição de inputs para aumentar a conscientiza-
ção da língua e de seu uso apro-
priado
Quadro 10.6: Comparação de diferentes abordagens relacionadas à gramática e ao seu ensino.

9 Acara, 2009, p. 6.

234 i LETRAMENTOS
A abordagem funcional pode ser útil em vários aspectos. Primeiramente, é pragmática, pois se
concentra no propósito e no significado do texto e o situa em seu contexto (funções textuais), em
vez de apenas analisar regras isoladas dos sistemas textuais. Essa orientação funcional significa que
seu foco está na questão das escolhas entre alternativas possíveis. Nesse sentido, ao falar, a pessoa
tem um propósito específico e está constantemente reelaborando o que está dizendo: reformulando
ideias, corrigindo aquilo que não deu certo ou repetindo de maneira ligeiramente diferente, a fim
de reelaborá-las até que esteja mais satisfeita por alcançar o significado que pretende construir; ao
escrever, do mesmo modo, o autor tem uma razão específica e está constantemente revisando um
texto, para refletir mais de perto seus propósitos; ao ler, uma pessoa também está buscando um
certo objetivo e pode precisar reler uma palavra, uma frase ou um trecho de texto mais longo até
que aquilo faça sentido para ele.
Portanto, o foco da GSF não está apenas no uso de normas de um sistema de determinada
língua, pois não se trata apenas de decodificar regras de significado. É também uma questão
de entender a relação entre regras ou convenções e nosso próprio propósito de falar, ouvir, ler
ou escrever. A todo momento, lidamos com escolhas sobre os textos que produzimos e recebemos.
Ao construirmos ou interpretarmos o significado, trabalhamos constantemente para melhorar
um texto que estamos escrevendo ou produzimos nossa compreensão de um texto que estamos
interpretando. Em cada caso, estamos sempre lidando com níveis de aproximação de significado,
e é por isso que nos encontramos continuamente revisando textos enquanto tentamos obter
uma melhor aproximação. Essa concepção se relaciona, por conseguinte, com nossas ideias de
designers de significado, em que fazemos "escolhas" e "mudanças", em vez de obedecer a "regras"
ou evitar "erros".
Os textos centrais da GSF de Halliday apenas fazem "realizar" a língua. No entanto, diferentemente
da gramática tradicional ou da gerativa, a GSF certamente nos convida a reconhecer que o significado
é maior do que a língua, pois esta é um sistema dentro de todo um conjunto de sistemas de criação
de significado em uma cultura, que inclui também os modos visual, gestual, espacial e tátil. Isso
porque apenas se podem construir significados experienciais, interpessoais e textuais na vida
cotidiana multimodalmente, uma vez que a língua não existe como um "sistema fechado", em
qualquer sentido factual ou analítico, separado da multimodalidade intrínseca de nossa experiência
sensorial humana. Nesse sentido, as ferramentas da GSF também nos permitem investigar o
significado nesse quadro de referência mais amplo.
No trecho a seguir, retirado da transcrição de uma atividade em sala de aula sobre "insetos",
alunos do 2º ano do esino fundamental conversam com o professor sobre os insetos que encontraram
durante uma viagem de campo da turma. Enquanto se preparam para escrever um relato de suas
pesquisas, o professor os orienta a fazer a passagem dessas experiências sensoriais no mundo físico
para a recriação dessa aprendizagem em palavras e gestos.
A1: - A gente pegou três percevejos ...
A2: - O Patrick pegou o gafanhoto.
P: - Mostre a eles como o gafanhoto estava andando, Patrick, quando você tentou pegá-lo. Você
pode mostrar com a mão? O que ele estava fazendo antes de você tentar agarrá-lo?
A3: - Ele tava pulando
P: :._ Bom menino! E a que altura ele estava pulando? Mostre no tapete, com as mãos, a que altura
ele estava pulando.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 235


A4: - A gente pegou duas formigas: uma formiga que parece um touro e uma formiga normal.
P: - O que é uma formiga normal? Você pode descrever?
A4: - É a pequena preta.
P: - Ah! uma pequena preta. Certo.
A4: - Sim. E tinha três partes do corpo e...
A conversa em torno das observações iniciais das crianças é fundamental para ajudá-las a
reinterpretar essas experiências táteis compartilhadas por meio da língua. Nesse sentido, uma
segunda mudança para a língua escrita requer novas formas de significar e de fazer que envolvem
a consciência do funcionamento da língua como um sistema de significado simbólico, que se torna
ferramenta para reflexão acerca da experiência e para sua reconstrução. Na sala de aula, envolve
também a negociação de uma metalinguagem para falar sobre a forma de significar por meio da
escrita, conforme ilustrado no trecho a seguir:
P: - O que é relatar?
A1: - Aquilo que já aconteceu e você acabou de escrever sobre isso novamente.
P: - É uma escrita realista ou imaginativa?
A2: - É realista.
P: - Muito bem. É realista porque realmente aconteceu.
P: - Em que dia nós fomos à caça aos insetos?
A2: - Sexta-feira.
P: - Certo. Quem pode me dar uma frase? Talvez você possa colocar mais de uma informação em
sua frase sobre isso.
P: - Camila?
A2 [Camila]: - Nós pegamos alguns insetos.
A1: - Nós fomos na sexta-feira para uma caça aos insetos.
P: - Muito bom. Vejam. Nós dissemos para o nosso leitor quem foi, onde fomos, quando fomos e
o que fomos fazer.
À medida que o professor e os alunos constroem em conjunto a vivência de campo, uma
mudança é' feita a partir de suas experiências visuais, espaciais e táteis, passando pelos modos
falado e gestual da discussão de classe, até chegar ao modo escrito. Os eventos em torno da caça
aos insetos são reconstituídos em um espaço de significação distanciado dos locais físicos e
temporais em que ocorreram, uma vez que as experiências de primeira ordem do mundo são
reinterpretadas em um contexto linguístico específico, isto é, em um espaço e tempo de significação
de segunda ordem. Nessa nova dimensão, o texto é criado como objeto, artefato, que pode, assim,
ser usado como uma entidade em si, que, a partir de então, passa a ter um nome - um "relato",
com sua própria estrutura interna, composta de "orações" e padrões de significado que podem
ser "reformulados': Nesse sentido, o professor e os alunos trabalham juntos para negociar esse
relato de suas experiências, com o professor habilmente moldando a língua dói" alunos, tornando
explícitos os participantes, os processos e as circunstâncias do evento e como as informações
podem ser solicitadas.

236 j LETRAMENTOS
Desenvolvendo a escrita nos anos escolares
O desenvolvimento da escrita em crianças pequenas pode ser visto como um processo que
envolve mudança para uma nova maneira de construir sentido com símbolos e signos, uma vez
que fazer sentido na escrita implica um processo de abstração da realidade material. Nos primeiros
anos, a escrita infantil se assemelha à língua falada de seu mundo social imediato. No entanto, o
processo de fazer sentido no modo escrito demanda um esforço consciente substancial quando
crianças escritoras lidam com caligrafia, digitação e ortografia, enquanto reapresentam suas
experiências na página ou na tela (Figuras 10.4, 10.5).

O encanto da bruxa

Era uma vez uma bruxa que adorava a paz.

Ele era criança e seus pais não gostavam disso e queriam


que ela fosse do mau.

Um dia eles enganaram a filha dizendo

- Oh filhinha sabe o que acontece quando a gente joga


feitiço em alguém? ele fica cheio de amor.

E a bruxinha ficou muito feliz e saiu andando por aí e


filnalmente encontrou alguém e lançou seu feitiço e a
pessoa virou uma galinha e depois um sapo que entrou
dentro do buraco.

A bruxinha percebeu que seus pais mentiram e ela voltou

Figura 10.4: Print da mesma historinha, digitada pela mesma criança em um


editor de textos no computador.

À medida que as crianças avançam no processo de escolarização formal, seus encontros com o
mundo social se tornam sistematicamente ordenados, visto que o conhecimento escolar é cada vez
mais representado no modo escrito. A progressão das crianças nos primeiros anos está associada
à expansão de seus recursos de construção de significado, com a inclusão de uma variedtllde de
tipos de textos escritos usados na criação de conhecimento nas disciplinas escolares, quando
aprendem a descrever, explicar, argumentar e contar histórias por escrito.
Nos anos intermediários e posteriores, os textos baseados nas disciplinas escolares se tornam
mais técnicos e abstratos, na medida em que o conhecimento especializado das áreas disciplinares
é mais complexo. Nesse contexto, a escrita dos alunos geralmente inclui informações precisas e
densamente compactadas, caracterizadas pelo uso de vocabulário técnico e recursos sintáticos mais
sofisticados.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 237


O efeito dessa "novà' escrita é a quebra das "relações mais naturais entre significados e sua
realização, que caracteriza o discurso falado espontâneo. O resultado é uma forma altamente abstrata
de argumentação". 10 Quando a criança começa a desenvolver essas formas abstratas de significado,
sua escrita se torna mais eficiente em compactar informações em textos ricos de ideias que estruturam
o conhecimento de forma a capacitá-la a se engajar em campos discursivos mais especializados.
Isso pode assumir um escopo bem maior com as possibilidades de autoria digital multimodal, que
abrem ainda mais opções para as maneiras pelas quais os significados podem ser representados,
estruturados e comunicados.

Cinco questões sobre significado


Neste livro, adaptamos os princípios básicos da GSF não apenas para criar uma análise do design
abrangente do significado multimodal, mas também para fornecer uma estrutura que possa ajudar
as pessoas a moldarem seus significados e se tornarem melhores construtores de significados. Isso
assume a forma de cinco perguntas relativamente diretas sobre o significado, que nos ajudarão a
identificar os elementos do design de um texto em qualquer modo ou conjunto de modos:

1. O que os significados descrevem? (Referir-se)


2. Como os significados conectam as pessoas na ação e as que estão interagindo? (Dialogar)

3. Como os significados, em geral, se mantêm coesos? (Estruturar)


4. Como os significados são moldados pelo(s) seus(s) contexto(s)? (Situar)
5. A que intenções e interesses esses significados projetados (designed) servem? (Pretender)

Nos capítulos seguintes, delinearemos uma análise do design multimodal que utiliza e adapta
insights da linguística sistêmico-funcional para outros modos: visual, espacial, tátil, gestual, auditivo
e oral. Um paralelo direto entre nossa análise do design multimodal e a linguística sistêmico-
-funcional é que nosso conceito de "referêncià' (a que o significado se refere) é similar ao conceito
hallidiano de "campo" ou "significados experienciais"; nosso conceito de "diálogo", por sua vez, é
similar ao conceito de "sintonià' ou "significados interpessoais"; e nosso conceito de "estrutura" é
semelhante ao conceito de "modo" ou "significados textuais". Adicionamos ainda os conceitos
"contexto" e "propósito", para formular um total de cinco perguntas, que sempre podem ser feitas
sobre qualquer significado.

Oprocesso de escrita
"""
Até agora, neste capítulo, concentramo-nos na substância da escrita. Vejamos, então, o processo
de escrita, que, idealmente, para textos extensos, ocorre em cinco fases: 1) plano; 2) rascunho; 3)
feedback; 4) revisão; e 5) publicação. Descrevemos, então, nossa análise do design da linguagem
escrita no Quadro 10.7 e o processo de escrita, fornecendo também características específicas da
plataforma de aprendizagem Scholar relativas à produção textual multimodal (Quadro 10.8).

10 Martin, 1992, p. 240.

238 1 LETRAMENTOS
Referência . Algo em particular? Ex.: palavras como "David'; "está andando" - nomes próprios,
(A que o significado se refere?) substantivos que se referem a coisas específicas e verbos que se referem a ações
específicas. Isso inclui:
✓ Uma pessoa; quem? Ex.: palavras como "ela'; "David'; "o médico''.
✓ Um lugar; onde? Ex.: palavras como"São Paulo';"a cidade''.
✓ Um tempo; quando? Ex.: palavras como"segunda-feira~ "esta noite" - relacionadas
com os tempos verbais.
✓ Um objeto de interesse; o quê? Ex.: "caderno de exercícios de David''.
✓ Algo geral? Ex.: palavras como "pessoas~ "andar" - nomes comuns, verbos que se
referem a tipos de ação.
✓ Uma característica? Ex.: palavras como "alto'; "rápido'; "muitos'; singular ou plural;
os artigos "o" ou "uma"; com parativos - adjetivos para descrever substantivos e
advérbios para descrever verbos.
✓ Uma relação? Ex.: palavras que conectam significados entre si, como em "é uma
espécie de'; "é uma parte de'; "entre'; "porque" - preposições e conjunções em
sintagmas ou orações.

Diálogo Como os atores estão conectados através da ação descrita no texto? Ex.: palavras
(Como os significados conectam as expressando voz ativa/passiva; perguntando/sugerindo/instruindo; tipos de pos-
pessoas que estão interagindo? sibilidades, modalizadores.
Quais são os efeitos da ação? Ex.: quem é o sujeito ou objeto (direto ou indireto).
Qual é a postura do escritor? Ex.: a formalidade ou a informalidade de um texto;
comprometimento ou afinidade do autor com a proposição; voz/humor.
Qual é a posição do leitor? Ex.: direciona "você" (instruções), abre mais ou menos
espaço para múltiplas interpretações; representação/metáfora/alusão; enquadra-
mento da interatividade escritor/leitor.

Estrutura Escolha de palavras e posicionamento. Ex.: como uma palavra se ajusta ao contex-
(Como os significados, em geral, se to, repetição/não repetição; ênfase/consistência de referência/variedade de estilo
mantêm coesos?) ou aprofundamento de significado.
. Dêiticos e sua clareza/explicitação. Ex.: "isto'; "isso" ou •aquilo'; "agora" ou "depois';
"aqui" ou "lá'; "ele" ou "ela''.
Oração e seu fluxo. Ex.: fluxo narrativo, conectivos lógicos e clareza argumentativa,
usando orações subordinadas, conjunções, sujeito/predicado, dado/novo.
Seccionamento. Ex.: vírgulas, dois-pontos, ponto e vírgula, longos traços e colche-
tes para seções dentro de orações, períodos, parágrafos, listas, tabelas e título do
texto.
Encadeamento. Ex.: fluxo de seções.
Meios de comunicação. Ex.: texto à mão, tipográfico, digital.

Situação Elementos de coesão externos. Ex.: suposições compartilhadas/explicitação sobre


(Como os significados são moldados pelo o contexto social e físico.
contexto?) Comparação. Ex.: analogia, metáfora, símile.
. Referências a outros textos. Ex.: alusão/menção explícita, citação direta ou indireta
(paráfrase).
Inclusões/exclusões. Ex.: coisas deliberada ou inconscientemente não mencionadas.
. Gênero ou semelhança com outros textos. Ex.: adesão ao gênero/recombinação
híbrida de gêneros.

Intenção Qual é a postura do autor? Ex.: agendas direta/sutil, emotiva/objetiva, explícita/


(A que interesses esses significados implícita. ,./t
servem?) Como o autor se envolve ou tenta chamar a atenção do leitor? Ex.: interesse narra-
tivo, efeito retórico.
Quais são os interesses do escritor que o texto comunica? Ex.: expressões de cos-
movisão/ideologia/identidade, preconceitos visíveis/ocultos.
Que papéis tem o leitor? Ex.: caminhos de navegação abertos/direcionados, como
um romance comparado a uma wiki.
. Quais interesses do leitor o texto assume? Ex.: interpretações que antecipa/deixa
de antecipar.
Quadro 10.7: Uma análise do design da linguagem escrita.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA / 239


Processos básicos de escrita Escrita multimodal, digital e social

Fase 1: Plano Às vezes chamada de "pré-escrita'; esta é É muito útil que os alunos tenham parâmetros de escrita,
a fase em que o autor se familiariza com apresentados a eles em uma linguagem acessível, para que
a tarefa de escrever: adquiram uma compreensão clara das expectativas de um
texto de alta qualidade. Esses parâmetros devem apontar
examina cuidadosamente o que vai
claramente o que é esperado em um determinado tipo de
escrever;
texto ou gênero. Se houver revisão por pares, as rubricas
. escolhe um tópico; devem ter um tom prospectivo e construtivo, sugerindo os
tipos de feedback que podem ser úteis para o autor.
. pesquisa, faz anotações;
Ao trabalharem em um espaço de escrita digital, é possível
cria um esboço.
aos autores usarem ferramentas para criar cabeçalhos de
seção e subtítulos; estes refletem o design geral do texto e
podem permanecer visíveis ou ser posteriormente removidos
para as versões finais de um texto - por exemplo, cabeçalhos
invisíveis para marcar os estágios do desenvolvimento de
uma narrativa.

. O autor pode colocar notas, ideias e objetos de mídia sob o


cabeçalho de cada seção.

Se for um texto multimodal, o autor deve coletar imagens,


objetos de mídia, links da web que serão úteis enquanto es-
tiver escrevendo.

Fase 2: Rascunho O autor cria, então, uma primeira versão . É uma boa ideia para o autor salvar a versão do trabalho que
completa do texto: contenha cabeçalhos, notas e mídias e criar uma nova para

. o rascunho. Pode, então, excluir as anotações e a mídia nes-


- escreve um rascunho;
sa nova vers;ío, à medida que as for incorporando ao texto,
. relê o rascunho, refinando seu fluxo e mantendo, porém, as anotações originais, para voltar a elas
sua lógica; se desejar.

revisa e edita a cópia (ortografia, gra- . O autor pode usar ferramentas de verificação ortográfica,
mática, pontuação, uso adequado de gramatical e de sinônimos.
palavras etc.).
. O autor deve verificar os parâmetros de escrita para certificar-
-se de que atendeu às expectativas do tipo de texto que
está escrevendo.

Fase 3: Feedback Então, o autor pode mostrar sua escrita Alguns programas de escrita suportam revisão por pares
para um colega, uma amigo crítico ou um anônima ou aberta.
professor, para feedback.
. Alguns programas de escrita também suportam anotações
próprias, de colegas e de professores.

Fase 4: Revisão O feedback levará o autor a criar um ras- . O programa de escrita também pode oferecer suporte à se-
cunho final: leção automática, em que o aluno examina a avaliação no-
vamente e reflete sobre quais comentários e sugestões foram
faz revisões importantes na estrutura,
mais úteis e as maneiras pelas quais revisou seu trabalho,
no fluxo e na lógica do texto;
com base no feedback de colegas e/ou professores.
. revê e edita o rascunho final;

reflete sobre a experiência da escrita


4
no seu diário de escrita.

Fases: Publicação Por fim, o trabalho do autor é disponibili- Portfólios eletrônicos são ideais para publicar trabalhos
zado par.3 um público, para que outros multimodais na web.
possam lê-lo - em um livro da turma, por
Uma vez compartilhados, os trabalhos publicados estão
exemplo, ou postado em um quadro de
disponíveis para discussão pós-publicação.
avisos.
Quadro 1 o.8: Processo de escrita.

240 1
LETRAM EN TOS
A escrita como um processo de aprendizagem cognitivo e social
complexo
Aprender a escrever não é simplesmente um processo linear de cinco etapas, começando com
um plano e terminando com um trabalho publicado, mas sim um processo social que é linguística
e cognitivamente muito mais complexo que isso. De fato, a escrita é uma dialética multifacetada,
uma série de movimentos de "vai e vem'' entre o escritor individual e o diálogo social sobre o
trabalho, envolvendo o próprio texto e a reflexão sobre os elementos do design do texto, cognição
e metacognição.
Em todas as fases (Quadro 10.9), a escrita envolve um complexo jogo social e cognitivo, que é
recursivo, pois aprender a escrever, uma das mais complexas representações humanas e capacidades
cognitivas, é, fase por fase, uma tarefa aprendida ao retroceder e avançar ao longo do texto, à medida
que este se desenvolve. Esse processo é enriquecido pela interação social, envolvendo feedback por
meio de uma variedade de perspectivas (Quadro 10.10).

Escrita social Metalinguagem, gramática do Cognição e metacognição


design

Fase 1: Plano Pensando e m minha escrita<=> Criando anotações e um esboço Esboço aproximado que aborda
pesquisando fontes sociais para <=> trabalhando com parâmetros um tópico ou temas específicos
minha escrita. de escrita que nomeiam explicita- <=> pensando em termos gerais
mente os recursos do design de um sobre esse tipo de texto ou tipo de
texto efetivo e poderoso. prática disciplinar representada na
escrita (por exemplo, escrevendo
sobre ciência ou história).

Fase 2: Rascunho Minha escrita<=> alterar suges- Elaborando o texto <=> reflexão Escrevendo sobre algo <=> pen-
tões por meio de ferramentas de sobre o tipo de texto com a ajuda sando em como pensar sobre tal
verificação gramatical e ortográ- de parâmetros de escrita. coisa.
fica do computador.

Fase 3: Feedback Observando a escrita de outras Lendo um texto <=> reflexão es- Lendo algo substantivo (em um
pessoas <=> oferecendo-! hes truturada e feedback sobre o texto, tópico informativo, uma história)
feedback. pa râmetros de escrita. <=> comentário sobre o pensa-
mento subjacente.

Fase 4: Revisão Observando a minha própria Minha própria escrita <=> análise Revendo meu pensamento como
escrita <=> refletindo sobre o de comentá rios por outros expres- refletido no rascunho <=> consi-
feedback de colegas e/ou profes- sos em termos de análise do design. derando os pensamentos dos ou-
sores. tros sobre o meu pensamento.

Fase s: Publicação Observando a minha versão li- Escrita finalizada <=> reflexões Meu pensamento revisado <=> a
nalizada <=> escrevendo uma sobre o processo de design. autorreflexão sobre como meu
autorrevisão; também lendo pensamento se desenvolveu.
textos publicados<=> discussão
--./t
de textos publicados.
Quadro 10.9: Fases no processo de escrita.

CONSTRUINDO SIG NIFICA DOS POR MEIO DA ESCRITA / 241


Minha escrita, escrita como uma at ividade individual. Diálogo social e feedbackem torno da escrita; ex.: colegas
e professores.

Algo específico, a coisa empírica sobre a qual estou es- Generalizações ou reflexão teórica; ex.: sobre a natureza
crevendo em um texto factual ou os participantes em da escrita, o conteúdo disciplinar da escrita.
particular e o ambiente em uma narrativa.

Texto. Reflexão explícita sobre o design do texto.

Cognição, ou representações do pensamento concreto Metacognição, ou reflexões sobre as condições do saber,


(em narrativas, argumentos, textos informativos etc.). processos de pensamento e representação desse pensa-
mento.

No lado esquerdo da tela do Scholar. No lado direito da tela do Scholar - é possível encontrar
esses m ovimentos sociais e cognitivos acontecendo por
meio de muitas pedagogias de escrita.
Quadro 10.10: Interações sociais e cognitivas na/por meio da escrita.

Sumário

Análise do design dos mui- Gramática sistêmico- Gramática gerativo- Gramática tradicional
tiletramentos -funcional -transformacional

A que os significados se refe- Significado ideacional Classes de palavras


rem (Referir-se)? (Campo)

Como os significados conec- Significado i nterpessoal Estruturas profundas ➔ Sintaxe


tam as pessoas na ação e as (Sintonia) significados particulares
que estão intera gindo (Dia-
lagar)?

Como os significados, em Significado textual Estruturas da superfície ➔ Estilo


geral, se mantêm coesos (Es- (Modo) significados particulares
truturar)?

Como os significados são Registro: Pragmática


moldados pelo(sl seus(s) - campo;
contexto(s) (Situar)?
- sintonia;
- modo.

A que intenções e interesses - cultura; Retórica


esses significados projetados - gênero.
(designed) servem (Preten-
der)?

Pedagogia da escrita na Pedagogia da escrita na Pedagogia da escrita na Pedagogia dos !iframentos


abordagem didática abordagem autêntica abordagem funcional e análise do âesign

Gramática tradicional: Escrita em forma de proces- Pedagogia do gênero: Elementos do design:


-Aprender a aplicar a gramáti- so: - Ensinar explicitamente sobre - Ser capaz de nomear e consi-
ca e as regras ortográficas. - Aprender a escrever prati- gênero, texto e gramática por derar as escolhas de significado
cando (produzindo muitos meio de ciclos de campo de feitas, conforme os textos são
- Redação. textos escritos, sem ter que co nst ru ção, desconstrução, escritos.
aprender regras expli cita - co nst rução conjunto e inde-
- Construção de vocabulário. mente). pendente do texto. Processo de escrita:
(a) plano;
- Produção de textos autênti- (b) rascunho;
cos. (c) feedback;
(d) revisão;
(e) publicação.

242 \ LETRAMENTOS
Processos de conhecimento

Experienciando o conhecido
1. Em relação às pedagogias de escrita discutidas neste capítulo, como você descreveria sua própria

experiência de aprendizagem da escrita? Quais abordagens você achou pessoalmente mais


eficazes?

Experienciando o novo
2. Leia uma atividade escolar de produção escrita com instruções diretas altamente roteirizadas.

O que você acha atraente ou alienante nessa abordagem para aprender a escrever?

Analisando criticamente
3. Discuta a proposição de que uma abordagem autêntica da escrita é o caminho mais eficaz para
iniciar a escrita aos alunos (de baixo rendimento escolar) de famílias pobres e desfavorecidas.
Para tanto, leia textos de autores que defendem e criticam essa abordagem.

Conceitualizando por nomeação


4. Com base neste capítulo, mantenha um registro dos conceitos sobre a língua. Defina esses
conceitos em um glossário. Talvez isso possa assumir a forma de uma wiki colaborativa, em que
diferentes alunos possam:
a) nomear e definir um conceito;
b) fornecer exemplos;
c) sugerir momentos de ensino nos quais esse conceito possa ser usado na aprendizagem da
escrita.

Conceitualizando por teoria


5. Crie um mapa conceitual ligando os termos definidos na atividade anterior.

Analisando funcionalmente
6. Escolha um parágrafo de texto escrito. Em um grupo de quatro pessoas, a primeira deve aplicar
o conceito de gramática tradicional ao texto; a segunda, o de gramática gerativo-transformacional;
a terceira, o de gramática sistêmico-funcional; e a quarta, o de análise do design dos multiletra-
mentos. Em seguida, compare os resultados. Que ideias podem ser obtidas de cada abordagem?
Quais aspectos de cada abordagem seriam mais ou menos úteis para os alunos aprenderem a
escrever?

Aplicando apropriadamente
7. Desenvolva um plano de aula que ilustre a forma como os conceitos de análise do design podem
ser usados para ajudar a explicar o modo pelo qual um texto escrito atende aos seus propósitos.

CON STRUINDO SIGNIFICADOS POR MEIO DA ESCRITA 1 243


Visão geral
Este capítulo explora as maneiras pelas quais construímos significados visuais, oferecendo uma
análise do design do modo visual com fins de ensino e aprendizagem dos letramentos. Vamos nos
referir a dois tipos de significados visuais ou significados construídos através de imagens: imagens
perceptuais, aquelas que são emuladas pela percepção através da nossa visão, isto é, as coisas que
vemos com nossos próprios olhos; e imagens mentais, que são as coisas que vemos em nossa mente
- aquilo que visualizamos ou imaginamos como possibilidades futuras. O mundo não se apresenta
a nós para simplesmente o vermos, por isso nossas mentes constroem sentido visual do mundo
através do que chamamos de imagem perceptual; mas também podemos imaginar coisas que, no
momento, não somos capazes de ver, usando, para isso, nossa imaginação. Bebês conscientes
percebem o mundo, primeiramente, vendo e construindo imagens mentais; somente depois aprendem
palavras para as coisas que veem. As pessoas que não enxergam fazem a mesma coisa através do
que ouvem e sentem. Com efeito, todos os humanos trabalham com imagens mentais do mundo.
Neste capítulo, descrevemos as semelhanças e diferenças entre imagens visuais e língua: as
semelhanças nessas duas formas simbólicas de construir sentido permitem nos referirmos às mesmas
coisas na língua ou em uma imagem visual; por outro lado, existem também diferenças importantes,
já que imagens e palavras nunca podem ser iguais. Este capítulo também dá exemplos de salas de
aula nas quais os professores engajam seus alunos em textos que constroem sentidos e que se movem
entre imagens e escrita. Essas experiências destacam o poder da sinestesia, o processo de mudança
de um modo para outro e a aprendizagem multimodal integrada.

Representação e comunicação visual


Palavra eimagem: Construindo as conexões

O significado escrito tem sido privilegiado em relação ao significado visual há séculos, pois a
hegemonia da escrita sobre a imagem certamente se iniciou com o surgimento da cultura impressa
e da escolarização institucionalizada em massa. Essa situação começou a mudar no século XX, com
o aparecimento de novas mídias, incluindo a fotografia, a impressão fotográfica-litográfica, o rádio
e a televisão. À sua maneira, cada uma dessas mídias oferecia, então, alternativa ou suplemento à
escrita como formas novas de registro de significados e sua comunicação entre distâncias.
Na segunda metade do século XX, lamentou-se reiteradamente o suposto declínio do hábito
de leitura, atribuído à ascensão das mídias visuais, como a televisão e os quadrinhos, e foram
constantes os pedidos de retorno aos livros. Nesse sentido, as crianças aprendiam que a escrita
era superior à imagem, e progrediam dos "livros ilustrados", voltados para leitores iniciantes, aos
livros com textos escritos mais densos. Por essa lógica, então, os leitores mais avançados,
aparentemente, não precisavam mais de avisos visuais na forma de ilustrações. Assim, as crianças
mais velhas poderiam escolher para ler, em seu tempo livre, livros ilustrados e histórias em
quadrinhos, mas estes nunca seriam usados no ensino formal de leitura e escrita na escola, pois
eram considerados uma alternativa limitada e educacionalmente inútil para a "leitura real".
Enquanto as crianças trabalhavam na escola, as disciplinas voltadas para leitura, escrita e arte se
tornavam cada vez mais rigidamente separadas. Assim, a leitura e a escrita eram consideradas
essenciais e mais "acadêmicas", enquanto a disciplina de "arte" era opcional e mais orientada para
a aquisição de habilidades artesanais ou comerciais.
Enquanto isso, em algumas das mais influentes teorias acadêmicas da comunicação e da
sociedade humanas, um sentimento paralelo se expressava através da "virada da linguagem", na
qual a linguagem era, então, tomada para enquadrar tudo em nossos mundos de significado e
de interação social.' Nessa visão, tudo o que é significativamente real no mundo é assim porque
é nomeado ou rotulado pela linguagem, pois esta cria todo o significado. Nossa consciência é
considerada estruturada como uma linguagem; como consequência, nossas funções cognitivas
superiores, como raciocínio e solução de problemas, são pensadas para ser exclusivamente
moldadas e expressas através da linguagem, quando, por exemplo, classificamos as coisas,
nomeando-as com palavras e estabelecendo conexões entre palavras por meio da lógica linguística
da sintaxe. Em outras palavras, algo só existe de forma significativa a partir de uma perspectiva
humana quando é nomeado na/por meio da linguagem.
Uma série de aspectos de nossos ambientes sociais e comunicacionais contemporâneos sugere
que devemos, então, rever esse preconceito grafocêntrico de longa data, isto é, preconceito
centrado na língua escrita. Um fator que discutimos em vários lugares deste livro é a multimodalidade
intrínseca das comunicações cotidianas na era da mídia digital. De fato, entramos em uma era
- que W J. T. Mitchell 2 já chamava de "uma virada pictórica" - na qual uma pedagogia dos
letramentos que lide com a alternância entre diferentes modos, ou sinestesia, pode ser bastante
efetiva.
Neste capítulo, discutiremos como nos referimos às imagens, usando a mesma estrutura para
análise do design que aplicamos à língua escrita no capítulo anterior. Queremos mostrar como
podemos dizer as mesmas coisas por meio da língua escrita e da imagem. Uma pafà'vra e uma
imagem podem se referir à mesma montanha ou à mesma pessoa, por exemplo. No Quadro 11.1,
aplicamos a mesma análise do design aos significados visuais que introduzimos para os significados
escritos no capítulo 10 (Quadro 10.6). Para ver as relações entre os dois tipos de significados,
compare .os dois quadros.

1 Rorty, 1992.
2 Mitchell, 1986.

246 1 LETRAMENTOS
Veja: "Kalantzis e Cope analisando os designs de imagens".

Examinaremos aqui alguns aspectos desafiadores da teoria das imagens e da "psicologia da


percepção", enfocando as diferenças, bem como as semelhanças entre construir sentidos usando
imagens e usando texto escrito. Porém, primeiramente, apresentaremos alguns exemplos práticos
de aprendizagem multimodal em salas de aula onde os professores estão conseguindo reunir
significados escritos e visuais.

Letramentos multimodais

Pip leciona para uma turma do 6Q ano de escola de área rural. Muitas das crianças vêm de
famílias relativamente pobres. Veremos nesta seção como a aprendizagem multimodal dos letramentos
entrou em sua sala de aula, e, em particular, como a professora conecta a escrita à criação de imagens
para permitir que seus alunos entendam o modo como os textos foram elaborados, bem como o
que significam.
Para dedicar toda a sua atenção às metas desafiadoras de letramentos que estabeleceu, Pip
desenvolve uma sequência de 22 atividades nas quais os alunos criam "projetos apaixonantes"
("passion projects") baseados em seus interesses. Um aluno escolhe a dança e outro escolhe os
caminhões. Ela faz as crianças criarem websites sobre seus projetos e, então, publica artigos sobre
suas paixões em um jornal de classe. Guiados pela estrutura de aprendizagem que a professora
escolheu - a pedagogia dos multiletramentos -, os alunos pesquisam os tópicos escolhidos em
profundidade, investigando uma ampla variedade de fontes: livros, internet e materiais que trazem
de casa. Juntos, examinam o design visual das páginas da internet, contrastando-o com o design
I
• n visual: Processo de criação de de livros e criando mapas conceituais que capturam os principais conceitos de
significados visuais. apresentação em web design. A professora também faz com que os alunos
considerem o design de jornais (manchetes, leads, linhas de texto, imagens, diagramas), comparando
edições impressas e on-line. 3
No trecho a seguir, Pip reflete sobre a experiência dos alunos:

Temos uma grande variedade de crianças nesta sala ... Nem todas as crianças têm acesso a um computador
em casa; então, tem havido muito planejamento para esse conceito de nomeação, para que eles sejam
capazes de entender que isso é um hyperlink, ou isso é uma "fonte" [... ] identificando essas características
e conceitos que eles precisam ser capazes de usar e precisam ser capazes de nomear [... ] sendo capazes
de articular o que é o conceito e então aprender o que isso faz [... ] A análise crítica tem sido realmente
uma parte grande de ter que olhar para as páginas da internet e dos jornais, por exemplo, e identificar
recursos. Eles têm sido bastante críticos sobre o motivo de terem escolhido uma cor de fund~ u uma
animação em particular, ou essa fonte funciona com esse plano de fundo colorido específico. As crianças
são muito boas nisso agora e usam a linguagem muito facilmente, muito confortavelmente [... ] Nós
aplicamos o que aprendemos na criação de nossas próprias páginas da internet e cada criança agora tem
seu próprio perfil pessoal, que está na intranet da escola. [... ] Incluindo o hiperlink para seu "projeto
apaixonante': 4

3 Kalantzis; Cope & Cloonan, 2010, pp. 76-84.


4 Cloonan, 2010a, p. 213.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS 1 247


A professora está descrevendo um mundo que é semelhante e, ao mesmo tempo, diferente
daquele relacionado ao letramento tradicional da "letra": semelhante, na medida em que ainda há
muita leitura e escrita de texto escrito a ser feita, mas também diferente, na medida em que os
alunos desenvolvem uma maneira de descrever e aplicar o design visual, por meio de textos
multimodais.
Na turma de 3Q ano da professora Sue, os alunos estão lendo o livro de Ursula Dubosarsky
chamado Rex. Eles olham para a capa do livro e, em uma atividade de pensar e compartilhar ideias
em duplas (think-pair-share), uma estratégia de aprendizagem colaborativa em que os alunos
trabalham juntos para resolver um problema ou responder a uma pergunta sobre uma leitura
atribuída, predizem o que pode ser ("Rex é um lagarto colorido"). Eles procuram por vídeos de
lagartos na internet e exploram as palavras e imagens enquanto leem o livro e olham as fotos. Eles
comparam imagens em close-up com planos longos e diferentes ângulos nas imagens e, em seguida,
tiram algumas fotos. Então, começam a escrever um texto factual sobre algo bem diferente, um
relato sobre uma semana de suas vidas, usando a linguagem pictórica e incluindo imagens que
usam diferentes ângulos de câmera e perspectivas para descrever coisas de maneiras diferentes.
Passando para a turma do sQ ano, os alunos estão concentrados nas diferenças entre textos
informativos e narrativos. Seu ponto de partida é o livro Wolves, de Emily Gravett. Em relação aos
textos informativos, eles encontram a seguinte informação em um site: "Um lobo é um caçador",
seguida por uma fotografia de um lobo a qual ilustra a caça. Quanto à perspectiva narrativa, o seguinte
exemplo: "O lobo tem um uivo arrepiante': seguido por uma imagem lindamente desenhada, que
captura essa sensação perfeitamente. Os estudantes pesquisam sobre lobos na internet e depois leem
o charmoso livro de Emily Gravett. Eles, então, comparam e contrastam as semelhanças e diferenças
entre as maneiras pelas quais palavras e imagens são usadas para apoiar narrativas e textos informativos.
Em seguida, escolhem um texto narrativo (como um livro de que gostam ou que conhecem bem) e,
então, escrevem um texto informativo ilustrado que aborda o mesmo tema do texto narrativo.
Como último exemplo, trazemos a aula do 8Q ano da professora Prue Gill, na qual os alunos
estão explorando o haicai. Eles leem o livro Wabi Sabi, de Mark Reibstein, com obras de arte de
Ed Young. Pesquisam as características do design dos gêneros haibun e haicai, comparando
significados literais e inferenciais, tanto no texto quanto nas imagens, e explorando conceitos de
harmonia, equilíbrio e cor no texto e na imagem. Finalmente, escrevem e ilustram um haicai.

Referência Como coisas específicas, como pessoas, lugares, ações, processos e objetos, foram descritas, usando:
(A que o significado se - linha (contorno, características de definição, comprimento, ângulo, interseção, direção)?
refere?) - forma (forma, tamanho, volume)?
- cor (matiz, densidade ou brilho/ofuscamento, tom ou luminosidade/escuridão)?
A que pessoas a imagem se refere (por exemplo, um desenho animado de uma pessoa em particu-
lar)?
Quais lugares são representados - onde (por exemplo, em um mapa, em uma foto)? .,./t
Quando (por exemplo, os ponteiros do relógio, dia/noite, estações do ano, auras do futuro/contem-
porâneo/histórico, cronogramas e gráficos)?
Quais objetos de interesse são referidos - o quê (por exemplo, o anúncio de uma academia, um
diagrama dos músculos das pernas)?
Como os conceitos gerais ou tipos de coisas foram descritos (por exemplo, um ícone como um avião
em um sinal apontando"para o aeroporto"; um diagrama mostrando como algo, em geral, funciona,
como um coração humano)?
Como as características dessas coisas foram descritas, incluindo:
- qualidades (por exemplo, perspectiva e proporção)?

248 / LETRAMENTOS
Referência - quantidades (por exemplo, números, uns/alguns/muitos, menos/mais)?
(A que o significado se Como as relações entre as coisas estão descritas, incluindo:
refere?) - parte/todo?
- posse (um atributo ou algo de propriedade)?
- proximidade (por exemplo, perto/longe, j ustaposição/separação)?
- similaridade/dissimilaridade (por exemplo: semelhança/contraste, continuidade/descontinuidade)?

Diálogo Como as pessoas ou coisas estão conectadas como atores na imagem:


(Como os significados - pelo posicionamento de elementos pictóricos (por exemplo, centro/margens, primeiro plano/se-
conectam as pessoas gundo plano, ator/meta, linhas de visão em imagens de pessoas, planos focais de desapego/ enga-
que estão interagindo?) jamento)?
- pela representação de movimento e mudança (por exemplo, trajetórias, vetores, direção, interação
entre elementos de imagem, causa/ efeito)?
- Como o espectador está conectado à imagem por:
- tipo de mensagem (por exemplo, sinal de informação versus sinal de comando)?
- posicionamento do espectador (por exemplo, perspectiva, ângulos, pontos de fuga, enquadramen-
to, grau de distanciamento/envolvimento, como linhas de visão de pessoas retratadas em relação
ao espectador)?

Estrutura Como os elementos da imagem são organizados (por exemplo, composição, primeiro plano/plano
(Como os significados, de fundo, enquadramento ou definição de bordas)?
em geral, se mantêm Como a imagem é seccionada (por exemplo, esquerda/ direita; superior/ inferior, centro/margem,
coesos?) foco disperso/centrado)?
Como os elementos da imagem formam um todo integrado (por exemplo, semelhanças/contrastes,
regularidade/ irregularidade, simetria/assimetria, perspectiva e transmutação de três dimensões em
duas)?
O que a imagem indicia (por exemplo, destaque, figura/ fundo)?
Quão rea listicamente as ideias ou informações são retratadas na imagem (por exemplo, represen-
tações naturalistas ou realistas de coisas concretas versus caricaturas; esboço ou diagrama versus
representação icónica ou abstrata de ideias ou sentimentos)?
Como as imagens são encadeadas (por exemplo, em uma exposição, uma história em quadrinhos,
as fotos em um livro de histórias de crianças, uma apresentação de slides, um vídeo)?
. Como a mídia molda a imagem (por exemplo, materiais e tecnologias de produção e reprodução:
pinceladas em uma pintura, linhas em um desenho, o visor de uma câmera)?

Situação . Qual é a localização da imagem, como ela aponta para o seu entorno e como o seu entorno aponta
(Como os significados para ela (por exemplo, a pintura na galeria, o mapa no livro de guia de viagem)?
são moldados pelo Que referências visuais a imagem usa:
contexto?) , - para as coisas do mundo (por exemplo, analogias visuais, metáforas, imagens)?
- para outras imagens (por exemplo, convenções de estilo, motivos de outras imagens, remixagem,
colagem)?
Qual é o gênero da imagem ou similaridades com um tipo, estilo ou método de criação de imagem
(por exemplo, pintura expressionista abstrata, produção de documentários)?

Intenção . Qual é a posição do criador de imagens?


(A que interesses esses Qual é a postura do criador de imagens (por exemplo, colocando-as em primeiro plano ou plano de
significados servem?) fundo para construir seu ponto de vista)?
O que o criador de imagens incluiu e excluiu (por exemplo, enquadramento e perspectiva, que in-
cluem algumas coisas e deixam de fora outras coisas, apresentação seletiva de informação visual)?
Quais interesses a imagem suporta (por exemplo, um anunciante vendendo algo ou um cientista
tentando persuadir, usando um diagrama que descreve fatos científicos)? 4
Qual é a posi_
ção do espectador?
Corno o criador de imagens tenta engajar ou chamar a atenção do espectador (por exemplo, onde
os espectadores podem estar quando veem a imagem, o que eles podem esperar primeiramente,
as imagens mentais que eles podem trazer para a imagem)?
. Onde o espectador é posicionado (por exemplo, perspectiva s de poder, como olhar para ci ma/para
baixo, aparências de objetividade e afirmações de verdade na forma de visões frontais ou perpen-
diculares diretas, tais corno planos de câmera)?
Que interpretação a imagem sugere para o espectador (por exemplo, o posicionamento do espec-
tador, coisas construídas como mais/menos salientes, o propósito ou argumento da imagem)?
Quadro 11.1: Uma gramáti ca do sig nifi cado visual.

CON STRUINDO SIGNIFI CADD SVISUAI S i 249


Imagens perceptuais e mentais
Palavras e imagens

Palavras, sintagmas e orações coletam, representam e comunicam nossos pensamentos, assim


como as imagens, mas estas o fazem de uma maneira diferente. Queremos explorar os paralelos
entre conceitos linguísticos e conceitos visuais, bem como suas diferenças, começando pela
representação (quando damos sentido ao que vemos no mundo) e seguindo com a comunicação
(as mensagens visuais que podemos escolher criar para expressar nossos significados).
Uma imagem se constitui como similitude visual, assemelhando-se a alguma coisa, ideia ou
sentimento. Pode-se dizer a si mesmo: "Eu já vi essa montanha ou essa pessoa antes, em minha
experiência de vida real ou em uma imagem que me foi apresentada e que interpretei como sendo
essa montanha ou essa pessoa". A imagem também se constitui como diferença, uma distinção, por
exemplo, que se faz entre "montanha" e "mar", "pessoa" e "animal", ou "esta montanha" e "aquela
outra montanha", e "essa pessoa" e "aquela outra pessoà'.
Depois de algum tempo, a criança aprende sobre as qualidades relacionadas a "montanhas" ou
a "animais", de modo que, quando encontra uma montanha ou um animal diferente de qualquer
outro que já viu antes, é capaz de reconhecer o que é, porque desenvolveu um conceito visual de
montanha ou de animal. Até esse momento, as imagens estão funcionando muito como a língua,
com a criança construindo sentido para o mundo, realizando algum trabalho cognitivo sobre o
mundo, cujo resultado em termos representacionais é um significado. Nesse sentido, é "revelador
que a palavra 'ideia' vem da palavra grega 'ver', sublinhando a ligação muito estreita entre
conceitualização e visualização". 5
Por essa perspectiva, então, queremos fazer uma distinção fundamental entre dois tipos de
representação visual ou de construção de sentido visual para si mesmo: as imagens perceptuais,
aquelas que são emuladas pela percepção através da nossa visão, isto é, as coisas que "vemos com
os olhos"; e as imagens mentais, as coisas que vemos com os "olhos da mente" - aquilo que visualizamos
ou imaginamos como possibilidades futuras.

Imagens perceptuais

Imagens perceptuais envolvem um encontro direto, material e corporal com Imagens perceptuais: Constroem
significados no mundo, em que a luz passa através da córnea e da lente, projetando sentido de algo que é imediatamente
uma imagem invertida na retina na parte de trás do olho. No olho humano, 60 viS t o.
ou mais tipos diferentes de células processam muitos tipos de informações óptica~or meio de
receptores conectados ao nervo óptico por cerca de 1,5 milhão de células. O campo de visão de
uma pessoa é bastante pequeno, centrado em uma parte da retina onde as células fotorreceptoras
- células especializadas que detectam a luz - são mais densas. Seis músculos rotacionam o globo
ocular em vários padrões distintos, algo em torno de cem mil vezes por dia, dando um pequeno
salto de cada vez e parando para focar - realizando vários saltos, quando, por exemplo, estamos
lendo.

5 Mitchell, 1986, p. 5.

250 1 LETRAMENTOS
Contudo, não vemos com os olhos, mas sim com o cérebro. Impulsos elétricos minúsculos do
nervo óptico atingem cem tipos de células em uma área do cérebro chamada córtex visual,
respondendo seletivamente a cor, profundidade, espaço, movimento, orientação e outros aspectos
da visão. A partir daí, os sinais são transmitidos por todo o cérebro, com diferentes tipos de
informação, combinadas e recombinadas em cem ou mais locais em todo o cérebro para criar uma
única percepção (a imagem mental "desta montanha" ou "daquela pessoà'). Toda essa interconecti-
vidade mental é chamada pelos cientistas cognitivos de "ligação", que se constitui por meio de um
processo que leva tempo, provavelmente cerca de um quarto de segundo, para que se possa "ver"
o objeto reconhecível que acaba de entrar no campo perceptivo.
Por que vemos "esta montanhà' ou "aquela pessoà'? É preciso entender que o mundo não se
apresenta simplesmente para nós. Há sempre tanta coisa ao nosso redor que não podemos absorver
tudo, o que faz com que nossa atenção tenha que ser seletiva. Assim, aprendemos a nos concentrar
no que importa para nossos propósitos em cada momento. Por exemplo, não vemos cada árvore
em uma montanha ou cada fio de cabelo na cabeça de uma pessoa, embora, é claro, possamos nos
concentrar em uma árvore ou num fio de cabelo específico, se isso for de nosso interesse. Em outras
palavras, para ver de forma significativa, precisamos escolher o que consideramos necessário ver,
ou o que queremos ver. Nesse sentido, precisamos nos posicionar em relação a uma determinada
cena, depois escolher uma sequência de pontos focais para os quais devemos nos atentar entre uma
gama infinita de possibilidades nessa cena. 6
Em sua análise da psicologia da representação pictórica, Gombrich explica que, "sem o dispositivo
de filtragem da atenção seletiva, seríamos sobrecarregados pelos estímulos em todas as cenas e
imagens".7 A esse respeito, Jean Paul Sartre assevera:

No mundo da percepção, nenhuma "coisà' pode aparecer sem que mantenha com as outras
coisas uma infinidade de relações. Mais ainda, é essa infinidade de relações - e, ao mesmo tempo,
também a infinidade de relações que seus elementos sustentam entre si - que constitui a própria
essência de uma coisa. Daí algo de excessivo no mundo das "coisas": a cada instante, há sempre
infinitame1:te mais do que o que podemos ver; para esgotar a riqueza de minha percepção atual,
seria necessário um tempo infinito. 8

Existe, portanto, uma "riqueza inesgotável" objeto


/
no que pode ser visto em qualquer campo de íris

percepção em qualquer momento, e é por isso


que nossa atenção visual precisa ser seletiva.
Assim, ver é um processo de escolher partes do
que podemos ver e direcionar nossa atenção para
essas coisas. Olhamos para as coisas que são
significativas para nós; no momento em que isso
ocorre, o resto do que poderia ter sido visto
torna-sé praticamente irrelevante.ou permanece
despercebido. Nesse sentido, é possível considerar Figura 11.1: Visão humana.

6 Koch, 2004.
7 Gombrich, 2000 [1960), p. xxvii.
8 Sartre, 1996 [1940), p. 22.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS 1 251


a percepção visual como um ato de cognição - um processo mental de conhecimento no qual nossa
atenção pode ser concebida como uma intenção de ver, um interesse de atenção, um tipo de agência.
A percepção visual é um processo de elaboração das coisas do mundo usando os olhos e o
cérebro humanos, mas é também um processo cultural complexo, apenas possível quando aprendemos
as artes da atenção perceptiva da cultura em que vivemos, ou seja, a cultura, de alguma forma, nos
ensina o que "ver". Tomemos, como exemplo, a estranha ideia cultural de um "carro", algo inconcebível
antes do século XX. Ele deve ter rodas - uma característica essencial da ideia de um carro -, mas,
olhando de frente ou de trás do objeto, elas podem não ser visíveis como objetos distintamente
redondos. No entanto, embora, de frente, possa parecer algo diferente de um carro, ainda podemos
vê-lo como tal (Figura 11.2). Pode estar perto ou muito longe, mas, seja qual for a distância,
ajustamos nossa visão para atender às nossas expectativas em relação ao tamanho normal de um
carro. Podemos olhar para um modelo de carro muito próximo e grande, apesar de sabermos que
não podemos dirigi-lo.

Figura 11.2: Ideia de um carro.

Vale aqui destacar as imagens da Figura 11.3, exemplos clássicos da psicologia da percepção,
para considerarmos as maneiras pelas quais construímos o significado visual a partir das imagens,
com base nos significados visuais preexistentes que, como espectadores, trazemos para o processo
de percepção.

o
Figura 11.3: A psicologia da percepção. Um pato ou um pássaro? Quando um círculo se torna um gato? Figura e fundo: Um vaso ou duas faces?

252 / LETRAMENTOS
Curiosamente, a criança aprende a ver objetos, como carros, patos, coelhos e gatos, e toma
conhecimento do que são e do que podem fazer antes de ter palavras para designar esses objetos.
Por isso, como já dissemos, visão não é o que vemos, como se o mundo pudesse simplesmente se
apresentar a nós, mas aquilo que aprendemos a ver porque tornamos as coisas que vemos significativas
para nós mesmos. Aprendemos a visão antes de aprendermos a língua e, como consequência, esta
é, em grau substancial, uma criatura daquela. A língua é uma camada sobre a visão.
Quando bebês, antes mesmo de aprendermos nossas primeiras palavras, experimentamos um
mundo vasto e multidimensional de percepções visuais significativas. Nosso primeiro pensamento
é visual: aprendemos a ver pessoas, coisas, movimentos, cores, espaços e distâncias, pois não
nascemos com todas lhes nossas habilidades visuais. Nos primeiros dois meses de vida, os bebês
aprendem a estreitar seu foco para ver uma coisa específica de cada vez, para separá-la como
algo distinto de tudo o que podem ver. As pessoas nascidas cegas e cuja visão foi restaurada por
meio de cirurgia, quando adultas, não podem vtr, porque é muito tarde para aprenderem a
enxergar de uma maneira que as permita distinguir as coisas significativas em seu campo de
visão. Assim, só é possível aprendermos em tenra idade a capacidade cognitiva profunda e
complexa que é a percepção visual. Por isso, pessoas cegas usam outros recursos para formar
imagens mentais que lhes dão sentido sobre o mundo, que aprendem a alinhar com as imagens
mentais das pessoas com visão.
Assim, a percepção é um ato mental de reconhecimento e um processo de execução de um
julgamento sobre o que existe em determinado campo de visão. Como, então, construímos sentido
quando vemos? Vemos coisas que se assemelham a outras coisas ("Essa montanha não é aquela
montanha, mas tem algumas características comuns de uma montanha"); vemos as coisas porque
elas são diferentes de outras coisas ("Onde esta montanha encontra o mar") e porque elas estão
perto de outras coisas ("Uma montanha faz sentido em contraste com o céu"); podemos agrupar
o que vemos, quando as coisas que estamos vendo são visualmente contínuas, e separá-las, quando
são descontínuas; vemos formas que têm um interior e um exterior; podemos ver a proximidade
como algum tipo de pertencimento (por exemplo, posso vê-lo perto de mim, dirigindo o mesmo
carro), ou a distância, como uma espécie de não pertencimento ("Posso vê-lo a distância, perto da
montanha, em um carro"). Nenhuma dessas coisas simplesmente existe para ser vista; aprendemos
com a nossa experiência que essas são distinções visuais significativas a serem feitas, uma vez que
trabalham para nós, impedindo-nos de ser atropelados por carros e nos ajudando a distinguir
montanhas de pessoas.
Contudo, o fato de que tivemos de aprender a ver essas coisas não significa que elas sejam fruto
de nossas imaginações perceptuais. Elas realmente existem materialmente. De fato, uma peculiaridade
da percepção visual, que a torna bastante diferente da língua, é que a coisa que vemos tem que estar
presente, ao mesmo tempo, para nós, tanto internamente ao nosso corpo (o que vemos), como
externamente na realidade material (algo visto). Assim, é preciso que haja um obje·fi) visível externo
para podermos vê-lo e, só podemos vê-lo porque somos capazes de fazer algum tipo de sentido
cognitivo interno do que estamos vendo.
Isso não quer dizer que aquilo que vemos seja necessariamente verdade. Nossa experiência
corporal nos diz que, na maior parte do tempo, nossa cognição perceptiva nos serve bem. Às vezes,
no entanto, nossa percepção atenta e continuada nos diz que nossas impressões iniciais devem ser
mudadas quando falhamos ao conceber algo que se torna importante, ou quando nossos sentidos

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS 1 253


parecem nos enganar, ou quando alguém cria efeito visual equivocado ou distorcido, a fim de
alcançar seus interesses. Por exemplo, achamos que vimos nosso amigo andando na calçada;
percebemos, contudo, que o sujeito só se parecia com ele por causa de sua forma e de seu tamanho,
mas na verdade era um estranho; ou pensamos que a substância branca e cremosa da tigela fosse
sorvete, mas, depois de a provarmos, descobrimos que se tratava de iogurte congelado.

Imagens mentais

Diferentemente das imagens perceptuais, as imagens mentais são as imagens Imagens mentais: Imagens na
de coisas que não se podem ver no momento da visão, muito embora tenham mente de uma pessoa sobre coisas qu e
muito em comum com as imagens perceptuais porque vêm de memórias da não podem ser vistas no momento.
percepção. É possível, desse modo, usar imagens mentais para se recordar daquela montanha
quando não se está mais lá, ou daquela pessoa quando não se está próximo dela, mas isso só é
possível porque aquela montanha e aquela pessoa se constituem em experiências perceptuais já
passadas.
Os processos cognitivos voltados para a formação de imagens mentais e o que se pode fazer
com elas são completamente diferentes daqueles voltados para imagens perceptuais. Aquela montanha
não está visível agora porque não estamos mais lá, assim como aquela pessoa não está perceptível
neste momento porque não se encontra conosco agora. No entanto, podemos nos lembrar de ter
visto aquela pessoa, ou de nunca a ter visto pessoalmente, mas sim numa foto; ou, ainda mais
extraordinariamente, podemos, mesmo sem nunca ter visto sua imagem, visualizá-la apenas tomando
como referência palavras que a descrevem. Isso é o que acontece, por exemplo, quando lemos um
romance que descreve graficamente uma "mulher alta, séria, vestindo um casaco vermelho brilhante':
É possível imaginá-la conjurando uma imagem mental que não existe na realidade, mas não é
exequível ver coisas que não existem na realidade visível. Essa é a diferença fundamental entre
imagens perceptuais e mentais.
Assim, imagens perceptuais só podem acontecer no presente, ao passo que imagens mentais
podem reconstituir o passado, tornando-se, portanto, o material da memória, que pode consistir
tanto em uma imagem "estáticà' (uma questão de simultaneidade, coisas que existem conjuntamente
em uma imagem mental), quanto em uma sequência de imagens em "movimento" (episódicas ou
temporais, visualizando coisas uma após a outra, como um passeio por um parque). No entanto,
essas imagens mentais na memória são necessariamente uma versão reduzida, abreviada e alterada
do passado, pois consistem apenas em coisas nas quais, de alguma forma, prestamos atenção. "Há
sempre mais para ser visto em uma imagem perceptual, mas uma imagem mental começa e termina
com o que podemos recordar:' 9
O objeto das imagens perceptivas está presente (a montanha está realmente à sua ffénte ou a
pessoa está realmente com você), ao passo que o objeto das imagens mentais está ausente (a
pessoa e a montanha são apenas lembranças). Nesse sentido, nas imagens perceptuais, podemos
sempre olhar mais para as coisas que até então tinham passado despercebidas. Por exemplo,
- percebemos uma árvore em particular na montanha, ou um fio de cabelo na cabeça de uma
pessoa que, de repente, chama a nossa atenção. Todavia, nas imagens mentais, podemos tão

9 Koch,2004,pp. 187-194.

254 j LETRAMENTOS
somente ver coisas que são relacionadas ao nosso interesse, à nossa intenção e à nossa atenção.
A percepção pode ser informativa, porque sempre podemos descobrir novas coisas visíveis; já
em relação às imagens mentais, embora não apresentem novas informações, podemos ainda
reanalisar as informações das imagens mentais já confirmadas na memória. As percepções visuais
tentam insistir em sua veracidade do mundo real, mas as imagens mentais são o material de uma
maior tentativa especulativa, um tipo de pensamento reflexivo. Esses são, portanto, tipos muito
diferentes de agência de significado, pois implicam diferentes tipos de engajamento de significado
com o mundo. 1 º

Imagens perceptuais Imagens mentais

- Vendo coisas com o olho do corpo. Prevendo coisas com o olho da mente.

- Procurando significado em uma cena. Criando significado a partir da memória.

. Atenção seletiva, vendo alguns aspectos visíveis de uma cena, Sendo capaz de ver apenas o que se recorda (na mente), uma
que são reais e infinitos. versão abreviada e seletiva da realidade.

. Acontecendo no aqui e agora. . Relembrando o passado.

. Focando a atenção em um objeto presente. . Focando a atenção em um objeto ausente.

. Um ato mental de reconhecimento. . Ato mental de rememoração e imaginação.

. O mundo real. . Imaginação e especulação.


Quadro 11 .2: Imagens perceptuais comparadas a imagens mentais.

Imaginação

Como as imagens mentais se referem a um mundo que não existe atualmente no campo de visão
imediato do construtor de significados, elas nos permitem imaginar. Dessa forma, para usar os
termos de Sartre, nossa consciência é, em parte, capaz de se libertar de uma realidade particular,
momentânea e esp_acialmente confinada. Isso, argumenta o filósofo, é a base psicológica e
11

antropológica da liberdade humana, que vai das menores liberdades para desviar a atenção (por
exemplo, olhar para outra coisa em seu campo de visão) ou para mover-se em um espaço ou
empreender uma ação (como, por exemplo, pegar alguma coisa) , até as maiores liberdades para
vislumbrar mundos diferentes, incluindo as utopias.
Assim, podemos ver que existem algumas diferenças muito significativas entre imagens perceptivas
e mentais. Todavia, nenhuma distinção fundamental pode ser feita sobre o trabalho de construção
de significado usando a língua, pois esta é feita de elementos simbólicos e mentais muito semelhantes,
quer a usemos diretamente por meio do que ouvimos ou lemos, quer a usemos para organizar
nosso pensamento. A visão está intimamente ligada ao mundo, e imagens mentais -~o o que
deixamos em nossa mente quando não estamos vendo algo. Nesse sentido, palavras são sempre
como imagens mentais e nunca como a visão, pois onde quer que a língua possa ser encontrada,
ou seja, onde quer que seja usada pela mente humana, é sempre um passo à frente da realidade à
-qual ela se refere, pois a língua é sempre um sistema de símbolos abstratos composto de conceitos

10 McGinn, 2004.
11 Sartre, 1996 [1940).

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS 1 255


mentais. Imagens, por outro lado, podem ser tanto as coisas que são vistas quanto conceitos mentais.
Assim, enquanto as imagens mentais são como a língua em alguns aspectos, as imagens perceptuais
são o produto de um envolvimento direto com o mundo material, ou seja, a imagem mental da
montanha não é a montanha em si, mas sua memória na mente; da mesma forma, a palavra
"montanhà' só faz sentido se lembrarmos que ela é o rótulo da coisa real no mundo.
Por que precisamos conhecer essas distinções? É vital entender que a língua escrita não é natural
de forma alguma, mas sim um artefato humano, que sempre foi produzido para um propósito
específico, em um momento específico da história humana, e, na escala da existência de nossa
espécie, há não muito tempo. Nos tempos atuais, o visual está assumindo nova significância como
uma maneira cada vez mais importante de expressar significados. É justamente por isso que estamos
preocupados em explorar os "letramentos" no plural. Para nós, educadores, os paralelos cotidianos
e cognitivo-humanos, bem como as diferenças entre os significados escritos e visuais, são de extrema
importância.

O processo de design visual


Acomunicação viS1Jal

A comunicação visual é um processo de construção de imagens destinadas Comunicação visual: uma ima
ao uso em nossas interações com os outros. A comunicação ocorre quando os que foi feita para comunicar um
outros representam esses significados para si próprios, como consequência da significado com outra pessoa.
percepção visual, ou se lembram, como imagens mentais, das coisas que já viram. Pinturas, fotografias,
páginas, anúncios, diagramas, desenhos, mapas, planos de
edifícios e telas de computador são exemplos de comunicação
visual.
Várias coisas constroem comunicações visuais de algumas
maneiras, como imagens mentais; porém, o criador de ima-
gens nunca é capaz de representar o mundo inteiro que cons-
ta em seu campo visual, a visão original sobre a qual sua
imagem se baseia. Em vez disso, oferece uma perspectiva
Imagem mental
baseada no interesse que moldou sua percepção visual ori-
ginal, o que viu como resultado de seu foco de atenção, seu
modo de ver; por isso, imagens visuais são inevitavelmente
o
o seletivas, parciais e incompletas em relação ao que pode ser
o
o visto em um campo visual. O fotógrafo enqu«ira uma ima-
gem, deixando deliberadamente algumas coisas enquanto
Comunicação Visual
inclui outras coisas com atenção; o pintor não captura todos
os detalhes em uma cena, apenas aqueles que constituirão
seu ponto visual. Às vezes, o ponto visual do criador de
imagens é o mais abstrato dos sentimentos ou a expressão
geral de uma ideia; o cartunista capta apenas os traços dis-
Figura 11 -4: Oprocesso de construção de imagem. tintivos do rosto ou do corpo de uma pessoa e, ainda assim,

256 i LETRAMENTOS
o mínimo possível; o plano de um edifício captura apenas a maneira como os objetos estão rela-
cionados e a dimensão de um espaço definido.
As comunicações visuais são, nesses aspectos, muito semelhantes às imagens mentais. Com
efeito, muitas vezes, as imagens são criadas não a partir da vida e da percepção imediata, mas de
imagens mentais, daí a visão de um edifício, ainda em construção, ser apresentada em um plano e
em renderização, ou uma pintura de um lugar imaginado. Até mesmo um retratista do cotidiano
trabalha por meio de uma seqtl.ência de imagens mentais, olhando para cima, para depois, então,
pintar a tela com base em sua imagem ou memória mental imediatamente anterior. Ou ainda o
fotógrafo, que é motivado a enquadrar a cena de maneira particular por uma imagem mental da
Imaginação: Uma capacidade fotografia que deseja criar. Nesse sentido, as comunicações visuais não são apenas
criar imagens mentais de coisas reproduções das percepções visuais de uma pessoa, mas também atos de previsão,
possíveis e reais. atos de imaginação.
Mais tarde, então, um espectador pode entrar em Interpretação visual
cena, com o trabalho de comunicação visual se Imagem menta:- 1- - - -

constituindo na sua imagem perceptual (uma pintura


da montanha, digamos). Todavia, ele nunca pode ver
tudo o que o criador do objeto da comunicação visual
deixou em sua imagem, intencionalmente ou não, nem
toda pincelada, nem todos os pequenos detalhes. Nesse
Comunicação visual
sentido, a imagem tem a mesma plenitude transbordante Imagem perceptual
que toda percepção tem, pois a inevitável seletividade
perceptual do espectador molda sua interpretação, o
sentido que constrói de uma imagem, na medida em que
a compreende por si mesmo.
Como nunca pode ver a imagem inteira de uma só
vez, o espectador também segue um caminho de
navegação visual, olhando para um ponto na imagem e
depois para outro, -reunindo informações da imagem à
medida que seus olhos se movem, do centro para as
Figura 11 .s: Comunicação e interpretação visual.
margens, da esquerda para a direita, de cima para baixo,
dependendo de suas predisposições e de seus hábitos de percepção, ou dos aspectos da imagem
que inicialmente e depois atraem sua atenção. É assim que o espectador interpreta um objeto de
comunicação visual como imagem perceptual, sempre guiado pela seletividade do criador da
imagem. No entanto, ele também usa sua própria seletividade e tem que realizar um trabalho
adicional, segundo Gombrich, se "colaborar com o artista para transformar uma tela colorida em
algo semelhante ao mundo visível". 12
Assim, o espectador olha para outro lugar ou deixa o campo perceptual em que a irrfagem está
presente, mas sua interpretação permanece com ele, como uma imagem mental, com todas as
reduções e simplificações, assim como com todos os preconceitos de interesse seletivo que as
imagens mentais inevitavelmente acarretam. Ele, então, se lembra de algo relacionado à imagem
da montanha, mas não de tudo, pois esta era, primeiramente, seletiva, com base no interesse atento

12 Gombrich, 2000 [1960], p. 290.

CON STRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS / 257


de seu criador; a imagem passa, assim, a ter outra camada de seletividade ou interpretação por
parte de seu espectador.
Contudo, isso não implica que o significado seja arbitrário e que vejamos apenas o que queremos
ver e, nada mais. Nossa espécie sociável está sempre interessada nos propósitos de outra(s) pessoa(s).
Nesse sentido, queremos também apreciar o que o artista está tentando nos dizer sobre a montanha
- afinal de contas, ele parece gostar tanto daquela montanha que se deu o trabalho de pintá-la.
Queremos ver coisas que os outros viram e, pelo menos, ter uma ideia do modo como as viram,
por isso estamos sempre tentando interpretar e entender o que o designer de significado tinha como
intenção, porque queremos entender quem ele é, o que está tentando nos dizer e o que quer conosco.
Desse modo, olhar para a imagem de uma montanha é bem diferente de olhar para a montanha
real, uma vez que a comunicação visual sempre envolve esse tipo de troca de significado de pessoa
para pessoa: ao vermos a imagem, estamos tanto interpretando a montanha quanto interpretando
quem a pintou/fotografou.

Design visual

Como, então, construímos significados visuais? A noção de design na perspectiva dos


multiletramentos forn~ce uma alternativa às teorias de aprendizagem mais antigas e mais simples
do tipo "o mtindo é só o que se vê". Essas teorias sugerem que o mundo se apresenta a nós através
do nosso senso de visão e que simplesmente aprendemos o que o mundo é a partir do que vemos.
Em tais perspectivas, somos criaturas de nossas percepções sensoriais, ou seja, sabemos por causa
do que temos visto; ou, ainda, somos, humanamente, o que temos visto. A teoria do conhecimento
baseada nessa concepção se chama "empirismo': que entende que os seres humanos nascem vasos
vazios, a serem preenchidos pelas coisas observadas. Não que isso não seja verdade; mas a questão
é que essa concepção não considera o fato de que, ao vermos as coisas, assumimos um interesse
ativo e cheio de perspectivas sobre elas. Nesse sentido, somos tanto um produto da nossa natureza
construtora de significado quanto produtos do que vemos.

li
""
li] .
· Veja: ''A oriegm do conhecimento em Locke".

A noção de design destaca o fato de que, em cada ato de percepção visual e na criação de cada
imagem mental, acrescentamos algo de nós mesmos. O artista vê aspectos de uma montanha que
quer comunicar; o frequentador da galeria, do mesmo modo, vê aspectos da pintura do artista que
considera interessantes ou atraentes.
Para desenvolver, então, a discussão que iniciamos no capítulo 8, exploraremos nesta seção como
os significados visuais são construídos, em três partes: -~
1) Designs disponíveis: designs visuais, na natureza ou construídos por pessoas, aparecem em
nossos campos perceptivos todos os dias, por meio de mensagens visuais feitas, intencionalmente
ou não, por nós ou pelos outros; usamos essas mensagens como recursos para representação
visual. Esses recursos moldam nossos modos de ver (representação visual) e nossas formas
de construir imagens (comunicação visual); criam imagens mentais para nós que influenciam
nossas visões subsequentes; ajudam a nossa visão à medida que vamos aprendendo a direcionar

258 1 LETRAMENTOS
nossa atenção de uma forma ou de outra; também nos fornecem meios, métodos, estilos,
hábitos e ordens de valor para o trabalho de design que estamos prestes a realizar.
2) Designing: quando vemos, criamos significados para nós mesmos a partir do campo da
percepção visual e do nosso repertório herdado de designs visuais rememorados. Nossa
atenção é atraída para certas coisas; nelas, atemo-nos a detalhes infinitos dentro daquilo que
é visível em um determinado campo visual. Nossa atenção vagueia, de uma coisa para outra,
em um caminho de navegação visual que, mais ou menos conscientemente, criamos, ao
posicionarmos nossos olhos e corpos. Quando vemos, projetamos nossos significados de tal
forma que não existem duas pessoas que possam ver as mesmas coisas da mesma maneira.
Cada imagem perceptiva é, por isso e até certo ponto, um produto único da nossa agência
no processo de designing.

Assim, uma vez que não estamos mais no local onde as imagens perceptuais são geradas, nossas
imagens mentais permanecem, o que acrescenta outra camada de agência à seletividade da percepção
original: a seletividade daquilo que lembramos ou a reformulação dessas lembranças, à medida que
repensamos o que vimos, ou mesmo a imaginação que criamos, à medida que recombinamos
recursos de significado para imaginar coisas que sabemos, não correspondem exatamente àquilo
que vimos anteriormente (percepção original). Isso pode se constituir em novas visões de mundos
possíveis, ou seja, recursos visuais que usamos para representação, construindo significados
transformadores para nós mesmos, assim como podemos aplicar esses significados para nós mesmos
no design de novas imagens. É também desse modo que as imagens mentais transformam ainda
mais o mundo percebido e aquele que o percebe.

li
[!] .
·.• Veja: "Introdução do livro Percepção e imaginação, de Silvia Faustino de Assis Saes".

Quando, na existência corporal humana, o significado como design se inicia? Bebês podem ver
logo que suas imagens do mundo estão sob seu controle voluntário, quando já se tornam agentes
de significado, bem antes de ler, escrever, ou mesmo falar; os bebês também aprendem a ser designers
de significado quando enxergam; a língua, então, acrescenta novas camadas a essa experiência
cognitiva inicial, essa primeira experiência de si mesmos como criadores de significado. Por exemplo,
eles conhecem seus cuidadores, a visão da comida e os efeitos visíveis de pegar objetos.
Não que nossas percepções e imagens
sejam estáveis ou que não precisem ser
ajustadas, pois, quando vemos o mundo,
é sempre um "ver" provisório. À medida
que "vemos" mais, podemos querer rever
nossas percepções; à medida que refleti-
mos mais sobre nossas imagens mentais,
podemos querer revisar nossas memórias
do que pensávamos ter visto. Será que nos-
sas percepções anteriores, com reflexão
cuidadosa ou revisão, nos serviram tão
bem quanto poderiam? Fomos influen-
ciados por imagens mentais de nossa ex - Figura 11.6: Construção de significado visual.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS 1 259


periência de vida de tal maneira que não vimos coisas que, em uma observação mais próxima,
poderíamos ter desejado ver desde o começo, mas que foram inicialmente perdidas? Nossa imagi-
nação produziu ilusões que provaram ser delírios? As imagens feitas pelo ser humano que encon-
tramos são distorcidas para servir ao interesse do comunicador visual? Quais recursos visuais
produzem efeitos sobre quais públicos-alvo? A revisão de nossas percepções ou imagens mentais
pode ser justificada? Esse processo de ajustamento é a base da aprendizagem, da realização de
mudanças nos significados que havíamos construído anteriormente, ou de complemento desses
significados, conforme nos pareça necessário.

3) (Re)designed: Nesse momento, então, a experiência visual e a imaginação são reinseridas no


mundo. As transformações da percepção e da imagem mental encontram o caminho para as
imagens que construímos. Percepção e imagens mentais (representações visuais) resultaram
na criação de objetos que entram novamente no mundo do significado quando aparecem no
campo perceptivo dos outros (comunicações visuais), que, por sua vez, se transformam em
objetos de interpretação, deixando imagens mentais que se tornam recursos disponíveis para
a criação de novos significados visuais. Em cada ato de criação de significado visual, o mundo
é, portanto, alterado. Essas mudanças são o material com o qual lidamos no ensino e na
aprendizagem.

Design visual na sala de aula


I
Segundo Gunther Kress, 13 crianças aprendem f

a desenhar antes de escrever, e a escrita é uma


espécie de desenho. Os primeiros designs de sig-
nificado das crianças em uma página são ima-
gens e, então, progridem para a escrita, uma ~ -
transição que é suportada pela imagem justa-
i
posta à escrita.
A língua escrita e a imagem são duas formas
de representação visual que se podem reforçar
mutuamente para comunicar mensagens, emo-
ções ou ideias. À medida que as crianças apren- Figura 11.7: "Mama, papa e eu" ("Mama, dada and me'l
Desenho de uma criança de 2 anos de idade.
dem a construir sentido por meio da escrita e
das imagens, elas precisam entender: a) como os elementos visuais criam significado em combi-
nação com a língua; b) como os significados visuais e verbais interagem para se complementarem
em um texto; e c) como palavras e imagens podem ser justapostas para contradizer, dáafiar ou
subverter umas às outras.
Muitos currículos em todo o mundo incluem a interpretação de imagens em um conceito mais
amplo de letramento, que se estende à leitura, à visualização e à composição de textos multimodais.
·Na Base ~acional Curricular Comum (BNCC), por exemplo, destaca-se que a leitura deve lidar
não somente com o "texto escrito, mas também com imagens estáticas (foto, pintura, desenho,

13 Kress, 1997.

260 1 LETRAMENTOS
esquema, gráfico, diagrama) ou em movimento (filmes, vídeos etc.) e com o som (música), que
acompanha e cossignifica em muitos gêneros digitais". 14
A seguir, daremos dois exemplos de salas de aula em que o conhecimento do modo visual é
aplicado ao design da escrita e de imagens no letramento escolar.
No primeiro, a professora Mary Brennan está trabalhando com 25 alunos do 1Q ano do ensino
fundamental, que estão lidando com a construção de significados imagéticos e escritos sobre uma
questão relacionada à sua comunidade local. Mary reúne as crianças ao seu redor, mostra a primeira
página de um jornal e diz: "O olhar da Vovó Ruth é de tristeza; ela está prestes a perder sua casa
para um novo empreendimento na área".
Esse é um design para construção de significado que ela traz para a sala de aula como um "recurso
disponível" para a aprendizagem posterior dos alunos. "Ela parece muito velha e triste", diz um
aluno. Um outro comenta: "Talvez ela precise de ajuda. A pessoa que tirou essa foto queria que as
pessoas a ajudassem, então ela estava olhando para nós, querendo que a gente fale com ela".
Podemos notar nesse exemplo um outro recurso disponível poderoso: os significados visuais
que as crianças trazem para a turma para apoiar sua compreensão de que a imagem representa
alguém "velho' e "triste': trazendo também uma interpretação sobre o tipo de interação comunicativa
com o público do jornal sugerido pela maneira como a foto projetou a imagem. Nesse sentido, as
crianças não estão apenas lendo uma reportagem na primeira página de um jornal, mas estão
também lendo a imag-em definidora da história e os interesses do fotógrafo em enquadrar a imagem
da maneira que o fez; elas estão lendo os significados gestuais na apresentação corporal da "Vovó
Ruth'' na imagem. Em outras palavras, estão trazendo consigo designs para a construção de
significados visuais baseados em sua compreensão anterior de imagens e nos significados que
criaram em suas experiências visuais do/com o mundo real.
A professora Mary, então, continua seu questionamento: "Por que vocês acham que o fotógrafo
escolheu essa imagem em particular? Por que vocês acham que essa foto está na primeira página do
jornal agora, em dezembro, pouco antes das férias?".
Esse é o começo de uma sequência de atividades que conectam a turma com a jornalista que
escreveu a matéria para o jornal e com as autoridades do governo local.
As crianças, então, pesquisam no Google, entram em várias páginas da internet e, com isso,
imergem em uma linguagem híbrida, que envolve imagem e texto escrito, à medida que se aprofundam
em mais recursos para construir significado por meio da internet. Isso as prepara para criar imagens
multimodais próprias, desenhadas e digitadas no computador, bem como vozes de apoio para a
Vovó Ruth. Desse modo, as crianças fazem a transição da imersão em designs disponíveis para o
processo de designing, conforme mostramos a seguir.
"Nós amamos Vovó Ruth e nos importamos com ela': foi a mensagem de Kenny. Lizzy diz: "Vovó
Ruth deveria ter uma escolha!': A professora Mary, então, insere todas as imagens em uma apresentação
em PowerPoint e as envia para o jornal. Pouco tempo depois, a jornalista responsáveli'iela matéria
escreve de volta, dizendo aos alunos o quanto a Vovó Ruth ficou comovida e grata em receber apoio
tão maravilhoso das crianças e das outras pessoas que escreveram para ela. Nessa parte, os designs
das crianças entram, portanto, no mundo do redesigned: significados visuais e escritos que são
produzidos para o mundo e que podem influenciar significados subsequentes no mundo. A jornalista

14 Brasil, 2018, p. 72.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS 1 261


promete que enviará um e-mail à professora Mary quando a próxima matéria for publicada, após
a audiência que está marcada para dali a algumas semanas. 1 5
Em outra parte do planeta, em sala de aula de escola de educação infantil (crianças de 4 a 6
anos de idade) em Valos, na Grécia, uma turma está criando um texto multimodal sobre
conscientização de uso da água. Os alunos observam uma matéria de jornal e um folheto sobre
conservação de água, distribuído pela empresa local de abastecimento de água. Esses são os recursos
disponíveis para o significado. À medida que o trabalho de designing dos alunos começa, eles
combinam vários modos de significado para criar pôsteres, incluindo desenhos, fotografias, palavras
escritas à mão e palavras digitadas e recortadas de jornais e revistas.
A seguir, apresentaremos alguns dos cartazes que eles produziram, expressando entendimentos
visualmente complexos. O primeiro emotivamente opõe a presença ou a ausência da água, justapondo
dois painéis que descrevem cada cenário (representado na Figura 11.8); o segundo mostra maneiras
pelas quais a água pode ser economizada; o terceiro é um cartaz informativo sobre os usos da água.
Com isso, as crianças mostram que são capazes de ler e escrever símbolos, gráficos, logotipos e mapas.
Os principais motivos são a "águà', codificada em azul, e a "vidà', codificada em verde. Os alunos,
então, inserem um rótulo à imagem com o texto de maneira informativa, criando textos multimodais
completos e complexos, notavelmente sofisticados em seu conteúdo e na manipulação de meios
comunicativos para crianças que ainda não escrevem textos convencionais. Os trabalhos finalizados
entram no mundo, então, como o redesigned, e são afixados nas paredes da sala de aula. 16
Esses são apenas dois exemplos de salas de aula onde os designs de escrita e imagens são reunidos
no processo de aprendizagem dos letramentos. Para recapitularmos:

• Os alunos são expostos a "designs disponíveis" na forma de significados escritos e imagéticos.


• Eles se engajam no designing ao criar seus próprios significados visuais e escritos.
• E os produtos de suas experiências de aprendizagem são textos multimodais redesigned, que
passam, então, a entrar no mundo de significados experienciados pelo aprendiz.

XOPII:
30 NHn IAfnrEJo ZOH
BOJ\OY

Figura 11.8: Cartaz sobre conservação da água de uma escola de educação infantil (crianças de 4 a 6 anos de idade).

15 Crafton; Brennan & Silvers, 2007.


16 Papadopoulou & Christidou, 2004, p. 926.

262 j LETRAMENTOS
Análise do design visual
Construindo significado visual

Os significados visuais não apenas são um dos primeiros designs de significado que com-
preendemos quando representamos o mundo para nós mesmos e começamos a nos comunicar,
mas estão também intimamente ligados aos modos tátil e gestual. Isso porque só podemos
apreender o espaço através de imagens perceptuais, que se constituem sempre e inevitavelmen-
te multimodalmente.
Ler e escrever também são experiências visuais, embora, como práticas cognitivas de repre-
sentação e de comunicação, sejam bastante diferentes do modo de construção de significado por
meio de imagens. No entanto, na medida em que as fontes de leitura e escrita são imagens, a
língua frequentemente se torna algo muito parecido com uma imagem. Temos uma escrita mui-
to semelhante a uma imagem, por exemplo, em descrições de palavras que tentam, de alguma
forma, retratar algo que é visto. As metáforas, que são um modo de descrever uma coisa da
maneira como esta se parece com outra coisa,
do mesmo modo, produzem essa semelhança
com a imagem. Em "Jorge tem uma montanha
de trabalho", emprega-se uma metáfora visual
para evocar a enormidade das tarefas que
Jorge tem diante de si. Podemos, assim, dizer
que as metáforas englobam significados mul-
tifacetados em uma palavra ou sintagma que
representa uma imagem mental; embora as
metáforas nunca sejam exatamente como a
imagem perceptual ou a imagem mental, fa-
zem o melhor que podem por meio de pala-
vras para criar uma imagem mental equiva-
lente, constituindo local conveniente para a
sinestesia, ou alternância de um modo de
significado para outro.
Como, então, os significados são cons-
Figura 11.9: Criança pequena desenhando.
truídos nas comunicações visuais? Quais são
os blocos de construção do significado visual? Em certo sentido, eles são os mesmos que os
blocos de construção de todos os outros modos de significado, pois os significados que podem
ser construídos na língua escrita ou oral também podem ser realizados em imagens. N~entanto,
as maneiras como são construídos são fundamentalmente diferentes - de fato, tão diferentes que
os significados visuais, apenas muito superficialmente, podem ser comparados com os signifi-
cados linguísticos e com outros significados.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS i 263


Caminhos para a sinestesia: Fazendo conexões entre o visual e
outros modos de significado
Trazendo a imagem e outros significados para a sala de aula dos letramentos

Em uma pesquisa sobre o uso de tecnologias da informação e da comunicação para apoiar a


aprendizagem dos multiletramentos na educação infantil, Harrison, Lee, O'Rourke e Yelland 17
relatam que as abordagens da primeira infância que focalizam leitura e escrita com foco estrito na
alfabetização tendem a se concentrar nas necessidades e nos déficits individuais das crianças e, não
em seus pontos fortes. Por outro lado, uma abordagem que busca equilibrar leitura e escrita com
teatro, dança, artes visuais e acesso a uma gama de tecnologias digitais tende a ver as crianças como
curiosas, criativas, capazes e multiletradas, com muitas experiências e habilidades existentes que
poderiam ser mais ampliadas no contexto escolar. Um exemplo disso é o de Rachel, uma professora
de educação infantil, que relata à pesquisadora Anne Cloonan a facilidade dos alunos mais jovens
para operar de forma multimodal e sinestésica:

Percebi que fiz suposições sobre o aprendizado das crianças. Percebi que existem camadas muito mais
profundas para o aiyendizado, [como] estar ciente antes dos letramentos visuais[ ... ] Descobri que posso
olhar para a aprendizagem em um nível muito mais profundo, e eu nunca teria trabalhado em detalhes
sobre imagens nesse nível antes, eu nunca teria sonhado em fazer algo assim com crianças da educação
infantil, e o que realmente me impressionou é que essa faixa etária de crianças é mais capaz de aceitar
isso do que algumas das crianças com quem trabalho em outras áreas da escola. Trabalhei com um grupo
de apoio à alfabetização do 3º e do 42 ano e tentei usar as mesmas ideias, e é mais difícil para eles aceitarem.
Eles realmente têm que desaprender a focar no letramento alfabético e aprender que é bom usar todos
os outros [modos] que estão lá para apoiá-los no significado[ ...] A linguagem e a compreensão dos alunos
da educação infantil são muito mais profundas ou eles estão muito mais dispostos a usar essa [metalinguagem]
ou demonstrar [sua expressão multimodal]. 18
l!I
Veja: "Multimodalidade".

Passando para o 4Q ensino fundamental I, Hassett e Curwood' 9 descrevem a prática da


aprendizagem multimodal usando o livro ilustrado Arnie the Donut. O professor faz com que os
alunos analisem as maneiras pelas quais os significados das palavras são expressos através da
composição, a forma como as imagens apresentam significados que estão no texto - e às vezes não
no texto -, bem como as múltiplas perspectivas criadas com balões de conversa e comentários do
autor. Usando essas ideias, cada membro da turma cria uma página sobre sua comida favorita para
um livro da equipe. ...Jt
Enquanto isso, em sua turma em Cingapura, Alicia º analisa folhetos e vídeos turísticos,
2

promovendo a cidade com um olhar crítico para o design visual. Alicia, então pergunta: "Por que
os edifícios comerciais estão em primeiro plano nas imagens, e não os prédios públicos?".

17 Harrlson et. ai., 2009.


18 Cloonan,2010a, pp.173-174.
19 Hassett & Scott Curwood, 2009.
20 Tan; Bopry & Guo, 2010.

264 1 LETRAMENTOS
Na Noruega, Erstad, Gilje e de Lange descrevem as maneiras pelas quais crianças de duas
21

escolas norueguesas remixam imagens e textos escritos baixados da internet.


Na Austrália, alunos do 1 2 ano do ensino fundamental usam uma lente de aumento e um
microscópio digital para observar o ciclo de vida das galinhas. Eles salvam as imagens projetadas
e registram um comentário on-line na plataforma VoiceThread para acompanhar seu registro visual
dos pintinhos em desenvolvimento. 22
Por fim, no Brasil, alunos do 52 ano do ensino fundamental de uma escola municipal de Campinas
(SP) se engajam em práticas de remix, ao produzirem, em sala de aula, animações sobre "alimentação

.
saudável" e "sistema digestivo", conteúdo previsto no currículo da escola, por meio do uso do
software Scratch. 23


- º[!]·.• Veja: "O uso do software Scratch na escola pública: Discussão da noção de autoria e remixagem
r-i . na contemporaneidade". ·
~ .o:

Esses são alguns exemplos de diferentes salas de aula onde os professores estão trabalhando
com seus alunos letramentos multimodais; além de trabalharem com a multimodalidade, é também
importante que os alunos possam descrever, por meio de uma metalinguagem, os elementos do
design visual com os quais estão lidando, para que possam construir significado visual; 24 é interessante,
ainda, que possam, por meio de palavras, descrever as relações entre escrita e som do texto (o
"princípio alfabético") e o modo como frases e textos inteiros são estruturados para produzir um
significado escrito.

Paralelos e diferenças entre ovisual e outros modos

Modos diferentes de significado são capazes de se referir aos mesmos tipos de coisas, porém os
potenciais representacionais e comunicativos de cada modo são únicos em si mesmos. Em outras
palavras, entre os vários modos, existem não apenas paralelos poderosos que permitem a tradução
de significados de um modo para outro (descrevendo uma cena em palavras, ou pintando uma
imagem da mesma cena, por exemplo), mas também diferenças que são tão profundas que os
significados nunca podem ser considerados os mesmos (há sempre algo diferente sobre a descrição
por meio de palavras e da pintura, isto é, sempre se aprende algo que não é dito em um modo
quando se vê o mesmo significado representado de outro modo).
Quanto aos paralelos, uma gramática do visual pode explicar as maneiras pelas quais as imagens
funcionam como língua escrita; por exemplo:

• ações expressas por verbos em orações podem ser expressas por vetores em imagefí.s;
• as preposições locativas ("próximo", "atrás") funcionam como primeiro plano ou plano de
fundo em imagens;

21 Erstad; Gilje & de Lange, 2007.


22 Walsh, 2010.
23 Pinheiro & Ricarte, 2014.
24 Cloonan, 2011.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS j 265


• adjetivos comparativos ("maior", "mais brilhante") são como tamanho e justaposição em
imagens;
• o "dado" e o "novo" em estruturas oracionais são como posicionamento à esquerda/à direita
em imagens (ou, pelo menos, nas culturas em que a leitura, a escrita e a visualização ocorrem
da esquerda para a direita).2 5

As crianças têm capacidades sinestésicas naturais, e, em vez de construí-las e ampliá-las, a


abordagem didática, por focalizar o letramento tradicional, tenta separá-las de várias maneiras, até
mesmo por meio da criação de disciplinas diferentes - leitura em um horário de aula e arte em
outro.26 Ao contrário disso, é importante para o processo de aprendizagem que os modos de
significado visual e escrito sejam construídos de forma paralela.
Por outro lado, esses modos são irredutível e prestativamente diferentes, uma vez que a imagem
nunca transmite o mesmo conjunto de informações do texto escrito e vice-versa. Nesse sentido, os
paralelos entre a imagem e a escrita tornam a sinestesia possível, enquanto as diferenças a tornam
necessária, já que o significado expresso em um modo não pode ser direta ou completamente
traduzido para outro (por exemplo, um filme nunca pode ser igual ao romance escrito). Assim, o
paralelismo permite que as mesmas coisas possam ser descritas de modos diferentes, mas o significado
nunca é o mesmo.
Com efeito, algumas das diferenças entre os modos são fundamentais. A escrita (ao longo da
linha, frase por frase, parágrafo a parágrafo, uma página após a outra) sequencia os elementos de
um significado no tempo. Ao longo de uma linha, o tipo mais comum de significado escrito tende
a seguir o padrão: "primeiro isso': "então aquilo", e, "finalmente, isso". Nessa lógica, a escrita costuma
favorecer gêneros como o relato e o conto, por exemplo. No entanto, a imagem estática posiciona
os elementos de acordo com a lógica do espaço simultâneo, favorecendo, assim, gêneros de exibição
informacional, como um mapa, por exemplo. Por isso, a temporalidade intrínseca da escrita - sua
ordenação de significado em sequências de tempo - orienta-a para a causalidade ("isso leva a isso"),
enquanto a imagem estática, ao contrário, orienta-a para o local (por exemplo, cenas e mapas).
Contudo, isso nã9 quer dizer que a escrita não possa descrever o espaço em um determinado
momento simultâneo, nem que a imagem não possa indicar tempo e causalidade. A questão é que,
muitas vezes, podemos preferir um diagrama a uma descrição por escrito, porque aquele transmite
um significado sobre o espaço de maneira mais eficaz, ou podemos optar por um relato por escrito,
pois este transmite um significado sobre o tempo de forma mais eficaz. Por exemplo, quando
estamos relatando um experimento científico, podemos, em teoria, dizer tudo o que precisamos
por meio de imagens, como diagramas e fotografias do experimento, ou por meio de texto escrito,
como uma explicação científica. No entanto, usamos uma mistura complementar de imagem
(diagrama e fotografias) para representar as relações espaciais dos componentes do experimento
(instrumentos e materiais envolvidos), bem como palavras para descrever a sequência de atfvidades,
causalidade e efeitos.
Um outro exemplo: seria absurdo e provavelmente impossível colocarmos todas as informações
espaciais de um mapa em palavras, mas a narrativa de direções sequenciada no tempo, como ir do
·ponto A ao ponto B, pode funcionar bem. Essa narrativa nos diz menos que um mapa, mas nos

25 Kress, 2000b.
26 Caughlan, 2008.

266 1 LETRAMENTOS
informa o suficiente para que sejamos capazes de ir de A para B. Porém, direções e mapas tornam
as coisas ainda mais claras, porque podem complementar um modo de significado com outro: um
mapa representa o espaço; as direções, por sua vez, acontecem no tempo. Se colocamos as duas
coisas juntas, podemos, então, visualizar aonde estamos indo, conforme andamos.
Assim, por um lado, existem paralelos profundos entre os modos de significação - tão profundos,
de fato, que quase tudo que pode ser dito em um modo também pode ser dito em outro. No entanto,
modos diferentes possibilitam escolhas mais práticas e úteis para a construção de significado em
diferentes circunstâncias, ou seja, alguns modos são mais oportunos para significar alguns tipos
de coisas, em alguns momentos, do que outros modos.
A língua escrita, por exemplo, está aberta a uma ampla gama de possíveis visualizações em
palavras ou a uma rica descrição de cenas. Na leitura, no entanto, somos levados por uma linha
em que o criador de significado nos diz o que ver em nossa imagem mental de uma cena e na ordem
em que a apresenta. Se, finalmente, vemos uma imai em que já nos foi descrita anteriormente em
palavras, o significado anterior é, então, preenchido com toda uma gama de significados visuais
adicionais que nenhuma quantidade de palavras poderia ter evocado em nossa mente. Os elementos
visuais que comunicam a mesma cena, pelo contrário, exigem diferentes processos cognitivos ou
de pensamento. Nesse caso, o ônus é colocado no espectador para criar ordem (tempo, causa,
propósito, efeito), organizando elementos que são perceptivelmente completos, a partir do momento
em que ele (espectactor) começa a olhar para a imagem.2 7
Em outras palavras, ler um texto escrito e visualizar uma imagem requerem diferentes tipos de
interpretação, que, por sua vez, exigem formas distintas de esforço transformacional e tipos diferentes
de processos psicológicos, na medida em que representamos os significados para nós mesmos em
nossas mentes. São formas fundamentalmente diferentes de conhecer e aprender o mundo - conhecer
e aprender o mesmo mundo, mas de maneiras diversas e complementares de significado.
Os paralelos entre os modos de significado são a razão pela qual podemos descrever uma imagem
em palavras ou transformar um romance em um filme ou um plano em um edifício. Essa mistura
paradoxal de paralelismo entre imagem e texto escrito (elementos comuns do design) e a
incomensurabilidade (elementos únicos do design, que fazem com que imagem e texto nunca
possam transmitir exatamente a mesma informação da mesma maneira) entre modos de significado
são a base da pedagogia dos multiletramentos, a qual entende que letramentos multimodais
contribuem para uma aprendizagem poderosa de diversas maneiras. Uma delas é o fato de que
alguns alunos podem se sentir mais confortáveis ao lidar com um modo do que com outro. Esse
pode ser seu modo preferido de representação e comunicação (o que consideram mais fácil e, por
isso, o modo pelo qual melhor expressam o mundo para si mesmos e de si mesmos para o mundo).
Uma pessoa pode preferir conceber um projeto como uma lista de instruções, enquanto outra prevê
um diagrama de fluxo. Nesse sentido, o paralelismo significa que podemos fazer muito das mesmas
coisas em um modo por meio de um outro modo. .-.f
Assim, mesmo que o ponto de partida para o significado esteja em seu modo preferido, o aprendiz
pode estender seu repertório representativo, alternando esse modo com um menos favorável, mas
igualmente útil. Nesse caso, por exemplo, se as palavras não fizerem sentido, é possível usar o
diagrama, o que, por sua vez, pode fazer com que elas comecem a fazer sentido. Podemos, então,
fazer com que o paralelismo (elementos comuns do design) funcione para ajudar na aprendizagem,

27 Kress, 2003.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAIS / 267


assim como a incomensurabilidade (elementos únicos do design) dos modos pode também funcionar
para nós pedagogicamente. As palavras fazem sentido porque a imagem transmite o significado de
uma forma que estas nunca poderiam fazer (completamente ou de maneira satisfatória). Nesse
sentido, a memória e o processo de aprendizagem são reforçados quando se passa do modo visual
para o oral e o escrito, o que, feito de maneira consciente, contribui para uma aprendizagem mais
relevante.

Significados no modo escrito Significados no modo visual

Ler ou escrever ao longo da linha, uma coisa depois da outra Ver a foto como um todo, tudo de uma vez

O leitor segue o escritor O espectador olha através da imagem à sua maneira, começan-
do com o que primeiro capta a sua atenção

Particularmente adequado para representar tempo e conexões Particularmente adequado para representar o espaço em um
causais momento no tempo
Quadro 11.3: Significados nos modos escrito e visual comparados.

Aprendizagem "sinestésica": Exemplos de sala de aula

Callow descreve as ma.Jleiras pelas quais estudantes analisam materiais promocionais de políticos.
Esse é um outro caso em que o design visual se encontra com o gestual, por meio da classificação
de fotos em

categorias como amigáveis/não amigáveis, confiáveis/não confiáveis; classificação de acordo com o objetivo
para o qual podem ser utilizadas, por exemplo, para um anúncio de moda, um livro sobre informações
turísticas ou fotos de férias em família; visualizar e ordenar imagens de acordo com o uso de ângulos,
para criar relações de poder, e distância da câmera, para sugerir intimidade ou distanciamento. 28

Os alunos, então, aplicam essas habilidades analíticas para desconstruir um "panfleto político,
anotando várias características como título, tipo de fotos, tipo de informação incluída, bem como
o tipo de textos escritos que foram incluídos, como depoimentos". 29
Finalmente, eles criam seu próprio panfleto, como se estivessem concorrendo ao cargo de agentes
ambientais de sua escola. Callow pergunta a uma estudante, Joanne, sobre o tipo de imagens que
as pessoas usam em várias situações de design:

Joanne: Bem, isso depende do caráter das pessoas e de como elas se parecem. Se ela fosse, tipo, uma boa
pessoa, escolheria uma tomada [de câmera] amigável, e se ela quisesse parecer dominante e poderosa,
colocaria uma tomada em close up ou uma tomada à meia distância parecendo poderosa .
..,Jt
Pesquisador: E se ela não fosse uma pessoa muito legal, você acha que colocaria algumas fotos desagradáveis?
Joanne: Não, eles querem apelar para você.
Pesquisador: Ok, então mesmo que ela não fosse uma boa pessoa, eles provavelmente usariam que tipos de
tomadas?
Joanne: Eles provavelmente tentariam colocar fotos amigáveis ou, se não pudessem, fotos poderosas.

28 Callow, 2006, p. 16.


29 Idem, ibidem.

268 1 LETRAMENTOS
Pesquisador: Por que eles colocariam fotos amigáveis? Estão tentando fazer o quê?
Joanne: Eles estão tentando atrair você e persuadi-lo a votar neles. 30

Mary Neville descreve o ambiente em outra sala de aula, ao fazer uso de contação de histórias.
)unto com um produtor de vídeo visitante, a professora da turma transformou uma parte da sua
· ciplina de leitura em uma "casa de produção de filmes':

[Eles] transformaram ... o ambiente da sala de aula e o seu arranjo de tradicional, com carteiras, cadernos
de exercícios e um quadro-negro [... ] A sala de aula não mais parecia moldar a aprendizagem; em vez
disso, textos multimodais davam a impressão de moldar um "espaço verde" na sala de aula, onde mesas
e quadro-negro eram irrelevantes e outros locais "abertos" para discussão e equipamento de filmagem
passaram a ser usados para a inovação criativa. "Meus alunos e eu adoramos estar envolvidos neste projeto"
[disse a professora]. Isso lhes deu um contexto no qual se engajar, intelectualmente, com algum pensamento
de ordem realmente superior. Isso lhes deu um senso de propósito e foco - uma maneira de canalizar
seus esforços intelectuais colaborativos em uma única e bastante complexa intenção. Foi estimulante para
todos nós, não apenas por causa da natureza do conteúdo, mas também porque exigia novas habilidades
e competências. É difícil colocar tudo isso em palavras - você tem que estar lá e ouvir suas conversas e
apreciar a complexidade de como essas crianças de 11 e 12 anos estavam pensando e se comportando ...
Os dados sugerem que a eficácia pedagógica [da sala de aula dessa professora] estava relacionada ao
aumento de oportunidades cognitivas e transformacionais para os alunos ligados à inclusão de um vídeo
"casa de produção" [com] foco no mundo real da produção de filmes ... Uma concentração pedagógica
no "como" da produção de textos multimodais proporcionou aos alunos conhecimento "interno''. Essa
concentração pedagógica tinha ligações com os professores, conhecendo o discurso das práticas sociais
em torno da multimodalidade.31

Como último exemplo de um projeto bem-sucedido em sala de aula, Bruno Cuter Albanese 32
lliscute o fato de que, embora ainda importante, o texto impresso deixou de ser a única e principal
fonte de interação e construção de conhecimento, o que traz impactos nas práticas de letramentos
essárias para que os alunos possam exercer sua cidadania na contemporaneidade. No entanto,
no ensino de literatura, em geral, essas práticas ainda não são discutidas. Nesse contexto, o autor
resenta, com base na perspectiva dos multiletramentos, um projeto de inserção do cinema nas
suas aulas de literatura, chamado "Cinema Literário", em uma turma de 9º ano do ensino fundamental
~I, de uma escola da região de Campinas.
Nesse projeto de ensino, os alunos, depois de lerem o romance Senhora, de José de Alencar,
eriam produzir um curta-metragem homônimo. Para a produção do curta, Albanese, então,
nvolveu três grandes oficinas para trabalhar a linguagem cinematográfica: a primeira foi sobre a
tscrita do roteiro; a segunda, sobre os elementos não específicos do cinema utilizados na construção
de sentidos, como iluminação, vestuário, uso de cores, desempenho dos atores, cenáráo e fenômenos
IJ()noros; a terceira e última oficina explorou o trabalho com elementos específicos do cinema, como:
t'ano (enquadramento de personagens na cena e seus efeitos de sentido); ângulos de filmagem (uso
de diferentes ângulos de filmagem e as relações estabelecidas através deles entre personagens e plateia);
e movimentos de câmera (as formas como a câmera _ se movimenta para criar a ação da cena).

30 Idem, p. 20.
1 Neville, 2008, pp. 88-89.
32 Albanese, 2017.

CONSTRUINDO SIGNIFICADO SVI SUAIS / 269


Ao analisar as transformações gerais que os alunos fizeram entre a obra e o curta, por meio da
construção detalhada de pequenas cenas, Albanese destaca o empenho deles em transformar uma
obra complexa como Senhora, que usa e abusa dos recursos da palavra, em um curta-metragem,
que também usa e abusa dos elementos cinematográficos. Os alunos não transformaram o romance
em um diálogo gravado; eles construíram um pequeno filme com base na obra de Alencar. A
diferença entre gravar os diálogos e fazer um filme está na apropriação dos elementos da linguagem
cinematográfica para construir sentidos. Como fica claro, a linguagem verbal é combinada com
outras semioses para compor uma obra multissemiótica, que se vale de diferentes semioses para
construir e explorar sentidos. Existe então o letramento da "letrà', mas existem muitos outros
letramentos envolvidos: o da imagem em movimento, o da música, o da cor, ou seja, a multiplicidade
de linguagens que deve ser explorada na pedagogia dos multiletramentos.

Sumário
• Imagens perceptuais: compreender as coisas que vemos.
• Imagens mentais: visualizar coisas que não podemos ver agora.
• O significado visual é como os significados escrito e oral:
- refere-se a pessoas e coisas;
- representa interações entre pessoas e coisas;
- é composto de maneira coerente;
- conecta-se ao seu contexto;
- tem propósitos e efeitos sociais.
• O significado visual não é como o significado escrito e oral:
- o leitor tem uma escolha mais ampla de caminhos de leitura;
- o significado é mais simultâneo/espacial do que lógico/temporal.
• Multimodalidade: o significado é sempre expresso em modos múltiplos e mistos, sobretudo na mídia digital.
• Sinestesia: a alternância de modos é uma maneira poderosa de construir sentidos sobre as coisas e de aprender.

Processos de conhecimento

Experienciando o conhecido
1. Quais são suas imagens favoritas? Escolha uma imagem que você gosta. O que lhe agrada nessa

imagem?

Analisando funcionalmente
2. Analise a imagem usando os elementos da análise do design fornecidos neste capítulo .
•,i/f"

Experienciando o novo
3. Leia sua análise do design detalhada para um colega que não tenha visto a imagem a que você
está se referindo, ou dê a ele a análise para ler. Pergunte-lhe o que imagina. Agora mostre a ele
a imagem. O quanto a imagem se assemelha ao que ele imaginou por meio de sua descrição?
O quanto ela difere? O que isso lhe diz sobre as relações entre as imagens perceptuais e as
imagens mentais e sobre até que ponto os significados nas imagens podem ser traduzidos para
a escrita e vice-versa?

270 J LETRAMENTOS
itualizando por nomeação
!onsulte a Wikipédia sobre a fisiologia e a psicologia da visão, da percepção e da imaginação.
Crie um glossário ilustrado dos termos-chave.

l:onceitualizando por teoria


Crie um mapa conceitua! ligando os termos-chave da "psicologia da percepção''.

Analisando criticamente
6. Leia o capítulo de abertura de um romance que também esteja disponível em filme ao qual você
ainda não tenha assistido. Como os significados visuais são enquadrados na língua? Quais
dispositivos textuais são usados para representar imagens em palavras? Agora assista às cenas
de abertura do filme. O que você acha surpreendente ou não surpreendente? Como os dispositivos
são diferentes? Quão diferente é o texto? Como e por que sua interpretação do significado da
narrativa no filme é semelhante ou diferente de sua interpretação do significado do romance?

7. Analise o desenho de uma criança ou um póster informativo usando os elementos dos


multiletramentos para análise do design.

Aplicando apropriadamente
8 . Elabore uma atividade de aprendizagem para alunos de determinado nível que explore o potencial
da sinestesia. Justifique sua escolha de textos. Discuta como alunos diferentes podem aprender
de maneiras diferentes enquanto trabalham com texto e imagem. Como você avaliará os resultados
da aprendizagem?

Aplicando apropriadamente
9. Crie uma imagem pessoal (ou seja, uma imagem que você mesmo projetou), usando meios
visuais ou verbo-visuais, aplicando os princípios do design visual.

10. Aplique sua compreensão acerca dos letramentos multimodais para desenvolver uma unidade
de trabalho em outra área disciplinar, como história, geografia, ciências ou matemática.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS VISUAI S 1 271


Capítu:10 12
Construindo ·significados
espaciais, táteis e gestua-is

Visão geral
Este capítulo explora três modos importantes de significado: o espacial, que é enquadrado por
forma, proximidade e movimento; o tátil, que captura nossas interações com objetos; e o gestual,
que se constitui através das expressões corporais, que vão desde movimentos das mãos e dos braços
até expressões faciais e apresentações corporais, como roupas e linguagem corporal. Esses modos
de significação estão intimamente interligados e oferecem conexões produtivas com significados
orais e escritos em ambientes de letramentos multimodais.

Aprendendo através de significados espaciais, táteis e gestuais


Em seu programa para uma turma do 42 ano do ensino fundamental, Rita van Haren, Sue
Gorman e seus colegas incluíram a leitura do livro A lanterna de Lin Yi (Lin yi's lantern), escrito
por Brenda Williams e ilustrado por Benjamin Lacombe. "A mãe de Lin Yi o mandou ir ao
mercado local para comprar comida para o 'Festival da Lua', mas o que ele realmente quer é uma
lanterna vermelha de coelho", diz a sinopse do livro. "Será que ele negocia muito bem para poder
comprar uma?" A proposta de atividade é que a turma trabalhe (redesign) o livro como uma
encenação teatral na qual os alunos irão atuar, transferindo a narrativa do modo escrito e visual
para os modos espacial (o palco), tátil (os figurinos) e gestual (a performance teatral). A narrativa
permanece a mesma nos três modos, mas a forma de comunicação é diferente. Assim, os estudantes
exploram a noção teatral e desenvolvem uma metalinguagem para descrever as características
distintivas da encenação, incluindo cenário, cenas, diálogos, gestos dramáticos, figü"finos e
performance.
· Em outra turma do 7º ano, Rita van Haren, Keteurah Gill e Kim Smith criaram uma atividade
de aprendizagem de "teatro de sombras" 1 ("shadow puppetry") com fantoches para suas aulas
de design e. tecnologia. Os alunos começam a assistir a vários videoclipes de fantoches de
sombra em vários países e culturas ("experienciando o novo"). Eles, então, analisam esses clipes

1 Sobre "teatro de sombras''. ver <https://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro_de_sombras>.


de vídeo, explorando as formas em que os gestos são representados e as ações e emoções para
as quais esses gestos são projetados (designed) para comunicar. Examinando a gramática gestual
dos fantoches mais de perto, os alunos ques~ionam aspectos relacionados a cor, incluindo linha,
forma, tom e textura ("conceitualizando por nomeação"). Em seguida, aprendem sobre os
processos envolvidos na produção dos fantoches de sombra ("analisando funcionalmente").
Finalmente, cada aluno faz seu próprio fantoche ("aplicando apropriadamente") e grupos de
alunos escrevem e performam peças teatrais nas quais seus fantoches são usados ("aplicando
criativamente").

Significados espaciais

Os significados de espaços e fluxos


Nossos significados espaciais são moldados nos lugares que habitamos, reais Significado espacial: Amaneira
e virtuais, na maneira como nos movemos e no que fazemos neles. Vemos o como os significados são moldados
por estruturas e paisagens, bem
espaço e também sentimos e manipulamos objetos nele, de modo que os
como os fluxos ou padrões de
significados espaciais estão intimamente ligados aos significados visual e tátil. movimento humano através desses
Vivemos, movemo-nos e fazemos coisas no espaço. Tudo isso é episódico - espaços.
acontece no tempo e em sequências espacialmente enquadradas - e influenciado pela maneira
como os espaços foram projetados pelas pessoas ou, no caso dos espaços naturais, pelo significado
que atribuímos ao espaço, como a beleza natural ou o interesse científico.

Referência . Como os espaços particulares foram apresentados, em plano ou em tamanho real (por
(A que os significados se referem?) exemplo, arestas, limites, volumes, características topográficas de um edifício ou paisagem)?
Como o movimento ou o posicionamento das pessoas é influenciado pelo espaço (por
exemplo, fluxos, lugares momentaneamente estáticos)?
• Como a localização é referida (por exemplo, posicionamento, proximidade/distância)?
• Como o tempo é referido (por exemplo, transposições de tempo/espaço, como uma ca-
minhada de cinco minutos, uma viagem de um dia)?
Como as coisas estão posicionadas no espaço (por exemplo, uma imagem na parede, um
ícone em uma tela)?
Como os elementos abstratos ou os conceitos gerais foram definidos (por exemplo, sím-
bolos usados em planos ou para ajudar a navegar pelo espaço)?
. Como as características do espaço são definidas (por exemplo, quantidades e qualidades
de tamanho ou escala, continuidade/repetição, mais/menos)?
Como as relações espaciais são definidas (por exemplo, parte/todo, posse, junção/não
adesão, mesmice/contraste)?

Diálogo . Como os elementos espaciais estão relacionados (convenções de frente/verso, pontos de


(Como os significados conectam entrada/pontos de destino, visão externa/interna)? .,;,/t
as pessoas que estão Como as conexões entre pessoas, espaços e objetos são configuradas (por exemplo, nível
interagindo?) do solo, níveis de andares de um prédio)?
Como o movimento é antecipado e direcionado (por exemplo, caminhos de navegação
em passagens, estradas, linhas de trem, rotas de voo)?
. Como o usuário está posicionado (por exemplo, o ponto de vista construído para o espec-
tador, perspectiva, grau de distanciamento/envolvimento)?

274 1 LETRAMENTOS
Estrutura . Como os elementos espaciais estão organizados (por exemplo, em todo espaço arquite-
(Como os significados, em geral, tônico ou paisagem, onde um espaço termina e outro começa, como os espaços são
se mantêm coesos?) projetados para se manterem juntos ou como eles são coerentes)?
. Como o espaço é seccionado (por exemplo, esquerda<-> direita; acima<-> abaixo, centro
<-> margem)?
O que o espaço indica (por exemplo, aspectos ou funções proeminentes/ocultos)?
. Como o espaço forma um todo integrado?
. Como os múltiplos espaços estão encadeados (por exemplo, quartos em um prédio, edi-
fícios em uma paisagem urbana, cidades em uma paisagem)?
. Como o espaço é definido por seus meios (por exemplo, materiais de construção)?
Situação . Qual é a localização do espaço? Como isso aponta para o seu entorno e este aponta para
(Como os significados são a sua localização (por exemplo, configurações assumidas ou mencionadas que estão além
moldados pelo contexto?) do espaço, como uma árvore em uma paisagem urbana comparada a uma árvore em uma
floresta)?
. Como o espaço integra ou diferencia suas partes internas e externas (por exemplo, quen-
te/frio, claro/escuro, aberto/seguro, publicidade/privacidade, dividido/aberto)?
O que o espaço assume sobre o campo de movimento de seus usuários (por exemplo, as
expectativas funcionais ou estéticas que podem trazer para o espaço, ou as restrições
espaciais por papel social, como em prisões e bancos)?
Que referências o espaço constrói (por exemplo, metáforas espaciais, como "essa loja de
luxo é como a casa de um rico': ou os muros ao redor de prisões)?
Que semelhanças e diferenças na composição geral o espaço tem com outros espaços e
tradições de criação de espaço (por exemplo, design, tipos de construção, formas de pai-
sagem)?

Intenção Como o espaço é estruturado em torno de certas prioridades (por exemplo, habitação
(A que interesses esses versus transporte)?
significados servem?) . Como o espaço é configurado seletivamente para apoiar uma posição ou afirmar um papel
ou postura (por exemplo, o visível/o oculto, o público/o privado, o bloqueável/o desblo-
queável, sua presença/ausência, primeiro plano/plano de fundo, caminhos de navegação
sugestivos, como o espaço é projetado para determinadas práticas sociais)?
. Que interesses o espaço apoia (por exemplo, um shopping em comparação a um parque)?
. Que gama de alternativas de ação o espaço sugere para o usuário (por exemplo, a partir
do posicionamento de diferentes tipos de usuários, como cozinheiros, garçons e clientes
em um restaurante)?
Quadro 12.1: Uma gramática do significado espacial.

Espaços diferentes são projetados para fazer coisas diferentes - por exemplo, casas, escolas,
prisões, bibliotecas, escritórios, igrejas, fábricas ou teatros. Eles estão localizados em lugares distintos,
apresentam designs internos e externos diferentes e nos movemos sobre eles de maneiras diferentes.

Veja: "Resenha do livro A poética do espaço, de Gaston Bachelard".

Espaços moldam os fluxos, que são as maneiras pelas quais nos movemos através dos espaços,
cujos significados são baseados em suas funções, projetadas por pessoas. Nesse sentido, espaços
J
diferentes são projetados para atender a diferentes propósitos e essas diferenças são as razões para
os fluxos - do quarto à cozinha, da casa à escola, da seção de laticínios à seção de cereais no
permercado, do bairro onde se vive às férias, de uma área em uma rede social da internet para
outra. Se lugares são algo como um "vocabulário" de significado espacial (vizinhanças, salas, gavetas,
páginas .da web), os fluxos são a sua "sintaxe" (sequências significativas de movimento).

Veja: "Guia do espaço público para inspirar e transformar", de Jeniffer Heemann e Paola Caiuby
Santiago".

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS ESPACIAIS, TÁTEIS EGESTUAIS 1 275


Significados espaciais nem sempre envolvem fluxos, podendo ser apenas continuidades ou
descontinuidades significativas; uma ausência em determinado lugar pode ser definida como
presença em outro(s) lugar(es) (estar livre e em casa, porque não se está na prisão; estar de férias
na praia neste momento, diferentemente de estar no escritório trabalhando). O significado de um
espaço, em outras palavras, também é frequentemente definido por sua similaridade/diferença em
relação a outro espaço. Nesse sentido, diferenças significativas podem gerar fluxos, que são criados
pelas forças magnéticas da diferença espacial. Por exemplo, a mão de obra barata em um determinado
lugar pode tornar esse local conveniente para a criação de produtos manufaturados para pessoas
que podem pagar por eles e que moram em um lugar diferente.
Construímos sentido sobre os espaços, não apenas os espaços feitos por humanos, mas também
os espaços naturais (como paisagens naturais que parecem imaculadas devido à relativa falta de
intervenção humana, mas sobre as quais construímos significados baseados em trilhas ou mapas
que direcionam nossa atenção para vistas in -
teressantes ou belas). Nossas representações
do espaço - os significados espaciais que cons-
truímos para nós mesmos - podem consistir
em sensações diretas de estarmos presentes
no espaço, ou em imaginações de possibili-
dade espacial, de perspectivas comuns de vi-
vermos melhor em fantásticos espaços ima-
ginários da ficção científica. Construímos
mapas mentais de onde estivemos e aonde
estamos indo; arquitetamos planos em nossa
Figura 12.1: Um lugar social espacial mente estruturado.
cabeça, ou podemos colocá-los no papel ou
desenhá-los em um computador; imaginamos viagens e criamos itinerários. Estes são os atos de
representação ou cognição espacial.
A comunicação espacial, por sua vez, inclui dar direções, fazer mapas, desenhar planos, criar
modelos e diagramar fluxos. Envolve também a construção de edifícios, a disposição dos móveis
em uma sala, a construção de parques, de estradas, de infraestrutura de transporte e de canais de
transmissão de informações. A interpretação desses espaços está em seu uso, isto é, nos significa-
dos que as pessoas constroem dos espaços
conforme realizam coisas neles. E, na natu -
reza do design, cada momento de comuni-
cação espacial cria um novo significado para
o usuário e o espaço. Assim, um shopping
center, por exemplo, não é um cassino, e não
há duas pessoas que se desloquem rfó shop-
ping center ou no cassino da mesma forma,
pelas mesmas razões ou com o mesmo efei-
to, pois, ao atuarem nos espaços, as pessoas
F°igura 12.2: Um plano de rastreamento mostrando as maneiras pelas quais seis projetam seus significados espaciais, trans-
pessoas diferentés se movimentaram em torno de uma loja (cada "pulo" é um formando os significados dos espaços para
ponto focal de atenção).
si mesmas.

276 i LETRAMENTOS
Significados táteis

Os significados das sensações corporais


Nossa definição de significado tátil inclui as sensações corporais intimamente conectadas ao
tato, ao paladar e ao olfato. Somos capazes de sentir a temperatura, a pressão, a textura e a dor
Significados táteis: através do nosso senso tátil, assim como somos capazes de distinguir os sabores
ficados das sensações corporais amargo, doce, azedo, salgado e picante através do nosso sentido do paladar,
do tato, do paladar e do olfato. discernindo as diferenças químicas entre substâncias sólidas e líquidas. No
entanto, o nosso órgão primário do paladar, a língua, também pode sentir por
meio de um modo como o toque: a temperatura, a textura e se é picante. Enquanto isso, nosso
sentido do olfato pode detectar diferenças químicas entre substâncias gasosas, através de centenas
de distinções de significado comparadas às meras cinco distinções disponíveis para o paladar.
Quando, então, comemos e bebemos, o paladar, o olfato e o tato operam e se integram para formar
uma complexa panóplia de significados.
O poder metafórico dos significados táteis em todos os modos é notável. Por exemplo, consideremos
como nosso repertório de ideias sobre "sentimento" seria diminuído se não pudéssemos colorir
aspectos da experiêocia com palavras como "quente", "caloroso", "frio", "áspero", "suave", "doloroso",
"amargo", "doce" e "azedo". Experimentamos esses significados táteis primários o tempo todo, por
isso a experiência do significado tátil é essencial para nossos sistemas de significado, incluindo a
língua, uma vez que os significados táteis se conectam ao mundo íntimo de nossos sentimentos.
Nesse sentido, todos os nossos significados, como Lakoff e Johnson apontam, são profunda e
invariavelmente corporificados. 2

Nos primeiros anos de vida, os mais fundamentais de todos os significados são construídos em
um mundo tátil, gestual, espacial, auditivo e visual, antes de aprender a falar e, mais tarde, ler e
escrever. Em outras palavras, as crianças constroem sentidos dos designs disponíveis em seu mundo
tátil, representam representam o mundo para si mesmas e começam a fazer sentido para si mesmas
ao tocarem, segurarem e moverem coisas. Uma criança pode mover um bastão pelo ar e imaginá-
-lo como a representação de um avião, ou pode segurar um bicho de pelúcia e imaginar que seja
um amigo ou um animal selvagem.
Assim, com brinquedos e outros objetos, as crianças pequenas começam a controlar seu mundo,
(re)designing as condições de sua existência imediata. Como resultado, desenvolvem capacidades
básicas para todos os significados por toda sua vida, desenvolvendo, com isso, um senso de agência,
junto com um senso de interconexão com objetos úteis e significativos; um senso de ordem entre
os objetos do mundo; um senso de interconexão com os outros através de diferentes tipos de toque
que podem expressar afeto ou raiva; um senso de que os significados das sensações t~~íveis podem
ser comunicados aos outros e interpretados (ou mal interpretados) por outros; um senso de
subjetividade ou projeção de sentimentos; e um senso de todo o eu no mundo. 3 Por isso, as crianças
lidam incessantemente com objetos, que são aspectos fundamentais da formação de seu universo
de significado.

2 Lakoff & Johnson, 2003 [1980].


3 Stern, 1985.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS ESPACIAIS, TÁTEIS EGESTUAIS J 277


Começamos a significar essas coisas fundamentais de maneira tátil, gestual e espacial, e, então,
continuamos a representá-las dessa maneira pelo resto de nossas vidas. A principal coisa que a
língua acrescenta ao significado tátil, mais ou menos após os 18 meses de vida, é o apoio a um tipo
de reflexividade consciente, que só é encontrado na comunicação e na cognição humanas. Mais do
que isso, essa reflexividade consciente chega aos outros modos de significado ao mesmo tempo que
a língua, não sendo, portanto, exclusiva a esta.
Por outro lado, a língua, em sua totalidade hu-
manamente significativa, pode ser representada
e comunicada através do tato, por exemplo, com
o Braille, uma forma tátil de escrever para aque-
les que são cegos.
A representação e a comunicação tátil estão
relacionadas ao engajamento corporal direto
com o mundo material (ao passo que a visão e
a audição, comparativamente, são engajamentos
que ocorrem a distância). Para ilustrar como
isso acontece, concentrar-nos-emos no signifi-
Figura 12.3: Braille.
cado tátil dos objetos. Convivemos com coisas
distinguíveis, que às vezes pegamos, sentimos, entregamos a alguém ou localizamos em uma de-
terminada posição. Usamos objetos: calçando sapatos, dirigindo um carro, cortando algo com uma
faca, colocando comida na boca. Fazemos coisas com objetos e, isso nos faz quem somos: um
andarilho ávido, um motorista terrível ou um bom cozinheiro.
Podemos criar antecipações mentais do uso de objetos em nossa mente ou modelá-lo segundo
uma certa tradição cultural (representações táteis): como devo usar esse utensílio de cozinha,
como devo usar a bola neste jogo, como devo usar um pincel para criar uma imagem. Podemos
também fazer ou organizar as coisas para benefício de outros, que as usarão de acordo com suas
interpretações do significado do objeto (comunicações táteis) - a escova de lavar deixada na pia,
o equipamento esportivo deixado na prateleira, ou o pincel deixado na mesa. Esses significados
são fundamentais para nossas naturezas humanas; assim, não faz sentido a separação entre o
mundo da objetividade (verdade nas coisas) e o da subjetividade (nosso senso de nós mesmos)
porque estamos em contato direto com as coisas que se tornam virtualmente uma parte de nós
mesmos. 4 Sapatos e carros, por exemplo, proporcionam-nos mobilidade, tornando-se partes de
nossas naturezas, integrantes de nossa própria existência. Para muitos de nós, esses objetos se
tornaram indispensáveis aos significados de nossas vidas, pois são transformadores. Uma
característica distintiva de nossa espécie é sua capacidade de representar e comunicar significados
usando objetos que são extensões táteis diretas de nós mesmos. Assim, coisas tangíveis são objetos
disponíveis para nós, recursos para o significado tátil com os quais projetamos ou colfstruímos
significados, seja de forma inventiva, ou mesmo através de peculiaridades sutis de nosso uso
cotidiano. Os vestígios de nosso trabalho no mundo são vistos através dos objetos que nele deixamos
ou das maneiras como nos acostumamos a usá-los. Essas são as fontes da capacidade única da
· espécie h1:1mana de criar um mundo artefactual a partir da natureza. 5

4 Krippendorf, 2006.
5 Miller, 2010.

278 i LETRAMENTOS
Nossos meios de comunicação consistem em objetos que nos permitem construir significados
ao longo do tempo e da distância, que se constituem em elementos para atuar na vida humana 6 e
em suportes integrais em nossas práticas sociais de significado. 7 De fato, não menos que a língua,
nossas capacidades humanas de construir significados e transformar o mundo com objetos constituem
uma característica distintiva de nossa espécie, já que o significado tátil pode abranger a mesma
gama de significados que a língua. Podemos produzir silenciosamente coisas significativas por meio
do uso de objetos, falar sobre as mesmas coisas, representá-las visualmente, ou, ainda, podemos
fazer todas essas coisas juntas, multimodalmente. O significado tátil é tão transformador do mundo
quanto o é a língua, sendo, portanto, igualmente importante para nossa natureza como criaturas
que pensam e aprendem.
Podemos ter um carro como extensão de nossos "eus corpóreos", mas podemos ser feridos por
esse mesmo carro em um acidente; podemos sentir os efeitos da poluição, ou nos angustiarmos
com a precariedade de estacionamentos e autoestradas. Nesse sentido, objetos podem nos oprimir
e, inclusive, atacar nossos sentidos de maneiras que não necessariamente queremos ou antecipamos.
Às vezes, objetos podem também ser perturbadores e alienantes, ainda que nós, humanos, sejamos
responsáveis por seu design e produção, posto que nossas interpretações sobre eles podem mudar
quando vemos significados discordantes emergirem, como, por exemplo, um dispositivo que
funciona mal ou um 0'bjeto que se torna invasivo em nossas vidas. Essas interpretações podem
incluir intervenções para alterar os efeitos de significado de certos objetos; por exemplo, montando
campanhas de segurança nas estradas, instalando dispositivos de controle de poluição em nossos
carros e usando transporte público em vez de dirigir ou precisar de estacionamento. Nessa concepção,
não apenas falamos sobre essas coisas, mas também transformamos nosso mundo fazendo e usando
essas coisas em nossas vidas cotidianas por meio de objetos.

Referência Qual é a forma material do objeto (por exemplo, como se sente, como se distingue de
(A que os significados outros objetos, sendo móvel/imóvel, tocável/intocável)?
se referem?) Indica uma pessoa em particular (por exemplo, o brinquedo favorito de uma criança)?
Indica um determinado local (por exemplo, uma panela na bancada da cozinha, uma ca-
neta na mesa)?
Como o tempo é referido (por exemplo, algo que parece novo ou antigo)?
Que particularidades distinguem o objeto (por exemplo, sua função, uma tigela em com-
paração com uma panela)?
Que conceito geral o objeto representa (por exemplo, uma faca/cortante, um brinquedo/
amizade)?
Quais são as características tangíveis do objeto (por exemplo, tato, gosto, cheiro)?
Que relações tangíveis existem no objeto (por exemplo, parte/todo, posse, junção/não
adesão, semelhança/contraste)?

Diálogo Como o objeto se conecta com as pessoas de uma maneira significativa .\i°r exemplo,
(Como os significados como os objetos são configurados por seu uso ou apelo estético)?
conectam as pessoas que Como o uso é antecipado e direcionado? Como o usuário está posicionado?
estão interagindo?)

6 Suchman, 2007.
7 Scollon, 2001.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS ESPACIAIS, TÁTEIS EGESTUAIS j 279


Estrutura . Como o objeto é estruturado? Qual é a sua ordem interna (por exemplo, a relação de
(Como os significados, em componentes, dentro/fora, visível/oculto)?
geral, se mantêm coesos?) Como o objeto funciona (por exemplo, as interações de componentes e os efeitos dessas
interações)?
Como o objeto é seccionado e como as várias seções são encadeadas (por exemplo, as
partes do objeto e como elas estão interconectadas)?
. Como o objeto é definido pelos materiais dos quais é feito (por exemplo, recursos/restri-
ções)?

Situação Como/onde o objeto está localizado? Como isso aponta para o seu entorno (por exemplo,
(Como os significados são diferentes tipos de tabelas em diferentes tipos de salas; um teclado em relação a um
moldados pelo contexto?) computador, em relação a uma mesa)?
Como a configuração do objeto antecipa padrões de uso (por exemplo, tempo de uso,
locais de uso, mobilidade do objeto, diferentes tipos de uso em diferentes contextos)?
Como o objeto se encaixa em todo o universo de coisas significativas, do mais local ao
global?
. Que tipo de objeto é esse? Quais são suas semelhanças e diferenças em comparação com
outros objetos?

Intenção Como o objeto é estruturado em torno de certas prioridades?


(A que interesses esses . Como o objeto é seletivamente projetado ou usado para apoiar uma posição ou afirmar
significados servem?) um papel ou postura (por exemplo, um presente/empréstimo, algo gratuito/uma merca-
daria para compra)?
Que interesses o objeto suporta (por exemplo, lucro privado/um objeto de domínio pú-
blico)?
Quais são os seus efeitos ancilares (por exemplo, efeitos ambientais, sociais, culturais,
econômicos)?
. Que gama de alternativas de ação o objeto oferece, como os diferentes tipos de pessoas
cujos papéis e identidades pode suportar (por exemplo, flexível/inflexível, restritivo/ex-
pansivo, aberto/fechado)?
Quadro 12.2: Uma gramática do significado tátil.

Crianças, brinquedos e aprendizagem tátil


As crianças começam a aplicar o significado simbólico a objetos e espaços ao mesmo tempo que
aprendem a falar. Por exemplo, a mesa é coberta com um lençol ou um cobertor e seu interior se
torna uma casinha, com travesseiros e recipientes vazios como mobília. A caixa de papelão é um
navio pirata. Desse modo, como argumenta Gunther Kress, com os objetos e espaços que "estão à
sua mão': as crianças forjam carros, lojas, hospitais e escolas, projetando significados. 8 Nesse sentido,
elas configuram objetos no espaço e atribuem significado a esses objetos e sua configuração; ao
fazer isso, transformam os significados desses objetos para si próprias (representação) e para/ou
com seus companheiros de brincadeira (comunicação), o que transforma o seu mundo de significados.

il Veja: "Lillian Katz sobre brincadeira e disposição~

Se as crianças fazem isso com brinquedos, representando literalmente o objeto de seu significado,
ou com objetos encontrados, a transformação é igualmente profunda. Uma caixa, por exemplo,
pode ser configurada como um carro: um ato notável de simbolizar a imaginação. No entanto,
-imaginar uma configuração de significados ao redor de um carrinho de brinquedo é igualmente
transformádor: um carro que vai de um ponto X para um ponto Y na imaginação espacial da

8 Kress, 1997.

280 1 LETRAMENTOS
criança, com um certo motorista e certos passageiros para determinados fins. A diferença entre o
brinquedo e a caixa é um pouco como a diferença entre o expressionismo abstrato, em que muito
tem que ser lido no objeto representado, e a pintura de paisagem, na qual os processos de referenciação
são mais literais, muito embora ambos sejam significantes e transformadores.
Pippa Stein e Denise Newfield descrevem o trabalho de Tshidi Mmabolo, Ntsoaki Senja e Thandi
Makhabela, que ensinam no 1 º e no 2 2 anos da Escola Primária Olifantsvlei, situada às margens de
assentamentos informais ou "acampamentos" na periferia de Johanesburgo, África do Sul. O projeto
"Novas histórias" envolve as crianças em pedagogias multimodais que reúnem objetos tridimensionais,
em que elas criam imagens, fazem performances teatrais e escrevem textos. O projeto, então, incentiva
as crianças a usar esses modos de expressão para falar sobre suas vidas e experiências culturais,
conforme destacam Stein e Newfield:

As crianças começaram desenhando personagens autosselecionados de suas vizinhanças que formariam


a base dos personagens para suas histórias. Em preparação para a etapa seguinte, que envolveu a criação
de figuras tridimensionais desses personagens, os professores fizeram uma mistura de papel machê para
elas, que acabou virando uma espécie de mingau. Quando as crianças vieram fazer suas figuras, a mistura
"se transformou em uma lama". As crianças então se voltaram para os professores e disseram: "Não se
preocupem, nós faremos as nossas próprias figuras" e, alguns dias depois, elas trouxeram para a escola
uma coleção de bonecas extraordinárias que construíram a partir dos recursos disponíveis em seus
ambientes - várias formas de resíduos, como sacolas plásticas em diferentes cores; garrafas de refrigerante
cheias de pedras e areia; pedaços de pano de prato; recortes de materiais, incluindo papelão, papel, botões,
arame e meias velhas.
Uma dessas bonecas foi feita por uma menina de 7 anos que vive em um barraco ao lado de um depósito
de lixo nos arredores de Johanesburgo. Sua boneca foi feita com uma garrafa de Coca-Cola (seu corpo),
plástico-bolha (suas roupas esvoaçantes) e um velho saco plástico (sua cabeça e um cachecol). [...] Outra
boneca também foi feita com uma garrafa de Coca-Cola, só que dessa vez ela estava cheia de pedras e
uma meia velha tinha sido delicada e artisticamente enrolada em volta dela. Ainda outra boneca era a
matriarca que carrega seu poder nas múltiplas dobras de tecido que circundam sua estrutura de peso.
Muitas dessas bonecas e figuras são objetos tradicionais transformados. As crianças desenharam materiais
e criaram designs que fazem parte da cultura de criação de bonecas de fertilidade africana. Essas "bonecas
de fertilidade" são geralmente pequenas figuras antropomórficas fabricadas por mulheres, para meninas
e mulheres jovens.
Uma boneca tradicional tem um formato de corpo característico, e o pano, as miçangas e as peles são
centrais para o seu design. Essas bonecas têm funçõ es culturais, simbólicas e identitárias específicas,
relacionadas à fertilidade das mulheres e aos rituais de casamento. O que é tão interessante sobre as
bonecas feitas pelas crianças, no entanto, é como elas (as crianças) tinham à disposição (através de suas
famílias, histórias, memórias culturais e pessoas disponíveis na comunidade) uma variedade de recursos
representacionais para a construção dessas figuras (os projetos disponíveis), dentro de um assentamento
urbano informal, e como elas redesenharam essas figuras para atender às suas próprias nec~sidades (para
fazer com que os personagens de uma história fossem contados na escola). 9

Podemos, então, notar nesse exemplo o funcionamento de um processo de construção de sen-


tido tátil, rico em associação cultural. Mais importante ainda, notamos uma mudança para a sim-
bolização, um processo conceitual em que algo "significà' algo mais. Isso é cognitivamente equi-

9 Stein & Newfield, 2002, pp. 5-6.

CONSTRU INDO SIGNIFICADOS ESPACIAIS, TÁTEIS EGESTUAIS 1 281


valente à simbolização que faz uso da língua ou da
imagem visual bidimensional. A significação tátil
pode ser uma atividade de aprendizagem poderosa-
mente envolvente e eficaz, assim como pode ser uma
base para a sinestesia, à medida que os estudantes vão
passando do modo tátil para o visual e linguístico,
como parte do processo de aprendizagem dos letra -
mentos multimodais.

Figura 12.4: Um "carro de travesseiro". Figura 12.s: Fazendo bonecas em uma escola sul-africana.

Significado gestual

Representação e comunicação de significados gestuais


Se os significados táteis são expressos através do corpo - tocando, saboreando Significados gestuais:
ou cheirando objetos -, os significados gestuais são construídos por meio de Significado que envolve presença ou
aparências corporais, movimento e posicionamento. Os significados gestuais movimento corporal.
incluem localização corporal, movimentos das mãos e dos braços, expressões faciais e olhar, que
são inseparáveis do que fazemos para "esculpir" a aparência de nossos corpos com roupas,
penteados, maquiagem, joias ou modificação corporal, que, por isso, também consideramos como
gestuais.
O significado gestual envolve questões relativas à representação (rememorar ou pensar ensaiando
o significado gestual na mente, ou interpretar o significado gestual dos outros) e à comunicação
(construir o significado gestual que outra pessoa pode interpretar como significativo):"Quando
duas pessoas estão na presença uma da outra, ou quando uma única pessoa sente sua própria
presença, há um significado gestual. Em outras palavras, enquanto os significados oral e escrito
_podem acontecer de vez em quando, o significado gestual está sempre presente
Configuração corporal: Um tipo <le
em uma panóplia de significados em várias camadas. Para sua melhor compreensão, significado gestual que envolve o
agrupamos os significados gestuais de três formas: configuração corporal, espaçamento do corpo, o movimento w

gesticulação e sinais gestuais. A configuração corporal envolve: corpo e o olhar.

282 1 LETRAMENTOS
• Espaçamento corpóreo, orientação e postura (onde o significado gestual encontra o significado
espacial; frequentemente chamado de "proxêmicà').
• Movimento corporal (sensação de movimento, outra forma em que o gestual encontra o
espacial; muitas vezes chamado de "sinestesià').
• Olhar (onde o gestual encontra o significado visual); expressões faciais; tocando, vestindo-se
e projetando outras aparências corporais (onde o gestual encontra o tátil).

Essa configuração corporal se traduz em padrões de interação situados em significados sociais


mais amplos, chamados de "enquadres" (Jrames) .1º Exemplos de enquadres de ação incluem a
interação médico/paciente, artista/público e tempo de fala de alunos/tempo de fala do professor. 11

Os projetos gestuais podem ser espontâneos e relativamente inconscientes (na interação social
cotidiana) ou premeditados (mimetismo, dramatização, dança, teatro).

a~ Veja: "A representação do Eu na vida cotidiana':

A gesticulação consiste em movimentos das mãos e dos braços que acompanham a fala ou
imagens mentais de conversas ou gravações de conversas, profundamente integrados aos significados
orais. Nesse sentido, McNeill mostra como o significado oral e a gesticulação
l&esticulação: Um tip o de
ficado gestual que envolve são d~is lados de um processo cognitivo comum. 12 "Conduzimos" nossa fala de
das mãos e dos braços para um modo que, de alguma forma, se assemelha a um maestro e a uma orquestra.
acompanhar afal a. A "preparação" para uma gesticulação começa com o início de uma frase falada,
o "golpe" no ponto enfático em sua estrutura de significado, e a "retração", que representa o seu
fim. 13 McNeill e Kendron, ambos proeminentes analistas contemporâneos da gesticulação, usam a
palavra "gesto" para descrever o que chamamos de "gesticulação". Queremos usar a palavra "gesto"
de forma mais ampla, para agrupar os três tipos intimamente conectados de significado corpóreo:
configuração corporal, gesticulação e sinais gestuais.

Figura 12.6: Analisando a gesticulação.

O sinal gestual é uma construção de símbolo abstrata que nà'K precisa


s ,estuais: Gestos que
e com unicam símbolos acontecer ao mesmo tempo que a fala. Na verdade, isso ocorre principalmente
ndo as línguas de sinais como uma alternativa ao discurso quando, por uma variedade de razões, a fala
com deficiência auditiva. não está presente. Por exemplo, todos usamos sinais gestuais baseados em

10 Goffman, -1974.
li Miller, 2010.
12 McNeill, 1992.
13 Kendron, 2004.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS ESPACIAIS, TÁTEIS EGESTUAIS 1 283


-
interpretações compartilhadas de seus significados, como os sinais que representam os comandos
com as mãos "pare" ou "devagar"; os movimentos do corpo que significam "sim" e "não"; o dedo
polegar levantado que significa cumprimento ou aprovação; o "movimento" circular com o dedo
indicador próximo à cabeça, de uma forma particular para indicar que alguém é "maluco". Fazemos
esses sinais na esperança de que outras pessoas compartilhem mais ou menos nossas interpretações
do significado simbólico desses signos. O sinal gestual pode atingir alturas e volumes simbólicos
semelhantes à língua falada, como evidenciado em línguas de sinais para surdos, por exemplo.
As diferenças entre a gesticulação e o sinal gestual são importantes, na medida em que, de fato, é
necessário considerá-las como sistemas de significado gestual distintos. A gesticulação é espontânea
e, na maior parte do tempo, relativamente inconsciente, enquanto o sinal gestual é premeditado e
altamente consciente; a gesticulação pode ser fortemente idiossincrática, uma questão de estilo pessoal,
por isso não é convencionalizada, enquanto o sinal gestual é grandemente convencionalizado, o que
significa que as relações de gesto com significado são relativamente estáveis de uma pessoa para outra.
Todos nós conhecemos o gesto de "parar': As pessoas que se comunicam por meio de Libras, por
exemplo, usam os mesmos sinais gestuais de seus pares para serem inteligíveis entre si; a gesticulação
adiciona informação à fala, enquanto o sinal gestual ocorre principalmente no lugar da fala.

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A B e D E F G

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Figura 12.7: Alfabeto em libras.

B
(!] .·
: Veja: "McNeill, o gesto".

Compreender a natureza do gesto é uma parte inestimável do repertório de um professor que


trabalha com letramentos, pois a configuração corporal e a gesticulação sempre fizeram parte do
drama, da literatura, do teatro, sendo particularmente interessantes para o ensino e o aprendizado de
línguas. A escrita costuma(va) ser o principal modo de comunicação ao longo do tempo e da.Qti.stância,
um modo de significado que removeu o gesto. Atualmente, no entanto, o vídeo é um meio de gravação
amplamente utilizado, que, por sua natureza, captura formas gestuais complexas, sendo possível
registrar e analisar como o significado gestual apresenta uma elaboração cuidadosa para uma
comunicação eficaz e uma interpretação igualmente cuidadosa do gesto por parte do espectador.
Finalmente·, os sistemas de sinais abstratos do gesto cotidiano prefiguram e reproduzem aspectos
cognitivos essenciais da simbolização em geral, que levam a interpretações extraordinariamente
elaboradas em línguas de sinais, por exemplo, que são, de fato, tão amplas quanto a língua falada.

284 1 LETRAMENTOS
1
Referência Qual é o significado particular de um gesto? Qual é sua forma distinguível (por exemplo,
(A que os significados se referem?) movimento da mão, posicionamento e movimento do corpo, postura, expressão facial,
andar, direção do olhar, moda, maquiagem, penteado etc.)?
Como a personalidade é mostrada (por exemplo, vestido, comportamento)?
Como o espaço e a dimensão são mostrados (por exemplo, perto/longe)?
. Como o tempo é mostrado (por exemplo, movimento rápido/lento, batida)?
Como um objeto é representado gestualmente (por exemplo, mímica)?
Que conceito geral representa um gesto (por exemplo,"pare")?
Como as características são representadas (por exemplo, tamanho, repetição)?
Como as relações são representadas (por exemplo, conexão/desconexão)?

Diálogo Como o gesto posiciona o criador do gesto?


lComo os significados conectam Como se pode esperar que outra pessoa interprete o gesto? Como o gesto afeta as relações
as pessoas que estão interpessoais entre os participantes (proxêmica, por exemplo: médico/paciente, professor/
interagindo?) aluno, padre/congregação, toque)?

Estrutura . Como o gesto é estruturado (por exemplo, as fases de uma gesticulação ou uma língua de
(Como os significados, em geral, sinais)?
se mantêm coesos?) Quais são seus componentes internos e como eles se combinam para construir significado
(por exemplo, sequências de ação integradas forte ou debilmente, padrões de gestos em
uma interação social - por exemplo, ir às compras, dramatizar, dança, teatro)?
. Como um padrão de gestos e uma sequência de gestos são integrados (por exemplo,
conduta, comportamento: formal/informal, raiva/entusiasmo, um estranho/amizade/inti-
midade)?
Quais são os seus modos perceptíveis de se referir (por exemplo, traçado literal ou icónico
de um movimento, apontando para algo, representação abstrato-icónica, naturalismo/
performance, espontânea/premeditada, consciente/inconsciente)?
Como o gesto é definido por suas características corporais e materiais (por exemplo, ex-
pressões faciais ou roupas)?

Situação Como o gesto é enquadrado por seu contexto de situação?


(Como os significados são Como o gesto se conecta a um universo de semelhanças gestuais (por exemplo, estilos,
moldados pelo contexto?) moda, formas de decoro; afeminado/masculino, polidez/grosseria)?

Intenção Como o gesto indicia certas prioridades por parte da pessoa que o faz?
(A que interesses esses Como o gesto apoia seletivamente uma posição ou afirma um papel ou postura (por
significados servem?) exemplo, felicidade/tristeza, poder/igualdade, sinceridade/falsidade)?
De quem são os interesses que o gesto apoia e até que ponto isso ocorre em detrimento
de outros interesses (por exemplo, encobrimento/transparência, aura corporal, truques de
mágica)?
Como constelações de significados gestuais expressam sentimento e identidade (por
exemplo, pretensão/autenticidade, hierarquia/igualdade)?
wadro 1 2,3: Uma
, . ,.
gramat1ca do s1gmf1cado gestual,

aminhos para a sinestesia: Fazendo conexões entre o espacial, o


tátil, o gestual e outros modos de significado
:onversa corporal
Iniciamos esta seção com uma atividade da professora Ruth Moodie sobre "Conversa corporal"
rBody talk"), que criou para os alunos de s e 6 anos de uma de suas turmas. As crianças reencenam
o arrativa de um livro que estiveram lendo, em corpo e fala, e a professora registra suas apresentações.
es nomeiam gestos, poses e movimentos que vêm com posturas particulares. Ao reinterpretarem
texto escrito, desenvolvem uma língua comum para descrever e explorar gestos, sentimentos e

CONSTRUINDO SIG NIFICADOS ESPACIAIS, TÁTEIS EGESTUAIS 1 285


significados. 14 No trecho a seguir, a professora discute o conceito visual de "ângulo" nas imagens
apresentadas em contos de fadas ilustrados e descreve sua experiência de trabalhar com os alunos
do 1 2 ano do ensino fundamental para desenvolver uma gramática visual:

Eu tento me certificar de que estou me conectando com as experiências das crianças [... ] continuamente
tornando essa conexão explícita,[ ... ] conceitualizando [... ] por exemplo, desconstruindo e reconstruindo as
imagens [nos livros de contos de fadas] e o significado. Eu tive que dar a elas uma linguagem para fazer isso
[... ] A diversão de eu deitar [no chão da sala de aula], tirando uma foto da [nome da criança X], era conseguir
aquele ângulo [... ] agora uma palavra que elas realmente sabem é "ângulo". [Tirando fotografias uns dos
outros de diferentes ângulos, os alunos desenvolveram] maneiras de usar a linguagem e as habilidades para
enxergar as coisas de forma crítica[ ... ] e, então, trabalhar bem[ ... ] por que essa foto é uma imagem melhor?
Devemos usar esta? O que torna essa foto melhor? É fazê-las usar essa linguagem ou usar esses entendimentos
para enquadrar suas ideias [... ] fazendo com que elas apliquem o conhecimento delas[ ... ]
Eu me peguei, então, conversando com outros professoree que às vezes as pessoas dizem que isso é apenas
uma boa prática de ensino e isso é realmente verdade; é uma boa prática de ensino, é o que sempre fizemos,
mas, mais uma vez, acho que estamos fazendo isso em um nível mais explícito. Eu nunca teria passado
três semanas examinando fotos e contos de fadas como dessa vez, mas acho que o tempo e o esforço
realmente mostram o que as crianças estão fazendo. Antes eu talvez tivesse gastado mais tempo com isso
e assumido que o conhecimento estava lá e presumido que eles o levariam em consideração, mas não
veriam as evidências de uma maneira realmente profunda como estou vendo agora. [... ] [Os alunos estão
agora] fazendo links em suas leituras, estou vendo isso em outras áreas também, em outros ambientes,
outras atividades que eles fazem, eles estão mantendo esse conhecimento porque é muito forte e eles estão
usando isso [conhecimento de] design na forma como eles desenham seus personagens também [...] eles
trazem seus próprios significados[ ... ] você vê o poder do letramento visual chegando. 15

Em um projeto chamado "Traços corporais" ("Body tracings"), idealizado por David Andrew e
Joni Brenner, na África do Sul, estudantes de 10 anos trabalham em duplas para fazer autorretratos
em tamanho real. Eles precisam confiar em alguém para traçar o contorno do corpo, um exercício
genuinamente colaborativo no qual o gestual é traduzido para o visual. A esse respeito, David
Andrew explica:

Na prática de fazer esses textos, os alunos são encorajados a usar a noção de "sensibilidades dos artistas",
a experimentar a ideia de "improvisação", que ocorre através de mudanças em modos, materiais e mídia
em uma espécie de criatividade "menos ansiosà; que não insiste em conhecer o caminho de antemão,
mas reconhece que o próximo passo pode ser inesperado. Os resultados foram uma série de imagens que
traduziram gestos corporais e movimento em imagem: corpos estão girando, dançando, patinando,
jogando, driblando bolas.[ ... ] Nesses textos visuais, vemos alunos engajados em narrativas de si mesmos,
que, na prática de fazer, são sentidas, consideradas, imaginadas e sonhadas. 16

Andrew e Brenner comentam que essas atividades representacionais, essas "projeções


profundamente íntimas do 'eu' no olhar público, têm o efeito de debater, contestar e desafiar a ideia
de 'déficit da línguá na África do Sul, que envolve as capacidades das crianças pobres". 17

14 Moodie, 2004.
15 Cloonan, 2010a, pp. 180-183.
16 Stein & Newfield, 2003, p. 284.
17 Idem, ibidem.

286 1 LETRAMENTOS
Dramatização

Em uma escola de ensino fundamental I, Margery Hertzberg descreve o efeito de dramatizar o


romance Onion tears (Lágrima de cebola). As crianças discutem as diferenças entre ler o livro e
improvisar a "representação" das cenas:

Rob: Bem, se você está apenas lendo o livro e você vê o Nam-Huong sendo provocado, você não tem a sensação
do livro, mas se você está fazendo teatro sobre isso, você realmente sabe como ele está se sentindo.
Kate: Podemos fazer as coisas que fazemos em sala de aula da mesma forma através do teatro, como podemos
aprender através do teatro e fazer essas atividades através do teatro[... ] Você[... ] usa tanto corpo e expressão
facial quanto você quer que as pessoas nos observem [e] possam ver quem são os nossos personagens ... Então,
[teatro] é melhor porque você pode, pela expressão em seu rosto e a maneira como você está sentado e se
m ovimentando, as pessoas podem dizer como você se sente ...
John: Porque isso ajuda você a ler, escrever. Ajuda você a entender muitas coisas que nunca entendeu, além
de não fazer um teatro. Normalmente, quando você lê livros, você não entende, mas quando você está fazendo
teatro, você entende por que eles estão se sentindo e como. 18

Em aula de literatura para uma turma do ensino médio, Stephanie Power Carter discute a
interação sobre o gest,p entre dois estudantes afro-americanos. Os alunos estão realizando uma
análise de vídeo de Huckleberry Finn. Suas observações os levam a uma reflexão sobre a natureza
do significado gestual. Os alunos constroem um "quadro interpretativo" que os ajuda a se conectarem
com as imagens gestuais do vídeo. A seguir, vemos a conversa entre o pesquisador e uma das alunas,
'8:atonya:

Natonya: Muita gente gosta de homens negros afro-americanos, claro, então alguns, alguns brancos, brancos,
masculinos e femininos, e tudo mais, eles dizem que todos nós temos essa aparência pequena e assustada
ou o que for. Quero dizer...
Pesquisador: Quando diz "nós", você quer dizer...
Natonya: As mulheres afro-americanas negras.
Pesquisador: Ok.
Natonya: Hum, e é como quando, toda vez que nós gostamos de ver algo que não gostamos, ou alguém nos
diz algo, nós reviramos nossos olhos ou contorcemos nossos lábios ou algo assim, sabe? E é como se nós
tivéssemos essa atitude, que recebemos e tudo o que, algumas pessoas dizem, somos sensacionais, sabe? E
GSSim, é como, é como muitas, muitas mulheres negras afro-americanas têm, expressão facial, ou quando
estão loucas, quando não gostam de algo, quando alguém diz alguma coisa para elas e elas não gostam disso,
você sabe o que eu estou dizendo? 19

Esses são exemplos vívidos de salas de aula onde os professores estão fazend8ítos alunos
alharem nos modos de significado gestual, espacial e tátil. Seu aprendizado permite tanto
aernar entre diferentes modos quanto nomear e representar em cada um desses modos. Em resumo,
a.iultímodalidade contribuí para o processo de aprendizagem, inclusive do modo escrito.

Jjertzberg,2001,p.4.
Carter, 2006, p. 354.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS ESPACIAIS, TÁTEIS EGESTUAIS 1 287


Aprendizagem dos letramentos multimodais

Claramente, todos os nossos modos de significado estão profunda e irremediavelmente


interligados, embora possamos identificar sistemas de significado discretos no trabalho - escrito,
visual, espacíal, tátil, gestual e falado - e, como vimos no caso do gesto, identificar também sistemas
dentro dos sistemas (configuração corporal, gesticulação e sinal simbólico). Tradicionalmente, o
ensino e a aprendizagem de leitura e escrita sempre tentaram separar a língua escrita dos outros
modos de significação, ou, pelo menos, tentaram o melhor que puderam. O fato é que essa separação
não é possível, e, se o fosse, seria, no mínimo, forçosa. De forma talvez bem menos "tradicional':
algumas práticas de ensino sempre tentaram fazer uso das línguas escrita e falada em conexão
sistemática com significados espaciais e gestuais. O mesmo acontece com a aprendizagem na
primeira infância, cujo foco tem sido a expressão visual, espacíal, tátil e gestual como um aspecto
integral do processo de aprendizagem, incluindo a aprendizagem da leitura e da escrita.

Veja: '"Comunicação multimodal na sala de aula de ciências: Construindo sentidos com


palavras e gestos: de Cláudia Piccinini e Isabel Martins".

Cada modo de significado é capaz de toda a gama do significado humano; como criadores adultos
de significados, usamos muitos modos de significados de maneira conjunta, simultânea ou paralelamente,
para significar de uma forma ou de outra. E se o acesso a determinado modo de significado é, por
algum motivo, restrito ou removido, por incapacidade sensorial, por exemplo, toda uma gama de
significados humanos ainda está disponível para nós através da substituição completa por outros
modos. Isso acontece, inclusive, com pessoas cegas, que podem aprender a língua escrita em Braille,
ou com pessoas surdas, que podem aprender a língua falada por meio da Libras.
Ao pensarmos no contexto de sala de aula, podemos dizer que os letramentos multimodais se
estendem, portanto, para além da própria visão vygotskyana de que a aprendizagem se dá,
primeiramente, no diálogo interpessoal e, então, de forma intrapessoal. Isso porque, o processo de
ensino e aprendizagem multimodal não considera apenas a interação verbal, mas toda uma gama
de significados que são construídos por meio da combinação de diferentes sentidos humanos
envolvidos. Assim, por exemplo, o significado espacial poderia se ater à forma como a sala de aula
é organizada e ocupada por alunos e professores; o significado visual, aos objetos, roupas e adereços
de que cada um faz uso; o significado sonoro, aos sons produzidos em sala de aula, mas também
ao que os alunos deixam de falar (silêncios), em função da presença e do uso de aparelhos tecnológicos,
como o celular etc.; o significado gestual, aos movimentos e gestos feitos quando se deixa de
compreender alguma explicação ou quando simplesmente se ignora o que está sendo dito pelo
professor etc.
Portanto, os significados não são apenas construídos na interação entre pessoas, rifas também
multimodalmente na interação com espaços, objetos, imagens, sons etc. Nesse sentido, em vez de
dividir os modos entre si, precisamos aproximá-los, reconhecendo que a sinestesia é um caminho
poderoso para aprender a significar. Se não podemos significar algo totalmente por meio de um
determinado modo, talvez possamos fazê-lo melhor por meio de outro; ou, ainda, se algo precisa
ser entendido mais profundamente, sempre podemos encontrar outro modo de significado ou
combinação de modos para acrescentar profundidade. Fazemos isso simplesmente adicionando a

288 1 LETRAMENTOS
perspectiva de outro modo, pois, por mais que os modos sejam paralelos entre si em seus potenciais
de significado, por mais que cubram o mesmo espectro de coisas pensáveis e comunicáveis, eles se
expressam de maneiras muito diferentes.

Sumário

Significados espaciais Significados táteis Significados gestuais


. Formas, tamanhos e proximidades em Sensações e sentidos: toque, cheiro, . Configu ração corporal: espaçamento,
lugares. sabor. orientação, postura, olhar, expressões
. Movimento corporal. Interagindo com objetos e ferramentas. faciais, roupas.
. Espaços percebidos e imaginados. A fisicalidade e a materialidade dos Gesticulação: movimentos da mão e do
. Espaços físicos e virtuais. meios utilizados na representação e na braço.
comunicação. . Sinais: significados simbólicos transmi-
tidos por meio de gestos.

Processos de conhecimento

Experienciando o conhecido
1. Descreva uma situação na qual você esteve envolvido, em que fez uso de "conversa corporal"

para transmitir significados poderosos. Talvez você possa considerar um momento de


incompreensão transcultural baseado em uma má interpretação da linguagem corporal.

Experienciando o novo
2. Escreva uma breve visão geral sobre a Libras ou o Braille. Discuta suas dimensões do significado

multimodal.

Analisando funcionalmente
3. Analise um programa de televisão sobre reforma de casas que trabalhe os elementos do design
de significado espacial, ou um programa de culinária que trabalhe os elementos do design do
significado tátil.

Analisando criticamente
4. Faça uma análise de uma prática envolvendo brinquedos, observando uma criança pequena
usando um deles e projetando significados táteis que você espera que ocorram durante esse
entretenimento. Como o aprendizado tátil com brinquedos contribui para as capacidades da
•..Jf:
criança de construir significado?

Aplicando apropriadamente
5. Aplique a terminologia de análise do design apresentada neste capítulo a uma atividade teatral.

Aplicando criativamente
6. Crie um plano de aula para uma sequência de atividades que explorem os modos de significado
espacial, tátil e gestual.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS ESPACIAIS, TÁTEIS EGESTUAIS [ 289


Capítulo 13 ,
Construindo significados
sonoros e orais

Visão geral
Os significados sonoro e oral compartilham o sentido da audição como o meio primário de
percepção. Os significados sonoros variam de sons ambientes ou de fundo a nossa volta, a sons
· cados sonoros: Significados que possuem significado simbólico, passando também por significados complexos
dos por meio do som, incluindo representados na música. Os significados orais carregam consigo as qualidades
bientes e sons deliberadamente básicas dos significados sonoros, na medida em que modulamos o volume e o
produzidos e a música.
tom da voz ao produzirmos os sons da fala. Apesar das conexões importantes,
I
licados orais: Asformas como existem diferenças grandes e significativas entre as formas pelas quais a língua
a língua é representada na fala. é formada nos modos oral e escrito. Essas diferenças são o que motiva a mudança
de modo nas comunicações e na aprendizagem, não apenas entre os significados oral e escrito, mas
em toda a gama de modos de significados.

Aprendendo significados sonoros e orais


Sue Gorman, Tayla Zanotto, Mike Aspden e Rita van Haren estão trabalhando com seus alunos
do 2º ano do ensino fundamental para investigar o som e a luz. Por meio da atividade de aprendizagem
multimodal chamada "Boas Vibrações" ("Good Vibrations"), que explora o desenvolvimento de
letramentos multimodais dos alunos, estes lidam com conceitos científicos de som, ondas de luz,
fontes, vibração, tom e reflexão. Para começar uma discussão sobre sons em palavras (sound in
wards), a turma lê o livro Night Noises, de Mem Fox, com destaque para palavras como quack, click
-~
e ring que, em inglês, constituem onomatopeias, isto é, palavras formadas a partir da reprodução
aproximada, uma espécie de "imitação" de sons naturais, com os recursos de que a língua dispõe
(experimentando o novo). A turma, então, cria um mural de palavras onomatopaicas ("conceituando
por nomeação") e classifica tipos de sons ("conceitualizando com teorià'). Os alunos começam a
criar objetos projetados para fazer certos tipos de som, discutindo também a gama de sons produzidos
por vários instrumentos musicais ("analisando funcionalmente"). Em seguida, eles assistem a um
vídeo sem som, refletindo sobre os tipos de efeitos sonoros esperados. Depois, apenas ouvem o
vídeo, tentando alinhar as pistas de áudio com o que haviam assistido ("analisando criticamente").
Finalmente, desenvolvem uma dramatização somente trabalhando com som em podcast ("aplicando
criativamente").
Em uma turma do sº ano, Rita van Haren, Kylie Libbis, Sue Gorman e Jenny Loudon, em seu
módulo de aprendizagem "Cantando juntos, doando-se juntos" ("Singing Together, Giving Together"),
fazem com que os alunos cantem juntos em sala de aula, enquanto desenvolvem conceitos musicais
de tom, andamento e ritmo, assim como examinam as maneiras pelas quais esses conceitos se
sobrepõem à forma poética das letras de música. O que acontece com o significado de uma música
quando seu tom, seu andamento e seu ritmo são alterados? De que maneira as letras são textos
orais, mas, também, de que maneira elas são características de um texto escrito?
Em um último exemplo, num módulo de aprendizagem para aulas de música e letramento para
uma turma do 7º ano chamado Soundscapes, Bill Miller e Rita van Haren exploram sons ambientes
- as texturas e os timbres das paisagens sonoras. Os alunos. ouvem "As quatro estações", de Vivaldi,
e, em seguida, algumas obras de John Cage. Eles criam uma composição musical que traduz ideias
da paisagem sonora para a forma musical.
Esses exemplos dão uma ideia da variedade de atividades interdisciplinares empolgantes
envolvendo letramentos multimodais que os estudantes podem realizar. Mas, agora, vamos à teoria ...

Significado sonoro

Representação e comunicação em sons


O sentido humano da audição capta sons que vêm através das ondas de pressão do ar, cujas
amplitude (volume dos sons nessas ondas) e frequência (altura dos sons nessas ondas) o ouvido
humano é capaz de detectar. A capacidade humana de ouvir está dentro de um intervalo muito
particular, em que os limites superiores do volume são definidos por um ponto em que o efeito é
a perda auditiva e as frequências baixas também são perceptíveis pelo toque, na forma de vibrações.
O processamento de sinal começa no ouvido interno, onde a percepção sonora pode ser mas-
carada por outros sons - por exemplo, um som inaudível que pode não ser ouvido porque é co-
berto por um som mais proeminente.
Estribo Nosso significado sonoro começa
com as semelhanças e os contrastes
criados pelo ritmo, pela altura, pelo
volume, pelo andamento, pela textu-
ra e pela direcionalidade. Paisagens
.-,,Jt
sonoras cotidianas, música e fala são
sistemas distintos de significado so-
Membrana timpânica
noro, mas que estão intimamente
(tímpano) relacionados entre si. Isso porque não
ouvimos simplesmente os sons do
nosso ambiente, sons musicais e sons
Figura 13.1: Oouvido. da fala; aprendemos a entendê-los

292 1 LETRAMENTOS
com base em seus significados (representação sonora) - o som de um sino tocando, ou um jingle
de uma propaganda publicitária, por exemplo. Nesse sentido, construímos sons que têm significa-
dos para outros interpretarem (comunicação sonora), como sons de alerta (por exemplo, a buzina
de carro) ou uma música que evoca sentimentos específicos. 1

Referência Qual é o significado particular do ritmo, do tom, do volume, do andamento, da textura ou


(A que os significados se referem?) da direcionalidade de um som (por exemplo, um sino tocando, uma voz ouvida como um
ruído de fundo)?
. Como uma pessoa é perceptível nos sons que produz (por exemplo, o som de caminhar,
de respirar)?
Como é a referência ao tempo (por exemplo, andamento, ritmo)?
Como é a referência ao lugar (como distância do som e direcionalidade, por exemplo, o
som em relação às condições de sua transmissão e de audição)?
Como um objeto é representado pelo seu som distintivo (por exemplo, um chuveiro
comparado a um teclado)?

Diálogo Que conceito geral um som representa (por exemplo, uma campainha, uma buzina de
(Como os significados conectam carro)?
as pessoas que estão Como são as características do significado representado no som (por exemplo, volume,
interagindo?) tom, textura)?
Como as relações são representadas no som (por exemplo, sons em primeiro plano/plano
de fundo)?
Como os sons posicionam o produtor do som (por exemplo, uma porta se abrindo, um
bife fritando)?
Como a outra pessoa pode interpretar o som (por exemplo, informação, um aviso)?

Estrutura Como o significado sonoro é estruturado? O que constitui a sua completude/incompletu-


,:Orno os significados, em geral, de (como uma peça musical ou o começo de uma entrada e o término de uma saída de
se mantêm coesos?) uma paisagem sonora, por exemplo, uma música, um movimento, uma sinfonia; os sons
da rua/os sons da loja)?
. Quais são seus componentes internos e como eles se combinam para criar significado
(como a sequência de sons, por exemplo, notas de um compasso e de partes inteiras da
música)?
Como um conjunto integrado de sons se torna coerente (por exemplo, escalas musicais,
notas)?
. Quais são as maneiras perceptíveis de referir o som (como a semelhança literal do som/
referência simbólica abstrata, por exemplo, uma campainha de porta comparada à buzina
de carro)?
Quais meios são usados para produzir o som (por exemplo, voz, instrumento musical, sons
incidentais ao uso de um objeto)?

Situação Como o som é enquadrado pelo seu contexto de situação (por exemplo, som incidental/
(Como os significados são som focalizado, sons proeminentes/sons ambientes, como efeitos sonoros em um filme,
moldados pelo contexto?) música de elevador, música on-line, música ao vivo em um auditório)?
. Como um significado sonoro se conecta a um universo de sons (como paisagens sonoras,
notas musicais, gêneros musicais, por exemplo, música barroca/reggae)?

Intenção . Como os sons ou constelações de sons estabelecem certas prioridades ( ~ exemplo,


(A que interesses esses avisos, humor em notas musicais)?
significados servem?) De quem são os interesses sonoros (por exemplo, música ambiente em uma loja)?
Que afinidades o som expressa ou sugere?
..
mo 13.1: Uma gramática de s1gn1f1cados sonoros .

lall, 2010.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS SONOROS EORAIS j 293


-
Música e letramentos multimodais
Ryan Rimmington é professor de música em uma escola de ensino médio em Chicago. Seu plano
de atividades chamado "Conexões de coral multicultural" ("Multicultural chorai connections") não
apenas inclui explorações do modo sonoro característico da música, mas também conecta o áudio
de forma consciente e direta com outros modos de significado, fazendo com que seus alunos ouçam
música, ensaiem, toquem e ouçam gravações de música representando a diversidade étnica da
escola e de comunidades mais amplas.
No entanto, isso não ocorre sem a alternância entre o áudio e outros modos para criar um
sentido mais completo e profundo dos significados incorporados na música. No modo escrito, os
alunos leem e escrevem resenhas de músicas, criam definições de termos técnicos específicos,
exploram estratégias de visão e de canto para conectar a linha melódica às letras das músicas e,
então, postam uma reflexão sobre suas experiências de aprendizagem em um blog; na modalidade
oral, eles discutem a maneira pela qual o sentimento de determinada expressão cultural é representado
por meio de sua músic<1;, planejam suas estratégias de ensaio e discutem os pontos mais sutis de
desempenho após ouvirem as gravações; no modo visual, leem notação musical, criam notas de
um programa de concertos e examinam metáforas visuais na música; no modo espacial, configuram
o espaço para uma apresentação pública; no modo gestual, discutem os modos de expressão para
acompanhar a performan,;e coral e o papel do maestro; e, no modo tátil, exploram as conexões
entre os instrumentos e o som na apresentação musical. A apresentação final dos alunos captura
nuances musicais em cinco tradições culturais diferentes. Para apoiar essa intervenção multimodal,
o professor de música conta com a experiência e o apoio de professores do Departamento de Língua
Estrangeira e do Departamento de História da escola.
Historicamente, a disciplina escolar música separou essa variedade de significado sonoro de
disciplinas que lidam com outros modos. Por exemplo, a disciplina arte lida com o modo visual;
língua portuguesa, com o modo escrito. Aqui, no entanto, podemos ver um ambiente de aprendizagem
poderosamente sinestésico funcionando, no qual os alunos alternam os modos de significados para
adicionar maior profundidade no aprendizado de música.

Significados orais

Como falar é diferente de escrever


A comunicação oral usa as qualidades de áudio elementares de volume e altura para configurar
um intervalo de significado tão amplo quanto o de cada um dos outros modos. A representação
oral se constitui por meio da escuta e/ou da interpretação dos significados na língua offll que se
ouve. A comunicação oral, por sua vez, se constitui por meio da fala e/ou da produção de um
enunciado linguístico audível.
Escolhemos discutir o significado oral por último por uma razão: em nosso diagrama circular
(Figura 13.2), o significado oral, além de, obviamente, ter o significado sonoro como seu vizinho
imediato, tem a língua escrita como seu outro vizinho imediato. Esse é, então, o ponto a partir do
qual começamos a discutir cada um dos modos de representação e comunicação no capítulo 9. No

294 1 LETRAMENTOS
entanto, mantivemos essa discussão sobre o significado oral tão longe da discussão do significado
escrito quanto possível, porque queremos argumentar que a língua oral e a escrita são muito dife-
rentes. Quando as escolas ensinam o alfabeto por meio do método fônico, baseiam-se no pressu-
posto de que aprender a escrever e a ler em línguas alfabéticas é fundamentalmente uma questão
de aprendizagem de correspondências entre sons e letras. Todavia, queremos argumentar que os
significados oral e escrito são tão importante-
mente diferentes um do outro que eles não estão
mais intimamente relacionados entre si do que
com quaisquer outros modos de significado.
Eis alguns equívocos comuns sobre a cone-
xão entre fala e escrita, concepções errôneas
que precisamos questionar cuidadosamente ao
considerarmos a aprendizagem do letramento
tanto no singular quanto no plural (letramen-
tos): o primeiro equívoco é o de que a escrita
seria uma transcrição dos sons da fala. Com
efeito, nenhuma escrita captura toda a gama
de significados encontrados na fala. Para isso,
a escrita tenta, de al~ma forma, compensar
essa "deficiência'' criando maneiras bem dife-
rentes de capturar significados transportados Figura 13.2: Modos de significar.
em sons, como, por exemplo, ênfases por meio
do uso de sublinhado ou itálico, ou dúvidas e demandas por meio de pontos de interrogação. A
forma e o grau exatos do significado oral são difíceis de transcrever para a escrita, pois, não
importa o quanto a escrita tente captar um significado oral, ela nunca poderá ter sucesso. Pode
até fazer algo aproximadamente equivalente ou amplamente semelhante, mas nunca a mesma
coisa, dado que a questão da transcrição sonora se torna ainda mais confusa devido às comple-
xidades fônicas que descrevemos no capítulo 9, e seria, além disso, irrelevante para letramentos
em línguas logográficas como o chinês.
O segundo equívoco é o de que a língua escrita seria uma expressão diferente para os mesmos
significados que acontecem na língua oral. Sabemos que uma descrição oral espontânea de algo,
ainda que transcrita completa e precisamente, parecerá muito diferente de um parágrafo "bem
escrito" descrevendo a mesma coisa. No entanto, qual é a diferença entre a descrição em parágrafos
de uma cena e a fotografia dessa mesma cena? As duas estão se referindo a uma cena, mas as
maneiras pelas quais apresentam as informações são diferentes. Como os modos de significado são
diferentes, os significados nunca podem ser os mesmos, por isso a diferença entre fala e escrita é
tão grande. --.Ir
Os significados orais e escritos estão, é claro, conectados através da língua; portanto, ao se
referirem às mesmas coisas, os significados nas línguas oral e escrita podem ser paralelos entre si,
mas nunca serão os mesmos. Com efeito, existem, do mesmo modo, conexões igualmente poderosas
entre os significados oral e sonoro, porque estes compartilham a audição como um meio primário
de sentido, e entre os significados escrito e visual, porque estes compartilham a percepção visual
como um meio de sentido primário.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS SONOROS EORAIS 1 295


Referência . Quais são as ca racterísticas audíveis distintivas da fala (por exemplo, ritmo, entonação,
(A que os significados se referem?} acentuação, andamento, pausa e tom}?
. Como uma pessoa está conectada na fala (por exemplo, está falando, dizendo ou ouvindo
algo sobre uma pessoa}?
. Como é a referência ao tempo (por exemplo, fala ao vivo, gravada para ser ouvida no fu-
turo}?
Como é a referência ao lugar (por exemplo, fala ao vivo, gravada ou transmitida em outro
lugar}?
Como é a referência às coisas (por exemplo, as palavras faladas para se referir às coisas}?
A que conceito geral se referem?
Como as características são referidas (ênfase, entonação, por exemplo, felicidade/tristeza,
raiva/mau humor, medo, surpresa, sa rcasmo}?
Como as relações são representadas?

Diálogo . Como a fala configura as pessoas envolvidas (por exemplo, uma palestra, uma conversa}?
(Como os significados conectam Que tipos de conexões os sons audíveis da fala estabelecem entre os participantes (por
as pessoas que estão exemplo, uma afirmação, uma pergunta, uma ordem}?
interagindo?} Que padrões de ênfase são estabeleados nas unidades de significado faladas (por exem-
pio, acentuação no ponto de significância focal ou nova informação}?

Estrutura Como as unidades de fala são marcadas por variações sonoras (como pausa e altura, por
(Como os significados, em geral, exemplo, início/fim de unidades de informação oral}?
se mantêm coesos?} Como as unidades de som são coerentes entre si (por exemplo, sílabas, enunciados}?
. Como as variações sonoras significativas são encadeadas? (por exemplo, prosódia, poéti-
ca}?
Quais são as maneiras audíveis de se referir na fala (de forma literal/simbólica; por exemplo,
a semelhança sonora da onomatopeia}?
Como o significado oral é expresso (por exemplo, falado ou sussurrado, de perto ou grita-
do a distânc_ia, fala com/sem amplificação, fala ao vivo/gravada}?

Situação Como a fala é enquadrada pelo contexto de sua situação (por exemplo, uma conversa
(Como os significados são entre duas pessoas, uma discussão em grupo, um monólogo, falando consigo mesmo}?
moldados pelo contexto?} Como a qualidade oral de um enunciado se encaixa em um quadro mais amplo deformas
de falar alternativas?
Em que padrões maiores de significado oral o enunciado se encaixa por meio de seus
modos gerais de semelhança/diferença (por exemplo, sotaques, dialetos}?

Intenção Como a fala reflete ou estabelece diferenciais de função (por exemplo, tons de especiali-
(A que interesses esses zação, condescendência, poder}?
significados servem?}' De quem são os interesses ao se usar uma determinada forma de falar?
Que afinidades expressam ou sugerem a partir de seu tom (por exemplo, sério, brincalhão}?
Quadro 13.2: Uma gramática de significados orais.

Significados oral e escrito comparados


Quais são, então, as diferenças entre os significados oral e escrito? Vamos analisá-las com
base em duas formas arquetípicas: fala espontânea ao vivo e escrita cuidadosamente formada,
como um artigo acadêmico. Há também formas intermediárias, como uma palestra mi~ strada
de maneira mais espontânea (sem anotações) e, particularmente importante atualmente, escrita
em redes sociais e aplicativos. Vamos discutir isso mais tarde. No entanto, antes de chegarmos
a essas formas híbridas entre escrita e oralidade, queremos desemaranhar os recursos que tornam
os dois modos significativamente diferentes. Para tanto, argumentamos que essas diferenças de
significado entre os modos escrito e oral são tão relevantes que os dois modos são tipicamente
usados para significar coisas diferentes.

296 1 LETRAMENTOS
Para começar, há diferenças importantes nos processos de design da língua oral e da língua
escrita que deixam seus traços no texto ou, no caso da escrita, que têm maneiras particulares de
esconder seus traços. À primeira vista, a fala parece ser mais confusa, cheia de marcadores
conversacionais. Existem muitos inícios de fala falsos, na medida em que se reformula uma ideia,
revisando as opções de estilo, dicção ou gramática, depois de ter ouvido a si mesmo na primeira
vez. Nesse sentido, a fala muitas vezes se assemelha a um pensamento em voz alta.
A escrita, por sua vez, parece, em princípio, ser "mais bem" formada porque é feita de maneira
mais metódica e consciente. No entanto, o processo de escrita envolve tantas mudanças para
corrigir erros quanto a fala, e, atualmente, a digitação em um teclado de computador ou em um
celular torna essas alterações mais fáceis do que nunca. De fato, é provavelmente um processo
ainda mais complicado do que a fala, pelo menos no seu esboço inicial. A principal diferença é
que, na escrita, escondemos esses traços do processo de construção do significado, porque temos
tempo para criar um rascunho final polido, com as formulações iniciais revisadas. E quando o
texto digitado é concluído, os sinais que indicam seu processo de produção, incluindo seus
detalhes, não são vistos (são facilmente apagados).
Seja falando ou escrevendo, estamos sempre fazendo nossas escolhas de palavras e selecionando
combinações de palavras para a construção de significado. Estamos sempre conscientemente
pesando em nossas próprias mentes o que acabamos de dizer, as palavras que acabaram de sair.
Contudo, fazemos issô de maneiras completamente diferentes quando falamos ou quando
escrevemos, o que resulta em tipos de texto totalmente distintos. Esses processos conscientes de
fazer mudanças imediatas são inevitavelmente audíveis no caso da fala, mas podem se tornar
invisíveis no caso da escrita, porque o sistema de escrita se constitui de tal forma que podemos
escondê-los. É por isso que, se nós transcrevêssemos cada palavra, som e pausa que saísse de
nossas bocas, pareceria uma escrita muito pobre, embora não o fosse, pois isso seria julgar a fala
pela medida da escrita.
Com efeito, não há muito sentido em transferir a fala diretamente para a escrita, já que, quando
alguém é solicitado a recordar o que outra pessoa acabou de falar, geralmente não consegue se
lembrar do que foi dito literalmente, pois se lembra de ideias, não de formulações. Sua resposta
é sempre uma paráfrase, não uma repetição. Isso ocorre porque um ouvinte segue os significados,
não as palavras, não percebendo, assim, repetições, hesitações e revisões - exceto quando estas
significam algo (como o estado de incerteza do falante ou a dificuldade com uma determinada
ideia - elementos que a escrita, incidentalmente, apaga em grande parte).
A não ser em casos específicos, as transcrições da fala para a escrita não destacam as
inadequações da primeira, como erros que são corrigidos ou deixados sem correção. Mostram,
sim, as vastas diferenças entre fala e escrita, nas quais não há erros, mas apenas mudanças
imediatas quando o falante pensa em voz alta sobre seus significados, o que constitui um processo
normal de construção de significado, no qual os ouvintes não ouvem coisas que são i-l!felevantes
para o significado. Como ouvinte, seu processo cognitivo de interpretação da fala edita revisões
desimportantes e superficiais, porque seu foco não está nos significados das palavras em si, mas
naqueles que fazem sentido para ele.
Por essas razões, e muitas mais, a transcrição da fala produziria, de certa forma, uma "escrita
pobre", porque não possuiria nenhuma das qualidades que tornam a escrita um modo de
significado que é significativamente diferente da fala. Essas diferenças começam com a maneira

CON STRUINDO SIG NIFICADOS SONOROSEORAI S 1 297


como cada modo de significado é produzido. Escrever, ler, falar e escutar são tipos profundamente
diferentes de comunicação, de representação e de processos cognitivos. Para aprender a escrever,
é preciso aprender a pensar de forma diferente, não apenas reconhecer os sons de palavras
escritas.
Assim, a escrita não consegue captar a dimensionalidade audível e completa de uma entonação,
um sotaque ou um dialeto. Uma vírgula nunca pode dizer exatamente quão comovente é uma
pausa; um ponto de interrogação não indica o quão insistente uma pessoa é; ou um sublinhado
não destaca quão enfático alguém pretende ser. A proeminência tônica ou a ênfase sonora
informam o ponto de uma sentença (informação dada/o sujeito), que se contrasta com um
grupo de palavras com novas informações audivelmente mais proeminentes/o predicado. No
português escrito, é possível distinguir a proeminência de uma nova ideia, pois ela está localizada
no final da oração, mas não se pode dizer com facilidade quão proeminente ela é, nem detectar
nuances em outros pontos da oração. Não importa o quanto tentemos, não podemos traduzir
as nuances sutis e profundas da língua oral para a escrita. Os linguistas tentam fazer isso, por
meio de notações fonéticas, mas até mesmo suas melhores tentativas nunca capturam todos os
aspectos do significado transmitidos pela fala. Quando falamos, somos capazes de significar de
maneiras diferentes e, embora existam paralelos que nos permitem alternar entre os modos
da fala e da escrita, nunca conseguimos dizer da mesma maneira, ou mesmo significar as
mesmas coisas.
Existem também diferenças importantes nas formas através das quais a fala e a escrita são
explicitadas. Em uma conversa, a língua tem meios para indicar "eu" ou "você': "isto" ou "aquilo':
"aqui" ou "lá", "hoje" ou "ontem", que são todos relativos aos participantes que falam, seu tempo
e seu lugar. Essas coisas não precisam ser explicitamente nomeadas, porque são parte integrante
do evento de significado multimodal - sua situação -, na medida em que se tornam evidentes
nos significados espaciais, visuais, gestuais e táteis que cercam a fala em seu momento de
enunciação.
A escrita, no entanto, precisa primeiramente nomear "eu" ou "você", "isto" ou "aquilo", "aqui"
ou "lá'', "hoje" ou "ontem", antes que essas palavras possam ser usadas, para que o leitor saiba a
que estão se referindo. Na fala, a referência pode apontar diretamente para um contexto
compartilhado; já na escrita, essas palavras têm principalmente de apontar para outra palavra
mais explícita no texto - um nome de pessoa, coisa, lugar ou tempo, mencionado anteriormente,
por exemplo. Assim, a diferença é fundamental: a fala está ligada ao aqui e agora; porém, a escrita
é, por sua própria natureza, deslocada do contexto. Essa é outra maneira pela qual, embora
desejem falar sobre a mesma coisa, os significados oral e escrito precisam fazer isso de uma
maneira bem diferente.
As diferenças, além disso, vão ainda mais fundo. Significados orais e escritos não são apenas
modos diversos do ponto de vista da transmissão de mensagens (comunicação), ma#também
do ponto de vista do pensamento (representação). Para mostrar como essas diferenças podem
ser profundas, reproduziremos a seguir uma "tradução" oral do linguista M. A. K. Halliday de
trecho de um texto da revista Scientific American.

298 1 LETRAMENTOS
Significado escrito: um texto da revista Significado oral: a "tradução" de Halliday para (algo mais
Scientific American semelhante à) linguagem oral

As ações civis privadas na lei têm um significado especial, na me- Uma coisa é especialmente significativa, e isso é que as pessoas
dida em que fornecem uma saída para os esforços de cidadãos deveriam ser capazes de trazer as ações civis privadas na lei, porque
independentes. Tais ações oferecem um meio pelo qual as múltiplas fazendo isso os cidadãos independentes podem se envolver. Ao
iniciativas dos cidadãos privados, individua/mente ou em grupos, trazerem essas ações, quer estejam agindo como indivíduos ou em
podem ser utilizadas na avaliação de tecnologias, na internalização grupos, os cidadãos privados podem continuar tomando a inicia-
de custos e na proteção ambiental. Constituem um canal através tiva; eles podem ajudar a avaliar a tecnologia, podem ajudar a
do qual pode ser dada expressão aos diversos interesses, perspec- internalizar custos e podem ajudar a proteger o meio ambiente. O
tivas e humores do público em geral. público, em geral, que quer todos os tipos de coisas diferentes, e que
pensa e sente de todas as maneiras diferentes, pode expressar todos
A atual preocupação popular com o meio ambiente estimulou esses desejos e pensamentos e sentimentos ao trazer ações na lei.
ações civis privadas de dois tipos principais.
Atualmente, as pessoas estão preocupadas com o meio ambiente;
então elas têm trazido algumas ações civis privadas, que foram
principalmente de dois tipos.

Mais denso. . Mais palavras do que na escrita para construir um significado


. Mais sinóptico. equivalente.
Menos redundante. . Orações mais curtas e em maior número.
. Usa nominalizações - junção de uma ideia que poderia ter . Unidades de informação (sequências) uma após a outra.
sido uma oração falada inteira em um substantivo ou um . Conecta trechos de informação com palavras que ligam coisas
sintagma nominal dentro de uma oração escrita. aproximadamente equivalentes.
Precisa ser explícito para fazer sentido para estranhos ou Não tem que se referir a sujeitos, tempo e lugar explicitamen-
pessoas não presentes. te porque todos estão presentes e assumidos.
. Usa pronomes que fazem referência cruzada a sujeitos, luga- Pode deixar algumas coisas a que se refere implícitas.
res e ações. . Concentra-se no aqui e agora.
. Maior probabilidade de escolher a terceira pessoa para se Usa a voz ativa mais frequentemente.
referir a eventos. . Tem uma aura de subjetividade.
Deslocado do contexto. . Está propenso a representar o mundo mais como um proces-
Utiliza voz passiva mais frequentemente. 50.
Tem uma aura de objetividade.
Está inclinado a representar o mundo mais como um produto.
Quadro 13.3: Versão em português da comparação de Halliday entre os significados escrito e oral.'

Já de início, simplesmente na transcrição, a tradução de Halliday perdeu muito daquilo que


torna a língua oral diferente, como as revisões contínuas que teriam sido ouvidas na fala, sua
entonação, suas pausas e suas hesitações. Ele também colocou o texto falado em frases e parágrafos,
elementos típicos da escrita, que Kress chama de "unidades de informação". 3
No entanto, não é isso que Halliday quer destacar ao comparar textos orais e escritos; as escolhas
das palavras, bem como as relações de palavras, também mudam. A fala usa mais palavras do que
a escrita para construir um significado equivalente, e também orações mais curtas e em número
maior. 4 A escrita é mais densa, mais sinóptica, com menos redundância. A fala une as unidades de
informação uma após a outra, conectando-as com palavras que ligam coisas aproximadamente
equivalentes (como "e", "ou", "então") e conectivos lógicos que ligam coisas cuja difeança precisa
ser destacada (como "até", "conforme", "para': "porque", "se': "que"). A escrita, por outro lado, usa
um processo chamado nominalização, que é o emprego de um substantivo que remete a um verbo
anteriormente mencionado ou a uma ideia que pode ter sido uma oração inteira falada, na forma
de um substantivo ou de um sintagma nominal dentro de uma oração escrita. No exemplo acima,

2 Halliday, 2002, p. 330.


3 Kress, 1993, pp. 175-176.
4 Halliday, 2002.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS SONOROS EORAIS 1 299


o texto oral "Eles podem ajudar a internalizar custos" se torna "a internalização de custos", no texto
escrito. Em outras palavras, a escrita realiza a tarefa lógica de conectar ideias de uma maneira bem
diferente da fala; um modo é tão intrincado quanto o outro em termos de designs de significado,
mas os tipos de complexidade são muito diferentes. Esses são sinais de que seus modos de
racionalização são totalmente diferentes, posto que são maneiras diferentes de ver o mundo e de
pensar sobre o mundo.
O significado humano pode ser expresso na fala e na escrita (como também em cada um dos
outros modos), o que torna a alternância de modos possível. É assim que podemos significar sobre
as mesmas coisas, de formas paralelas, em diferentes modos, muito embora o significado nunca
venha a ser o mesmo em cada modo. Por exemplo, a fala muitas vezes acaba sendo menos explícita
do que a escrita, pois as formas características de se referir na fala são esclarecidas pela postura do
falante, pela sua conexão com os outros participantes e pelo nível de certeza que ele quer expressar
sobre seu conhecimento. Isso ocorre em parte porque muita coisa pode ser falada na presença
manifesta dos participantes no tempo e no espaço, sua localização conjunta em tempo real. Mesmo
que não seja explicitamente declarado, o que é dito se torna claro porque muita coisa naquele
contexto é óbvia. Ao ouvirmos uma conversa entre duas pessoas em um ônibus ou em um restaurante,
podemos, não raro, ter muita dificuldade de descobrir do que estão falando, porque não
compartilhamos da compreensão de todos os pontos de referência para todos os "eles", "lás" e "esses"
que essas pessoas dizem.
A fala também é cheia de declarações como "eu penso", "na minha opinião", "tenho certezà',
"você vê" e "tipo assim': que tornam a interação dos participantes muito mais clara do que o é a
maioria das situações de escrita. A fala também faz uso, com mais frequência, da voz ativa, em que
"quem está fazendo o que para quem" aparece diretamente declarado ("Eu fui à festa ontem e havia
muitas outras pessoas lá também"). Nessas e em outras formas, a fala torna o papel carregado de
interesse do falante como construtor de significado mais explícito.
Por outro lado, um escritor é mais propenso a escolher a voz passiva, assim como é mais inclinado
a escolher a terceira pessoa para se referir a eventos ("A festa de ontem estava bem frequentadà').
Nesse caso, o escritor, pode, por exemplo, estar se referindo à mesma coisa que um falante, mas,
por escrito, tende a criar a impressão de que objetos e eventos possuem vida própria. É por isso
que a escrita tem uma aura de objetividade, enquanto a fala tem uma aura de subjetividade.
Nessa perspectiva, a escrita, explica Halliday, tende a representar o mundo mais como um
produto; a fala, por sua vez, como um processo. A fala é mais fluida, coreográfica e orientada para
eventos (fazer, acontecer, sentir, dizer, ser), com significados relacionados serialmente; a escrita é
densa, estruturada, cristalina e orientada para as coisas (entidades, processos objetivados), com
significados relacionados como componentes. 5
Por isso, a escrita não apenas se destina a cruzar distâncias no tempo e no espaço entre o ponto
de sua produção e os pontos de sua leitura, mas também cria um senso de distância atravêf de sua
aura de objetividade. Claro, isso é mais um efeito retórico, uma impressão que se espera conseguir,
do que, de fato, uma realidade. Os falantes, por sua vez, são mais explícitos sobre sua conexão
subjetiva, imediata, no aqui e agora, com seus significados. É difícil para eles não expressarem seu
investimento pessoal no que estão dizendo.

5 Idem.

300 1 LETRAMENTOS
Escritores, no entanto, podem criar uma sensação de que a escrita fala objetivamente, de que
seu conteúdo é verdadeiro e factual. Enquanto na fala eu diria algo como: "Eu concordo com todos
os cientistas que dizem que o aquecimento glob al foi causado por humanos", na escrita, mais
exatamente em um artigo científico, eu expressaria essa mesma ideia da seguinte form a: "Evidência
científica esmagadora apoia a tese de que a mudança climática é um subproduto da ocupação
humanà'. É assim que o uso na fala de "concordo", que mostra apenas minha opinião, contrapõe-se
à autoridade da "evidência científicà', na escrita. Note-se que, em ambos os casos, ainda "estou
concordando", mas estou fazendo com que minha opinião tenha a aparência de uma "ciência sérià'.
Contudo, nada é totalmente objetivo, pois temos sempre interesses e, todo enunciado é uma
expressão desses interesses. No entanto, podemos usar a escrita para criar a impressão de objetividade,
encobrindo nosso interesse pela voz de uma autoridade maior do que a nossa.
Podemos falar sobre as mesmas coisas por meio da fala ou da escrita; contudo, a escolha de um
modo ou de outro pode também significar de maneiras muito diferentes. É justamente por significar
de maneiras tão diferentes que a escrita e a fala acabam significando coisas diferentes e, como são
capazes de significar coisas diferentes, são usadas para diferentes propósitos, em diferentes momentos
e em diferentes lugares. Escolhemos falar ou escrever em um contexto ou outro porque, no momento,
é mais adequado à nossa intenção de significado; escolhemos um modo ou outro porque achamos
que este ou aquele funcionará melhor para nossos propósitos. As escolhas que fazemos entre fala
ou escrita são, porf:anto, consequência das peculiaridades do design de cada modo, peculiaridades
essas que não são apenas sobre como podemos nos referir, mas sobre o que podemos significar.

Caminhos para a sinestesia: Cruzamentos entre significados oral


e escrito
A"escrita como a fala" e a"fala como a escrita"

Existe, no entanto, uma série de espaços de cruzamento em que a fala "age mais como a escrità'
e em que a escrita "age mais como a falà'. Tomemos o primeiro caso, em que um palestrante pode
falar a partir de anotações esquemáticas, em vez de ler um roteiro, ou um especialista pode dar
respostas a perguntas em uma entrevista de rádio ou televisão. Nesses exemplos de contextos de
fala mais formais, os textos falados que o palestrante e o especialista proferem seriam parecidos
com uma escrita formal, se comparados ao modo como falariam sobre os mesmos assuntos com
um amigo enquanto tomassem uma bebida. Nas primeiras situações, o palestrante e o especialista
procuram parecer formais na entrevista ou diante do auditório porque fazem uso de algumas das
formas gramaticais características da escrita formal em seus discursos; isso faz p.ól;i'ecer que estão
falando verdades objetivas, o que, por sua vez, faz com que pareçam autoritários. Ong chama isso
de oralidade secundária, ou oralidade que foi influenciada pela escrita alfabética.6 No entanto, por
mais que tentem, os significados desses falantes ainda são irredutivelmente orais, pois, mesmo que
tenham sido fielmente escritos e não tenham sido editados como transcrições de entrevistas ou
palestras, ainda assim sempre é possível dizer que foram transcritos a partir da língua falada.

6 Ong, 1982.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS SONOROS EORAIS 1 301


Vejamos, agora, o outro tipo de caso de cruzamento, em que a escrita "age mais como a fala".
Citações diretas e diálogos teatrais são duas maneiras de tentar capturar, via texto escrito, as nuances
da língua falada, embora, como já dissemos anteriormente, isso nunca seja totalmente possível.
Cartas pessoais estão mais próximas da fala do que um memorando formal, mas isso é apenas uma
questão de grau; escrever um diário é um tipo de conversa para si mesmo, mas, mesmo nesse caso,
o texto não é nada parecido com a língua falada que se faz silenciosamente consigo mesmo. Esses
são exemplos de textos escritos que, dada a sua natureza, se esforçam para captar os significados
característicos da oralidade, porém, ainda assim, são significados irredutivelmente escritos,
independentemente disso, pois a carta mais pessoal não é como uma conversa de verdade, e nenhum
roteiro teatral é exatamente como qualquer conversa que possa de fato acontecer no mundo. Para
exemplificar, trazemos a seguir um trecho conhecido do livro As aventuras de Huckleberry Finn,
de Mark Twain, em que a escrita se assemelha à fala; trata-se de um parágrafo que capta parte da
cadência da fala cotidiana das comunidades do Mississippi no século XIX.

Às vezes a gente tinha o rio inteiro só pra nós por muito tempo. Mais longe tavam as margens e as ilhas,
no outro lado da água; e talvez uma centelha - que era uma vela na janela de uma cabana - e às vezes
sobre a água dava pra ver uma ou duas centelhas - numa balsa ou numa chata, sabe; e a gente podia talvez
escutar uma rabeca ou uma canção vindo de uma dessas embarcações. É muito bom viver numa balsa.
A gente tinha o céu lá em <lima, todo pontilhado de estrelas, e costumava deitar de costas e olhar pra elas,
e discutir se foram feitas ou se só apareceram - Jim ele achava que foram feitas, mas eu achava que elas
aconteceram; calculava que ia levar muito tempo fazer tantas estrelas. Jim dizia que a lua podia ter posto elas;
bem, isso parecia razoável, então eu não disse nada contra, porque tinha visto um sapo pôr quase tantos
ovos, por isso é claro que podia ser feito. A gente também via as estrelas cadentes e observava os riscos
que deixavam no céu. Jim achava que elas tinham ficado mimadas e eram empurradas pra fora do ninho. 7

Embora o trecho procure reproduzir a fala por meio de uma escrita informal, trata-se de um
texto escrito que apresenta um certo hibridismo com elementos característicos da fala e da escrita.
O exemplo, então, mostra que, em toda a gama de tipos de escrita, alguns gêneros são um pouco
mais próximos das características distintivas da fala do que outros, embora ainda sejam textos
escritos. Outros gêneros escritos, usados em contextos formais, estão mais distantes da fala informal,
como artigos científicos ou contratos legais. Quando se deseja marcar relações de poder e saber, a
escrita tende a ser mais formal (com "mais cara de escrita"); quando, porém, se quer minimizar ou
superar as assimetrias de poder, a escrita é mais informal, caminhando na direção da fala cotidiana.
O ambiente atual dos recursos midiáticos está cheio desses tipos de formas híbridas e cruzadas.
E-mails são menos formais do que cartas tradicionais em ambientes de negócios; mensagens de
texto são menos formais do que os telegramas; mensagens instantâneas de aplicativos fazem uso
•.,;/T
de muitas características típicas da fala, inclusive com uso de emoticons; um blogueiro soa mais
como se estivesse falando diretamente com seu leitor do que um escritor ou jornalista de revistas
e jornais tradicionais; artigos científicos são cada vez mais "falados" em vídeos na internet; há
Illenos leitores à moda antiga de notícias de jornais, bem como ouvintes e telespectadores passivos
de notícias de rádio e de televisão, e mais pessoas expressando opiniões fortemente de maneiras

7 Twain, 2003, p. 95.

302 1 LETRAMENTOS
distintamente orais. Por isso, os significados orais estão se tornando partes cada vez mais importantes
de nossas vidas cotidianas.
~~[!]
~ Veja: "Fala e escrita - Parte 1".
~
Esses desenvolvimentos estão profundamente ligados às sensibilidades do nosso tempo, às
maneiras como parecemos valorizar a perspectiva em detrimento da informação, e como, em um
espírito mais igualitário, muitas vezes queremos minimizar a hierarquia e o poder. São, portanto,
as razões práticas pelas quais os letramentos atuais devem se concentrar não apenas na escrita em
suas formas clássicas, mas também nas suas interfaces com a fala. É também por isso que os
professores de hoje precisam centrar na alternância de modos de construção de significados,
valorizando formas híbridas intermediárias em que um modo influencia o outro, nunca apagando
suas diferenças fundamentais.

Discurso de sala de aula em mídias velhas e novas, na fala e na escrita

Um exemplo muito interessante de espaço cruzado entre a fala e a escrita é a clássica discussão
oral em sala de aula comparada à discussão escrita em fóruns da internet ou em fluxos de atividades
de mídias sociais. Ambas são formas de discussão, mas as duas são notavelmente diferentes, uma
vez que os fóruns da internet e as mídias sociais tornaram gêneros tradicionalmente orais em
escritos.
Em seu livro pioneiro publicado em 2001, Discurso da sala de aula (Classroom discourse),
Courtney Cazden caracteriza o padrão clássico da discussão em sala de aula como Iniciação-
-Resposta-Avaliação (I-R-A). Eis o padrão clássico:

O professor inicia: "Qual é o planeta mais distante do Sol no Sistema Solar?".


Os alunos respondem (Levantam as mãos e um responde em nome de todos os outros): "Plutão".
O professor avalia: "Sim, está correto!" (Ou um final alternativo: "Não, está errado, alguém sabe a
resposta?").8

Agora vamos comparar com as discussões que acontecem em um fluxo de atividades na internet.
Em princípio, são idênticas ao modelo anterior: um espaço de discussão em sala de aula que encena
o padrão discursivo (I-R-A). No entanto, são totalmente diferentes das seguintes maneiras:

1. Todo mundo responde. No clássico modelo I-R-A, uma pessoa responde por todas. Ao contrário
disso, nas discussões da internet, potencialmente todos respondem, ou pelo mefi.os existe a
expectativa de que todos responderão. Resultado: se a participação de todos ocorresse na
lógica da sala de aula clássica, seria algo caótico (todos os alunos tentariam falar ao mesmo
tempo) ou, então, o professor da turma teria que esperar um tempo interminável para que
todos os alunos, um de cada vez, pudessem responder.

8 Cazden, 2001, p. 62.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS SONOROS EORAIS J 303


2. Barreiras reduzidas para a(s) resposta(s). Aqui está uma regra básica: no 1-R-A clássico,
geralmente quem responde primeiro é o aluno que tem confiança suficiente para levantar a
mão, ou aquele com quem o professor pode contar para obter a resposta antecipada. Nas
discussões escritas na internet (usaremos como exemplo aqui o ambiente de aprendizagem
on-line Scholar), a iniciação acontece por meio da ferramenta do Scholar chamada Update
(atualização), que permite que os alunos interajam através de textos, gerando (uma) resposta(s)
por meio de comentários interconectados uns com os outros, formando, assim, um fluxo de
diálogo contínuo e coletivo. Em uma de nossas pesquisas, os alunos nos disseram que ter
alguns momentos a mais para examinar sua resposta, antes de pressionar o botão "submeter
comentário" ("submit comment"), reduzia sua ansiedade por participar da atividade.9
3. Quando todos reagem, as diferenças entre os alunos tornam-se visíveis e valiosas. No cenário
clássico de 1-R-A, não é praticável obter respostas de todos. A expectativa é de que haja
uma resposta única, porque a pessoa que respon de pelo restante deve atuar como uma
espécie de representante da turma. Isso se torna um exercício para adivinhar a resposta
que o professor espera, já que, ao fazer a pergunta, sabendo que apenas uma pessoa vai
replicar, isso deve significar que há apenas uma resposta. Mas Plutão é realmente um
planeta? E, se for, pode haver outros planetas pequenos? A definição de planeta não é tão
simples. A maioria das coisas é interessante o suficiente para que haja mais de uma resposta,
ou respostas com nuances diferentes, ou exemplos diferentes que os alunos possam dar
para ilustrar um ponto baseado em interesses e experiências pessoais. Ao contrário, nas
discussões realizadas no ambiente Scholar, por exemplo, a resposta unívoca, típica do
modelo 1-R-A, torna-se, então, uma resposta polivalente, pois identidades e vozes distintivas
aparecem. Os alunos logo começam a discutir essas diferenças por meio de comentários.
Se o modelo 1-R-A clássico apaga as diferenças, no Scholar, estas se tornam visíveis e
valorizadas como um recurso para o diálogo intelectual. Além disso, as ansiedades por
participar e expressar a própria opinião vão sendo reduzidas à medida que as respostas
das outras pessoas começam a aparecer.
4. Isso é altamente envolvente. O modelo 1-R-A clássico é chato: ouve-se o professor fazer uma
pergunta e um aluno dar uma resposta. Ao contrário, o ambiente de aprendizagem on-line
Scholar é muito mais envolvente, pois, em vez de uma resposta, pode haver tantas respostas
quantos forem os membros participantes da(s) comunidade(s). Na era dos feeds intensivos
do Facebook e do Twitter, há uma persistência social na visibilidade da discussão; o usuário
permanece engajado porque os outros leem e respondem às suas atualizações e aos seus
comentários.
5. A mistura leitura/escrita e a mistura de participações são adequadas. As salas de aula do
modelo 1-R-A têm alunos ouvindo mais do que falando, lendo mais do que escrevendo. Como
as mídias sociais participativas, os ambientes de aprendizagem on-line, como ô"Scholar,
oferecem um equilíbrio entre leitura e escrita e uma expectativa de participação ativa que
ressoa com o espírito de nossos tempos. Além disso, o texto da discussão é enganosamente
diferente da língua oral, o que significa que analisar um comentário e poder editá-lo antes
de enviá-lo faz mover-se da gramática da fala para a gramática da escrita e, então, para o
"letramento acadêmico".

9 Cope & Kalantzis, 2013.

304 1 LETRAMENTOS
6. Podemos sair das quatro paredes da sala de aula e do seu horário fixo. Nos tipos de ambientes
das mídias sociais, não há fundamentalmente diferença entre a discussão síncrona e interpessoal
em sala de aula e a discussão assíncrona a distância. Além disso, há permutações intermediárias
úteis: "Termine a discussão h-0je à noite" ou "Não está na escola hoje? Não tem problema,
participe de qualquer maneira".
7. Qualquer um pode ser um iniciador. Não é só o professor que pode iniciar uma discussão em
sala de aula. No Scholar, por exemplo, se o professor decidir abrir essa configuração em seu
ambiente de aprendizagem, é possível aos alunos fazer atualizações, o que inclui qualquer
número de mídias (imagem, som, vídeo e conjunto de dados).
8. Uma nova transparência, análise de aprendizagem e avaliação. Enquanto as discussões na
sala de aula tradicional são efêmeras, as discussões on-line são registradas. No Scholar, todos
respondem e todas as respostas podem ser vistas e analisadas, usando-se uma ferramenta de
análise de aprendizagem (learning analyti-t:s), que avalia a frequência e a extensão do
envolvimento, o nível de linguagem, as visualizações de redes de discussão e vários outros
parâmetros.

Veja: "Discussão escrita em sala de aula em novas mídias':

Sinestesia e aprendizagem
Há profundas razões educacionais pelas quais gostaríamos de trazer de volta para os letramentos
a alternância dos modos oral e escrito, ligada ao conceito de sinestesia, que pode, sobretudo, ser
usada como estratégia de aprendizagem. Podemos significar uma casa por meio de uma imagem
mental ou fazer isso através de uma descrição escrita; podemos ainda pedir a um aluno que desenhe
a casa e depois escreva uma descrição sobre ela. Nesses casos, os significados se referem à mesma
IX)isa, mas de maneiras completamente diferentes, o que faz com que se tornem significados diferentes
10bre a mesma coisa. O mesmo acontece com a fala e a escrita: podemos pedir a um aluno que fale
obre uma casa e depois escreva sobre ela. Os textos oral e escrito são tão diferentes um do outro
to o são o visual e o escrito. Também nesse caso a alternância de modos terá sido útil para a
dizagem, na medida em que fazer sentido sobre "a casa" através de um modo nos ajuda a
armar o significado através do outro, acrescentando também algo ao desenvolvimento do significado
-i:ral e multimodal da casa.
Os professores que atuam na alfabetização inicial, como era de esperar, têm naturalmente usado
égias sinestésicas para apoiar o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita de seus
os. O método fônico, por exemplo, é, em si, um estratagema que faz uso da sinestesia, em seus
entos mais eficazes, explorando o nexo sutil e ilusoriamente intricado entre o sorri1 omo é ouvido,
som como é representado na escrita. Assim, para facilitar o deslocamento do modo oral para o
ito, as primeiras leituras geralmente carregam as cadências da fala para a página impressa.
Ilhada Iyer descreve um caso de alternância de modos em sala de aula de alfabetização inicial. Em
os alunos leem contos de fadas um para o outro, concentrando-se no som dessas histórias,
rme são contadas - seu tom, sua acentuação e suas ênfases. Eles, então, iniciam um processo
posição multimodal para criar seu próprio conto de fadas, uma colagem dos contos que leram.
fessor narra a história geral para toda a turma. Os alunos, então, criam várias páginas usando

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS SONOROS EORAIS 1 305


um programa de pintura, que o professor compila em uma história digital da turma inteira, apresentada
em PowerPoint, cujo título é A grandíssima e enorme cenoura (The great big enormous carrot).

Era uma vez Pinóquio, que plantou uma semente de cenoura. "Cresça, pequena semente de cenoura.
Cresça doce. Cresça forte': disse ele.
A cenoura ficou grande e doce e forte. "Eu vou puxar essa cenoura grandíssima e enorme", ele disse. MAS
ele não conseguia levantar.
Pinóquio chamou Rapunzel para ajudar.
Rapunzel chamou os Três Porquinhos para ajudar.
Os Três Porquinhos chamaram o Grande Lobo Mau para ajudar.
O Lobo Mau chamou Cinderela para ajudar.
Cinderela chamou o Patinho Feio para ajudar.
O Patinho Feio chamou a Bela Adormecida para ajudar.
A Bela Adormecida chamou Jack e o Pé de Feijão para aj udar.
Jack e o Pé de Feijão chamaram o Lenhador para ajudar.
Eles puxaram e puxaram e puxaram.
Subiu a cenoura finalmente!
Eles levaram a cenoura para casa e fizeram um grande bolo de cenoura como sobremesa. 10

A fonte oral de contos de fadas permanece na repetição e na tipografia (por exemplo, "MAS" e
"puxou e puxou"). Os alunos, então, encenam a história oralmente um para o outro e para seus
pais. O "design sonoro': conclui Iyer, "foi examinado em conjunto com o design gestual, para treinar
os alunos a produzir o texto com efeito adequado ao seu público". 11

Em Soweto, na África do Sul, encontramos Robert Maungedzo ensinando seus alunos do 1 º e do


2 2 anos do ensino médio. "Ensinar literatura foi frustrante para Robert': relatam Stein e Newfield. "Os

alunos não liam os livros - a maioria nem sequer tinha os livros. Robert tentou ajudá-los a passar
nos exames finais, dando palestras sobre os temas e personagens do livro". Um de seus alunos disse-
-lhe um dia: "Estamos perdendo nosso tempo na escola porque as pessoas que estudam estão
desempregadas e aquelas que estão dirigindo carros luxuosos são os criminosos". 12 Robert diz que
isso o impulsionou a fazer uma "busca da almà: Ele, então, decidiu explorar o ensino multimodal,
para fornecer um caminho às ricas experiências orais de seus alunos com o mundo da palavra escrita.
Os alunos de Robert deveriam ler o romance da sul-africana Bessie Head, sobre uma mulher
chamada Margaret, de "raça mistà: que leciona em Botsuana. Sua mãe morreu no parto e seu corpo
está sujo no chão do hospital porque as enfermeiras se recusam a lavar alguém da tribo Masarwa.

Quando Robert pediu a seus alunos que desenhassem em vez de discutir as principais cenas do romance,
o romance ganhou vida para eles. Segundo Robert, um modo de produção semiótica levou a outro. Os
alunos tiraram fotos, cantaram músicas e executaram peças. Eles explicaram que em sua cultm:~s músicas
são cantadas para aliviar a dor, e que a atuação é catártica: "às vezes ficamos sem palavras, mas não sem a
linguagem corporal", disseram[ ... ] No final do ano, no exame Matric, os resultados mostraram uma melhora
dramática; dos 140 candidatos, apenas um não foi aprovado no exame de inglês como segunda língua. 13

10 Iyer, 2006, pp. 25-26.


11 Idem, ibidem.
12 Stein & Newfield, 2002, pp. 9-10.
13 Idem , ibidem.

306 1 LETRAMENTOS
Robert passou a explorar em maior profundidade a tradição oral dos "poemas de louvor" (ªpraise
poems") africanos, uma forma ritualística por meio da qual os negros sul-africanos se apresentam
ou identificam a si mesmos e suas situações. Toando, um estudante da turma de Robert, depois
dessa mudança, já havia escrito 81 poemas, incluindo "Soweto para jovens aberrações" ("Soweto
for young freaks"), como Stein e Newfield explicam:

Parece um tipo contemporâneo de kwaito (um gênero de música popular atual) e tsotsitaal ( uma língua
de rua multilíngue), e capta tanto o glamour quanto o perigo da vida nas ruas. É, apesar de sua ironia,
uma celebração do gueto e contribui para o arquivo da escrita sobre a vida da comunidade. 14

Traduções aparecem entre colchetes.

Soweto ... Soweto para jovens aberrações


Em Soweto não há pássaros para cantar no céu
Eles comeram todos eles.
Em Soweto não há galos para acordá-lo
porque nós os tivemos que comer no ação de graças
Em Soweto não há mais cavalos para montar
porque Basotho ba djile. [porque o povo do Basotho os devorou]
em Soweto nós temos AK47 para cantar
Mas em Soweto nós temos gritos para te acordar
Mas em Soweto nós roubamos carros para dar uma volta
Porque amajita a shaisile. [porque gângsteres fizeram uma matança] 15

Outro estudante, Sonnyboy, escreve:

Meu poema de louvor a Tsonga induziu-me a conhecer minhas raízes. Eu era como uma árvore sem
raízes, um riacho sem uma fonte. [ ... ] Eu acho que essa é a coisa mais preciosa que já fiz na minha vida.
Desde que comecei a estudar, nunca tive a oportunidade de descobrir meus talentos e dons ... É como se
eu estivesse fortalecido em conhecimento e compreensão. 16

Stein e Newfield, então, concluem: "Robert caracterizou suas experiências como uma jornada,
começando com a Estação da Relutância, viajando para a Estação da Incerteza, e então chegando
à Estação da Agêncià'. 17
Em um exemplo final dos significados orais, fazemos uma viagem com Michael Newman para
uma escola de ensino médio no Queens, Nova York, EUA. Aqui ele examina o gênero do vernácu-

14 Idem, p. 273. .-.lf"


15 Idem, ibidem [Soweto ... Soweto for Young Freaks / ln Soweto there are no birds to sing in the sky / They ate them ali
up. / ln Soweto there are no cocks to wake you up / 'cause we had them for thanksgiving / ln Soweto there are no longer
horses to ride/ because Basotho ba djile. / But in Soweto we have AK47 to sing / But in Soweto we have screams to wake
you up / But in Soweto we have stolen cars to ride/ Because amajita a shaisile].
16 Idem, p. 274 [My Tsonga praise poem induced me to know my roots. l was like a tree without roots, a brook without a
source: [... ] l think this is the most precious thing I have ever clone in my life. Since I began schooling l have never had
an opportunity to discover my talents and gifts [... ] It's like I was fortified in knowledge and understanding (Stein &
Newfield 2003, p. 2.844)].
17 Idem, ibidem.

CONSTRUINDO SIGNIFICADOS SONOROS EORAIS J 307


lo oral "cifra de rap" ("rap cipher"), ou improvisação, de competição de rimas (round-robin rhyming).
Em uma concepção mais estrita, lamenta Newman, o rap não seria considerado letramento. Essa
escola, no entanto, reconheceu o
rap como um poderoso modo de
construção de significado oral,
dentro de uma visão mais ampla ·
dos multiletramentos. Suas práti-
cas combinam música hip-hop com
grafite (b-boying) e DJing (turnta-
blism). "Querubim" ("Cherub") é
um membro da equipe de rap
"Inumerável Esquadrão" ( "Squad
Innumerable"), que frequenta a pe-
quena escola secundária pública,
Urban Arts Academy. Aqui está o
começo de uma improvisação por
Querubim: Figura 13.3: Soweto.

Yao Yao Olá,


Yeah Querubim passa por todos
Orgulhoso com tudo ao meu redor.
Como o meu nome é o sol.
Número um.
Quebrando todos os recordes
Querubim é garantido para cuspir um dardo
Através do seu coração
Aparecer no escuro
Quando a noite vem.
Querubim sempre a rima nunca feita.
Meu estilo flui consistentemente
Não é ninguém
nesta vizinhança
foda comigo.
Porque eu não posso contar de volta a partir de três.
E você pode ver com que facilidade
Eu esmago MCs
Porque eu fluo consistentemente.
Querubim, aquele gato que líricamente
Parte os rappers ao meio; você sabe o nome deles.
Lembre-se disso: vai ser o mesmo
daqui a dez anos, mas agora, temem esse estilo.
Porque querubim, huh, vai ser estilo livre.18

18 Newman, 2005, p. 405 [Yao Yao Hey yo, / Yeah Cherub blasts past everyone / Proud with ali around me. / Like my name is
the sun. / Number one. / Breaking out ali the charts / Cherub is guaranteed to spit a dart / right through your heart. / Appear
in the dark / When the night comes. / Cherub always the rhyme never done. / My style flow consistently / Ain't nobody / in

308 1 LETRAMENTOS
Ao comparar a cena rap underground à qual pertencem Querubim e seus amigos. Newman
explica que esse "esquadrão" era considerado, até certo ponto, um artefato da escola. Alguns disseram
que o trabalho de rap na escola era "apenas uma aulà'. Outros, no entanto, disseram que essa era
a única razão pela qual ainda estavam na instituição. Alguns dos artistas inclusive tinham criado
uma produtora com um site, oferecendo MP3s para download. 19
Esses são exemplos marcantes de professores explorando ao máximo as diferenças entre os
modos de significado oral e escrito e usando a sinestesia, ou alternância de modos, como base para
uma poderosa pedagogia multimodal. Com efeito, todo significado é sempre, intrínseca, inevitável
e humanamente, multimodal. Assim, a escrita não pode acontecer sem alguma visualização, nem
sem dizer coisas para nós mesmos em significado oral, na medida em que traduzimos esse significado
para a escrita. A aprendizagem sinestésica, multimodal, leva esses processos à consciência, discutindo
explicitamente a relação dos elementos do design em cada modo e fazendo com que os alunos
construam seus significados em um modo e depois em outro. Há poder cognitivo nesses dois
movimentos, o que encoraja também a metacognição intrínseca à criação de significados sobre o
significado e uma profundidade de aprendizagem proveniente da construção de sentidos em um
modo, depois em outro. Esses são os fundamentos dos letramentos (no plural).

Sumário
Significados sonoros e orais Significados escritos, comparativamente

Transportado pelo sentido da audição e, nesse aspecto, inti- Carregado pelo sentido da visão e, a esse respeito, estreita-
mamente ligado ao significado sonoro mente ligado ao significado visual

. Hesitações, revisões e reformulações no momento (síncronas) . Revisões cuidadosamente medidas, invisíveis para os leitores
(assíncronas)

Sequenciação de ideias, um fluxo linear Estruturação hierárquica de ideias (por exemplo, título, seções,
parágrafos, frases, orações)

. Cruzamentos de sign ificados orais e escritos: Discurso direto citado


- verso falado e história; . E-mail
- letras de música; Texto e mensagens instantâneas
- diálogo teatral; Postagens em redes sociais
- conversa técnica: falando (um pouco) "como se escreve''.

Processos de conhecimento
Experienciando o conhecido
1. Crie um podcast para um dia ou parte de um dos seus dias. Quais alertas e avisos~ ocê encontra

em um dia? Quais sons ambientes você experimenta? Quais significados você atribui a esses sons?

this yicinity / fuck with me. / 'cause I can't count back from three. / And you can see how easily / I crush MCs / 'cause I flow
consistently. / Cherub, huh, that cat that lyrically / rip rappers in half; you know their name. / Remember this: it gonna be
the sarne/ ten years from now, but right now, fear this style. / Cause Cherub, huh, gonna freestyle (Newman, 2005, p. 405)].
19 Idem, ibidem.

CONSTRU IN DO SIGNIFICADOS SONOROS EORAIS 1 309


Experienciando o novo
2. Ouça várias músicas de um gênero desconhecido, com ou sem letra. Que sentimentos ou

significados a música evoca para você? Explique as associações que você faz.

Conceitualizando por nomeação


3. Crie uma tabela de comparação que contraste as características distintivas da língua oral com
as da língua escrita. Dê exemplos de cada característica.

Analisando criticamente
4. Examine alguns cruzamentos de textos orais-escritos contemporâneos, como mensagens de
texto em aplicativos. Quais características da língua oral elas têm? Quais são as vantagens e os
perigos desses tipos de comunicação? Compare com gêneros mais antigos e mais formais, como
uma carta comercial ou um telegrama.

Aplicando apropriadamente
5. Grave uma pessoa falando de improviso sobre um assunto. Transcreva o que ela diz (Que desafios
você experimentou na transcrição?) . Agora transforme esse texto em escrita formal (Que
mudanças você precisou fazer? Como os significados dos textos orais e escritos são similares e
diferentes?).

Analisando funcionalmente
6. Leia um texto escrito formal, como um relatório científico. Analise os elementos de design desse
texto que o tornam diferente da língua falada.

Aplicando criativamente
7. Planeje uma experiência de aprendizagem que mova os alunos entre a língua oral e a escrita,
de tal forma que destaque as diferenças, assim como aproveite ao máximo os paralelos entre os
dois modos.

310 1 LETRAMENTOS
Analisam criticamente as características mais e menos bem-sucedidas dos designs dos sites ("analisar
criticamente") e, então, aplicam o que aprendem na criação de um site e de um jornal da turma
("aplicar apropriadamente" e "aplicar criati~ente"). O objetivo desse passeio pelos processos de
conhecimento é aproveitar as identic!add de cada aluno de duas maneiras: explorar interesses
pessoais e desenvolver expertise para expressar esses interesses em um ambiente da internet. Além
de exigir muita leitura e escrita, o trabalho também visa explicitamente expandir o conhecimento
técnico dos alunos sobre a internet, bem como as maneiras mais eficazes de empregar seus recursos
para construir significados. 1
Esse projeto se tornou um módulo de ensino na plataforma digital de aprendizagem on-line
Scholar, e por meio dele os alunos do 62 ano contribuem com um relatório de informações sobre
tópicos pelos quais têm grande interesse para a construção de umafanzine on-line. Nesse ambiente,
eles exploram tópicos, público-alvo, propósito, características de relatórios de informações on-
-line, e, em seguida, redigem, fornecem retorno, revisam e, por fim, publicam seus relatórios no
Scholar.
Um outro projeto bastante interessante, que também buscou incorporar e explorar os "processos
de conhecimento': foi desenvolvido pela professora Walkyria Monte Mór, em um contexto
brasileiro de formação de professores.2 Com base no "Projeto Nacional de Formação de Professores:
Novos letramentos, multiletramentos e línguas", que coordenou entre 2009 e 2014, a autora,
tomando como refetência a perspectiva da aprendizagem pelo design, 3 desenvolveu estudo de
caso com grupo de alunos de uma disciplina de graduação voltada à formação inicial de professores
de línguas de uma universidade pública brasileira. De viés teórico-prático, esse estudo de caso
juntou conceitos teóricos da disciplina e práticas de narrativas autorais em vídeo construídas
pelos alunos.
Com base no arcabouço teórico da disciplina e na sua relação com a proposta de trabalho com
narrativas, surgiram resultados bastante interessantes que culminaram no replanejamento da própria
disciplina de graduação. Essa parte se constituiu em processo de "conceitualização por nomeação",
que contemplou a aprendizagem dos conceitos sociais de narrativa, com foco nas narrativas criadas
por tecnologias, digitais, e em processo de "conceitualização por teoria': que envolveu leitura e
discussão de teorias sobre narrativas, multimodalidade e construção de sentidos, multiletramentos,
letramentos críticos, autoria e agência. Como resultado, então, os estudantes desenvolveram seus
próprios conceitos para construir uma narrativa multimodal bem-sucedida.
No processo de desenvolvimento dessas narrativas, Monte Mór observou que os alunos se
engajaram na "experienciação do conhecido", ao descrevem seu desafio de enfrentar um vestibular
concorrido para entrada no curso de graduação. Ao mesmo tempo, a maioria deles também
"experienciou o novo", quando tomou conhecimento das narrativas dos colegas e quando aprendeu
a usar o programa Flash para desenvolver suas narrativas multimodais.
Os participantes também se envolveram em análises teórico-práticas, com base ntf"relação entre
os conceitos teóricos discutidos na disciplina e suas experiências e conhecimentos fora do contexto
universitário, Essa combinação lhes permitiu o engajamento em outros dois processos de
conhecimento: "analisando funcionalmente", quando tiveram a oportunidade de examinar as funções

1 Cloonan, 2010b; Cloonan, 2015.


2 Monte Mór, 2015.
3 Cape & Kalantzis, 2015d.

72 i LETRAMENTOS
dos sistemas educacionais e de avaliar a adequação do suporte tecnológico para a realização de
suas tarefas, e "analisando criticamente': quando o foco de suas análises recaiu sobre as desigualdades
educacionais e sociais, b e ~ sobre o acesso a esses sistemas de ensino, rememorando, inclusive,
suas dificuldades e ansiedades pessoais durante a preparação para o vestibular.
Os alunos, então, trabalharam muito criativamente na reconstrução multimodal de narrativas
sobre sua entrada na universidade por meio do vestibular. Esse trabalho envolveu discussões
sobre o que deveria ser priorizado pelo grupo em relação ao tema escolhido (vestibular),
planejamento e produção de roteiros individuais, filmagens de narrativas individuais, escolha de
um programa de computador para montagem e produção/reconstrução de uma narrativa coletiva
do grupo.
A produção de uma narrativa multimodal coletiva foi algo inteiramente novo e estimulante para
os alunos, se comparada ao que tradicionalmente se faz no contexto universitário, em que se exigem
atividades de avaliação exclusivamente escritas. Isso fez com que eles tivessem a oportunidade de
aplicar seus conhecimentos, retratando uma diversidade complexa de situação do mundo real.
Nesse sentido, os estudantes puderam "aplicar apropriadamente" o que aprenderam, ao produzirem
uma narrativa em vídeo, e "aplicar criativamente': pois a atividade constituiu algo genuinamente
inovador, enfatizando o que havia sido transformado em suas vidas.

Coisas que se fazem para conhecer


As raízes históricas dos "processos de conhecimento" dos letramentos
Neste capítulo e nos capítulos seguintes da Parte B, tentaremos mostrar que há lições valiosas
a serem tiradas de todas as abordagens de letramento que estamos prestes a explorar: a pedagogia
do letramento na abordagem didática (capítulo 4), a pedagogia do letramento na abordagem
autêntica (capítulo s), a pedagogia do letramento na abordagem funcional (capítulo 6) e a pedagogia
dos letramentos ria abordagem crítica (capítulo
7). Quando cada uma dessas abordagens se
constitui de forma um tanto unilateral em seus
métodos, precisamos suplementá-la com
aspectos das outras abordagens. Do mesmo Experienciando Aplicando
o novo
modo, acreditamos também que precisamos Criativamente

Aplicando
rever nossas abordagens para trabalharmos com apropriadamente

os letramentos, alinhando-nos às condições


contemporâneas de construção de significado
- incluindo a multimodalidade e as diversas
formas de comunicação que encontramos em
uma ampla gama de contextos sociais e culturais
em nossas vidas cotidianas. Para isso, precisamos
refinar e ampliar as tradições pedagógicas sobre
as quais nossa profissão é fundada, propondo,
então, uma classificação em quatro orientações: Figura 3. 1: Os "processos de conhecimento''.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS 1 73


• experienciando (o conhecido e o ~
• conceitualizando (por nomeação e por teoria);
• analisando (funcional e criticamente);
• aplicando (apropriada e criativamente).

Chamamos essas orientações de "processos de conhecimento': que se constituem como tipos


fundamentais de pensamento em ação ou "coisas que se podem fazer para conhecer". 4 Fazemos isso
porque queremos enfatizar a pedagogia como "epistemologià', ou as coisas que elas são capazes de
fazer no mundo para conhecê-lo. Os processos de conhecimento também captam a variedade de
diferentes tipos de atividade que os alunos podem realizar como parte de seu processo de
aprendizagem. O Quadro 3.1 mostra as raízes históricas desses processos de conhecimento, embora,
é claro, a "pedagogia ideal" fosse aquela que pudesse envolver uma mistura equilibrada e apropriada
de tipos de atividade.

Abordagem didática Confia extensivamente em "conceitualizar nomeando'; ou ensinando conceitos abstratos


que podem ser aplicados em contextos gerais; no caso da alfabetização, começa com as
regras da fonética, passando pela gramática e, mais tarde, examinando os dispositivos e
estilos de alfabetização canônicos. E quando se trata de textos literários, incentiva um tipo
de imersão - "experienciar o novo" (capítulo 4).

Abordagem autêntica Enfatiza fortemente •experienciar o conhecido'; começando com os interesses, as experiên-
cias e as motivaçôes do aluno. No caso da alfabetização, centra-se no método global e no
processo da escrita, valorizando a autoexpressão do aluno na escrita e o prazer significativo
da leitura (capítulo s).

Abordagem funcional Preocupa-se muito em •analisar funcionalmente'; ou em descobrir como os textos são estru-
turados para servir a diferentes propósitos e 'aplicar adequadamente'; ou aprender a criar
significados que serão poderosamente eficazes (capítulo 6).

Abordagem crítica Detém-se em •analisar criticamente: interrogar as motivações relacionadas aos significados
comunicados e criar textos que se envolvam com o mundo de maneira reflexiva; também
explora "experienciar o conhecido'; quando se trata de expressar identidades pessoais e
sociais e "aplicar criativamente'; quando se trata de fazer textos inovadores por meio de
novas mídias (capítulo 7).
Quadro 3.1: Um resumo das raízes históricas dos quatro processos de conhecimento.

Os processos de conhecimento em termos de sala de aula

O Quadro 3.2 divide cada um dos quatro processos de conhecimento em dois subprocessos,
descrevendo como podem ser traduzidos em atividades de sala de aula. Esses tipos de atividade
fornecem aos professores e alunos mais controle sobre suas escolhas e seus resultados de aprendizagem .
.4'

Experienciando O conhecido: estudantes trazem para a situação de aprendizagem perspectivas, objetos,


ideias, formas de comunicação e informação que lhes são familiares e refletem sobre suas
próprias experiências e interesses.

O novo: estudantes estão imersos em novas situações ou informações, observando ou


participando de algo novo ou desconhecido.

4 Idem, 2015d.

74 1 LETRAMENTOS
Conceitualizando í"----._ ~or nomeação: estudantes agrupam informações em categorias, aplicam os termos de
classificação e definem esses termos.

Com teoria: estudantes fazem generalizações conectando conceitos e desenvolvendo


teorias.

Analisando Funcionalmente: estudantes analisam conexões lógicas, relações de causa e efeito, estru-
tura e função.

Criticamente: estudantes avaliam as perspectivas, os interesses e os motivos próprios e


de outras pessoas.

Aplicando Apropriadamente: estudantes testam seus conhecimentos em situações reais ou simu-


la das para ver se funcionam de uma maneira previsível em um contexto convencional.

Criativamente: estudantes fazem uma intervenção inovadora e criativa no mundo, ex-


pressando distintamente suas próprias vozes ou transferindo seus conhecimentos para
um contexto diferente.
Quadro 3.2: Os processos de conhecimento e sua relação com atividadl!'S em sala de aula.

Esses processos de conhecimento foram originalmente formulados pelo Toe New London Group
(NLG) para a estrutura dos multiletramentos como: prática situada, instrução aberta, enquadramento
crítico e prática transformada. Em aplicações subsequentes dessas ideias em práticas curriculares
com base no projeto da aprendizagem pelo design, reformulamos essas concepções e as traduzimos
em processos de conhecimento mais imediatamente reconhecíveis, relativos ao planejamento, à
documentação e ao rastreamento da aprendizagem. 5

Experienciando Prática situada

Conceitualizando Instrução explícita

Analisando Enquadramento crítico

Aplicando Prática transformada


Quadro 3.3: Relação entre os processos de conheci mento e os quatro elementos
propostos pelo NLG (1996).

Os elementos da aprendizagem pelo design são termos que podem ser usados com alunos na
sala de aula. Ao mesmo tempo, eles captam algumas diferenças profundas entre as formas de
conhecimento ou "movimentos epistêmicos". É interessante, portanto, que os professores também
se familiarizem com esses elementos, mas que não os entendam como uma sequência, já que não
existe uma ordem predeterminada a ser seguida - é possível, por exemplo, começar com conceitos,
tentar aplicá-los e conectá-los à experiência pessoal. Do mesmo modo, não se exige, necessariamente,
a mesma divisão entre os elementos, pois alguns assuntos ou situações de aprendizagem podem
demandar muito trabalho conceitua!, enquanto outros, mais trabalho experiencial. O~.J>rocessos
de conhecimento exigem, em vez disso, que os professores reflitam propositalmente sobre como
devem trabalhar os movimentos epistêmicos que fazem em suas salas de aula, podendo, assim,
justificar suas escolhas pedagógicas com base nos objetivos e resultados de aprendizagem para
indivíduos e grupos.

s Idem, 2009.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS 1 75


)
Experienciando... Conceitualizando.•• Analisando ... Aplicando...

O conhecido: introduzir, mos- Por nomeação: definir ter- Funcionalmente: escrever Apropriadamente: escrever,
trar e falar sobre algo/alguma mos, fazer um glossário, rotu- uma explicação, criar um dia- desenhar, atuar deforma usual
coisa familiar ou "fácil"; ouvir, lar um diagrama, ordenar ou grama de fluxo de dados, de- para resolver um problema.
ver, assistir, visitar. categorizar coisas semelhan- senhar um diagrama técnico,
tes e distintas. criar um storyboard, fazer um Criativamente: usar o conhe-
O novo: introduzir algo menos modelo. cimento que aprendeu de
familiar, mas que, pelo menos, Com teoria: desenhar um forma inovadora, assumir risco
faça algum sentido apenas por diagrama, elaborar um mapa Criticamente: identificar lacu- intelectual, aplicar conheci-
imersão; ouvir, assistir, ver, vi- conceituai ou escrever um nas e silêncios, analisar propó- mento a um ambiente diferen-
sitar. sumário, teoria ou fórmula que sitos (para esse tipo de conhe- te, sugerir um novo problema,
una os conceitos. cimento), predizer e discutir traduzir conhecimento para
consequências, sustentar um uma mistura de "modos" de
debate, escrever um crítica. significação.
Quadro 3,4: Os processos de conhecimento - Exemplos de atividades de letramentos.

EXPERIENCIANDO APLICANDO

O conhecido O novo Apropriadamente Criativamente

Estar no mundo do aluno Estar em novos mundos Fazer as coisas da maneira Fazer as coisas de maneiras
adequada interessantes
Fazer uso do conhecimento e Introduzir novas experiências
da experiência anteriores do aos alunos- reais e/ou virtuais. Agir sobre o conhecimento de Fazer coisas de maneiras inte-
aluno, formação da comunida- O"novo" é a partir da perspec- maneira esperada, previsível ressantes, ao levar o conheci-
de, interesses pessoais, expe- tiva do aluno para construir ou típica, com base no que foi mento e os recursos de uma
riência concreta, motivação sentido, pois pode ter elemen- ensinado. Envolve a transfor- determinada configuração e
individual, o cotidiano e o fa- tos familiares. mação do aluno e exige que adaptá-los a uma configura-
miliar. ele tenha oportunidades para ção diferente - tomando algo
demonstrar sua compreensão de seu contexto familiar e fa-
e seu aprendizado. zendo com que funcione em
outro lugar.

CONCEITUALIZANDO ANALISANDO

Por nomeação Com teoria Funcionalmente Criticamente

Conectar o mesmo tipo de Conectar diferentes tipos de Pensar sobre o que algo faz Pensar em quem se beneficia
coisa coisas
Examinar a função ou lógica Interrogar os propósitos hu-
Identificar novos conceitos/ Generalizar e sintetizar concei- do conhecimento, ação, obje- manos, as intenções e os inte-
ideias/temas, incluindo resu- tos, vinculando-os, compreen- to ou significado representa- resses do conhecimento, de
mo, termos generalizados, dendo como contribuem para do. Para que serve? O que isso uma ação, de um objeto ou de
convenções, recursos, estru- o todo, generalizando os rela- faz? Como funciona? Qual é significado representado.
turas, definições e regras. No- cionamentos de causa e efeito. sua estrutura, função ou quais Quais são suas consequências
mear é o primeiro passo para E se ... ? são suas conexões? Quais são individuais, sociais e ambien-
entender. suas causas/efeitos? tais? Quem ganha? Quem
perde?
Quadro 3.S: Proposta de planejamento curricular com base nos processos de conhecimento.

Os processos de conhecimento na teoria de aprendizagem

•Nesta parte, vamos discutir os processos de conhecimento em termos teóricos. Aprender a


significar é um processo que envolve movimentos de avanços e de recuos através e entre diferentes
formas de construir conhecimento: experiencial, conceitua!, analítico e aplicado.

76 1 LETRAMENTOS
Aprendizagem experiencial dos letramentos
"Experimentar o conhecido" envolve aprendizes que possam refletir sobre suas próprias
experiências de vida, trazendo para a sala de aula conhecimento com o qual estão familiarizados
e suas formas de representar o mundo. Na perspectiva dos letramentos, experimentar o conhecido
busca fazer isso de maneira muito direta, pedindo aos alunos que tragam para a sala de aula artefatos
textuais e práticas comunicativas que possam mostrar os significados que constroem em sua vida
cotidiana. Dessa forma, a aprendizagem por meio da experimentação do conhecido se conecta com
as origens culturais, as identidades e os interesses dos alunos, envolvendo a articulação explícita
da experiência cotidiana que muitas vezes está implícita nas práticas, estimulando a autorreflexão
sobre as fontes de seus interesses e perspectivas. Esses tipos de atividade não apenas possibilitam
que os aprendizes introduzam suas experiências invariavelmente diversas na sala de aula, como
também fazem com que os professores e seus colegas comecem a ter uma noção do conhecimento
prévio de cada aluno.
"Experimentar o novo", por sua vez, ocorre com a imersão em novas situações, informações e
ideias. No caso de letramentos, isso significará principalmente se envolver com novos textos ou
textos de uma variedade desconhecida - ler textos escritos, ouvir textos falados ou sons, observar
gestos e, particularmente, textos visuais (imagens estáticas e em movimento). Dessa forma, os
alunos são expostos a novos significados, fora de suas experiências cotidianas, o que, entretanto,
só funcionará como uma experiência de aprendizagem, de fato, se estiver dentro de uma zona de
inteligibilidade e segurança - suficientemente próxima de suas próprias experiências de vida -,
dentro do que Vygotsky chama de "Zona de Desenvolvimento Proximal" (ZDP). 6 A aprendizagem
experiencial tem sido largamente articulada à tradição do que chamamos "pedagogia autênticà',
relacionada às ideias de Jean-Jacques Rousseau, John Dewey, Maria Montessori e Anísio Teixeira,
em que se aprende aquilo que é socialmente relevante e conectado com as experiências de vida e
as identidades dos aprendizes. No entanto, como uma pedagogia autônoma, ela também foi atacada
e se viu em recuo nas últimas décadas. Discutiremos mais sobre isso no capítulo 5.

Aprendizagem conceituai dos letramentos


"Conceitualizar por nomeação" envolve classificação por propriedades gerais ou comuns, o que
implica estabelecer distinções de semelhança e diferença, categorizando e nomeando os elementos
constituintes sobre aquilo a que o conceito se refere. Na perspectiva dos letramentos, os conceitos
formam uma metalinguagem ou linguagem sobre a linguagem, o que pode incluir conceitos
tradicionais, como "substantivo" ou "narrativà', como também conceitos que descrevem designs
visuais e de novas mídias, como contra-plongée ou hiperlink.
As disciplinas escolares formais consistem em conhecimento especializado e·iiisciplinar
baseado em distinções conceituais mais precisas do que aquelas feitas na linguagem cotidiana
no curso da experiência casual. Os termos utilizados por essas disciplinas são de caráter mais
técnico e menos ambíguos do que a linguagem "natural", uma vez que os tipos de distinção que
eles encapsulam são típicos daqueles desenvolvidos por corpos de conhecimento acadêmico
(ciência, história ou estudos literários, por exemplo) e por comunidades de práticas especializadas

6 Vygotsky, 1987 [1934] (ver capítulo 14).

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS j 77


(profissionais de diferentes áreas, por exemplo). Na perspectiva dos letramentos, para esse processo
de conhecimento, os alunos desenvolvem metarrepresentações com as quais descrevem elementos
do design dos textos, começando com generalizações sobre os sons da fala e sobre imagens na
aprendizagem da primeira infância à educação posterior, analisando estilos literários ou a
gramática dos textos. A "abordagem didáticà' (ver capítulo 4) tem uma grande ênfase no ensino
da linguagem técnica de uma disciplina: substantivos e verbos, ou regras e convenções da
alfabetização na forma-padrão da língua. No entanto, em uma pedagogia dos letramentos mais
ativa, para além disso, existe a preocupação em conceituar por nomeação, com os aprendizes
sendo convidados a olhar para um texto ou a considerar algo no mundo para criar suas próprias
conceituações, nomeando e classificando de acordo com suas características gerais. Pode ser um
texto com o qual eles estejam familiarizados, ou algo que experimentem no mundo, considerando-o
conceitualmente em termos de suas características gerais e dando a esse fenômeno geral um
nome ("planetà: "narrativà' ou "hiperlink", por exemplo) Esse é um exemplo de "movimento"
que pode ocorrer de forma produtiva entre diferentes processos de conhecimento, buscando,
desse modo, a relação entre uma realidade particular ( esse planeta ou esse texto) e o conceito
abstrato e generalizador, aprofundando as capacidades cognitivas dos aprendizes. Vygotsky
concebe isso como um movimento entre o mundo dos conhecimentos cotidianos ou espontâneos
e o mundo dos conceitos acadêmicos sistemáticos. 7 Piaget, por sua vez, concebe esse processo
como uma transição durante o desenvolvimento intelectual da criança, a partir do pensamento
concreto e abstrato. 8 Discutiremos mais sobre isso no capítulo 14.
"Conceituar com teoria" significa fazer generalizações, reunindo conceitos em estruturas
interpretativas. É assim que os aprendizes constroem modelos cognitivos ou representações de
conhecimento, que tipicamente são organizados em esquemas e processos de reconhecimento
de padrões, e passam, então, a ser ferramentas úteis para compreensão, produção e comunicação
do conhecimento. 9 As teorias podem conectar conceitos de várias maneiras diferentes - em uma
conclusão que faz uma afirmação generalizadora sobre a definição de um termo em relação a
outros termos, ou sobre um diagrama ou mapa conceitua!, por exemplo. Esse processo de
conhecimento se insere em uma tradição da "abordagem didáticà: que enfoca o ensino por meio
de instruções explícitas ou diretas, começando com generalizações e exigindo que os aprendizes
as apliquem, mostrando que a teoria é a essência conceitua! de uma disciplina. No entanto,
"conceituar com teoria" pode ir além da abordagem didática quando, em vez de ensinar a teoria
aos alunos, testando-a em seguida para ver se conseguem recordá-la ou aplicá-la, os alunos são
convidados a ajudar a construir a teoria por si mesmos. Nesse sentido, uma abordagem perceptual
da pedagogia dos letramentos envolve a introdução de uma estrutura conceitua} explícita e
abstrata de metarrepresentações para descrever as estruturas subjacentes de significado que
incluem não apenas textos escritos, mas textos multimodais, como caminhos de navegação na
internet, design de vídeos, ou formas de interação moldadas por espaços físicos. Os c~ítulos
de 9 a 13 deste livro apresentarão a estrutura conceitual dos multiletramentos para descrever o
significado multimodal.

7 Idem.
8 Piaget, 2002 [1923].
9 Bransford; Brown & Cocking, 2000.

78 i LETRAMENTOS
/
Aprendizagem analítica dos letramentos
''Analisar funcionalmente" engloba processos de raciocínio, de estabelecimento de conclusões
inferenciais e dedutivas, de relações funcionais (como entre causa e efeito) e de análise de conexões
lógicas, em que os aprendizes desenvolvem cadeias de raciocínio e explicam padrões de conhecimento
e experiência. Na perspectiva dos letramentos, os alunos aprendem a explicar as maneiras pelas
quais os textos trabalham para transmitir significados, ou a maneira como seus elementos de design
funcionam para criar uma representação complexa e significativa. Essa é uma das principais ênfases
da abordagem funcional do letramento, a ser analisada em detalhes no capítulo 6.
''Analisar criticamente", por sua vez, sugere avaliação das perspectivas, dos interesses e dos
motivos daqueles envolvidos na construção de conhecimento, em que os aprendizes interrogam os
propósitos relacionados aos significados ou às ações, com base na interpretação do contexto
sociocultural. Esse é o foco principal da abordagem dos letramentos críticos, que exploraremos no
capítulo 7. Um aspecto fundamental da análise crítica é refletir metacognitivamente sobre a influência
de suas próprias perspectivas e processos de pensamento, buscando torná-los mais eficientes ao
serem acompanhados pelo sistema de metacognição ou monitoramento e reflexão sobre o próprio
pensamento - uma parte integral do movimento entre o novo conhecimento, encontrado nos outros
métodos de conhecimento, e a autorreflexão sobre o próprio conhecimento e processos de
pensamento. 10

Aprendizagem aplicada dos letramentos


''Aplicar adequadamente" consiste em empregar conhecimentos de maneira previsível ou
"adequada". Para tomar um exemplo de letramentos que se insere na tradição pedagógica da
abordagem funcional, um aluno pode escrever um relatório de ciências ou um conto de uma forma
que mostre que domina um ou outro gênero. A aplicação apropriada envolve levar o conhecimento
ou o tipo de texto de volta a situações realistas de adequação ao mundo real ou aos espaços que o
simulam, COII1;0 se fosse um cientista ou um escritor de contos. Tal abordagem dos letramentos se
baseia nas tradições de letramento que enfatizam a prática comunicativa, de caráter aplicado, ou
o aprender fazendo, nas quais a aprendizagem ocorre por meio de um processo de transferência
de conhecimento generalizável para contextos práticos, entrelaçando-se entre o conceituai e o
aplicado. A abordagem do letramento funcional (ver capítulo 6) coloca uma ênfase muito forte na
aplicação apropriada.
Por fim, ''Aplicar criativamente" sugere um uso mais inovador do conhecimento, que pode
envolver, por exemplo, a recombinação de elementos de design para criar um texto híbrido, ou a
construção de um texto multimodal, ou um jogo irônico sobre um tipo de texto canônico. Nessa
perspectiva, busca-se deslocar o conhecimento, ou o tipo de texto, de sua configffi'ação atual ou
previsível para um contexto, uma disciplina ou uma configuração distantes ou não imediatos. Ou,
ainda, contemplar os interesses, as experiências e as aspirações do aluno de tal maneira que seu
emprego seja exclusivo ou distintamente "autoral". Aplicar criativament~ é, portanto, um processo
de tornar o mundo novo com novas formas de açã-o e percepção. Isso é comumente uma aspiração
da abordagem dos letramentos críticos, conforme veremos no capítulo 7.

10 Idem.

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS 1 79


Os processos de conhecimento como um repertório de ensino e aprendizagem

Ao reformularem e reconstruírem as tradições fundacionais das abordagens pedagógicas, os


processos de conhecimento buscam se alinhar e, ao mesmo tempo, expandir nossas experiências
como estudantes e professores, por meio de um repertório de "movimentos epistêmicos", ou
"coisas que os aprendizes podem fazer para conhecer". Nossa intenção ao articular os processos
de conhecimento dessa forma é sugerir que o ensino pode se tornar efetivo quando professores
e alunos têm uma estrutura explícita e deliberada para nomear um conjunto de movimentos
epistêmicos e tipos de atividade que estão construindo, a fim de cumprir seus objetivos de ensino
e aprendizagem.
Nessa concepção, a "pedagogia" se torna um procedimento cuidadoso de escolha de um
conjunto de maneiras de constituir conhecimento por meio de movimentos intencionais com
diferentes tipos de saber, uma vez que entendemos a educação como um processo de ampliação
das capacidades dos aprendizes para construir conhecimento através de diferentes disciplinas e
intenções. Por isso, nosso objetivo aqui não é propriamente fornecer um "modelo" de sequência
de passos para uma ação pedagógica, mas sim expandir os repertórios de construção de
conhecimentos de professores e alunos. Nesse sentido, a pedagogia se constitui como um design
de sequências de açãQ de conhecimento que possam atender a domínios sociais e acadêmicos
distintos: escolher tipos de atividade, sequenciar atividades, estabelecer a transição de um tipo
de atividade para outro e determinar os resultados dessas atividades. Nas práticas pedagógicas
cotidianas, lidar com sequenciamento de processos de- conhecimento se torna um meio através
do qual tanto o professor quanto o aluno podem dizer explicitamente: "Agora estou usando essa
forma particular de conhecimento e agora estou usando aquela outra forma, e esse é o motivo
pelo qual fiz isso e, então, aquilo". Isso é também uma maneira de identificar um conjunto de
resultados que os aprendizes demonstraram, isto é, possibilita tanto a promoção de ações
pedagógicas quanto a reflexão sobre essas ações.
Assim, ao indicarem e documentarem os movimentos epistêmicos que os alunos fazem, os
professores também podem realizar uma reflexão retrospectiva, avaliando a sequência e a mistura
dos processos de conhecimento utilizados e o quanto se alinham com seus objetivos de
aprendizagem. Nesse sentido, podem desmembrar o leque de possíveis sistemas de conhecimento,
a fim de decidirem e justificarem o que é apropriado para um determinado assunto ou aluno,
sendo, com isso, capazes de perceber como cada um se sai e, ao mesmo tempo, ampliar seus
próprios repertórios pedagógicos de conhecimento, bem como as capacidades de construção de
conhecimento de seus aprendizes. Se usarem uma gama mais ampla de processos de conhecimento,
professores e alunos podem descobrir que a aprendizagem surge à medida que tais processos se
entrelaçam em uma combinação variada, feita de maneira cuidadosamente planejada. Eles também
podem conscientemente selecionar o conjunto e a sequência das ações contínuas de c~ hecimento
mais apropriadas a determinada área de sua disciplina, um tópico, um contexto escolar ou certo
grupo de alunos.

80 / LETRAMENTOS
Sumário

Experienciando:

A cognição humana é situada e contextual.

Os significados são fundamentados nos padrões de experiência do mundo real e na ação e nos interesses subjetivos.

Um movimento pedagógico-chave é a relação entre a aprendizagem escolar e as experiências práticas dos alunos fora da esco-
la, bem como entre textos e experiências familiares e não familiares.

Conceitualizando:

Conhecimentos especializados e disciplinares são baseados em distinções afinadas de conceitos e teorias, semelhantes àqueles
desenvolvidos por comunidades de prática especializadas.

Conceitualização não é meramente uma questão de reprodução de um saber do professor ou do material escolar, mas um pro-
cesso de conhecimento no qual aprendizes se tornam "conceitualizadores ativos'; fazendo do tácito o explícito e generalizando
a partir do part icular.

Em relação aos letramentos, a conceitualização ainda envolve o desenvolvimento de metarrepresentações (ou representações
de representações) para descrever os "elementos do design''.

Analisando:

Desenvolvimento de certo tipo de capacidade analítica.

"Analisar" pode signifiCi~duas coisas em um contexto pedagógico: capacidade de descrever funções analíticas ou de avaliar
intenções e motivações humanas.

Em relação aos letramentos, isso ainda envolve analisar funções textuais e questionar criticamente os interesses dos participan-
tes no processo de comunicação.

Aplicando:

Aplicação apropriada e criativa do conhecimento e a compreensão da diversidade complexa de situações do mundo real.

Capacidades de produção com os elementos do design de uma ampla variedade de tipos de texto e propósitos de comunicação.

Em relação aos letramentos, isso significa construir textos e colocá-los em uso na ação comunicativa.

Processos de conhecimento

Experienciando o conhecido
1. Descreva um momento impressionante de aprendizagem em sua vida (na escola ou fora dela)

que ilustre cada um dos processos do conhecimento.

Analisando funcionalmente
2. Tomando como base um capítulo de um livro didático ou uma unidade de trabalho criada por

um professor, "analise" as atividades de aprendizagem de acordo com os "& ocessos de


conhecimento" discutidos neste capítulo.

Analisando criticamente
3. Quais preconceitos ou limitações você consegue identificar em termos do alcance e da sequência
dos processos de conhecimento em sua unidade de trabalho?

PEDAGOGIA DOS LETRAMENTOS 1 81


Capítulo 4
Pedagogia do letramento na
abordagem didática

Visão geral
A pedagogia do letramento na abordagem didática fundou o processo de ensino e aprendizagem
leitura e da escrita quando se iniciou a educação massiva, compulsória e institucionalizada no
ado XIX, sendo, ainda ~e, amplamente advogada e aplicada nas escolas em geral. Na pedagogia
letramento na abordagem didática, exige-se a aprendizagem das formas de correspondência
entre sons e letras, bem como as regras formais daquilo que se apresenta como a "forma correta
esaità'. Trabalha-se com a ideia de "compreensão" do que os autores "realmente querem dizer':
ascando aprender a respeitar os textos do cânone literário da alta cultura. Nessa rodagem, o
auriculo determina o que deve ser ensinado; assim, o professor segue o material didático, que, por
ua vez, segue o currículo. No final desse processo de ensino e aprendizagem, para ser considerado
1ip-ovado", o aprendiz deve obter uma "notà' mínima, baseada, em geral, em testes que exigem as
respostas "corretas".

Sobre os paradigmas dos letramentos


Nos capítulos restantes desta primeira parte do livro, problematizaremos o pensamento subjacente
quatro abordagens principais da pedagogia do letramento, que nomeamos de "didática" (este
mpítulo), "autênticà' (capítulo s), "funcional" (capítulo 6) e "críticà' (capítulo 7). A abordagem
- dática tem estado presente desde o início dos tempos modernos, um período que se inicia
~:mil·nadamente a partir da invenção da imprensa, no século XV, e, no século XIX, tornou-se a
. e da educação obrigatória em massa. A abordagem autêntica, por sua vez, que adot[ uma
ctiva de aprendizagem centrada na criança ou "naturalistà', também tem algumas raízes
11:lectuais antigas, provenientes das ideias do filósofo do século XVIII Jean-Jacques Rousseau e,
·ormente, das teorias e práticas educacionais de educadores "progressistas" do início do século
. como Maria Montessori e John Dewey. Por fim, as abordagens funcional e crítica se constituem,
grande parte, a partir da segunda metade do século XX.
Assim, pode-se dizer que existe uma lógica cronológica aproximada para esses capítulos. No
lanto, também temos uma lógica metodológica por trás da maneira como estamos introduzindo
essas ideias e práticas, que mapeiam os "processos de conhecimento" que mencionamos no capítulo
anterior. Nesse sentido, queremos argumentar que há aspectos de cada uma dessas tradições
pedagógicas que podemos, de alguma forma, querer manter, ampliar e fortalecer. De fato, em vários
momentos do processo de letramento, podemos achar necessário fazer escolhas pedagógicas que
tenham suas raízes em cada uma dessas abordagens.

li
(!] .
·.• Veja: "Uma história de duas salas de aula''.

Abordagens Principais representantes Principais ênfases dos "processos de conhecimentos"

Didática (capítulo 4) Petrus Ramus . Experienciar o novo: ler textos literários de "alto valor cultural''.

Conceitualizar por nomeação: aprender termos gramaticais e


conceitos literários.

. Conceitualizar com teoria: aprender regras ortográficas e grama-


ticais e as escolas literárias.

Autêntica John Dewey e Maria Montessori Experienciar o conhecido: explorar os interesses próprios na
(capítulos) leitura e a voz pessoal na escrita.

Funcional Michael Halliday . Analisar funcionalmente: analisar como diferentes tipos de


(capítulo 6) textos servem a propósitos sociais distintos.

Aplicar apropriadamente: dominar gêneros textuais socialmen-


te reconhecidos.

Crítica Paulo Freire e Michael Aple . Experienciar o conhecido: desenvolver voz e identidade pessoais.
(capítulo 7)
Analisar criticamente: trabalhar agendas sociais e vieses de
textos.

Aplicar criativamente: construir textos, incluindo textos das


novas mídias digitais, que expressem as identidades, os interes-
ses e as perspectivas dos aprendizes.
Quadro 4.1: Principais representantes e ênfases dos processos de conhecimentos nas abordagens pedagógicas.

Neste capítulo, exploraremos as dimensões da pedagogia do letramento na abordagem didática,


mostrando como funciona e o que faz. Para tanto, traremos alguns exemplos reais provenientes de
materiais didáticos brasileiros usados por professores e alunos. Alguns deles lidam com formas
idealizadas de ensino, contendo textos que nos dizem algo sobre os conteúdos a serem ensinados
e como os professores deveriam abordá-los com seus alunos. Assim, para reconstruirmos a forma
de ensinar e aprender em sala de aula na abordagem didática, voltaremos a livros didáticos de
meados do século XX para, de alguma forma, tentar contar a história de aulas de leitura e escrita
que essas obras revelam.
Descreveremos a pedagogia do letramento na abordagem didática com bastante detalhe neste
capítulo, cobrindo o leque de conteúdos e tipos de atividades de sala de aula relaciona"fos a práticas
de leitura e escrita, porque os próprios detalhes são fascinantes. Os capítulos 9 e 10, assim como
os recursos on-line que os acompanham, fornecerão as teorias da pedagogia do letramento na
abordagem didática por meio de questões que envolvem a relação entre fonema e grafema, isto é,
sons da fala e escrita, e questões de ordem gramatical. Um exemplo disso é o trecho abaixo, retirado
dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental,' que mostra como a abordagem

1 Brasil, 1997, pp. 58-59.

84 1 LETRAMENTOS
didática, no que tange justamente à relação entre fonema e grafema, pode ser pensada como critério
de avaliação de língua portuguesa para o 1 Q ciclo:

Escrever utilizando tanto o conhecimento sobre a correspondência fonográfica como sobre a segmentação
do texto em palavras e frases. Com este critério espera-se que o aluno escreva textos alfabeticamente.
Isso significa utilizar corretamente a letra (o grafema) que corresponda ao som (o fonema), ainda que
a convenção ortográfica não esteja sendo respeitada. Espera-se, também, que o aluno utilize seu
conhecimento sobre a segmentação das palavras e de frases, ainda que a convenção não esteja sendo
respeitada (no caso da palavra, podem tanto ocorrer uma escrita sem segmentação, como em "derepente':
como uma segmentação indevida, como em "de pois"; no caso da frase, o aluno pode separar frases
sem utilizar o sistema de pontuação, fazendo uso de recursos como "e", "aí", "daí", por exemplo).

Neste capítulo, focalizaremos a ecologia da sala de aula na abordagem didática, o modo como
a sala de aula é organizada e o que acontece nela. N~sso objetivo é fornecer uma representação
gráfica dos valores, hábitos e propósitos culturais desse tipo de comunidade em sala de aula. Nossa
intenção, com isso, não é simplesmente descartar a abordagem didática por considerá-la antiquada,
mas sim buscar entendê-la, pois ela pode ainda se mostrar relevante, atualmente, em certos contextos
comunitários, para alguns alunos, e em função de determinados aspectos do processo de aprendizagem.
Daí, portanto, a necessidade de, mais uma vez, nos referirmos a letramentos (no plural), incluindo,
nesse caso, não uma 1'nica abordagem, mas uma mistura de diferentes abordagens.
Para fins de comparação entre este e os três capítulos seguintes, analisaremos as quatro abordagens
da pedagogia dos letramentos (didática, autêntica, funcional e crítica) a partir de quatro dimensões
(ver Quadro 4.2).

Dimensão 1: conteúdos de letramento O que os estudantes devem aprender.

Dimensão 2: organização do currículo de letramento Como aquilo que os estudantes devem aprender é organiza-
do.

Dimensão 3: aprendizes fazendo letramento As maneiras pelas quais os estudantes pretendem aprender
para construir significados.

Dimensão 4: relações sociais do letramento As relações entre os estudantes e os letramentos, entre estu-
dantes e outros estudantes e entre estudantes e professores.
Quadro 4.2: Estrutura para análise das ecologias de aprendizagem em sala de aula e as pedagogias de letramento.

Os conteúdos de letramento: Tópicos e abordagens tradicionais


Um exemplo de material usado para alfabetização muito conhecido no Brasil no século passado,
publicado pela primeira vez em 1939 e distribuído por muitos anos pela Compatlih:ia Editora
Nacional, é a Cartilha Sodré, de Benedicta Stahl Sodré (Figura 4.1):
A Parte Ida Cartilha Sodré ilustra muito bem o que, na literatura sobre alfabetização, chama-se
•método silábico': um método sintético cuja principal unidade a ser trabalhada com os alunos é a
silabação, isto é, a divisão da palavra em sílabas. Para desenvolver o método, escolhe-se, quase sem -
pre, uma ordem de apresentação que busca partir de sílabas que seriam mais "simples" para as mais
mplexas''. As palavras usadas, em geral, constituem mero pretexto para indicação das sílabas, que,
por sua vez, são recompostas para formar novas palavras. Nessa lógica de trabalho, o exercício de

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 85


formação de novas palavras para chegar a frases curtas se dá somente por meio das sílabas j"á apre-
sentadas, como mostra a Parte Ida Figura 4.1, que apresenta sílabas com uma mesma vogal ("sílabas
com a vogal 'a"'), explorando as sílabas das palavras "patá' e "nadá: até chegar à frase ''A pata nadá'.

Oc,polS de domtnadaa umas ~ ou ti ~laDas, Uesta torma, ao termll'lar a Jeltura da c11rt1ln11,


a capacidadt nrtontiva d& eriança &e desenvol~ o a luno não 50 kttã a letra de fôrma c:ano a de mio
8Xt1'11ortffnarilmente, podendo o prof8MOt, confor- e, tombém, saberá eecrevar. parti • lttture e a •--
mo o <ib=, ~von9-1r du;:n: ou a6 1itc Gileba1. por crfta deveriio aaminhu -mpr• P9'Bl•tamente.
dia.

E acon""111..-.I que c:ada aJuno t"'1h8 a.u pe-


pe1ao ou c:artoJna com• slabel ettut'adal. N. . . li PA RTE
papello o p-otas:sor escrBYBâ as silabas à mecida
qua forem -,.,do enalnadll:9; cada silaba daverfl eer Ô PfOfm:scr 9fllinari M W>Qail
e, L i.. .u.
eecrlta em. l«ra de Hkrnd (em IIZUI e em lea-6 dtl C o ~ ontlo no QUl!ldrv--nog..o, por oxcm•
ORIENTAÇÃO PARA O PROFESSOR m6o lom vemielho}. pio, e slaba to. e dirA aos 8'unos: - O quo #d
Diariamente o pmfessar fsi noord&ç50 dl!I ettrito? lrned18temente ouvirt a ~ a : - Ê o ta.
todas u á llbea 16 enslnedell. E conveoilN'rte de~ Em aegyJda o profussar apagarfl o d escre-
di·&u esaitu- {na primeiras 1emenal. no quadro, YMê o 0 , fanndo os alutJ09 lerem t.o • Apa-
em kJOitf' bem wl!fvel . gando o ,e escre,;er6 novamente o .a. ratom:10 le-
Todos oa d'8s o pt0f8S80r fará dlrado de~ rem .ta. ; apagando o a., .acrewrti o o- fnendo
aevrw• torffllld• com as lrilaoas 00nl'M!~ e permi• lerem lo- ieattt 9X9feiclo dMteré 11m-repot:Jclo mul-
tu que o aluno que, tNer al,guma dCMda PM1I es- tas veres sem epagor a consoeote lnic:131l.
crvver QUBkluer palwra, consutte o ~ paP81Jlo, ou
olhe na lista de sBabas do quadto. ExtrCleio&. COMO este, õeVerlo ser f•h:os com
todas ac outras coosoentes.
A CARTI LHA SODAt. o,-ganfuda de acor- O professor, depojs de mostnir uma gravura como retorvo pan a Wtun, o pmteUOf
do com o Praç-.!IO d e Affebettiat(:ao Rlaklll ou correspon,dent• à lição • ~ ter cor1\l'ef'Ndo com destaceré da cartilha as fol\a!I ldestseheisl com as O professor deverê p,oceder da mesma fonna
Ptoeessa Sodr• Ide eutorie de Abel da F. Sodré e a desse- pera desperulr o interem,e dos alunos, es-- dabes wn ,. • llpÓs çgli(-1,u -IObre cet1olirHt, recor- com os slktbBs com as vogais a, .L- u,
9enedicta SlahJ._.Sodr6), obed&oe a tegulnta ordem! creve,j na lousa e sentença, que, com o .l!lu1dlto tari oe ped~ . Cada aluno d9Mr6 N!I' uma pe-
qul!INI caixe onde guardam todas e, ~ aia~ , ~
d& pergt.1nt.es, conseguiu das crianç:os,
ccrtadas. Com eln cada aluno formaJ6 (d'rariamen-- A criença oomM'\ilf'à com muita fad!klode o Jo-
1 PARTE Olré então à claeae; - Vamos Wlirf quem é te} lrrúmerll8 palavras, sempre si;,b a orientação e go com u dil.«'sae vogais. Este joQD conlltitulrll
Chove, capaz d11 IM o ~ o {liz asaew. Mandilm qus os supeMS&o O> professor. um ~ i r o divertimonto pa1a as crianças, se as.
estudo des silabas com e vogal a. alunos leiam (um de cada vez) , O ~ rv>derA IMn!lr cada aluno a ca,n~ aulas foram bem "l"'istimiu.
Dec:,ois escrever6 somema a palaYl'lt p.a..lo... par suas própfia9 paJavTu c u poder6 laVe.r tod& e
li PARTE
Fah.a tato, o profOSSOI' e;xpficar;!i t:s t:ria n ç: ss efMM,. compor as mesmH palavras. Nota ll"np0!tallt&: NIJ'ICil se NCt8Wr6 _to, ,
Jogo com as vogais:
que a pajnVR11 ~ é pronunciada em duns o protessof deYera sempre pet'Ç(lffer as car• (.,_ , ti. , .&e , l,.,, , como no m6wdo da
f ~} COM II vogal o; ieirn, obseivando • as ~lav.-M f ~ e:stão sílabaç::lo, p,orque desM fonna o aprmditado eon-
2~) com a vogal e; vezes e então escnMlt4 po.. .ta,, •
comnu. únuaré a tranr • mssmas tificu~ que apre-
3~) com• vogal i; Após isto dir6 aos alunos: - Vamos apren- senuim oV'b'GI ml!todos, Pob obrtgera a crianç:n a
4~) com e vogal u . dominM" rnai$ de 100 si.aba$ li! n~ apanu:. 20, co-
der t1 ~ w r bem o primeiro pad8cinho da pala- BRINQUEDO - O profa.oor IIIIIU8YDrll, oom
vra ~ • Escreverê entlo muitas 'Wltes (11s-
mo no Procauo Sodrt.
111 PARTE let.18' graOda!!I, em quedradol de pape!Ao, 1oc1as as
Cf8Vendo e falando) e slaba ,r-0..- . silabN ensinadas (uma em çade quechldOl. &tn
Emprego do.s ditongoa nlo neaaJadoe ·e
Mandani que alguns alunos acompanhem, serio diatnbAdcs, um a cada a(uno.
tiletos. codt o giz. ou com o ponteiro.. o traÇ,ado do ,po. . O profes,or ctir.11 antão: - \famc:t ver que P• IH PAR.TI:
IV PAAT'E Comridari, também, v6rias crianças para irem es- ~ fol'r77llfflm03 , Ch11mari, par ~ l o; pa e
Em~ 00 1; r, m, n e I no fim das aflabels. ct8".19C um -fl,Cl, na quadro-negro. fha. A criança. dona do papM.1o cnm ~ ase,;. 1~ UçAo - O pmfaqo-- esaBVl!ffl. bem dis·
to opa, Wi A frente l,depoit, a dona do lha.Estot tanciadaa, n21 lousa, a. vQ9Mn. Pot exemplo: ,: ),,t.
VPA R"n ApogandcH;e, em.ão, todo o q uadro , o pro- dois alunos 'Ng'Jnl!'So os quadrados um 110 lado do Mandaré que oa: alunot: leiam.
Emprego do , e do I intercaledoa. fessor escrevefá (com uma boa letra) .. um ,-pa-
que servlr6 de modelo para a c6pla imediata, Essa
oouo. Entlo o professor dini : - Quem st!Jnl capaz
eh •divinhar lque 6 corno .se c.ostuma dizer pari!! o
,Qira emlo: - &tas dUIU fftrin!IU
d'IJ ,lnçW dt,do$. ~ as dum- wgaia jun-
""°
fÍCIII'

VI PARTE cópia cada aluno já fart em seu caderno. criança) a palavra fOITlt#ldll? Após e l&t1un1. manda- ta& { ~ 1- fari os aNnoa terem.
Emprego do h , ~ e os divel'9os stm• do ,e. A primeiro sul.o de linguag.-n esaita •91'.ê rá um dos alunos da classe escrever • palavra no
ocupeda somer,ta con, a escrita da •Baba -pc.. . qu:1dJQ. Com octo brinquodo, tSo simplae, a cleCIOe Ap.:is:Jndo eo ropntindo isto virilill V'lrZ••• vllrli.
VH PARTE tarà um retotço muito grande, tanto na leitun que oa: outroa ditongos I oi. , c,.u etc-1 não
Emprego das vogala a ditongo& naaaJa. O resultado ser6 logo animador. Raros serllo qu..-to na eacrita dé pal.wru. &preSÕntarãl dtf1ct11dtideS e poderão !Sr ~nedos
09 aluno• QIJ8 não escreverilo de maneira muito Je- sn uma só aui..
gfvol esta siab&. ENTREGA DA CARTILHA - Dominai:Sas- três
ou quatro ffções da Cartilha SodrtP prot.uor Ck'- 2!' Uçlo - Es:tando j6 dominados os diton-
!PA RTE ver6 Mtl'8g6--la ao aluno. Eata tara qua iniciar a la~ gos. o PrOfasao, escreverá, na louea, a aílilba Tn.O,
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Figura 4.1: Cartilha Sodré- Parte 1. Cartilha Sodré - Parte li.

Se, por um lado,.os métodos sintéticos lidam com a análise que vai das partes para o todo, isto
é, das relações entre unidades sonoras e grafemas (método alfabético e/ou fônico), e entre unidades
silábicas, para a formação de palavras (método silábico), obedecendo a uma certa hierarquização,
que parte da letra ao texto por meio de soletração e silabação, dimensões importantes e necessárias
para o aprendizado da escrita, por outro lado, eles apresentam o grande problema da "artificialização"
de textos, cujo único objetivo é o treinamento e/ ou decodificação de letras e sílabas, estando,
portanto, descolados do uso social da escrita. Nesse sentido, o início da Parte I ("O professor, depois
de mostrar uma gravura correspondente à lição e após ter conversado com a classe para despertar
o interesse dos alunos, escreverá na lousa a sentença") parece soar quase como paradoxal, visto que
o trabalho com palavras e frases descontextualizadas, salvo em casos muito excepcionais, <4,íi.cilmente
despertaria o interesse dos alunos.

· Gramática tradicional
Em uma turma de ?52 ano do ensino fundamental, a professora Joana anuncia o seguinte tópico
de sua aula:

86 1 LETRAMENTOS
- Nós já começamos a estudar as classes de palavras. Vocês se lembram quais são as classes de
palavras?
Nenhum aluno da turma se manifesta. A professora, então, reforça a pergunta:
- Gente, alguém sabe o que são as classes de palavras?
Como ninguém responde, a professora continua:
- Então, para a gente escrever bem, precisamos saber como as palavras são classificadas. As classes
de palavras é como se classifica as palavras. No português, as palavras são classificadas em dez tipos,
lembram?
A professora continua, então, falando e escrevendo cada uma das classes de palavras na lousa:
Substantivo, Artigo, Adjetivo, Numeral, Verbo, Pronome, Advérbio, Preposição, Conjunção e
Interjeição.
- Na última aula, nós estudamos os substantivos e os·artigos. Hoje, vamos ver os adjetivos. Então,
o adjetivo é toda palavra que caracteriza o substantivo, que dá a ele qualidade, defeito, condição, e
por aí vai. O adjetivo varia em gênero, quer dizer, masculino e feminino, número, singular e plural,
e grau, aumentativo ou diminutivo. Por exemplo: "O menino está cansado". Nesse exemplo, quem é
o adjetivo?
- Cansado - respondem alguns alunos em coro.
- Isso. E "cansado" está se referindo a quem?
- O menino - respondem dois alunos.
- Está se referindo ao "menino". E "menino" é uma palavra masculina e está no singular. Então,
o adjetivo "cansado" também tem que estar no masculino e no singular. Tá bom?
Depois de dar mais dois exemplos de frases com substantivos e adjetivos (um no feminino
singular e outro no masculino plural), a professora escolhe um texto do livro didático, o poema
"Retrato", de Cecília Meirelles, e pede aos alunos que destaquem os adjetivos encontrados e digam
a que substantivo cada um deles se refere e se eles estão no masculino ou no feminino, no singular
ou no plural:

Retrato
(Cecília Meirelles)
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?

Podemos notar que esse é um típico exemplo de aula na abordagem didática. Vale, porém,
explicar que não há demérito algum em trabalhar conteúdo gramatical em uma aula de língua
portuguesa. Muito pelo contrário: a gramática é parte fundante no processo de ensino e aprendizagem

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 87 .


de línguas e, em alguns casos, pode ser, de fato, importante saber as regras gramaticais e seu
funcionamento.
Contudo, é preciso dizer que o ensino de gramática só faz sentido quando é contextualizado, isto
é, quando é parte de uma proposta de ensino consciente, para discutir determinado conteúdo do
currículo, em uma situação de aprendizagem específica. Na situação de aprendizagem descrita, notamos
que o empenho da professora Joana está exclusivamente em trabalhar, de forma genérica, os adjetivos
- buscando, inclusive, respostas genéricas em coro da turma-, sem contextualizá-los em relação ao
poema proposto para a atividade, no qual poderiam ser exploradas, por exemplo, questões atinentes
às mudanças ocorridas com o eu lírico e à relação dessas mudanças com os adjetivos usados no poema.
Voltaremos a essa questão do ensino de gramática em detalhes no capítulo 10.

Uso "correto" da língua

Na aula seguinte, ao apresentar a classe de palavras "numeral", a professora Joana escreve na


lousa o seguinte exemplo: "Sobraram três reais". Ela, então, faz o seguinte comentário:
- Prestem bem atenção a esse exemplo: "Sobraram apenas três reais". Três reais é singular ou
plural?
- Plural - respondem alguns alunos.
- Então, o verbo também tem que estar no plural. Por isso, o certo é "sobraram" e não "sobrou"
três reais. É muito importante escrever e falar corretam ente, fazendo a concordância correta.
Uma aluna, então, diz:
- Mas, professora, eu acho que eu sempre falo "sobrou três reais". Nunca falei "sobraram".
- Pois é, tem que falar corretamente, porque assim as pessoas vão ver que você estuda e sabe mesmo
o português.
Esse exemplo, tirado de uma aula sobre classe de palavras, também reforça o ensino de língua
(gramática) na abordagem didática; nele notamos que a professora Joana comenta uma questão de
concordância verbal de forma genérica e descontextualizada. Mais ainda, ao afirmar que "é muito
importante escrever e falar corretamente, fazendo a concordância correta" e que "tem que falar
corretamente, porque assim as pessoas vão ver que você estuda e sabe mesmo o português': a professora
não apenas desconsidera os diferentes usos sociais da língua, que envolvem diferentes contextos
formais e informais nos quais a questão da concordância verbal pode se fazer ou não presente, mas
também reafirma um certo preconceito linguístico, já que parece estar implícito na sua fala que aqueles
que não "falam corretamente" são vistos como pessoas que não "sabem português", ainda que sejam
falantes nativos e tenham a língua portuguesa como língua nacional/oficial. Vale ainda destacar que,
na aula anterior, curiosamente, a própria professora faz um uso "incorreto" de concordância verbal
em sua aula ao dizer: "As classes de palavras é como se classifica as palavras': .../t

Nomeando estruturas da língua

Dando continuidade ao ensino de classe de palavras com a mesma turma, ao abordar os verbos,
a professora Joana inicia sua aula da seguinte maneira:

88 J LETRAMENTOS
- Então, na última aula, a gente viu que existem três modos: Indicativo, Subjuntivo e Imperativo.
Hoje nós vamos ver como é a conj ugação dos verbos no indicativo, começando com os verbos de
primeira conjugação. O que são os verbos de primeira conjugação?
Ninguém responde. Então, ela mesma contínua:
- São os verbos que terminam em "ar", como "cantar", "jogar" e "falar". Vamos ver como fica a
conjugação do verbo 'Jalar".
A professora, então, copia na lousa todas as pessoas gramaticais e os tempos verbais do modo
indicativo do verbo "falar" (presente, pretérito perfeito, pretérito imperfeito, pretérito mais-que-
-perfeito, futuro do presente e futuro do pretérito), conjugando cada um desses tempos verbais na
primeira, na segunda e na terceira pessoas do singular e do plural (eu, tu, ele, nós, vós, eles). Em
seguida, ela lê em voz alta cada um deles ("Eu falo, tu falas, ele fala, nós falamos, vós falais e eles
falam. Eu falei, tu falaste" etc.).
Um aluno, antão, repete duas conjugações em voz alta em tom irônico:
- Tu foste! Vós fostes! Que engraçado! Eu não falo assim.
A professora lhe responde da seguinte forma:
- Pode parecer um pouco estranho para vocês o "vós" porque ninguém fala mais hoje em dia, mas
ele existe em vários textos antigos. Por isso, temos que aprendê-lo.
O trecho acima é mais um exemplo de ensino de gramática na abordagem didática, em que se
percebe que a professora Joana trabalha com os tempos verbais por uma lógica de memorização e
de forma descolada de seus significados e de sua função comunicativa, isto é, dos diferentes efeitos
de sentidos que os tempos verbais podem produzir em contextos diversos de uso da língua. Ela
não explora com os alunos, por exemplo, o porquê do termo "pretérito perfeito" ou "pretérito
imperfeito" e as situações reais nas quais esses tempos verbais poderiam ser usados por eles. Ainda
nesse exemplo, poderia ser explorado o fato de o "pretérito mais-que-perfeito" não ser usado na
fala e na escrita cotidianas, nem mesmo em contextos mais formais.
O mesmo poderia ser discutido em relação às pessoas gramaticais, partindo da fala do aluno
que foi irônico e questionou o fato de não usar os pronomes pessoais "tu" e "vós". É interessante
notar nesse caso, que a professora até esboça uma explicação para o não uso desses pronomes e
também uma justificativa para aprendê-los ("Pode parecer um pouco estranho para vocês o 'vós'
porque ninguém fala mais hoje em dia, mas ele existe em vários textos antigos. Por isso, temos que
aprendê-lo"), mas tanto a explicação quanto a justificativa são vagas, pois dizer que devemos
aprender a conjugar os verbos na segunda pessoa do plural usando "vós" pelo fato de este aparecer
"em vários textos antigos" não é definitivamente um argumento plausível para ensiná-lo, já que
isso se mostra bastante distante da realidade dos seus alunos. Ainda quanto aos dois pronomes, a
professora poderia também discutir como o "tu" é um pronome comum em algumas regiões do
Brasil, comparando-o com o seu correspondente "você': mais comum atualmente na maior parte
do país. .../f

Leitura e intepretação de textos literários


"História meio ao contrário"
Em uma aula para uma turma do 6!!. ano, a professora Joana procura trabalhar o trecho inicial
do livro História meio ao contrário, de Ana Maria Machado _(Quadro 4.3). Ela inicia sua aula pedindo

PEDAG OGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 89


aos alunos que leiam o texto silenciosamente, dando-lhes alguns minutos. Em seguida, escolhe dois
alunos aleatoriamente para ler o trecho em voz alta para a turma.

...E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como o raio de sol e viveram felizes para sempre ...

- Tem muita história que acaba assim. Mas este é o começo da nossa. Quer dizer, se a gente tem que começar em algum lugar,
pode muito bem ser por aí. Vai ser a história da filha desses tais que se casaram e viveram felizes para sempre. E a história dos filhos
começa é na história dos pais. Ou na dos avós, bisavós, tataravós ou requetatatataravós - se alguém conseguir dizer isso e se lem-
brar de todas essas pessoas.

- Bem, tem alguém que lembra. [ndio lembra. Em muitas tribos, pelo menos. [...)
Mas isso é coisa de índio. Homem branco hoje em dia não liga mais para essas coisas. Prefere saber escalação de time de futebol,
anúncio de televisão, capitais de países, marcas de automóveis e outras sabedorias civilizadas. Você sabe a história dos seus pais?
E dos seus avós? E dos seus bisavós? Eu também não sei muito, não. Mas, quando não sei, invento.

- Tem gente que gosta, acha divertido. Tem gente que só quer saber de histórias muito exatas e muito bem arrumadinhas - então
é melhor mudar de história, porque esta aqui é meio atrapalhada mesmo e toda ao contrário. Ela nem começou direito e já apare-
ceram aí em cima uns índios que não têm nada a ver com a história. Mas é que eu gosto muito de índios e piratas (por isso adoro
a história de Peter Pan) e toda hora eu lembro deles.

- Mas vamos começar de novo pelo começo.

... E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como um raio de sol e viveram felizes para sempre ...
Quadro 4.3: Trecho do livro História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. São Paulo, Ática, 1979.

Por fim, a professora propõe duas questões de múltipla escolha sobre o texto:

Questão 1: "História meio ao contrário" se propõe a contar a história de:


a) Índios e piratas
b) Rei, rainha e princesa
e) Peter Pan
d) Pessoas comuns

Questão 2: A autora começa a história pelo final porque:


a) O final das histórias de contos de fadas sempre termina com "e foram felizes para sempre"
b) O começo dos contos de fadas é o que importa, e não o seu final
e) É bastante longa, começando com os requetatatataravós dos personagens
d) Quer que o leitor escreva um final para a história diferente

Já de início, podemos notar que a professora Joana se vale de certos expedientes da abordagem
didática, como a leitura em voz alta. Nesse caso, podemos perguntar: por que escolher dois alunos
aleatoriamente para ler o trecho em voz alta para a turma? Para trabalhar que tipo de ccriíhecimento?
Em relação ao trecho em questão, podemos dizer que, embora sua escolha tenha sido bastante
interessante para um trabalho de leitura sobre contos infantis, as questões propostas são limitadas
e problemáticas, com localização de informações superficiais e, ao mesmo tempo, ambíguas, que
não buscam, de fato, explorar a complexidade do texto. Além disso, ao se restringirem a questões
de múltipla escolha, as atividades procuram exclusivamente fazer com que o aluno encontre no
texto a resposta única, correta, não valorizando, portanto, a possibilidade de diferentes respostas
que tragam à tona a própria subjetividade dos aprendizes.

90 1 LETRAMENTOS
As atividades de interpretação deixam, assim, de explorar dois pontos cruciais: o primeiro é o
fato de a história se iniciar ao contrário dos contos de fadas, que, em geral, terminam com "e foram
felizes para sempre". Ao anunciar que vai inverter a história, começando-a pelo final, inclusive
misturando-a a outras histórias (como a de "índios e piratas"), a autora busca não apenas trazer
para o seu texto um tom divertido, mas, sobretudo, questionar a própria possibilidade de pessoas
viverem felizes para sempre. O segundo ponto crucial, estreitamente ligado ao primeiro, diz respeito
à linguagem coloquial utilizada, que se aproxima muito de uma conversa informal, inclusive por
meio de questões como "você sabe a história dos seus pais? E dos seus avós?", cujo objetivo é fazer
com que o leitor pense e participe da história junto com a autora.

"Pardalzinho"
Em uma outra aula para a mesma turma, a professora Joana trabalha com os alunos o poema
"Pardalzinho", de Manuel Bandeira:

Pardalzinho
O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos! 2

Assim como na aula anterior, a professora pede aos alunos que leiam o poema silenciosamente
e, na sequência, escolhe um aluno para lê-lo em voz alta para a turma. Depois disso, ela pergunta
às crianças:
- O que vocês entenderam do poema?
- Fala de um passarinho que foi adotado porque tava com a asa quebrada, mas acabou morrendo
- diz uma aluna.
- Isso mesmo - responde, entusiasticamente, a professora.
- Eu já tive um canário belga. Ele morreu no começo do ano - diz um aluno.
- Eu também - diz um terceiro aluno.
- Ok, imagino que alguns de vocês já tiveram animais de estimação que morreram. Mas é assim
mesmo. A morte é uma coisa natural. Faz parte da vida. Agora, vamos voltar ao poema. Eu quero
que vocês prestem atenção às rimas do poema. Quais são as rimas presentes?
- 'í\sa" e "casa" - responde um dos alunos.
- "Vão" e ''prisão" - diz um outro.
- "Voou" e "enterrou" - fala um quarto.
- Faltou algum?
-Não.
- Faltou. Vejam que falta ''carinhos" e ''passarinhos".

- Manuel Bandeira. "Pardalzinho". Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1976.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 91


Assim como no trecho de aula apresentado anteriormente, aqui também a professora Joana
inicia a atividade com a leitura em voz alta para trabalhar o poema, expediente típico da abordagem
didática. Em seguida, ela até procura, de alguma forma, explorar a temática do poema com seus
alunos ao perguntar-lhes o que "entenderam do poemà', na tentativa de trazer para a aula a
compreensão, o horizonte de expectativas e os interesses dos aprendizes. Nesse sentido, podemos
notar que a pergunta consegue promover a participação de alguns alunos, que se identificam com
a questão, ao dizerem que também perderam seus pássaros de estimação. Contudo, a professora
interrompe a discussão e logo procura deslocar a atenção da classe para um aspecto formal do
poema: as rimas.
Ao não dar continuidade à exploração da temática da morte, Joana deixa justamente de explorar
a questão central do poema: a morte de um pássaro (um pardalzinho) que não suporta ter sua
liberdade cerceada e, por isso, acaba morrendo. Em outras palavras, podemos dizer que, para o
pássaro, a liberdade vale mais do que sua própria vida, que é alcançada apenas após sua morte. A
professora, nesse sentido, poderia ter explorado essa questão a partir dos relatos de experiências
de seus alunos, comparando-os com o poema e buscando fazer com que eles refletissem sobre o
próprio valor da liberdade, isto é, até que ponto valeria a pena abrir mão de ser livre para conseguir
receber carinho e afeto.

Aorganização do currículo de letramento: Acompanhando o plano


de aula, o livro didático e o professor
Transmitindo conhecimento estruturado e sequenciado

A professora Joana procura seguir à risca o plano de aula anual de sua disciplina no 8º ano, no
qual estão previstas as aulas, bem como o tempo necessário para ser trabalhado todo o conteúdo.
Para isso, ela faz us9 constante do livro didático, que está adequado, capítulo por capítulo, semana
a semana, ao plano de aula da matéria.
Ao olhar para o plano de aula anual e verificar·os pontos que estão previstos para o 4º bimestre,
uma aluna da turma faz, então, a seguinte reflexão:
- "Predicativo", "Transitividade verbal: objeto direto e indireto", "Adjunto adnominal", "Adjunto
adverbial". Uau! Nem sei o que essas coisas significam. Deve ser difícil!
A aluna, todavia, também sabe que, quando terminar o ano letivo e ela olhar novamente para
o plano de aula, o trabalho que fez meses antes parecerá fácil. Não é estranho que esse conteúdo
lhe pareça tão difícil no começo? No final de cada período, há provas formais, aplicadas para avaliar,
no caso de alguns alunos, o quanto estes aprenderam e estão aptos para seguir para o anwseguinte,
ou, no caso de outros alunos, o quanto não aprenderam tanto quanto deveriam.
Organizar a transmissão do conhecimento nesse modelo é uma característica peculiar às culturas
modernas letradas e às pedagogias formalmente institucionalizadas. O estudioso francês do século
XVI Petrus Ramus é reconhecido como o precursor desse modelo, que representa um dos aspectos
mais distintivos da pedagogia do letramento na abordagem didática. 3 Um século depois da invenção

3 Ong, 1958.

92 1 LETRAMENTOS
da tipografia por Gutenberg, Ramus levou a lógica cultural da reprodução mecânica da palavra
escrita ao seu modelo de ensino, produzindo exposições detalhadas de conhecimento que mudaram
o seu centro de gravidade, antes localizado no escolasticismo e no diálogo socrático.
l!l
Veja: "Sócrates, a memória e a internet".

Nesse sentido, ao contrário de Sócrates, Ramus dirigiu os alunos para o texto impresso, mantendo
uma cópia idêntica para cada um deles. Seus livros, que chegaram a um número notável de cerca
de 1.100 edições, espalhando-se por grande parte do mundo intelectual da Europa moderna, lidavam
com dialética, lógica, retórica, gramática e matemática.
Do ponto de vista do que deveria ser ensinado, o conteúdo, Petrus Ramus não trouxe nenhuma
inovação. Seus livros eram escritos principalmente em latim, a língua comum da vida intelectual
em toda a Europa da Renascença, com os conteúdos dos textos clássicos - lembrando o antigo
passado europeu - abordando retórica ou dialética, por exemplo, consideradas importantes porque
faziam parte do legado cultural da Grécia e da Roma clássicas. A aprendizagem da gramática, do
mesmo modo, não era mais do que aprender as gramáticas do latim e do grego.

■ Veja: "Kalantzis e Cope sobre Petrus Ramus~


Contudo, se, por um lado, Petrus Ramus foi "retrógrado" no que diz respeito ao conteúdo,
por outro, seu método não o foi; muito pelo contrário, pois, pela primeira vez, a retórica e a
dialética foram formalizadas e colocadas em uma página de um livro-texto. Nas sociedades às
quais os textos greco -latinos se referiam, essas disciplinas eram aprendidas através da prática, e
não de um conjunto de regras a serem memorizadas. A partir de Ramus, no entanto, o conhecimento
passou a ser associado ao mundo visual silencioso, no qual os textos se constituíam por meio de
livros impressos, que organizavam o conhecimento em um layout de página espacial formalmente
ordenado. Ramus, portanto, inovou no modo como reorganizou e reproduziu o conhecimento
dos autores clás,sicos, de modo que pudesse ser ensinado, por meio de instruções aos professores,
transmutando-o de sua forma original para outra forma na qual pudesse ser aprendido. Nesse
sentido, pode-se dizer que, ao organizar formalmente o conhecimento a ser ensinado, Petrus
Ramus propôs algo, ainda que remoto, que seria o embrião da noção atual que temos de "currículo
escolar".
l!l.' il-~l)°}. l!l
~ffl Veja: "Da universidade quinhentista de Paris para o mundo: Currículo e método em Petrus
~ - Ramus".

Aplicando o pensamento objetivo

A partir, então, de Petrus Ramus, uma nova lógica foi aplicada à forma como a informação era
organizada: uma lógica que prosseguia, para usar as palavras de Ong, "por definições e divisões a
sangue-frio, levando a ainda mais definições e mais divisões, até que todas as partículas do sujeito

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 93


fossem dissecadas e eliminadas". 4 Nesse sentido, havia numerosas seções, divididas em subseções
e "subsubseções"; grânulos de conhecimento ordenados e marcados por uma estrutura feita de
várias camadas de títulos e subtítulos. Assim, o conhecimento ensinável foi estabelecido por meio
de um desdobramento sistemático e lógico, partindo dos grânulos mais fáceis e avançando para os
mais difíceis, usando-se as páginas do livro-texto como espaços a serem divididos em unidades de
tempo de aula. Cada grânulo do texto impresso era uma "aulà' ou várias lições, uma seguindo a
outra até que o plano de aula semestral ou anual terminasse. Se o livro-texto nesse sistema pedagógico
se tornou um artefato-chave na transmissão do conhecimento, o professor se tornou um "conduíte"
para o conhecimento impresso, que respeitosamente seguia sua lógica na organização da sala de
aula e na transmissão do conteúdo do currículo.

***

Depois de várias semanas virando as páginas do livro didático, lição por lição, capítulo a capítulo,
era hora de ver o quanto os alunos da professora Joana tinham aprendido por meio de uma avaliação
ao final do ano. Eles realmente haviam compreendido as classes de palavras? Podiam classificar
todas elas? Sabiam o que era um substantivo comum de dois gêneros? O que era um verbo transitivo
direto? Um advérbio de modo? Tudo isso havia sido "avaliado" por meio de números, dispostos
em uma grade de "progresso escolar" ao longo do ano, no peculiar "jogo da educação''.

Aprendizes se envolvendo com letramento: Copiando, repetindo,


memorizando e aplicando regras
11
Pesquisando" e copiando textos da internet

Em uma seçi).o do livro didático do 62 ano, há uma atividade relacionada a "fontes renováveis
de energia': A professora Joana, então, decide levar seus alunos ao "laboratório de informáticà' da
escola para que pesquisem na internet sobre o assunto. Como há 30 estudantes na turma e o
laboratório possui apenas 15 computadores, Joana os divide (dois alunos por computador). Depois
que todos já estão sentados e quietos, ela pede que abram o Google e pesquisem sobre fontes
renováveis de energia, destacando que eles devem fazer buscas em, pelo menos, três sites distintos.
Passados cerca de 30 minutos, a professora solicita aos alunos que copiem em seus cadernos os
resultados das investigações realizadas, para levá-los para leitura e discussão em sala de aula. No
entanto, como a atividade de cópia dos textos pesquisados toma bastante tempo, a aula termina
antes que a turma possa retornar à sala, o que faz com que Joana adie a atividaGJe para a aula
seguinte.
Esse exemplo é bem emblemático para percebermos a questão do uso da internet na escola. Isso
porque, apesar de tentar fazer com que seus alunos usem uma "nova tecnologià' - nova em relação
às tecnologias tradicionais de sala de aula, como o livro didático, o giz e a lousa -, a professora
continuou replicando práticas tradicionais de letramento, como a solicitação de cópia à mão dos

4 Idem, pp. 134-135.

94 i LETRAMENTOS
textos pesquisados na internet, um expediente típico da abordagem didática, que, portanto, não
mobiliza diferentes tipos de valores, prioridades e sensibilidades dos letramentos com os quais
estamos familiarizados. 5

Afamigerada "redação escolar"

Na aula subsequente, a professora Joana trabalha a produção textual com seus alunos. Um dos
tópicos do conteúdo programático previstos para o 4º-bimestre é a carta aberta. A professora, então,
inicia a aula dizendo:
- Hoje vocês vão escrever uma carta aberta. A carta aberta é do tipo argumentativo e tem como
principal característica fazer com que a pessoa que está escrevendo possa expor em público suas
opiniões e suas reivindicações sobre um assunto, bus&ando convencer alguém sobre suas ideias. Mas
a carta aberta é diferente de uma carta pessoal. Na carta pessoal, o que se trata são assuntos, como
o próprio nome diz, pessoais, que não dizem respeito a outras pessoas. Já na carta aberta, o assunto,
o problema, é de interesse coletivo, público. Então, a carta aberta pode ser utilizada para protestar
contra esse problema, mas também como uma forma de conscientização das pessoas ou de um
representante político, do governo, por exemplo, sobre esse problema. A carta aberta se divide nas
seguintes partes (a r,tofessora escreve na lousa):

• Título - onde se destaca para quem é a carta aberta.


• Introdução - onde se aponta o problema a ser resolvido.
• Desenvolvimento - onde se apresentam os argumentos relacionados ao problema e o ponto de
vista de quem está escrevendo.
• Conclusão - onde se solicita uma resolução para o problema em questão.

- Agora, eu vou querer que cada um de vocês escreva uma carta aberta de, no máximo, 3 o linhas
sobre um tema b,astante atual que nós pesquisamos na aula anterior, lembram? Qual foi?
- Energia - responde um dos alunos.
- Isso. Fontes renováveis de energia - diz a professora - Vamos falar a respeito de como podemos
reduzir os problemas de falta de energia usando fontes renováveis. O que vocês pesquisaram na aula
passada no laboratório. Lembrando que o texto tem que ter título, introdução, desenvolvimento e
conclusão. E vocês têm até o final da aula para terminar e me entregar, tudo bem?
Podemos notar que, embora a professora Joana tenha trazido para sua aula um gênero textual
específico (a carta aberta), o modo como ela o explora é típico da abordagem didática, na qual o
trabalho de produção textual se constitui com base no modelo da famigerada "red~ão escolar':
Primeiramente, ela apresenta formalmente o gênero, por meio de seu conceito e sua estrutura, para,
então, solicitar de seus alunos a produção individual de um texto sobre um tema genérico, cuja
única leitora será a própria professora, que, possivelmente na aula seguinte, devolverá as redações
aos alunos "corrigidas" (do ponto de vista ortográfico e gramatical).
Como a atividade de produção textual está centralizada na figura da professora, não há espaço
concreto para a participação coletiva dos alunos, que poderiam debater o problema de forma mais

5 Lankshear & Knobel, 2008.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA i 95


específica, discutindo, por exemplo, como uma fonte renovável de energia alternativa poderia
resolver o(s) problema(s) de determinada região; ou, ainda, debater um problema local que alguns
moradores do próprio entorno da escola estariam enfrentando, buscando, desse modo, encontrar
uma solução para ele. Assim, o debate e a produção textual poderiam se constituir, de fato, em uma
oportunidade para a reflexão e a construção de um posicionamento dos alunos, e não em mera
tarefa a ser cumprida para a aula de língua portuguesa.

As relações sociais da aprendizagem no processo de letramento:


Autoridade no conhecimento da língua
"Testando a escrita"
Dez dias depois de os alunos haverem escrito um texto, em sala de aula, sobre o tema "fontes
renováveis de energia'', a professora Joana lhes devolve as redações "corrigidas", nas quais destaca
os "erros" gramaticais e notacionais (ortográficos, de pontuação e de acentuação) que cometeram.
Ao valorar exclusivamente questões desse tipo nos textos dos estudantes, a professora corrobora
justamente a lógica de v sar a produção textual em sala de aula como pretexto para "testar a escrita''
dos alunos, isto é, para avaliar o quanto estão "escrevendo bem", na perspectiva tradicional de
avaliação escrita.

Valorizando a conformidade
O historiador Harvey Graff descreve o papel do letramento no estabelecimento de um novo
sistema de ensino institucionalizado em massa no século XIX. Segundo o autor, o letramento foi
usado como um instrumento para inculcar "pontualidade, respeito, disciplina, subordinação",
contribuindo, desse modo, para moldar "uma força de trabalho controlável, dócil e respeitosa,
disposta e capaz de seguir as ordens". 6 Em outras palavras, a abordagem didática do letramento na
educação em massa se tornara uma importante ferramenta cultural na construção da sociedade
moderna.7

(!]li'(!]
(!t] - .·.•
r,
Veja: "Em busca do letramento: As origens sociais e intelectuais dos estudos sobre letramento".

De forma específica, a ordem social moderna na educação se constituiu por meio de uma ordem
espacial da sala de aula (alunos de frente para o professor, e não de frente um para -~outro), de
uma ordem temporal do horário escolar (com um tempo destinado estritamente para a disciplina
voltada à leitura e à escrita e, outras vezes, a cada uma das demais disciplinas) e de um currículo
em geral (que permite avançar um passo após o outro, em uma sequência pré-ordenada).

6 Graff, 1979, p. 262.


7 Idem, 1987.

96 / LETRAMENTOS
No coração da abordagem didática está o livro didático, um material formal, autoritário, não
negociável, que não é apenas uma metáfora para um sistema de ordem social, no qual o texto escrito
assume um lugar sem precedentes, mas é, sobretudo, um meio crucial de socializar as crianças na
sociedade moderna. Nesse sentido, a pedagogia do letramento na abordagem didática representa
uma enorme ruptura na história da educação, na qual, com a exceção ocasional e parcial das elites
letradas, a maioria da população funcionava principalmente interagindo entre si, usando textos
orais mais fluidos e intersubjetivos. Antes do ensino obrigatório, a socialização, para a maioria da
população, ocorria apenas informalmente ao longo de suas vidas em suas comunidades. A pedagogia
do letramento na abordagem didática, por outro lado, apresenta uma razão muito particular e
quintessencialmente moderna, que leva massas de jovens para um novo ambiente social, tornando-
-os os tipos de pessoas necessárias para essa mesma ordem social. De fato, isso muda o mundo!
Mesmo no século XXI, a pedagogia do letramento na abordagem didática continua forte em
algumas escolas, constituindo-se, ainda, em uma força cultural muito poderosa, que posiciona o
professor, firme e autoritariamente, no centro do processo "instrucional". Isso é destacado nos PCNs
como uma "pedagogia tradicional", na qual o professor é visto como figura central, cujas funções
são definidas como de vigiar e aconselhar os alunos, corrigir e ensinar a matéria. A esse respeito,
vale trazer aqui todo o trecho do documento, que detalha muito bem como se constitui essa
pedagogia:

A metodologia decorrente de tal concepção baseia-se na exposição oral dos conteúdos, numa sequência
predeterminada e fixa, independentemente do contexto escolar; enfatiza-se a necessidade de exercícios
repetidos para garantir a memorização dos conteúdos. A função primordial da escola, nesse modelo, é
transmitir conhecimentos disciplinares para a formação geral do aluno, formação esta que o levará, ao
inserir-se futuramente na sociedade, a optar por uma profissão valorizada. Os conteúdos do ensino
correspondem aos conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações passadas como verdades
acabadas, e, embora a escola vise à preparação para a vida, não busca estabelecer relação entre os conteúdos
que se ensinam e os interesses dos alunos, tampouco entre esses e os problemas reais que afetam a
sociedade. Na maioria das escolas essa prática pedagógica se caracteriza por sobrecarga de informações
que são veiculadas aos alunos, o que torna o processo de aquisição de conhecimento, para os alunos,
muitas vezes burocratizado e destituído de significação. No ensino dos conteúdos, o que orienta é a
organização lógica das disciplinas, o aprendizado moral, disciplinado e esforçado. Nesse modelo, a escola
se caracteriza pela postura conservadora. O professor é visto como a autoridade máxima, um organizador
dos conteúdos e estratégias de ensino e, portanto, o guia exclusivo do processo educativo. 8

Explorando as conexões entre os "processos de conhecimento" e a


pedagogia do letramento na abordagem didática
O que podemos aprender com a abordagem didática? Muitas vezes, no passado, essa abordagem,
de fato, funcionou e, em muitos contextos atuais, é ainda bem-sucedida. Mesmo com críticas de
alguns educadores a partir das perspectivas de outras tradições pedagógicas, como as abordagens
autêntica, funcional e crítica, que descreveremos nos capítulos seguintes, muitos alunos aprenderam

8 Brasil, 1997, pp. 30-31.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 97


coisas por meio da pedagogia do letramento na abordagem didática. Quais são, então, os ganhos
dessa abordagem que poderíamos correlacionar com os "processos de conhecimento" da pedagogia
dos multiletramentos?
Um dos pontos fortes da abordagem didática é seu foco no que chamamos de processos de
conhecimento de "conceitualização". Tal enfoque frequentemente envolve instrução explícita,
desvelando os esquemas acadêmicos que são a espinha dorsal de uma disciplina - seus conceitos,
os significados desses conceitos, as instâncias factuais que ilustram os conceitos, as características
desses conceitos e as relações entre conceitos. Nesse sentido, "conceitualizar" se conecta a antigas
tradições da abordagem didática, incluindo suas variantes mais modernas, como a "instrução diretà:
que se centram no conhecimento acadêmico, e não no aluno. No entanto, como é necessário reservar
um lugar para o conhecimento acadêmico estruturado, esse objetivo pode não estar necessariamente
em desacordo com uma abordagem cujo foco seja o aluno.
Tipicamente, o trabalho na abordagem didática é realizado de forma altamente individualizada,
e o conhecimento é considerado precipuamente cognitivo - algo que está na "cabeça do aprendiz",
como as coisas que ele pode absorver e reter na memória e no raciocínio, que gerarão respostas
corretas. A orientação de ensino, nesse caso, é muitas vezes focada em habilidades e treinamento
por meio de repetição.* A psicologia behaviorista estuda a aquisição de conhecimento na abordagem
didática, com sua teoria de estímulo-resposta ou recompensa-punição. Os educadores behavioristas
desenvolvem currícul'ôs que são cuidadosamente sequenciados, que progridem em etapas, até
chegarem ao "domínio" de um conteúdo ou disciplina. Quando há pouca motivação imediata ou
intrínseca do conhecimento em si, outras motivações extrínsecas de "recompensa" e "punição" são
estabelecidas na forma, por exemplo, do famigerado modelo tradicional tripartite "IRA'' (iniciação
- resposta- avaliação), em que o professor inicia com uma pergunta, o aluno responde e o professor,
então, avalia as respostas usando expressões do tipo: "Não, isso não está certo" ou "Muito bem. É
isso mesmo!':
Entre os que defendem a abordagem didática estão Kirschner, Sweller e Clark, que, em um
importante periódico sobre psicologia educacional, argumentam que os aprendizes iniciantes devem
receber orientação instrutiva direta, na forma de informações que expliquem por completo os
conceitos e procedimentos que devem aprender.9 Para tanto, os autores recorrem à ciência cognitiva
para sua argumentação, alegando que a aprendizagem experiencial baseada em problemas coloca
uma carga irreal na memória de curto prazo, à medida que o aluno lida com novas informações.
Relacionar fatos, leis, princípios e teorias de uma disciplina à memória de longo prazo, argumentam
os autores, apoia uma aprendizagem mais duradoura. Então, concluem que "para alcançar a expertise
em uma determinada área de saber, os alunos devem adquirir os esquemas necessários ou estruturas
conceituais que lhes permitam interpretar informações de forma significativa e eficiente e identificar
a estrutura do problema". 10
A esses argumentos, também precisamos acrescentar o argumento cultural de qu~ ambientes
imersivos, como as pedagogias do letramento na abordagem autêntica, que são orientadas para a

* Na versão original do livro, os autores fazem um jogo de palavras neste trecho do parágrafo (possível em função das
rimas das palavras na língua inglesa), em que relacionam a orientação de ensino na abordagem didática aos termos
skill and drill, para se referirem a uma caricatura popular, e drill and kill, para atribuírem um tom mais depreciativo.
(N. da T.)
9 Kirschner; Sweller & Clark, 2006.
10 Idem, p. 83.

98 1 LETRAMENTOS
experiência, tendem a favorecer os estudantes cujas culturas familiares e sensibilidades estariam
mais próximas da cultura escolar. Por outro lado, para os alunos cujas experiências se distanciam
mais da cultura de letramento escolar, o ensino explícito pode, às vezes, ser mais eficaz. Some-se
a isso a questão da eficiência - às vezes, pode ser mais eficiente definir conceitos e teorias do que
fazer com que os alunos "reinventem a roda epistêmica", examinando a montanha de fatos e
redescobrindo procedimentos disciplinares. Finalmente, vale destacar que, enquanto os processos
de conhecimento de aprendizagem experiencial, que sustentam a abordagem autêntica, favorecem
o raciocínio indutivo, que vai do particular ao geral, a aprendizagem conceitual valoriza o raciocínio
dedutivo, que passa a atribuir sentido ao particular, porque o geral já faz sentido.
Outro processo de conhecimento que ainda precisamos mencionar em uma discussão sobre a
pedagogia do letramento na abordagem didática é o "experienciando o novo". Se, por um lado, a
abordagem didática negligencia os textos das vidas cotidianas dos estudantes (culturas familiares,
textos midiáticos ou cultura popular, por exemplo), isto é, não lida com o "experienciando o
conhecido': por outro, encoraja os estudantes a experienciar textos novos e muitas vezes desconhecidos,
considerados de alto valor literário, que lhes possibilitam acesso à cultura nacional.
Assim, apesar de todas as suas falhas, ainda há lugar em nossas pedagogias para algumas das
intravisões, dos métodos e dos tipos de atividades da abordagem didática. Todavia, defendemos
uma pedagogia mais equilibrada, que complemente o processo de conhecimento conceitua! com
os outros processbs de conhecimento (experiencial, analítico e aplicado).

Sumário

talll!liildo dolebamento Regras formais, uso correto, leitura para apreensão do significa-
do e do cânone literário.

Programa de estudos, o livro didático e o professor.

Cópia, repetição, memorização e aplicação de regras.

lllllções sociais do letramento Autoridade no conhecimento da língua.

Processos de conhecimento

1. Conceitualizando por nomeação


Inicie uma wiki definindo conceitos-chave na pedagogia dos letramentos: termos importantes na
análise de como a comunicação e a linguagem funcionam e são aprendidas. Mantenha atualizada
e estenda essa wiki enquanto você trabalha com este e os capítulos restantes de~tG livro.

2. Experienciando o novo
Localize uma fonte a partir da qual você pode ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia
do letramento na abordagem didática. Sua fonte pode ser um livro didático antigo ou uma entrevista
com um professor. Escreva sua própria análise das dimensões da abordagem didática sobre:
a. o conteúdo do conhecimento sobre letramento;
b. a organização do currículo de letramento;

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM DIDÁTICA 1 99


c. alunos "fazendo letramento";
d. as relações sociais do letramento.

3. Experienciando o conhecido
Descreva um momento de aprendizagem em que você experienciou a abordagem didática. Como
foi esse momento? De que forma foi um momento de aprendizagem eficaz ou ineficaz para você?

4. Aplicando apropriadamente
Neste e nos três capítulos seguintes, você se envolverá com a teoria e a prática das quatro
abordagens principais do letramento: didática, autêntica, funcional e crítica. Escolha um tópico
de letramento que possa ser ensinado em uma aula e que exemplifique a abordagem didática.
Elabore um discurso hipotético professor-aluno no decorrer dessa atividade.

s. Analisando criticamente
Debata a proposta de Bento de Núrsia (São Bento) sobre as condições ideais de aprendizagem
(veja: <http://newlearningonline.com/new-learning/ chapter-8/ st-benedict-on-the-teacher-
andthe-ensinado> ).

6. Analisando funcionalmente
Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a abordagem didática seria mais e menos
apropriada.

7. Analisando criticamente
Considere uma atividade de aplicação particularmente apropriada da abordagem didática (para
um determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
essa aplicação, cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja o didático.

100 1 LETRAMENTOS
Visão geral
As pedagogias do letramento na abordagem autêntica foram primeiramente formuladas como
contraponto direto à abordagem didática. Elas se tornaram bem conhecidas e influentes a partir
do começo do século XX, inicialmente por meio dos trabalhos de John Dewey, nos Estados Unidos,
e de Maria Montessori, na Itália. Quando relacionadas à leitura e à escrita, as pedagogias do
letramento na abordagem autêntica promovem uma espécie de "evolução natural", uma continuação
dos processos de aprendizagem da língua que se iniciaram com a aprendizagem da fala. Para tanto,
a abordagem autêntica recomenda imersão em experiências de leitura e escrita pessoalmente
significativas, com foco nos próprios processos de leitura e escrita, e não nas formalidades de regras
e adesão a convenções; trata-se, por isso, de uma abordagem centrada no aluno, que busca fornecer
espaço para sua autoexpressão. No que se refere à terminologia dos "processos de conhecimentos"
dos multiletramentos, as pedagogias do letramento na abordagem autêntica focalizam principalmente
os processos de conhecimentos experienciais.

Vitor é um aluno que acaba de ser matriculado em uma escola municipal que trabalha com a
pedagogia do letramento na abordagem autêntica. Ele foi transferido de uma escola~ outra cidade,
onde o ensino é pautado pela abordagem didática. Em seu primeiro dia de aula na turma da
professora Joana, Vitor acha tudo bem estranho. Parece que a aula da professora Joana acontece
em todo lugar. A primeira coisa que Vitor percebe é o arranjo das mesas, ordenadas em pequenos
grupos com os alunos de frente um para o outro. Isso é muito diferente da configuração da sala de
aula que havia frequentado na escola anterior.
- Bem-vindos a um novo ano escolar - diz a professora Joana alegremente. - Tenho certeza de
que será um ano maravilhoso!
Oconteúdo de letramento - Significados autênticos
1. Lili
Olhem para mim.
Eu me chamo Lili.
Eu comi muito doce
Vocês gostam de doce?
Eu gosto tanto de doce!

2. Lili em seu piano


Lili toca piano.
Lili toca assim Dó, ré, mi, fá ...
Suzete é a cachorrinha.
Suzete ouve Lili tocar.
Toca Lili, toca dó, ré, mi, fá...

(A. Fonseca. Cartilha: O livro de Lili, 1961)


Quadro 5.1: Cartilha: O livro de Lili.

Se, no método fônico, o foco está


em como juntar sons para formar
palavras, o método an~ ítico faz o
contrário. Inicia-se o processo de
ensino com palavras inteiras, frases
e até historietas completas, como é o
caso do trecho acima, retirado da
cartilha que se baseia na história de
Lili (O livro de Lili). Assim, enquanto
o método sintético, como o fônico,
se volta à decodificação de palavras,
trabalhando a relação entre os sons
distintivos da língúa (fonemas) e a
sua representação por meio de letras Eva vê a uva.
(grafemas), o método analítico parte
Vovô vê o ovo.
do pressuposto de que a leitura é um
processo natural, como a fala, bus- Vovô viu a ave.
cando, primeiramente, o reconhe-
A ave vôa.
cimento global do texto, da frase ou
da palavra, até chegar às letras e aos O Ivo viu a uva.
fonemas , ou seja, a progressão de
unidades de sentido mais amplas às
unidades menores. 1- ct 0/V-t, V-Ô-CL.
Como podemos ver na figura ao
.2-~\K,Q ~ -
. lado, para ensinar palavras e frases
inteiras, a atividade justapõe sen- 3_(Ü j vo viu, o,, UJllU,.
tenças com imagens, de modo que -1-
estabeleçam uma relação direta entre Figura s.1: Cartilha das mães, de Arnaldo de Oliveira Barreto.

102 1 LETRAMENTOS
si. Além disso, a atividade explora a repetição de palavras que apresentam um fonema em comum:
/v/ ("Eva", "vê", "uva", "vovô", "ave", "voà', "Ivo" e "viu"). Assim, os alunos têm a chance de se
acostumarem com o som e a grafia das palavras que apresentam esse mesmo fonema, podendo,
então, adivinhá-las, já que, se conhecem algumas palavras na frase, mas não outras, provavelmente
poderão presumir as que não conhecem por meio do próprio padrão geral da sentença e por serem,
de alguma forma, palavras relacionadas a coisas comuns e familiares, isto é, ligadas às suas próprias
experiências de vida.
A Cartilha das mães, de onde a figura acima foi retirada, foi publicada ainda no final do século
XIX, período em que já se iniciavam no Brasil discussões acadêmicas sobre o método analítico.
Nessa cartilha, o foco do ensino da leitura eram as historietas, que resultavam da coordenação de
sentenças e de sua correlação com as imagens. Não havia atividades específicas que trabalhassem
a relação fonema-grafema, já que o ponto de partida era o significado de palavras inteiras, unidas
em sentenças simples. O objetivo, portanto, da atividade não era prover exercícios de memorização,
mas sim buscar a leitura autêntica para construir significados e, então, poder chegar às partes
menores constitutivas das palavras, e não o contrário.
Nesse sentido, diferentemente dos métodos sintéticos, que vão das "partes" para o "todo", os
métodos analíticos partem do "todo" para as "partes", pois representam uma "maneira de ensinar
introdução à leitura que começa com unidades completas de linguagem e mais adiante as divide
em palavras ou as f alavras em sons"; uma maneira de "ensinar introdução à leitura começando
1

por partes ou elementos das palavras, tais como letras, sons ou sílabas, para depois combiná-los
em palavras': 2

Os métodos analíticos contêm alguns insights importantes sobre a natureza da leitura. Isso
porque, quando lemos algo que possui significado, lemos palavras inteiras ou mesmo grupos de
palavras, não sons de letras. Se fôssemos pronunciar isoladamente cada letra enquanto lemos, o
processo de leitura seria dolorosamente lento, e o sentido, se não impossível, difícil de construir.
Nós nos tornamos leitores fluentes não porque lemos cada palavra laboriosamente, mas porque
seguimos o fluxo da linguagem, pulando os detalhes alfabéticos. É por isso que os professores no
passado costu~avam dizer aos jovens leitores que não mexessem os lábios durante a leitura silenciosa,
e é por isso que, quando revisamos o que escrevemos, costumamos ter dificuldade para perceber
os erros de digitação.
Um tipo de método analítico é o método "global". Ele destaca que o aluno aprende e desenvolve
sua linguagem em seu aspecto global, uma vez que a leitura seria uma atividade de interpretação
de ideias. Segundo Kenneth Goodman, em vez de "habilidades para atacar palavras, o programa
deve ser projetado para construir estratégias de compreensão. Crianças aprendendo a ler devem
sempre ver as palavras como partes de unidades maiores e significativas". 3 O método fónico,
de acordo com Goodman, é complicado demais para ser ensinado porque suas regras são muitas.
E, ainda que aprendamos as regras, muitas delas nunca se aplicam de forma con~ tente e orga-
nizada.
Para o autor, as regras e convenções que dizem respeito à relação fonema e grafema podem
ser mais bem aprendidas no próprio "curso de aprendizagem da leitura e da escrita, e não como

1 Harris & Hodges, 1999, p. 182.


2 Idem, p. 185.
3 Goodman, 2005, p. 3.

PEDAG OGIA DOLETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊ NTICA 1 103


um pré-requisito". 4 Assim, por exemplo, em vez de permitir que os alunos sejam prejudicados
pela ortografia, devemos deixá-los usar as grafias inventadas, pelo menos nos primeiros rascunhos,
uma vez que eles podem verificar suas grafias mais tarde ou aprender ortografias quando
encontrarem essas palavras em outros textos e/ou dicionários. Isso porque a leitura é um processo
de atribuir sentido ao significado e não pronunciar os sons das letras; por isso, o estudo da relação
fonema-grafema nunca deve ser desvinculado do contexto de significado das palavras e frases
reais. A linguagem não é uma abstração; é expressão significativa, 5 muito embora, como veremos
mais adiante, os protagonistas do outro lado das linhas de batalha nas "guerras de leitura"
discordem.

Método sintético Método analítico

Consiste em sintetizar sequências, dados ou átomos campo- Parte das sequências completas, sendo a tarefa analisá-las e
nentes. O método de recitação do bê-á-bá encaixa-se nesse identificar os átomos.
tipo.
Mostra primeiro palavras ou frases e ensina a identificar
. Mostra primeiro as letras, ensina suas correspondências com nelas as unidades componentes, as letras e os sons que lhes
sons e depois a compor com elas as sílabas e palavras. correspondem.
Quadro 5.2: Adaptado de Mi riam Lemle. Guia teórico do a/fabetizador. São Paulo, Ática, 1998, pp. 42-43.

Da caneta para a página

Hoje a turma de Vítor está aprendendo caligrafia. O que, no entanto, difere essa aula de uma
"tradicional" é que isso não é formalmente trabalhado. Os alunos da professora Joana não têm que
copiar várias vezes as letras do alfabeto, começando com as linhas de cima para baixo, em seus
cadernos, para, então, escrever repetidas vezes frases sem sentido.* Ao contrário, Joana tem muitas
coisas na sua sala de aula para que os alunos possam ver e sentir as letras, como caixas cheias de
letras do alfabeto, que podem ser usadas para formar palavras. Tem também fotos de animais, com
nomes que começam com uma letra em particular e que tomam forma através das próprias letras,
como, por exemplo, uma serpente na forma da letra "s".
- 1!1

Il
i

· ·.• Veja: "Maria Montessori".


(!] .

Todos os dias, a professa Joana concede em suas aulas um tempo para os alunos desenharem e
sempre lhes diz para usar palavras que identifiquem seus desenhos. Vítor acha que as identificações
de algumas crianças são muito difíceis de ler. Porém, de vez em quando, a professora Joana diz a
seus alunos:
- Sua letra está ótima!
Ou então:
- Que letra é essa aqui? Vamos fazer essa letra ainda mais bonita?

4 Idem, 1993, p. 50.


5 Idem, ibidem.
* No texto original, os autores usam o famoso pangrama "Toe quick brown fox jumps over the lazy dog" (''A rápida
raposa marrom pula sobre o cachorro preguiçoso"). Essa frase é bastante conhecida em inglês porque tem apenas
35 letras, sendo, portanto, a menor sentença em que todo o alfabeto da língua inglesa é usado. (N. da T.)

104 1 LETRAMENTOS
Processo de escrita: Pesquisas, rascunhos, conversas e publicação de textos
- Hoje, vamos escrever histórias e cada um vai escolher o seu próprio assunto. Eu quero que vocês
escrevam sobre coisas que realmente gostem, que realmente signifiquem algo para vocês - diz a
professora Joana.
Por mais inteligente que seja, Vitor acha difícil esse negócio de escrever sobre algo de que
realmente goste. Nunca fez isso na sua escola anterior. - Nossa, o que vou escrever? - ele pensa.
Depois de um pouco de agonia e de estímulos de alguns colegas, ele decide escrever sobre o
jogo Minecraft.
- Levaremos algumas semanas para escrever nossas histórias - diz a professora Joana. Isso porque
ela faz uso de uma abordagem que trabalha com um processo de escrita qenvolvendo pesquisas,
rascunhos, conversas e publicação de textos, seguindo alguns passos:
- Passo 1: vamos pensar nas nossas ideias, fazer ajgumas pesquisas, recolher algumas anotações;
passo 2: vamos escrever rascunhos; passo 3: vamos falar sobre nossos rascunhos; por fim, passo 4:
vamos publicar nosso trabalho finalizado em um pequeno livro que criaremos apenas para essas
histórias.
- Isso vai dar muito trabalho - Vitor pensa consigo mesmo. - Na escola que estudei antes, era
muito mais rápido do que isso para escrever uma história.
Vitor e seus colegas de turma, então, começam a trabalhar. A sala de aula se torna um espaço
de bastante conversa entre os alunos.
- O que você vai escrever? - Vítor pergunta ao colega do outro lado do pequeno grupo de mesas.
- Não sei - ele responde.
A professora Joana começa, então, a andar pela sala de aula para observar as crianças, que
iniciam seus projetos de escrita. Notando que um dos alunos (Jorge) está olhando pela janela, Joana
lhe pergunta:
- Então, o que você gostaria de escrever, Jorge? Me diga algo que o deixou surpreso ou feliz nos
últimos dias.
Ele pensa durante algum tempo e lhe responde:
- Meu time ganhou um jogo no domingo.
- Aí está, você pode escrever sobre a grande vitória de seu time - sugere a professora.
Enquanto isso, o texto de Vítor sobre o Minecraft começa a tomar forma. Ele diz:
- O Minecraft é muito legal porque pode construir um monte de lugar com blocos.
Em seguida, ele escreve algumas coisas sobre o jogo para poder se lembrar posteriormente: -
Joga sozinho, joga com outras pessoas com o avatar, pode faze blocos de madeira, mas tem que corta
árvore, de pedra, daí pega blocos do chão, pode faze feramentas de madeira, de ferro e de ouro.
Embora seu primeiro rascunho pareça bastante confuso, a professora Joana lhe diz:
.,;,/t
- Não se preocupe com isso.
Jorge parou novamente de escrever. Está preso em uma palavra. Então, pergunta:
- Como é que escreve "empurrao"?
- Não se preocupe com isso agora, Jorge. Apenas escreva a palavra como você acha que é. Nós
vamos depois ver como se escrevem as palavras e como a gente usa a pontuação direitinho - responde
Joana.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 105


Reler, revisar, editar, revisar de novo, reescrever. Primeiro rascunho, segundo rascunho, rascunho
final. Essa turma, de fato, é bastante ocupada. E durante todo esse tempo, a professora Joana continua
andando pela sala, conversando com os alunos.
- Como está a história? Sobre o que ela é? O que você vai fazer? Você precisa de ajuda? - Ela faz
muitas perguntas aos pupilos.
- Agora, crianças, nós vamos ter uma conversa sobre as histórias - diz a professora depois que
eles fizeram um primeiro rascunho de suas histórias.
- Eu quero que todos voltem às suas mesas e leiam a história de um outro colega e digam a ele o
que vocês acham. Vocês vão olhar o seguinte: a história tem informação suficiente? A história tá bem
organizada (tem começo, meio e fim)? A pontuação foi usada corretamente? E as palavras estão
escritas corretamente?

li
~ .
Veja: "Dwyer sobre escrita de conferência de proq:ssos".

Vitor, que ficou com o texto de Jorge, lê sobre os "impuroes" que o colega tomou durante a
partida de futebol. Não é uma história interessante para Vitor, porque ele não gosta muito de futebol.
Ele também não sabe a ortografia correta de "impuroes': mas, depois de pesquisar em um dicionário,
corrige a palavra e a adiciona à sua lista de ortografia pessoal.
Enquanto isso, a professora Joana anda pela sala, conversando com os alunos, um a um, sobre
a publicação do material.
- Vocês verificaram suas informações, a organização, a ortografia e a pontuação? - pergunta. -
Lembrem-se de que a melhor maneira de fazer isso é ler a sua história em voz alta para vocês mesmos
para ver se ela faz sentido para vocês. Usem também o dicionário para verificar qualquer palavra que
vocês não tenham certeza.
O barulho na sala de aula fica mais alto. Então, para a parte mais divertida do processo de escrita,
Vitor pensa: - Vamos fazer o livro!
Todo mundo transforma sua hístória em um pequeno livro, com uma capa de papelão bem
ilustrada e grampeada na borda. Foram algumas semanas de trabalho duro, mas valeu a pena, pensa
Vitor.

Leitura autodirigida

- Agora é a hora da leitura.


Nas aulas de leitura da sua escola anterior, Vítor costumava ler junto com a sua turma, em
uníssono, ou ouvia um aluho após o outro ler uma frase após a outra de trechos comuns dos mesmos
livros. 4

Todavia, na aula da professora Joana, existe um centro de leitura em um canto da sala, onde há
vários livros. Como primeira atividade de leitura do ano, a professora pede a cada aluno de cada
um dos grupos que escolha um livro. Depois disso, os alunos passam a receber um novo livro
sempre que tiverem concluído o livro anterior, dependendo de quanto tempo levaram para lê-lo.
- Vocês escolhem os livros. Eu dividi os livros em fácil, médio e difícil. Escolha o tipo de livro ou
o tipo de história que vocês gostariam de ler.

106 j LETRAMENTOS
De vez em quando, a professora Joana pede a um aluno que comente com o grupo, ou mesmo
com a turma toda, sobre um livro de que tenha gostado particularmente.
A professora Joana lida com uma abordagem de ensino que surgiu na virada do século XX que
chamamos de "pedagogia autêntica". Também é comumente chamada de "pedagogia progressistà',
mas escolhemos a palavra "autêntica" porque ela capta o sentido de naturalidade e relevância com
o qual esse tipo de perspectiva tentou se distinguir da abordagem didática (ver capítulo anterior).
John Dewey, nos Estados Unidos, foi um dos expoentes inovadores dessa nova filosofia do currículo
e, embora suas ideias possam ser tomadas como típicas de todo o movimento, ele certamente não
estava sozinho. Outros educadores, incluindo Maria Montessori na Itália, apresentavam uma crítica
amplamente similar à abordagem didática.
Pode-se dizer que as aulas de leitura e escrita da professora Joana são organizadas nesse espírito.
Em vez de conceitos abstratos e formais, em vez de uma disciplina para aprender as regras de uso
correto da língua, em vez de ter todos os alunos na mesma página ao mesmo tempo, o foco da
abordagem autêntica está nos significados autênticos, com a escolha de tópicos que realmente
interessam e envolvem os alunos, que são tratados como escritores, leitores e pensadores ativos,
criativos e livres.

Construção ativa de significados

Assim como a abordagem didática foi um produto de seu tempo e lugar, e, nesse sentido, um
produto cultural, a abordagem autêntica também o foi. Desde seu início, refletiu uma visão emergente
do tipo de educação apropriada para a sociedade moderna do século XX, em cujo coração estava
uma ideologia de mudança e progresso. O livro seminal de John Dewey A escola e a socíedade6 abre
com um capítulo intitulado ''A escola e o progresso social", baseado em uma palestra proferida por
Dewey em 1899. Um aspecto desse progresso era celebrar o domínio da natureza pela moderna
sociedade tecnológica:

[A terra] é o grande campo de cultivo, a grande mina, a grande fonte de calor luz e eletricidade. E a grande
paisagem onde alternam os oceanos, os rios, as montanhas e as planícies de que toda a nossa agricultura
e atividade mineira de exploração florestal, todas as nossas entidades de fabrico e distribuição, não
consistem senão em elementos e fatores parciais. É através de ocupações determinadas por este meio
ambiente que a humanidade tem feito os seus progressos históricos e políticos. É através dessas ocupações
que a interpretação intelectual e emocional da natureza tem vindo a ser desenvolvida. É através daquilo
que fazemos no mundo e com o mundo que lemos o seu significado e avaliamos o seu valor.7

•.;$
Essa visão de mundo teve implicações importantes para a pedagogia escolar. Isso significava
que havia um propósito cultural singular no currículo, que poderia ser atribuído a uma confiança
no progresso inevitável da sociedade industrial moderna. Por essa razão, Dewey centrou-se em
atividades práticas e experienciais, em vez da abordagem didática livresca. Contudo, como destaca
o próprio autor, na instituição escolar, essas atividades não devem se reduzir a meros "expedientes

6 Dewey, 2002 [1900].


7 Idem, p. 27.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA ! 107


práticos ou formas de ocupação rotineirà', mas "deverão ser, isso sim, centros ativos de descoberta
científica sobre os materiais e processos naturais, pontos de partida donde as crianças serão levadas
a compreender o desenvolvimento histórico do homem".8
O progresso não era um valor que, na opinião de Dewey, seria compatível com uma "educação
tradicional", baseada exclusivamente em livros, especialmente manuais escolares, que seriam os
principais "representantes do conhecimento e sabedoria do passado", que ditavam "os padrões de
conduta apropriada" e que, consequentemente, previam que "a atitude dos alunos, de modo geral,
deveria ser de docilidade, receptividade e obediêncià'. 9 A educação progressista, na concepção de
Dewey, foi uma resposta direta à inadequação de um currículo didático que impunha o conhecimento
que vinha de cima e de fora. Para o autor,

à imposição de cima para baixo, opõem-se a expressão e o cultivo da individualidade; à disciplina externa,
opõe-se a atividade livre; a aprender por livros e professores, aprender por experiência; à aquisição por
exercício e treino de habilidades e técnicas isoladas, a sua aquisição como meios para atingir fins que
respondem a apelos diretos e vitais do aluno; à preparação para um futuro mais ou menos remoto, opõe-
-se aproveitar-se ao máximo das oportunidades do presente; a fins e conhecimentos estáticos, opõe-se a
tomada de contato com um mundo em mudança. 10

Dewey também estava preocupado com a ideia de que um currículo didático tradicional
fosse aquele que impusesse "padrões, matérias de estudo e métodos de adultos sobre os que
estão ainda crescendo lentamente para a maturidade". Segundo o autor, esse tipo de currículo
fora aplicado por pura necessidade, mas seu conteúdo, em sua natureza, estava além do alcance
da experiência que os jovens aprendizes possuíam, e, por ser-lhes imposto, inseria-se em uma
pedagogia que era nada menos do que brutal e que estava prestes a ser vista como sem sentido
pelos alunos.

Figura s.2: Frontispício de The Chi/d Centered Schoo/, texto escrito por colegas de John Dewey. À esquerda: .J
"Liberdade! Iniciativa do aluno! Atividade! Uma vida de feliz intimidade - esse é o ambiente da nova escola''.
Àdireita: "Olhos para frente! Braços cruzados! Sentem-se quietos! Prestem atenção!
Contexto de perguntas e respostas - esse era o regime do ouvir''.

8 Idem, p. 28.
9 Idem, ibidem.
10 Idem, 1976 [1938], pp. 6-7.

108 j LETRAMENTOS
Aorganização do currículo de letramento: Pedagogia de processos
e crescimento da linguagem natural
Aprendizagem natural

Dewey expressou sua visão alternativa através da metáfora do crescimento orgânico: "dê tempo
à natureza para trabalhar". Isso exigiria uma transformação dos currículos e das salas de aula e iria
à raiz da maneira como o conhecimento é apropriado, até mesmo a ponto de questionar o status
dos próprios fatos.
Em vez de ser um receptor passivo de fatos, na pedagogia de Dewey, a criança assumiria o papel
de questionadora e experimentadora, por meio, então, de uma abordagem mais autêntica, que se
propusesse a remediar três males que, na sua visão, marcariam um currículo na abordagem didática:
o primeiro seria a falta de conexão orgânica com a vida da criança. Sem tal conexão, o conhecimento
e a aprendizagem seriam puramente formais e simbólicos. Dewey não negava que o símbolo era
importante; para o autor, tratar-se-ia de um produto da realidade passada e uma ferramenta para
exploração. No entanto, era preciso que simbolizasse de forma ativa e significativa, constituindo-se,
desse modo, em algo significativo para o aprendiz. Fatos linguísticos da gramática, por exemplo,
teriam que ter um sigaificado e um propósito evidentes, caso contrário não permaneceriam mais
do que meros símbolos, mortos e estéreis.
O segundo mal seria o fato de que o ensino tradicional didático, segundo Dewey, não daria
motivos para os alunos se tornarem motivados. Um fim que é próprio da criança a leva a querer
possuir os meios para sua realização. Nesse sentido, o currículo seria mais bem-sucedido em
condições de equilíbrio de demanda mental e suprimento material.
Em terceiro lugar, ele argumentava que um método típico da abordagem didática, para simplificar
as coisas e torná-las lógicas, teria removido a natureza mais complexa e instigante da realidade,
uma vez que o conhecimento seria apresentado como memorização, não como racionalização.
Nesse sentido, De~ey apontava que "a criança não obtém a vantagem nem da formulação lógica
adulta, nem de suas próprias competências nativas de apreensão e reação". 11
Dewey achava que havia uma política na abordagem didática na qual ele não podia se inscrever,
pois, segundo o autor, constituiria um currículo promovedor das virtudes negativas da obediência
e da submissão. Era, então, mais "adequado a uma sociedade autocrática" do que a uma sociedade
na qual a responsabilidade pela própria conduta e pela conduta do governo recaísse sobre os
cidadãos. Isso teve implicações que influenciaram a micropolítica da sala de aula. Nesse sentido,
"a função do professor deve mudar de um cicerone e ditador para a de um observador e ajudante". 12
Contemporânea de Dewey, Maria Montessori (1870-1952) foi a primeira mulher médica da
Itália. Ela ajudou a estabelecer a Casa dei Bambini, em 1907, uma pré-escola em árd pobre de
Roma, projetada para receber crianças cujos pais trabalhavam fora. Montessori acreditava que o
principal papel dos educadores era ajudar as crianças a ensinarem a si próprias em um ambiente
livre, mas estruturado, e que a separação entre escola e casa (ou comunidade) deveria ser reduzida
o máximo possível.

1.1 Idem, 1956 [1902], pp. 24-26.

12 Dewey & Dewey, 1956 (1915], p. 172.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 109


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l!I .
Veja: "Maria Montessori, a médica que valorizou o aluno".

Montessori ensinava a formação de frases e, apenas incidentalmente, a gramática. Assim, em


vez de segmentar as sentenças, ela fazia com que os alunos formassem suas próprias, organizando
palavras impressas em cartões em frases dispostas em compartimentos de caixas. A esse respeito,
a autora afirmava, com veemência, que a gramática iria parecer, de fato, diferente para o jovem
aluno, se, em vez de ser o cruel assassino que quebrava a frase em pedaços para que nada pudesse
ser compreendido, ela se tornasse a ajuda amável e indispensável para a construção do discurso
conectado. 13

li·,
l!I
Veja: "Parâmetros Curriculares Montessorianos para as Classes do 1 º Segmento do Ensino
. ::. Fundamental - 6 a 12 anos':

Aprendendo a significar

A turma da professora Joana agora está trabalhando com a turma de Vitor um conjunto de
atividades integradas sobre ciências que ela planejou, sem usar um livro didático. Esse conjunto de
atividades prevê um período de quatro semanas para ser concluído, no qual serão muito trabalhadas
a leitura e a escrita. A combinação de atividades de leitura e escrita e de ciências dá aos alunos mais
tempo para realizar o trabalho.
- Agora, vamos estudar ecossistemas. Eu quero que vocês escolham um ecossistema para estudar
- floresta, mar, lago, deserto, o que lhes interessar. Na verdade, se vocês quiserem, podem fazer esse
trabalho em grupos, trabalhando em um ecossistema em que todos estejam interessados. Dessa forma,
vocês podem compartilhar recursos e ajudar uns aos outros com os relatórios que vão fazer sobre os
ecossistemas.
- Vocês vão precisar pegar livros da biblioteca, pesquisar na internet e anotar todas as fontes que
usarem. Vocês também vão precisar fazer um desenho que mostre como funciona seu ecossistema.
Então, vocês vão fazer um projeto descrevendo o funcionamento do ecossistema escolhido. Lembrem-
-se, é um sistema em que as coisas estão interligadas. É por isso que chamamos de ecossistema. Durante
todo o tempo de projeto, vocês vão ter que ler para escrever, escrevendo sobre o que estão lendo e lendo
os textos uns dos outros. E tudo isso para poder fazer um bom projeto de ciência!
- Nossa, é muito trabalho - pensa Vitor. - Como isso vai se juntar para a gente entender o que
realmente acontece em um lago? [ecossistema escolhido por Vitor]
No final do trabalho, contudo, ele se deu conta de que aprendera a pesquisar e a descobrir
informações. Ele também pôde, de fato, perceber, por meio das aulas da professora Joana, o quanto
um relatório científico era diferente do relato que havia escrito em aulas anteriores s3bre suas
experiências com o jogo Minecraft.
Além disso, gostou muito de apresentar seu projeto à turma na forma de um pôster, pois Joana
_havia colocado todos os cartazes na parede da sala de aula, para que os demais projetos concluídos
pudessem ser vistos e apresentados, mostrando que, apesar de descreverem ecossistemas distintos,
os modelos que os alunos haviam desenhado pareciam bastante semelhantes.

13 Montessori, 1973 [1917].

110 1 LETRAMENTOS
Por que aprender desse modo? Para responder a essa pergunta, recorremos ao termo cunhado
por Kenneth Goodman: "método global",* que defende que o texto permanece significativo e
intencional apenas quando é considerado em seu nível mais amplo (global). A esse respeito,
Goodman usa como analogia o modo como as crianças aprendem a língua oral: um processo de
desenvolvimento na interação significativa de textos orais entre elas e os adultos. Segundo o autor,
como as línguas escritas e orais apresentam todas as mesmas características básicas, as crianças
devem aprender a usar a língua escrita através de um ensino que trabalhe de maneira diretamente
análoga ao modo "natural" como elas aprendem a língua oral. Para Goodman, imersão e muita
leitura e escrita ativas, que estabeleçam relação com os interesses, a experiência e as intenções da
criança, são as melhores maneiras de aprender. Nesse sentido, a aprendizagem deve ser centrada
na relevância, no propósito, no respeito, no significado e no poder, com o aluno estando no controle
dos significados, sentindo algum grau de poder como construtor de conhecimento, vendo-se
envolvido em um trabalho com propósito definido e sendo respeitado por sua contribuição. 14
Um currículo voltado ao método global, como consequência, baseia-se em uma gama de "recursos
autênticos': na experiência do aluno e em suas intenções de comunicação, em vez de fundamentar-se
em fatos formais linguísticos a serem ingeridos. É assim que toda uma abordagem relacionada ao
método global pode ser relevante, na medida em que incentiva o aluno a usar a língua para seus
próprios propósitos, uma vez que esse método não se centra na língua in abstracto, mas no significado
que a criança realmente <:Ttler comunicar, respeitando sua individualidade e suas diferentes experiências
de vida. Assim, ao dar aos alunos um senso de controle e apropriação de sua própria língua, em
termos políticos mais amplos, dá-se também uma noção de seu poder potencial como atores sociais.

Veja: "Método global':

Vítor, então, explica seu processo de leitura e escrita:


- Na primeira vez que li sobre o ciclo de vida de um lago de água doce, eu procurei em uma
enciclopédia. Daí eu fiz uma lista de tópicos. Fiquei pensando: Existe mais um tópico que eu devia
colocar? Agora eu teriho seis: plantas, animais, cadeia alimentar, fotossíntese, nutrientes, poluição.
- Será que é demais? Mas eu tenho muita informação, então agora acho que está tudo bem. Vou
procurar mais dois livros antes de começar meu relatório, porque acho que preciso de mais informações.
- Além disso, tem uma lagoa no final da rua. Tenho que me lembrar das coisas que vi lá.
Vítor acha que tem uma colcha de retalhos de anotações, desenhos e ideias. Gradualmente,
começa a reunir seu trabalho em um relatório científico. No terceiro esboço que faz, já há partes
que ficaram claras:

1. Por que estudamos ecossistemas.


2. As partes de um ecossistema da lagoa.

3. Como funciona um ecossistema da lagoa.


4. Danos aos ecossistemas.
5. Como cuidar de nossos ecossistemas.

* O termo original, em inglês, é whole language, que se constitui em um método analítico que, em português, foi tradu-
zido como "método global". (N. da T.)
14 Goodman, 2005.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTENTICA 1 111


1.1--~
l!I . .
Veja: "Graves sobre o ofício da escrità'.

Donald Graves e Donald Murray são grandes referências acerca da noção de "escrita como
processo" que, em contraste com as tradições mais antigas de ensino de escrita, argumenta Murray,
mantém o interesse e a intenção do estudante em seu núcleo. No entanto, ainda segundo esse mesmo
autor, as atribuições do professor inibem o que os alunos têm a dizer.
Nessa perspectiva da escrita como processo, a professora Joana definiu um parâmetro amplo na
turma de Vitor, por meio do conceito de ciência como "ecossistemà: Além disso, ela também
propiciou a seus alunos meios através dos quais

o aluno encontra seu próprio assunto. Não é tarefa do professor legislar a verdade do aluno. É da
responsabilidade do estudante explorar o seu próprio mundo com a sua própria língua, para descobrir o
seu próprio significado. O professor apoia, mas não direciona essa expedição à própria verdade do aluno. ' 5

A esse respeito, Graves destaca que as crianças devem escolher seu próprio tópico para ganhar
um senso de propriedade. A partir desse ponto de partida, "o processo de escrita tem uma força
motriz chamada voz", com o papel do professor não sendo o de transmitir conhecimento, mas o
de aguardar para ajudar quando for necessário, enquanto a criança luta pelo controle. Como
resultado, os tópicos e informações iniciados pelos alunos são primários, não são convenções. Nesse
sentido, a escrita na sala de aula é concebida não como uma "questão de aprender e aplicar
corretamente as convenções, mas como uma série de etapas (um processo, aberto a qualquer
conteúdo): pré-escrita, rascunho, conversa, edição, publicação". 16

Aprendizes praticando letramento: Aprendizagem ativa e imersão


experiencial
Aprendizes diferentes veem efazem coisas diferentemente uns dos outros

A professora Joana diz:


- Vamos ler um livro agora.
Espalhados pela sala de aula, alguns alunos estão sentados em suas carteiras, enquanto outros
se encontram deitados no carpete lendo os livros que escolheram. Vitor percebe que a colega da
frente está lendo uma obra lida por ele semanas antes e da qual ele gostou muito; trata-se da história
de um garoto que, vendo uma pessoa em apuros na praia em meio a ondas bem grande~-.iil-visa as
três mulheres salva-vidas, que imediatamente saem para resgatá-la.
Vitor e alguns colegas começam a falar sobre o livro:
- Eu realmente gostei das três salva-vidas. Imagine entrar nessas grandes ondas para salvar uma
pessoa. Elas foram muito corajosas - diz Luana.

15 Murray, 1982, p. 129.


16 Graves, 2003, p. 227.

112 \ LETRAMENTOS
- Eu acho que o garoto da história foi o verdadeiro herói - opina Vincent. - Ele viu que havia
uma pessoa com problemas e chamou as salva-vidas.
Quem é o herói da história? a) o menino; b) as salva-vidas; c) as pessoas da ambulância; d) não
há heróis, pois todos estavam fazendo apenas o seu próprio trabalho. Todas as quatro respostas
retas.
e tipo de pergunta é bastante comum nas aulas da professora Joana, ela certamente
uma resposta certa ou errada. Em vez disso, pergunta:
- O que você entendeu da história?
É claro que há perguntas, cujas respostas seriam consideradas certas ou erradas, como, por
exemplo: Em que dia isso aconteceu? a) sábado; b) domingo; c) quarta-feira; d) o autor não informa
o dia da semana. Nesse caso, bastaria ao leitor procurar no texto o dia da semana correto. No
entanto, Vítor ficou tão envolvido com o fluxo da história que não prestou atenção no dia em que
ela ocorreu. Se a professora Joana fizesse essa pergunt;it, talvez fosse possível responder corretamente,
mas a informação de fato, não era importante para a narrativa. Em vez disso, Vitor - isso sim é
realmente bem mais interessante - se engaja em uma boa discussão com sua colega sobre o que
faz um herói.
No final da conversa, embora Vitor e a colega tenham chegado a conclusões diferentes sobre a
história, os dois se sentem bem, pois a interpretação de cada um foi valorizada e respeitada. A
leitura é uma atividcroe não apenas divertida, mas, nesse caso, se torna um meio através do qual os
alunos ressignificam suas identidades, em vez de dizerem um para o outro que estão certos ou
errados.
O trecho acima levanta um ponto importante sobre a leitura. Diferentes leitores leem coisas
diferentes em uma mesma história, dependendo de seus interesses e experiências. A leitura não
é apenas uma questão do que o autor diz, é tamb ém uma questão de interpretação. Um leitor,
quando lê bem, não lê a verdade no texto, mas sim seus próprios significados. Nesse sentido, a
leitura constitui um processo de construção de significado ativo, não um canal neutro para
comunicar fatos compreensíveis. Por isso, testes de leitura com respostas de múltipla escolha
parecem bastanre limitados para avaliar certos tipos de conhecimento relacionados à compreensão
leitora.

Gerando motivação

No que diz respeito ao processo de ensino e aprendizagem de leitura e escrita, os princípios de


motivação, experiência e atividade de Dewey se traduzem em práticas que marcaram uma ruptura
dramática com a abordagem didática, na medida em que o autor considerava a língua como algo
social e proposital, em vez de algo abstrato e formal. Nesse sentido, a aprendizagem cÍl uma língua,
segundo Dewey, deveria envolver atividades em que os alunos tivessem "algo a dizer, em vez de ter
que dizer algo". O ensino de línguas, em outras palavras, deveria ser "feito de forma relacionada,
como a consequência do desejo social da criança de contar suas experiências e receber em troca
as experiências dos outros'~17

17 Dewey, 1956 [1902], pp. 55-56.

PEDAGOG IA DO LETRAM ENTO NAABORDAGEM AUTÊNTICA 1 113


Um exemplo notável da adoção desse princípio foi o relato de Dewey de que, em muitas escolas,
tipos móveis de impressão estavam sendo instalados não propriamente para ensinar o ofício
relacionado à impressão de materiais, mas para que as próprias crianças pudessem imprimir alguns
panfletos, pôsteres ou outros documentos necessários. Elas estavam motivadas a fazer isso, não
apenas porque tinham achado o equipamento interessante, mas porque havia uma boa razão para
produzir materiais impressos.
Nessa mesma linha, a experiência da escola de William Wirt, em Gary, Indiana, EUA, foi citada
por Dewey como evidência de que a aprendizagem de línguas seria mais poderosa quando ligada
a uma finalidade prática. Em várias escolas sob a superintendência de Wirt, foram realizadas aulas
de língua inglesa envolvendo atividades de carpintaria e culinária, por exemplo; nelas, questões
gramaticais eram trabalhadas de forma natural, no próprio curso das atividades práticas, mas com
uma finalidade cultural para o ensino: a aquisição "correta" do inglês-padrão, que parecia ser
necessária para propósitos práticos em um ambiente social industrial moderno. 18
Em resumo, o valor para o aluno das aulas de inglês de forma "aplicada" lhe dá uma "razão para
escrever", com o aprimoramento se tornando "uma demanda natural de experiêncià'. 19 Todavia,
essa concepção de língua não fez concessões ao fato de que as experiências de estudantes fora da
escola podem ser muito diferentes, sejam eles falantes nativos de outras línguas ou falantes de
dialetos não padrão. Nesse sentido, havia pressupostos culturais em ação nessa abordagem, em que
a atividade motivada do aiuno representava uma ferramenta pedagógica no interesse do progresso
e da modernidade; porém, mesmo que seus métodos de ensino e aprendizagem fossem diferentes,
esses pressupostos culturais eram tão poderosamente unânimes quanto os da abordagem didática,
como, por exemplo, o objetivo comum de aquisição da gramática "corretà', ainda que tal objetivo
fosse alcançado por outros meios.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que o currículo da professora Joana é um pouco assim também.
Todos os alunos acabarão por ler os mesmos livros: aqueles considerados "bons" ou "adequados"
para eles. Embora use um meio mais gentil e próximo de seus aprendizes, Joana deseja que todos
eles apreciem a mesma "boa" literatura e aprendam as características universais de uma "boa"
história escrita. Ao longo do caminho, do mesmo modo, ela espera que eles também aprendam a
ortografia correta e os hábitos da "boa" gramática.

As relações sociais na aprendizagem de leitura e escrita:


Autoexpressão em uma pedagogia centrada no aprendiz
Valorando aautenticidade
.,.ft

Há uma "economia moral" na pedagogia do letramento na abordagem autêntica, para usar uma
frase cunhada pelo historiador E. Thompson. º Por "economia moral': entendemos as normas sociais
2

que governam as relações interpessoais - no nosso caso, a relação entre professores e aprendizes,
à medida que estes aprendem a ler e escrever.

18 Dewey & Dewey, 1956 [1915].


19 Idem, p. 85.
20 Thompson, 1971.

114 i LETRAMENTOS
Na pedagogia do letramento na abordagem autêntica, os interesses e motivações do aprendiz
são o foco da leitura e da escrita, e não as expectativas de leituras fixas e a compreensão de supostos
fatos no texto. Nesse sentido, os professores se tornam fontes profissionais autônomas de aprendizagem,
em vez de intermediários em uma relação rigidamente governada entre conteúdo curricular, livro
didático e avaliações formais. Assim, os docentes constituem não figuras de autoridade que
transmitem conteúdos inegociáveis, mas responsáveis por construir um ambiente mais sintonizado
com os processos de aprendizagem e, mais do que tudo, responsáveis pela criação de um ambiente
acolhedor que contribui para a afirmação e a formação do próprio sujeito aprendiz.
Ao mesmo tempo, a abordagem autêntica abre linhas horizontais de comunicação entre os
alunos; sua visão é direcionada uns para os outros, e não apenas para o professor e sua lousa na
frente da sala de aula. Com isso, os aprendizes conversam muito entre si, não somente quando o
professor pede que eles levantem as mãos para falar e não apenas um de cada vez, como normalmente
acontece na abordagem didática. Os alunos aprernk m trabalhando juntos, com a leitura e a escrita
se tornando atividades sociáveis.
Também é possível - até mesmo desejável em alguns momentos - criar instrução individualizada,
apropriada às necessidades dos alunos em diferentes estágios de desenvolvimento de sua aprendizagem,
para que possam, assim, trabalhar no seu próprio ritmo, tanto individualmente quanto em grupos,
nem todos tendo que estar na mesma página do livro didático ao mesmo tempo.

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Veja: "Blackburn e Powell sobre a instrução individualizadà'.

Contudo, a pedagogia do letramento na abordagem autêntica não deixa de ter suas limitações,
que inovações pedagógicas posteriores, como as abordagens funcional e crítica do letramento,
tentam, de alguma forma, compensar. A primeira limitação é que os pressupostos culturais subjacentes
à abordagem autêntica são frequentemente menos explícitos do que parecem. No caso de Dewey,
uma visão particular do progresso motivou seus pontos de vista sobre a aprendizagem da língua e
as práticas de leitura e escrita. Nessa visão, a diferença cultural era algo que as escolas precisavam
apagar ou, pelo menos, escamotear. Nesse sentido, Dewey destaca:

Em um país como o nosso, existe uma variedade de raças, afiliações religiosas e divisões econômicas.
Dentro da cidade moderna, apesar de sua unidade política nominal, há provavelmente muito mais
diversidade em termos de comunidades, costumes, tradições, aspirações e formas de governo ou controle
do que existia em um continente inteiro em uma época anterior. 21

Assim, como uma espécie de "soluçãó' necessária para essa situação, haveria "a força assimilativa
da escola pública americana". Somente através da educação pública, argumentava Dewey, "as
forças centrífugas criadas pela justaposição de diferentes grupos dentro de uma rtfesma unidade
política podem ser contrariadas". 22 Por essa perspectiva, o currículo em si seria um instrumento
para a criação de uma nação moderna, culturalmente uniforme. A "disciplina comum busca
acostumar tudo a uma unidade de perspectiva sobre um horizonte mais amplo do que é visível
para os membros de qualquer grupo enquanto está isolado". 23 Assim, é possível notar que os

21 Dewey, 1966 [1916], p. 25.


22 Idem, ibidem.
23 Idem, pp. 21-22.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA 1 115


objetivos dessa abordagem não mudaram significativamente em relação à abordagem didática,
na qual ainda subjaz a ideia de criação de uma cidadania homogênea que funcionaria em conjunto
com a lógica industrial moderna.

Letramento para omundo moderno

Havia algumas razões sociais bastante pragmáticas pelas quais o currículo didático não era
mais considerado apropriado na educação do século XX, posto que o mundo se tornara
tremendamente ampliado e complicado, não apenas em termos de transporte e comunicações,
mas em virtude das contínuas descobertas científicas. Era um mundo onde as coisas estavam
mudando o tempo todo, o que tornaria os fatos complicados contraproducentes. Isso só serviu
para destacar ainda mais a crescente irrelevância da abordagem didática - a "desesperança do
ensino com listas de fatos". 24
Ao situar a aprendizagem da leitura e da escrita no contexto dessas grandes mudanças históricas,
a pedagogia do letramento na abordagem autêntica representou uma transformação em relação
ao que Cook-Gumperz chama de preocupação do século XIX com o "letramento como uma
ferramenta de esta~ idade social e uma ênfase emergente do século XX no letramento como
uma tecnologia fundamental sobre a qual sociedades modernas dinâmicas e em constante mudança
são construídas". 25
Nesse contexto, o currículo centrado no aluno se tornou, assim, um dos principais dispositivos
da pedagogia do letramento na abordagem autêntica. No entanto, uma das coisas que poderíamos
constatar a partir das aulas da professora Joana seria que, uma vez retirado o livro didático,
ficaria menos claro saber aonde o currículo estaria indo. Além disso, o princípio de aprendizagem
em sala de aula tenderia, nesse caso, a mudar, passando da lógica do "professor que diz coisas
aos alunos", para os alunos que tentam determinar respostas "corretas" às perguntas, adivinhando
as respostas que estão "na cabeça do professor". Nesse sentido, o jogo da aprendizagem continuaria
sendo um jogó para acertar as coisas, com a diferença de que, em vez de fornecer a resposta
certa, o professor estaria tentando levar os alunos à resposta correta por meio de perguntas.

Explorando conexões entre os processos de conhecimento e a pedagogia


do letramento na abordagem autêntica

A pedagogia do letramento na abordagem autêntica enfoca o que chamamos no capítulo 3 de


processos de conhecimento "experienciais". Seus movimentos incluíam, em vários momentos, a
aprendizagem pela descoberta, a aprendizagem pelo questionamento, a aprendizagfm baseada em
problemas e a aprendizagem de projetos. A abordagem autêntica se orienta para o processo e se
centra no aluno. A versão recente mais mencionada dessa abordagem é chamada de "construtivismo",
na qual os alunos constroem seus próprios significados, internalizando o conhecimento e o
reconstruindo para si, com o apoio de um professor experiente. Sua ênfase está na motivação, na

24 Dewey & Dewey, 1956 [1915), pp. 171-172.


25 Cook-Gumperz, 2006, p. 33.

116 1 LETRAMENTOS
(
participação e tia atividade de aprendizagem fundamentada. No caso da aprendizagem infantil, a
perspectiva construtivista é norteada pelo desenvolvimento natural e por meio de alguns estágios,
envolvendo os processos psicológicos de assimilação de significados novos nas estruturas cognitivas
existentes ou de acomodação desses significados que exigem o ajuste das estruturas cognitivas
existentes. 26
Nas salas de aula construtivistas, os aprendizes geralmente têm a oportunidade de desempenhar
um papel ativo na determinação da área em foco, formulando perguntas e selecionando atividades
nas quais desenvolvem sua aprendizagem por meio de:

• Desafios intelectuais em que têm que "descobrir as coisas por si mesmos", usando informações
gerais ou se valendo das experiências da vida cotidiana.
• Um ambiente de imersão, com uma certa orientação do professor. Os alunos são incentivados
a interagir uns com os outros e a participar de conversas colaborativas.
• "Comunidade de práticà: que se constitui por meio de confiança e de uma atmosfera de segurança
estabelecida pelos envolvidos.
• Um conteúdo culturalmente apropriado e sensível aos interesses, necessidades e origens dos
alunos. A identidade é o ponto de partida para a autoconstrução de significados.
• Contexto intrinsecamente motivador, que envolve os interesses do aluno, isto é, que faz sentido
pessoal para ele para que possa ser um construtor ativo de significados.
• Perguntas de orientação diagnósticas em que os alunos são apoiados à autoexplicação, proveniente
de sua compreensão e de seus conhecimentos prévios como ponto de partida para a aprendizagem.
Os alunos assumem, assim, um grau de propriedade e responsabilidade em seu processo de
aprendizado.

Como regra geral, esses pontos envolvem


uma mudança substancial no papel do professor
em relação à pedagogia do letramento na abor-
dagem didática; do _"sábio no palco ao guia do
lado".* No entanto, muitos sugerem que se faça
um movimento estratégico que também utilize
a abordagem didática de vez em quando, visto
que há momentos em que é necessário que o
professor ofereça aos alunos instrução explícita,
conceitualizando por nomeação ou com teoria.
Neste capítulo, esboçamos as dimensões da
pedagogia do letramento na abordagem autên-
tica, explorando o pensamento de alguns de seus
fundadores e ilustrando suas práticas com exem-
plos. A mensagem deste livro é que existem
pontos fortes e fracos em cada uma das quatro Figura s.3: Aênfase da pedagogia autêntica ("experienciando o conhecido").

26 Piaget, 2002 [1923]


• No texto original, a expressão apresenta o efeito estilístico da aliteração: "Toe sage on the stage to the guide on the
side". (N. da T.).

f PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTENTICA 1 117


abordagens principais da pedagogia dos letramentos que emergiram desde o surgimento da edu-
cação institucionalizada em massa no século XIX. Ao correlacionarmos as quatro abordagens com
os processos de conhecimento, buscamos mostrar que podemos aprender com todas elas.

Sumário

Os conteúdos do conhecimento do letramento Significados autênticos

A organização do currículo de letramento Pedagogia de processo e desenvolvimento da língua natural

Aprendizes praticando letramento Aprendizagem ativa e imersão experiencial

As relações sociais da aprendizagem de letramento Autoexpressão em uma pedagogia centrada no aprendiz

Processos de conhecimento

Conceitualizando por nomeação


1. Adicione lexias à sua wiki, definindo os conceitos-chave na pedagogia dos letramentos: termos
importantes na análi6e dos modos pelos quais a comunicação e a língua funcionam e as formas
como são aprendidas. Mantenha e estenda essa wiki enquanto trabalha com este e os capítulos
restantes deste livro.

Experienciando o novo
2. Localize uma fonte a partir da qual você possa ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia
do letramento na abordagem autêntica. Sua fonte pode ser um currículo sobre o método global
ou a escrita como processo. Pode ser ainda uma entrevista com um professor que acredita ou
lida com a abordagem autêntica. Escreva sua própria análise das dimensões da pedagogia do
letramento na a~ordagem autêntica em torno de:
a) conteúdo do conhecimento do letramento;
b) organização do currículo de letramento;
e) aprendizes praticando letramento;
d) relações sociais da aprendizagem de letramento.

Experienciando o conhecido
3. Descreva um momento de aprendizagem no qual você experimentou a pedagogia do letramento
na abordagem autêntica. Como foi esse momento? De que forma foi um momento de aprendizagem
eficaz ou ineficaz? -4

Aplicando apropriadamente
4. Ao longo dos cinco capítulos desta seção do livro, você se envolveu com teoria e prática das
principais abordagens do letramento. Escolha um tema sobre letramento que possa ser ensinado
por meio de uma atividade que exemplifique a pedagogia do letramento na abordagem autêntica.
Escreva uma conversa hipotética entre professor e aluno no decorrer dessa atividade.

118 1 LETRAMENTOS
Conceitualizando com teoria
5. Escreva um relato da teoria da aprendizagem que subjaz ao método global ou da escrita como
processo. Escolha um teórico como seu ponto de referência, como Ken Goodman, Frank Smith
ou Donald Graves.

Analisando criticamente
6. Debata a proposta de Jean-Jacques Rousseau sobre as condições ideais de aprendizagem (ver
<http:/ /newlearningonline.com/new-learning/ chapter-2/ jeanjacques-rousseau-on-emiles-
education> ).

Analisando funcionalmente
7. Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia do letramento na abordagem
autêntica seria mais e menos apropriada.

Analisando criticamente
8. Considere uma aplicação particularmente apropriada da abordagem autêntica (para um
determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
essa aplicação cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja autêntico.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM AUTÊNTICA f 119


Capítu:lo -6 -
Pedag.ogiª do letramento na
abordagem funcional

Visão geral
Pedagogias do letramento na abordagem funcional têm como foco a aprendizagem dos alunos
para ler e compor os tipos de textos que lhes permitem ser bem-sucedidos na escola e participar
da sociedade. Seu objeitivo é que os aprendizes entendam as razões pelas quais os textos existem e
como isso afeta a forma como são construídos. Ao contrário das pedagogias didáticas, que "quebram"
a língua em partes, a fim de trabalhar as regras formais, a abordagem funcional começa com a
pergunta: "Quais são os propósitos do texto?': E, em seguida, a pergunta: "Como o texto é estruturado
para atender a esses propósitos?". A leitura e a escrita são atividades intimamente ligadas entre si,
na medida em que os alunos exploram as maneiras pelas quais diferentes tipos de textos trabalham
para construir significados diferentes no mundo.
Essa abordagem de letramento enfoca, portanto, os processos de conhecimento "analisando" e
"aplicando". Nesse sentido, a abordagem funcional fornece subsídios aos alunos para que descubram
como os textos sãq organizados no sentido de alcançar diferentes propósitos e para aprender como
usar esses textos em contextos da vida real a fim de lidar com significados socialmente poderosos.
Visando ilustrar como a pedagogia do letramento na abordagem funcional opera, este capítulo
explora um exemplo que trabalha com a noção de "gêneros textuais".

Oconteúdo do conhecimento de letramento: Aprendendo os gêneros


para ser bem-sucedido na escola
Opropósito dos textos
- O texto escrito está em tudo o que é lugar - diz a professora Danusa. - Me digam sobre alguns
dos tipos de textos que vocês encontram todos os dias.
- Notícia de jornal - diz um aluno.
- Histórias - diz outro.
- Receitas, gibis, poesias - dizem outros.
Os alunos da turma, então, criam uma longa lista.
- Notem que cada um é diferente do outro. Mas por que eles são diferentes? - pergunta a professora.
Sempre estudiosa, Márcia responde:
- São diferentes porque são sobre coisas diferentes.
- Está certo, Márcia, uma notícia de jornal é diferente de uma receita e um livro de histórias é
diferente de um de poemas, não apenas em seu significado e assunto, mas também na forma como
são organizados e escritos. Nós devemos olhar como esses diferentes tipos de texto têm propósitos
também diferentes.
A pedagogia do letramento na abordagem funcional contempla a construção de significado e a
maneira como a língua é usada em diferentes contextos para alcançar objetivos sociais também
distintos. Nesse sentido, essa abordagem se articula à perspectiva baseada em gêneros textuais, que
explicita os modos pelos quais diferentes tipos de texto são estruturados para servir a diferentes
propósitos. Por exemplo, um relatório é diferente de uma receita, que é diferente de um conto de
fadas, que é diferente de uma notícia, que é diferente de um artigo científico. Cada um desses
propósitos produz um tipo diferente de escrita, cada um com seu próprio padrão de organização.
O ponto de partida para aprender na perspectiva baseada em gêneros textuais é o propósito de
todo texto; em seguida, os estágios estruturais do texto (ou sua macroestrutura); então, somente
depois disso, os padrões linguísticos (ou microestruturas), dentro de cada estágio, no nível dos
períodos, orações, sintagmas e palavras, que dão ao texto suas características distintivas.

Gêneros Propósitos

Notícia de jornal Apresentação de informação reportando diferentes perspectivas.

Fábula Uma estória com uma moral.

Receita Ingredientes e passos necessários para preparar algum tipo de comida.

Relatório científico Documento formal no qual constam procedimentos de experiências e métodos relacionados a
pesquisas.
Quadro 6.1: Gêneros distintos, propósitos distintos.

A abordagem funcional seria, portanto, o oposto


da gramática tradicional, que começa com partes
separadas dos textos e, com elas, reúne partes
maiores: de fonemas a palavras, de palavras a
sintagmas, de sintagmas a orações, de orações a
períodos, de períodos a parágrafos, e de parágrafos
a obras literárias. O tipo de pedagogia didática
associada à gramática tradicional é muitas vezes
formal e abstrata, fazendo com que apren~r uma
língua pareça ser uma questão de aprender as regras
apenas porque estas existem para serem aprendidas.
Em contraste, a abordagem funcional enfoca as
intenções comunicativas e as razões para produzir
um determinado texto em primeiro lugar; em outras
palavras, enfoca os propósitos sociais da linguagem
Figura 6. 1: Um modelo de texto em contexto - Foco em seu
significado e em sua função. - linguagem para ação e reflexão no mundo real.

122 j LETRAM EN TOS


Vej~: "Trecho do livro Gramática funcional, de Maria Helena de Moura Neves".

- Hoje, turma, vamos começar a trabalhar com um dos tipos de textos escritos mais importantes
que usamos na escola, além de ser usado também em muitas situações em nossas vidas: o "relatório".
Para que usamos relatórios? - pergunta a professora Danusa.
Márcia se lembra que um dia sua mãe chegou do trabalho trazendo um relatório . Ela também
ouviu falar sobre relatórios do governo em notícias no telejornal e sobre cientistas que escreveram
relatórios descrevendo suas descobertas. Mas até aquele momento nunca havia lido um relatório
na escola.
- A maioria dos relatórios fornece informações sobre o mundo e eles podem ser usados para
documentar e armazenar informações sobre diferentes assuntos - explica a professora. E continua:
- Os relatórios classificam e descrevem coisas vivas, como plantas e animais, e coisas não vivas,
como vulcões, tsunamis e estrelas. Eles também classificam e descrevem questões que afetam várias
coisas em nossas vidas, como a forma como as pessoas organizam o governo, a escola, as tecnologias
~ aapo: Assunto ou tópico que se e por aí vai. Alguns relatórios são escritos para especialistas que trabalham em
" desde assuntos cotidianos e do um campo especial, alguns para iniciantes, que estão apenas começando a aprender
senso comu ma tópicos altamente
sobre alguma coisa, e outros para pessoas com interesses e hobbies especiais. Agora,
ecializados, que podem envolver
wbulário técnico e convenções vamos escrever nosso próprio relatório de informações sobre mamíferos marinhos,
especiais de escritit.: que eu quero que todos nós façamos.

Os estágios de um gênero

- As etapas de um relatório normalmente incluem a classificação geral de um assunto. Por exemplo,


em um relatório sobre mamíferos marinhos, vocês vão colocar uma descrição da aparência, dos
comportamentos e dos hábitos especiais ou interessantes desses animais.
Danusa, então, escreve na lousa para orientar a discussão dos alunos:

Gênero Estágios
Relatório sobre mamíferos marinhos • Classificação geral
• Descrição - aparência
• Descrição - comportamentos
• Descrição - hábitos

- Para mostrar como funcionam os relatórios, vamos primeiro trabalhar juntos um relatório sobre
baleias. Vamos escrever o texto juntos, a turma inteira. Vocês vão juntar as ideias para cada estágio
que está na lousa e depois me dizer o que escrever em cada um, e eu vou anotar tu-db no quadro.
- Mas, primeiro, vou dar a vocês alguns relatórios para ler sobre todos os tipos de baleias, incluindo
as baleias-minke. Além disso, vejam quais informações vocês podem encontrar na biblioteca ou na
internet. Ao ler\f!sses materiais, vejam cuidadosamente o tipo de informação que foi selecionada e
como ela é organizada para cada relatório.
Depois de atribuir um tempo para leitura e pesquisa, a professora Danusa reúne a turma para
a construção conjunta do relatório.
- Bem, o que sabemos agora sobre as baleias-minke? Como é a aparência delas ... ?

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 123


- Professora, professora ... - Os alunos estão realmente interessados em dizer à professora Danusa
o que aprenderam com os relatórios que leram e as pesquisas que fizeram.
- Lembra o que lemos sobre baleias-minke?
A professora lê as informações sobre as baleias-minke em livro de uma coleção Abordagem funcional de
especial que havia separado para a elaboração do relatório. Na abordagem letramento: Uma abordagem de
funcional de letramento, há muita leitura, mas não é leitura por si só, e sim letramento cujo foco é o significado de
textos do mundo real e as maneiras
intimamente interconectada com a escrita. Os alunos estão procurando padrões pelas quais diferentes tipos de textos
e escolhas linguísticos, bem como desenvolvendo o conhecimento de conteúdo são estruturados para servir a diferente
através de suas leituras, que podem ser usadas em seus próprios textos. propósitos.
- As baleias são de duas cores, diz neste livro. O que vamos colocar aqui?
O aluno que está sentado ao lado de Márcia é o primeiro a quem Danusa pede uma contribuição.
Ele tende a se desconcentrar nas aulas, então, buscar envolvê-lo logo no começo da atividade parece
uma boa ideia.
- Mas elas só têm uma cor - diz o aluno. Ele está lendo sobre esse assunto e já aprendeu algumas
coisas sobre baleias que não conhecia antes.
- O que é isso?
- Cinza. Cinza e azul.
Mais alunos entram .em cena nesse momento para tentar acertar a mistura de cores.
- Cinza-azulado?
- Sim, é cinza, mas tem azul também - diz um outro aluno.
- Está bem - a professora escreve na lousa: ''.As baleias-minke são cinza-azuladas".
- Sim?
- Professora, vamos ter que saber como a baleia-minke come? - O aluno ao lado de Márcia parece
estar particularmente interessado nisso.
- Vamos ter sim. Mas em que parte do relatório? - pergunta a professora.
- Comportamentos - respondem alguns alunos em coro.
- Sim. E o que ~orna as baleias-minke diferentes?
- Elas têm barbas em vez de dentes - Márcia finalmente tem a chance de responder a uma das
perguntas da professora.
- Muito bem, as barbatanas são usadas no lugar dos dentes e ajudam as baleias a filtrar a comida
da água - diz a professora. E continua com uma outra pergunta:
- O que mais sabemos sobre essas baleias?
- Elas são pequenas - diz um dos alunos.
- Isso mesmo. Aliás, um outro nome para a baleia-minke é baleia-anã - diz Danusa.
- E até quantos metros e quantos quilos elas podem chegar?
- 10 metro~ e... é até 9.000 kg- responde uma aluna.

Depois de várias perguntas, a professora Danusa expõe para os alunos um relatório consultado
do Guia ilustrado de Mamíferos Marinhos do Brasil. Em seguida, pergunta:
1

- Vocês podem ver como é a estrutura desse relatório? Começamos com o nome Relatório: Um gênero textual que
científico e os nomes populares da baleia, distribuição, habitat, as características fornece informação.
gerais e como reconhecer esse animal.

1 Disponível em <http://ipecpesquisas.org.br/wp-content/uploads/ 2012/07 /GUIA_ILUSTRADO.pdf>.

124 j LETRAMENTOS
Baleia-minke
Nome de espécie: Ba/aenoptera acutorostrata Lacépêde, 1B04.

1 Outros nomes populares:

Distribuição:
Habitat:
baleia-anã, ballena minke enana, rmcual menor, minke whale,
piked whale, dwarf minke whale.
pode ocormr em todos os oceanos.
costeiro e oceânico.

Tamanho dos agrupamentos: o ventre totalmente branco, diferente de B. acutorostrara


De 1a 3 indivíduos. na qual a cor escura do dorso se estende até o ventre na
frente das nadadeiras peitorais como um ·semi-<:olar·e com
Como reconhecer quando vivo: Ba/aenoptera borea/is{pg. 28), a qual possui os orifícios res-
Pequena, de cabeça triangular ecom orificios respiratórios pou- piratórios bem evidentes.
co e~dentes. Característica mancha clara na poi.ão mediana
das nadadeiras peitorais. Borrifo pouco evidente, mas espora- Como reconhecer quando morto:
dicamente pode atingir 2 m. Quando na superfície, podem ser Pelo pequeno tamanho e pela cor das nadadeiras peitorais.
evidenciados os flancos claros e a nadadeira dorsal Slllf4)[e é Possui de 230 a 360 baibatanas em cada face do maxilar, as
exposta simultaneamente aos orifícios res~ratórios. quais medem cerca de 30 cm de comprimento e 12 cm de lar-
gura, sendo predominantemente brancas amareladas, exi:eto
Com q11em pode ser confundido: algumas da porção posterior esquerda que podem ser pretas.
Com Balàenoptera bonaerensis{pg. 27) que não possui a ■ Número de vértebras: 7 cervicais, 11 torácicas, 12
Mancha branca nas nadadeiras peitorais. entretanto possui lombares e 18 caudais.

Figura 6.2: Baleia-minke: Guia ilustrado de Mamíferos Marinhos do Brasil.


J

Estrutura e funções da língua


- Eu aprendi muitas coisas interessantes sobre as baleias ao escrever este relatório - MáYéia pensa
ronsigo mesma.
A professora Danusa continua:
- Agora vocês vão escrever os seus relatórios prestando atenção nos materiais que lemos e nas
lliscussões que fizemos. Eu quero que vocês escolham um mamífero marinho diferente e construam
t,,dependentemente o seu próprio texto.
Seguindo o modelo proposto pela professora, Márcia escreve um relatório sobre os golfinhos,
uma de suas espécies favoritas.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 125


Uma abordagem funcional de letramento é explícita sobre modos através dos quais a língua
trabalha para construir significado. É direta e aberta sobre a maneira como diferentes gêneros são
projetados para criar diferentes tipos de significado para diferentes propósitos sociais, pois funções
da língua produzem estruturas linguísticas. Primeiramente, consideramos nossos propósitos de
significado; então, consideramos as maneiras pelas quais podemos usar a língua para realizar esses
propósitos.
Por exemplo, o relatório sobre golfinhos feito por Márcia faz uso de características de um gênero
informativo descritivo de divulgação científica, em vez de características de gêneros narrativos ou
argumentativos. Nesse sentido, não se trata apenas da informação no texto em si, mas também da
forma mais eficaz e bem-sucedida de comunicar essa informação.
Por essa perspectiva, a pedagogia do letramento na abordagem funcional envolve os alunos
no papel de aprendizes, conforme trabalham com o professor, que assume o papel de especialista
linguístico, para desenvolver uma compreensão do sist@ma e da função da língua. O andaime
pedagógico (Quadro 6.2) é projetado de forma que a responsabilidade pela construção do texto
seja gradualmente transferida do professor para o aluno por meio do ciclo de ensino-aprendizagem.
O andaime pedagógico torna visíveis a estrutura e a sequência do texto, isto é, os passos que
o aluno segue para produzir aqueles gêneros que são valorizados em contextos sociais dentro e
fora da escola. Isso envolve o ensino explícito de gramática, porém uma gramática que considera
o texto como um todo; passa pelos estágios desse texto e, então, examina os detalhes dos modos
através dos quais as palavras em períodos são conectadas em
Modelagem e desconstrução
~rações para contribuir com o significado de todo o texto. A
conversa é usada também, individualmente e em grupos, durante Construção conjunta

a fase de construção independente, para auxiliar os alunos na Construção independente


ortografia, na pontuação, no vocabulário e na estrutura de frases Quadro 6-2 : Andaime pedagógico.

e parágrafos.
Essa abordagem funcional toma como base a linguística sistêmico-funcional, de Michael Halliday. 2

O que é comum àqueles que trabalham com essa abordagem é a ideia de que o gênero constitui
uma categoria que descreve a relação entre o propósito social do texto e a estrutura da língua. Nesse
sentido, ao se engajarem em práticas de letramento, os estudantes precisam analisar criticamente
os diferentes propósitos sociais que informam os padrões de regularidade na língua; em outras
palavras, os "ondes" e os "porquês" das convenções textuais. 3

IJ
l!I
,
.
Veja: "Trecho do livro Introdução à gramática sistémico-funcional em língua portuguesa, de
Cristiane Fuzer e Sara Regina Scotta Cabral".

2 Halliday, 1975; Halliday, 2004.


3 A linguística sistêmico-funcional de Halliday entende que a relação entre o texto (oral ou escrito) e seu contexto
de situação se constitui por meio de três funções básicas: campo, sintonia e modo (do inglês,field, tenor e mode).
O campo diz respeito à natureza, ao assunto ou ao conteúdo da atividade social; a sintonia, às relações (hierárqui-
cas) entre os participantes e os papéis que assumem no ato comunicativo; o modo, por sua vez, está relacionado à
forma, ao canal de comunicação, ao meio em que o texto é veiculado e ao papel da linguagem na interação. Por
intermédio das três funções, a linguística sistêmico-funcional busca explicitar os propósitos dos textos, a forma
como são ordenados ou encenados e o modo como aspectos do contexto do uso da língua influenciam os padrões
da gramática (Halliday & Hasan, 1985).

126 i LETRAMENTOS
Aorganização do currículo de letramento: Lendo modelos de gênero
e escrevendo dentro de estruturas genéricas
Localizando a abordagem funcional

Durante o século XX, muitos educadores começaram a rejeitar a pedagogia do letramento na


abordagem didática, em função, sobretudo, de um paradigma que chamamos de pedagogia autêntica,
que, de vez em quando, exercia o domínio oficial e institucional na educação. Como vimos, essa
abordagem de letramento foi fundada por John Dewey e Maria Montessori, na virada do século
XX, a partir das preocupações com o currículo tradicional. Em momentos distintos ao longo desse
século, o ensino da escrita não costumava dar ênfase a convenções formais da língua, buscando,
em vez disso, se constituir fundamentalmente por meio de uma abordagem do processo de escrita.
Essa abordagem era centrada no aluno e, por isso, o ponto de partida para a escrita era o tema
de interesse do aprendiz. No entanto, críticos argumentavam que tal abordagem prestava pouca
atenção ao conhecimento explícito da língua, o que significa que, para os alunos oriundos de uma
formação letrada, a pedagogia autêntica se mostrava envolvente e eficaz, mas, para aqueles sem
entendimento da língua e seu funcionamento, havia pouca contribuição sistemática ou instruções
diretas para orientá-los ~bre características textuais ou domínio manifesto sobre a língua.
Depois de Dewey e Montessori, os aprendizes cujas experiências em sala de aula eram projetadas
de acordo com a abordagem autêntica deveriam agora ser alunos ativos: aprender fazendo, aprender
por meio da experiência prática, em vez de aprender de forma mecânica. Nesse sentido, a aprendizagem
era para ser algo significativo, e não propriamente formal, o que poderia torná-la mais eficaz, na
medida em qóe esta ocorreria como algo relevante para o indivíduo, e não como algo institucionalmente
imposto. Nessa perspectiva, o currículo deveria enfatizar o processo, e não o conteúdo; os livros
didáticos que, por sua natureza, pareciam ditar o conteúdo deveriam ser descartados ou reprojetados
para que pudessem ser introduzidos como um recurso instrucional, em vez de fornecer um programa
de estudo. Assim, recursos autênticos, aquilo que os alunos queriam, de fato, ler e escrever e que
era de relevância e interesse para suas próprias vidas, seriam utilizados, fazendo com que o foco
do currículo de leitura e escrita deixasse de ser a língua em abstrato e passasse a se voltar para os
significados construídos pelos alunos.
Longe de fazer parte de movimentos em prol da defesa exclusiva do ensino formal de gramática,
a pedagogia do letramento na abordagem funcional leva em conta as abordagens didática e autêntica.
Do ponto de vista dos defensores da abordagem funcional, a pedagogia autêntica, na prática, muitas
vezes falha em seu objetivo de melhorar os resultados do aluno; segundo eles, mesmo que a dinâmica
da ocorrência da falha tenha mudado, o fato é que a falha persiste.
A pedagogia do letramento baseada em gêneros na abordagem funcional se originou de p@"squisas
realizadas sobre os tipos de textos com os quais os aprendizes precisam lidar para ter sucesso na
escola. Por meio de estudos envolvendo a colaboração de professores da educação básica, foram
identificados vários gêneros diferentes escritos por alunos para propósitos distintos e, com isso, foi
desenvolvido um ciclo de ensino que incluía ensino explícito sobre características do texto. 4 Para

4 Callaghan & Rothery, 1988; Martin, 1986.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 127


tanto, procurou -se desenvolver uma "pedagogia visível", com o intuito de melhorar os resultados
educacionais dos alunos marginalizados pela escola regular. 5

Aideia de "gênero"

Para a pedagogia do letramento na abordagem funcional, o "gênero" constitui o elo para conectar
as formas relativamente estáveis de tipos textuais que variam de acordo com suas intenções sociais.
Nesse sentido, textos são diferentes porque fazem coisas diferentes; por isso, qualquer pedagogia
de letramento deve se preocupar não apenas com as formalidades relativas a como os textos
funcionam, mas também com a realidade social viva dos textos em uso, uma vez que o funcionamento
de um texto está relacionado às razões de sua existência (para que ele serve?). Assim, gêneros são
processos sociais 6 que se materializam como textos, uniformizados de maneiras razoavelmente
previsíveis, segundo padrões de interação social em uma determinada cultura.
Por essa perspectiva, gêneros são intervenções textuais na sociedade, pois não são simplesmente
criados por indivíduos no momento de sua enunciação; representam padrões familiares de significado,
criados socialmente para propósitos comunicativos específicos. Além disso, diferentes gêneros
podem dar a seus usuários acesso a certos domínios de ação e interação social, espaços particulares
de influência e poder social. Tomemos, como exemplo, a "língua" do advogado, do jogador de
xadrez ou do cientista. Sabemos que esses são domínios sociais dos quais muitas pessoas estão
excluídas, e esse padrão de exclusão social é marcado pela língua usada em cada ambiente. Aprender
novos gêneros e expandir a gama de gêneros que podemos usar nos dá o poder de escolha e o
potencial linguístico de lidar com novos domínios de atividade e poder social. Não se trata de
substituir a língua e os gêneros que aprendemos nas comunidades às quais pertencemos; trata-se,
pois, de uma questão de expandir nossas capacidades e, assim, nossas oportunidades sociais, para
que possamos escolher dentre uma gama mais ampla de ação social, por meio de mais opções de
gêneros textuais.
No mundo fora da escola, a imersão na prática social de um gênero às vezes é suficiente para
"entender sua línguà', por assim dizer, embora haja obviamente outras barreiras institucionais que
ainda podem tornar isso impossível, ou quase impossível. Isso não implica afirmar que os usuários
da língua precisem estar significativamente conscientes do "como" a atividade funciona do ponto
de vista linguístico, mesmo que estejam amplamente cientes do "porquê" social de um determinado
discurso em uso. Nesse sentido, não é necessário saber sobre a língua para poder usá-la, isto é,
conhecer suas características linguísticas para poder usar socialmente o texto e perceber os seus
potenciais "porquês':
No entanto, se, por um lado, a escola é o mais significativo de todos os locais de potencial
mobilidade social, por outro, o papel social (e as limitações inerentes) da escoi'a:rização
institucionalizada afasta a língua dessa condição usual. Em termos de linguagem, a escolarização
tem o potencial de preparar os alunos para usar uma variedade de gêneros com uma ampla gama
de possíveis aplicações sociais. No entanto, isso não pode ser feito apenas por imersão, tampouco
ser considerado como um uso eficiente de recursos.

5 Cope & Kalantzis, 1993.


6 Martin, 1997.

128 1 LETRAMENTOS
Nessa concepção, a escola é um lugar bastante peculiar, porque sua missão é peculiar, assim
como o são as formas discursivas ou as formas como os textos falam aos alunos, já que a escola é,
ao mesmo tempo, um refletor do mundo exterior e discursivamente bastante diferente dele. Como
precisa concentrar o mundo externo nas generalizações que compõem o conhecimento escolar, a
escola é epistemológica (a forma como ela conhece) e discursivamente (a forma como comunica)
diferente da maior parte da vida cotidiana no mundo externo. Por isso, na escola, faz sentido, por
exemplo, usar conceitos generalizados e abstrações que podem ser transferidos para muitos contextos,
em vez de apenas "pegar as coisas" por imersão.

Exemplos de disciplinas Exemplos de agrupamentos Propósitos e características textuais


escolares a que pertencem alguns
gêneros

Ciências Relatar Fornece informações estruturadas sobre o mundo natural, com


base em informações ou observações.

Língua portuguesa Narrar Conta uma história, com uma orientação para personagens e
cenários, uma complicação que é o ponto da história e uma re-
solução que encerra a história.

História Argumentar Fornece evidências e perspectivas alternativas e tira conclusões


interpretativas.
Quadro 6.3: Agrupamentos it, gêneros escolares.

Desenvolvendo uma metalinguagem

Como local de reprodução cultural com uma gama de conteúdos extremamente


Metalinguagem: Linguagem que
faz uso de terminologia específicaampla, a educação formal escolar é tipicamente conceitua! em sua orientação,
da língua, permitindo-nosconcentrando o conhecimento em generalizações e enquadrando-o em disciplinas
identifica r e falar sobre diferentes
coerentemente articuladas. Quando se trata de um lugar onde se discute a própria
características do texto, incluindo
linguagem - como a linguagem é usada na escola e no mundo exterior, para o
termos gramaticais.,
qual é orientada-, a escola necessariamente faz uso de metalinguagem, por meio
da qual consegue fazer generalizações sobre a linguagem.
O uso de metalinguagem envolve maior eficiência no processo de aprendizagem e uma relação
peculiar da escola com o mundo. Nesse sentido, o argumento dos defensores da abordagem
funcional contra aqueles que apoiam a autêntica é justamente o de não abandonar a metalinguagem,
uma vez que a educação é o único espaço social em que a gramática como metalinguagem é
realmente importante. Contra aqueles que defendem a abordagem didática, por sua vez, o
argumento é o de que devemos sempre explicar a metalinguagem em termos de propósito social;
se o projeto da escola é o acesso social e parte disso é o acesso a gêneros de uma ~riedade de
domínios relacionados ao poder social, então, precisamos explicitar essa conexão entre estrutura
e propósito.
Os "cornos" da língua também precisam ser trazidos à tona na educação formal como consequência
da missão social da escola de proporcionar a todos os alunos, incluindo grupos historicamente
marginalizados, acesso equânime a uma gama tão ampla de opções sociais quanto possível. Isso
pode incluir grupos marginalizados do ponto de vista cultural, social, econômico, linguístico, étnico,
de gênero, de raça etc.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 129


Por essa perspectiva, a educação, em uma sociedade democrática, deve buscar promover igualdade
de oportunidades, e nós, como educadores, temos o dever de levar isso em conta. No entanto,
aqueles que não compartilham dos discursos e culturas de certos domínios de poder e de acesso
frequentemente descobrem que a aquisição desses discursos requer explicações explícitas - os
modos através dos quais os "cornos" da estrutura textual produzem os "porquês" dos efeitos sociais.
Se o indivíduo convive com os "cornos" em instâncias de sua vida social, em virtude de ter sido
educado com esses discursos, então, estes farão parte mais ou menos "natural" da sua vida. Por
outro lado, estudantes de grupos historicamente marginalizados precisariam de ensino explícito
formal mais do que aqueles que parecem destinados a um passeio confortável nos gêneros e culturas
do poder dominante.

Metalinguagem Encontrar maneiras de pensar e palavras para descrever o


contexto de cornunicaíão.

Encontrar maneiras de pensar e descrever a organização de


todo gênero textual.

Encontrar maneiras de explicar corno o texto é estruturado


para gerar significado, incluindo suas macro e microestruturas.
Quadro 6-4: Dimensões da metalinguagem.

Exemplo com um texto de divulgação científica


Em uma outra aula, a professora Danusa traz para uma de suas turmas um texto de divulgação
científica publicado na internet.7 Ela diz a seus alunos:
- Vocês vão ler este texto que fala sobre o impacto do aquecimento global sobre a Floresta Amazônica.
Eu quero que leiam com atenção e vejam como é dividido. (Quadro 6.5)
Os alunos, então, discutem em grupos o texto e fazem algumas anotações conjuntas sobre sua
estrutura esquemática. Depois de um certo tempo, a professora Danusa volta a interpelá-los:
- Podemos notar que há características que fazem parte da estrutura desse gênero que são comuns
a outros textos científicos. O que vocês podem me dizer sobre isso?
Um dos alunos responde em nome do seu grupo:
- Então, professora, a gente viu que o texto é sobre um projeto, o Projeto AmazonFACE, que quer
"entender como o aumento do CO atmosférico afeta a Floresta Amazônica, a biodiversidade que ela
2

abriga e os serviços ambientais que ela provê".


- Isso mesmo - diz a professora. - E como ele é dividido?
Outro aluno toma a palavra:
- Tem três partes: a primeira parte apresenta o que é a pesquisa, a segunda parte é com9.R pesquisa
vai ser realizada e a terceira parte mostra a importância da pesquisa para a região da Amazônia.
- Muito bem. Agora notem como o texto convence o leitor de que o projeto é importante. Primeiro,
ele diz que "falta conhecimento sobre os efeitos do aumento de dióxido de carbono (CO) na atmosfera".
E qual é a importância da pesquisa para tentar lidar com isso? É tentar entender a capacidade da

7 Disponível em <http://www.canalciencia.ibict.br/pesquisa/0296_lmpacto_do_aquecimento_global_sobre_a_flores-
ta_amazonica.html>.

130 1 LETRAMENTOS
floresta de absorver o C0 lançado na atmosfera pelas atividades humanas. Então, o texto está
2

mostrando que pode contribuir para melhorar a região amazônica em relação ao aquecimento global.
- Por último, vocês também notaram que esse tipo de texto é bem formal. Quer dizer, tem muitas
palavras técnicas e também não usamos a primeira pessoa do singular ("eu") . Por quê? Porque em
um texto científico não costumamos colocar nossas opiniões pessoais, subjetivas, pois é fundamental
usar conceitos científicos objetivos.

Impacto do aquecimento global


sobre a Floresta Amazônica

Oque é a pesquisa?
As rápidas mudanças do clima do planeta, causadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis e pelo desmatamento,
podem representar uma séria ameaça às florestas da Bacia Amazônica. Apesar de o impacto do aquecimento global sobre a flores-
ta tropical ser desconhecido, já é possível prever temperaturas mais elevadas e secas prolongadas para a região, que poderão
acarretar a diminuição da biomassa florestal.

A falta de conhecimento sobre os efeitos do aumento de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera pode ser superada por meio de
pesquisas a longo prazo que façam avaliações, locais e globais, da vulnerabilidade dos ecossistemas e que proponham intervenções
as quais garantam o futuro da floresta tropical. Afinal, a Floresta Amazônica sobreviverá às secas prolongadas que virão com o
aquecimento global?

Para encontrar essa resposta, David Montenegro Lapola, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lidera uma equipe de
pesquisadores que desenvolverá o projeto AmazonFACE para entender como o aumento do CO2 atmosférico afeta a Floresta
Amazônica, a biodiversidade que ela abriga e os serviços ambientais que ela provê. Os pesquisadores acreditam que uma maior
quantidade de CO2 na atmosfera pode beneficiar a floresta porque as árvores intensificam a fotossíntese. Além disso, quanto mais
CO2 na atmosfera, menos os estômatos precisam abrir para capturá-lo durante a fotossíntese. Com menos estômatos abertos, a
planta perde menos água por transpiração. A perda de biomassa decorrente das secas prolongadas seria compensada pela inten-
sificação de fotossíntese e, consequentemente, maior crescimento das árvores e menor perda de água pelas folhas. O CO2, em alta
concentração, seria como um fertilizante para a floresta. Se comprovada essa hipótese, os pesquisadores terão uma visão mais
otimista dos futuros cenários de mudanças climáticas, sempre catastróficos. Todavia, um resultado contrário indicará a susceptibi-
lidade da floresta frente ao aumento de temperatura e à maior variação anual de chuvas, eventos climáticos já previstos por muitos
pesquisadores.

Como é feita á pesquisa?


O projeto AmazonFACE será implantado na Reserva Biológica do Cuieiras, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (lnpa),
localizada entre Manaus (AM) e Boa Vista (RR), e será formado, a princípio, por quatro áreas de estudo - de tamanho aproximado
2 2
de 7oom cada uma (3om de diâmetro)-, circundadas por tubulações que irão borrifar CO2 para o interior dessas áreas de floresta.
A vegetação do local da pesquisa é uma floresta antiga, com copa fechada e terra firme, não alagável. Os solos são argilosos e bem
drenados, o que favorece o crescimento de floresta com grande biomassa, árvores com 30-45m de altura.
A tecnologia FACE (Free Air CO2 Enrichiment ou enriquecimento de dióxido de carbono ao ar livre) consiste na aspersão constante
de CO2, com o mínimo de perturbação para o ecossistema natural, para verificar se o aumento da concentração atmosférica desse
gás estimula o crescimento das árvores e a resistência à seca. Cada área de floresta receberá 16 torres dispostas em formato circular,
as quais sustentarão tubos ligados a um tanque de armazenamento de CO2 (figura 1). O enriquecimento atmosférico com CO2 ocor-
rerá somente durante o dia, durante todo o ano, de acordo com a direção do vento. Um computador manterá a concentração de
CO2 desejada dentro da área estudada. No centro do círculo de torres e tubos será instalada uma torre princi~ que dará acesso à
copa das árvores. Nessa torre, serão instalados instrumentos para monitoramento meteorológico. As reações da floresta ao aumen-
to da concentração do CO2 (fotossíntese e respiração nas folhas, crescimento de árvores e de plântulas, umidade do solo, quanti-
dade de nutrientes no solo, distribuição e desenvolvimento de raízes finas) serão monitoradas. Muitas instituições de pesquisa
serão parceiras na execução do projeto e terão cientistas e estudantes participando do monitoramento.

A implantação da primeira área de estudo será em 2017. Chamado pelos pesquisadores de experimento piloto, ele será importante
para avaliar as dificuldades envolvidas na construção das torres, no transporte e no fornecimento de grande quantidade de CO2 lí-
quido em uma área relativamente afastada de centros urbanos. Outra questão importante que merecerá a atenção dos pesquisa-
dores é a altura das árvores, que poderá dificultar o acesso para a realização das medições que precisam ser feitas bem próximas

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 131


às folhas. Os resultados obtidos com o experimento piloto serão comparados ao de uma área controle, que não receberá aporte
de CO2, definida na mesma região do projeto. Resultados e comparações permitirão adaptações e correções no curso da pesquisa,
para que novos experimentos de longo prazo, com duração de pelo menos 10 anos, sejam replicados em outras áreas, para buscar,
então, as respostas da floresta ao aumento da concentração de CO2 atmosférico, incluindo seu impacto sobre o ciclo do carbono
no solo da floresta.

Pesquisas semelhantes ao AmazonFACE, que determinaram a resposta de florestas ao aumento de CO2 atmosférico, já foram rea-
lizadas em regiões temperadas do planeta. Contudo, será a primeira vez que esse tipo de pesquisa avaliará a resposta de florestas
tropicais.

Qual a importância da pesquisa?


Importantes estudos indicam que há risco de o aquecimento global provocar perda de biomassa e substituição da floresta tropical
por vegetação de menor porte. Esse processo é chamado de savanização, ou seja, a transformação da vegetação natural em uma
paisagem que se assemelha à das savanas africanas ou à do cerrado brasileiro (vegetação rala, árvores espaçadas e menor quanti-
dade de folhas). Por isso é fundamental reduzir as incertezas das consequências do aquecimento global e analisar a existência e a
magnitude do efeito de fertilização que o CO2 pode exercer sobre a Floresta Amazónica, possivelmente estimulando o crescimen-
to das árvores e a resistência à seca.

Se o efeito de fertilização da floresta em decorrência da aspersão de CO2 não for significativo como se espera, provavelmente as
florestas tropicais e sua biodiversidade estarão, de fato, vulneráveis ao aquecimento global. Se a savanização ocorrer em larga es-
cala na Amazônia, trará implicações ambientais e econômicas importantes para a região que sofrerá com a mudança no ciclo hi-
drológ ico, regional e global, menor produtividade agrícola e menor produção de energia hidroelétrica.
Os resultados alcançados com o projeto poderão subsidiar a elaboração de políticas de desenvolvimento para a região amazônica
em relação ao aquecimento glo~t. uma vez que revelarão a capacidade da floresta de absorver o CO2 lançado na atmosfera pelas
atividades humanas. São também relevantes para a definição de ações de conservação e uso sustentável da biodiversidade frente
aos cenários futuros de mudanças climáticas, podendo impulsionar o Brasil ao desenvolvimento de pesquisas ecológico-ambientais
mais complexas e abrangentes.

Publicado em 14 de dezembro de 2015.


Quadro 6.5: Texto "Impacto do aquecimento global sobre a Floresta Amazônica'; para subsidiar a aula da professora Danusa.

Aprendizes praticando letramento: Andaimes de gêneros e


construção textual independente
Explorando ogênero narrativo conto

A professora Dan usa inicia sua aula dizendo:


- Hoje, turma, vamos escrever algo diferente. Desta vez vai ser um conto. Como é um conto? Quais
contos vocês conhecem? Onde encontramos contos? Para que servem os contos?
A classe discute todos os lugares em que podem encontrar contos (livros, internet, cinema,
televisão), assim como aqueles que contamos quando recontamos uma sequência de eventos que
--.lt
experimentamos em nossas vidas.
- Vamos começar a trabalhar o conto. Primeiro, vamos todos ler contos.
A professora, então, disponibiliza livros de contos para os alunos lerem, compararem e discutirem
entre si. Em seguida, explica:
- O conto é marcado por uma narrativa curta, escrita em prosa, e gira em torno de uma única
situação; por isso é curto e mais simples que o romance. Narra eventos problemáticos, que levam a
uma crise ou a um ponto de virada, uma mudança de algum tipo. Os eventos complicados geralmente
são resolvidos por um personagem principal. Detalhes sobre personagens e situações são importantes

132 1 LETRAMENTOS
ra orientar oleitor. Qualquer parte em que o escritor tenta destacar o significado dos eventos em
estágio específico é uma avaliação. Na parte final da história, há algum tipo de estágio de resolução,
com os problemas que foram estabelecidos na parte anterior do texto sendo resolvidos para melhor
ou para pior. Então, aqui estão os estágios de uma narrativa: introdução, que é a apresentação da
,ação que vai ser desenvolvida. Nessa parte inicial, há uma ambientação do local, do tempo, dos
personagens e do que está acontecendo; em seguida vem a complicação, isto é, o desenvolvimento da
ação do conto. Nessa parte, ocorre a maioria dos diálogos dos personagens e é apresentado um conflito;
vem, então, o clímax, que é o momento culminante da narrativa, aquele de maior tensão, no qual o
conflito atinge seu ponto máximo; e finalmente o desfecho, que apresenta uma solução para o conflito,
muitas vezes surpreendente.
Depois de apresentar as características do gênero, Danusa solicita que cada aluno produza um
conto. Ao longo da elaboração de seus textos, ela os auxilia, retomando e exemplificando as partes
e características do conto, buscando, assim, instalar os aJldaimes necessários para que seus aprendizes
construàm os textos de forma independente.

As relações sociais na aprendizagem de leitura e escrita: Benefícios


de aprender formas textuais poderosas
Os usos de gêneros na escola
A pedagogia do letramento na abordagem funcional é sobre aprender a significar em um contexto
socioeducacional no qual o domínio de gêneros específicos é valorizado. Centra-se, portanto, em
elementos elaborados por especialistas e em andaimes introduzidos por professores, seguidos pelo
estímulo à construção independente de textos que, com maior ou menor sucesso, exemplificam
esses gêneros.
Segundo Dolz e Schenewly,8 cada gênero textual necessita de um "ensino adaptado, pois apresenta
características distintas. No entanto, os gêneros podem ser agrupados em função de um certo
número de regularidades linguísticas e de transferências possíveis". Assim, os autores reúnem os
gêneros em cinco grandes grupos, com base em seus aspectos tipológicos e sua relação com seus
domínios sociais de comunicação e suas respectivas capacidades de linguagem dominantes, conforme
podemos observar no Quadro 6.6.
A expectativa de vincular a finalidade social à estrutura do texto, por meio da relação entre os
domínios sociais de comunicação mais amplos e suas respectivas capacidades de linguagem
dominantes, leva a uma compreensão da linguagem muito diferente daquela da gramática tradicional.
Começando com a questão do propósito, a análise do texto prossegue observando sua'tstrutura
como um todo, para, então, explicar seu progresso em termos do que acontece em períodos e
orações. Nesse sentido, ao contrário da gramática tradicional, cujo foco são as análises morfossintáticas
e raramente vai além destas, a análise de gêneros se preocupa, sobretudo, com textos inteiros e suas
funções sociais. A análise linguística nessa perspectiva é realizada para explicar o funcionamento
do texto como um todo e como este cumpre sua intenção social.

8 Dolz & Schenewly, 2004, p. 120.

PEDAGOGIA DO LETRAME NTO NA ABO RDAGEM FUN CIONAL j 133


ASPECTOS TIPOLÓGICOS
Exemplos de gêneros orais
Domínios sociais de comunicação Capacidades de linguagem
e escritos
dominantes

conto maravilhoso;
fábula;
NARRAR lenda;
Cultura literária ficcional narrativa de aventura;
Mimesis da ação através da criação de narrativa de ficção científica;
intriga. narrativa de enigma;
novela fantástica;
conto parodiado.

relato de experiência vivida;


relato de viagem;
RELATAR testemunho;
Documentação e memorização de ações curriculum vitae;
humanas Representação pelo discurso de experiên- notícia;
cias vividas, situadas no tempo. reportagem;
crônica esportiva;
ensaio biográfico.

texto de opinião;
diálogo argumentativo;
ARGUMENTAR carta do leitor;
Discussão de problemas sociais
carta de reclamação;
controversos
Sustentação, refutação e negociação de deliberação informal;
tomadas de posição. debate regrado;
discurso de defesa (adv.);
discurso de acusação (adv.).

seminário;
conferência;
artigo ou verbete de enciclopédia;
EXPOR
entrevista de especialista;
Transmissão e construção de saberes tomada de notas;
Apresentação textual de diferentes formas
resumo de textos"expositivos" ou explica-
dos saberes.
tivos;
relatório científico;
relato de experiência científica.

instruções de montagem;
receita;
DESCREVER AÇÕES
regulamento;
1nstruções e prescrições
regras de jogo;
Regulação mútua de comportamentos.
instruções de uso;
instruções.
Quadro 6.6: Agrupamento de gêneros.'

Aprendendo a usar textos socialmente poderosos

Vimos as fases de aprendizagem de leiturà e escrita na prática, a partir dos exemplos apresentados
neste capítulo, divididas em três: a primeira fase é a de modelagem, na qual os alunos são expostos
·a vários textos que exemplificam o gênero em questão. Se, por exemplo, a disciplina escolar é
ciências e o assunto gira em torno de golfinhos, os alunos podem ler textos sobre mamíferos

9 Idem, p. 121.

134 1 LETRAMENTOS
marinhos de ~árias fontes, que, em geral, se constituem em relatórios. Nesse caso, o professor
poderia fomentar uma discussão sobre para que servem tais textos (suas funções), como as
informações nos relatórios são organizadas (sua estrutura esquemática) e quais os aspectos relativos
ao modo como os textos comunicam (palavras e sua sequência).
A segunda fase envolve a negociação conjunta de um texto elaborado pela turma. Os
primeiros elementos nessa etapa são o estudo do campo (conhecimento especializado) e o
contexto (no qual os eventos estão acontecendo) do gênero: os alunos observam, pesquisam,
entrevistam, discutem, fazem anotações, desenham diagramas e assim por diante. Segue-se,
então, a construção conjunta de um texto de aula, ou seja, os alunos participam do processo
de produção textual de um relatório, orientados pelo professor. Este, por sua vez, atua como
um escriba, na medida em que os alunos contribuem para um texto construído em conjunto,
que se aproxima da estrutura do gênero relatório e emprega as escolhas e sequências de palavras-
-chave características dele.
Na terceira e última fase, os alunos constroem seus próprios relatórios de forma independente,
preparando-se para mais trabalho sobre um determinado assunto, verificando seus esforços
individuais de escrita com os colegas e com o
professor, reavaliando criticamente seus textos
à medida que são editados para publicação e,
por fim, talvez, exQiorando criativamente o
gênero para representar outros campos. O ciclo
pode, então, ser repetido, trabalhando aspectos
progressivamente mais sofisticados do gênero
1:elatório.

Veja: "Ciclo de ensino-aprendizagem - Ross


no YouTube':

Ao pensar amplamente em termos dos


ósitos sociais desse processo de aprendizagem,
wmos paralelos entre as demandas linguísticas
de diferentes estágios da ciência da educação e as
Figura 6.3: Ociclo de ensino e aprendizagem:
andas de linguagem de diferentes empregos Fases de leitura e escrita em uma abordagem de gênero.
em indústrias baseadas na ciência. Por isso, a
gem de gêneros de caráter pessoal, como um bilhete, a gêneros de caráter profissional, como
relatório, acompanha, de certa forma, uma progressão do conhecimento do senso comum e
textos cotidianos a textos que são cada vez mais técnicos e formais. Estes se destinam a ser
s por estranhos, muitas vezes distantes daqueles que os escreveram, tornando-se, a~m, textos
·cos para fins públicos.
O mundo atual demanda cada vez mais o uso e a criação de documentos escritos de diferentes
s, que estão se tornando um elemento cada vez mais importante da vida profissional, para
mencionar a vida pública bem informada, quando se trata de pensar questões controversas,
, mudança climática, pesquisa com células-tronco ou tecnologias de reprodução humana.
- -e sentido, a pedagogia do letramento na abordagem funcional visa colocar a estrutura e o
llleódo de volta ao ensino do letramento.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNC10NAL 1 135


Veja: "Kalantzis e Cape debatendo alfabetização funcional".

Explorando conexões entre os processos de conhecimento e a


pedagogia do letramento na abordagem funcional
A pedagogia do letramento na abordagem funcional enfoca sobremaneira os processos de
conhecimento que denominamos "analisar funcionalmente" e "aplicar adequadamente". Deriva de
uma análise do que as pessoas fazem através da linguagem ou, mais especificamente, através da
relação entre forma e função da linguagem, cuja ênfase está na construção de sentido. Portanto,
nessa concepção, aprender a significar é visto como um processo social, em que a linguagem é
aprendida na interação com outros mais capazes.
Essa visão da aprendizagem aproxima a abordagem funcional do conceito de Zona de
Desenvolvimento Proximal, no âmago da psicologia sociocultural de Vygotsky (descrita mais adiante
no capítulo 14): a zona entre o que uma criança pode realizar sozinha e aquilo que pode fazer com
assistência de um par mais competente. Apoiados pelos andaimes fornecidos pelo professor ao
longo do ciclo de ensino, rn1 alunos aprendem a explicar as maneiras pelas quais os textos trabalham
para veicular significados de forma eficaz. Eles, então, aplicam seus conhecimentos de linguagem
e recursos de criação de significado em contextos sociais da vida real para participar, ou mesmo
desafiar, os discursos de suas escolas e comunidades.

Figura 6.4: As ênfases da pedagogia do letramento na abordagem funcional.

136 1 LETRAMENTOS
Sumário

Pedagogia do letramento funcional

Os conteúdos do conhecimento do letramento Aprendendo os gêneros relacionados ao sucesso escolar e ao


poder social.

A organização do currículo de letramento Lendo modelos de gênero e escrevendo dentro de estruturas


genéricas no contexto de aprendizagem de uma disciplina es-
colar.

Aprendizes praticando letramento Os alunos gradualmente assumem mais responsabilidade pela


construção de textos à medida que avançam no ciclo de ensino-
-aprendizagem, que parte da modelagem dirigida pelo profesSOf"
ao trabalho conjunto por ele guiado para a construção indepen-
dente de andaimes.

As relações sociais da aprendizagem de letramento Aprendendo formas textuais poderosas para o sucesso escolar I
e o acesso social.

Processos de conhecimento

Conceitualizando por nomeação


1. Adicione lexias à sua wiki, definindo os conceitos-chave na pedagogia do letramento na abordagem

funcional: termos importantes na análise dos modos através dos quais a comunicação e a língua
funcionam e as formas como são aprendidas. Mantenha e estenda essa wiki enquanto você
trabalha com este e com os capítulos restantes deste livro.

Aplicando apropriadamente
2. Escolha um gênero textual que possa ser ensinado em uma atividade escolar. Elabore uma aula
que exeJ?plifique o ciclo de ensino-aprendizagem do gênero baseado na pedagogia do letramento
na abordagem funcional. Crie um discurso hipotético professor-aluno na fase de construção
conjunta dessa lição.

Conceitualizando com teoria


3. Escreva um relato da teoria da aprendizagem por trás da abordagem funcional. Consulte o
trabalho de teóricos que tematizem os gêneros textuais.

Analisando funcionalmente 4
4 . Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia do letramento na abordagem
funcional seria mais e menos apropriada.

Aplicando criticamente
5. Considere uma aplicação particularmente apropriada da pedagogia do letramento na abordagem
funcional (para um assunto específico ou contexto de aprendizagem que atenda às necessidades
de um determinado grupo de alunos) e desenvolva um plano de aula ilustrando essa aplicação
cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja o funcional.

PEDAGOGIA DO LETRAMENTO NA ABORDAGEM FUNCIONAL 1 1

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