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Visão geral
Este capítulo se inicia com dois exemplos de sala de aula que ilustram a pedagogia dos letramentos
em contextos de ensino atuais: o primeiro, em um contexto da educação básica em escola da zona
rural da Austrália, e o Jegundo, um projeto desenvolvido com grupo de alunos de uma disciplina
de graduação voltada à formação inicial de professores de línguas de uma universidade pública .
brasileira. Em seguida, o capítulo busca desenvolver uma estrutura para classificar a variedade dos
tipos de atividade que contribuem para uma pedagogia produtiva e intencional dos letramentos,
por meio de "processos de conhecimento", que se dividem em: experiencial ("experienciando o
conhecido" e "experienciando o novo"), conceitual ("conceitualizando por nomeação" e
"conceitualizando com teorià'), analítico ("analisando funcionalmente" e "analisando criticamente")
e aplicado ("aplicando apropriadamente" e "aplicando criativamente"). Esses processos de
conhecimento também estão profundamente enraizados nas tradições das abordagens das pedagogias
dos letramentos que, nos próximos capítulos, chamaremos de "didáticà: "autênticà', "funcional" e
"críticà'. Nesses cápítulos, exploraremos essas abordagens, assim como focalizaremos a questão da
pedagogia dos letramentos que seria mais apropriada para os nossos tempos.
Novos letramentos, multiletramentos e línguas", que coordenou entre 2009 e 2014, a autora,
tomando como referência a perspectiva da aprendizagem pelo design, 3 desenvolveu estudo de
caso com grupo de alunos de uma disciplina de graduação voltada à formação inicial de professores
de línguas de uma universidade pública brasileira. De viés teórico-prático, esse estudo de caso
juntou conceitos teóricos da disciplina e práticas de narrativas autorais em vídeo construídas
pelos alunos.
Com base no arcabouço teórico da disciplina e na sua relação com a proposta de trabalho com
narrativas, surgiram resultados bastante interessantes que culminaram no replanejamento da própria
disciplina de graduação. Essa parte se constituiu em processo de "conceitualização por nomeação",
que contemplou a aprendizagem dos conceitos sociais de n arrativa, com foco nas narrativas criadas
por tecnologias digitais, e em processo de "conceitualização por teoria", que envolveu leitura e
discussão de teorias sobre narrativas, multimodalidade e construção de sentidos, multiletramentos,
letramentos críticos, autoria e agência. Como resultado, então, os estudantes desenvolveram seus
próprios conceitos para construir uma narrativa multimodal bem-sucedida.
No processo de desenvolvimento dessas narrativas, Monte Mór observou que os alunos se
engajaram na "experienciação do conhecido", ao descrevem seu desafio de enfrentar um vestibular
concorrido para entrada no curso de graduação. Ao mesmo tempo, a maioria deles também
"experienciou o novo", quando tomou conhecimento das n arrativas dos colegas e quando aprendeu
a usar o programa Flash para desenvolver suas narrativas multimodais.
Os participantes também se envolveram em análises teórico-práticas, com base na relação entre
os conceitos teóricos discutidos na disciplina e suas experiências e conhecimentos fora do contexto
universitário. Essa combinação lhes permitiu o engaj amento em outros dois processos de
conhecimento: "analisando funcionalmente", quando tiveram a oportunidade de examinar as funções
72 J LETRAMENTOS
dos sistemas educacionais e de avaliar a adequação do suporte tecnológico para a realização de
suas tarefas, e "analisando criticamente", quando o foco de suas análises recaiu sobre as desigualdade
educacionais e sociais, bem como sobre o acesso a esses sistemas de ensino, rememorando, inclusiYe
suas dificuldades e ansiedades pessoais durante a preparação para o vestibular.
Os alunos, então, trabalharam muito criativamente na reconstrução multimodal de narratiYa
sobre sua entrada na universidade por meio do vestibular. Esse trabalho envolveu discussõe
sobre o que deveria ser priorizado pelo grupo em relação ao tema escolhido (vestibular ,
planejamento e produção de roteiros individuais, filmagens de narrativas individuais, escolha de
um programa de computador para montagem e produção/reconstrução de uma narrativa coletiYa
do grupo.
A produção de uma narrativa multimodal coletiva foi algo inteiramente novo e estimulante para
os alunos, se comparada ao que tradicionalmente se faz no contexto universitário, em que se exigem
atividades de avaliação exclusivamente escritas. Isso fe z com que eles tivessem a oportunidade de
aplicar seus conhecimentos, retratando uma diversidade complexa de situação do mundo real
Nesse sentido, os estudantes puderam "aplicar apropriadamente" o que aprenderam, ao produzirem
uma narrativa em vídeo, e "aplicar criativamente", pois a atividade constituiu algo genuinamente
inovador, enfatizando o que havia sido transformado em suas vidas.
Neste capítulo e nos capítulos seguintes da Parte B, tentaremos mostrar que há lições valio a-
a serem tiradas de todas as abordagens de letramento que estamos prestes a explorar: a pedago._., ·a
do letramento na abordagem didática (capítulo 4), a pedagogia do letramento na abordage
autêntica (capítulo 5), a pedagogia do letramento na abordagem funcional (capítulo 6) e a pedago"
dos letramentos na abordagem crítica (capítulo
7). Quando cada uma dessas abordagens se
constitui de forma um tanto unilateral em seus
métodos, precisamos suplementá -la com
aspectos das outras abordagens. Do mesmo
Aplócanao
modo, acreditamos também que precisamos e-
Aplicando
rever nossas abordagens para trabalharmos com · •• apropriadamente
Abordagem funcional Preocupa-se muito em"analisarfuncionalmente'; ou em descobrir como os textos são estru-
turados para servir a diferentes propósitos e "aplicar adequadamente'; ou aprender a criar
sign ificados que serão poderosamente eficazes (capítulo 6).
Abordagem crítica Detém-se em "analisar criticamente'; interrogar as motivações relacionadas aos significados
comunicados e criar textos que se envolvam com o mundo de maneira reflexiva; também
explora "experienciar o conhecido'; quando se trata de expressar identidades pessoais e
sociais e "aplicar criativamente': quando se trata de fazer textos inovadores por meio de
novas m ídias (capítulo 7).
Quadro 3.1: Um resumo das raízes históricas dos quatro processos de conhecimento.
4 Idem, 2015d.
74 1 LETRAMENTOS
1
Analisando Funcionalmente: estudantes ana lisam conexões lógicas, relações de causa e efeito, estru-
tura e função.
Esses processos de conhecimento foram originalmente formulados pelo The New London Group
(NLG) para a estrutura dos multiletramentos como: prática situada, instrução aberta, enquadramento
crítico e prática transformada. Em aplicações subsequentes dessas ideias em práticas curriculares
com base no projeto da aprendizagem pelo design, reformulamos essas concepções e as traduzimos
em processos de conhecimento mais imediatamente reconhecíveis, relativos ao planejamento, à
documentação e ao rastreamento da aprendizagem. 5
Os elementos da aprendizagem pelo design são termos que podem ser usados com alunos na
sala de aula. Ao mesmo tempo, eles captam algumas diferenças profundas entre as formas de
conhecimento ou "movimentos epistêmicos': É interessante, portanto, que os professores também
se familiarizem com esses elementos, mas que não os entendam como uma sequência, já que não
existe uma ordem predeterminada a ser seguida - é possível, por exemplo, começar com conceitos,
tentar aplicá-los e conectá-los à experiência pessoal. Do mesmo modo, não se exige, necessariamente,
a mesma divisão entre os elementos, pois alguns assuntos ou situações de aprendizagem podem
demandar muito trabalho conceitua!, enquanto outros, mais trabalho experiencial. Os processos
.ef
de conhecimento exigem, em vez disso, que os professores reflitam propositalmente sobre como
devem trabalhar os movimentos epistêmicos que fazem em suas salas de aula, podendo, assim,
justificar suas escolhas pedagógicas com base nos objetivos e resultados de aprendizagem para
indivíduos e grupos.
5 Idem, 2009.
O conhecido: introduzir, mos- Por nomeação: definir ter- Funcionalmente: escrever Apropriadamente: escrever,
trar e falar sobre algo/alguma mos, fazer um glossário, rotu- uma explicação, criar um dia- desenhar, atuar de forma usual
coisa familiar ou "fácil"; ouvir, lar um diagrama, ordenar ou grama de fluxo de dados, de- para resolver um problema.
ver, assistir, visitar. categorizar coisas semelhan- senhar um diagrama técnico,
tese distintas. criar um storyboard, fazer um Criativamente: usar o conhe-
O novo: introduzir algo menos modelo. cimento que aprendeu de
familiar, mas que, pelo menos, Com teoria: desenhar um forma inovadora, assumir risco
faça algum sentido apenas por diagrama, elaborar um mapa Criticamente: identificar lacu- intelectual, aplicar conheci-
imersão; ouvir, assistir, ver, vi - conceituai ou escrever um nas e silêncios, analisar pro pó- menta a um ambiente diferen-
sitar. sumário, teoria ou fórmula que sitos (para esse tipo de conhe- te, sugerir um novo problema,
una os conceitos. cimento), predizer e discutir traduzir conhecimento para
consequências, sustentar um uma mistura de "modos" de
debate, escrever um crítica. significação.
Quadro 3-4: Os processos de conhecimento - Exemplos de atividades de letrament os.
EXPERIENCIANDO APLICANDO
Estar no mundo do aluno Estar em novos mundos Fazer as coisas da maneira Fazer as coisas de maneiras
adequada interessantes
Fazer uso do conhecimento e Introduzir novas experiências
da experiência anteriores do aos alunos - reais e/ ou virtuais. Agir sobre o conhecimento de Fazer coisas de maneiras inte-
aluno, formação da comunida- O "novo" é a partir da perspec- maneira esperada, previsível ressantes, ao levar o conheci-
de, interesses pessoais, expe- tiva do aluno para construir ou típica, com base no que foi menta e os recursos de uma
riência concreta, motivação sentido, pois pode ter elemen- ensinado. Envolve a transfor- determinada configuração e
individual, o cotidiano e o fa- tos familiares. mação do aluno e exige que adaptá-los a uma configura-
miliar. ele tenha oportun idades para ção diferente - tomando algo
demonstrar sua compreensão de seu contexto familiar e fa-
e seu aprend izado. zendo com que funcione em
outro lugar.
CONCEITUALIZANDO ANALISANDO
Conectar o mesmo tipo de Conectar diferentes tipos de Pensar sobre o que algo faz Pensar em quem se beneficia
coisa coisas
Examinar a função ou lógica Interrogar os propósitos hu-
Identificar novos conceitos/ Generalizar e sintetizar concei- do conhecimento, ação, obje- manos, as intenções e os inte-
ideias/temas, incluindo resu- tos, vinculando-os, compreen- to ou sig nificado representa- resses do conhecimento, de
mo, termos generalizados, dendo como contribuem para do. Para que serve? O que isso uma ação, de um objeto ou de
convenções, recursos, estru - o todo, generalizando os rela- faz? Com o funciona? Qual é significado representado.
turas, definições e regras. No- cionamentos de causa e efeito. sua estrutura, função ou quais Quais são suas consequências
mear é o primeiro passo para E se ... ? são suas conexões? Quais são individuais, sociais e ambien-
entender. suas causas/efeitos? tais? Quem ganha? Quem
perde?
Quadro 3.5: Proposta de planejamento curricular com base nos processos de conhecimento.
.ef
76 1 LETRAMENTOS
Aprendizagem experiencial dos letramentos
"Experimentar o conhecido" envolve aprendizes que possam refletir sobre suas próprias
experiências de vida, trazendo para a sala de aula conhecimento com o qual estão familiarizados
e suas formas de representar o mundo. Na perspectiva dos letramentos, experimentar o conhecido
busca fazer isso de maneira muito direta, pedindo aos alunos que tragam para a sala de aula artefatos
textuais e práticas comunicativas que possam mostrar os significados que constroem em sua vida
cotidiana. Dessa forma, a aprendizagem por meio da experimentação do conhecido se conecta com
as origens culturais, as identidades e os interesses dos alunos, envolvendo a articulação explícita
da experiência cotidiana que muitas vezes está implícita nas práticas, estimulando a autorreflexão
sobre as fontes de seus interesses e perspectivas. Esses tipos de atividade não apenas possibilitam
que os aprendizes introduzam suas experiências invariavelmente diversas na sala de aula, como
também fazem com que os professores e seus colegas comecem a ter uma noção do conhecimento
prévio de cada aluno.
"Experimentar o novo", por sua vez, ocorre com a imersão em novas situações, informações e
ideias. No caso de letramentos, isso significará principalmente se envolver com novos textos ou
textos de uma variedade desconhecida - ler textos escritos, ouvir textos falados ou sons, observar
gestos e, particularmente, textos visuais (imagens estáticas e em movimento). Dessa forma, os
alunos são exposto a novos significados, fora de suas experiências cotidianas, o que, entretanto,
só funcionará como uma experiência de aprendizagem, de fato, se estiver dentro de uma zona de
inteligibilidade e segurança - suficientemente próxima de suas próprias experiências de vida - ,
dentro do que Vygotsky chama de "Zona de Desenvolvimento Proximal" (ZDP). 6 A aprendizagem
experiencial tem sido largamente articulada à tradição do que chamamos "pedagogia autênticà',
relacionada às ideias de Jean-Jacques Rousseau, John Dewey, Maria Montessori e Anísio Teixeira,
em que se aprende aquilo que é socialmente relevante e conectado com as experiências de vida e
as identidades dos aprendizes. No entanto, como uma pedagogia autônoma, ela também foi atacada
e se viu em recuo nas últimas décadas. Discutiremos mais sobre isso no capítulo 5.
7 Idem.
8 Piaget, 2002 [1923].
9 Bransford; Brown & Cocking, 2000.
78 [ LETRAMENTOS
Aprendizagem analítica dos letramentos
''Analisar funcionalmente" engloba processos de raciocínio, de estabelecimento de conclusões
inferenciais e dedutivas, de relações funcionais (como entre causa e efeito) e de análise de conexões
lógicas, em que os aprendizes desenvolvem cadeias de raciocínio e explicam padrões de conhecimento
e experiência. Na perspectiva dos letramentos, os alunos aprendem a explicar as maneiras pelas
quais os textos trabalham para transmitir significados, ou a maneira como seus elementos de design
funcionam para criar uma representação complexa e significativa. Essa é uma das principais ênfases
da abordagem funcional do letramento, a ser analisada em detalhes no capítulo 6.
''Analisar criticamente", por sua vez, sugere avaliação das perspectivas, dos interesses e dos
motivos daqueles envolvidos na construção de conhecimento, em que os aprendizes interrogam os
propósitos relacionados aos significados ou às ações, com base na interpretação do contexto
sociocultural. Esse é o foco principal da abordagem dos letramentos críticos, que exploraremos no
capítulo 7. Um aspecto fundamental da análise crítica é refletir metacognitivamente sobre a influência
de suas próprias perspectivas e processos de pensamento, buscando torná-los mais eficientes ao
serem acompanhados pelo sistema de metacognição ou monitoramento e reflexão sobre o próprio
pensamento - uma parte integral do movimento entre o novo conhecimento, encontrado nos outros
métodos de conhecimento, e a autorreflexão sobre o próprio conhecimento e processos de
pensamento. 1 º
10 Idem.
80 1 LETRAMENTO S
Sumário
Experienciando:
Os significados são fundamentados nos padrões de experiência do mundo real e na ação e nos interesses subjetivos.
Um movimento pedagógico-chave é a relação entre a aprendizagem escolar e as experiências práticas dos alunos fora da esco-
la, bem como entre textos e experiências familiares e não familiares.
Conceitualizando:
Conhecimentos especializados e disciplinares são baseados em distinções afinadas de conceitos e teorias, semelhantes àqueles
desenvolvidos por comunidades de prática especializadas.
Conceitualização não é meramente uma questão de reprodução de um saber do professor ou do material esco lar, mas um pro-
cesso de conhecimento no qual aprendizes se tornam "conceitualizadores ativos': fazendo do tácito o explícito e generalizando
a partir do particu lar.
Em relação aos letramentos, a conceitua lização ainda envolve o desenvolvimento de metarrepresentações (ou representações
de representações) para descrever os "elementos do design''.
Analisando:
"Analisar" pode significar d uas coisas em um contexto pedagógico: capacidade de descrever funções analíticas ou de aval iar
intenções e motivações humanas.
Em relação aos letramentos, isso ainda envolve analisar funções textuais e questionar criticamente os interesses dos participan-
tes no processo de comunicação.
Aplicando:
Aplicação apropriada e criativa do conhecimento e a compreensão da diversidade complexa de situações do mundo real.
Capacidades de produção com os elementos do design de uma ampla variedade de tipos de texto e propósitos de comunicação.
Em relação aos letramentos, isso significa construir textos e colocá-los em uso na ação comunicativa.
Processos de conhecimento
Experienciando o conhecido
1. Descreva um momento impressionante de aprendizagem em sua vida (na escola ou fora dela)
Analisando funcionalmente
2. Tomando como base um capítulo de um livro didático ou uma unidade de trabalho criada por
um professor, "analise" as atividades de aprendizagem de acordo com os '"processos de
conhecimento" discutidos neste capítulo.
Analisando criticamente
3. Quais preconceitos ou limitações você consegue identificar em termos do alcance e da sequência
dos processos de conhecimento em sua unidade de trabalho?
82 1 LETRAMENTOS
Capítulo 4
Pedagogia do letramento na
abordagem didática
Visão geral
A pedagogia do letramento na abordagem didática fundou o processo de ensino e aprendizagem
da leitura e da escrita quando se iniciou a educação massiva, compulsória e institucionalizada no
século XIX, sendo, ainda hoje, amplamente advogada e aplicada nas escolas em geral. Na pedagogia
do letramento na abordagem didática, exige-se a aprendizagem das formas de correspondência
entre sons e letras, bem como as regras formais daquilo que se apresenta como a "forma correta
de escrita''. Trabalha-se com a ideia de "compreensão" do que os autores "realmente querem dizer",
buscando aprender a respeitar os textos do cânone literário da alta cultura. Nessa rodagem, o
currículo determina o que deve ser ensinado; assim, o professor segue o material didático, que, por
sua vez, segue o currículo. No final desse processo de ensino e aprendizagem, para ser considerado
"aprovado", o aprendiz deve obter uma "nota'' mínima, baseada, em geral, em testes que exigem as
respostas "corretas".
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·.• Veja: "Uma história de duas salas de aula''.
Didática (capítulo 4) Petrus Ramus Experienciar o novo: ler textos literários de "alto valor cu ltural".
Autêntica John Dewey e Maria Montessori Experienci ar o conhecido: explorar os interesses próprios na
(capítulos) leitura e a voz pessoal na escrita.
Crítica Paulo Freire e Michael Aple Experienciar o conhecido: desenvolver voz e identidade pessoais.
(capitulo 7)
Analisar criticamente: trabalhar agendas sociais e vieses de
textos.
84 1 LETRAMENTOS
didática, no que tange justamente à relação entre fonema e grafema, pode ser pensada como critério
de avaliação de língua portuguesa para o 1 Q ciclo:
Escrever utilizando tanto o conhecimento sobre a correspondência fonográfica como sobre a segmentação
do texto em palavras e frases. Com este critério espera-se que o aluno escreva textos alfabeticamente.
Isso significa utilizar corretamente a letra (o grafema) que corresponda ao som (o fonema), ainda que
a convenção ortográfica não esteja sendo respeitada. Espera-se, também, que o aluno utilize seu
conhecimento sobre a segmentação das palavras e de frases, ainda que a convenção não esteja sendo
respeitada (no caso da palavra, podem tanto ocorrer uma escrita sem segmentação, como em "derepente",
como uma segmentação indevida, como em "de pois"; no caso da frase, o aluno pode separar frases
sem utilizar o sistema de pontuação, fazendo uso de recursos como "e", "aí", "daí", por exemplo).
Neste capítulo, focalizaremos a ecologia da sala de aula na abordagem didática, o modo como
a sala de aula é organizada e o que acontece nela. Nosso objetivo é fornecer uma representação
gráfica dos valores, hábitos e propósitos culturais desse tipo de comunidade em sala de aula. Nossa
intenção, com isso, não é simplesmente descartar a abordagem didática por considerá-la antiquada,
mas sim buscar entendê-la, pois ela pode ainda se mostrar relevante, atualmente, em certos contextos
comunitários, para alguns alunos, e em função de determinados aspectos do processo de aprendizagem.
Daí, portanto, a necessidade de, mais uma vez, nos referirmos a letramentos (no plural), incluindo,
nesse caso, não uma única abordagem, mas uma mistura de diferentes abordagens.
Para fins de comparação entre este e os três capítulos seguintes, analisaremos as quatro abordagens
da pedagogia dos letramentos (didática, autêntica, funcional e crítica) a partir de quatro dimensões
(ver Quadro 4.2).
Dimensão 2: organização do currículo de letramento Como aquilo que os estudantes devem aprender é organiza-
do.
Dimensão 3: aprend izes fazendo letramento As maneiras pelas quais os estudantes pretendem aprender
pa ra construir significados.
Dimensão 4: relações sociais do letramento As re lações entre os estudantes e os letramentos, entre estu-
dantes e outros estudantes e entre estudantes e professores.
Quadro 4.2: Estrutura para análise das ecologias de aprendizagem em sala de aula e as pedagogias de letramento.
Depois de dominadas umas b cu ts sllabas, Uesta torma, ao terminar a leitura CJa canuna,
a capacidade retentiva da criança Sf3 d8Senvolverá o 11tuno não &6 lerà a letra de fôrma cano a de m3o
extraordino,:amente, podendo o profMSOr, confor- e, também , saberã escrever. pois a leitura o a es-
mo :i el.1::.:;.o, .:::ivonç.:ir du:ii; ou 3tÓ tr6~ c.il3b:,c p0r crita deverão c:,.minhar Gemprs p.al•lamente.
dia.
Se, por um lado, os métodos sintéticos lidam com a análise que vai das partes para o todo, isto
é, das relações entre unidades sonoras e grafemas (método alfabético e/ou fônico), e entre unidades
silábicas, para a formação de palavras (método silábico), obedecendo a uma certa hierarquização,
que parte da letra ao texto por meio de soletração e silabação, dimensões importantes e necessárias
para o aprendizado da escrita, por outro lado, eles apresentam o grande problema da "artificialização"
de textos, cujo único objetivo é o treinamento e/ou decodificação de letras e sílabas, estando,
portanto, descolados do uso social da escrita. Nesse sentido, o início da Parte I ("O professor, depois
de mostrar uma gravura correspondente à lição e após ter conversado com a classe para despertar
o interesse dos alunos, escreverá na lousa a sentença") parece soar quase como paradoxal, visto que
o trabalho com palavras e frases descontextualizadas, salvo em casos muito excepcionais, d_ijicilmente
despertaria o interesse dos alunos .
. Gramática tradicional
Em uma turma de 7º ano do ensino fundamental, a professora Joana anuncia o seguinte tópico
de sua aula:
86 J LETRAMENTO S
- Nós já começamos a estudar as classes de palavras. Vocês se lembram quais são as classes de
palavras?
Nenhum aluno da turma se manifesta. A professora, então, reforça a pergunta:
- Gente, alguém sabe o que são as classes de palavras?
Como ninguém responde, a professora continua:
- Então, para a gente escrever bem, precisamos saber como as palavras são classificadas. As classes
de palavras é como se classifica as palavras. No português, as palavras são classificadas em dez tipos,
lembram?
A professora continua, então, falando e escrevendo cada uma das classes de palavras na lousa:
Substantivo, Artigo, Adjetivo, Numeral, Verbo, Pronome, Advérbio, Preposição, Conjunção e
Interjeição.
- Na última aula, nós estudamos os substantivos e os artigos. Hoje, vamos ver os adjetivos. Então,
o adjetivo é toda palavra que caracteriza o substantivo, que dá a ele qualidade, defeito, condição, e
por aí vai. O adjetivo varia em gênero, quer dizer, masculino e feminino, número, singular e plural,
e grau, aumentativo ou diminutivo. Por exemplo: "O menino está cansado". Nesse exemplo, quem é
o adjetivo?
- Cansado - respondem alguns alunos em coro.
- Isso. E ''cansado" está se referindo a quem?
- O menino - re~pondem dois alunos.
- Está se referindo ao "menino". E "menino" é uma palavra masculina e está no singular. Então,
o adjetivo ''cansado" também tem que estar no masculino e no singular. Tá bom?
Depois de dar mais dois exemplos de frases com substantivos e adjetivos (um no feminino
singular e outro no masculino plural), a professora escolhe um texto do livro didático, o poema
"Retrato", de Cecília Meirelles, e pede aos alunos que destaquem os adjetivos encontrados e digam
a que substantivo cada um deles se refere e se eles estão no masculino ou no feminino, no singular
ou no plural:
Retrato
(Cecília Meirelles)
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e fri as e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
.-ef
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?
Podemos notar que esse é um típico exemplo de aula na abordagem didática. Vale, porém,
explicar que não há demérito algum em trabalhar conteúdo gramatical em uma aula de língua
portuguesa. Muito pelo contrário: a gramática é parte fundante no processo de ensino e aprendizagem
Dando continuidade ao ensino de classe de palavras com a mesma turma, ao abordar os verbos,
a professora Joana inicia sua aula da seguinte maneira:
88 ! LETRAMENTO S
111----------------------------------------------------
- Então, na última aula, a gente viu que existem três modos: Indicativo, Subjuntivo e Imperativo.
Hoje nós vamos ver como é a conjugação dos verbos no indicativo, começando com os verbos de
primeira conjugação. O que são os verbos de primeira conjugação?
Ninguém responde. Então, ela mesma continua:
- São os verbos que terminam em ''ar", como ''cantar", ''jogar" e ''falar". Vamos ver como fica a
conjugação do verbo ''jalar".
A professora, então, copia na lousa todas as pessoas gramaticais e os tempos verbais do modo
indicativo do verbo "falar" (presente, pretérito perfeito, pretérito imperfeito, pretérito mais-que-
-perfeito, futuro do presente e futuro do pretérito), conjugando cada um desses tempos verbais na
primeira, na segunda e na terceira pessoas do singular e do plural (eu, tu, ele, nós, vós, eles). Em
seguida, ela lê em voz alta cada um deles ("Eu falo, tu falas, ele fala, nós falamos, vós falais e eles
falam. Eu falei, tu falaste" etc.).
Um aluno, antão, repete duas conjugações em voz alta em tom irônico:
- Tu foste! Vós fostes! Que engraçado! Eu não falo assim.
A professora lhe responde da seguinte forma:
- Pode parecer um pouco estranho para vocês o "vós" porque ninguém fala mais hoje em dia, mas
ele existe em vários textos antigos. Por isso, temos que aprendê-lo.
O trecho acima é mais um exemplo de ensino de gramática na abordagem didática, em que se
percebe que a professora Joana trabalha com os tempos verbais por uma lógica de memorização e
de forma descolada de seus significados e de sua função comunicativa, isto é, dos diferentes efeitos
de sentidos que os tempos verbais podem produzir em contextos diversos de uso da língua. Ela
não explora com os alunos, por exemplo, o porquê do termo "pretérito perfeito" ou "pretérito
imperfeito" e as situações reais nas quais esses tempos verbais poderiam ser usados por eles. Ainda
nesse exemplo, poderia ser explorado o fato de o "pretérito mais-que -perfeito" não ser usado na
fala e na escrita cotidianas, nem mesmo em contextos mais formais.
O mesmo poderia ser discutido em relação às pessoas gramaticais, partindo da fala do aluno
que foi irônico e questionou o fato de não usar os pronomes pessoais "tu" e "vós". É interessante
notar nesse caso que a professora até esboça uma explicação para o não uso desses pronomes e
também uma justificativa para aprendê-los ("Pode parecer um pouco estranho para vocês o 'vós'
porque ninguém fala mais hoje em dia, mas ele existe em vários textos antigos. Por isso, temos que
aprendê-lo"), mas tanto a explicação quanto a justificativa são vagas, pois dizer que devemos
aprender a conjugar os verbos na segunda pessoa do plural usando "vós" pelo fato de este aparecer
"em vários textos antigos" não é definitivamente um argumento plausível para ensiná-lo, já que
isso se mostra bastante distante da realidade dos seus alunos. Ainda quanto aos dois pronomes, a
professora poderia também discutir como o "tu" é um pronome comum em algumas regiões do
Brasil, comparando-o com o seu correspondente "você", mais comum atualmente na maior parte
&pili. ~
... E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como o raio de sol e viveram fe lizes para sempre ...
- Tem muita história que acaba assim. Mas este é o começo da nossa. Quer dizer, se a gente tem que começar em algum lugar,
pode muito bem ser por aí. Vai ser a história da filha desses tais que se casaram e viveram felizes para sempre. E a história dos filhos
começa é na história dos pais. Ou na dos avós, bisavós, tataravós ou requetatat ataravós - se alguém conseguir dizer isso e selem-
brar de todas essas pessoas.
- Bem, tem alguém que lembra. Índ io lembra. Em muitas tribos, pelo menos. [... ]
Mas isso é coisa de índio. Homem branco hoje em dia não liga mais para essa s coisas. Prefere saber escalação de time de futebol,
anúncio de televisão, capitais de países, marcas de automóveis e outras sabedorias civilizadas. Você sabe a história dos seus pais?
E dos seus avós? E dos seus bisavós? Eu também não sei muito, não. Mas, quando não sei, invento.
- Tem gente que gosta, acha d ivertido. Tem gente que só quer saber de histórias mu ito exatas e muito bem arrumadinhas - então
é melhor mudar de história, porque esta aqui é meio atrapalhada mesmo e toda ao contrário. Ela nem começou direito e já apare-
ceram aí em cima uns índios que não têm nada a ver com a história. Mas é que eu gosto muito de índios e piratas (por isso adoro
a história de Peter Pan) e toda hora eu lembro deles.
...E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como um ra io de sol e viveram felizes para sempre ...
Quadro 4.3: Trecho do livro História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. São Paulo, Ática, 1979.
Por fim, a professora propõe duas questões de múltipla escolha sobre o texto:
Já de início, podemos notar que a professora Joana se vale de certos expedientes da abordagem
didática, como a leitura em voz alta. Nesse caso, podemos perguntar: por que escolher dois alunos
aleatoriamente para ler o trecho em voz alta para a turma? Para trabalhar que tipo de conhecifilento?
Em relação ao trecho em questão, podemos dizer que, embora sua escolha tenha sido bastante
interessante para um trabalho de leitura sobre contos infantis, as questões propostas são limitadas
e problemáticas, com localização de informações superficiais e, ao mesmo tempo, ambíguas, que
não buscam, de fato, explorar a complexidade do texto. Além disso, ao se restringirem a questões
de múltipla escolha, as atividades procuram exclusivamente fazer com que o aluno encontre no
texto a resposta única, correta, não valorizando, portanto, a possibilidade de diferentes respostas
que tragam à tona a própria subjetividade dos aprendizes.
90 1 LETRAMENTOS
-7
"Pardalzinho"
Em uma outra aula para a mesma turma, a professora Joana trabalha com os alunos o poema
"Pardalzinho", de Manuel Bandeira:
Pardalzinho
O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos! 2
Assim como na aula anterior, a professora pede aos alunos que leiam o poema silenciosamente
e, na sequência, escolhe um aluno para lê-lo em voz alta para a turma. Depois disso, ela pergunta
às crianças:
- O que vocês entenderam do poema?
- Fala de um passarinho que foi adotado porque tava com a asa quebrada, mas acabou morrendo
- diz uma aluna.
- Isso mesmo - responde, entusiasticamente, a professora.
- Eu já tive um canário belga. Ele morreu no começo do ano - diz um aluno.
- Eu também - diz um terceiro aluno.
- Ok, imagino que alguns de vocês já tiveram animais de estimação que morreram. Mas é assim
mesmo. A morte é uma coisa natural. Faz parte da vida. Agora, vamos voltar ao poema. Eu quero
que vocês prestem atenção às rimas do poema. Quais são as rimas presentes?
- 'Íisa" e "casa" - responde um dos alunos.
- "Vão" e "prisão" - diz um outro.
- "Voou" e "enterrou" - fala um quarto.
- Faltou algum?
-Não.
- Faltou. Vejam que falta "carinhos" e "passarinhos".
2 Manuel Bandeira. "Pardalzinho". Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1976.
A professora Joana procura seguir à risca o plano de aula anual de sua disciplina no 8º ano, no
qual estão previstas as aulas, bem como o tempo necessário para ser trabalhado todo o conteúdo.
Para isso, ela faz uso constante do livro didático, que está adequado, capítulo por capítulo, semana
a semana, ao plano de aula da matéria.
Ao olhar para o plano de aula anual e verificar os pontos que estão previstos para o 4º bimestre,
uma aluna da turma faz, então, a seguinte reflexão:
- "Predicativo", "Transitividade verbal: objeto direto e indireto", "Adjunto adnominal", "Adjunto
adverbial". Uau! Nem sei o que essas coisas significam. Deve ser difícil!
A aluna, todavia, também sabe que, quando terminar o ano letivo e ela olhar novamente para
o plano de aula, o trabalho que fez meses antes parecerá fácil. Não é estranho que esse conteúdo
lhe pareça tão difícil no começo? No final de cada período, há provas formais, aplicadas para avaliar,
no caso de alguns alunos, o quanto estes aprenderam e estão aptos para seguir para o ano S$guinte,
ou, no caso de outros alunos, o quanto não aprenderam tanto quanto deveriam.
Organizar a transmissão do conhecimento nesse modelo é uma característica peculiar às culturas
modernas letradas e às pedagogias formalmente institucionalizadas. O estudioso francês do século
XVI Petrus Ramus é reconhecido como o precursor desse modelo, que representa um dos aspectos
mais distintivos da pedagogia do letramento na abordagem didática. 3 Um século depois da invenção
3 Ong, 1958.
92 1 LETR AMENTO S
da tipografia por Gutenberg, Ramus levou a lógica cultural da reprodução mecânica da palavra
escrita ao seu modelo de ensino, produzindo exposições detalhadas de conhecimento que mudaram
o seu centro de gravidade, antes localizado no escolasticismo e no diálogo socrático.
l!l
Veja: "Sócrates, a memória e a internet".
Nesse sentido, ao contrário de Sócrates, Ramus dirigiu os alunos para o texto impresso, mantendo
uma cópia idêntica para cada um deles. Seus livros, que chegaram a um número notável de cerca
de 1.100 edições, espalhando-se por grande parte do mundo intelectual da Europa moderna, lidavam
com dialética, lógica, retórica, gramática e matemática.
Do ponto de vista do que deveria ser ensinado, o conteúdo, Petrus Ramus não trouxe nenhuma
inovação. Seus livros eram escritos principalmente em latim, a língua comum da vida intelectual
em toda a Europa da Renascença, com os conteúdos dos textos clássicos - lembrando o antigo
passado europeu - abordando retórica ou dialética, por exemplo, consideradas importantes porque
faziam parte do legado cultural da Grécia e da Roma clássicas. A aprendizagem da gramática, do
mesmo modo, não era mais do que aprender as gramáticas do latim e do grego.
Contudo, se, por um lado, Petrus Ramus foi "retrógrado" no que diz respeito ao conteúdo,
por outro, seu método não o foi; muito pelo contrário, pois, pela primeira vez, a retórica e a
dialética foram formalizadas e colocadas em uma página de um livro -texto. Nas sociedades às
quais os textos greco-latinos se referiam, essas disciplinas eram aprendidas através da prática, e
não de um conjunto de regras a serem memorizadas. A partir de Ramus, no entanto, o conhecimento
passou a ser associado ao mundo visual silencioso, no qual os textos se constituíam por meio de
livros impressos, que organizavam o conhecimento em um layout de página espacial formalmente
ordenado. Ramus, portanto, inovou no modo como reorganizou e reproduziu o conhecimento
dos autores clássicos, de modo que pudesse ser ensinado, por meio de instruções aos professores,
transmutando -o de sua forma original para outra forma na qual pudesse ser aprendido. Nesse
sentido, pode -se dizer que, ao organizar formalmente o conhecimento a ser ensinado, Petrus
Ramus propôs algo, ainda que remoto, que seria o embrião da noção atual que temos de "currículo
escolar".
[!l·'~~~
~~ Veja: "Da universidade quinhentista de Paris para o mundo: Currículo e método em Petrus
(füj~ Ramus''.
--<
Aplicando o pensamento objetivo
A partir, então, de Petrus Ramus, uma nova lógica foi aplicada à forma como a informação era
organizada: uma lógica que prosseguia, para usar as palavras de Ong, "por definições e divisões a
sangue-frio, levando a ainda mais definições e mais divisões, até que todas as partículas do sujeito
Depois de várias semanas virando as páginas do livro didático, lição por lição, capítulo a capítulo,
era hora de ver o quanto os alunos da professora Joana tinham aprendido por meio de uma avaliação
ao final do ano. Eles realmente haviam compreendido as classes de palavras? Podiam classificar
todas elas? Sabiam o que era um substantivo comum de dois gêneros? O que era um verbo transitivo
direto? Um advérbio de modo? Tudo isso havia sido "avaliado" por meio de números, dispostos
em uma grade de "progresso escolar" ao longo do ano, no peculiar "jogo da educação".
Em uma seção do livro didático do 6Qano, há uma atividade relacionada a "fontes renováveis
de energià'. A professora Joana, então, decide levar seus alunos ao "laboratório de informática" da
escola para que pesquisem na internet sobre o assunto. Como há 30 estudantes na turma e o
laboratório possui apenas 15 computadores, Joana os divide (dois alunos por computador). Depois
que todos já estão sentados e quietos, ela pede que abram o Google e pesquisem sobre fontes
renováveis de energia, destacando que eles devem fazer buscas em, pelo menos, três sites distintos.
Passados cerca de 30 minutos, a professora solicita aos alunos que copiem em seus cadernos os
resultados das investigações realizadas, para levá-los para leitura e discussão em sala de aula. No
entanto, como a atividade de cópia dos textos pesquisados toma bastante tempo, a aula termina
antes que a turma possa retornar à sala, o que faz com que Joana adie a atividade pai;a, a aula
seguinte.
Esse exemplo é bem emblemático para percebermos a questão do uso da internet na escola. Isso
porque, apesar de tentar fazer com que seus alunos usem uma "nova tecnologia" - nova em relação
às tecnologias tradicionais de sala de aula, como o livro didático, o giz e a lousa -, a professora
continuou replicando práticas tradicionais de letramento, como a solicitação de cópia à mão dos
94 i LETRAMENTO S
textos pesquisados na internet, um expediente típico da abordagem didática, que, portanto, não
mobiliza diferentes tipos de valores, prioridades e sensibilidades dos letramentos com os quais
estamos familiarizados. 5
Na aula subsequente, a professora Joana trabalha a produção textual com seus alunos. Um dos
tópicos do conteúdo programático previstos para o 4º bimestre é a carta aberta. A professora, então,
inicia a aula dizendo:
- Hoje vocês vão escrever uma carta aberta. A carta aberta é do tipo argumentativo e tem com o
principal característica fazer com que a pessoa que está escrevendo possa expor em público suas
opiniões e suas reivindicações sobre um assunto, buscando convencer alguém sobre suas ideias. M as
a carta aberta é diferente de uma carta pessoal. Na carta pessoal, o que se trata são assuntos, como
o próprio nome diz, pessoais, que não dizem respeito a outras pessoas. Já na carta aberta, o assunto,
o problema, é de interesse coletivo, público. Então, a carta aberta pode ser utilizada para p rotestar
contra esse problema, mas também como um a forma de conscientização das pessoas ou de um
representante político, do governo, por exemplo, sobre esse problema. A carta aberta se divide nas
seguintes partes (a professora escreve na lousa) :
- Agora, eu vou querer que cada um de vocês escreva uma carta aberta de, no máximo, 30 linhas
sobre um tema bastante atual que nós pesquisam os na aula anterior, lembram? Qual foi?
- Energia - responde um dos alunos.
- Isso. Fontes renováveis de energia - diz a professora - Vamos falar a respeito de como pode mos
reduzir os problemas de falta de energia usando f ontes renováveis. O que vocês pesquisaram na aula
passada no laboratório. Lembrando que o texto tem que ter título, introdução, desenvolvimento e
conclusão. E vocês têm até o final da aula para terminar e me entregar, tudo bem?
Podemos notar que, embora a professora Joana tenha trazido para sua aula um gênero textual
específico (a carta aberta) , o modo como ela o explora é típico da abordagem didática, na qual o
trabalho de produção textual se constitui com base no modelo da famigerada "redação escolar':
Primeiramente, ela apresenta formalmente o gênero, por meio de seu conceito e-r ua estrutura, para,
então, solicitar de seus alunos a produção individual de um texto sobre um tema genérico, cuja
única leitora será a própria professora, que, possivelmente na aula seguinte, devolverá as redações
aos alunos "corrigidas" (do ponto de vista ortográfico e gramatical).
Como a atividade de produção textual está centralizada na figura da professora, não há espaço
concreto para a participação coletiva dos alunos, que poderiam debater o problema de forma mais
Dez dias depois de os alunos haverem escrito um texto, em sala de aula, sobre o tema "fontes
renováveis de energia", a professora Joana lhes devolve as redações "corrigidas", nas quais destaca
os "erros" gramaticais e notacionais (ortográficos, de pontuação e de acentuação) que cometeram.
Ao valorar exclusivamente questões desse tipo nos textos dos estudantes, a professora corrobora
justamente a lógica de usar a produção textual em sala de aula como pretexto para "testar a escrità'
dos alunos, isto é, para avaliar o quanto estão "escrevendo bem", na perspectiva tradicional de
avaliação escrita.
Valorizando a conformidade
O historiador Harvey Graff descreve o papel do letramento no estabelecimento de um novo
sistema de ensino institucionalizado em massa no século XIX. Segundo o autor, o letramento foi
usado como um instrumento para inculcar "pontualidade, respeito, disciplina, subordinação",
contribuindo, desse modo, para moldar "uma força de trabalho controlável, dócil e respeitosa,
disposta e capaz de seguir as ordens". 6 Em outras palavras, a abordagem didática do letramento na
educação em massa se tornara uma importante ferramenta cultural na construção da sociedade
moderna. 7
[!]li'[!]
[!] ..
}
r,
- ·.• Veja: "Em busca do letramento: As origens sociais e intelectuais dos estudos sobre letramento".
De forma específica, a ordem social moderna na educação se constituiu por meio de uma ordem
espacial da sala de aula (alunos de frente para o professor, e não de frente um para o o__w:ro), de
uma ordem temporal do horário escolar (com um tempo destinado estritamente para a disciplina
voltada à leitura e à escrita e, outras vezes, a cada uma das demais disciplinas) e de um currículo
em geral (que permite avançar um passo após o outro, em uma sequência pré-ordenada).
96 1 LETR AM ENTO S
No coração da abordagem didática está o livro didático, um material formal, autoritário, não
negociável, que não é apenas uma metáfora para um sistema de ordem social, no qual o texto escrito
assume um lugar sem precedentes, mas é, sobretudo, um meio crucial de socializar as crianças na
sociedade moderna. Nesse sentido, a pedagogia do letramento na abordagem didática representa
uma enorme ruptura na história da educação, na qual, com a exceção ocasional e parcial das elites
letradas, a maioria da população funcionava principalmente interagindo entre si, usando textos
orais mais fluidos e intersubjetivos. Antes do ensino obrigatório, a socialização, para a maioria da
população, ocorria apenas informalmente ao longo de suas vidas em suas comunidades. A pedagogia
do letramento na abordagem didática, por outro lado, apresenta uma razão muito particular e
quintessencialmente moderna, que leva massas de jovens para um novo ambiente social, tornando-
-os os tipos de pessoas necessárias para essa mesma ordem social. De fato, isso muda o mundo!
Mesmo no século XXI, a pedagogia do letramento na abordagem didática continua forte em
algumas escolas, constituindo-se, ainda, em uma força cultural muito poderosa, que posiciona o
professor, firme e autoritariamente, no centro do processo "instrucional". Isso é destacado nos PCNs
como uma "pedagogia tradicional", na qual o professor é visto como figura central, cujas funções
são definidas como de vigiar e aconselhar os alunos, corrigir e ensinar a matéria. A esse respeito,
vale trazer aqui todo o trecho do documento, que detalha muito bem como se constitui essa
pedagogia:
A metodologia decorrente de tal concepção baseia-se na exposição oral dos conteúdos, numa sequência
predeterminada e fixa, independentemente do contexto escolar; enfatiza-se a necessidade de exercícios
repetidos para garantir a memorização dos conteúdos. A função primordial da escola, nesse modelo, é
transmitir conhecimentos disciplinares para a formação geral do aluno, formação esta que o levará, ao
inserir-se futuramente na sociedade, a optar por uma profissão valorizada. Os conteúdos do ensino
correspondem aos conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações passadas como verdades
acabadas, e, embora a escola vise à preparação para a vida, não busca estabelecer relação entre os conteúdos
que se ensinam e os interesses dos alunos, tampouco entre esses e os problemas reais que afetam a
sociedade. Na maioria das escolas essa prática pedagógica se caracteriza por sobrecarga de informações
que são veiculadas aos alunos, o que torna o processo de aquisição de conhecimento, para os alunos,
muitas vezes burocratizado e destituído de significação. No ensino dos conteúdos, o que orienta é a
organização lógica das disciplinas, o aprendizado moral, disciplinado e esforçado. Nesse modelo, a escola
se caracteriza pela postura conservadora. O professor é visto como a autoridade máxima, um organizador
dos conteúdos e estratégias de ensino e, portanto, o guia exclusivo do processo educativo. 8
O que podemos aprender com a abordagem didática? Muitas vezes, no passado, essa abordagem,
de fato, funcionou e, em muitos contextos atuais, é ainda bem-sucedida. Mesmo com críticas de
_alguns educadores a partir das perspectivas de outras tradições pedagógicas, como as abordagens
autêntica, funcional e crítica, que descreveremos nos capítulos seguintes, muitos alunos aprenderam
* Na versão original do livro, os autores fazem um jogo de palavras neste trecho do parágrafo (possível em função das
rimas das palavras na língua inglesa), em que relacionam a orientação de ensino na abordagem didática aos termos
skill and drill, para se referirem a uma caricatura popular, e drill and kill, para atribuírem um tom mais depreciativo.
(N. da T.)
9 Kirschner; Sweller & Clark, 2006.
10 Idem, p. 83.
98 1 LETRAMENTOS
experiência, tendem a favorecer os estudantes cujas culturas familiares e sensibilidades estariam
mais próximas da cultura escolar. Por outro lado, para os alunos cujas experiências se distanciam
mais da cultura de letramento escolar, o ensino explícito pode, às vezes, ser mais eficaz. Some-se
a isso a questão da eficiência - às vezes, pode ser mais eficiente definir conceitos e teorias do que
fazer com que os alunos "reinventem a roda epistêmicà', examinando a montanha de fatos e
redescobrindo procedimentos disciplinares. Finalmente, vale destacar que, enquanto os processos
de conhecimento de aprendizagem experiencial, que sustentam a abordagem autêntica, favorecem
o raciocínio indutivo, que vai do particular ao geral, a aprendizagem conceitual valoriza o raciocínio
dedutivo, que passa a atribuir sentido ao particular, porque o geral já faz sentido.
Outro processo de conhecimento que ainda precisamos mencionar em uma discussão sobre a
pedagogia do letramento na abordagem didática é o "experienciando o novo". Se, por um lado, a
abordagem didática negligencia os textos das vidas cotidianas dos estudantes (culturas familiares,
textos midiáticos ou cultura popular, por exemplo), isto é, não lida com o "experienciando o
conhecido", por outro, encoraja os estudantes a experienciar textos novos e muitas vezes desconhecidos,
considerados de alto valor literário, que lhes possibilitam acesso à cultura nacional.
Assim, apesar de todas as suas falhas, ainda há lugar em nossas pedagogias para algumas das
intravisões, dos métodos e dos tipos de atividades da abordagem didática. Todavia, defendemos
uma pedagogia mais equilibrada, que complemente o processo de conhecimento conceitual com
os outros processos de conhecimento (experiencial, analítico e aplicado).
Sumário
Conteúdo do letramento Regras formais, uso correto, leitura para apreensão do significa-
do e do cânone literário.
Processos de conhecimento
2. Experienciando o novo
Localize uma fonte a partir da qual você pode ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia
do letramento na abordagem didática. Sua fonte pode ser um livro didático antigo ou uma entrevista
com um professor. Escreva sua própria análise das dimensões da abordagem didática sobre:
a. o conteúdo do conhecimento sobre letramento;
b. a organização do currículo de letramento;
3. Experienciando o conhecido
Descreva um momento de aprendizagem em que você experienciou a abordagem didática. Como
foi esse momento? De que forma foi um momento de aprendizagem eficaz ou ineficaz para você?
4. Aplicando apropriadamente
Neste e nos três capítulos seguintes, você se envolverá com a teoria e a prática das quatro
abordagens principais do letramento: didática, autêntica, funcional e crítica. Escolha um tópico
de letramento que possa ser ensinado em uma aula e que exemplifique a abordagem didática.
Elabore um discurso hipotético professor-aluno no decorrer dessa atividade.
s. Analisando criticamente
Debata a proposta de Bento de Núrsia (São Bento) sobre as condições ideais de aprendizagem
(veja: <http:/ /newlearningonline.com/ new-learning/ chapter-8/ st-benedict-on-the -teacher-
andthe-ensinado> ).
6. Analisando funcionalmente
Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a abordagem didática seria mais e menos
apropriada.
7. Analisando criticamente
Considere uma atividade de aplicação particularmente apropriada da abordagem didática (para
um determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
essa aplicação, cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja o didático.
Visão geral
As pedagogias do letramento na abordagem autêntica foram primeiramente formuladas como
contraponto direto à abordagem didática. Elas se tornaram bem conhecidas e influentes a partir
do começo do século XX, inicialmente por meio dos trabalhos de John Dewey, nos Estados Unidos,
e de Maria Montessori, na Itália. Quando relacionadas à leitura e à escrita, as pedagogias do
letramento na abordagem autêntica promovem uma espécie de "evolução natural", uma continuação
dos processos de aprendizagem da língua que se iniciaram com a aprendizagem da fala. Para tanto,
a abordagem autêntica recomenda imersão em experiências de leitura e escrita pessoalmente
significativas, com foco nos próprios processos de leitura e escrita, e não nas formalidades de regras
e adesão a convenções; trata-se, por isso, de uma abordagem centrada no aluno, que busca fornecer
espaço para sua autoexpressão. No que se refere à terminologia dos "processos de conhecimentos"
dos multiletramentos, as pedagogias do letramento na abordagem autêntica focalizam principalmente
os processos de conhecimentos experienciais.
***
Vitor é um aluno que acaba de ser matriculado em uma escola municipal que trabalha com a
pedagogia do letramento na abordagem autêntica. Ele foi transferido de uma escola de outra cidade,
.,!"
onde o ensino é pautado pela abordagem didática. Em seu primeiro dia de aula na turma da
professora Joana, Vitor acha tudo bem estranho. Parece que a aula da professora Joana acontece
em todo lugar. A primeira coisa que Vitor percebe é o arranjo das mesas, ordenadas em pequenos
grupos com os alunos de frente um para o outro. Isso é muito diferente da configuração da sala de
aula que havia frequentado na escola anterior.
- Bem-vindos a um novo ano escolar - diz a professora Joana alegremente. - Tenho certeza de
que será um ano maravilhoso!
Oconteúdo de letramento - Significados autênticos
1. Lili
Olhem para mim.
Eu me chamo Lili.
Eu comi muito doce
Vocês gostam de doce?
Eu gosto tanto de doce!
102 1 LETRAMENTO S
si. Além disso, a atividade explora a repetição de palavras que apresentam um fonema em comum:
/v/ ("Eva", "vê", "uva", "vovô", "ave", "voa", "Ivo" e "viu"). Assim, os alunos têm a chance de se
acostumarem com o som e a grafia das palavras que apresentam esse mesmo fonema, podendo,
então, adivinhá-las, já que, se conhecem algumas palavras na frase, mas não outras, provavelmente
poderão presumir as que não conhecem por meio do próprio padrão geral da sentença e por serem,
de alguma forma, palavras relacionadas a coisas comuns e familiares, isto é, ligadas às suas próprias
experiências de vida.
A Cartilha das mães, de onde a figura acima foi retirada, foi publicada ainda no final do século
XIX, período em que já se iniciavam no Brasil discussões acadêmicas sobre o método analítico.
Nessa cartilha, o foco do ensino da leitura eram as historietas, que resultavam da coordenação de
sentenças e de sua correlação com as imagens. Não havia atividades específicas que trabalhassem
a relação fonema-grafema, já que o ponto de partida era o significado de palavras inteiras, unidas
em sentenças simples. O objetivo, portanto, da atividade não era prover exercícios de memorização,
mas sim buscar a leitura autêntica para construir significados e, então, poder chegar às partes
menores constitutivas das palavras, e não o contrário.
Nesse sentido, diferentemente dos métodos sintéticos, que vão das "partes" para o "todo", os
métodos analíticos partem do "todo" para as "partes", pois representam uma "maneira de ensinar
introdução à leitura que começa com unidades completas de linguagem e mais adiante as divide
em palavras ou as palavras em sons";' uma maneira de "ensinar introdução à leitura começando
por partes ou elementos das palavras, tais como letras, sons ou sílabas, para depois combiná-los
em palavras': 2
Os métodos analíticos contêm alguns insights importantes sobre a natureza da leitura. Isso
porque, quando lemos algo que possui significado, lemos palavras inteiras ou mesmo grupos de
palavras, não sons de letras. Se fôssemos pronunciar isoladamente cada letra enquanto lemos, o
processo de leitura seria dolorosamente lento, e o sentido, se não impossível, difícil de construir.
Nós nos tornamos leitores fluentes não porque lemos cada palavra laboriosamente, mas porque
seguimos o fluxo da linguagem, pulando os detalhes alfabéticos. É por isso que os professores no
passado costumavam dizer aos jovens leitores que não mexessem os lábios durante a leitura silenciosa,
e é por isso que, quando revisamos o que escrevemos, costumamos ter dificuldade para perceber
os erros de digitação.
Um tipo de método analítico é o método "global". Ele destaca que o aluno aprende e desenvolve
sua linguagem em seu aspecto global, uma vez que a leitura seria uma atividade de interpretação
de ideias. Segundo Kenneth Goodman, em vez de "habilidades para atacar palavras, o programa
deve ser projetado para construir estratégias de compreensão. Crianças aprendendo a ler devem
sempre ver as palavras como partes de unidades maiores e significativas". 3 O método fônico,
de acordo com Goodman, é complicado demais para ser ensinado porque suas regras são muitas.
E, ainda que aprendamos as regras, muitas delas nunca se aplicam de forma con'§istente e orga-
nizada.
Para o autor, as regras e convenções que dizem respeito à relação fonema e grafema podem
ser mais bem aprendidas no próprio "curso de aprendizagem da leitura e da escrita, e não como
Consiste em sintetizar sequências, dados ou átomos campo- Parte das sequências completas, sendo a tarefa analisá -las e
nentes. O método de recitação do bê-á-bá encaixa-se nesse ide ntificar os átomos.
tipo.
Mostra prime iro pa lavras ou frases e ensi na a iden tificar
Mostra primeiro as letras, ens ina suas correspondências com nelas as unidades componentes, as letras e os sons que lhes
sons e depois a co mpor com elas as sílabas e palavras. correspondem.
Quad ro 5.2 : Adaptado de Mi riam Lem le. Guia teórico do alfabetizador. São Pa ul o, Atica, 1998, pp. 42 -43 .
Hoje a turma de Vítor está aprendendo caligrafia. O que, no entanto, difere essa aula de uma
"tradicional" é que isso não é formalmente trabalhado. Os alunos da professora Joana não têm que
copiar várias vezes as letras do alfabeto, começando com as linhas de cima para baixo, em seus
cadernos, para, então, escrever repetidas vezes frases sem sentido.* Ao contrário, Joana tem muitas
coisas na sua sala de aula para que os alunos possam ver e sentir as letras, como caixas cheias de
letras do alfabeto, que podem ser usadas para formar palavras. Tem também fotos de animais, com
nomes que começam com uma letra em particular e que tomam forma através das próprias letras,
como, por exemplo, uma serpente na forma da letra "s".
■
,-1!1·.• Veja: "Maria Montessori".
l!l .
Todos os dias, a professa Joana concede em suas aulas um tempo para os alunos desenharem e
sempre lhes diz para usar palavras que identifiquem seus desenhos. Vítor acha que as identificações
de algumas crianças são muito difíceis de ler. Porém, de vez em quando, a professora Joana diz a
seus alunos:
- Sua letra está ótima!
Ou então:
- Que letra é essa aqui? Vamos fazer essa letra ainda mais bonita?
4 Idem, 1993, p. 50 .
5 Idem, ibidem.
* No texto original, os autores usam o famoso pangrama "Toe quick brown fox jumps over the lazy dog" ("A rápida
raposa marrom pula sobre o cachorro preguiçoso"). Essa frase é bastante conhecida em inglês porque tem apenas
35 letras, sendo, portanto, a menor sentença em que todo o alfabeto da língua inglesa é usado. (N. da T.)
104 1 LETRAMENTOS
Processo de escrita: Pesquisas, rascunhos, conversas e publicação de textos
- Hoje, vamos escrever histórias e cada um vai escolher o seu próprio assunto. Eu quero que vocês
escrevam sobre coisas que realmente gostem, que realmente signifiquem algo para vocês - diz a
professora Joana.
Por mais inteligente que seja, Vitor acha difícil esse negócio de escrever sobre algo de que
realmente goste. Nunca fez isso na sua escola anterior. - Nossa, o que vou escrever? - ele pensa.
Depois de um pouco de agonia e de estímulos de alguns colegas, ele decide escrever sobre o
jogo Minecraft.
- Levaremos algumas semanas para escrever nossas histórias - diz a professora Joana. Isso porque
ela faz uso de uma abordagem que trabalha com um processo de escrita qenvolvendo pesquisas,
rascunhos, conversas e publicação de textos, seguindo alguns passos:
- Passo 1: vamos pensar nas nossas ideias, fazer algumas pesquisas, recolher algumas anotações;
passo 2: vamos escrever rascunhos; passo 3: vamos falar sobre nossos rascunhos; por fim, passo 4:
vamos publicar nosso trabalho finalizado em um pequeno livro que criaremos apenas para essas
histórias.
- Isso vai dar muito trabalho - Vitor pensa consigo mesmo. - Na escola que estudei antes, era
muito mais rápido do que isso para escrever uma história.
Vitor e seus colegas de turma, então, começam a trabalhar. A sala de aula se torna um espaço
de bastante conversa entre os alunos.
- O que você vai escrever? - Vitor pergunta ao colega do outro lado do pequeno grupo de mesas.
- Não sei - ele responde.
A professora Joana começa, então, a andar pela sala de aula para observar as crianças, que
iniciam seus projetos de escrita. Notando que um dos alunos (Jorge) está olhando pela janela, Joana
lhe pergunta:
- Então, o que você gostaria de escrever, Jorge? Me diga algo que o deixou surpreso ou feliz nos
últimos dias.
Ele pensa durante algum tempo e lhe responde:
- Meu time ganhou um jogo no domingo.
- Aí está, você pode escrever sobre a grande vitória de seu time - sugere a professora.
Enquanto isso, o texto de Vitor sobre o Minecraft começa a tomar forma. Ele diz:
- O Minecraft é muito legal porque pode construir um monte de lugar com blocos.
Em seguida, ele escreve algumas coisas sobre o jogo para poder se lembrar posteriormente: -
Joga sozinho, joga com outras pessoas com o avatar, pode faze blocos de madeira, mas tem que corta
árvore, de pedra, daí pega blocos do chão, pode faze fe ramentas de madeira, de ferro e de ouro.
Embora seu primeiro rascunho pareça bastante confuso, a professora Joana lhe diz:
.-ef
- Não se preocupe com isso.
Jorge parou novamente de escrever. Está preso em uma palavra. Então, pergunta:
- Como é que escreve ''empurrao"?
- Não se preocupe com isso agora, Jorge. Apenas escreva a palavra como você acha que é. Nós
vamos depois ver como se escrevem as palavras e como a gente usa a pontuação direitinho - responde
Joana.
il
l!l .
Veja: "Dwyer sobre escrita de conferência de processos".
Vítor, que ficou com o texto de Jorge, lê sobre os "impuroes" que o colega tomou durante a
partida de futebol. Não é uma história interessante para Vítor, porque ele não gosta muito de futebol.
Ele também não sabe a ortografia correta de "impuroes", mas, depois de pesquisar em um dicionário,
corrige a palavra e a adiciona à sua lista de ortografia pessoal.
Enquanto isso, a professora Joana anda pela sala, conversando com os alunos, um a um, sobre
a publicação do material.
- Vocês verificaram suas informações, a organização, a ortografia e a pontuação? - pergunta. -
Lembrem-se de que a melhor maneira de fazer isso é ler a sua história em voz alta para vocês mesmos
para ver se ela faz sentido para vocês. Usem também o dicionário para verificar qualquer palavra que
vocês não tenham certeza.
O barulho na sala de aula fica mais alto. Então, para a parte mais divertida do processo de escrita,
Vítor pensa: - Vamos fazer o livro!
Todo mundo transforma sua hístória em um pequeno livro, com uma capa de papelão bem
ilustrada e grampeada na borda. Foram algumas semanas de trabalho duro, mas valeu a pena, pensa
Vítor.
Leitura autodirigida
Todavia, na aula da professora Joana, existe um centro de leitura em um canto da sala, onde há
vários livros. Como primeira atividade de leitura do ano, a professora pede a cada aluno de cada
um dos grupos que escolha um livro. Depois disso, os alunos passam a receber um novo livro
sempre que tiverem concluído o livro anterior, dependendo de quanto tempo levaram para lê-lo.
- Vocês escolhem os livros. Eu dividi os livros em fácil, médio e difícil. Escolha o tipo de livro ou
o tipo de história que vocês gostariam de ler.
106 1 LETRAMENTOS
De vez em quando, a professora Joana pede a um aluno que comente com o grupo, ou mesmo
com a turma toda, sobre um livro de que tenha gostado particularmente.
A professora Joana lida com uma abordagem de ensino que surgiu na virada do século XX que
chamamos de "pedagogia autênticà'. Também é comumente chamada de "pedagogia progressistà',
mas escolhemos a palavra "autênticà' porque ela capta o sentido de naturalidade e relevância com
o qual esse tipo de perspectiva tentou se distinguir da abordagem didática (ver capítulo anterior).
John Dewey, nos Estados Unidos, foi um dos expoentes inovadores dessa nova filosofia do currículo
e, embora suas ideias possam ser tomadas como típicas de todo o movimento, ele certamente não
estava sozinho. Outros educadores, incluindo Maria Montessori na Itália, apresentavam uma crítica
amplamente similar à abordagem didática.
Pode-se dizer que as aulas de leitura e escrita da professora Joana são organizadas nesse espírito.
Em vez de conceitos abstratos e formais, em vez de uma disciplina para aprender as regras de uso
correto da língua, em vez de ter todos os alunos na mesma página ao mesmo tempo, o foco da
abordagem autêntica está nos significados autênticos, com a escolha de tópicos que realmente
interessam e envolvem os alunos, que são tratados como escritores, leitores e pensadores ativos,
criativos e livres.
Assim como a abordagem didática foi um produto de seu tempo e lugar, e, nesse sentido, um
produto cultural, a abordagem autêntica também o foi. Desde seu início, refletiu uma visão emergente
do tipo de educação apropriada para a sociedade moderna do século XX, em cujo coração estava
uma ideologia de mudança e progresso. O livro seminal de John Dewey A escola e a sociedade 6 abre
com um capítulo intitulado ''A escola e o progresso social", baseado em uma palestra proferida por
Dewey em 1899. Um aspecto desse progresso era celebrar o domínio da natureza pela moderna
sociedade tecnológica:
[A terra] é o grande campo de cultivo, a grande mina, a grande fonte de calor luz e eletricidade. E a grande
paisagem onde alternam os oceanos, os rios, as montanhas e as planícies de que toda a nossa agricultura
e atividade mineira de exploração florestal, todas as nossas entidades de fabrico e distribuição, não
consistem senão em elementos e fatores parciais. É através de ocupações determinadas por este meio
ambiente que a humanidade tem feito os seus progressos históricos e políticos. É através dessas ocupações
que a interpretação intelectual e emocional da natureza tem vindo a ser desenvolvida. É através daquilo
que fazemos no mundo e com o mundo que lemos o seu significado e avaliamos o seu valor. 7
Essa visão de mundo teve implicações importantes para a pedagogia escolar:Í sso significava
que havia um propósito cultural singular no currículo, que poderia ser atribuído a uma confiança
no progresso inevitável da sociedade industrial moderna. Por essa razão, Dewey centrou-se em
atividades práticas e experienciais, em vez da abordagem didática livresca. Contudo, como destaca
o próprio autor, na instituição escolar, essas atividades não devem se reduzir a meros "expedientes
à imposição de cima para baixo, opõem-se a expressão e o cultivo da individualidade; à disciplina externa,
opõe-se a atividade livre; a aprender por livros e professores, aprender por experiência; à aquisição por
exercício e treino de habilidades e técnicas isoladas, a sua aquisição como meios para atingir fins que
respondem a apelos diretos e vitais do aluno; à preparação para um futuro mais ou menos remoto, opõe-
-se aproveitar-se ao máximo das oportunidades do presente; a fins e conhecimentos estáticos, opõe-se a
tomada de contato com um mundo em mudança.'º
Dewey também es ava preocupado com a ideia de que um currículo didático tradicional
fosse aquele que impusesse "padrões, matérias de estudo e métodos de adultos sobre os que
estão ainda crescendo lentamente para a maturidade". Segundo o autor, esse tipo de currículo
fora aplicado por pura necessidade, mas seu conteúdo, em sua natureza, estava além do alcance
da experiência que os jovens aprendizes possuíam, e, por ser-lhes imposto, inseria-se em uma
pedagogia que era nada menos do que brutal e que estava prestes a ser vista como sem sentido
pelos alunos.
Figura 5.2: Frontispício de The Chi/d Centered Schoo/, texto escrito por colegas de John Dewey. À esquerda: .ef
"Liberdade! Iniciativa do aluno! Atividade! Uma vida de feliz intimidade - esse é o ambiente da nova escola".
À direita: "Olhos para frente! Braços cruzados! Sentem-se quietos! Prestem atenção!
Contexto de perguntas e respostas - esse era o regime do ouvir".
8 Idem, p. 28.
9 Idem , ibidem.
10 Idem, 1976 [1938], pp. 6-7.
108 J LETRAMENTOS
Aorganização do currículo de letramento: Pedagogia de processos
e crescimento da linguagem natural
Aprendizagem natural
Dewey expressou sua visão alternativa através da metáfora do crescimento orgânico: "dê tempo
à natureza para trabalhar". Isso exigiria uma transformação dos currículos e das salas de aula e iria
à raiz da maneira como o conhecimento é apropriado, até mesmo a ponto de questionar o status
dos próprios fatos.
Em vez de ser um receptor passivo de fatos, na pedagogia de Dewey, a criança assumiria o papel
de questionadora e experimentadora, por meio, então, de uma abordagem mais autêntica, que se
propusesse a remediar três males que, na sua visão, marcariam um currículo na abordagem didática:
o primeiro seria a falta de conexão orgânica com a vida da criança. Sem tal conexão, o conhecimento
e a aprendizagem seriam puramente formais e simbólicos. Dewey não negava que o símbolo era
importante; para o autor, tratar-se-ia de um produto da realidade passada e uma ferramenta para
exploração. No entanto, era preciso que simbolizasse de forma ativa e significativa, constituindo-se,
desse modo, em algo significativo para o aprendiz. Fatos linguísticos da gramática, por exemplo,
teriam que ter um 1-ignificado e um propósito evidentes, caso contrário não permaneceriam mais
do que meros símbolos, mortos e estéreis.
O segundo mal seria o fato de que o ensino tradicional didático, segundo Dewey, não daria
motivos para os alunos se tornarem motivados. Um fim que é próprio da criança a leva a querer
possuir os meios para sua realização. Nesse sentido, o currículo seria mais bem-sucedido em
condições de equilíbrio de demanda mental e suprimento material.
Em terceiro lugar, ele argumentava que um método típico da abordagem didática, para simplificar
as coisas e torná-las lógicas, teria removido a natureza mais complexa e instigante da realidade,
uma vez que o conhecimento seria apresentado como memorização, não como racionalização.
Nesse sentido, Dewey apontava que "a criança não obtém a vantagem nem da formulação lógica
adulta, nem de suas próprias competências nativas de apreensão e reação". 11
Dewey achava que havia uma política na abordagem didática na qual ele não podia se inscrever,
pois, segundo o autor, constituiria um currículo promovedor das virtudes negativas da obediência
e da submissão. Era, então, mais "adequado a uma sociedade autocráticà' do que a uma sociedade
na qual a responsabilidade pela própria conduta e pela conduta do governo recaísse sobre os
cidadãos. Isso teve implicações que influenciaram a micropolítica da sala de aula. Nesse sentido,
"a função do professor deve mudar de um cicerone e ditador para a de um observador e ajudante". 12
Contemporânea de Dewey, Maria Montessori (1870-1952) foi a primeira mulher médica da
Itália. Ela ajudou a estabelecer a Casa dei Bambini, em 1907, uma pré-escola em""'á rea pobre de
Roma, projetada para receber crianças cujos pais trabalhavam fora. Montessori acreditava que o
principal papel dos educadores era ajudar as crianças a ensinarem a si próprias em um ambiente
livre, mas estruturado, e que a separação entre escola e casa (ou comunidade) deveria ser reduzida
o máximo possível.
li·,
l!l
Veja: "Parâmetros Curriculares Montessorianos para as Classes do 1 º Segmento do Ensino
. ::, Fundamental - 6 a
Aprendendo a significar
12 anos".
A turma da professora Joana agora está trabalhando com a turma de Vítor um conjunto de
atividades integradas sobre ciências que ela planejou, sem usar um livro didático. Esse conjunto de
atividades prevê um período de quatro semanas para ser concluído, no qual serão muito trabalhadas
a leitura e a escrita. A combinação de atividades de leitura e escrita e de ciências dá aos alunos mais
tempo para realizar o trabalho.
- Agora, vamos estudar ecossistemas. Eu quero que vocês escolham um ecossistema para estudar
- floresta, mar, lago, deserto, o que lhes interessar. Na verdade, se vocês quiserem, podem fazer esse
trabalho em grupos, trabalhando em um ecossistema em que todos estejam interessados. Dessa forma,
vocês podem compartilhar recursos e ajudar uns aos outros com os relatórios que vão fazer sobre os
ecossistemas.
- Vocês vão precisar pegar livros da biblioteca, pesquisar na internet e anotar todas as fontes que
usarem. Vocês também vão precisar fazer um desenho que mostre como funciona seu ecossistema.
Então, vocês vão fazer um projeto descrevendo o funcionamento do ecossistema escolhido. Lembrem-
-se, é um sistema em que as coisas estão interligadas. É por isso que chamamos de ecossistema. Durante
todo o tempo de projeto, vocês vão ter que ler para escrever, escrevendo sobre o que estão lendo e lendo
os textos uns dos outros. E tudo isso para poder fazer um bom projeto de ciência!
- Nossa, é muito trabalho - pensa Vítor. - Como isso vai se juntar para a gente entender o que
realmente acontece em um lago? [ecossistema escolhido por Vítor]
No final do trabalho, contudo, ele se deu conta de que aprendera a pesquisar e a descobrir
informações. Ele também pôde, de fato, perceber, por meio das aulas da professora Joana, o quanto
um relatório científico era diferente do relato que havia escrito em aulas anterioiÍs sobre suas
experiências com o jogo Minecraft.
Além disso, gostou muito de apresentar seu projeto à turma na forma de um pôster, pois Joana
havia colocado todos os cartazes na parede da sala de aula, para que os demais projetos concluídos
pudessem ser vistos e apresentados, mostrando que, apesar de descreverem ecossistemas distintos,
os modelos que os alunos haviam desenhado pareciam bastante semelhantes.
110 1 LETRAMENTOS
Por que aprender desse modo? Para responder a essa pergunta, recorremos ao termo cunhado
por Kenneth Goodman: "método global",* que defende que o texto permanece significativo e
intencional apenas quando é considerado em seu nível mais amplo (global). A esse respeito,
Goodman usa como analogia o modo como as crianças aprendem a língua oral: um processo de
desenvolvimento na interação significativa de textos orais entre elas e os adultos. Segundo o autor,
como as línguas escritas e orais apresentam todas as mesmas características básicas, as crianças
devem aprender a usar a língua escrita através de um ensino que trabalhe de maneira diretamente
análoga ao modo "natural" como elas aprendem a língua oral. Para Goodman, imersão e muita
leitura e escrita ativas, que estabeleçam relação com os interesses, a experiência e as intenções da
criança, são as melhores maneiras de aprender. Nesse sentido, a aprendizagem deve ser centrada
na relevância, no propósito, no respeito, no significado e no poder, com o aluno estando no controle
dos significados, sentindo algum grau de poder como construtor de conhecimento, vendo-se
envolvido em um trabalho com propósito definido e sendo respeitado por sua contribuição. 14
Um currículo voltado ao método global, como consequência, baseia-se em uma gama de "recursos
autênticos", na experiência do aluno e em suas intenções de comunicação, em vez de fundamentar-se
em fatos formais linguísticos a serem ingeridos. É assim que toda uma abordagem relacionada ao
método global pode ser relevante, na medida em que incentiva o aluno a usar a língua para seus
próprios propósitos, uma vez que esse método não se centra na língua in abstracto, mas no significado
que a criança realmente quer comunicar, respeitando sua individualidade e suas diferentes experiências
de vida. Assim, ao dar aos alunos um senso de controle e apropriação de sua própria língua, em
termos políticos mais amplos, dá-se também uma noção de seu poder potencial como atores sociais.
1!11r;;~r-.~
7-, Veja: "Método global".
r.:
l!Jirj ,J ~
Vitor, então, explica seu processo de leitura e escrita:
- Na primeira vez que li sobre o ciclo de vida de um lago de água doce, eu procurei em uma
enciclopédia. Daí eu fiz uma lista de tópicos. Fiquei pensando: Existe mais um tópico que eu devia
colocar? Agora eu tenho seis: plantas, animais, cadeia alimentar, fotossíntese, nutrientes, poluição.
- Será que é demais? Mas eu tenho muita informação, então agora acho que está tudo bem. Vou
procurar mais dois livros antes de começar meu relatório, porque acho que preciso de mais informações.
- Além disso, tem uma lagoa no final da rua. Tenho que me lembrar das coisas que vi lá.
Vitor acha que tem uma colcha de retalhos de anotações, desenhos e ideias. Gradualmente,
começa a reunir seu trabalho em um relatório científico. No terceiro esboço que faz, já há partes
que ficaram claras:
* O termo original, em inglês, é whole language, que se constitui em um método analítico que, em português, foi tradu-
zido como "método global". (N. da T.)
14 Goodman, 2005.
Donald Graves e Donald Murray são grandes referências acerca da noção de "escrita como
processo" que, em contraste com as tradições mais antigas de ensino de escrita, argumenta Murray,
mantém o interesse e a intenção do estudante em seu núcleo. No entanto, ainda segundo esse mesmo
autor, as atribuições do professor inibem o que os alunos têm a dizer.
Nessa perspectiva da escrita como processo, a professora Joana definiu um parâmetro amplo na
turma de Vitor, por meio do conceito de ciência como "ecossistema". Além disso, ela também
propiciou a seus alunos meios através dos quais
o aluno encontra seu próprio assunto. Não é tarefa do professor legislar a verdade do aluno. É da
responsabilidade do estudante explorar o seu próprio mundo com a sua própria língua, para descobrir o
seu próprio significado. O professor apoia, mas não direciona essa expedição à própria verdade do aluno. ' 5
A esse respeito, Graves destaca que as crianças devem escolher seu próprio tópico para ganhar
um senso de propriedade. A partir desse ponto de partida, "o processo de escrita tem uma força
motriz chamada voz", com o papel do professor não sendo o de transmitir conhecimento, mas o
de aguardar para ajudar quando for necessário, enquanto a criança luta pelo controle. Como
resultado, os tópicos e informações iniciados pelos alunos são primários, não são convenções. Nesse
sentido, a escrita na sala de aula é concebida não como uma "questão de aprender e aplicar
corretamente as convenções, mas como uma série de etapas (um processo, aberto a qualquer
conteúdo): pré-escrita, rascunho, conversa, edição, publicação". 16
Gerando motivação
Gerando motivação
Contudo, a pedagogia do letramento na abordagem autêntica não deixa de ter suas limitações,
que inovações pedagógicas posteriores, como as abordagens funcional e crítica do letramento,
tentam, de alguma forma, compensar. A primeira limitação é que os pressupostos culturais subjacentes
à abordagem autêntica são frequentemente menos explícitos do que parecem. No caso de Dewey,
uma visão particular do progresso motivou seus pontos de vista sobre a aprendizagem da língua e
as práticas de leitura e escrita. Nessa visão, a diferença cultural era algo que as escolas precisavam
apagar ou, pelo menos, escamotear. Nesse sentido, Dewey destaca:
Em um país como o nosso, existe uma variedade de raças, afiliações religiosas e divisões econômicas.
Dentro da cidade moderna, apesar de sua unidade política nominal, há provavelmente muito mais
diversidade em termos de comunidades, costumes, tradições, aspirações e formas de governo ou controle
do que existia em um continente inteiro em uma época anterior. 21
Assim, como uma espécie.de "solução" necessária para essa situação, haveria "a força assimilativa
da escola pública americana". Somente através da educação pública, argumentava Dewey, "as
forças centrífugas criadas pela justaposição de diferentes grupos dentro de uma mesma unidade
política podem ser contrariadas". Por essa perspectiva, o currículo em si seria um instrumento
22
para a criação de uma nação moderna, culturalmente uniforme. A "disciplina comum busca
acostumar tudo a uma unidade de perspectiva sobre um horizonte mais amplo do que é visível
para os membros de qualquer grupo enquanto está isolado". 23 Assim, é possível notar que os
Havia algumas razões sociais bastante pragmáticas pelas quais o currículo didático não era
mais considerado apropriado na educação do século XX, posto que o mundo se tornara
tremendamente ampliado e complicado, não apenas em termos de transporte e comunicações,
mas em virtude das contínuas descobertas científicas. Era um mundo onde as coisas estavam
mudando o tempo todo, o que tornaria os fatos complicados contraproducentes. Isso só serviu
para destacar ainda mais a crescente irrelevância da abordagem didática - a "desesperança do
ensino com listas de fatos". 24
Ao situar a aprendizagem da leitura e da escrita no contexto dessas grandes mudanças históricas,
a pedagogia do letramento na abordagem autêntica representou uma transformação em relação
ao que Cook-Gumperz chama de preocupação do século XIX com o "letramento como uma
ferramenta de estabilidade social e uma ênfase emergente do século XX no letramento como
uma tecnologia fundamental sobre a qual sociedades modernas dinâmicas e em constante mudança
são construídas". 25
Nesse contexto, o currículo centrado no aluno se tornou, assim, um dos principais dispositivos
da pedagogia do letramento na abordagem autêntica. No entanto, uma das coisas que poderíamos
constatar a partir das aulas da professora Joana seria que, uma vez retirado o livro didático,
ficaria menos claro saber aonde o currículo estaria indo. Além disso, o princípio de aprendizagem
em sala de aula tenderia, nesse caso, a mudar, passando da lógica do "professor que diz coisas
aos alunos", para os alunos que tentam determinar respostas "corretas" às perguntas, adivinhando
as respostas que estão "na cabeça do professor". Nesse sentido, o jogo da aprendizagem continuaria
sendo um jogo para acertar as coisas, com a diferença de que, em vez de fornecer a resposta
certa, o professor estaria tentando levar os alunos à resposta correta por meio de perguntas.
116 1 LETRAMENTOS
participaçã~ e na atividade de aprendizagem fundamentada. No caso da aprendizagem infantil, a
perspectiva construtivista é norteada pelo desenvolvimento natural e por meio de alguns estágios,
envolvendo os processos psicológicos de assimilação de significados novos nas estruturas cognitivas
existentes ou de acomodação desses significados que exigem o ajuste das estruturas cognitivas
existentes. 26
Nas salas de aula construtivistas, os aprendizes geralmente têm a oportunidade de desempenhar
um papel ativo na determinação da área em foco, formulando perguntas e selecionando atividades
nas quais desenvolvem sua aprendizagem por meio de:
• Desafios intelectuais em que têm que "descobrir as coisas por si mesmos", usando informações
gerais ou se valendo das experiências da vida cotidiana.
• Um ambiente de imersão, com uma certa orientação do professor. Os alunos são incentivados
a interagir uns com os outros e a participar de conversas colaborativas.
• "Comunidade de prática", que se constitui por meio de confiança e de uma atmosfera de segurança
estabelecida pelos envolvidos.
• Um conteúdo culturalmente apropriado e sensível aos interesses, necessidades e origens dos
alunos. A identidade é o ponto de partida para a autoconstrução de significados.
• Contexto intrinsecamente motivador, que envolve os interesses do aluno, isto é, que faz sentido
pessoal para ele para que possa ser um construtor ativo de significados.
• Perguntas de orientação diagnósticas em que os alunos são apoiados à autoexplicação, proveniente
de sua compreensão e de seus conhecimentos prévios como ponto de partida para a aprendizagem.
Os alunos assumem, assim, um grau de propriedade e responsabilidade em seu processo de
aprendizado.
Sumário
Processos de conhecimento
Experienciando o novo
2. Localize uma fonte a partir da qual você possa ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia
do letramento na abordagem autêntica. Sua fonte pode ser um currículo sobre o método global
ou a escrita como processo. Pode ser ainda uma entrevista com um professor que acredita ou
lida com a abordagem autêntica. Escreva sua própria análise das dimensões da pedagogia do
letramento na abordagem autêntica em torno de:
a) conteúdo do conhecimento do letramento;
b) organização do currículo de letramento;
e) aprendizes praticando letramento;
d) relações sociais da aprendizagem de letramento.
Experienciando o conhecido
3. Descreva um momento de aprendizagem no qual você experimentou a pedagogia do letramento
na abordagem autêntica. Como foi esse momento? De que forma foi um momento de aprendizagem
eficaz ou ineficaz? .ef
Aplicando apropriadamente
4. Ao longo dos cinco capítulos desta seção do livro, você se envolveu com teoria e prática das
principais abordagens do letramento. Escolha um tema sobre letramento que possa ser ensinado
por meio de uma atividade que exemplifique a pedagogia do letramento na abordagem autêntica.
Escreva uma conversa hipotética entre professor e aluno no decorrer dessa atividade.
Analisando criticamente
6. Debata a proposta de Jean-Jacques Rousseau sobre as condições ideais de aprendizagem (ver
<http://newlearningonline.com/ new-learning/ chapter-2/j eanj acques -rousseau -on -emiles -
education> ).
Analisando funcionalmente
7. Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia do letramento na abordagem
autêntica seria mais e menos apropriada.
Analisando criticamente
8. Considere uma aplicação particularmente apropriada da abordagem autêntica (para um
determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
essa aplicação cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja autêntico.
Visão geral
Pedagogias do letramento na abordagem funcional têm como foco a aprendizagem dos alunos
para ler e compor os tipos de textos que lhes permitem ser bem-sucedidos na escola e participar
da sociedade. Seu objetivo é que os aprendizes entendam as razões pelas quais os textos existem e
como isso afeta a forma como são construídos. Ao contrário das pedagogias didáticas, que "quebram"
a língua em partes, a fim de trabalhar as regras fo rmais, a abordagem funcional começa com a
pergunta: "Quais são os propósitos do texto?". E, em seguida, a pergunta: "Como o texto é estruturado
para atender a esses propósitos?". A leitura e a escrita são atividades intimamente ligadas entre si,
na medida em que os alunos exploram as maneiras pelas quais diferentes tipos de textos trabalham
para construir significados diferentes no mundo.
Essa abordagem de letramento enfoca, portanto, os processos de conhecimento "analisando" e
"aplicando". Nesse sentido, a abordagem funcional fornece subsídios aos alunos para que descubram
como os textos são organizados no sentido de alcançar diferentes propósitos e para aprender como
usar esses textos em contextos da vida real a fim de lidar com significados socialmente poderosos.
Visando ilustrar como a pedagogia do letramento na abordagem funcional opera, este capítulo
explora um exemplo que trabalha com a noção de "gêneros textuais".
Gêneros Propósitos
Rece ita Ingredientes e passos necessários para preparar algum tipo de comida .
Relatório científico Documento formal no qual constam procedimentos de experiências e métodos relacionados a
pesquisas.
Quadro 6.1: Gêneros distintos, propósitos distintos.
- Hoje, turma, vamos começar a trabalhar com um dos tipos de textos escritos mais impor. ·
que usamos na escola, além de ser usado também em muitas situações em nossas vidas: o "relat
Para que usamos relatórios? - pergunta a professora Danusa.
Márcia se lembra que um dia sua mãe chegou do trabalho trazendo um relatório . Ela tam
ouviu falar sobre relatórios do governo em notícias no telejornal e sobre cientistas que escrev
relatórios descrevendo suas descobertas. Mas até aquele momento nunca havia lido um re a .
na escola.
- A maioria dos relatórios fornece informações sobre o mundo e eles podem ser usados • -
documentar e armazenar informações sobre diferentes assuntos - explica a professora. E conf
- Os relatórios classificam e descrevem coisas vivas, como plantas e animais, e coisas não i
como vulcões, tsunamis e estrelas. Eles também classificam e descrevem questões que afetam va
coisas em nossas vidas, como a forma como as pessoas organizam o governo, a escola, as tecno
Campo: Assunto ou tópico que se e por aí vai. Alguns relatórios são escritos para especialistas que trabalha
um campo especial, alguns para iniciantes, que estão apenas começando a ap
estende desde assuntos cotidianos e do
senso comum a tópicos altamente
sobre alguma coisa, e outros para pessoas com interesses e hobbies especiais. •1.
especializados, que podem envolver
vocabulário técnico e convenções vamos escrever nosso próprio relatório de informações sobre mamíferos mari
especiais ~e escrita. que eu quero que todos nós façamos.
Os estágios de um gênero
Gênero Estágios
Relatório sobre mamíferos marinhos • Classificação geral
• Descrição - aparência
• Descrição - comportamentos
• Descrição - hábitos
- Para mostrar como funcionam os relatórios, vamos primeiro trabalhar juntos um relató rios
baleias. Vamos escrever o texto juntos, a turma inteira. Vocês vão juntar as ideias para cada est
que está na lousa e depois me dizer o que escrever em cada um, e eu vou atWtar tudo no quadro.
- Mas, primeiro, vou dar a vocês alguns relatórios para ler sobre todos os tipos de baleias, inclur .
as baleias-minke. Além disso, vejam quais informações vocês podem encontrar na biblioteca ou
internet. Ao ler esses materiais, vejam cuidadosamente o tipo de informação que foi selecionad.1 ~
como ela é organizada para cada relatório.
Depois de atribuir um tempo para leitura e pesquisa, a professora Danusa reúne a turma p
a construção conjunta do relatório.
- Bem, o que sabemos agora sobre as baleias-minke? Como é a aparência delas ... ?
- As baleias são de duas cores, diz neste livro. O que vamos colocar aqui?
O aluno que está sentado ao lado de Márcia é o primeiro a quem Danusa pede uma contribuição.
Ele tende a se desconcentrar nas aulas, então, buscar envolvê-lo logo no começo da atividade parece
uma boa ideia.
- Mas elas só têm uma cor - diz o aluno. Ele está lendo sobre esse assunto e já aprendeu algumas
coisas sobre baleias que não conhecia antes.
- O que é isso?
- Cinza. Cinza e azul.
Mais alunos entram em cena nesse momento para tentar acertar a mistura de cores.
- Cinza -azulado?
- Sim, é cinza, mas tem azul também - diz um outro aluno.
- Está bem - a professora escreve na lousa: "As baleias-minke são cinza-azuladas".
- Sim?
- Professora, vamos ter que saber como a baleia-minke come? - O aluno ao lado de Márcia parece
estar particularmente interessado nisso.
- Vamos ter sim. Mas em que parte do relatório? - pergunta a professora.
- Comportamentos - respondem alguns alunos em coro.
- Sim. E o que torna as baleias-minke diferentes?
- Elas têm barbas em vez de dentes - Márcia finalmente tem a chance de responder a uma das
perguntas da professora.
- Muito bem, as barbatanas são usadas no lugar dos dentes e ajudam as baleias a filtrar a comida
da água - diz a professora. E continua com uma outra pergunta:
- O que mais sabemos sobre essas baleias?
- Elas são pequenas - diz um dos alunos.
- Isso mesmo. Aliás, um outro nome para a baleia-minke é baleia-anã - diz Danusa.
- E até quantos metros e quantos quilos elas podem chegar?
- 10 metros e... é até 9 . 000 kg - responde uma aluna. .ef
Depois de várias perguntas, a professora Danusa exp õe para os alunos um relatório consultado
do Guia ilustrado de Mamíferos Marinhos do Brasil.1 Em seguida, pergunta:
- Vocês podem ver como é a estrutura desse relatório? Começamos com o nome I Relatório: Um gênero text ual que
científico e os nomes populares da baleia, distribuição, habitat, as características fo rn ece info rm ação.
gerais e como reconhecer esse animal.
124 1 LETRAMENTOS
Baleia-minke
Nome da espécie: Ba/aenoptera acutorostrata Lacépéde, 1804.
Distribuição:
Habitat:
baleia-anã, bali ena minke enana, rorcual menor, minke whale,
piked whale, dwarf minke whale.
pode ocorrer em todos os oceanos.
costeiro e oceânico.
W4M
Figu ra 6.2: Ba leia-minke: Guia ilustrado de Mamíferos Marinhos do Brasil.
- Eu aprendi muitas coisas interessantes sobre as baleias ao escrever este relatório - Nhfrcia pensa
consigo mesma.
A professora Danusa continua:
- Agora vocês vão escrever os seus relatórios prestando atenção nos materiais que lemos e nas
discussões que fizemos. Eu quero que vocês escolham um mamífero marinho diferente e construam
independentemente o seu próprio texto.
Seguindo o modelo proposto pela professora, Márcia escreve um relatório sobre os golfinhos,
uma de suas espécies favoritas.
e parágrafos.
Essa abordagem funcional toma como base a linguística sistêmico-funcional, de Michael Halliday. 2
O que é comum àqueles que trabalham com essa abordagem é a ideia de que o gênero constitui
uma categoria que descreve a relação entre o propósito social do texto e a estrutura da língua. Nesse
sentido, ao se engajarem em práticas de letramento, os estudantes precisam analisar criticamente
os diferentes propósitos sociais que informam os padrões de regularidade na língua; em outras
palavras, os "ondes" e os "porquês" das convenções textuais. 3
■
· , Veja: "Trecho do livro Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa, de
l!l . Cristiane Fuzer e Sara Regina Scotta Cabral".
126 1 LETRAMENTOS
Aorganização do currículo de letramento: Lendo modelos de gênero
e escrevendo dentro de estruturas genéricas
Localizando a abordagem funcional
Aideia de "gênero"
Para a pedagogia do letramento na abordagem funcional, o "gênero" constitui o elo para conectar
as formas relativamente estáveis de tipos textuais que variam de acordo com suas intenções sociais.
Nesse sentido, textos são diferentes porque fazem coisas diferentes; por isso, qualquer pedagogia
de letramento deve se preocupar não apenas com as formalidades relativas a como os textos
funcionam, mas também com a realidade social viva dos textos em uso, uma vez que o funcionamento
de um texto está relacionado às razões de sua existência (para que ele serve?). Assim, gêneros são
processos sociais 6 que se materializam como textos uniformizados de maneiras razoavelmente
previsíveis, segundo padrões de interação social em uma determinada cultura.
Por essa perspectiva, gêneros são intervenções textuais na sociedade, pois não são simplesmente
criados por indivíduos no momento de sua enunciação; representam padrões familiares de significado,
criados socialmente para propósitos comunicativos específicos. Além disso, diferentes gêneros
podem dar a seus usuários acesso a certos domínios de ação e interação social, espaços particulares
de influência e poder social. Tomemos, como exemplo, a "língua'' do advogado, do jogador de
xadrez ou do cientista. Sabemos que esses são domínios sociais dos quais muitas pessoas estão
excluídas, e esse padrão de exclusão social é marcado pela língua usada em cada ambiente. Aprender
novos gêneros e expandir a gama de gêneros que podemos usar nos dá o poder de escolha e o
potencial linguístico de lidar com novos domínios de atividade e poder social. Não se trata de
substituir a língua e os gêneros que aprendemos nas comunidades às quais pertencemos; trata-se,
pois, de uma questão de expandir nossas capacidades e, assim, nossas oportunidades sociais, para
que possamos escolher dentre uma gama mais ampla de ação social, por meio de mais opções de
gêneros textuais.
No mundo fora da escola, a imersão na prática social de um gênero às vezes é suficiente para
"entender sua língua", por assim dizer, embora haja obviamente outras barreiras institucionais que
ainda podem tornar isso impossível, ou quase impossível. Isso não implica afirmar que os usuários
da língua precisem estar significativamente conscientes do "como" a atividade funciona do ponto
de vista linguístico, mesmo que estejam amplamente cientes do "porquê" social de um determinado
discurso em uso. Nesse sentido, não é necessário saber sobre a língua para poder usá-la, isto é,
conhecer suas características linguísticas para poder usar socialmente o texto e perceber os seus
potenciais "porquês".
No entanto, se, por um lado, a escola é o mais significativo de todos os locais de potencial
mobilidade social, por outro, o papel social (e as limitações inerentes) da ''ê'scolarização
institucionalizada afasta a língua dessa condição usual. Em termos de linguagem, a escolarização
tem o potencial de preparar os alunos para usar uma variedade de gêneros com uma ampla gama
de possíveis aplicações sociais. No entanto, isso não pode ser feito apenas por imersão, tampouco
ser considerado como um uso eficiente de recursos.
128 1 LETRAMENTOS
essa concepção, a escola é um lugar bastante peculiar, porque sua missão é peculiar, assim
como o são as formas discursivas ou as formas como os textos falam aos alunos, já que a escola é,
ao mesmo tempo, um refletor do mundo exterior e discursivamente bastante diferente dele. Como
precisa concentrar o mundo externo nas generalizações que compõem o conhecimento escolar, a
escola é epistemológica (a forma como ela conhece) e discursivamente (a forma como comunica)
diferente da maior parte da vida cotidiana no mundo externo. Por isso, na escola, faz sentido, por
exemplo, usar conceitos generalizados e abstrações que podem ser transferidos para muitos contextos,
em vez de apenas "pegar as coisas" por imersão.
Ciências Relata r Fornece informações estrutu radas sobre o mundo natu ral, com
base em informações ou observações.
Língua po rtug uesa Narrar Conta uma história, com uma orientação para personag ens e
cenários, uma complicação que é o ponto da história e uma re-
solução que encerra a hist ória.
Em uma outra aula, a professora Danusa traz para uma de suas turmas um texto de divulgação
científica publicado na internet.7 Ela diz a seus alunos:
- Vocês vão ler este texto que fala sobre o impacto do aquecimento global sobre a Floresta Amazônica.
Eu quero que leiam com atenção e vejam como é dividido. (Quadro 6.5)
Os alunos, então, discutem em grupos o texto e fazem algumas anotações conjuntas sobre sua
estrutura esquemática. Depois de um certo tempo, a professora Danusa volta a interpelá-los:
- Podemos notar que há características que fazem parte da estrutura desse gênero que são comuns
a outros textos científicos. O que vocês podem me dizer sobre isso?
Um dos alunos responde em nome do seu grupo:
- Então, professora, a gente viu que o texto é sobre um projeto, o Projeto AmazonFACE, que quer
"entender como o aumento do CO atmosférico afeta a Floresta Amazônica, a biodiversidade que ela
2
130 1 LETRAMENTOS
floresta de absorver o CO 2 lançado na atmosfera pelas atividades humanas. Então, o texto está
mostrando que pode contribuir para melhorar a região amaz ônica em relação ao aquecimento global.
- Por último, vocês também notaram que esse tipo de tex to é bem formal. Quer dizer, tem muitas
palavras técnicas e também não usamos a primeira pessoa do singular ("eu"). Por quê? Porque em
um texto científico não costumamos colocar nossas opiniões pessoais, subjetivas, pois é fundamental
usar conceitos científicos objetivos.
Oque é a pesquisa?
As rápidas mudanças do clima do planeta, causadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis e pelo desmatamento,
podem representar uma séria ameaça às florestas da Bacia Amazônica. Apesar de o impacto do aquecimento global sobre a flores-
ta tropical ser desconhecido, já é possível prever temperaturas mais elevadas e secas prolongadas para a região, que poderão
acarretar a diminuição da biomassa florestal.
A falta de conhecimento sobre os efeitos do aumento de dióxido de carbon o (CO2) na atmosfera pode ser superada por meio de
pesquisas a longo prazo que façam avaliações, locais e globais, da vulnerabil idade dos ecossistemas e que proponham intervenções
as quais garantam o futuro da floresta tropical. Afinal, a Floresta Amazônica sobreviverá às secas prolongadas que virão com o
aquecimento global?
Para encontrar essa resposta, David Montenegro Lapola, da Universidade Est adual de Campinas (Unicamp), lidera uma equipe de
pesquisadores que desenvolverá o projeto AmazonFACE para entender como o aumento do CO2 atmosférico afeta a Floresta
Amazônica, a biodiversidade que ela abriga e os serviços ambientais que ela provê. Os pesquisadores acreditam que uma maior
quantidade de CO2 na atmosfera pode beneficiar a floresta porque as árvores intensificam a fotossíntese. Além disso, quanto mais
CO2 na atmosfera, menos os estômatos precisam abrir para capturá-lo durante a fotossíntese. Com menos estômatos abertos, a
planta perde menos água por transpiração. A perda de biomassa decorrente das secas prolongadas seria compensada pela inten-
sificação de fotossíntese e, consequentemente, maior crescimento das árvores e menor perda de água pelas folhas. O CO2, em alta
concentração, seria como um fertilizante para a floresta. Se comprovada essa hipótese, os pesquisadores terão uma visão mais
otimista dos futuros cenários de mudanças climáticas, sempre catastróficos. Todavia, um resultado contrário indicará a susceptibi-
lidade da floresta frente ao aumento de temperatura e à maior variação anua l de chuvas, eventos climáticos já previstos por muitos
pesquisadores.
A implantação da primeira área de estudo será em 2017. Chamado pelos pesquisadores de experimento piloto, ele será importante
para avaliar as dificuldades envolvidas na construção das torres, no transporte e no fornecimento de grande quantidade de CO2 lí-
quido em uma área relativamente afastada de centros urbanos. Outra questão importante que merecerá a atenção dos pesquisa-
dores é a altura das árvores, que poderá dificultar o acesso para a realização das medições que precisam ser feitas bem próximas
Pesquisas semelhantes ao AmazonFACE, que determinaram a resposta de florestas ao aumento de CO2 atmosférico, já foram rea-
lizadas em regiões temperadas do planeta. Contudo, será a primeira vez que esse tipo de pesquisa avaliará a resposta de florestas
tropicais.
Se o efeito de fertilização da floresta em decorrência da aspersão de CO2 não for significativo como se espera, provavelmente as
florestas tropicais e sua biodiversidade estarão, de fato, vulneráveis ao aquecimento global. Se a savanização ocorrer em larga es-
cala na Amazônia, trará implicações ambientais e econôm icas importantes para a região que sofrerá com a mudança no ciclo hi-
drológico, regional e global, menor produtividade agrícola e menor produção de energia hidroelétrica.
Os resultados alcançados com o projeto poderão subsidiar a elaboração de políticas de desenvolvimento para a região amazônica
em relação ao aquecimento gtobal, uma vez que revelarão a capacidade da floresta de absorver o CO2 lançado na atmosfera pelas
atividades humanas. São também relevantes para a definição de ações de conservação e uso sustentável da biodiversidade frente
aos cenários futuros de mudanças climáticas, podendo impulsionar o Brasil ao desenvolvimento de pesquisas ecológico-ambientais
mais complexas e abrangentes.
132 1 LETRAMENTOS
para orientar o leitor. Qualquer parte em que o escritor tenta destacar o significado dos eventos em
um estágio específico é uma avaliação. Na parte final da história, há algum tipo de estágio de resolução,
com os problemas que foram estabelecidos na parte anterior do texto sendo resolvidos para melhor
ou para pior. Então, aqui estão os estágios de uma narrativa: introdução, que é a apresentação da
ação que vai ser desenvolvida. Nessa parte inicial, há uma ambientação do local, do tempo, dos
personagens e do que está acontecendo; em seguida vem a complicação, isto é, o desenvolvimento da
ação do conto. Nessa parte, ocorre a maioria dos diálogos dos personagens e é apresentado um conflito;
vem, então, o clímax, que é o momento culminante da narrativa, aquele de maior tensão, no qual o
conflito atinge seu ponto máximo; e.finalmente o desfecho, que apresenta uma solução para o conflito,
muitas vezes surpreendente.
Depois de apresentar as características do gênero, Danusa solicita que cada aluno produza um
conto. Ao longo da elaboração de seus textos, ela os auxilia, retomando e exemplificando as partes
e características do conto, buscando, assim, instalar os andaimes necessários para que seus aprendizes
construam os textos de forma independente.
conto maravilhoso;
fábula;
NARRAR lenda;
Cultura literária ficcional narrativa de aventura;
Mimesis da ação através da criação de narrativa de ficção científica;
intriga. narrativa de enigma;
nove la fantástica;
conto parodiado.
texto de opinião;
diálogo argumentativo;
ARGUMENTAR carta do leitor;
Discussão de problemas sociais
carta de reclamação;
controversos
Sustentação, refutação e negociação de deliberação informal;
tomadas de posição. debate regrado;
discurso de defesa (adv.);
discurso de acusação (adv.).
seminário;
conferência;
artigo ou verbete de enciclopédia;
EXPOR
entrevista de especialista;
Transmissão e construção de saberes tomada de notas;
Apresentação textual de diferentes formas
resumo de textos "expositivos" ou explica-
dos saberes.
tivas;
relatório científico;
relato de experiência científica.
instruções de montagem;
receita;
DESCREVER AÇÕES
regulamento;
1nstruções e prescrições
regras de jogo;
Regulação mútua de comportamentos.
instruções de uso;
instruções.
Quadro 6.6: Agrupamento de gêneros.•
.ef
Aprendendo a usar textos socialmente poderosos
Vimos as fases de aprendizagem de leitura e escrita na prática, a partir dos exemplos apresentados
neste capítulo, divididas em três: a primeira fase é a de modelagem, na qual os alunos são expostos
·a vários textos que exemplificam o gênero em questão. Se, por exemplo, a disciplina escolar é
ciências e o assunto gira em torno de golfinhos, os alunos podem ler textos sobre mamíferos
9 Idem, p. 121.
134 i LETRAMENTOS
marinhos de várias fontes, que, em geral, se constituem em relatórios. Nesse caso, o professor
poderia fomentar uma discussão sobre para que servem tais textos (suas funções), como as
informações nos relatórios são organizadas (sua estrutura esquemática) e quais os aspectos relativos
ao modo como os textos comunicam (palavras e sua sequência).
A segunda fase envolve a negociação conjunta de um texto elab orado pela turma. Os
primeiros elementos nessa etapa são o estudo do campo ( conhecimento especializado) e o
contexto (no qual os eventos estão acontecendo) do gênero: os alunos observam, pesquisam,
entrevistam, discutem, fazem anotações, desenham diagramas e assim por diante. Segue-se,
então, a construção conjunta de um texto de aula, ou seja, os alunos participam do processo
de produção textual de um relatório, orientados pelo professor. Este, por sua vez, atua como
um escriba, na medida em que os alunos contribuem para um texto construído em conjunto,
que se aproxima da estrutura do gênero relatório e emprega as escolhas e sequências de palavras -
-chave características dele.
Na terceira e última fase, os alunos constroem seus próprios relatórios de forma independente,
preparando-se para mais trabalho sobre um determinado assunto, verificando seus esforços
individuais de escrita com os colegas e com o
professor, reavaliando criticamente seus textos
à medida que são editados para publicação e,
por fim, talvez, explo ando criativamente o
gênero para representar outros campos. O ciclo
pode, então, ser repetido, trabalhando aspectos
progressivamente mais sofisticados do gênero
. relatório.
l!I
li
1
-
(!li:i,:
•
.
•
· · Veja: "Ciclo de ensino-aprendizagem - Ross
no YouTube".
As relações socia is da aprend izagem de letramento Aprende ndo formas textuais poderosas para o sucesso escolar
e o acesso social.
Processos de conhecimento
funcional: termos importantes na análise dos modos através dos quais a comunicação e a língua
funcionam e as formas como são aprendidas. Mantenha e estenda essa wiki enquanto você
trabalha com este e com os capítulos restantes deste livro.
Aplicando apropriadamente
2. Escolha um gênero textual que possa ser ensinado em uma atividade escolar. Elabore uma aula
que exemplifique o ciclo de ensino-aprendizagem do gênero baseado na pedagogia do letramento
na abordagem funcional. Crie um discurso hipotético professor-aluno na fase de construção
conjunta dessa lição.
Analisando funcionalmente
4. Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia do letramento na ab0rdagem
funcional seria mais e menos apropriada.
Aplicando criticamente
5. Considere uma aplicação particularmente apropriada da pedagogia do letramento na abordagem
funcional (para um assunto específico ou contexto de aprendizagem que atenda às necessidades
de um determinado grupo de alunos) e desenvolva um plano de aula ilustrando essa aplicação
cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja o funcional.
- Vamos falar sobre a nossa própria comunidade local. Quais os maiores problemas que vocês
acham que temos nela?
- O rio fede - diz um aluno. - É cheio de lixo e as fábricas que teYr}-_ ao lado jogam coisas cinzentas
fedidas.
Depois de muita discussão, a turma decide usar o pequeno rio como assunto para uma atividade
que envolve a solução de problemas, como parte de seu programa integrado de ciência e letramento.
- Vamos começar documentando a situação do rio - sugere a professora Wanda. - Vamos ver
essas imagens do Google Earth. O que cerca o rio.
A turma observa os nomes das fábricas próximas e as ruas cujo escoamento provavelmente
acabe no rio. Eles pesquisam poluentes da água em livros na biblioteca e em sites na internet. Tomam
contato com explicações científicas a respeito de como funciona a ecologia dos rios - plantas, peixes,
pássaros e vida animal - e como estes são afetados por poluentes. Em seguida, preparam uma lista
de coisas que irão procurar quando visitarem o rio.
Depois de várias semanas de preparação, chega o dia da inspeção do rio. A professora Wanda
divide a turma em grupos que irão documentar coisas diferentes; a cada grupo é entregue uma
câmera, e, a cada aluno, uma lista de verificação anotada em pranchetas. Um grupo documentará
o lixo que é descartado; outro documentará os drenos que correm para o rio; um terceiro grupo,
as fábricas e casas no entorno; e um último grupo, as evidências dos efeitos da poluição e do lixo
no ecossistema do rio.
De volta às aulas, cada grupo escreve um relatório de suas descobertas usando os novos termos
técnicos que aprendeu. Em seguida, os alunos organizam suas observações de forma estruturada,
e depois montam apresentações sobre seus achados em slides no PowerPoint.
- Quem é responsável pela poluição do rio? - pergunta a professora.
- As fábricas que permitelJ'l o escoamento do poluente - diz um aluno.
- Os donos das casas que lavam os seus carros e deixam os produtos químicos entrarem no ralo
da rua - sugere outro aluno.
- É um grande problema, como os relatórios de vocês mostram. Na verdade, somos todos responsáveis
- diz a professora. - Como comunidade, o que podemos faze r sobre isso?
Depois de alguma discussão, a turma chega à conclusão de que a prefeitura local é a principal
autoridade responsável, e que a classe elaborará uma compilação dos relatórios dos diferentes grupos
sobre o rio e a enviará ao prefeito e também ao setor de proteção ambiental da cidade.
Dias depois, eles conseguem ageudar uma visita à prefeitura. Nela, realizam uma apresentação
para o prefeito e os representantes da Secretaria de Proteção Ambiental. Utilizando o PowerPoint,
exibem uma compilação de pontos-chave das várias apresentações que criaram anteriormente. Em
seguida, entregam formalmente uma versão final de seu relatório ao prefeito.
O trecho acima é um exemplo de letramento crítico, cuja substância é a discussão de questões
do mundo real, criando textos autênticos que abordam questões de interesse para os alunos e sua
comunidade. Michael Apple chama isso de "currículo democrático", não porque exiba os processos
formais de de~ocracia como um sistema político (como votar periodicamente para eleger
representantes, por exemplo), mas porque está fundamentado no que ele chama de "valores
democráticos", que são baseados em uma "fé na capacidade individual e coletiva das pessoas para
criar possibilidades para resolver problemas".' Nesse sentido, um currículo democrático requer
"reflexão crítica e análise para avaliar ideias, problemas e políticas públicas".
2
4
140 1 LETRAMENTOS
Capítulo 7
Pedagogia dos letramentos críticos
Visão geral -
As pedagogias críticas lidam com a ideia de que os letramentos estão no plural, reconhecendo
as múltiplas vozes que os aprendizes trazem.para a'~ala de aula, os diversos locais da cultura popular,
as novas mídias e as- '1iferentes perspectivas que existem em textos do mundo real. Além disso,
defendem a ideia de que os estudantes são construtores de significado, agentes, participantes e
cidadãos, que usam a aprendizagem dos letramentos como _uma ferramenta que lhes permite maior
controle sobre os modos como agem para construir significados em suas vidas, em vez de elemento
destinado a torná-los alienados, inundados ou excluídos por textos com os quais não estão
familiarizados. Mais recentemente, os letramentos críticos também se tornar;:im elementos próprios
para questionamento e criação de novos textos que circulam em diferentes mídias digitais. Neste
capítulo, exploraremos o cont~údo sobte os conhecimentos relacionados aos Íetramentos críticos,
sua conexão com as identidades sociais e a organização do currículo crítico de letramentos.
- Vamos falar sobre a nossa própria comunidade local. Quais os maiores problemas que vocês
acham que temos nela?
- O rio fede - diz um aluno. - É cheio de lixo e·as f ábricas que tem ao lado jogam coisas cinzentas
fedidas .
Depois de muita discussão, a turma decide usar o pequeno rio como assunto para uma atividade
que envolve a solução de problemas, como parte de seu programa integrado de ciência e letramento.
No mesmo espírito, William Ayers faz uma distinção entre educação verdadeira e mero
treinamento, destacando que a primeira "é ousada, aventureira, criativa, vívida, esclarecedora. Em
outras palavras, a educação é para exploradores autoativos da vida, para aqueles que desafiariam
o destino, para ativistas, para os cidadãos". 3 O treinamento, por outro lado, é algo "para súditos
leais, para empregados tratáveis, para consumidores, para soldados obedientes"; "a eq.ucação derruba
muralhas, impede alguém de ser escravo; o treinamento é apenas arame farpado': 4 Assim, o resultado
da educação é transformação pessoal e social, não menos do que isso, pois encontramos a vida
como algo dado, vivenciamos momentos de descoberta e surpresa e ganhamos energia a partir de
reorganização e remodelação; então, alcançamos novas formas de conhecer e agir, horizontes
expandidos e novas possibili4ades.
Paulo Freire e Donaldo Macedo 5 também falam de transformação por meio da educação.
Especificamente em relação à alfabetização, 6 consideram-na como um processo de leitura e escrita
sobre o mundo no qual os cidadãos alfabetizados se tornam "sujeitos" em vez dos "objetos" passivos
de textos; "agentes" de textos em vez de "vítimas" de textos. ~esse sentido, alfabetização não é, para
os autores, uma questão de aquisição de habilidades de comunicação técnica. É um processo de
aprender a construir significados que inserem indivíduos no mundo, que mudam o mundo. Portanto,
a alfabetização é, como tal, um ato político, uma prática emancipatória na qual não se lê apenas a
palavra, mas se lê antes, e sobretudo, o mundo.7
Valores democráticos - agindo sobre questões e problemas Regras formais, habilidades mecânicas
reais no mundo
Educação . Treinamento
Letramentos e identidades
Outro foco da pedagogia dos letramentos na abordagem crítica é o reconhecimento de que toda
representação e toda comunicação envolvem identidades humanas, uma vez que letramentos e
identidades estão inextricavelmente interconectados. Nesse sentido, a "posse" e o "uso" dos
letramentos - práticas letradas particulares - inscrevem as identidades dos usuários ("quem" e "o
que" eles são), que diferem entre si.
Um exemplo interessante de como letramentos e identidades se interconectam como forma de
crítica e resistência é o da prática de um professor, ao trazer para sua aula letras de rap, não apenas
para compará-las com textos tradicionais de poesia para a construção do conhecimento literário,
mas, sobretudo, para envolver ativamente alunos que apresentam histórico de fracassos escolares
em práticas de letramento convencionais. 8
Essa vertente dos letramentos críticos é, algumas vezes, chamada de "educação pós-modernà:
trazendo uma rica cacofonia de vozes estudantis para a sala de aula e validando for~s populares
de falar e de identificar, com os alunos se constituindo em sujeitos que têm agência, isto é, que
determinam quais significados são importantes para si. Nesse sentido, os letramentos críticos
possibilitam um espaço para modos de expressão que historicamente foram escamoteados e/ou
desvalorizados. Aronowitz e Giroux 9 chamam isso de uma "pedagogia fronteiriça da resistência
142 j LETRAMENTOS
pós-moderna", que "confirma e criticamente engaja o conhecimento e a experiência através dos
quais os estudantes criam suas próprias vozes e constroem identidades sociais". Para tanto, essa
vertente dos letramentos críticos exige um certo tipo de introspecção sobre as próprias posturas e
atitudes em relação às diferenças em espectros variados (deficiências, sexualidade, raça, etnia,
gênero etc.).
também:
As escolas precisam redefinir os currículos dentro de unia concepção pós-moderna de cultura ligada às
condições globais diversas e mutáveis que exigem novas formas de alfabetização, uma compreensão
amplamente expandida de como o poder funciona nos aparatos culturais e um senso mais agudo de como
a geração existente de jovens está sendo produzida dentro de uma sociedade em que a mídia de massa
desempenha um papel decisivo, se não incomparável, na construção de múltiplas e diversas identidades
sociais. 11
Assim, talvez agora mais do que nunca, é aparentemente necessário que equipemos nossos
alunos com as ferramentas •críticas necessárias para "ler" textos, "ler" o mundo, a fim de que possam
ser capazes de transformar seu mundo e seu lugar nele.
Há muitas razões pelas quais um professor pode querer trazer cultura e mídia populares
para a sala de aula. Pode, por exemplo, querer se conectar com as identidades dos alunos,
partindo do cophecimento 'sabido, antes de passar para o novo, para que possam trazer para o
seu processo de aprendizagem recursos simbólicos poderosos que derivam em grau significativo
da mídia e da cultura populares. Tal abordagem facilita a construção de conexões entre as
práticas de letramentos e a expertise dos alunos fora da escola e os letramentos necessários no
contexto escolar, bem como a mobilização de seus conhecimentos e práticas culturais existentes.
Além disso, a mídia e a cultura populares englobam textos atuais que carregam enorme efeito
emocional e social, constituindo-se em espaços poderosos de atividade de construção de
significado, muito diferentes em sua forma e substância do mundo das gerações anteriores e
do currículo tradicional. Soma-se a isso o fato de que os estudantes, em geral, sentem um prazer
inegável pela cultura popular, o que pode ser aproveitado para motivá-los, envolvê_~ s, sobretudo
aqueles que estão "lutando" contra o ensino tradicional escolar, sendo, portanto, considerados
como alunos "em risco".
No caso da nova mídia digital, o professor pode querer apresentar aos alunos as mídias mais
recentes como um projeto de "empoderamento" dos alunos para acessar recursos culturais e de
Aprendizagem ativa Produz e não apenas consome; um forte senso de propriedade e agência; o aluno se oferece e faz
escolhas.
Interatividade Joga como uma forma simultânea de "leitura" (interpretação} e de "escrita" (produção}.
Aprendiz como mentor Ensina os outros, ao mesmo tempo que aprende consigo mesmo; relações horizontais de conhe-
cimento.
Engajamento Tem razões convincentes para se engajar; assume um compromisso emocional; "identidade pro-
jetiva'; criando motivação para um engajamento prolongado.
Identidade Lida com uma economia atenciona l, baseada no desenvolvimento de identidades fortes no jogo;
um gatilho para um investimento profundo por parte do jogador.
Empatia Conversa, pensa e age como se estivesse no jogo; simulação que convida ao investimento emo-
cional.
Multimodalidade Usa extensivamente os modos visual, linguístico, sonoro (na tela}, tátil, gestual e espacial (como
representado na tela}; modos distintos, repetindo e reforçando os significados um do outro.
Risco Trabalha com a redução das consequências do mundo real; "moratória psicossocial"; sempre se
pode começar de novo, o que reduz o custo do fracasso.
Recompensa Lida com resultados visíveis, com realizações possíveis em diferentes níveis, em relação ao nível
de maestria.
Crítico Procura por enganos embutidos no jogo e tenta encontrar maneiras de ser mais astuto que o jogo.
Conceituai Elabora os princípios do design e o design do jogo, construindo modelos mentais para dominar o
jogo.
Metaconhecimento Informa as capacidades atuais e potenciais; avalia o conhecimento anterior e ajuda os jogadores
a tomar decisões por si mesmos.
Encenação Envolve-se em ciclos de nova aprendizagem, domínio por encenação e competência progressiva;
ciclo de desafio ➔ rotinização ➔ desafio.Além disso, constrói conhecimento intuitivo e tácito, cria
generalizações incrementais que continuam frutíferas em estágios posteriores de aprendizagem;
habilidades básicas são transferíveis, não aprendidas isoladamente ou fora de contexto.
Quadro 7 .2: Análise de Gee sobre videogames como ambientes de aprendizagem.
li :
[!] . .
· Veja: "Gee sobre videogames e aprendizagem':
12 Gee, 2007.
Algumas questões para leitores mais jovens Algumas questões para leitores mais velhos
. Sobre o que é esse texto? Como sabemos isso? Quem estaria Qual é o assunto ou tópico?
mais propenso a ler e como podemos saber isso?
Por que o autor escreveu esse texto?
A professora Wanda está prestes a iniciar um estudo para discutir canais do YouTube como
parte de uma unidade de trabalho da sua disciplina. Ela pergunta aos alunos:
- A quais canais do YouTube vocês mais assistem? 4
A professora, então, os lista na lousa: Mundo Gloob, Bel para Meninas, Julia Silva, Tem Criança
na Cozinha etc. Ao fazer uma rápida pesquisa na turma, Mundo Gloob aparece como o canal mais
popular. Ela então diz:
146 1 LETRAMENTOS
- Ok, vamos falar sobre o canal Gloob do You Tube. Quais são os desenhos animados e personagens
de que vocês mais gostam desse canal? E por quê?
Wanda cria uma pesquisa on-line em que os alunos selecionam seus personagens e desenhos
favoritos relacionados ao canal Gloob e as razões de suas preferências.
- Agora vamos assistir ao canal. Quais são os conteúdos? Como são organizados? - pergunta a
professora.
- Tem Gabby Estrela, detetives do Prédio Azul, Gloob Gamer, Lady Bug. E toda segunda e quarta tem
vídeo novo - dizem alguns alunos, que vão listando e preenchendo o formulário on-line elaborado pela
professora Wanda.
- Tem também várias coisas para comprar - observam alguns alunos.
- Então, se esses desenhos animados já passam na televisão, por que vocês acham que há também
um canal no YouTube? - pergunta Wanda.
- Para mostrar coisas que não tem na televisão - responde um dos alunos.
- Para vender coisas para as pessoas - arrisca outro aluno.
- É, e eles às vezes juntam a história e as coisas que eles vendem. Aí a gente quer comprar ainda
mais - diz um outro.
A professora Wanda faz uma pausa para discutir esse ponto com toda a turma, demonstrando
sua preocupação com o lado manipulador dos canais comerciais do YouTube. Ela explora o assunto
com os alunos, dramando a atenção para as propagandas publicitárias, muitas das quais exibidas
de forma bem sutil, que têm como objetivo induzir as crianças a comprar e consumir os produtos
relacionados aos conteúdos do canal.
É realmente importante incorporar textos da cultura popular no currículo e utilizá-los em nossas
salas de aula de maneira pedagogicamente produtiva e orientada para a crítica. Para fazer isso, os
professores precisam entender os letramentos contemporâneos em seu sentido mais amplo, estando
cientes dos letramentos extraescolares com os quais os alunos se envolvem e valorizando a rica
experiência linguística, social e cultural que trazem consigo para a escola. Além disso, os professores
devem também estar conscientes ao objetificarem e abrirem os textos da cultura popular à análise,
tornando sua, construção perceptível e questionando - e convidando os alunos a fazer o mesmo
- o apelo desses textos, ao mesmo tempo que reconhecem o investimento pessoal e afetivo que os
alunos fazem em relação a eles e o prazer que extraem deles. 15
15 Dalley-Trim, 2012.
16 McLaren, 2015, p. 179.
A maneira como falamos e falam sobre nós ajuda a nos moldar como as pessoas que nos tornamos. Através
de palavras e outras ações, nos construímos em um mundo que está nos construindo. [... ] O letramento
é entendido como ação social através do uso da linguagem, que nos desenvolve como agentes dentro de
uma cultura maior. 18
li
..
[!] - .
Veja: "Shor sobre letramento crítico".
Por essa perspectiva, encontrar uma voz não significa necessariamente se identificar com
todos ou alguns dos textos ao nosso redor, muito menos adquirir as vozes apresentadas na cultura
popular e na mídia apenas porque estão em toda parte. Ao contrário, pode-se até resistir e, de
fato, rejeitar as vozes e as "histórias" oferecidas. Nesse sentido, Anne Hass Dyson 19 fala da reação
de Tina aos papéis menos ativos das mulheres nas narrativas Ninja. No início, ela, assim como
as outras meninas de sua turma, se afastou das histórias Ninja porque lhe pareciam feitas para
os meninos e não para as meninas. Em uma reviravolta da narrativa, no entanto, Tina reconstruiu
uma dessas histórias para ter um super-herói feminino. A voz, nessa concepção, constitui uma
questão de interpretações variadas, que envolvem ambiguidade, ambivalência, complexidade,
contradição e fluxo.
"autênticas" em vez de "fingidas" das práticas sociais em questão. Nesse sentido, Gee2 1 observa
que "ferramentas digitais têm permitido que pessoas comuns possam produzir e não apenas
consumir mídia".
li
l!i_, . :. Veja: "Lankshear e Knobel sobre pedagogia para o i-Mode".
148 1 LETRAMENTOS
A professora Wanda deseja que seus alunos utilizem uma nova mídia: o blog. Mas não quer
que eles apenas criem um blog para colocar qualquer tipo de informação. A ideia é que seja
um blog da escola, que contenha informações e discussões para a comunidade escolar e seu
entorno.
Primeiramente, a professora pede que seus alunos pesquisem vários blogs de caráter público
na internet. Os estudantes têm, então, a oportunidade de explorar diferentes blogs, que tratam
de questões bem variadas e fazem uso de recursos distintos. Feito isso, a professora cria um blog
e discute com os alunos o que poderia fazer parte dele. A primeira ideia que surge é colocar na
página o trabalho realizado por eles a respeito da poluição do rio localizado próximo à escola e
que foi entregue ao prefeito da cidade.
Em princípio, é colocada no blog a versão final do relatório e da apresentação em Power Point
que fizeram ao prefeito, com uma compilação de pontos-chave das várias apresentações que
criaram anteriormente. Surgem mais ideias: alguns alunos sugerem que o blog sirva para as
pessoas poderem acompanhar o andamento da resolução do problema de poluição do rio; cada
nova informação sobre isso seria atualizada na página para a comunidade escolar.
Preocupações "pós-modernas"
Educação pós-moderna: Uma A pedagogia crítica tem sido fortemente influenciada pelo que, algumas vezes,
orientação social e de aprendizagem
tem sido chamado de preocupação pós-moderna com as diferenças identitárias.
basea da na ideia de que não existe um
Essa versão crítica da pedagogia dos letramentos tem suas raízes na pedagogia
único modo de ser humano e de que
autêntica de John Dewey e compartilha muitas de suas suposições mais básicas,
não há uma verdade universal. Existe
sim uma ampla gama de perspectivas como atividades, motivação e experiência do aluno, por exemplo.
baseadas em diferentes experiências de No entanto, diferentemente da pedagogia autêntica de Dewey, cuja ênfase
vida, histórias, culturas e interesses.
recaía sobre a cultura singular da modernidade industrial, as ênfases das
pedagogias críticas mais atuais estão na diferença, na descontinuidade e na fragmentação cultural
e linguística irrev~rsível. Em outras palavras, acredita-se que a sociedade seja muito complexa para
que se possa prevê-la ou moldá-la; assim, tudo o que podemos fazer é ouvir uns aos outros. Nesse
sentido, aqueles que promovem a pedagogia crítica frequentemente estabelecem relações diretas
com movimentos intelectuais mais amplos, como o feminismo, os direitos homossexuais e os
movimentos antirracistas, que se tornaram mais vociferantes e eficazes a partir das últimas décadas
do século XX e se concentraram em reconhecer e respeitar diferenças socioculturais e identitárias.
A pedagogia crítica que estamos tentando problematizar neste capítulo está fundamentada nos
sentidos do mundo que prevalecem atualmente, muitas vezes encapsulados na palavra "pós-
-modernismo". Nessa perspectiva, grandes narrativas modernistas de progresso não seriam mais
válidas, uma vez que se reconhece que o mundo todo não caminha em direção ao futúf o único do
desenvolvimento econômico, do capitalismo das empresas privadas e da liberdade social, em que
todos os indivíduos devem ser tratados da mesma maneira. Em vez disso, a perspectiva crítica vê
enormes problemas sociais e ambientais decorrentes desses modelos econômicos.
A cultura ocidental, que está no centro da ideia de progresso e do sistema econômico do
capitalismo, não merece ser vista como a libertadora democrática de todas as sociedades, assim
como o que devemos aprender na escola não deve ser reduzido ao cânone ocidental; devemos
150 1 LETRAMENTOS
Múltiplas variedades da língua .
27 Nessa parte, na versão original em língua inglesa, embora os autores se refiram ao ensino do inglês-padrão (standard
English), o questionamento também poderia ser estendido ao valor excessivo dado ao ensino de qualquer outra
língua-padrão, isto é, a variedade da língua socioculturalmente reconhecida e usada por grupos hegemônicos em uma
determinada sociedade.
28 Labov, 1972.
29 Idem, p. 222.
30 Goodman, 2005, p. 25.
31 Freire & Macedo, 1987, p. 127.
Na África do Sul, Pippa Stein 33 descreve as sutilezas do que chama de "reapropriação linguística",
na medida em que os alunos em uma sala de aula sul-africana criam histórias bilíngues, baseadas
em tradições de contos africanos, mas cheias de elementos da política contemporânea e de ironia
aguda. Aqui está o início de uma história contada por Nobayeni Ndebele, de 13 anos:
Uma vez lá viveu Mandela [o primeiro presidente negro da África do Sul], Gatsha [o líder zulu do Freedom
Party Inkatha] e De Klerk [o último presidente do Apartheid da África do Sul]. Mandela visitou Gatsha
em sua casa e ele e Gatsha conéordararn em acrescentar uma poção à comida de Klerk para conquistá-lo
e trazê-lo para seu lado. Lá foram eles para a casa de Klerk, com potes de papa (um mingau grosso feito
de milho, a dieta básica da maioria dos sul-africanos negros) e carne. Quando chegaram lá, disseram a
De Klerk: "Hoje nós cozinhamos deliciosamente. Vamos comer juntos agora''. Então todos se sentaram à
mesa e Mandela c~rtou a carne. Ele cortou, cortou, cortou com cuidado e, em seguida, colocou-a sobre
a mesa artisticamente. Mas De Klerk não estava acostumado a comer papa. Mandela disse para ele: "Bem,
não sabemos o que fazer agora porque você não come papa. Nós, por outro lado, somos homens. Nós
comemos papa. Você, receio, nunca será forte". Então Gatsha disse: "Ok, deixe-me ir e comprar pão para
De Klerk". [Tradução da língua zulu]
Segue-se um conto de trapaça e intriga política, com um estudante traduzindo o texto para o
inglês àqueles da turma que não são falantes da língua zulu. Stein chama isso de processo de criação
de um "cânone alternativo': introduzindo formas textuais e linguagens que não são historicamente
valorizadas no currículo de letramento. Os alunos trabalham com esse cânone para aJ:}alisar os
propósitos sociais da produção de textos, discutir as complexidades da tradução, desvelar as múltiplas
camadas de significado e considerar as muitas interpretações possíveis.
Em ambos os casos, os alunos estão envolvidos com questões próximas de seus lares. Eles trazem
· suas identidades e seus interesses, suas experiências vividas, para apoiar o trabalho de letramento,
152 1 LETRAMENTOS
engajando-se em textos de suas próprias vidas e em um processo participativo de construção de
significados. Essa participação ativa, começando com a voz das próprias pessoas e das comunidades,
torna-se uma base para levar os alunos a novos domínios de motivação, significado e participação
mais expansivos, pessoal e socialmente relevantes.
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.
Veja: "Jenkins sobre cultura participativa".
De forma mais específica, James Paul Gee aborda o engajamento e a aprendizagem ativos
como práticas intrínsecas aos videogames. Para ele, os videogames são, em grande parte, "apenas
espaços de solução de problemas e mostram muitos dos princípios de aprendizado que a pesquisa
contemporânea nas ciências da aprendizagem argumentou trabalhar para uma aprendizagem
humana profunda e eficaz". 35 Nesse sentido, os videogames criam estruturas poderosas de
aprendizagem porque apoiam a participação ativa, seja através de comunidades observadoras de
jovens trabalhando corri wikis, blogs, seja por meio de ferramentas de produção de mídia digital
e repositórios na web. Isso mostra, ainda segundo Gee, as maneiras pelas quais a cultura popular
está cada vez mais usando ferramentas digitais e outros dispositivos para se envolver em
pensamentos e aprendizados poderosos, profundos e complexos fora da escola. A participação
significativa, ,portanto, é uma pedra de toque dos letramentos críticos, e as novas mídias podem
criar as condições culturais, para não mencionar as tecnológicas, para que a aprendizagem possa
ser mais ampla e poderosamente participativa.
34 Jerikins, 2006.
35 Gee, 2010, p. 11.
A professora Wanda passou a ensinar a história do Japão, a partir de uma unidade do livro
didático sobre a Segunda Guerra Mundial, e destacou como esta terminou com a explosão de duas
armas nucleares, destruindo as cidades de Hiroshima e Nagasaki. É um tópico que está longe dos
seus alunos no tempo e no espaço, mas ela quer trazer algumas questões históricas muito difíceis
para os discentes, integrando fortemente essa unidade à sua abordagem de letramento em todo o
currículo.
- Vamos começar usando nossa estratégia de registrar tudo o que já sabemos sobre o Japão - diz
a professora.
A classe se divide em grupos a fim de selecionar alguns tópicos sobre o Japão: comida, língua,
anime, mangá, tecnologia e Segunda Guerra Mundial. Os membros de cada grupo se revezam na
descrição de algo que saibam sobre esse país, incluindo o que já aprenderam em outras aulas.
- Agora, quero que cada grupo desenvolva uma atividade sobre Hiroshima hoje. Cada membro
do grupo vai coletar informações sobre algum aspecto da vidà em Hiroshima: geografia, locais públicos,
locais históricos e educação. Façam sua pesquisa individualmente, em seguida compartilhem o que
pesquisaram com os colegas e, por fim, voltem aos seus grupos para criar um panorama completo
dessas informações.
Há várias anotações, colagens de textos e imagens e muita conversa.
- Na próxima aula, vamos ver o que aconteceu em um dia terrível de 1945.
Na aula seguinte, ao entrarem na sala de aula, os alunos descobrem que a professora Wanda
cobriu as paredes com imagens e textos sobre o ataque a Hiroshima, mostrando a bomba atômica
atingindo a cidade: Ao mesmo tempo, há um videoclipe sendo exibido na lousa eletrônica.
A professora, então, lhes diz:
- Quero que vocês entrem em silêncio e deem uma volta pela sala, absorvendo todas as imagens.
Analisem como se sentem em relação a elas e o que podem aprender observando-as e lendo os textos.
Há um silêncio incomum na sala de aula. Algumas das fotos são chocantes.
- Agora, conversem entre si e decidam quais os aspectos que serão comentados a título de
contribuição ao debate no tempo do círculo. Em seguida, quero que vocês, em grupos de quatro
pessoas, leiam a transcrição de uma entrevista com Mitsuo Tomosawa, um sobrevivente. Para
ajudá-los, vocês receberão uma das seguintes funções de leitura: ilustrador, que desenh ~ algumas
imagens, algumas coisas que possam imaginar ao ler a entrevista. No final, vocês irão compartilhá-
-las e explicá-las para seu grupo; anotador de palavras, que fará uma lista de termos incomuns que
vocês tanto podem nunca ter visto antes, como apenas não ter certeza do significado. Essas palavras
serão discutidas no final; investigador, que agirá como se fosse entrevistar Mitsuo Tomosawa,
elaborando uma lista de perguntas para ele; organizador de discussão, que fará com que seu grupo
fale sobre. a entrevista que acabou de ler, fa zendo-lhe algumas perguntas interessantes sobre a
experiência de Mitsuo Tomosawa.
154 \ LETRAMENTOS
Esse é o começo de uma unidade de trabalho que vai durar várias semanas. Os alunos escrevem
cartas empáticas aos sobreviventes e elaboram uma análise crítica do papel das armas atômicas no
fim da Segunda Guerra Mundial. Eles também pesquisam e relatam a forma como a comunidade
japonesa local em seu país foi tratada durante a Segunda Guerra Mundial, e debatem quão justo
foi esse tratamento.
O trecho acima mostra que, embora o assunto seja distante da experiência dos alunos, a professora
Wanda usa uma série de estratégias que os leva a se tornarem participantes ativos do conhecimento,
começando com aquilo que já sabem. A professora faz com que contribuam com diferentes aspectos
do conhecimento em um quadro holístico, envolvendo-os emocionalmente, ao unir fatos e afeto,
e conectando eventos distantes com eventos locais. Ao fazer isso, ela posiciona seus alunos como
analistas e produtores de texto.
Por trás dos letramentos críticos está uma "economia moral" da aprendizagem, na qual o
equilíbrio da agência se desloca do modelo vertical de transmissão do conhecimento professor-
-aluno, típico da pedagogia didática, para um modelo horizontal aluno-aluno, no qual o conhecimento
é coconstruído em uma comunidade de alunos, o que lhes possibilita condições de uso dos
letramentos para obtenção de maior controle sobre suas próprias vidas.
Existem duas vertentes principais para os letramentos críticos, que estão frequentemente
interligadas. Uma é de orientação generalizável, em que a "alfabetização críticà', nos termos
de Paulo Freire, consiste em processos de pensamento e atividades de reflexão sobre a realidade
social. Isso contrasta dirétamente com uma pedagogia didática, em que há "um sujeito narrativo"
(o professor) e o "paciente" ouvindo objetos (os alunos). A narração, feita pelo professor-
-narrador, leva os alunos a memorizar mecanicamente o conteúdo narrado, podendo, no pior
sentido, transformá-los em meros "recipientes", em "receptáculos" a serem preenchidos pelos
professores. 36 ,
..· Veja: "Resenha do livro Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire".
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um novo tipo de estudante forjado dentro de princípios organizadores moldados pela interseção da
imagem eletrônica, de cultura popular e de uma terrível sensação de indeterminação fí!:], encontrando
seu caminho através de uma paisagem cultural descentralizada não mais presa por uma tecnologia de
impressão, estruturas narrativas fechadas, ou a certeza de um futuro econômico seguro[ ... ], novas práticas
culturais hibridizadas inscritas em relações de poder que se cruzam diferentemente com raça, classe,
gênero e orientação sexual.
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,
.
· Veja: "Kalantzis e Cope debatendo o letramento crítico':
2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise
crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar
soluções (inclusive tecnológ icas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.
3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversifi-
cadas da produção artístico-cultural.
4, Utilizar diferentes linguagens - verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e· escrita), corporal, visual, sonora e digital -, bem
como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências,
ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo.
s. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética
nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimen-
tos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.
6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem
entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de
vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.
7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e
decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em
âmbitos local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.
Quadro 7,5: Competências gerais da educação básica propostas pela BN CC relacionadas aos letramentos críticos.39
Aplicando
criativamente
Não é nosso objetivo, neste livro, tomar partido nas disputas e nos conflitos perenes relativos
às pedagogias, visto que vários aspectos das pedagogias didática, autêntica, funcional e crítica
podem ter seu lugar na aprendizagem. Com efeito, o esquema dos processos de conhecimento
que introduzimos no capítulo 3 destaca a gama de tipos de atividades de que um professor pode
fazer uso no trabalho pedagógico, que são típicos de cada uma das pedagogias que descrevemos
nos últimos quatro capítulos (confira o Quadro 3.1 para uma visão geral).
Todavia, vale também destacar que o objetivo do esquema dos processos de conhecimento
não é o de prescrever um percurso pedagógico "correto", mas sim o de fornecer aos professores
ferramentas para mapear os caminhos que eles já seguem ou poderão vir a seguir. Isso pode
envolver enfocar mais ou menos uma determinada abordagem pedagógica, segundo motivos
justificáveis. Além disso, o esquema dos processos de conhecimento também pode ser usado
para se conectar a uma ampla gama de práticas pedagógicas por meio de travessias ou
equivalências relacionadas a cada uma das orientações para o processo de ensino e aprendizagem,
capturadas nos processos de conhecimento, e às principais tradições da educação. Nesse sentido,
os quatro processos de conhecimento são elementos que podem ajudar os professores a cons-
truir o hábito de refletir explicitamente sobre o impacto de suas escolhas nos resultados do
conhecimento.
Raramente qualquer uma das abordagens pedagógicas que descrevemos nesta seção do livro
predomina sem se basear em aspectos de, pelo menos, uma ou mais das outras três. Por exemplo,
em um célebre artigo, Brown e Campione defendem um meio-termo de "descoberta guiadà'.
Segundo os autores, "por um lado, há evidências consideráveis de que o ensino didático leva ao
aprendizado passivo. Mas, por outro, a descoberta não guiada pode ser perigosa",4º quando, por
exemplo, os estudantes inventam concepções equivocadas ou desperdiçam tempo escolar valioso
descobrindo coisas que poderiam ser. mais direta e explicitamente apresentadas a eles. Em vez
de "equilíbrio", o que sugere um certo "enfraquecimento" de diferentes abordagens em prol de
um suposto interesse de "moderação", recomendamos o entrelaçamento intencional entre
diferentes movimentos epistêmicos para resultados explicitamente direcionados, em que cada
um tem seu lugar. Dessa forma, nossa "abordagem intercruzada" procura fazer ligações com
práticas pedagógicas de herança produtiva.
Essa "abordagem intercruzada", em um sentido mais geral, também pode ser usada para
esquemas de objetivos educacionais com pretensão mais abrangente, como, por exemplo, um
mapeamento dos processos de conhecimento para um dos esquemas educacionais mais conhecidos
e amplamente usados, como a Taxonomia de Objetivos Educacionais, de Bloom.4' Produto de
um projeto patrocinado pela American Educational Research Association, publicado .;k
pela
primeira vez na década de 1950 e atualizado regularmente desde então, a taxonomia forneceu
um guia para aqueles que planejam e produzem experiências de aprendizagem e projetam
avaliações.
158 1 LETRAMENTOS
Processos de conhecimento Equivalentes na taxonomia de Bloom (de Exemplos de letramentos
A a D são objetivos de conhecimento; de,
a 6 são os objetivos cognitivos)
Experienciar o novo A. Conhecimento factual sobre detalhes Construindo sentido de novos significados
específicos, elementos e terminologia. sobre textos (não muito) desconhecidos.
Conceitualizar por teoria B. Conhecimento conceituai de princípios, Conectando conceitos para explicar como um
generalizações, teorias, modelos e tipo de texto funciona para fazer sentido, em
estruturas. termos gerais.
Aplicar adequadamente C. Conhecimento processual dos critérios Criando um texto apropriado para um gênero
para determinar quando usar ou que seja viável em um contexto previsível
procedimentos apropriados. de uso.
Dimensão 1: Os Regras formais; a única Significados relevantes, Gêneros de sucesso esco- Orientação crítica para o
conteúdos do maneira correta de escre- autênticos e reais, em lar e poder social. mundo; aprendendo so-
conhecimento ver; ler e interpretar o práticas de leitura e escri- bre diferenças de língua-
de letramentos que os textos"realmente" ta. gem, poder, cultura po-
querem dizer; aprecian- pular e novas mídias.
do o cânone literário.
Dimensão 2: A O aluno segue o profes- Pedagogia de processos; Leitura de modelos de Apoio à agência do
organização do sor, que segue o livro di- unidades integradas; uni- gênero; produção textual aprendiz;foco no propó-
currículo de le- ciático, que segue o pro- dades de trabalho pia- de conteúdo próprio sito de construção de
tramentos grama curricular. nejadas pelo profe ssor; dentro ·de estruturas de significados
crescimento natural. gênero.
Dimensão 3: Cópia, repetição, memo- Aprendizagem ativa ; Material projetado por Envolvimento com ques-
Aprendizes pra- rização de regras e con- imersão em experiências especialistas, os andai- tões do mundo real; ex-
ticando letra- venções para obter as de leitura e escrita; peda- mes introduzidos pelo periências de cidadania
mentos respostas "certas''. gogia baseada na desco- professor e gramática ativa; criação de textos
berta pelo próprio aluno. funcional ; construção que se engajem no mun-
independente do aluno. do.
Dimensão 4: As Usando conhecimento Valorizando a autorreali- Aprendendo a significar Usando letramentos para
relações sociais autoritário de fatos obje- zação, pedagogia centra- em um ambiente social e assumir o controle sobre
da aprendiza- tivos; professor autoritá- da no aluno; os valores da em um contexto educa- as condições da própria
gem de letra- rio; disciplina da ordem expressão individual. cional onde o domínio de vida; ser um criador de
mentos espacial da sala de aula e gêneros particulares é significado adepto das
ordem temporal do pro- valorizado. novas mídias.
grama instrucional.
Processos de conhecimento
Conceitualizar nomeando
1. Adicione lexias à sua wiki, definindo os conceitos-chave na pedagogia dos letramentos: termos
importantes na análise dos modos através dos quais a comunicação e a língua funcionam e as
formas como são aprendidas. Mantenha e estenda essa wiki enquanto você trabalha com este e
os capítulos restantes deste livro.
Experienciar o novo
2. Localize uma fonte a partir da qual você pode ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia
dos letramentos na abordagem crítica. Sua fonte pode ser um currículo ou uma·'êntrevista com
um professor que acredita ou pratica a abordagem crítica. Escreva sua própria análise com base
nas seguintes dimensões:
Experienciar o conhecido
4. Descreva um momento de aprendizagem em que você experimentou a pedagogia crítica. Como
foi esse momento? Você avalia como um momento de aprendizagem eficaz ou ineficaz? Por quê?
Aplicar apropriadamente
5. Nos capítulos desta seção do livro, você tem se engajado na: teoria e na prática das principais
abordagens dos letramentos. Escolha um tema de letramento que possa ser ensinado em uma
atividade escolar que exemplifique a pedagogia crítica. Escreva uma conversa hipotética entre
professor e aluno no decorrer dessa atividade.
Analisar funcionalmente
6. Analise um jogo de videogame usando a estrutura de análise de James Gee vista neste capítulo.
Encontre exemplos de cada tipo de aprendizagem no jogo em questão. Como os princípios de
aprendizagem do jogo se comparam à sala de aula na pedagogia didática?
Analisar criticamente
7. Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia crítica seria mais ou menos
apropriada.
Aplicando criativamente
8. Considere um aplicativo particularmente apropriado para a pedagogia crítica (para um
determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
esse aplicativo cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja crítico.
Aplicando criativamente
9. Este capítulo explorou a pedagogia dos letramentos na abordagem crítica, com particular ênfase
no uso de tal abordagem em relação à cultura popular e aos textos das novas mídias digitais.
Essa abordagem, no entanto, é aplicável a um exame de toda a gama de textos. Ao mudar a
ênfase da cultura popular e das novas mídias digitais, você deve escolher um livro (pode ser um
texto literário adulto ou infantil), considerando o seguinte cenário para preparar·'f tarefa:
Cenário: A escola na qual você trabalha está comprometida com o desenvolvimento profissional
dos funcionários e, como tal, é uma exigência para toda a equipe apresentar uma "Sessão de
Desenvolvimento Profissional da Equipe". Agora é a sua vez de apresentar sua proposta aos
funcionários da escola. Ao realizar essa tarefa, você é obrigado a preparar uma apresentação em
PowerPoint, com foco na implementação de uma abordagem pedagógica crítica dos letramentos
para o trabalho com o livro que escolheu.
Visão geral
Construir significado é um processo de representação (fazer sentido) e de comunicação (fazer
com que uma mensagem possa ser interpretada por outra pessoa). Este capítulo analisa o processo
de design* atrav&.i do qual as pessoas se apropriam de recursos disponíveis para "significar" e os
usam como blocos de construção para projetar novos significados. Embora sejam frequentemente
semelhantes, os significados então criados nunca são os mesmos que os anteriores, pois se tornam
significados retrabalhados (redesigned) ao entrarem no mundo. Nesse sentido, podemos dizer que,
como o mundo sempre é, em maior ou menor grau, transformado, então, o ciclo de construção de
significado pode começar de novo. Embora seja ainda comum nas escolas separar as práticas de
letramentos que lidam com a mecânica da leitura e da escrita, nossos processos de construção de
significados são sempre, ao menos em certa medida, multimodais, posto que reúnem modalidades
escritas, visuais, espaciais, táteis, gestuais ~ onoras e orais. Isso é ainda mais evidente na
contemporaneidade, uma vez que os novos me10s digitais são intrinsecamente multimodais. Este
capítulo sugere uma abordagem para "análise dos designs': constituindo-se em um prelúdio para
os seis capítulos desta seção do livro, que procurarão esboçar uma gramática multimodal que nos
ajudará a descrever e entender a construção de significado em diferentes modos.
Morgan: O Gyarado, ele é um Pokémon de água. Um grande. Você consegue no Shootport City. É no
fundo do mar. Você precisa mergulhar para chegar lá. Você precisa mergulhar e há uma abertura debaixo
d'água. Então você passa por lá.
* O .termo design pode englobar tanto um sentido mais restrito, isto é, uma instanciação de convenções e recursos
construídos e reificados socioculturalmente, como um sentido mais amplo, o de um processo de retrabalho que leva à sua
própria ressignificação, transformação. Dadas a ambivalência do termo e a possibilidade de a tradução para o português
não contemplar ou mesmo distorcer tal ambivalência, a opção aqui foi deixar o termo em inglês. (N. da T.)
Pesquisador: Essa é uma cidade que está submersa?
Morgan: Não, não é debaixo d'água, é no topo. Você vai debaixo d'água. Você aperta a velocidade. Você
sobe, então você [... ] desse jeito, e então você descobre que está nele.
Pesquisador: Então, é uma sorte que você tenha encontrado ou saiba ir até lá?
Morgan: Eu sei ir para lá. No antigo jogo eu passei por isso. Eu passei por tudo e passei e não consegui
o Pokémon grande ...
Pesquisador: Quando você está jogando este jogo, você se sente como se estivesse jogando ou se sente
fora do jogo?
Morgan: Fora do jogo. Sim, mas às vezes eu gostaria que este fosse o mundo Pokémon, mas isso não se
torna realidade.1
Morgan tem 10 anos e é um ávido jogador de Pokémon. No trecho acima, ele conversa com os
pesquisadores que lidam com novos letramentos midiáticos Sue Clancy e Tom Lowrie sobre um
dos jogos mais vendidos de todos os tempos: Pokémon, disponível em diversos tipos de mídias.
Ao jogar, Morgan navega por diferentes paisagens em uma jornada que lhe permite encontrar
muitas das centenas de espécies de Pokémon, envolvendo-se em uma ampla variedade de letramentos:
visual, espacial, auditivo, escrito e gestual. Nesse sentido, vale destacar, por exemplo, as maneiras
pelas quais palavras e imagens representam o espaço do jogo e como Morgan tangivelmente sente
uma espécie de preset1.ça física no espaço Pokémon.
Clancy e Lowrie mostram que, ao jogar Pokémon, o pensamento de Morgan é organizado por
meio de duas narrativas: as narrativas internalizadas, que são "aquelas que os jogadores constroem
enquanto se movem através dos processos reais do jogo", e as narrativas externalizadas, "aquelas
que os jogadores constroem quando estão conversando sobre aspectos dos jogos".2
As narrativas internalizadas são as que chamamos de representações; trata- Representação: Construir signific
-se dos processos de raciocínio que Morgan usa para construir sentidos sobre para si mesmo, usando um sistema
o jogo, isto é, sobre sua natureza, seu propósito e seus personagens, o que lhe sinais para "fazer sentido" sobre o
mundo.
permite fazer escolhas significativas sobre aonde ir e o que fazer para seguir
nele. As narratiyas externalizadas ocorrem quando ele explica a história para Comunicação: Sinais construídos,
outra pessoa, nesse caso, os pesquisadores, o que chamamos de comunicação. outra pessoa pode em algum mome
receber.
Narrativas internalizadas ou representação Processos de pensamento que usamos para construir
sentidos sobre coisas e ações.
166 1 LETRAMENTOS
por exemplo) e aquilo que significa (aquilo a que se refere), e entre os significantes em sistemas de
signos (por exemplo, entre línguas).
Na frase "Nós levamos o cachorro para passear na ruà', "Nós", "levamos", "cachorro", "passear"
e "ruà' são todos significantes: palavras que usamos para representar coisas que existem (isto é, as
coisas que elas significam). No entanto, esses significantes não fazem muito sentido separadamente
um do outro, pois se encaixam em uma frase significativa baseada na relação sistemática entre as
palavras. Por exemplo, a estrutura da oração nos diz que o cachorro não está nos levando para
passear; nós é que o estamos levando para passear. Além disso, há um conjunto maior de significados
não implícitos, isto é, não ditos na mesma frase: "nós" significa "não eu" ou "não apenas um de
nós"; "levamos" significa "não levaremos" (no futuro); "passear" significa "não correr': para mencionar
apenas algumas alternativas contrastantes. Desse modo, a frase faz sentido não como uma colagem
de significantes separados, mas como um conjunto estreitamente interconectado de significados
que se encaixam em um sistema de significado extremamenté complexo da língua como um todo.
Nesse sentido, a realidade em que vivemos não é um conjunto de coisas arbitrariamente lançadas
juntas para significar algo, mas sim significados experienciados, que se juntam em padrões que
fazem sentido em nossa realidade cotidiana. Por isso, quando esses significados, de alguma forma,
contradizem nossas intuições, como, no exemplo inverso, em que "o cachorro nos levou para passear
na ruà: achamos es~ranho e chegamos até a rir dessa situação.
Assim, em um sistema de signos, os significados que criamos entre os significantes são projetados
para corresponder às conexões entre as coisas que estamos vivenciando. Nessa perspectiva, tanto
os nossos significados simbólicos (significantes) quanto nossos significados
Sistema de signos: Uma série de
experienciados (significados) formam um sistema coerente. Quando as coisas
significantes interconectados
5imbolos), que representam uma série estão indo bem, quando as coisas estão fazendo sentido, as conexões entre nossos
de significados interconectados (aquilo significantes nos parecem corresponder muito bem às conexões que estamos
.f pode ser experienciado no mundo).
experimentando no mundo.
As conexões entre significantes e significado Significados simbólicos
Significado
palavra não têm sentido se não se conhecem as
convenções do grego como um sistema de Figura 8.1: Um sistema de signo.
signos.
Neste livro, em vez de usar as palavras "semiose" ou "semiótica" para descrever o estudo dos
sistemas de signos, vamos lidar com o conceito mais simples: construção de significa~. A construção
de significado ocorre quando inserimos os significantes juntos em um sistema coerente, que
corresponde mais ou menos aos sentidos do mundo de nossos significados experienciados, ou ao
significado.
li
.
I!]
· ·.• ·Veja: "Arbitrariedade (do signo)".
.
168 i LETRAMENTOS
Interpretação
A representação também é muito fluida, pois Representação
~
Comunicação
não é simplesmente uma questão de aplicar as
regras da língua ou as convenções de reconhe-
cimento da imagem. Os construtores de signi- q;ºº ~
------·
ficados não apenas veem as coisas como são;
eles também, até certo ponto, veem as coisas por
meio dos olhos de sua mente, isto é, das manei-
ras que lhes convêm, que se encaixam em seus
preconceitos (ideias preestabelecidas). Nesse
sentido, estão sempre (re)construindo seus
mundos, vendo-os de novas maneiras, pensan -
do novos pensamentos, visualizando coisas por
novas perspectivas e imaginando novas possi-
bilidades. Essa é a fonte da criatividade e da
Figura 8.2: Representação, comunicação e interpretação.
inovação humanas.
Representação
Comunicação
A comunicação ocorre quando uma pessoa
cria uma mensagem - texto oral, escrito ou uma
imagem, por exemplo - que, de alguma forma,
afeta o universo de significado de outra(s) Interpretação
( \
Intenção de comunicar un
mensagem para outros (,
Representar para si a mensagem
pessoa(s). Toda mensagem sugere uma respos-
ta, mesmo que assuma a forma de uma respos-
ta silenciosa ou anônima, como ouvir, ler ou ver,
que pode ser dada até mesmo por alguém que
•--~~w-~------~) Comunicação
--------
Uma mensagem de uma pessoa que ativa uma
não se conhece ou de quem não se esperava interpretação por uma outra, construindo significados
na interação com o(s) outros(s)
receber, mas que, por assim dizer, reagiu à men-
sagem. Figura 8.3: Ociclo de construção de significados.
Nessa perspectiva, a comunicação é algo re-
cíproco; a ação de significado de uma pessoa incita a representação de outra(s) pessoa(s) e, possi-
velmente, também uma ação comunicativa dela(s). É uma troca de significados entre o falante e o
ouvinte, o escritor e o leitor, ou o criador de imagens e o espectador. A representação é individual
e cognitiva; a comunicação é social e interativa. A representação está no pensamento de uma pes-
soa; a comunicação está nas pessoas relacionadas ao pensamento de cada um. ..,;it
Assim, a comunicação requer a criação de algo que pode ser considerado uma mensagem de
uma pessoa (como uma expressão falada, um gesto ou uma imagem apresentada), que somente se
constitui quando uma outra pessoa se conecta com essa mensagem. Contudo, a conexão não é
apenas uma questão de recebimento da mensagem, como um simples modelo de transmissão de
comunicação poderia sugerir (o construtor de significado cria a mensagem ➔ envia a mensagem
➔ o público recebe a mensagem), mas também de interpretação. Por isso, ouvintes, leitores e
telespectadores têm que realizar um trabalho próprio de representação ou de pensamento, a fim
il
__ · .. · Veja: "Kress sobre representação e comunicação".
l!I"" .
170 1 LETRAMENTOS
significados, suas diferentes interpretações e a necessidade de negociá-los socialmente. Em outras
palavras, reformulamos significados contínua e ativamente, pois estamos sempre atribuindo sentidos
ao mundo de novas maneiras; nossas próprias maneiras. Estamos sempre envolvidos em um trabalho
com significados comunicados, rerrepresentando-os, a fim de que façam sentido para nós. Esse
processo de interpretação pode ser silencioso, quando ocorre em nossas próprias mentes, mas
também pode ocorrer em voz alta, ou visível, solicitando, assim, uma resposta do comunicador do
significado ou de outra pessoa que esteja por perto.
Por essas razões, o processo de comunicação não se reduz apenas a uma questão de "entendimento"
ou "compreensão"; o que o leitor, o ouvinte ou o espectador representa para si mesmo ao interpretar
uma mensagem não é o que a mensagem diz de forma transparente, mas o que faz da mensagem,
a maneira particular de ouvir ou ver a mensagem, o que d 7pende de seus próprios interesses e da
maneira de rerrepresentar a mensagem para si próprio. Por exemplo, a pessoa A pode dizer "gosto
do seu trabalho': A pessoa B pode entender isso, de fato, como um reconhecimento de alguém que
aprecia seu trabalho; para C, isso pode significar que, além do reconhecimento, A poderia querer
copiar seu trabalho a partir de então; enquanto D pode pensar que A está apenas dizendo isso para
fazê-la se sentir melhor, mas realmente não gosta de seu trabalho.
Destaca-se ainda que essa fluidez na construção de significado é contrária aos principais
pressupostos dos testes de leitura que tentam mensurar a "compreensão" leitora, buscando respostas
certas e erradas para questões de múltipla escolha. Isso porque ler não é apenas uma questão do
que o autor realmente quis dizer, mas é, sobretudo, uma questão de interpretação, por isso, na
leitura, as questões mais importantes são, de fato, aquelas mais abertas à interpretação. Saber o dia
exato em que uma ação específica aconteceu em uma determinada história é algo que possivelmente
não estaria aberto a muita interpretação, mas, muito provavelmente também, não seria algo muito
interessante de saber. Por outro lado, aquilo que envolve intepretação, como os tipos de personagens
envolvidos, seria muito mais significativo para a compreensão do aluno. Nesse sentido, por exemplo,
poderíamos fazer uma pergunta muito mais interessante que nenhum teste-padrão de compreensão
leitora faria: "Com qual personagem você se identifica na história e por quê?"; nesse caso, cada
leitor teria uma resposta diferente. Isso, é claro, não quer dizer que vale tudo, ou que tudo é uma
questão de interpretação subjetiva, mas sim que a interpretação é sempre uma parte da equação;
e quanto mais profundas forem as questões em jogo, mais espaço haverá para argumentar sobre
li
l!l .
·.• Veja: "O rumor da língua: A morte do autor".
Jason Ranker usa a ideia de design dos multiletramentos para analisar os processos de escrita
de John, seu ex-aluno de 8 anos de idade, que inclui a maneira como o menino se comunica e as
representações ou os processos de pensamento que moldam sua comunicação. John está criando
uma história em quadrinhos baseada na história do Grim Reaper.
A história de John sobre Grim Reaper e o meio de comunicação da história em quadrinhos que
ele usa para comunicar sua história são baseados em uma ampla gama de recursos extraídos de
seu mundo de significados: personagens da história, imagens, temas e tipos de diálogo. Mas não é
de forma alguma uma cópia desses recursos, pois, na verdade, John está fazendo uso de uma grande
variedade de recursos para construir significado, incluindo histórias em quadrinhos, internet,
li
televisão e videogames. Ele acaba criando seis rascunhos de sua história em quadrinhos, cada um
transformando ainda mais esses significados, à medida que apresenta sua reformulação particular
da história.
Como, então, se constrói significado? Quais são os processos pelos quais pessoas como John
passam? A teoria dos multiletramentos de construção de significado se expande para além de
estruturas mais estáticas, como "gramática tradicional" e "cânone literário", para entender
representação e comunicação, sugerindo uma concepção mais dinâmica de criação de significado
como um processo de design. Escolhemos a palavra design pelo seu duplo Design: um padrão de significado e
significado fortuito. Por um lado, está presente em todas as coisas do mundo, também um processo de construção d
padrões e estruturas que existem em coisas naturais e feitas pelo ser humano, significado.
como na forma do desenho de um relógio de corda ou na folha de uma planta. Assim, todas as
coisas "têm designs", incluindo as intangíveis, abstratas, como conhecimento. Mensagens, por
exemplo, possuem designs; suas partes podem ser identificadas, assim como o mo'tfo como se
encaixam. Design, neste sentido, é o estudo da forma e da estrutura nos significados que
construímos, o que chamamos de "morfologia", e, nessa concepção, o design é usado como um
substantivo.
4 Grim & Evil é uma série de desenho animado americana produzida e exibida pelo canal de televisão Cartoon Network.
5 Ranker, 2007, pp. 418-419.
172 / LETRAMENTOS
Por outro lado, o design constitui também uma sequência de ações, motivada por nossos
propósitos, que torna a representação um processo de pensamento, e a construção de mensagem
um processo de comunicação. Nesse sentido, o design é algo que se faz, um ato de representação
ou comunicação, que produz um alerta em forma de som ou imagem a que outra pessoa pode
responder. Essa segunda acepção de design leva a palavra de volta à sua raiz latina designare, que,
em português, pode ser traduzida como "designar" (um verbo) e, neste sentido, se refere a um certo
tipo de agência ("designar algum sentido"), a algo que se faz.
Designs (disponíveis)
174 1 LETRAMENTOS
comunicantes. Poderíamos apenas olhar para trás a partir do ponto de vista da comunicação para
descobrir os significados nas palavras ou imagens, a estrutura de sua composição e a sintaxe de
suas conexões. Poderíamos apenas conduzir uma arqueologia do significado, como se os nossos
recursos para significação nos fossem "dados" para serem usados, ou seja, como algo fixo e imutável.
Todavia, queremos sugerir uma visão prospectiva do significado, que se interessa não apenas pelos
significados que encontramos, mas também pelo (re)trabalho que fazemos com esses significados,
que sempre muda os recursos de sentido que herdamos, pelo menos em alguma medida. Essa é
uma visão que coloca a imaginação e a reapropriação criativa do mundo no centro da representação
e da comunicação e, portanto, da aprendizagem. '--._/
O(re)designed
1
Transformação
~
\ j
j Aprendizagem
1 G(re}designed ~ !
Figura B.s: Aprendizagem etransformação.
Contudo, mesmo que ninguém seja tocado pelo significado de uma pessoa - ninguém a ouviu
ou viu sua mensagem -, ainda assim ela terá causado algum tipo de transformação, ·pôis o resultado
de seu désigning pode contribuir para que outra(s) pessoa(s) (re)pense(m) as coisas e as veja(m)
de uma nova maneira, o que pode ocorrer imediatamente ou em algum momento posterior, se e
quando alguém tiver acesso ao resultado do design. Isso ocorre porque o redesigned passa a se
juntar, de alguma forma, ao repertório de designs disponíveis, proporcionando aberturas para novos
designs. Nesse sentido, o redesigned, algo ouvido, fotografado, filmado ou escrito, é devolvido ao
mundo, e esse retorno deixa um legado de transformação que, por sua vez, também transforma o
próprio designer.
Design na prática
Ranker conclui seu estudo da história em quadrinhos de John, analisando seu significado
redesigned, ao destacar que a "História de Grim Reaper" (a de John) é o "resultado de designing de
um novo significado, reunindo partes de significados anteriores [... ]. Em vez de produzir uma
replicação direta de fontes culturais populares que lhe interessavam, John projetou (designed) e
redesenhou (redésigned) o significado através de cada história em quadrinhos sucessivà: 8
Podemos dizer que John transformou os designs disponíveis para construir significado, criando,
desse modo, um significado único no mundo, assim como se transformou, tendo moldado a narrativa
de uma maneira que nunca fizera antes. Para reiterar essas generalizações com outro exemplo
concreto, consideramos uma criança pequena que esteja aprendendo a escrever e a ler. Também
consideramos que a escrita e a leitura são processos de design, representando e comunicando um
significado por meio de modos visuais e linguísticos peculiares. O exemplo a seguir é de algo que
pode ser considerado uma protoescrita: uma criança senta no colo de seu pai e diz: "Você quer me
ver? Eu vou fazer um carro ... tenho duas rodas ... e duas rodas na parte de trás ... e duas rodas aqui...
Este é um carro': 9 Kress lê esse sinal duplo de círculos como significando ";odà' e "fodas", como
"carro". O autor, então, pondera que "os círculos são formas aptas para significar as rodas [... ] e as
rodas aqui são uma metáfora para o carro': Essas correlações de signos são o que ele chama de
6 Cope & Kalantzis, 2000; Kalantzis & Cope, 2013; Kress, 2000a.
7 Cochran-Smith & Lytle, 1999.
8 Ranker, 2007, p. 422.
9 Kress, 2003, p. 43.
176 1 LETRAMENTOS
"signos motivados", o "interesse do construtor de significado, no momento de construir o signo,
que leva à seleção dos critérios para representar a ideia de roda [wheel-ness] e de carro [car-ness]".'º
Ao reconhecermos esse exemplo como um processo de design, concedemos a agência a um
jovem criador de signos. No entanto, esse trabalho não pode ser tachado de escrita precoce ou
pré-leitura em um contexto de alfabetização no qual um professor ou um pai está ansioso para
ensinar à criança convenções formais de alfabetização que ela ainda não conhece. Na perspectiva
do design, ao contrário, os recursos disponíveis para a construção de signi~o se constituem a
partir do que a criança conhece e pode
fazer como designer, baseando-se, no caso
do exemplo anterior, em suas experiências
de vida em relação a carros, rodas, círculos
e desenhos. Nesse sentido, a criança se
engaja em um processo de design cujo
resultado é um significado (re)designed, que
ela produz no papel como uma protoescrita
e decodifica como pré-leitura. Designingé,
portanto, essa coisa comum e essa coisa
Figura 8.6: "Isso é um carro".
extraordinária.
li
··
[!] .r •
·.• Veja: "Kress sobre design".
Pedagogia do design
10 Idem, ibidem.
■
· ·• ·.• Veja: "Bakhtin sobre gêneros discursivos".
[!] . .
Chandler-Olcott e Mahar nos apresentam Rhiannon, de 13 anos, que publica sua fanfic 11 em sua
página na internet "Fanmanià: As fanfics lidam com recursos de design disponíveis, reutilizando per-
sonagens tirados de desenhos animados ou videogames e escrevendo novas histórias com esses per-
sonagens. No exémplo em questão, Rhiannon faz uso de um recurso tradicional de animação japone-
sa: o anime. É assim que a garota se apresenta à comunidade mais ampla de fanfics em sua página:
11 Fan.fic (em português, literalmente, "ficção de tã"), também grafadafan.fiction ou, abreviadamente,jan.fic, é uma nar-
rativa ficcional, escrita e divulgada por fas em blogs, sites e em outras plataformas pertencentes ao ciberespaço, que
parte da apropriação de personagens e enredos provenientes de produtos midiáticos como filmes, séries, quadrinhos,
videogames etc. sem que haja a intenção de ferir direitos autorais ou obter lucros. Portanto, tem como finalidade a
construção de um universo paralelo ao original e também a ampliação do contato dos fãs com as obras que apreciam
para limites mais extensos. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fanfic>.
12 Chandler-Olcott & Mahar, 2003b.
178 1 LETRAMENTOS
As fanfics de Rhiannon têm temas românticos e também mesclam características de vários
gêneros, incluindo ficção científica, fantasia e filmes de "amigos adolescentes". Ser uma fã ávida e
imersa no gênero proporciona a ela não apenas designs para construção de significados em termos
de personagens e narrativa com os quais pode retrabalhar, mas também designs visuais, y.nguísticos,
espaciais e gestuais.
Rhiannon fez o download de imagens bishonen, uma palavra japonesa que os fãs usam para
descrever personagens que acham atraentes. Sua galeria bishonen inclui duas fotos de Scott, com
o comentário de que ela o acha parecido com Squall, herói do jogo Final Fantasy. Reconhecer as
fontes de imagens por atribuição e nomear as fontes e seus criadores originais é algo importante
nesses ambientes on-line, como uma forma de marcar explicitamente que uma imagem ou um
personagem é extraído de designs de significado disponíveis. Todavia, Rhiannon não faz uso desse
espaço apenas para reproduzir os designs disponíveis que encontrou, mas se torna, sobretudo, uma
designer de significados, contando suas próprias histórias de uma forma altamente inovadora, o
que torna, de alguma forma, o mundo um redesigned para os leitores que visitam sua página na
internet. 13
Multimodalidade
Novas mídias e multimodalidade
Segundo os pesquisadores Hull e Nelson, West Oakland, Califórnia, EUA, é uma comunidade
"isolada que tem tido tempos difíceis, com altas taxas de desemprego e criminalidade, uma
infraestrutura em deterioração, escolas em dificuldade e poucos recursos comuns que a maioria
das comunidades considera naturais, como supermercados, livrarias, restaurantes e bancos". As
pessoas que moram lá atualmente são, em sua maioria, "residentes afro-americanos de longa
data, bem como imigrantes recentes do sudeste da Ásia, do México e da América do Sul". 14 Diante
desse cenário, os moradores de lá têm tentado encontrar maneiras de recuperar o senso de
comunidade, e uma delas foi a criação de um centro comunitário chamado de "Digital Underground
StoryTelling for You(th)" (Dusty), que trabalha contação e produção de histórias digitais para a
juventude, combinando imagens fixas e em movimento, incluindo música e texto escrito e oral.
Pelo fato de Oakland ser conhecida como o berço de muitos rappers famosos, a produção de
música digital parece ter evoluído naturalmente como uma parceira para a contação de histórias
digitais.
A esse respeito, Hull e Nelson destacam que, no Dusty, as crianças de 9 e 10 anos, "aspirantes a
artesãos das palavras, podem ser vistas escrevendo suas letras, praticando seus diferentes estilos e
profundamente engajadas no uso de um software sofisticado que permite a cr'Íação de batidas
digitais". 15
Como exemplo, encontramos Randy Young, que estava criando uma peça de narrativa digital
intitulada Lyfe-N-Rhyme. Com pouco mais de dois minutos, sua história, que combina
13 Idem, 2003a.
14 Hull & Nelson, 2005, p. 230.
15 Idem, ibidem.
Lyfe-N-Rhyme não é apenas uma história poderosa, mas também uma síntese transcendente de forma e
significado por meio de u_m a variedade de modos semióticos. Sim, somos imediatamente tocados e
perturbados pelas palavras que Randy profere. Sim, a montagem de imagens que ele expõe é organizada
com um efeito impressionante: agora reconfortante, agora chocante e assim por diante. E, sim, nós sentimos
o pulso da música e do verso em nossos peitos e mentes. Crucialmente, porém, enfatizamos que o poder
sentido a partir dessa peça não é equivalente à experiência simultânea, que se adiciona aos efeitos acima
mencionados, como se poderia supor. Mais uma vez, a importância total da tapeçaria semiótica que Randy
fabrica não está apenas na, mas também entre a textura e a trama. 17
No Brasil, um projeto bastante interessante voltado ao estudo de letramentos não escolares foi
desenvolvido por Ana Lócia Silva Souza, 18 descrito por Kleiman, 19 sobre jovens ativistas do movimento
hip-hop. Segundo Kleiman:
a apropriação da escrita permitiu aos participantes da pesquisa, jovens ativistas no movimento do hip-
-hop, redimensionar suas identidades como negros, moradores de periferia e ativistas, ressignificando
seus papéis sociais. Os jovens participantes da pesquisa foram aos poucos ampliando seu raio de ações,
passando da contestação por meio de música e fala engajada, ao trabalho de educação e de formação
em contextos educativos. Nesse processo, eles resistiam a modelos que os tinham excluído do espaço
escolar e usaram a fluidez da expressividade cultural do hip-hop para se tornarem agentes de letramento
que falam a língua de alunos vindos das margens da cidade - sem empregos, sem espaços de lazer, sem
cuidados por parte do Estado - e continuam nas margens do sistema escolar. Foi no seio das práticas
culturais do movimento hip-hop e no decorrer dos densos debates, que a pesquisa de Souza propiciou
o espaço em que os jovens do grupo hip-hop Educando encontraram os modos de falar e escrever e os
acervos de leitura que usaram nas suas atividades com fins educativos, de relevância para membros de
suas comunidades de origem. Fizeram parte desse acervo de materiais com fins educativos, capa de
CD, fanzine, rap, grafite, assim como produções coletivas de organização de eventos. Ao mesmo tempo,
eles iniciavam, cautelosamente a princípio e com plena autoridade mais tarde, a participação em
seminários e palestras sobre relações raciais e discriminação, baseados na leitura de textos sobre a
história da população negra no Brasil, em contextos escolares e universitários. A composição de rap,
a elaboração dos fanzines, os eventos coletivos não apenas "causavam" - davam-lhes notoriedade e
..,Jt
protagonismo - como também tornavam o manejo da língua oral e escrita um poderoso instrumento
formador nas escolas e faculdades que os jovens visitavam (ainda às margens dos esforços educacionais
do centro, é claro), pois eles imprimiam a resistência do movimento a práticas letradas escolares que,
por um lado, valorizavam e, por outro, refutavam, reformulando-as nesse processo. Souza caracteriza
16 Idem, p. 238.
17 Idem, ibidem.
18 Souza, 2009.
19 Kleiman, 2010.
180 i LETRAMENTOS
as práticas dos jovens ativistas como práticas de "reexistência", pois eles não apenas resistiam ao modelo
cultural legitimado, como também permitiam integrar e ressignificar as práticas relacionadas a outras
esferas de atividades do cotidiano, de duração provisória, nos espaços moventes da rua, em que
geralmente atuavam. º 2
Anatureza da multimodalidade
Na teoria dos multiletramentos, identificamos sete modos de significação: escrito, visual, espacial,
tátil, gestual, auditivo e oral. A multimodalidade é a teoria de como esses modos de significado
estão interconectados em nossas práticas de representação e comunicação. Usamos um estratagema
que chamamos de análise do design para descrever essas interconexões, assim como usamos o termo
design para contornar as limitações do termo "gramáticà', frequentemente associado de forma muito
restrita ao letramento da "letrà' e a uma estruturação tradicional de estudar línguas (fonologia,
morfologia e sintaxe).
Por mais que tentemos separar o modo escrito para lidar com o letramení;jt na abordagem
didática - aprender a ler e escrever na perspectiva tradicional -, toda representação e toda
comunicação são intrinsecamente multimodais. Por exemplo, o uso da escrita pressupõe um estágio
de visualização e de conversa sobre o que se está escrevendo, seguido por um estágio de toque e
movimento da caneta no papel ou de digitação do texto em um computador, o que é também um
processo visual, tátil e linguístico. Durante a leitura, o mesmo acontece: a pessoa rerrepresenta
Modos de significação
O Quadro 8.4 mostra os modos de significação que trabalham de forma cada vez mais conjunta,
literalmente, em nossos dispositivos para escrever, ler, falar, ouvir e ver imagens. Organizamos
os modos pelas semelhanças ou conexões práticas que apresentam em relação a seus vizinhos: a
escrita e a imagem são expressas visualmente, isto é, sua experiência se dá no espaço, que é visual;
por isso, imagem e texto escrito podem ser facilmente reunidos em um mesmo local (mais
facilmente, na mídia digital, do que nunca); o tátil, por sua vez, é um encontro corporal com
objetos no espaço; já o gesto é uma relação corporal com o espaço e uma representação com uma
afinidade muito próxima ao toque. O gesto também frequentemente se sobrepõe à fala, colocando
em ação dois modos simultâneos e estreitamente interconectados. Os modos escrito, visual,
espacial e gestual usam nosso sentido de visão; o modo oral, o sentido da audição; o modo tátil,
os sentidos corporais de toque, olfato e paladar; e os modos gestual e tátil, os sentidos de cinestesia
ou presença corporal.
Contudo, para todos os cruzamentos e conexões, classificamos os diferentes modos em categorias
distintas, pois cada um representa um lugar específico onde sistemas discretos de co~ trução de
significado humano ocorrem - como, por exemplo, na distinção entre mandarim como língua
falada e escrita chinesa, posto que essa língua não se constitui com base em um sistema fônico
(relação entre fonema e grafema); ou nas diferenças nos modos de significação entre fotografia,
música, língua de sinais ou arquitetura.
Nesse sentido, cada modo possui seus próprios sistemas de interconexão das partes componentes
do significado. Além disso, modos diferentes de significado e diferentes combinações de modos
Significado escrito (mais sobre isso nos Leitura (representando o significado para si mesmo conforme interpreta a mensagem
capítulos 9 e 10). escrita de outra(s) pessoa(s) - capítulo 9) e escrita (comunicando significados escritos
por meio de traços que podem ser encontrados por outro(s) como um gatilho de men-
sagem - capítulo 10).
Significado visual (mais sobre isso no Construção de imagens estáticas ou em movimento (comunicando significados por meio
capítulo 11). de traços que podem ser vistos por outro(s) como um sinal visual de mensagem); vendo
imagens, cenas (rerrepresentando significados visuais para si mesmo, dependendo da
perspectiva e dos pontos focais de atenção e interesse).
Significado espacial (mais sobre isso no Posicionamento em relação ao(s) outro(s), criação de espaços e formas de se movimen-
capítulo 12). tarem espaços (que outro(s) pode(m) experimentar na comunicação); e experimentação
de significados espaciais (rerrepresentando significados espaciais para si mesmo como,
por exemplo: proximidade, /ayout, distância interpessoal, territorialidade, arquitetura/
construção, paisagem urbana).
1
Significado tátil (mais sobre isso no Construção de experiências e coisas cujos efeitos podem ser sentidos, como toque, oi-
capítulo 12). fato e paladar (comunicação tátil) e rerrepresentação de significados táteis para si
mesmo, na forma de significados que se atribuem às sensações corporais, como senti-
mentos de tocar e ser tocado. Formas de comunicação e representação táteis incluem
sensações da pele (temperatura, textura e pressão), apreensão, objetos manipuláveis,
artefatos, aromas e ações como cozinhar e comer. Para aqueles sem a capacidade cor-
poral de ver, a linguagem escrita pode ser traduzida em sua totalidade em significado
tátil, por exemplo, na forma de Braille.
f Significado gestual (mais sobre isso no Comunicação através de movimentos do corpo: mãos e braços, expressões da face,
capítulo 12). movimentos oculares e visuais, comportamentos do corpo, vestuário e moda, estilo de
penteado, dança, sequências de ação, manifestando-se de muitas formas, incluindo
cerimônias e rituais.
Significado sonoro (mais sobre isso no Comunicação que usa música, sons ambientes, ruídos, alertas (significando interação
capítulo 13). social); e audição (um indivíduo rerrepresentando significados sonoros que encontra
para si mesmo, ou imaginando sons).
Significado oral (mais sobre isso no Comunicação na forma de fala ao vivo ou gravada (representando significado para
capítulo 13). outro(s)); e audição (rerrepresentando significados orais que alguém encontra para si
mesmo, falando consigo mesmo ou ensaiando a fala pretendida).
Quadro 8-4: Modos de significação.
Oprocesso de sinestesia
..,/r
Mesmo lidando com impressos em preto e branco, Mirabelle experimenta cores quando vê
■úmeros. Já Esmeralda, quando ouve a nota C# (dó sustenido), tocada em um piano, vê azul .
.fuabelle e Esmeralda são duas participantes de pesquisa do neurocientista V. S. Ramachandran
I
Jrmância entre modos e ambas têm uma condição chamada sinestesia, um fenômeno que não é
de significar. considerado um distúrbio neurológico como tal, mas sim uma "mistura surreal
de sensação, percepção e emoção", que, no sentido bastante restrito e diagnóstico, é algo que apenas
1111gumaspessoas experimentam. No entanto, o neurocientista argumenta que a sinestesia não lança
Assim, o conceito abstrato de "gato" une uma série de sensações através de um processo de
"síntese transensorial", que é algo que todos nós experimentamos. Ainda segundo Ramachandran,
a metáfora é um processo similar, pois, assim como a "sinestesia envolve a criação de ligações
arbitrárias entre entidades perceptivas aparentemente não relacionadas, como cores e números, a
·metáfora envolve a criação de ligações não arbitrárias entre domínios conceituais aparentemente
não relacionados".2 3
Vale, contudo, destacar que, neste livro, usamos a palavra "sinestesia'' em um sentido mais
amp lo do comumente encontrado na psicologia e na neurociência. Fazemos isso com base em
mecanismos cognitivos fundamentais que
todos compartilhamos, subjacentes à sines-
tesia. Mais especificamente, entendemos a
sinestesia como um processo de alternância
e de mistura de diferentes modos de signi-
ficação, constituindo, assim, uma forma de
expressar um significado em um modo, de-
pois em outro. Por exemplo, é possível des-
crever uma cena em palavras ou retratar a
mesma cena por meio de uma pintura; a
pessoa que interpreta o significado visualiza
a cena de maneira diferente se ouve as pala-
vras ou se vê uma pintura da cena, ainda que
sejam tentativas de representar e comunicar
Figura 8.8: Sinestesia ou alternância de modos. a mesma coisa.
Sinestesia e aprendizagem
184 / LETRAMENTOS
abordagem sinestésica pode ser usada como suporte pedagógico para aprender a ler e escrever, por
meio da justaposição e da transposição de modos de significado paralelos ou complementares,
como as imagens em um livro infantil, os diagramas em um livro de ciências, ou uma discussão
oral sobre um texto escrito.
Uma professora de ciências está trabalhando com seus alunos do 9Q ano do ensino fundamental
circuitos elétricos por meio de um projeto de pesquisa na perspectiva do Learning by Design. Ela
pede aos alunos que criem uma simulação de apagão após forte temporal ("experimentando o
novo"). O que aconteceria se não houvesse eletricidade por um certo tempo? Ela apresenta aos
alunos o material textual sobre eletricidade e circuitos elétricos em imagens e diagramas, assim
como textos teóricos explicativos ("conceituando por nomeação e por teorià') . Faz os alunos criarem
um alarme antifurto, usando todos os modos tátil e gestual de construção de protótipos ("aplicando
apropriadamente"). Em seguida, também pede que eles criem instruções de instalação para um
eletricista e instruções de uso para leigos ("analisaudo funcionalmente"). Finalmente, a professora
faz os alunos refletirem oralmente sobre a diferença entre vender a seus pais a ideia de instalar um
alarme antifurto e fornecer a um técnico instruções de instalação claras e precisas ("analisando
criticamente").
· Por que focalizar a multimodalidade dos letramentos e o poder da sinestesia? Em parte porque a
multimodalidade sempre existiu, mas tem sido negligenciada em algumas pedagogias, inviabilizando,
assim, a possibilidatle de criação de ambientes de aprendizagem envolventes e eficazes para as crianças.
Os estudiosos e teóricos educacionais mais perspicazes há muito tempo já sabiam disso, como Friedrich
Froebel, o iniciador, no século XIX, da ideia de "jardim da infâncià: e Maria Montessori, que projetou
suas "engenhocas" de aprendizagem altamente táteis na virada do século XX.
No contexto das culturas indígenas brasileiras, por exemplo, um trabalho interessante que
pesquisa o texto multimodal de autoria indígena é a tese de doutorado de Elisa Thiago, que, entre
outras questões, destaca que a sinestesia ajuda a entender os processos comunicativos que ocorrem
no texto multimodal de autoria indígena de duas formas:
Para explicar essa relação multimodal entre a oralidade e o desenho, a autora destaca o livro
Mitologia sagrada dos Tukano Hausirõ Porã, 25 em que as figuras (os desenhos) cumru;em o seu papel
de "complementar aquilo que não foi dito em toda a sua extensão no texto alfabético. Nesse sentido,
o 'emprego simultâneo' [co -deployment] de recurso verbal e pictórico assegura uma complementação
da informação, numa relação entre o texto visual e o texto alfabético".26
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Figura 8.9: Mitologia sagrada dos Tukano Hausirõ Porõ.'8
Cada vez mais, torna-se premente expandir a ideia de letramento para letramentos multimodais.
Uma das razões es!á relacionada aos conteúdos disciplinares para além das próprias aulas ou
mesmo do currículo de leitura e escrita. Por exemplo, um projeto de história local pode incluir
não apenas a escrita, mas fotografias, uma linha do tempo e uma entrevista oral em vídeo. Do
mesmo modo, o relatório científico de um experimento pode incluir não apenas a descrição de
hipóteses, métodos e resultados, mas ainda diagramas, tabelas e, talvez também, uma gravação
de vídeo mostrando (gestualmente) o experimento em si. Nesse sentido, o melhor tipo de projeto
de história e o experimento científico mais bem documentado podem ser aqueles cujos processos
são comunicados multimodalmente, como, por exemplo, através de dispositivo de gravação digital
- hoje mais possível do que nunca -, uma vez que temos atualmente cada vez mais maneiras
diferentes e acessíveis de registrar e compartilhar as realidades sinestésicas da repre_~ntação e
da comunicação do conhecimento.
Com efeito, considerando as comunicações em geral, os meios de representação se expandiram
enormemente nas últimas décadas, mais significativamente com o surgimento da mídia digital.
. Essa é a consequência, em parte, de uma série de transformações ao longo do século XX nos meios
de produção e reprodução de significado, começando pela fotografia e seus derivados, e passando
27 Idem, ibidem.
28 Idem, p. 212.
186 / LETRAMENTOS
também pela telefonia e pelas possibilidades de gravação de som. No entanto, tem havido uma
aceleração substancial do ritmo de mudança desde a aplicação generalizada das tecnologias digitais
a partir do início do último quarto do século XX.
Nesse contexto, novos letramentos emergem, centrados nas possibilidades dessas novas tecnologias
para a expressão híbrida e multimodal. Até meados do século passado, havia uma separação mais
marcada entre o modo escrito, materializado pela impressão tipográfica (tipografia), e o modo
visual, impressão de imagens (litografia). No entanto, a partir de então, a composição de fotos e a
fotolitografia começaram a aproximar texto e imagem na página impressa. Com as tecnologias
digitais, imagem e texto se tornam ainda mais interligados e uma mídia multimodal verdadeiramente
integrada emerge. A partir de meados da década de 1990, a World Wide Web leva isso ainda mais
longe com a sobreposição de textos, ícones e imagens, e o uso extensivo de metáforas espaciais e
arquitetônicas associadas à navegação pela rede. Essas tecnologias também incluem a capacidade
de sobrepor o áudio porque, em última análise, o som também pode ser transformado no mesmo
material gravável digitalmente por meio de codificações binárias. O efeito de todas essas mudanças
ao longo do último meio século tem sido, entre outras coisas, o de reduzir o lugar privilegiado da
língua escrita na cultura ocidental e, progressivamente, tornar outros modos mais relevantes para
a construção de significado. Projetos de aprendizagem, ensino e avaliação de letramentos precisam
levar em conta essas mudanças, se quiserem manter uma conexão vital com a vida cotidiana das
pessoas em nosso mundo contemporâneo.
Elementos do design
Descrevendo significado a fim de pensar sobre significado
Referência
,Os significados se referem a .. . quem? E o quê?
Diálogo
Os significados conectam quem e o quê? ... Como?
Estrutura
Os significados se mantêm juntos ... Como?
Situações
Os significados são localizados ... Onde? Quando?
Intenção
Os significados são .. . Para quem? Por quê?
Toda construção de significado, em todos os modos, opera em cinco níveis para os quais essas
questões se dirigem. Nós nos referimos a coisas, eventos, processos e abstrações; dialogamos
188 i LETRAMENTOS
com nós mesmos e com os outros; estruturamos nossos significados de maneiras que podem ser
tanto convencionais quanto, de alguma forma, sempre inovadoras, na medida em que cada novo
design recombina exclusivamente designs disponíveis e constrói um significado redesigned;
situamos nossos significados em contextos, ou, pelo menos, descobrimos que eles estão situados
em um determinado contexto; e pretendemos fazer algo quando posicionamos ou encontramos
significados em redes de propósito ou agência que expressam nosso interesse. Essas são algumas
das maneiras pelas quais essas cinco perguntas sobre o significado se desenrolam nos diferentes
modos.
A que os significados se referem? A referência pode delinear coisas específicas, por meio da
escrita ou da fala, na forma de substantivos para representar coisas, ou verbos para representar
processos; nas imagens, determinadas coisas podem ser delineadas com linha, forma e cor; no
espaço, com volumes e limites; em representações táteis, com texturas em superfície; com gestos,
em atos de apontar ou sinalizar. A referência também pode ocorrer em relação a um conceito geral
para o qual existem muitos exemplos: uma palavra que se refere a um conceito abstrato; uma
imagem que é um símbolo; um espaço que é caracterizado por sua semelhança com outros; ou um
som que representa uma ideia geral. A referência pode, outrossim, estabelecer: relações (preposições
ou pronomes possessivos, na língua escrita ou oral; posicionamento ou contraste, na imagem);
qualidades (adjetivos ou advérbios, na língua escrita ou oral; ou atributos visuais, em imagens); e
comparações (incluindo justaposições ou metáforas de todos os tipos, em palavras, imagem, som
ou espaço).
É possível, por exemplo, ter a frase "As montanhas são grandes", seguida por uma imagem que
fornece uma expressão inteiramente semelhante, ou bem diferente, da mesma coisa, que pode ter
um caráter complementar, suplementar ou talvez disruptivo. Por mais que desejemos apontar os
paralelos entre os modos, também queremos destacar as diferenças irredutíveis que explicam as
variações e rupturas, e oferecer evidências do valor complementar da multimodalidade. Nesse
sentido, é factível dizer que a escrita consiste em elementos de significado sequenciais que, na língua
portuguesa, ~e constituem por meio de uma palavra implacavelmente de cada vez, da esquerda
para a direita, linha por linha, o que nos exige um caminho de escrita e de leitura que prioriza o
tempo, porque a progressão do texto nos conduz através do tempo. A imagem, ao contrário,
apresenta-nos vários elementos de significado simultaneamente, posto que seu caminho de
visualização prioriza o espaço. No entanto, quando fazemos as duas coisas, isto é, quando lidamos
com a escrita e com a imagem, podemos alcançar um significado mais completo, mais nuançado,
ou, nesse sentido, um significado menos estabelecido.
Como os significados conectam os participantes na construção de significado? Aqui estabelecemos
papéis: orador/ouvinte, escritor/leitor, designer/usuário, produtor/consumidor, gestor/observador,
criador de sons/ouvinte. Direcionamos ou encontramos orientações: na língua, ptlfn.eira/segunda/
terceira pessoa e discurso direto/indireto; em imagem, posicionamento e linhas dos olhos; em gesto,
apontando para si mesmo, para os outros e para o mundo. Também encontramos agência: na língua,
por meio da voz, do humor e da transitividade; na imagem, por meio de planos focais de fixação
e engajamento; no espaço, por meio de aberturas e barreiras. E descobrimos uma gama de elementos
potenciais interpretativos: textos abertos e fechados; imagens realistas e abstratas; gestos diretivos
ou de tomada de turnos; espaços que indicam fluxos deterministicamente e outros que permitem
uma gama de alternativas.
190 1 LETRAMENTOS
• Referência: quem e o que está na história? (Rosie, a galinha, e a raposa.) Como elas são
representadas em palavras, imagens, sons, espaço e gestos? Que ação é retratada? (A jornada de
Rosie.)
• Diálogo: como o produtor do significado está conectado ao destinatário? (O autor como contador
de histórias, o ilustrador do livro, o videomaker - não fazemos parte da história da mesma
maneira se estamos jogando, por exemplo.)
• Estrutura: como a história se mantém? (A maneira como o texto é apresentado nas páginas do
livro, cada parte da história em uma nova página.) Como as imagens no livro estão relacionadas
ao texto? O que cada exemplo de escrita e de imagem lhe diz que o outro não? Como o vídeo
é usado como um storyboard?
• Situação: onde esse texto pode ser encontrado? Onde vamos ler o livro ou assistir ao vídeo?
Por quê?
• Intenção: quais são os interesses e motivações dos personagens? (Por exemplo, Rosie e a raposa.)
Como estamos posicionados? (O que sabemos que Rosie e a raposa não sabem? Qual é a moral
da história?)
Por meio dessas perguntas, os alunos começaram, então, a desenvolver uma metalinguagem
para descrever os elementos do design desses textos multimodais.
Referência: a que os significados se referem? Qual é o ponto de referência? O que isso denota? Qual(is) é(são)
o(s) seu(s) assunto(s)? - lembrando, é claro, que as respostas a
essas perguntas podem ser fluidas, ambíguas e uma questão de
interpretação.
Diálogo: como os significados conectam as pessoas que estão Como os acontecimentos surgem? Quem/o que faz com que
interagindo? eles se deem e quais os seus efeitos? Como as pessoas estão
interagindo conectadas? Que relações interpessoais, pessoas
em relação a objetos e objetos em relação a pessoas, os signifi-
cados tentam estabelecer? Lembrando, é claro, que os partici-
pantes sociais podem não ver as conexões sociais da mesma
maneira.
Estrutura: como os significados em geral se mantêm juntos? O que faz um sentido se tornar coerente? Qual é a sua compo-
sição? Quais são suas partes e como estas se encaixam? Como
é sua organização e como é sua estrutura? - não que todos
sintam necessariamente que seus próprios sign ificados ou os
significados que encontram são sempre totalmente coerentes
ou que se pode chegar a fundo sobre qualquer assunto que é
comunicado.
Situação: em que contexto(s) os significados estão localizados? Como o significado está relacionado ao seu entorno? Como o
significado se encaixa no contexto mais amplo de significação?
Intenção: a que propósitos e interesses esses significados estão Por que as pessoas estão engajadas em atj.lJ!id ades de constru-
destinados a servir? ção de significado? O que as motiva? Como o significado, seu
contexto e sua recepção revelam os interesses dos envolvidos?
Como o comunicador considera seu público? Quem é mais e
menos poderoso? Os interesses dos diferentes criadores de
mensagens sempre variam, dependendo de quem são, e os
interpretantes dessas mensagens sempre trazem seus interes-
ses e identidades para sustentar o que fazem com os signifi-
cados.
Quadro 8.6: Uma gramática do significado multimodal.
• Comunicação: construindo significados para outras pessoas, recebidos por elas como mensagens e interpretados de acordo
com seus interesses e perspectivas.
• Designs (disponíveis): recursos para significação que nos levam ao engajamento em atividades de designing: criando novos
significados por meio do retrabalho com os recursos disponíveis para gerar o (re)designed: novos significados criados por meio
do designing.
• Modos de significado:
- significados escritos: escrita e leitura;
- significados visuais: percepção e imagem;
- significados espaciais: localização e posicionamento;
- significados táteis: toque e sensação corporal;
- significados gestuais: linguagem corporal;
- significados sonoros: som e música;
- significados orais: fala e escuta.
• Elementos do design:
- Referência: o que os significados descrevem?
- Diálogo: como os significados conectam as pessoas que estão interagindo?
- Estrutura: como os significados em geral se mantêm juntos?
- Situação: como os significados são moldados pelo seu contexto?
- Intenção: a que propósitos e interesses esses significados estão destinados a servir?
Processos de conhecimento
1. Conceitualizando por nomeação
Assista a um ou mais vídeos dos que ilustram os multiletramentos na prática em <http://
newlearningonline.com/multiliteracies/videos/>. Identifique semelhanças e diferenças entre essa
pedagogia e a que se enquadraria na pedagogia do letramento na abordagem didática.
3. Analisando funcionalmente
Realize uma análise do design de um texto comum do cotidiano, como um artigo de jornal ou um
vídeo. Identifique no texto os elementos do design usando as cinco questões sobre o significado
apresentadas neste capítulo.
4. Aplicando criativamente
Desenvolva um plano de aula que faça uso de diferentes modos de significado e que envolva a
sinestesia.
192 j LETRAMENTOS
Visão geral
Os próximos dois capítulos examinarão a língua escrita, começando, neste, com uma discussão
acerca de diferentes abordagens para aprender sobre as conexões entre os sons da fala e a representação
escrita desses sons. O objetivo deste capítulo é explorar abordagens voltadas para a leitura,
construindo sentidos a partir de textos escritos. Já o capítulo 10 discute abordagens alternativas
para descrever como a língua escrita funciona, da gramática tradicional da abordagem didática,
passando pela gramática transformacional-gerativa de Chomsky e pela gramática funcional de
Halliday, até chegar à nossa própria abordagem dos multiletramentos, especificamente no que diz
respeito ao seu tratamento para o que chamamos de "elementos do design" de textos escritos.
No decorrer deste e dos capítulos seguintes, exporemos e explicaremos as ferramentas conceituais
e a metalinguagem para analisar os designs dos modos de significação: escrito, visual, espacial, tátil,
gestual, de áudio e oral. Começaremos com o modo escrito, aqui e no capítulo 10, por nenhum
outro motiv~ que não seja o de que a escrita tem sido o foco tradicional do ensino e da aprendizagem
do letramento. Passaremos então a delinear algumas ferramentas para a análise do design de
laálise do design: um processo de significados visuais no capítulo 11, porque a escrita e a imagem compartilham
análise dos elementos do design de importantes características: ambas são apreendidas por nosso sentido de visão
forma mono e/ou multimodal. e, atualmente, designs visuais e escritos estão mais próximos do que nunca. Em
seguida, percorreremos uma análise do design de significados espaciais, táteis e gestuais, no capítulo
12, para, então, vermos os modos sonoro e oral intimamente conectados no capítulo 13. Esses dois
últimos modos são agrupados em um capítulo porque compartilham o sentido da audição como
seu principal meio de apreensão.
Deliberadamente, separamos os significados orais e escritos, colocando-os emiádos opostos da
nossa análise do design, a fim de destacar suas diferenças mais importantes. Isso porque, muito
embora, é claro, os modos escritos e orais estejam intimamente relacionados por meio do fenômeno
da língua, existem algumas diferenças bastante relevantes das quais precisamos estar cientes
nos estudos dos letramentos. De fato, queremos argumentar que os modos escritos e orais são tão
diférentes um do outro quanto cada um dos outros modos entre si, ao mesmo tempo que estão
tão intimamente relacionados quanto todos os demais modos, o que, intrinsecamente, constitui a
própria natureza da multimodalidade.
Capítulo 9
Construindo significados
por meio da leitura
Visão geral
Os próximos dois capítulos examinarão a língua escrita, começando, neste, com uma discussão
acerca de diferentes abordagens para aprender sobre as conexões entre os sons da fala e a representação
escrita desses sons. O objetivo deste capítulo é explorar abordagens voltadas para a leitura,
construindo sentidos a partir de textos escritos. Já o capítulo 10 discute abordagens alternativas
para descrever como a língua escrita funciona, da gramática tradicional da abordagem didática,
passando pela gramática transformacional-gerativa de Chomsky e pela gramática funcional de
Halliday, até chegar à nossa própria abordagem dos multiletramentos, especificamente no que diz
,espeito ao seu tratamento para o que chamamos de "elementos do design" de textos escritos.
: decorrer deste e dos capítulos seguintes, exporemos e explicaremos as ferramentas conceituais
lll!ffltinguagem para analisar os designs dos modos de significação: escrito, visual, espacial, tátil,
gestual, de áudio e oral. Começaremos com o modo escrito, aqui e no capítulo 10, por nenhum
outro motivo,que não seja o de que a escrita tem sido o foco tradicional do ensino e da aprendizagem
do letramento. Passaremos então a delinear algumas ferramentas para a análise do design de
Análise do design: Um processo de significados visuais no capítulo 11, porque a escrita e a imagem compartilham
análise dos elementos do design de importantes características: ambas são apreendidas por nosso sentido de visão
forma mono e/ou multimodal. e, atualmente, designs visuais e escritos estão mais próximos do que nunca. Em
seguida, percorreremos uma análise do design de significados espaciais, táteis e gestuais, no capítulo
12, para, então, vermos os modos sonoro e oral intimamente conectados no capítulo 13. Esses dois
últimos modos são agrupados em um capítulo porque compartilham o sentido da audição como
seu principal meio de apreensão.
Deliberadamente, separamos os significados orais e eséritos, colocando-os em--lãdos opostos da
nossa análise do design, a fim de destacar suas diferenças mais importantes. Isso porque, muito
embora, é claro, os modos escritos e orais estejam intimamente relacionados por meio do fenômeno
da língua, existem algumas diferenças bastante relevantes das quais precisamos estar cientes
nos estudos dos letramentos. De fato, queremos argumentar que os modos escritos e orais são tão
diferentes um do outro quanto cada um dos outros modos entre si, ao mesmo tempo que estão
tão intimamente relacionados quanto todos os demais modos, o que, intrinsecamente, constitui a
própria natureza da multimodalidade.
Análise do design ,. Respondendo às cinco perguntas sobre os significados:
Nomeando os elementos ou componentes do design
• A que se referem os significados (Referência)?
que se combinam para criar padrões de significados:
• Como os significados conectam as pessoas que estão se comunicando
• escrito;
(Interação)?
• visual;
• Como os significados em geral se mantêm unidos (Composição)?
• espacial;
• Onde os significados estão situados (Contexto)?
• tátil;
• A que interesses esses significados servem (Propósito)?
• gestual;
• sonoro;
2. Vendo como os designs são construídos, diferentemente o tempo todo:
• oral.
• a partir de designs (disponíveis);
• para o designing;
• para o (re-)desjgned.
Quadro 9.1: Elementos da análise do design.
194 1 LETRAMENTOS
No início do processo de análise do livro, os alunos imaginam como seria viver e trabalhar em
um lixão e assistir a um documentário que descrevesse a realidade dessa experiência. Antes de
começarem a ler, eles predizem o que o livro poderia ser. Usando uma estratégia de leitura em
pares, os alunos leem o livro, capítulo por capítulo, recontando e resumindo à medida que discutem
os aspectos da linguagem narrativa.
Por fim, estamos em uma turma do 92 ano, estudando o livro A revolução dos bichos, de George
Orwell. A história se passa em uma granja onde os animais discutem e almejam construir uma
sociedade ideal. Isso porque o dono da granja, Sr. Jones, explora os bichos, deixando-os passar
fome. Revoltados com essa situação de dominação e exploração, os animais, liderados pelo porco
Major, decidem fazer uma revolução, começando pela expulsão do Sr. Jones da granja.
Ao trabalhar com o livro, a professora inicialmente lida com o processo de conhecimento
"experienciando o conhecido" dos seus alunos, discutindo suas experiências de poder e dominação.
As atualizações que se seguem convidam os alunos a explorar a biografia de George Orwell, a
Revolução Russa, o stalinismo e a natureza da alegoria. Em relação às nossas questões de significado,
A revolução dos bichos dificilmente pode ser entendido apenas em termos do que é dito no texto.
Para fazer sentido, deve estar situado no contexto sócio-histórico mais amplo.
Esses exemplos ilustram uma série de estratégias na pedagogia da leitura. Agora, vamos à teoria
subjacente ...
A pedagogia do letramento na abordagem didática tende a lidar com a tarefa de aprender a ler
a palavra escrita, concentrando-se nas correspondências entre letra-som, ou nas maneiras pelas
quais os sons da fala são transcritos na escrita alfabética. Nessa concepção, a leitura é principalmente
um exercício de decodificação, em que os alunos, então, decodificam as letras (grafemas) de uma
palavra em sons significativos da língua (fonemas); eles pronunciam a palavra, vocal ou
silenciosamente, e, em seguida, conectam a imagem visual da palavra com o seu som e o seu
significado, assumindo que já conhecem bem seu significado na língua falada.
Assim, quando as crianças aprendem a ler em português, por exemplo, elas também aprendem
que seu código é executado da esquerda para a direita, que os sons das palavras podem ser divididos
em partes distinguíveis e que essas partes podem ser representadas por letras ou grupos de letras.
No entanto, há códigos escritos que não seguem essas convenções: o árabe, por exemplo, ao contrário
do português, vai da direita para a esquerda; o hebraico não inclui as vogais; o chinês representa
principalmente ideias, e não sons, em seus caracteres, muito embora o português também possua
caracteres logográficos, isto é, que representam uma ideia em vez de seus sons (como, por exemplo,
os caracteres "8", "+"e"@"), de maneira semelhante aos logogramas chineses.
Em uma abordagem didática do letramento, a decodificação fônica é um primeiro passo na
mecânica da leitura em língua portuguesa. Nesse sentido, a criança tem que aprender formalmente
a relação entre fonema e grafema, porque não há conexão óbvia, ou natural, entre, por exemplo, a
letra "à' e seu som correspondente, ou a letra "b" e seu som correspondente. Nessa abordagem,
portanto, a criança se torna boa leitora se puder ler em voz alta, clara e fluentemente, ou mesmo
eloquentemente.
Aprender a ler e escrever por meio da relação formal entre fonema e grafema, combinando os
sons das letras em palavras, é basicamente o método fônico sintético (veja também o capítulo 4).
O professor começa ensinando aos alunos os nomes e os sons das letras, geralmente começando
com consoantes seguidas de vogais, para que as crianças possam ler e soletrar palavras monossílabas,
como, por exemplo, no par "pá'' e "pé". Já em uma fase posterior do processo de aprendizagem, são
apresentados os encontros consonantais e dígrafos, como em: "planta" ou "livro", "chuvà' ou "banho",
além dos ditongos, tritangos e hiatos, como em: "boi", "Paraguai" e "baú". Os alunos também
aprendem palavras com mais de uma sílaba, regras ortográficas e pontuação. Essa abordagem, que
parte das letras às palavras, foi abrandada por uma outra conhecida como analítica que, em contraste
com a sintética, parte das palavras às letras, em que os leitores são solicitados a pronunciar palavras
inteiras significativas, identificar seus componentes sonoros e alinhá-los, então, à grafia
correspondente. '
Sintético Analítico
196 1 LETRAMENTOS
Leitura como decodificação e construção de significado
li
[!l .
·.• Veja: "Decreto 9.765, de 11 de abril 2019':
A essa nova diretriz de alfabetização do governo federal, que vem causando bastante polêmica,
diversos especialistas em educação se manifestaram contrários, pois consideram que o método
fônico deve fazer parte do processo de alfabetização, mas, além de aprenderem a relação entre
grafemas e fonemas, os alunos precisam compreender, acima de tudo, os usos sociais da leitura e
da escrita.
f■.,
· l!l·. Veja: "Pensar que se resolve a alfabetização com o método fônico é uma ignorância".
l!l ..
Uma primeira tentativa de contornar esses problemas relativos ao uso do método fônico foi a
que veio a ser chamada de abordagem "olhe-digi' ("look-say" approach), palavra inteira, ou global.
Nessa abordagem, defende-se que as crianças deveriam aprender palavras inteiras como unidades
de sentido, isto é, as palavras como um todo, incluindo sua pronúncia, antes de aprender os elementos
que as compõem.
Dick, Jane, sua família e seus animais de estimação tornaram-se famosos pelo seu mundo onde a noite
nunca chega, os joelhos nunca se arranham, pais nunca gritam, e a diversão nunca para. A editora Scott
Foresman, na qual Dick e Jane apareceram pela primeira vez, influenciou enormemente a maneira como
se ensinava a ler. As crianças usavam o método da palavra inteira com um texto estritamente controlado,
que as ajudava a aprender as palavras que apareciam com figuras, reconhecendo as palavras inteiras só
de olhar, em vez de pronunciá-las letra por letra. O sucesso comercial da coleção da editora Scott Foresman
levou outras editoras a lançar os seus clones de Dick e Jane (pares de crianças como Alice e Jerry, Jack e
Janet e os respectivos elencos de apoio) em programas similares, que continuaram a perpetuar o método
de "olhe-diga': ou de palavra inteira, no ensino da leitura para crianças. Embora alguns professores usassem
a fônica como adjunto suplementar ou incidental em seu ensino, a abordagem olhe-diga dominou a
educação até os anos 1960.2
vinte e dois pares de músculos faciais são constantemente orquestrados para exibir pelo menos quatro
mil expressões diferentes, todas produzidas e entendidas universalmente sem qualquer instr~ o. Algumas
expressões básicas de emoção - como medo, raiva, surpresa, desgosto, tristeza e prazer - podem ser
instintivas, mas a maioria é aprendida logo cedo na vida ... Quando alguém foi ensinado a interpretar
tudo isso, a ler rostos? [... ] Ler um texto impresso é tão natural quanto ler rostos. 3
2 Savage,2015,p.20.
3 Smith, 2004, p. 3.
198 1 LETRAMENTOS
Essa abordagem naturalista, portanto, associa a aprendizagem de leitura à imersão em muitos
"textos autênticos", começando com textos mais fáceis e passando para textos mais difíceis - incluindo
histórias excitantes, informações interessantes e signos funcionais. Uma das ideias-chave dessa
abordagem analítica, conhecida como whole language, que, como foi visto no capítulo 5, foi traduzida
para o português como "método global", concentra-se em estratégias para encontrar significados
e contrasta diretamente com o método fônico sintético, que pode exigir que os alunos soletrem
letras e sílabas descontextualizadas, bem como palavras isoladas.
Reunir palavras inteiras a partir dos sons de suas letras. segmentar palavras inteiras que são reconhecidas pela visão e,
então, procurar padrões nas letras.
Aprender regras para aplicá-las; aprender ortografia por me- Inferir regras por exposição repetida a exemplos.
morização, incluindo exceções às regras.
Escrever é codificar; ler é decodificar significado, ou "com- Escrever é criar significado; ler é interpretar significado.
preensão".
Requer uma metalinguagem para descrever padrões na língua, Requer imersão na língua escrita para aprender a ler e escrever
ou pensamento conceituai.
Aprender a ler e escrever é bem diferente de aprender a ouvir Ler e escrever podem ser aprendidos naturalmente, da mesma
e falar. forma que ouvir e falar.
Quadro 9.3: Comparação dos métodos tônicos sintético e analítico.
O raciocínio teórico por trás do método global se baseia na psicolinguística, uma subdisciplina
na interseção da psicologia e da linguística, que enfoca, entre outras questões, os fatores psicológicos
que influenciam a aprendizagem e o uso da linguagem, entendendo que a leitura não é um processo
de produzir sons, mas sim um processo de pensamento. Por exemplo, a palavra "mesà' só significa
algo porque temos uma experiência com mesas. Classificamos algumas coisas de aparência muito
diferente ("mesa de sala de jantar", "mesa de centro", "mesa de café" e "mesa de tênis de mesa") em
torno de suas características distintivas, de semelhanças na sua aparência ou daquilo para que são
confeccionadas. Fazemos isso para os propósitos práticos de atribuir sentido a esses objetos quando
os vemos e os colocamos em prática em nossas vidas. Se deparamos com a palavra "oscitação" em
uma frase, mas n:urica a vimos no mundo real, nem ao menos vimos uma foto de algJ,1ém praticando
oscitação em um livro, soletrar as letras dessa palavra não nos ajuda a entender seu significado (se
você não sabe o que é "oscitação", pesquise o termo em um dicionário, mas, mais importante do
que encontrar sua definição, é procurar algumas imagens da coisa real, o que certamente fará com
que o significado permaneça com você). Em outras palavras, a legibilidade significativa das palavras
"mesà' ou "oscitação" está conectada às nossas experiências com mesas ou oscitações, que são
ajudadas pelos nossos poderes de percepção, língua(gem) e cultura, fazendo com que criemos
categorias de objetos na nossa experiência para que estes sejam significativamente nomeados.
4 Idem, p. 55.
5 Anderson & Pearson, 1984.
6 Harvey & Goudvis, 2007; Paris & Stahl, 2005.
7 Paris, 2005.
200 j LETRAMENTOS
habilidades de leitura não restritas (por exemplo, vocabulário e compreensão), que se desenvolvem
ao longo da vida em vários contextos. Assim, a leitura, como o próprio pensamento, envolve
indivíduos em estratégias deliberadas e situadas (em contraste com as habilidades de decodificação
automatizadas e descontextualizadas), que conectam conhecimentos prévios a novas referências,
identificando informações literais explicitamente declaradas no texto, fazendo inferências baseadas
em conteúdos do texto e em seu próprio conhecimento prévio, questionando ou prevendo, ao
construir imagens mentais, e resumindo informações do texto.
Neste ponto, gostaríamos de reformular o processo de leitura descrita na seção anterior como
design. Isso porque acreditamos que nossa abordagem do design permite capturar as complexidades
e o dinamismo relativos à construção de significado. Para reiterar os conceitos que introduzimos
no capítulo 8, nossos "designs disponíveis" são as categorias de significado que temos e os modelos
mentais do mundo que unem essas categorias; são, portanto, significados dos quais nos lembramos
e com os quais nos conectamos ao texto conforme o lemos. Algumas dessas lembranças assumem
a forma de significados visuais, espaciais, gestuais e outros: por exemplo, restaurantes que visitamos
ou vimos em fotos ou filmes.
Enquanto lemos a frase "Chegamos ao restaurante .. :', aplicamos nossas categorias e nossos
modelos mentais a ela, atribuindo-lhe um significado baseado em nossa experiência. Este nunca é
o mesmo que o atribuído por outro leitor, posto que nossas experiências particulares são diferentes
(o modelo mental que uma pessoa acostumada a restaurantes do tipo fast-food traz para o texto
será diferente daquele de alguém que está acostumado a ir a restaurantes chiques, com toalhas de
mesa e garçons que recebem os clientes na porta). Nesse sentido, a experiência de leitura, de alguma
forma, nos transforma porque permanece em nossa memória como um novo significado - podemos
nunca antes ter tido a experiência de ir a um restaurante sofisticado ou ouvido o termo "menu de
degustação", mas aprendemos algo sobre esses significados a partir de uma nova leitura ou de um
filme. A experiência textual se torna, assim, uma extensão incremental do alcance de nossa
compreensão sobre restaurantes, o que podemos lembrar em nossa visita seguinte a um deles ou
em nossa próxima leitura ou produção textual relacionada a um estabelecimento comercial onde
se servem refeições.
a pronúncia das palavras dá acesso aos seus significados, depois às orações, depois aos textos são apenas
parcialmente corretas. Um texto não é tanto um recipiente que contém significado, mas uma fonte de
informação parcial que permite ao leitor usar o conhecimento já possuído para determinar o significado
pretendido. Afônica não deve ser descartada, mas seus objetivos devem ser mais amplos do que aprender
uma lista interminável de regras.[ ... ] O objetivo da fônica não é que as crianças sejam capazes de declarar
as "regras" que governam as relações entre sons e letras. Pelo contrário, o propósito é atravessar o princípio
alfabético, o princípio de que existem relações sistemáticas entre letras e sons. 9
202 1 LETRAMENTOS
descritas no capítulo 6, isto é, eles leem para aprender e aprendem como os textos são usados para
atingir objetivos sociais e culturais intencionais. Finalmente, leitores efetivos podem ser "analistas
textuais", que interrogam o texto a fim de levantar os pontos de vista e os interesses que este
representa, comparando-os com suas próprias interpretações de experiência e com as de outros.
Em uma abordagem funcional da leitura, a análise de modelos textuais fornece o caminho para
que os professores possam tornar seus alunos decodificadores, participantes e usuários de textos
competentes. Há também fortes ressonâncias nessa quarta perspectiva com as abordagens críticas
de letramentos que delineamos no capítulo 7.
Competência de codificação: quebrar o código de textos escritos, Competência semântica: participar da compreensão e da com-
reconhecendo e usando características e arquiteturas fundamen- posição de textos escritos, visuais e falados significativos, levan-
tais, incluindo alfabeto, sons em palavras, ortografia, convenções do em consideração os sistemas de significado interiores de
e padrões estruturais. cada texto em relação ao conhecimento disponível do leitor e
suas experiências de outros discursos, textos e sistemas de sig-
nificado.
Competência pragmática: usar textos funcionalmente, conhe- Competência crítica: analisar criticamente e transformar eles,
cendo e atuando sobre as diferentes funções culturais e sociais agindo com base no conhecimento de que eles não são ideolo-
que os diversos textos desempenham dentro e fora da escola, e gicamente naturais ou neutros; que representam pontos de
entendendo que essas funções moldam o modo como os textos vista particulares enquanto silenciam os outros e influenciam as
são estruturados, seu tom, seu grau de formalidade e sua se- ideias das pessoas; e que seus designs e discursos podem ser
quência de componentes. criticados e redefinidos de maneiras novas e híbridas.
Quadro 9.5: Modelo de "Quatro Recursos" ("Four Resources" mode/) (Adaptado de Freebody, 2007; Freebody & Luke, 1990; Luke &
Freebody, 1997).
Aprendendo a ler
fundamental, participando de um círculo de leitura, que incentiva o hábito de ler. Em sua própria
opinião, Nicholas acha difícil ler; ele descreve essa atividade como "soletrar as letras". Evidentemente,
as aulas de alfabetização no início de sua vida escolar deixaram uma impressão duradoura. Sua
turma está lendo um romance, Tuck Everlasting, uma aventura em que o herói acaba ajudando uma
pessoa que cometeu um crime grave. Para conectar o tema principal da história às experiências
vividas dos alunos e desenvolver seu engajamento em seus significados mais difíceis e controversos,
o professor pede que o círculo de leitura de Nicholas discuta a natureza do crime. Nesse sentido,
"crime" não é apenas uma palavra para ser decodificada, mas é, sobretudo, uma ideia que o romance
explora com profundidade e sutileza, uma vez que a maneira como a palavra é usada, ó'iignificado
central do romance, pode desafiar e estender os modelos mentais de crime que os alunos trazem
para a leitura. Para fomentar, então, uma discussão, a professora pergunta aos alunos:
- É crime andar de bicicleta sem capacete?
Onde Nicholas mora, isso é considerado ilegal; as crianças, contudo, cometem essa infração e,
mesmo percebendo tratar-se de uma tolice, em sua maioria não consideram que seja um crime.
12 Cumming-Potvin, 2007.
204 1 LETRAMENTOS
essas abordagens mais eficazes do que são. Excelentes professores buscam justamente misturar e
combinar diferentes tipos de atividades ou processos de conhecimento. No espírito dessa perspectiva,
a BNCC do ensino fundamental aponta que:
as habilidades não descrevem ações ou condutas esperadas do professor, nem induzem à opção por
abordagens ou metodologias. Essas escolhas estão no âmbito dos currículos e dos projetos pedagógicos,
que, como já mencionado, devem ser adequados à realidade de cada sistema ou rede de ensino e a cada
instituição escolar, considerando o contexto e as características dos seus alunos. 13
Embora haja uma ênfase maior nos primeiros anos em habilidades técnicas de decodificação,
o desenvolvimento de práticas de leitura intelectual e cultural em torno da criação de significado
e participação em textos também é explicitamente abordado no mesmo documento oficial:
Nos dois primeiros anos do ensino fundamental, a ação pedagógica deve ter como foco a alfabetização,
a fim de garantir amplas oportunidades para que os alunos se apropriem do sistema de escrita alfabética
de modo articulado ao desenvolvimento de outras habilidades de leitura e de escrita e ao seu envolvimento
em práticas diversificadas de letramentos. [... ] A centralidade do texto como unidade de trabalho e as
perspectivas enunciativo-discursivas na abordagem, de forma a sempre relacionar os textos a seus contextos
de produção e o desenvolvimento de habilidades ao uso significativo da linguagem em atividades de
leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e semioses. 14
Alfabetização
1 Fonemas: as letras do alfabeto, sozinhas (por exemplo: "a'; "b'; "c") ou em grupos
(por exemplo: "qu'; "gu" ou "rr"), representam fonemas.
2 Vogais e consoantes: existem dois tipos de sons da fala - vogais ou sons que são
feitos quando suas cordas vocais vibram (a, e, i, o eu) e consoantes, que são pro-
duzidas quando se usa a boca ou a língua para causar algum tipo de obstrução do
som (b, c, d, f etc.).
3 Sílabas: as sílabas são unidades da língua que têm sempre uma vogal e poderrf"
incluir uma ou mais consoantes (por exemplo, as palavras "casa" e"Brasil"têm duas
sílabas cada uma).
4 Palavras: as palavras são unidades de significado que podem ter uma ou mais sí-
labas. Podem-se reconhecer palavras pelos espaços entre elas na escrita.
Quadro 9.6: Um instantâneo da relação entre grafemas e fonemas.
~ _ LHO - VA
1 1
<i) LHO :fJ RllHA
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NEl
---
.,..._ r\
-
Figura 9. 1: Aprendendo as vogais.
U:fANTt _RUBIJ
Aqui está a versão curta da história de como traduzir os sons da fala em grafemas.
Fônica e cognição
As crianças precisam entender a relação entre os sons da fala e os grafemas para poder ler e
escrever. Parece enganosamente fácil, mas, na verdade, é difícil, tanto que é possível se maravilhar
com as deslumbrantes capacidades representacionais da espécie humana que se materializam quando
os aprendizes, em seus primeiros anos de escola, aprendem algo tão complicado. Notemos o quanto
é difícil: por exemplo, a relação de "à' e "b" com seus respectivos sons é puramente abstrata, pois
não há pistas contextuais para ajudar no seu aprendizado. A palavra "cão", do mesmo modo, é uma
abstração, mas se aprende com a repetida justaposição de palavra e do animal no mundo da
experiência. Não há nada sobre a relação entre "a" e seu som para ajudá-lo, a não ser por meio da
estranha experiência de leitura e escrita. Como Snow, Burns e Griffin apontam em seu influente
relato sobre a leitura, "letras do alfabeto são referencialmente sem sentido e fonologicamente
abstratas".15 Essa é uma generalização, de fato, verdadeira no que diz respeito às relações entre todo
fonema (som significativo da língua) e grafema (representação gráfica do som). Contudo, as crianças,
ainda em uma idade tão precoce, conseguem aprender muitas dessas abstrações para poderem ler,
sem pistas provenientes da escrita em si.
Dito isso, há outra camada de abstração. É útil poder usar conceitos abstratos, como "alfabeto",
"sílabà', "palavra", "vogal", "consoante" e até mesmo "fonemà', à medida que se aprende a ler e a
escrever. Muito embora a criança não tenha necessitado de uma metalinguagenryara aprender a
falar sua própria língua no contexto familiar, pode ser muito proveitoso ter ferramentas para análise
de design ou metalinguagem sobre a língua escrita ao aprender a ler e escrever na escola. Jeanne
Chall já chamava isso de "aspectos formais e abstratos da linguagem", 16 que ajudam a pensar
206 1 LETRAMENTOS
conceitualmente e tornam o aprendizado mais eficiente, pois possibilitam generalizar e transferir
essas generalizações de uma instância de uso de linguagem para outra.
Essas conexões entre os sons da fala e os grafemas que as crianças precisam aprender à medida
que se tornam leitores e escritores são, em si, extraordinárias e, certamente, mais conceitualmente
desafiadoras do que qualquer coisa que tenham encontrado até então em suas curtas vidas. Essas
conexões se constituem com base no seguinte esquema conceitua!:
1) Palavras - Os significados escritos são expressos em palavras ou grupos de palavras na forma
de sintagmas, orações e períodos.
2) Sílabas - Palavras são compostas de unidades sonoras chamadas sílabas.
3) Vogais e consoantes - As sílabas conectam dois tipos de som: consoantes e vogais.
4) Fonemas - Os fonemas são sons que correspondem a sua representação escrita como grafemas.
Se os professores optam por usar todos esses conceitos em seu processo de ensino e se os
enfatizam nomeand9-os explicitamente ou permitindo que os conceitos surjam durante a imersão
experiencial em leitura e escrita, o desafio conceitual é o mesmo.
Fonemas - Chamam-se fonemas os sons elementares e distintivos que o homem produz quando, pela voz,
exprime seus pensamentos e emoções.
Fonemas não são letras - Desde logo uma distinção se impõe: não se há de confundir fonema com letra.
Fonema é uma realidade acústica, realidade que nosso ouvido registra; letra_é o sinal empregado para repre-
sentar na escrita o sistema sonoro de uma língua. Não há identidade perfeita, muitas vezes, entre os fonemas
e a maneira de representá-los na escrita, o que nos leva facilmente a perceber a imposs ibil idade de uma or-
tografia ideal. Temos, como veremos mais adiante, sete vogais orais tônicas, mas apenas cinco símbolos grá-
ficos (letras): a, e, i, o, u.
Quando queremos distinguir um e tônico aberto de um e tônico fechado- pois são dois fonemas distintos
- geralmente utilizamos sinais subsidiários: o acento agudo (fé) ou o circunflexo (vê). Há letras que se escrevem,
por várias razões, mas que não se pronunciam, e portanto não representam a vestimenta gráfica do fonema;
é o caso do h em homem.
Por outro lado, há fonemas que se ouvem e que não se acham registrados na escrita; assim, no final de canta-
vam, ouvimos um ditongo em -am cuja semivogal não vem assinalada lcantóvãw/. A escrita, graças ao seu
convencionalismo tradicional, nem sempre espelha a evolução fonética.
Quadro 9.7: Trecho da Moderna gramática portuguesa.'•
208 i LETRAMENTOS
que não podem ser capturadas com precisão
em um conjunto de regras fonéticas gerenciá-
veis ou suficientemente abrangentes.
Como adultos, fazemos praticamente ames-
ma coisa quando realizamos aproximações or-
tográficas nas frases que estamos digitando, não
querendo interromper o fluxo de nossos pensa-
mentos, mas sabendo que o corretor ortográfi-
co fará sugestões e, assim, nossa ortografia po-
derá ser alterada posteriormente. Do mesmo
modo, essa nossa primeira aproximação orto-
gráfica não está errada, porque nos serve muito
bem no momento para registrar um pensamen-
to que poderia escapar de nossa memória de
curto prazo. É melhor errar naquele momento
do que procurar a palavra e perder a linha de
pensamento. De fato, essa é exatamente a ma-
neira como nós, adultos, trabalhamos hoje com
verificadores gramaticais e ortográficos em com-
putadores ou em nossos smartphones.
No final das contas, escrever é saber lidar
com textos escritos corretamente. Na leitura,
é o padrão formal da escrita que nos dá uma
indicação bastante aproximada dos sons da Figura 9.3: Texto criado por uma criança de 7 anos de idade.
língua, e não o contrário, o que é proveniente
de uma lógica cultural mais ampla em uma sociedade que, pelo menos nos últimos séculos, privi-
legiou a escrita sobre a fala e os demais modos de significação.
A complexidade fônica não deve nos fazer pensar que não devemos aprender suas regras e
focar apenas na grafêmica ou no reconhecimento visual das palavras. E se aprendêssemos apenas
muitas palavras e suas correspondências - sua aparência, seus sons e seus significados no nível
da palavra inteira? Esse era mais ou menos o método visual dos leitores dos livros de Dick and
Jane, que, como vimos anteriormente, representaram uma das leituras mais conhecidas para
trabalhar a palavra inteira. Tal abordagem, por si só, reduziria a aprendizagem -dé uma língua a
uma espécie de memorização, pelas crianças, da "aparência" de palavras comumente usadas, a
fim de reconhecê-las automaticamente quando as vissem. Essa é uma tarefa tão assustadora
quanto aprender regras fônicas, seja na versão mais simples que apresentamos anteriormente,
seja na versão mais complicada.
Com efeito, lemos conhecendo muitas dessas palavras comumente usadas, pois, como leitores
experientes, soletramos apenas palavras que ainda não reconhecemos como palavras inteiras ou
cujos significados não são óbvios pelo contexto. Nesse sentido, o método fônico se torna uma
Mais do que decifrar o código alfabético, a leitura envolve compreender, interpretar, avaliar e
refletir sobre o significado dos textos. Em busca de sentido no modo escrito, os leitores efetivos se
engajam em uma série de estratégias deliberadas e direcionadas ao processamento de palavras e
outros _símbolos visuais para, assim, extrair significados dos textos. 19 Através de repetidas leituras
e exposição a uma ampla gama de experiências textuais, os alunos começam a reconhecer as palavras
210 i LETRAMENTOS
que ocorrem com maior frequência em uma determinada língua. No entanto, para lidarem com
palavras desconhecidas, complexas ou polissilábicas, as crianças precisam estar equipadas com
estratégias deliberadas ou técnicas de solução de problemas, pois muitos termos não podem ser
decodificados fonicamente; assim, para o reconhecimento dessas palavras, elas necessitam de uma
série de pistas contextuais, semânticas e gramaticais. Tais estratégias de processamento de texto
permitem que os leitores prevejam, reconheçam palavras, elaborem vocábulos desconhecidos,
monitorem suas próprias leituras, identifiquem e corrijam erros, leiam e releiam o que escreveram.
Como essas estratégias envolvem comportamentos conscientes e aprendidos, elas podem ser
ensinadas por meio de modelagem, instruções metacognitivas sobre como e por que usar estratégias
e práticas guiadas e orientadas. 2 0
Assim, nos primeiros anos, as crianças podem aprender a decodificar fonicamente palavras
monossílabas regulares usando estratégias como:
• soletração;
• associação de palavras novas a palavras que já conhecem ("decodificação por analogià'),
usando rimas, e o conhecimento sobre a origem e as famílias das palavras;
• aplicação de regras fônicas.
Os professores podem modelar estratégias para ajudar os leitores mais jovens a aprender a
associar as formas, os nomes e os sons das letras - por exemplo, apontando a primeira letra do
nome de uma criança, chamando atenção para formas e nomes de letras através de jogos e ativi-
dades práticas e cantando músicas sobre o alfabeto. Estratégias para identificação de letras, deco-
dificação, leitura oral e compreensão
podem ser significativamente incorpo-
radas à leitura dialógica e à conversa em
fônica torno de textos autênticos, que precisam
língu língua ser cuidadosamente selecionados para
envolver as crianças em ricas experiên-
cias literárias que se conectam a suas
experiências vividas. Gráficos em pa-
redes e bancos de palavras de alta fre-
quência podem ser exibidos em sala de
repres
aula para apoiar o vocabulário visual.
gráfic Nos anos iniciais, os alunos continuam
líng a desenvolver suas habilidades de
identificação de palavras, usando uma
série de estratégias, de fõ'rma isolada ou
Figura 9-4: Leitura e escrita do ponto de vista conceituai. em conjunto, que inclui:
• análise fônica: os alunos usam seus conhecimentos a respeito das correspondências fonema-
-grafema, regras fônicas e padrões de ortografia;
20 Idem, ibidem; Harvey & Goudvis, 2007; Paris & Stahl, 2005.
Os leitores mais experientes também usam seus conhecimentos sobre função sintática, estruturas
de texto e contexto como pistas para facilitar o reconhecimento e a compreensão das palavras. O
objetivo da instrução estratégica explícita é levar os alunos à prática independente e à fluência em
suas leituras, para que possam se tornar leitores e produtores textuais bem-sucedidos. Nesse sentido,
Snow, Burns e Griffin asseveram:
A compreensão pode ser aprimorada por meio de instruções focadas na ampliação de conceitos e do
vocabulário e em conhecimento prévio, instrução sobre a sintaxe e estruturas retóricas da língua escrita
e instrução direta sobre estratégias de compreensão, como resumir, predizer ·e monitorar. A compreensão
também requer prática, que é obtida pela leitura independente, pela leitura em pares ou grupos e pela
leitura em voz alta. 22
Em contraste com abordagens didáticas tradicionais, que ensinam a decodificação como uma
habilidade isolada, por meio do uso de textos controlados, abordagens híbridas e equilibradas,
atualmente adotadas por autoridades educacionais e curriculares, enfatizam uma perspectiva
integrada e situada para a decodificação. A compreensão da escrita é importante desde o início,
porém o ensino explícito sobre decodificação é mais eficiente no contexto da leitura de textos de
literatura infantil autêntica e de textos informativos, como parte de um programa maior de
alfabetização. Ao selecionarem um texto, os professores devem considerar os propósitos gerais de
aprendizagem, os principais conceitos que esse texto incorpora, o tipo de texto e suas características,
sua legibilidade,e sua adequação ao foco de ensino.
Para prepararem os alunos para a leitura, os professores planejam, assim, uma série de atividades
em todo o currículo a fim de construir conhecimentos básicos prévios e introduzir um vocabulário
não familiar ou especializado e técnico antes de apresentar um novo texto. Nesse sentido, precisam
demonstrar como palavras e imagens funcionam juntas para construir significados. À medida que
as crianças, nos primeiros anos do ensino fundamental, vão aprendendo a identificar as ideias
principais num texto, a ler e reler, os professores passam a ensinar explicitamente estratégias de
decodificação e compreensão, modelando (por exemplo, pensando em voz alta para demonstrar
seu raciocínio), explicando e defendendo modos de leitura adequados para que elas possam ter
consciência e monitorar suas próprias formas de compreensão e leitura. Algumas es~tégias-chave
de leitura estão resumidas no Quadro 9.8.
212 / LETRAMENTOS
Engajando-se ainda mais nos textos
O que vimos aqui é apenas parte da história da construção de sentidos a partir da leitura. Nas
concepções contemporâneas de letramento, não se podem ignorar os contextos nos quais as crianças
se envolvem durante a leitura, em particular aqueles em que textos multimodais saturados de
imagem, encontrados em ambientes digitais da internet, fazem parte das primeiras experiências
de letramento de muitas crianças quando aprendem a ler. Várias características desses ambientes
contribuem para uma tarefa mais complexa para os leitores - estruturas de informação com
hiperlinks, interatividade e formatos semelhantes a jogos, com uma ampla variedade de ícones de
navegação, imagens e vídeos -, que precisam desenvolver habilidades adicionais para localização,
integração e avaliação da informação de forma bem-sucedida, particularmente quando se tenta
integrar significados, cujos modos de construção diferem uns dos outros.
Como muitos elementos de textos típicos da iRternet, seus layouts e princípios de design se
espalharam em textos impressos; esses elementos vêm mudando a maneira como os leitores se
engajam nos textos atuais, tendo em vista que a leitura e seu processo cognato de visualização são
inseparáveis quando as crianças lidam com textos que incorporam uma variedade de pistas
multimodais. Voltaremos à noção de design de significado nos capítulos seguintes.
Ativando, expandindo e refinando o Conectar - texto a si mesmo, texto a texto, texto ao mundo
conhecimento prévio. para acessar o que já sabemos e para ajudar a entender
novas informações.
Expandir e refinar o conhecimento prévio.
Fazendo previsões sobre o texto. Prever - usando pistas como capa, título, autor, ilustrações
e tipo de texto para prever eventos futuros em um texto.
Refletindo sobre o texto. Refletir criti camente sobre conteúdo, estrutura, língua e
imagens usadas para construir significado em um texto.
Quadro 9.8: Estratégias de compree nsão e processos de leitu ra.
Fônica: Aprender correspondências en- Significados: Aprender o sign ificado de Entender padrões em significado: Nem toda
tre som da fala e grafemas. palavras inteiras (whole language), atri- regra de correspondência letra-som, mas a
buindo sentido às palavras a partir do ideia geral de que pode haver correspondên-
Compreensão: Obter as respostas certas contexto: aprendizagem natural, imersa cias de padrões no texto como um todo.
sobre o que os textos •realmente" dizem. em textos significativos. Ser capaz de navegar através de textos in-
teiros, entendendo seus propósitos sociais
e suas arquiteturas.
Processos de conhecimento
1. Experienciando o conhecido
Em termos das pedagogias de leitura descritas neste capítulo, como você descreveria sua própria
experiência de aprender a ler? Quais abordagens você achou pessoalmente mais eficazes?
2. Experienciando o novo
Leia uma atividade altamente roteirizada de "instrução explícità' ou de programa de leitura
básico. O que você acha atraente ou alienante nessa perspectiva para aprender a ler?
3. Analisando criticamente
Debata a proposição de que o método fônico sintético é o caminho mais eficaz para a leitura
precoce de alunos de famílias pobres e desfavorecidas. Para isso, leia textos dos proponentes de
ambos os lados nesse debate.
6. Aplicando apropriadamente
Desenvolva um plano de aula que aplique os conceitos de análise do design às atividades de
leitura para alunos com diversas necessidades de aprendizagem. Elabore atividades de aula para
proporcionar experiências de aprendizagem diferenciadas para crianças em processos de
alfabetização.
214 i LETRAMENTOS
Capítulo 10
Construindo significados 1
Visão geral
Este capítulo continuará examinando a língua escrita, porém, desta vez, pela perspectiva da
representação e da comunicação do significado escrito. Começaremos observando, por meio de
uma discussão de como a fala e a escrita diferem entre si, como o significado no modo escrito se
desenvolve. Em seguida, exploraremos abordagens alternativas para descrever como a língua escrita
funciona, passando pela gramática tradicional da abordagem didática, pela gramática gerativo-
-transformacional de Chomsky e pela gramática funcional de Halliday. Terminaremos o capítulo
com nossa própria abordagem dos multiletramentos, que descreve o que chamamos de "elementos
do design" de textos escritos.
Aprendendo a escrever
Rita van Í-Iaren, Brielle Riley, Michelle Hodge e Sue Gorman têm trabalhado com um projeto
que criaram em conjunto para suas aulas do 3º ano do ensino fundamental. Nesse projeto, os alunos
"experienciam o conhecido", ao falarem sobre como a água é usada em diversas situações em suas
vidas; "conceituam com teoria", ao classificarem as palavras para diferentes usos em categorias;
"analisam funcionalmente': ao escreverem sobre a aparência da água, seu cheiro e seu gosto; "analisam
criticamente", ao discorrerem, em pares, sobre a água e a sobrevivência humana; e "aplicam
criativamente': ao criarem um pôster cujo objetivo é convencer outras pessoas a economizar água.
Já em uma turma de 7º ano, os alunos de Rita van Haren, Anne Dunn e Robyn Kiddy estão
escrevendo uma narrativa inspirada no conto alegórico "A ilhà' ("Toe island") ..Jittes leem o texto
("experienciam o novo") e, em seguida, examinam as características da narrativa, incluindo
orientação, complicação, resolução e coda ("conceitualizam por nomeação'); exploram características
linguísticas espe_cíficas da narrativa, tais como linguagem figurada, circunstâncias expressas por
advérbios, elementos em sintagmas nominais e uso de sentenças complexas ("conceitualizam por
nomeação"); analisam como todas essas coisas funcionam juntas para criar um conto alegórico
("analisam funcionalmente"); e, então, escrevem seu próprio conto alegórico ("aplicam criativamente").
Enquanto isso, os alunos da aula de produção escrita do 92 ano da professora Prue Gill estão
escrevendo uma biografia como parte de um projeto chamado "Pessoas comuns, destinos
extraordinários': Como segmento do movimento pedagógico "Explorando o conhecido", eles
discutem o que pode tornar uma pessoa comum extraordinária; eles, então, "experienciam o
novo", ao assistirem a algumas palestras do programa TED e a vídeos de heróis da CNN; depois
disso, leem a biografia de Eddie Mabo, um australiano comum oriundo das ilhas do Estreito de
Torres, que se atreveu a desafiar a "lei da terra"; Mabo dizia que, tradicionalmente, ele e seu povo
não possuíam terras, mas que conseguira ganhá-las na Justiça e restabelecer o direito sobre elas
para australianos indígenas; em seguida, "analisam funcionalmente", ao explicarem as maneiras
pelas quais textos informativos, em geral, e biografias, em particular, trabalham para comunicar
aspectos relevantes de uma história de vida; "conceitualizam por nomeação", ao discutirem as
características linguísticas típicas de uma biografia; depois, "conceitualizam com teoria", ao
analisarem as características gerais do design de um texto informativo; passam, então, a "ap_licar
apropriadamente", ao começarem a escrever a biografia de uma pessoa de sua escolha, cujo início
de vida pode ter sido bastante simples, mas que tenha deixado alguma contribuição extraordinária.
Os critérios de revisão por pares criados pelos professores-autores desse projeto levantam noções
de estilo formal, descrição da informação, organização textual, coesão e referenciação, que os
alunos já haviam identificado no texto de exemplificação do projeto sobre Eddie Mabo; por fim,
"analisam criticamente", ao checarem os textos uns dos outros e oferecerem um retorno crítico
e construtivo a seus colegas.
Mencionamos ainda o trabalho sobre Hamlet, desenvolvido pelas professoras Prue Gill,
Rachael Radvanyi e Jennifer Not com seus alunos do 1 º ano do ensino médio. Eles começam
esse estudo "experienciando o conhecido", com uma atividade que lhes pede que reflitam sobre
os momentos de conexão de relacionamentos familiares; então, "experienciam o novo", ao
discutirem um vídeo sobre como a língua inglesa mudou ao longo do tempo e ao assistirem ao
vídeo Contos animados de Hamlet (Animated tales of Hamlet); "conceitualizam por nomeação",
ao examinarem a natureza da caracterização na pessoa de Hamlet; depois, "analisam
funcionalmehte", ao discorrem sobre o papel da cena fantasma na narrativa; "aplicam
apropriadamente", ao escrevem um ensaio de crítica literária, em que exploram os temas da
vingança ou da loucura em Hamlet; "analisam criticamente", ao checarem os ensaios uns dos
outros; e, então, "aplicam criativamente", ao produzirem uma apresentação oral sobre o
desenvolvimento de um personagem na peça.
Então, o que está acontecendo nessas salas de aula? O que é produção escrita e como a construímos?
Escrever é difícil e, em alguns sentidos, um trabalho não natural que resulta na produção de
um artefato escrito, que precisa ser inteligível para aqueles envolvidos na troca de significado
mediada por esse artefato. Nesse sentido, a escrita exige que os autores escolham entre os recursos
de significado disponíveis em seus sistemas de escrita, transformando sua língua oral em escrita
216 j LETRAMENTOS
por meio de um processo de sinestesia ou alternância de modo. Embora, é claro, vinculada à língua
falada, a escrita é surpreendentemente diferente da fala, algo que exploraremos mais profundamente
quando discutirmos significados orais no capítulo 13. Com efeito, há um grande salto entre falar
com os outros, ou silenciosamente para si mesmo, e criar texto escrito cujos significados são
recebidos em tipos de comunicações em que o autor não tem um retorno ou capacidade de resposta
imediatos. Por isso, a escrita não é apenas uma transcrição da fala; o processo de sinestesia necessário
para alternar do modo oral para o modo escrito é muito mais complicado do que isso, uma vez
que escrita e fala envolvem processos mentais bem diferentes. É mais como "aprender a ouvir e
pensar sobre a língua de uma maneira diferente". 1
Fazer escolhas através da escrita às vezes pode ser agonizante ("é isso mesmo que eu quero
dizer?"). Não raro, questionamo-nos e alteramos palavras que acabamos de escrever, substituindo-
-as por outras que terminamos de procurar e que podem captar melhor nosso significado. Fazemos
mudanças em nosso texto todo o tempo, trabalhando sobre ele, elaborando-o até que estejamos
mais ou menos satisfeitos com ele e consideremos que pode, então, "ficar em pé sozinho", sem a
nossa presença para explicar seu significado, que envolve uso de unidades fundamentais e
cuidadosamente ordenadas: ortografia, morfologia, sintaxe, pontuação, parágrafo, seção, subtítulo,
título e uma assinatura de autoria, especificamente projetados para enquadrar o significado escrito.
Tudo isso exige muito tempo e esforço mental para ser bem organizado.
Por exemplo, só para ficarmos nas duas primeiras unidades, aprender a ortografia e a morfologia
da língua portuguesa não é, de forma alguma, um processo natural; requer compreensão consciente
sobre o sistema de escrita e os recursos disponíveis para construir palavras por meio de
representações de sons da fala e seus significados, constituindo-se em uma língua morfofonêmica.
Isso envolve o uso de múltiplas fontes de conhecimento sobre: (i) como os sons da fala são
organizados em unidades mínimas significativas da língua (fonologia); (ii) quais sequências de
letras irão funcionar e quais grafemas usar, especialmente porque não há uma simples
correspondência entre fonemas e grafemas (ortografia); (iii) a estrutura das palavras, como
radicais, sufixos e prefixos, que carregam determinados tipos de significados (morfologia), e
como estes são influenciados pela origem de uma palavra (etimologia); (iv) e, finalmente, o
elemento visual da palavra, que permite identificar o padrão visual de uma palavra, enfatizado
em abordagens de leitura de caráter global.
Do mesmo modo, o processo de produção de significado na escrita pode ser também muito
diferente da fala. Por exemplo, quando escrevemos um texto formal, começamos planejando
cuidadosamente o que vamos escrever, da primeira à última parte. Então, lemos várias vezes esse
texto para obter a estrutura e o tom adequados para tentar estabelecer coesão entre orações,
períodos e parágrafos, e para ter certeza de que escolhemos as melhores palavras para servir aos
nossos propósitos de construção de significado, buscando, entre outras coisas, evitar repetições
desnecessárias. A escrita é um produto estruturado, fruto de um processo multilinear em todas
as direções do texto.
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Veja: "Regras ortográficas".
As tecnologias para trabalhar com textos escritos mudaram radicalmente a partir das últimas
décadas do século XX, o que facilitou, entre outras coisas, o trabalho metódico que a escrita exige
para a produção de um texto escrito. Para os mais jovens pode parecer estranho, mas houve um
tempo em que se escrevia tudo à mão ou à máquina de datilografar, e as alterações feitas nos textos
causavam muita bagunça na página. Além disso, era demorado e trabalhoso fazer vários rascunhos
e ir escrevendo ou datilografando o texto novamente, do começo ao fim, até obter uma cópia limpa
e revisada. Até o surgimento do computador pessoal e de outros dispositivos digitais, como
ferramentas quase universais para a escrita, isso era o que as pessoas faziam.
Pode-se, assim, dizer que algo significativo aconteceu com o modo como escrevemos, com a
chegada do computador pessoal e, especificamente, dos programas de processamento de texto.
Fazer alterações no texto se tornou tão fácil quanto exduir e redigitar ou recortar e colar. Podemos
fazer quantas mudanças quisermos e, a menos que desejemos que outra pessoa veja as alterações
que fizemos ativando a função de revisão ou acompanhamento, podemos alterar um texto com a
frequência que desejarmos e ele ainda será tão organizado quanto o produto final. Quando
trabalhamos em um computador ou em outro dispositivo eletrônico, temos muito mais flexibilidade
para retroceder e avauçar nos processos multilineares de produção e revisão textual. Isso nos dá
mais oportunidades do que já tivemos em toda a história da escrita de trabalhar cuidadosamente
sobre um texto escrito, inclusive com os suportes de verificadores ortográficos e gramaticais,
dicionários de sinônimos, modelos e definições de estilos, ferramentas de rastreamento e anotação
para auxiliar na autoria colaborativa de um texto compartilhado; tudo isso em um único espaço
digital de escrita formal.
No outro extremo do espectro, tecnologias mais recentes de mídias sociais têm facilitado novas
formas de escrita, como mensagens de texto em diferentes redes sociais, que, de muitas maneiras,
se assemelham muito mais a situações informais de fala, em sua sincronicidade e seu potencial
para interação, do que ao esforço deliberado e consciente exigido dos tipos convencionais de escrita
formal que emergem das tecnologias de impressão e processamento de texto. Discutiremos o
fenômeno do texto quase oral mais adiante, no capítulo 13.
A fim de analisarmos os elementos do design da língua escrita, vamos nos concentrar nas escolhas
que fazemos e, particularmente, nos tipos de mudanças que podemos incorporar à medida que
vamos trabalhando em um rascunho. Na abordagem dos multiletramentos, que vem sendo delineada
neste livro, reconhecemos que a língua funciona de maneira diferente em diferentes"1ugares para
diferentes propósito·s, o que, portanto, relativiza a ideia de "erro". É claro que existem erros, no
sentido mais amplo, na medida em que uma pessoa pode não conhecer algumas das convenções
de escrita que poderiam ajudá-la de maneira mais eficaz na construção de significado intencional
em uma situação particular. A tentativa inicial de uma criança de criar um significado através do
desenho e da escrita (Figura 10.1) ilustra esse ponto.
218 1 LETRAMENTOS
Na nossa análise dos multiletramentos, os elementos
primordiais estão centrados nas escolhas de significado
para atender ao seu público-alvo e a seus propósitos co-
municativos específicos. Assim, em vez de falar sobre algo
tão rígido e definitivo quanto um erro, sugerimos ideias
de mudança e melhorias que caracterizam o processo de
escrita. A primeira tentativa de escrever algo pode ser
perfeitamente adequada como uma primeira aproximação
- pode haver uma questão ortográfica a ser verificada
posteriormente, um tom que seria mais apropriado para
determinado contexto, ou outra palavra que captaria o
significado pretendido de forma mais efetiva. Há sempre
opções e mudanças à disposição do escritor, à medida que
ele passa a buscar vocábulos e a elaborar ordens de pala-
vras que se aproximem progressivamente do significado
que deseja expressar e que melhor se ajustem aos propó- Figura 10.1: Desenho e escrita de uma criança.
sitos ou convenções do contexto específico.
Nessa concepção, nossa ênfase recai na preparação de escritores para trabalhar efetivamente em
suas escolhas de signfficado voltadas a uma variedade de propósitos que julgam importantes e que
serão mais eficazes em contextos específicos. Fazemos isso porque acreditamos que a ativação da
agência, da motivação e da criatividade é importante nos contextos formais de aprendizagem escolar,
nos quais os artefatos da escrita tenderam, no passado, a estar ligados à cultura da escola, de suas
disciplinas e, não raro, de ideias excessivamente rígidas sobre o que é "correto" ou não. Nos mundos
reais dos cidadãos, trabalhadores e membros de comunidades, as pessoas labutam para melhorar
as coisas em vez de obtê-las na sua forma "correta", já acabada, desde o início.
Portanto, escritores eficazes, tanto nas escolas quanto no cotidiano, sabem trabalhar
cuidadosamente seus textos, realizando mudanças à medida que vão dando forma aos seus
significados, pensando explicitamente sobre as razões pelas quais fazem essas modificações, com
base no propósito de sua produção textual. Por exemplo, as possíveis alterações feitas ao reler o
rascunho de um texto próprio podem incluir a reformulação de algo que se considera passível de
dizer de maneira melhor, ou uma modificação sugerida pelo verificador ortográfico ou gramatical
do computador, ou ainda uma alteração proposta por um leitor; pode-se concordar e fazer a
mudança, ou discordar do verificador ortográfico ou da sugestão do leitor; aquela palavra que se
pensou ser um erro de ortografia é, de fato, o nome de um lugar, ou uma transcrição do som de
determinado dialeto; essa frase que se considerou gramaticalmente defeituosa por causa de sua
construção passiva foi, na verdade, uma construção proposital do escritor, porque este não quis
enfatizar o papel do ator na ação. Nesses casos, portanto, o que foi considerado um..Jférro" ou um
problema de estilo é, na verdade, uma questão de julgamento, perspectiva e interpretação variáveis .
..... ,J • U d Assim, nossa análise do design das características de escrita não é um catálogo
- ■es,gn : m processo e
- ementas do design de um de regras de uso correto ou de erros potenciais. É, pois, uma taxonomia de
do escrito ou multimodal. opções de design que permite diferentes tipos de alteração textual e uma lista
de perguntas que aquele que escreve faz a si mesmo enquanto trabalha com um texto, ou que um
revisor elabora ao escritor para que este tenha a possibilidade de reformular seu texto, atendendo,
Mais adiante, neste capítulo, ofereceremos breve resumo de uma taxonomia de opções de design
para a língua escrita, que se constitui nas escolhas que um escritor pode fazer, em uma primeira
instância, mas que, p01 reflexão ou sugestão de um leitor, podem ser mudadas. Supõe-se que, na
maioria das vezes, se o escritor faz a mudança é porque considera que ela servirá melhor a seus
propósitos de construção de significado do texto em um contexto particular, e porque será
interpretado com precisão, como pretendido. Todavia, antes de discutirmos isso, queremos,
primeiramente, apresentar vários outros paradigmas para compreender as estruturas das línguas
escrita e falada: a gramática tradicional, a gramática transformacional e a gramática sistêmico-
-funcional.
Gramática tradicional
Classes de palavras na gramática tradicional
A gramática tradicional consiste nos rótulos que descrevem as formas e relações estruturais das
palavras na língua. O gramático Evanildo Bechara, em sua Moderna gramática portuguesa, aponta
que "dentro da diversidade das línguas ou falares regionais se sobrepõe um uso comum a toda a
área geográfica, fixada pela escola e utilizada pelas pessoas cultas: é isto o que constitui a língua
geral, língua-padrão ou oficial do país". O registro dos fatos dessa "língua-padrão" seria, de acordo
2
com o autor, o objeto da gramática, estabelecendo os "preceitos de como se fala e escr-.we bem ou
de como se pode falar e escrever bem uma línguà'. 3
Para, então, "falar e escrever bem'', a gramática tradicional, as palavras, por exemplo, são
categorizadas em diferentes classes, que, segundo Bechara, são em número de dez:
220 1 LETRAMENTOS
1) SUBSTANTIVO: é o nome com que designamos seres em geral - pessoas, animais e coisas.
2) ADJETIVO: é a expressão modificadora que denota qualidade, condição ou estado de um
ser.
3) ARTIGO: é a palavra que se antepõe aos substantivos que designam seres determinados
(o, a, os, as) ou indeterminados (um, uma, uns, umas).
4) PRONOME: é a expressão que designa os seres sem dar-lhes nome nem qualidade, indicando-
-os apenas como pessoa do discurso.
5) NUMERAL: é a palavra que denota nome de número.
6) VERBO: é a palavra que, exprimindo ação ou apresentando estado ou mudança de um
estado a outro, pode fazer indicação de pessoa, número, tempo, modo e voz.
7) ADVÉRBIO: é a expressão modificadora que denota circunstância (de lugar, tempo, modo,
intensidade, condição etc.).
8) PREPOSIÇÃO: é a expressão que, posta entre duas outras, estabelece subordinação da
segunda à primeira.
9) CONJUNÇÃO: é a expressão que liga orações ou, dentro da mesma oração, palavras que
tenham o mesmo valor ou função.
10) INTERJEIÇÃO: é a expressão com que traduzimos os nossos estados emotivos.
Com efeito, essas classes gramaticais apresentam uma nomenclatura mais complicada do que
essa divisão parece indicar. Vejamos o detalhamento, apenas em parte do sumário, da Moderna
gramática portuguesa, descrevendo distinções mais refinadas das divisões das classes de palavras
no Quadro 10.1:
,) Substantivo
• concreto e abstrato;
• próprio e comum;
• formação do plural do substantivo;
• substantivo coletivo;
• gênero do substantivo.
2) Adjetivo
• adjetivo explicativo e restritivo;
• substantivação do adjetivo;
• flexões do adjetivo em grau.
3) Artigo
• espécies de artigo.
4) Pronome
..,/t
• classificação dos pronomes;
.• pronomes pessoais;
pronomes possessivos;
.• pronomes demonstrativos;
pronomes indefinidos;
• pronomes interrogativos;
• .pronomes relativos.
s) Numeral
• espécies de numeral .
➔
7) Advérbio e os denotativos
• locução adverbial;
• circunstâncias adverbiais;
• os vocábulos denotativos;
• advérbios de base nominal e pronominal;
• gradação dos advérbios.
8) Preposição
• locução prepositiva;
• acúmulo de preposições;
• combinação e contração de preposição com outras palavras;
• a preposição e sua posição;
• principais preposições e locuçôes prepositivas.
9) Conjunção
• tipos de conjunção;
• locução conjuntiva;
• conjunções coordenativas;
• conjunções subordinativas;
• conjunções e expressões enfáticas.
10) Interjeição•
• locução i nterjetiva.
Quadro 10.1 : Parte do sumário relativa às classes gramaticai s (Moderna gramática portuguesa, 2009).
222 1 LETRAMENTOS
Sintaxe na gramática tradicional
Existe uma gama infinita de escolhas que podemos fazer em sintaxe - tão expansivas, na verdade,
que dois trechos envolvendo várias centenas de palavras recém-criadas nunca serão iguais. Nesse
sentido, a sintaxe é a parte da gramática que lida com a combinação de diferentes classes de palavras
em sintagmas, orações e períodos. Assim como as classes de palavras, a sintaxe envolve uma
nomenclatura complexa, que destacamos no Quadro 10.2, também com base na Moderna gramática
portuguesa:
SINTAXE
A) Noções gerais
1) Que é oração
2) Entoação oraciona 1
3) A importância da situação e do contexto
4) Constituição das orações
sl Estruturação sintática: objeto da sintaxe
6) A oração na língua falada e na língua escrita
7) Sintaxe e estilo: necessidade sintática e possibilidade estilística
8) Tipos de oração
B) O período simples
C)Núcleo
3) Complementos nominais
substantivos;
• adjetivos.
7) Vocativo
2) Oração principal
mais de uma oração principal;
oração principal não é a 1• oração;
oração principal nem sempre é a do sentido principal;
tipos de orações independentes: coordenadas e intercaladas;
as orações dependentes são subordinadas;
coordenação;
subordinação;
classificação das orações quanto à ligação entre si.
s) Orações intercaladas
6) Orações subordinadas
substantivas: funções sintáticas exercidas pelas substantivas;
características das orações substantivas;
• adjetivas: função sintática exercida pelas adjetivas;
adjetivas restritivas e explicativas;
outros sentidos das orações adjetivas;
adverbiais: função sintática exercida pelas adverbiais.
7) Orações reduzidas
que é oração reduzida;
orações reduzidas independentes;
orações reduzidas dependentes:
a) substantivas;
b) adjetivas;
c) adverbiais.
orações reduzidas fixas;
orações reduzidas do tipo: deixei-o entrar;
quando o infinitivo não constitui oração reduzida;
quando o gerúndio e o particípio não constituem oração reduzida.
Quadro , 0.2: Parte do sumário relativa à sintaxe da língua portuguesa (Moderna gramótica portuguesa, 2009).
Tudo isso é apenas o começo. A gramática tradicional pode se tornar muito mais complicada,
porque construir sentido é algo rico, complexo e variado. Trouxemos a esta seção partes dos
sumários das classes de palavras e da sintaxe de uma gramática tradicional, porque aqueles de
nós que trabalham com o ensino de língua materna precisam conhecer esses termos básicos, que
224 1 LETRAMENTOS ,
surgem o tempo todo, especialmente de pessoas que aprenderam a ler e escrever por meio da
pedagogia do letramento na abordagem didática, ou que estudaram outra língua da maneira
tradicional.
li
l!l ..
Veja: "Afinal, que é gramática tradicional?".
A principal razão de as gramáticas serem tão complicadas é que a língua é algo fluido e complexo,
que, em sua plenitude, desafia definições e classificações simples. Por exemplo, podemos dizer que
um substantivo é uma pessoa, lugar ou coisa, mas os substantivos também incluem acontecimentos
e estados que muitas vezes se assemelham a verbos ("correr" eni "Correr é bom para você"). Com
efeito, não é difícil transformar verbos em substantivos, para soar mais objetivo ("Nossa investigação
revelou .. :', em vez de "Investigamos .. :'), por meio de um processo chamado nominalização. Da
mesma forma, os adjetivos podem se tornar advérbios (quando, por exemplo, "rápido" se torna
"rapidamente").
Além disso, há o desafio de definir unidades gramaticais, como morfema, palavra, oração ou
frase. Isso parece dep~nder muito mais de quão grande e multifacetado é o pensamento que se quer
expressar, que pode ou não ser resumido em poucas palavras. Nesse sentido, podemos tomar o
caminho mais fácil e dizer, por exemplo, que uma frase sempre começa com uma letra maiúscula
e termina com um sinal de pontuação("::"?","!"), porém isso não descreve como ela é construída,
mas apenas como deve se parecer depois de ter sido construída.
Quando passamos para as classes gramaticais, podemos tentar defini-las pelas coisas que realizam,
como, por exemplo, os substantivos, que nomeiam as coisas. No entanto, como vimos, qualquer
classe gramatical pode funcionar como substantivo pelo processo de nominalização em uma dada
oração. Assim, a distinção entre substantivos e verbos fica menos clara, sobretudo em relação às
formas nominais dos verbos, que podem funcionar como substantivos e adjetivos. Em outras
palavras, diferentes classes gramaticais podem ter diferentes funções, dependendo de onde elas
ocorrem na estrutura de uma oração. Portanto, o conhecimento acerca das distinções de classes de
palavra é útil, mas apenas até certo ponto.
Assim, o que se nota é que, quanto mais se usa a gramática tradicional, mais complicada ela se
torna, pois mais qualificações para as regras são necessárias. Quanto mais se estuda esse tipo de
gramática, mais óbvio é que a língua não se encaixa em categorizações e classificações bem
organizadas. A esse respeito, estudiosos de um campo chamado "Processam~nto de linguagem
natural'' (PLN) lidam com a linguística computacional com o intuito de buscar fornecer aos
computadores a capacidade de entender e compor textos, por meio de lógicas que ~ scam ler as
conexões de palavras em textos, o que consideram incrivelmente difícil. Comparados com a sutileza
e a fluidez da língua, até mesmo os programas de computador mais inteligentes do mundo são
coisas muito simples e mecânicas. Muitas vezes, o melhor que podem fazer é coletar grandes
conjuntos de texto, chamados de corpora, e tentar prever padrões estatísticos a partir das massas
de uso de palavras e combinações de palavras.
Gramática gerativo-transformacional
As estruturas profundas de significado e as estruturas de superfície da lín_WJª
A gramática gerativo-transformacional teve seu início em 1957, com a publicação pelo linguista
Noam Chomsky de seu livro Estruturas sintáticas (Syntactíc structures). Chomsky considerava que
o estruturalismo linguístico não explicava como a língua funcionava em um nível profundo e
estrutural em relação ao significado, construindo, então, novas bases para o estudo da
linguagem. Assim, o autor chegou à conclusão de que existem estruturas profundas de significado
subjacentes às sentenças, que, em si, estariam apenas no nível superficial. O processo de transformar
226 i LETRAMENTOS
estruturas profundas de significado (a maneira como se pensa) nas características da superfície da
língua (o que se diz e o que se ouve) foi chamado por Chomsky de "transformacional" ou "gerativo".
Em outras palavras, uma lógica no fundo do cérebro transforma significados em linguagem ou gera
linguagem, isto é, as estruturas da superfície da língua são geradas a partir das estruturas de
significado localizadas profundamente na mente. Nesse sentido, a tarefa da gramática gerativo-
-transformacional seria, de alguma forma, a de descompactar as estruturas subjacentes do significado.
Agramática de Chomsky
Assim como na gramática tradicional, a unidade básica de análise de Chomsky é a sentença (S),
mas esta, para o autor, não é simplesmente descrita como tendo um sujeito, um verbo e um
complemento. As descrições de sentença de Chomsky incluem um substantivo (Sub), sintagma
nominal (SN), pronome (Pron), auxiliar (Aux), determinante (Det) e um verbo, que pode ser
transitivo (VT), intransitivo (VI) ou de ligação s
(VL). Isso é apenas o começo de sua análise, pois Advtemp
há muito mais. As sentenças podem, então, ser
mapeadas em um diagrama em forma de árvore,
chamado de "marcador de sintagma" (phrase
marker), para mostrar sua estrutura (Figura 10.2),
sob a qual há um número de regras. Para efeito de
exemplo, apresentaremos apenas uma dessas regras
no Quadro 10.3 . Figura 10.2: Sentenças com o mesmo marcador de sintagma.
Quadro 10.3: Uma regra de estrutura sintagmática que se aplica às sentenças na Figura 10.2.
O objetivo de Chomsky foi criar um conjunto de regras gerais a partir das quais•fosse possível
gerar cada sentença gramaticalmente correta na língua, por meio de uma representação de significados
linguísticos cujas raízes estivessem na matemática e na lógica formal. Ao desenvolver essas
ferramentas abstratas, Chomsky mostrou as maneiras pelas quais as estruturas do pensamento
humano são representadas na linguagem, com cada tipo de unidade de significado (uma palavra
ou sintagma, isto é, um conjunto significativo de palavras) podendo ser preenchido com qualquer
conteúdo existente que se queira (por exemplo, as palavras "gato" e "cachorro" são substantivos, e
suas diferenças não são relevantes para as estruturas profundas do significado. Uma palavra pode
Chomsky tira algumas conclusões importantes sobre cultura e aprendizagem a partir de sua
teoria. Sobre cultura, ele acredita que todas as línguas têm as mesmas estruturas profundas para
construir significado, ou seja, o cérebro de todo ser humano é ligado da mesma maneira, mesmo
que as expressões superficiais dessas funções cerebrais sejam diferentes de língua para língua. Em
outras palavras, as características superficiais de cada idioma podem ser diferentes (seu vocabulário,
a ordem d~s palavras ou a gramática, por exemplo), mas os tipos subjacentes de unidades de
significado (substantivos, verbos e afins) e as regras lógicas para sua interconexão são sempre os
mesmos em todas as línguas humanas. É por isso que Chomsky e seus seguidores costumam chamar
sua gramática de "gramática universal", posto que as palavras são diferentes em diferentes línguas,
mas as estruturas subjacentes são sempre as mesmas.
Em relação à aprendizagem, Chomsky argumenta que as estruturas lógicas da língua são tão
complicadas que não poderiam ser aprendidas no curto espaço de tempo. Com base nesse argumento,
ele demoliu as teorias de aprendizagem da psicologia comportamentalista em seu artigo de 1959,
pois os behavioristas acreditavam que a língua seria um comportamento adquirido por imersão
em um ambiente onde esse comportamento poderia ser ensinado e aprendido. Chomsky, no entanto,
argumentou que deveria haver um conjunto de conceitos inatos ligados ao céreb'fo ao qual a criança
teria acesso por meio dos sons particulares que constituem as palavras da língua desde seu nascimento.
Nesse sentido, as estruturas profundas da gramática universal são transformadas nos níveis
superficiais da língua que a criança passa a aprender, por acidente da circunstância dada ao grupo
em que nasce.
Incluímos esse breve resumo da gramática gerativo-transformacional neste capítulo porque se
tornou um paradigma importante para a compreensão de capacidades e processos humanos de
produção de significado. No entanto, não provou ser particularmente útil para educadores - não
228 1 LETRAMENTOS
que tenha sido destinada a sê-lo. Pode parecer estranho que uma teoria que explique como a língua
funciona e como é aprendida não possa ser prontamente aplicada à educação. De fato, as razões
pelas quais isso acontece são importantes.
Primeiramente, a teoria é abstrata e formal, tornando-se cada vez mais complexa quanto mais
se aprofunda na língua. Esse é um problema para todos os sistemas que visam ao desenvolvimento
de regras abrangentes, que se tornam mais e mais difíceis de compreender à medida que mais
detalhes são elaborados. De fato, o sistema gerativo-transformacional não só tem se tornado cada
vez mais complicado ao longo das décadas, como também alguns de seus fundamentos provaram
não funcionar e tiveram que ser mudados. Tornou-se difícil manter a distinção entre estruturas
profundas e superficiais, de modo que ela foi posteriormente substituída pelas ideias da "forma
lógicà' ("logical form") e "forma fonética" ("phonetic form"), e depois "línguas internas" ("internai
ianguage") e "línguas externas" ("externai language"). Mais tarde, qualquer tentativa de fazer esse
tipo de distinção foi, então, abandonada, visto que as "regras" pareceram ser uma ideia demasiado
rígida e determinista, sendo, portanto, substituídas pela ideia mais maleável de "princípios"
(''principies"). Alguns chegaram a argumentar que um sistema pesado como esse, com o tempo,
começa a desmoronar sobre si mesmo, uma vez que lida com as complexidades humanas de algo
li
·: ,
l!l
. : Veja: "Estudn do idioma pirahã desafiou teoria consagrada da linguísticà'.
.
Qual é a lição útil que podemos tirar da história da gramática gerativo-transformacional? A
linguagem é incrivelmente complexa, o que torna o ensino de suas regras necessárias também algo
complexo demais. Isso não quer dizer, no entanto, que devamos nos reverter totalmente para a posição
dos pedagogos da abordagem autêntica, que defendem que a aprendizagem de línguas ocorre "fazendo':
na prática, por meio de leitura e escrita na escola. Com efeito, o tipo de experiência com a língua que
uma criança consegue obter ao usá-la nos primeiros anos de vida não pode ser reproduzido no tempo
de aula e nos períodos comparativamente curtos dedicados ao ensino de língua portuguesa no
calendário es~olar. Nesse sentido, estabelecer padrões gerais na língua - que é o que uma gramática
faz - torna-se um conveniente atalho pedagógico. Além disso, uma abordagem de imersão também
parece difícil quando a "conversà' incessante, que é uma base tão importante para o aprendizado de
idiomas nos primeiros anos da criança, é desencorajada ou limitada no tempo escolar.
Por razões práticas, precisamos falar sobre a língua, aberta e explicitamente, para aprender a
escrever na escola, porém não podemos lidar com a língua apenas por meio de regras estritas e
pensar que essa perspectiva pode servir para todas as línguas, ou mesmo para todas as formas de
usar determinada língua. Em outras palavras, precisamos de uma linguagem mais ampla para falar
sobre língua (uma metalinguagem), ou, para lançar isso no quadro de referência mais abrangente
da construção de significado multimodal, precisamos de uma "análise de ddígn" explícita e
generalizada, capaz de descrever "elementos do design" e como estes trabalham para criar significado.
Além disso, há também a questão do argumento de Chomsky sobre a natureza inata da linguagem.
Se a linguagem é inata, isto é, se já vem incorporada ao conjunto de habilidades naturais de uma
pessoa, então, o que fazemos nas escolas? Como explicamos diferentes tipos e níveis de uso de qualquer
língua por um aluno? Nesse caso, poderíamos também fazer a seguinte pergunta: se as diferenças de
4 Searle, 2002.
Agramática sistêmico-funcional
O principal teórico da gramática sistêmico-funcional (GSF) é Michael Halliday. Como os
gramáticos tradicionais e os gerativistas, Halliday também estava interessado em entender o
funcionamento da língua como um sistema de significado integrado. No entanto, além disso, ele
tinha interesse em saber como as pessoas significam ao usarem a língua, isto é, como esta funciona
em ambientes para interação social. Em cada momento de fala ou de escrita, fazemos escolhas entre
formas alternativas de significado, a fim de atender aos nossos propósitos de construção de
significados, que são sempre situados, ou seja, faum sentido em contextos específicos, pois são
negociados em função de vários propósitos comunicativos e, não apenas de uma lógica interna
embutida nos significados, como se pode depreender das gramáticas tradicionais e gerativas, cuja
ênfase se restringe ao sistema. Diferentemente dessas gramáticas, a relação entre forma e função
na GSF é, portanto, uma relação de princípio, orientada para o significado.
Agramática de Halliday
Halliday descreve a gramática como "um recurso para construir sentido [... ], que incorpora uma
teoria da vida cotidiana'',5 para dar sentido a nossas experiências vividas. Na gramática funcional
de Halliday, as escolhas gramaticais nos permitem cumprir três funções principais ou metafunções
da linguagem: 6
• Metafunção ideacional: expressar e conectar ideias, o que nos permite falar sobre coisas e
acontecimentos, bem como sobre nossas experiências no mundo;
• Metafunção interpessoal: interagir com outras pessoas, o que nos permite estabelecer e
manter relacionamentos sociais e comunicar nossos sentimentos e atitudes em relação a
pessoas e experiências;
• Metafunção textual: organizar o significado para fazermos conexões internas dentro de um
texto e para nos referirmos a aspectos da situação em que o texto está localizado, o que nos
permite criar textos coesos através dos quais nos comunicamos sobre o mundo e nossos
relacionamentos nesse mundo.
Podemos examinar a estrutura de todo o texto, ou mesmo uma única frase ·tu
oração, e ver
todas as três metafunções em ação, uma vez que "todo ato de significado incorpora todos os três
componentes metafuncionais".7 Para tanto, os significados são realizados pelos textos de três
maneiras, como mostra o Quadro 10.4.
Essa é uma visão geral simplificada da GSF de Halliday, que, como todas as demais gramáticas,
torna-se mais complicada e altamente qualificada quanto mais se presta a considerar a língua em
sua totalidade. Além disso, todas as três metafunções são perspectivas de significado que se aplicam
a toda e qualquer oração, sem exceção, em toda sua sutileza e complexidade. Mesmo o mais
aparentemente comum dos significados na língua é enganosamente complicado, porque está sempre
realizando as três coisas e tudo de uma só vez. Nesse sentido, podemos nos maravilhar com a
consciência humana, que é capaz de pensar tanta coisa ao mesmo tempo, embora possamos saber
quais aspectos do significado devemos observar durante um determinado momento, porque são
aqueles que, naquele momento, consideramos os mais relevantes, o que nos faz deixar outras coisas
no fundo da mente ou na consciência periférica.
Metafunção Exemplos
Significados experienciais (influencia- Os participantes podem ter papéis diferentes, incluindo os de ator (por exemplo,
dos pelo campo do discurso) reúnem "eu" em "eu pulo"), portador ("eu sou alto"), beneficiário ("ele" em "eu dei a ele o
participantes (quem está envolvido). presente") e objetivo ("presente" em "eu dei a ele o presente").
processos (o que está acontecendo) e Os processos conectam os participantes por meio do que está acontecendo, incluin-
circunstâncias (onde, quando, como e por do processos materiais (por exemplo,"pular" em "eu pulo"), processos verbais ("dizer"
que isso está acontecendo). em "eu digo"), processos relacionais ("ter" em "eu tenho um presente") e processos
Recursos gramaticais p~ra construir senti- mentais ("pensar" em "eu penso").
do são padronizados em torno da transi- As circunstôncias elaboram sobre quando, onde, por que e como, incluindo, por
tividade (quem ou o que faz o quê para exemplo, o modo (por exemplo, "como?""de trem"), causa ("por quê?'"'para você"),
quem ou o quê). companh ia ("com você").
As conexões podem ser receptivas, quando um destinatário pode, de fato, ter algo
feito para elas ("eu dei a ele o presente"), e operativas, quando algo que eu faço não
pode afetar diretamente outra pessoa ("me perguntei").
Significados interpessoais (influencia- . O modo pode ser declarativo (por exemplo, "estou andando"), interrogativo ("Você
dos pela sintonia do discurso). vai andar?") e imperativo ("ande agora!").
Recursos gramaticais para a criação de A modalização se refere a níveis de certeza, que podem ser baixos (por exemplo,
significado são enquadrados pelas esco- "pode'; "poderia"), medianos ("seria") e altos ("tem que'; "deve").
lhas relativas ao modo e à modalização. ...$
Significados textuais (influenciados pelo O tema é o tópico de uma oração (por exemplo, "eu e ela" em "eu e ela andamos
modo de discurso). pela rua"); o rema, que segue o tema e contém novas informações ("estamos andan-
do pela rua" em "eu e ela estamos descendo a rua").
232 1 LETRAMENTOS
Comparando a gramática de Halliday com outras gramáticas
Em cada caso, uma troca social de significados produz uma estrutura diferente e um conjunto de
escolhas de palavras, em que a escrita se torna um processo de fazer escolhas que são mais eficazes
no contexto da significação. Nesse sentido, por exemplo, pode não ser tão produtivo fornecer a alguém
uma narrativa sobre como preparar uma refeição, quando seria mais conveniente fornecer um
procedimento escrito na forma de uma receita; ou recontar seus sentimentos sobre um experimento
científico pode ser menos que útil quando se espera que se escreva um relatório sobre causas e efeitos
científicos. Em cada caso, o gênero será uma chave para a eficácia da construção de significado.
Como as outras gramáticas, a abordagem sistêmico-funcional fornece muito mais ffiformação do
que se pode direcionar para auxiliar a aprendizagem da leitura e da escrita, pois muita coisa acontece
simultaneamente na língua para que seja possível conscientemente separar cada elemento. Os linguistas
fazem isso porque esse é o seu trabalho, que comporta todos os tipos de aplicações: da tradução
automática aos mecanismos de busca semanticamente informados na internet, à avaliação automatizada
da escrita dos alunos. No entanto, há muitas coisas sobre a língua, tanto oral quanto escrita, que os
Visão de língua Língua é um conjunto de re- Língua é criativade governada por Língua é um processo social
gras regras
Visão de gramática Regras de formação e uso Um dispositivo inato na mente Um recurso para a construção de
humana significado em contextos sociais
Derivação Grego e latim antigos Teoriza sobre princípios universais Analisa o que as pessoas fazem
da língua por meio da língua
Forma x função Preocupada principalmente Ênfase na estrutura sintática; ai- Foco na relação entre forma e
com a forma gum interesse na semântica função
Modo(s) enfatizado(s) Modo escrito Não preocupado com o modo Modos escrito e falado
Unidade de análise Classe de palavras e suas com- Dos fonemas às formas sintáticas Texto, período, oração, palavra,
binações complexas fonema
-
,
Implicações para a sala Ensino explícito de regras, O conhecimento do professor Discussão do ponto gramatical
de aula frequentemente com o fim em sobre a seleção de guias de se- relevante no contexto específico
si mesmas quência de aquisição de inputs para aumentar a conscientiza-
ção da língua e de seu uso apro-
priado
Quadro 10.6: Comparação de diferentes abordagens relacionadas à gramática e ao seu ensino.
9 Acara, 2009, p. 6.
234 i LETRAMENTOS
A abordagem funcional pode ser útil em vários aspectos. Primeiramente, é pragmática, pois se
concentra no propósito e no significado do texto e o situa em seu contexto (funções textuais), em
vez de apenas analisar regras isoladas dos sistemas textuais. Essa orientação funcional significa que
seu foco está na questão das escolhas entre alternativas possíveis. Nesse sentido, ao falar, a pessoa
tem um propósito específico e está constantemente reelaborando o que está dizendo: reformulando
ideias, corrigindo aquilo que não deu certo ou repetindo de maneira ligeiramente diferente, a fim
de reelaborá-las até que esteja mais satisfeita por alcançar o significado que pretende construir; ao
escrever, do mesmo modo, o autor tem uma razão específica e está constantemente revisando um
texto, para refletir mais de perto seus propósitos; ao ler, uma pessoa também está buscando um
certo objetivo e pode precisar reler uma palavra, uma frase ou um trecho de texto mais longo até
que aquilo faça sentido para ele.
Portanto, o foco da GSF não está apenas no uso de normas de um sistema de determinada
língua, pois não se trata apenas de decodificar regras de significado. É também uma questão
de entender a relação entre regras ou convenções e nosso próprio propósito de falar, ouvir, ler
ou escrever. A todo momento, lidamos com escolhas sobre os textos que produzimos e recebemos.
Ao construirmos ou interpretarmos o significado, trabalhamos constantemente para melhorar
um texto que estamos escrevendo ou produzimos nossa compreensão de um texto que estamos
interpretando. Em cada caso, estamos sempre lidando com níveis de aproximação de significado,
e é por isso que nos encontramos continuamente revisando textos enquanto tentamos obter
uma melhor aproximação. Essa concepção se relaciona, por conseguinte, com nossas ideias de
designers de significado, em que fazemos "escolhas" e "mudanças", em vez de obedecer a "regras"
ou evitar "erros".
Os textos centrais da GSF de Halliday apenas fazem "realizar" a língua. No entanto, diferentemente
da gramática tradicional ou da gerativa, a GSF certamente nos convida a reconhecer que o significado
é maior do que a língua, pois esta é um sistema dentro de todo um conjunto de sistemas de criação
de significado em uma cultura, que inclui também os modos visual, gestual, espacial e tátil. Isso
porque apenas se podem construir significados experienciais, interpessoais e textuais na vida
cotidiana multimodalmente, uma vez que a língua não existe como um "sistema fechado", em
qualquer sentido factual ou analítico, separado da multimodalidade intrínseca de nossa experiência
sensorial humana. Nesse sentido, as ferramentas da GSF também nos permitem investigar o
significado nesse quadro de referência mais amplo.
No trecho a seguir, retirado da transcrição de uma atividade em sala de aula sobre "insetos",
alunos do 2º ano do esino fundamental conversam com o professor sobre os insetos que encontraram
durante uma viagem de campo da turma. Enquanto se preparam para escrever um relato de suas
pesquisas, o professor os orienta a fazer a passagem dessas experiências sensoriais no mundo físico
para a recriação dessa aprendizagem em palavras e gestos.
A1: - A gente pegou três percevejos ...
A2: - O Patrick pegou o gafanhoto.
P: - Mostre a eles como o gafanhoto estava andando, Patrick, quando você tentou pegá-lo. Você
pode mostrar com a mão? O que ele estava fazendo antes de você tentar agarrá-lo?
A3: - Ele tava pulando
P: :._ Bom menino! E a que altura ele estava pulando? Mostre no tapete, com as mãos, a que altura
ele estava pulando.
236 j LETRAMENTOS
Desenvolvendo a escrita nos anos escolares
O desenvolvimento da escrita em crianças pequenas pode ser visto como um processo que
envolve mudança para uma nova maneira de construir sentido com símbolos e signos, uma vez
que fazer sentido na escrita implica um processo de abstração da realidade material. Nos primeiros
anos, a escrita infantil se assemelha à língua falada de seu mundo social imediato. No entanto, o
processo de fazer sentido no modo escrito demanda um esforço consciente substancial quando
crianças escritoras lidam com caligrafia, digitação e ortografia, enquanto reapresentam suas
experiências na página ou na tela (Figuras 10.4, 10.5).
O encanto da bruxa
À medida que as crianças avançam no processo de escolarização formal, seus encontros com o
mundo social se tornam sistematicamente ordenados, visto que o conhecimento escolar é cada vez
mais representado no modo escrito. A progressão das crianças nos primeiros anos está associada
à expansão de seus recursos de construção de significado, com a inclusão de uma variedtllde de
tipos de textos escritos usados na criação de conhecimento nas disciplinas escolares, quando
aprendem a descrever, explicar, argumentar e contar histórias por escrito.
Nos anos intermediários e posteriores, os textos baseados nas disciplinas escolares se tornam
mais técnicos e abstratos, na medida em que o conhecimento especializado das áreas disciplinares
é mais complexo. Nesse contexto, a escrita dos alunos geralmente inclui informações precisas e
densamente compactadas, caracterizadas pelo uso de vocabulário técnico e recursos sintáticos mais
sofisticados.
Nos capítulos seguintes, delinearemos uma análise do design multimodal que utiliza e adapta
insights da linguística sistêmico-funcional para outros modos: visual, espacial, tátil, gestual, auditivo
e oral. Um paralelo direto entre nossa análise do design multimodal e a linguística sistêmico-
-funcional é que nosso conceito de "referêncià' (a que o significado se refere) é similar ao conceito
hallidiano de "campo" ou "significados experienciais"; nosso conceito de "diálogo", por sua vez, é
similar ao conceito de "sintonià' ou "significados interpessoais"; e nosso conceito de "estrutura" é
semelhante ao conceito de "modo" ou "significados textuais". Adicionamos ainda os conceitos
"contexto" e "propósito", para formular um total de cinco perguntas, que sempre podem ser feitas
sobre qualquer significado.
Oprocesso de escrita
"""
Até agora, neste capítulo, concentramo-nos na substância da escrita. Vejamos, então, o processo
de escrita, que, idealmente, para textos extensos, ocorre em cinco fases: 1) plano; 2) rascunho; 3)
feedback; 4) revisão; e 5) publicação. Descrevemos, então, nossa análise do design da linguagem
escrita no Quadro 10.7 e o processo de escrita, fornecendo também características específicas da
plataforma de aprendizagem Scholar relativas à produção textual multimodal (Quadro 10.8).
238 1 LETRAMENTOS
Referência . Algo em particular? Ex.: palavras como "David'; "está andando" - nomes próprios,
(A que o significado se refere?) substantivos que se referem a coisas específicas e verbos que se referem a ações
específicas. Isso inclui:
✓ Uma pessoa; quem? Ex.: palavras como "ela'; "David'; "o médico''.
✓ Um lugar; onde? Ex.: palavras como"São Paulo';"a cidade''.
✓ Um tempo; quando? Ex.: palavras como"segunda-feira~ "esta noite" - relacionadas
com os tempos verbais.
✓ Um objeto de interesse; o quê? Ex.: "caderno de exercícios de David''.
✓ Algo geral? Ex.: palavras como "pessoas~ "andar" - nomes comuns, verbos que se
referem a tipos de ação.
✓ Uma característica? Ex.: palavras como "alto'; "rápido'; "muitos'; singular ou plural;
os artigos "o" ou "uma"; com parativos - adjetivos para descrever substantivos e
advérbios para descrever verbos.
✓ Uma relação? Ex.: palavras que conectam significados entre si, como em "é uma
espécie de'; "é uma parte de'; "entre'; "porque" - preposições e conjunções em
sintagmas ou orações.
Diálogo Como os atores estão conectados através da ação descrita no texto? Ex.: palavras
(Como os significados conectam as expressando voz ativa/passiva; perguntando/sugerindo/instruindo; tipos de pos-
pessoas que estão interagindo? sibilidades, modalizadores.
Quais são os efeitos da ação? Ex.: quem é o sujeito ou objeto (direto ou indireto).
Qual é a postura do escritor? Ex.: a formalidade ou a informalidade de um texto;
comprometimento ou afinidade do autor com a proposição; voz/humor.
Qual é a posição do leitor? Ex.: direciona "você" (instruções), abre mais ou menos
espaço para múltiplas interpretações; representação/metáfora/alusão; enquadra-
mento da interatividade escritor/leitor.
Estrutura Escolha de palavras e posicionamento. Ex.: como uma palavra se ajusta ao contex-
(Como os significados, em geral, se to, repetição/não repetição; ênfase/consistência de referência/variedade de estilo
mantêm coesos?) ou aprofundamento de significado.
. Dêiticos e sua clareza/explicitação. Ex.: "isto'; "isso" ou •aquilo'; "agora" ou "depois';
"aqui" ou "lá'; "ele" ou "ela''.
Oração e seu fluxo. Ex.: fluxo narrativo, conectivos lógicos e clareza argumentativa,
usando orações subordinadas, conjunções, sujeito/predicado, dado/novo.
Seccionamento. Ex.: vírgulas, dois-pontos, ponto e vírgula, longos traços e colche-
tes para seções dentro de orações, períodos, parágrafos, listas, tabelas e título do
texto.
Encadeamento. Ex.: fluxo de seções.
Meios de comunicação. Ex.: texto à mão, tipográfico, digital.
Fase 1: Plano Às vezes chamada de "pré-escrita'; esta é É muito útil que os alunos tenham parâmetros de escrita,
a fase em que o autor se familiariza com apresentados a eles em uma linguagem acessível, para que
a tarefa de escrever: adquiram uma compreensão clara das expectativas de um
texto de alta qualidade. Esses parâmetros devem apontar
examina cuidadosamente o que vai
claramente o que é esperado em um determinado tipo de
escrever;
texto ou gênero. Se houver revisão por pares, as rubricas
. escolhe um tópico; devem ter um tom prospectivo e construtivo, sugerindo os
tipos de feedback que podem ser úteis para o autor.
. pesquisa, faz anotações;
Ao trabalharem em um espaço de escrita digital, é possível
cria um esboço.
aos autores usarem ferramentas para criar cabeçalhos de
seção e subtítulos; estes refletem o design geral do texto e
podem permanecer visíveis ou ser posteriormente removidos
para as versões finais de um texto - por exemplo, cabeçalhos
invisíveis para marcar os estágios do desenvolvimento de
uma narrativa.
Fase 2: Rascunho O autor cria, então, uma primeira versão . É uma boa ideia para o autor salvar a versão do trabalho que
completa do texto: contenha cabeçalhos, notas e mídias e criar uma nova para
revisa e edita a cópia (ortografia, gra- . O autor pode usar ferramentas de verificação ortográfica,
mática, pontuação, uso adequado de gramatical e de sinônimos.
palavras etc.).
. O autor deve verificar os parâmetros de escrita para certificar-
-se de que atendeu às expectativas do tipo de texto que
está escrevendo.
Fase 3: Feedback Então, o autor pode mostrar sua escrita Alguns programas de escrita suportam revisão por pares
para um colega, uma amigo crítico ou um anônima ou aberta.
professor, para feedback.
. Alguns programas de escrita também suportam anotações
próprias, de colegas e de professores.
Fase 4: Revisão O feedback levará o autor a criar um ras- . O programa de escrita também pode oferecer suporte à se-
cunho final: leção automática, em que o aluno examina a avaliação no-
vamente e reflete sobre quais comentários e sugestões foram
faz revisões importantes na estrutura,
mais úteis e as maneiras pelas quais revisou seu trabalho,
no fluxo e na lógica do texto;
com base no feedback de colegas e/ou professores.
. revê e edita o rascunho final;
Fases: Publicação Por fim, o trabalho do autor é disponibili- Portfólios eletrônicos são ideais para publicar trabalhos
zado par.3 um público, para que outros multimodais na web.
possam lê-lo - em um livro da turma, por
Uma vez compartilhados, os trabalhos publicados estão
exemplo, ou postado em um quadro de
disponíveis para discussão pós-publicação.
avisos.
Quadro 1 o.8: Processo de escrita.
240 1
LETRAM EN TOS
A escrita como um processo de aprendizagem cognitivo e social
complexo
Aprender a escrever não é simplesmente um processo linear de cinco etapas, começando com
um plano e terminando com um trabalho publicado, mas sim um processo social que é linguística
e cognitivamente muito mais complexo que isso. De fato, a escrita é uma dialética multifacetada,
uma série de movimentos de "vai e vem'' entre o escritor individual e o diálogo social sobre o
trabalho, envolvendo o próprio texto e a reflexão sobre os elementos do design do texto, cognição
e metacognição.
Em todas as fases (Quadro 10.9), a escrita envolve um complexo jogo social e cognitivo, que é
recursivo, pois aprender a escrever, uma das mais complexas representações humanas e capacidades
cognitivas, é, fase por fase, uma tarefa aprendida ao retroceder e avançar ao longo do texto, à medida
que este se desenvolve. Esse processo é enriquecido pela interação social, envolvendo feedback por
meio de uma variedade de perspectivas (Quadro 10.10).
Fase 1: Plano Pensando e m minha escrita<=> Criando anotações e um esboço Esboço aproximado que aborda
pesquisando fontes sociais para <=> trabalhando com parâmetros um tópico ou temas específicos
minha escrita. de escrita que nomeiam explicita- <=> pensando em termos gerais
mente os recursos do design de um sobre esse tipo de texto ou tipo de
texto efetivo e poderoso. prática disciplinar representada na
escrita (por exemplo, escrevendo
sobre ciência ou história).
Fase 2: Rascunho Minha escrita<=> alterar suges- Elaborando o texto <=> reflexão Escrevendo sobre algo <=> pen-
tões por meio de ferramentas de sobre o tipo de texto com a ajuda sando em como pensar sobre tal
verificação gramatical e ortográ- de parâmetros de escrita. coisa.
fica do computador.
Fase 3: Feedback Observando a escrita de outras Lendo um texto <=> reflexão es- Lendo algo substantivo (em um
pessoas <=> oferecendo-! hes truturada e feedback sobre o texto, tópico informativo, uma história)
feedback. pa râmetros de escrita. <=> comentário sobre o pensa-
mento subjacente.
Fase 4: Revisão Observando a minha própria Minha própria escrita <=> análise Revendo meu pensamento como
escrita <=> refletindo sobre o de comentá rios por outros expres- refletido no rascunho <=> consi-
feedback de colegas e/ou profes- sos em termos de análise do design. derando os pensamentos dos ou-
sores. tros sobre o meu pensamento.
Fase s: Publicação Observando a minha versão li- Escrita finalizada <=> reflexões Meu pensamento revisado <=> a
nalizada <=> escrevendo uma sobre o processo de design. autorreflexão sobre como meu
autorrevisão; também lendo pensamento se desenvolveu.
textos publicados<=> discussão
--./t
de textos publicados.
Quadro 10.9: Fases no processo de escrita.
Algo específico, a coisa empírica sobre a qual estou es- Generalizações ou reflexão teórica; ex.: sobre a natureza
crevendo em um texto factual ou os participantes em da escrita, o conteúdo disciplinar da escrita.
particular e o ambiente em uma narrativa.
No lado esquerdo da tela do Scholar. No lado direito da tela do Scholar - é possível encontrar
esses m ovimentos sociais e cognitivos acontecendo por
meio de muitas pedagogias de escrita.
Quadro 10.10: Interações sociais e cognitivas na/por meio da escrita.
Sumário
Análise do design dos mui- Gramática sistêmico- Gramática gerativo- Gramática tradicional
tiletramentos -funcional -transformacional
242 \ LETRAMENTOS
Processos de conhecimento
Experienciando o conhecido
1. Em relação às pedagogias de escrita discutidas neste capítulo, como você descreveria sua própria
Experienciando o novo
2. Leia uma atividade escolar de produção escrita com instruções diretas altamente roteirizadas.
O que você acha atraente ou alienante nessa abordagem para aprender a escrever?
Analisando criticamente
3. Discuta a proposição de que uma abordagem autêntica da escrita é o caminho mais eficaz para
iniciar a escrita aos alunos (de baixo rendimento escolar) de famílias pobres e desfavorecidas.
Para tanto, leia textos de autores que defendem e criticam essa abordagem.
Analisando funcionalmente
6. Escolha um parágrafo de texto escrito. Em um grupo de quatro pessoas, a primeira deve aplicar
o conceito de gramática tradicional ao texto; a segunda, o de gramática gerativo-transformacional;
a terceira, o de gramática sistêmico-funcional; e a quarta, o de análise do design dos multiletra-
mentos. Em seguida, compare os resultados. Que ideias podem ser obtidas de cada abordagem?
Quais aspectos de cada abordagem seriam mais ou menos úteis para os alunos aprenderem a
escrever?
Aplicando apropriadamente
7. Desenvolva um plano de aula que ilustre a forma como os conceitos de análise do design podem
ser usados para ajudar a explicar o modo pelo qual um texto escrito atende aos seus propósitos.
O significado escrito tem sido privilegiado em relação ao significado visual há séculos, pois a
hegemonia da escrita sobre a imagem certamente se iniciou com o surgimento da cultura impressa
e da escolarização institucionalizada em massa. Essa situação começou a mudar no século XX, com
o aparecimento de novas mídias, incluindo a fotografia, a impressão fotográfica-litográfica, o rádio
e a televisão. À sua maneira, cada uma dessas mídias oferecia, então, alternativa ou suplemento à
escrita como formas novas de registro de significados e sua comunicação entre distâncias.
Na segunda metade do século XX, lamentou-se reiteradamente o suposto declínio do hábito
de leitura, atribuído à ascensão das mídias visuais, como a televisão e os quadrinhos, e foram
constantes os pedidos de retorno aos livros. Nesse sentido, as crianças aprendiam que a escrita
era superior à imagem, e progrediam dos "livros ilustrados", voltados para leitores iniciantes, aos
livros com textos escritos mais densos. Por essa lógica, então, os leitores mais avançados,
aparentemente, não precisavam mais de avisos visuais na forma de ilustrações. Assim, as crianças
mais velhas poderiam escolher para ler, em seu tempo livre, livros ilustrados e histórias em
quadrinhos, mas estes nunca seriam usados no ensino formal de leitura e escrita na escola, pois
eram considerados uma alternativa limitada e educacionalmente inútil para a "leitura real".
Enquanto as crianças trabalhavam na escola, as disciplinas voltadas para leitura, escrita e arte se
tornavam cada vez mais rigidamente separadas. Assim, a leitura e a escrita eram consideradas
essenciais e mais "acadêmicas", enquanto a disciplina de "arte" era opcional e mais orientada para
a aquisição de habilidades artesanais ou comerciais.
Enquanto isso, em algumas das mais influentes teorias acadêmicas da comunicação e da
sociedade humanas, um sentimento paralelo se expressava através da "virada da linguagem", na
qual a linguagem era, então, tomada para enquadrar tudo em nossos mundos de significado e
de interação social.' Nessa visão, tudo o que é significativamente real no mundo é assim porque
é nomeado ou rotulado pela linguagem, pois esta cria todo o significado. Nossa consciência é
considerada estruturada como uma linguagem; como consequência, nossas funções cognitivas
superiores, como raciocínio e solução de problemas, são pensadas para ser exclusivamente
moldadas e expressas através da linguagem, quando, por exemplo, classificamos as coisas,
nomeando-as com palavras e estabelecendo conexões entre palavras por meio da lógica linguística
da sintaxe. Em outras palavras, algo só existe de forma significativa a partir de uma perspectiva
humana quando é nomeado na/por meio da linguagem.
Uma série de aspectos de nossos ambientes sociais e comunicacionais contemporâneos sugere
que devemos, então, rever esse preconceito grafocêntrico de longa data, isto é, preconceito
centrado na língua escrita. Um fator que discutimos em vários lugares deste livro é a multimodalidade
intrínseca das comunicações cotidianas na era da mídia digital. De fato, entramos em uma era
- que W J. T. Mitchell 2 já chamava de "uma virada pictórica" - na qual uma pedagogia dos
letramentos que lide com a alternância entre diferentes modos, ou sinestesia, pode ser bastante
efetiva.
Neste capítulo, discutiremos como nos referimos às imagens, usando a mesma estrutura para
análise do design que aplicamos à língua escrita no capítulo anterior. Queremos mostrar como
podemos dizer as mesmas coisas por meio da língua escrita e da imagem. Uma pafà'vra e uma
imagem podem se referir à mesma montanha ou à mesma pessoa, por exemplo. No Quadro 11.1,
aplicamos a mesma análise do design aos significados visuais que introduzimos para os significados
escritos no capítulo 10 (Quadro 10.6). Para ver as relações entre os dois tipos de significados,
compare .os dois quadros.
1 Rorty, 1992.
2 Mitchell, 1986.
246 1 LETRAMENTOS
Veja: "Kalantzis e Cope analisando os designs de imagens".
Letramentos multimodais
Pip leciona para uma turma do 6Q ano de escola de área rural. Muitas das crianças vêm de
famílias relativamente pobres. Veremos nesta seção como a aprendizagem multimodal dos letramentos
entrou em sua sala de aula, e, em particular, como a professora conecta a escrita à criação de imagens
para permitir que seus alunos entendam o modo como os textos foram elaborados, bem como o
que significam.
Para dedicar toda a sua atenção às metas desafiadoras de letramentos que estabeleceu, Pip
desenvolve uma sequência de 22 atividades nas quais os alunos criam "projetos apaixonantes"
("passion projects") baseados em seus interesses. Um aluno escolhe a dança e outro escolhe os
caminhões. Ela faz as crianças criarem websites sobre seus projetos e, então, publica artigos sobre
suas paixões em um jornal de classe. Guiados pela estrutura de aprendizagem que a professora
escolheu - a pedagogia dos multiletramentos -, os alunos pesquisam os tópicos escolhidos em
profundidade, investigando uma ampla variedade de fontes: livros, internet e materiais que trazem
de casa. Juntos, examinam o design visual das páginas da internet, contrastando-o com o design
I
• n visual: Processo de criação de de livros e criando mapas conceituais que capturam os principais conceitos de
significados visuais. apresentação em web design. A professora também faz com que os alunos
considerem o design de jornais (manchetes, leads, linhas de texto, imagens, diagramas), comparando
edições impressas e on-line. 3
No trecho a seguir, Pip reflete sobre a experiência dos alunos:
Temos uma grande variedade de crianças nesta sala ... Nem todas as crianças têm acesso a um computador
em casa; então, tem havido muito planejamento para esse conceito de nomeação, para que eles sejam
capazes de entender que isso é um hyperlink, ou isso é uma "fonte" [... ] identificando essas características
e conceitos que eles precisam ser capazes de usar e precisam ser capazes de nomear [... ] sendo capazes
de articular o que é o conceito e então aprender o que isso faz [... ] A análise crítica tem sido realmente
uma parte grande de ter que olhar para as páginas da internet e dos jornais, por exemplo, e identificar
recursos. Eles têm sido bastante críticos sobre o motivo de terem escolhido uma cor de fund~ u uma
animação em particular, ou essa fonte funciona com esse plano de fundo colorido específico. As crianças
são muito boas nisso agora e usam a linguagem muito facilmente, muito confortavelmente [... ] Nós
aplicamos o que aprendemos na criação de nossas próprias páginas da internet e cada criança agora tem
seu próprio perfil pessoal, que está na intranet da escola. [... ] Incluindo o hiperlink para seu "projeto
apaixonante': 4
Referência Como coisas específicas, como pessoas, lugares, ações, processos e objetos, foram descritas, usando:
(A que o significado se - linha (contorno, características de definição, comprimento, ângulo, interseção, direção)?
refere?) - forma (forma, tamanho, volume)?
- cor (matiz, densidade ou brilho/ofuscamento, tom ou luminosidade/escuridão)?
A que pessoas a imagem se refere (por exemplo, um desenho animado de uma pessoa em particu-
lar)?
Quais lugares são representados - onde (por exemplo, em um mapa, em uma foto)? .,./t
Quando (por exemplo, os ponteiros do relógio, dia/noite, estações do ano, auras do futuro/contem-
porâneo/histórico, cronogramas e gráficos)?
Quais objetos de interesse são referidos - o quê (por exemplo, o anúncio de uma academia, um
diagrama dos músculos das pernas)?
Como os conceitos gerais ou tipos de coisas foram descritos (por exemplo, um ícone como um avião
em um sinal apontando"para o aeroporto"; um diagrama mostrando como algo, em geral, funciona,
como um coração humano)?
Como as características dessas coisas foram descritas, incluindo:
- qualidades (por exemplo, perspectiva e proporção)?
➔
248 / LETRAMENTOS
Referência - quantidades (por exemplo, números, uns/alguns/muitos, menos/mais)?
(A que o significado se Como as relações entre as coisas estão descritas, incluindo:
refere?) - parte/todo?
- posse (um atributo ou algo de propriedade)?
- proximidade (por exemplo, perto/longe, j ustaposição/separação)?
- similaridade/dissimilaridade (por exemplo: semelhança/contraste, continuidade/descontinuidade)?
Estrutura Como os elementos da imagem são organizados (por exemplo, composição, primeiro plano/plano
(Como os significados, de fundo, enquadramento ou definição de bordas)?
em geral, se mantêm Como a imagem é seccionada (por exemplo, esquerda/ direita; superior/ inferior, centro/margem,
coesos?) foco disperso/centrado)?
Como os elementos da imagem formam um todo integrado (por exemplo, semelhanças/contrastes,
regularidade/ irregularidade, simetria/assimetria, perspectiva e transmutação de três dimensões em
duas)?
O que a imagem indicia (por exemplo, destaque, figura/ fundo)?
Quão rea listicamente as ideias ou informações são retratadas na imagem (por exemplo, represen-
tações naturalistas ou realistas de coisas concretas versus caricaturas; esboço ou diagrama versus
representação icónica ou abstrata de ideias ou sentimentos)?
Como as imagens são encadeadas (por exemplo, em uma exposição, uma história em quadrinhos,
as fotos em um livro de histórias de crianças, uma apresentação de slides, um vídeo)?
. Como a mídia molda a imagem (por exemplo, materiais e tecnologias de produção e reprodução:
pinceladas em uma pintura, linhas em um desenho, o visor de uma câmera)?
Situação . Qual é a localização da imagem, como ela aponta para o seu entorno e como o seu entorno aponta
(Como os significados para ela (por exemplo, a pintura na galeria, o mapa no livro de guia de viagem)?
são moldados pelo Que referências visuais a imagem usa:
contexto?) , - para as coisas do mundo (por exemplo, analogias visuais, metáforas, imagens)?
- para outras imagens (por exemplo, convenções de estilo, motivos de outras imagens, remixagem,
colagem)?
Qual é o gênero da imagem ou similaridades com um tipo, estilo ou método de criação de imagem
(por exemplo, pintura expressionista abstrata, produção de documentários)?
Imagens perceptuais
Imagens perceptuais envolvem um encontro direto, material e corporal com Imagens perceptuais: Constroem
significados no mundo, em que a luz passa através da córnea e da lente, projetando sentido de algo que é imediatamente
uma imagem invertida na retina na parte de trás do olho. No olho humano, 60 viS t o.
ou mais tipos diferentes de células processam muitos tipos de informações óptica~or meio de
receptores conectados ao nervo óptico por cerca de 1,5 milhão de células. O campo de visão de
uma pessoa é bastante pequeno, centrado em uma parte da retina onde as células fotorreceptoras
- células especializadas que detectam a luz - são mais densas. Seis músculos rotacionam o globo
ocular em vários padrões distintos, algo em torno de cem mil vezes por dia, dando um pequeno
salto de cada vez e parando para focar - realizando vários saltos, quando, por exemplo, estamos
lendo.
5 Mitchell, 1986, p. 5.
250 1 LETRAMENTOS
Contudo, não vemos com os olhos, mas sim com o cérebro. Impulsos elétricos minúsculos do
nervo óptico atingem cem tipos de células em uma área do cérebro chamada córtex visual,
respondendo seletivamente a cor, profundidade, espaço, movimento, orientação e outros aspectos
da visão. A partir daí, os sinais são transmitidos por todo o cérebro, com diferentes tipos de
informação, combinadas e recombinadas em cem ou mais locais em todo o cérebro para criar uma
única percepção (a imagem mental "desta montanha" ou "daquela pessoà'). Toda essa interconecti-
vidade mental é chamada pelos cientistas cognitivos de "ligação", que se constitui por meio de um
processo que leva tempo, provavelmente cerca de um quarto de segundo, para que se possa "ver"
o objeto reconhecível que acaba de entrar no campo perceptivo.
Por que vemos "esta montanhà' ou "aquela pessoà'? É preciso entender que o mundo não se
apresenta simplesmente para nós. Há sempre tanta coisa ao nosso redor que não podemos absorver
tudo, o que faz com que nossa atenção tenha que ser seletiva. Assim, aprendemos a nos concentrar
no que importa para nossos propósitos em cada momento. Por exemplo, não vemos cada árvore
em uma montanha ou cada fio de cabelo na cabeça de uma pessoa, embora, é claro, possamos nos
concentrar em uma árvore ou num fio de cabelo específico, se isso for de nosso interesse. Em outras
palavras, para ver de forma significativa, precisamos escolher o que consideramos necessário ver,
ou o que queremos ver. Nesse sentido, precisamos nos posicionar em relação a uma determinada
cena, depois escolher uma sequência de pontos focais para os quais devemos nos atentar entre uma
gama infinita de possibilidades nessa cena. 6
Em sua análise da psicologia da representação pictórica, Gombrich explica que, "sem o dispositivo
de filtragem da atenção seletiva, seríamos sobrecarregados pelos estímulos em todas as cenas e
imagens".7 A esse respeito, Jean Paul Sartre assevera:
No mundo da percepção, nenhuma "coisà' pode aparecer sem que mantenha com as outras
coisas uma infinidade de relações. Mais ainda, é essa infinidade de relações - e, ao mesmo tempo,
também a infinidade de relações que seus elementos sustentam entre si - que constitui a própria
essência de uma coisa. Daí algo de excessivo no mundo das "coisas": a cada instante, há sempre
infinitame1:te mais do que o que podemos ver; para esgotar a riqueza de minha percepção atual,
seria necessário um tempo infinito. 8
6 Koch, 2004.
7 Gombrich, 2000 [1960), p. xxvii.
8 Sartre, 1996 [1940), p. 22.
Vale aqui destacar as imagens da Figura 11.3, exemplos clássicos da psicologia da percepção,
para considerarmos as maneiras pelas quais construímos o significado visual a partir das imagens,
com base nos significados visuais preexistentes que, como espectadores, trazemos para o processo
de percepção.
o
Figura 11.3: A psicologia da percepção. Um pato ou um pássaro? Quando um círculo se torna um gato? Figura e fundo: Um vaso ou duas faces?
252 / LETRAMENTOS
Curiosamente, a criança aprende a ver objetos, como carros, patos, coelhos e gatos, e toma
conhecimento do que são e do que podem fazer antes de ter palavras para designar esses objetos.
Por isso, como já dissemos, visão não é o que vemos, como se o mundo pudesse simplesmente se
apresentar a nós, mas aquilo que aprendemos a ver porque tornamos as coisas que vemos significativas
para nós mesmos. Aprendemos a visão antes de aprendermos a língua e, como consequência, esta
é, em grau substancial, uma criatura daquela. A língua é uma camada sobre a visão.
Quando bebês, antes mesmo de aprendermos nossas primeiras palavras, experimentamos um
mundo vasto e multidimensional de percepções visuais significativas. Nosso primeiro pensamento
é visual: aprendemos a ver pessoas, coisas, movimentos, cores, espaços e distâncias, pois não
nascemos com todas lhes nossas habilidades visuais. Nos primeiros dois meses de vida, os bebês
aprendem a estreitar seu foco para ver uma coisa específica de cada vez, para separá-la como
algo distinto de tudo o que podem ver. As pessoas nascidas cegas e cuja visão foi restaurada por
meio de cirurgia, quando adultas, não podem vtr, porque é muito tarde para aprenderem a
enxergar de uma maneira que as permita distinguir as coisas significativas em seu campo de
visão. Assim, só é possível aprendermos em tenra idade a capacidade cognitiva profunda e
complexa que é a percepção visual. Por isso, pessoas cegas usam outros recursos para formar
imagens mentais que lhes dão sentido sobre o mundo, que aprendem a alinhar com as imagens
mentais das pessoas com visão.
Assim, a percepção é um ato mental de reconhecimento e um processo de execução de um
julgamento sobre o que existe em determinado campo de visão. Como, então, construímos sentido
quando vemos? Vemos coisas que se assemelham a outras coisas ("Essa montanha não é aquela
montanha, mas tem algumas características comuns de uma montanha"); vemos as coisas porque
elas são diferentes de outras coisas ("Onde esta montanha encontra o mar") e porque elas estão
perto de outras coisas ("Uma montanha faz sentido em contraste com o céu"); podemos agrupar
o que vemos, quando as coisas que estamos vendo são visualmente contínuas, e separá-las, quando
são descontínuas; vemos formas que têm um interior e um exterior; podemos ver a proximidade
como algum tipo de pertencimento (por exemplo, posso vê-lo perto de mim, dirigindo o mesmo
carro), ou a distância, como uma espécie de não pertencimento ("Posso vê-lo a distância, perto da
montanha, em um carro"). Nenhuma dessas coisas simplesmente existe para ser vista; aprendemos
com a nossa experiência que essas são distinções visuais significativas a serem feitas, uma vez que
trabalham para nós, impedindo-nos de ser atropelados por carros e nos ajudando a distinguir
montanhas de pessoas.
Contudo, o fato de que tivemos de aprender a ver essas coisas não significa que elas sejam fruto
de nossas imaginações perceptuais. Elas realmente existem materialmente. De fato, uma peculiaridade
da percepção visual, que a torna bastante diferente da língua, é que a coisa que vemos tem que estar
presente, ao mesmo tempo, para nós, tanto internamente ao nosso corpo (o que vemos), como
externamente na realidade material (algo visto). Assim, é preciso que haja um obje·fi) visível externo
para podermos vê-lo e, só podemos vê-lo porque somos capazes de fazer algum tipo de sentido
cognitivo interno do que estamos vendo.
Isso não quer dizer que aquilo que vemos seja necessariamente verdade. Nossa experiência
corporal nos diz que, na maior parte do tempo, nossa cognição perceptiva nos serve bem. Às vezes,
no entanto, nossa percepção atenta e continuada nos diz que nossas impressões iniciais devem ser
mudadas quando falhamos ao conceber algo que se torna importante, ou quando nossos sentidos
Imagens mentais
Diferentemente das imagens perceptuais, as imagens mentais são as imagens Imagens mentais: Imagens na
de coisas que não se podem ver no momento da visão, muito embora tenham mente de uma pessoa sobre coisas qu e
muito em comum com as imagens perceptuais porque vêm de memórias da não podem ser vistas no momento.
percepção. É possível, desse modo, usar imagens mentais para se recordar daquela montanha
quando não se está mais lá, ou daquela pessoa quando não se está próximo dela, mas isso só é
possível porque aquela montanha e aquela pessoa se constituem em experiências perceptuais já
passadas.
Os processos cognitivos voltados para a formação de imagens mentais e o que se pode fazer
com elas são completamente diferentes daqueles voltados para imagens perceptuais. Aquela montanha
não está visível agora porque não estamos mais lá, assim como aquela pessoa não está perceptível
neste momento porque não se encontra conosco agora. No entanto, podemos nos lembrar de ter
visto aquela pessoa, ou de nunca a ter visto pessoalmente, mas sim numa foto; ou, ainda mais
extraordinariamente, podemos, mesmo sem nunca ter visto sua imagem, visualizá-la apenas tomando
como referência palavras que a descrevem. Isso é o que acontece, por exemplo, quando lemos um
romance que descreve graficamente uma "mulher alta, séria, vestindo um casaco vermelho brilhante':
É possível imaginá-la conjurando uma imagem mental que não existe na realidade, mas não é
exequível ver coisas que não existem na realidade visível. Essa é a diferença fundamental entre
imagens perceptuais e mentais.
Assim, imagens perceptuais só podem acontecer no presente, ao passo que imagens mentais
podem reconstituir o passado, tornando-se, portanto, o material da memória, que pode consistir
tanto em uma imagem "estáticà' (uma questão de simultaneidade, coisas que existem conjuntamente
em uma imagem mental), quanto em uma sequência de imagens em "movimento" (episódicas ou
temporais, visualizando coisas uma após a outra, como um passeio por um parque). No entanto,
essas imagens mentais na memória são necessariamente uma versão reduzida, abreviada e alterada
do passado, pois consistem apenas em coisas nas quais, de alguma forma, prestamos atenção. "Há
sempre mais para ser visto em uma imagem perceptual, mas uma imagem mental começa e termina
com o que podemos recordar:' 9
O objeto das imagens perceptivas está presente (a montanha está realmente à sua ffénte ou a
pessoa está realmente com você), ao passo que o objeto das imagens mentais está ausente (a
pessoa e a montanha são apenas lembranças). Nesse sentido, nas imagens perceptuais, podemos
sempre olhar mais para as coisas que até então tinham passado despercebidas. Por exemplo,
- percebemos uma árvore em particular na montanha, ou um fio de cabelo na cabeça de uma
pessoa que, de repente, chama a nossa atenção. Todavia, nas imagens mentais, podemos tão
9 Koch,2004,pp. 187-194.
254 j LETRAMENTOS
somente ver coisas que são relacionadas ao nosso interesse, à nossa intenção e à nossa atenção.
A percepção pode ser informativa, porque sempre podemos descobrir novas coisas visíveis; já
em relação às imagens mentais, embora não apresentem novas informações, podemos ainda
reanalisar as informações das imagens mentais já confirmadas na memória. As percepções visuais
tentam insistir em sua veracidade do mundo real, mas as imagens mentais são o material de uma
maior tentativa especulativa, um tipo de pensamento reflexivo. Esses são, portanto, tipos muito
diferentes de agência de significado, pois implicam diferentes tipos de engajamento de significado
com o mundo. 1 º
- Vendo coisas com o olho do corpo. Prevendo coisas com o olho da mente.
. Atenção seletiva, vendo alguns aspectos visíveis de uma cena, Sendo capaz de ver apenas o que se recorda (na mente), uma
que são reais e infinitos. versão abreviada e seletiva da realidade.
Imaginação
Como as imagens mentais se referem a um mundo que não existe atualmente no campo de visão
imediato do construtor de significados, elas nos permitem imaginar. Dessa forma, para usar os
termos de Sartre, nossa consciência é, em parte, capaz de se libertar de uma realidade particular,
momentânea e esp_acialmente confinada. Isso, argumenta o filósofo, é a base psicológica e
11
antropológica da liberdade humana, que vai das menores liberdades para desviar a atenção (por
exemplo, olhar para outra coisa em seu campo de visão) ou para mover-se em um espaço ou
empreender uma ação (como, por exemplo, pegar alguma coisa) , até as maiores liberdades para
vislumbrar mundos diferentes, incluindo as utopias.
Assim, podemos ver que existem algumas diferenças muito significativas entre imagens perceptivas
e mentais. Todavia, nenhuma distinção fundamental pode ser feita sobre o trabalho de construção
de significado usando a língua, pois esta é feita de elementos simbólicos e mentais muito semelhantes,
quer a usemos diretamente por meio do que ouvimos ou lemos, quer a usemos para organizar
nosso pensamento. A visão está intimamente ligada ao mundo, e imagens mentais -~o o que
deixamos em nossa mente quando não estamos vendo algo. Nesse sentido, palavras são sempre
como imagens mentais e nunca como a visão, pois onde quer que a língua possa ser encontrada,
ou seja, onde quer que seja usada pela mente humana, é sempre um passo à frente da realidade à
-qual ela se refere, pois a língua é sempre um sistema de símbolos abstratos composto de conceitos
10 McGinn, 2004.
11 Sartre, 1996 [1940).
A comunicação visual é um processo de construção de imagens destinadas Comunicação visual: uma ima
ao uso em nossas interações com os outros. A comunicação ocorre quando os que foi feita para comunicar um
outros representam esses significados para si próprios, como consequência da significado com outra pessoa.
percepção visual, ou se lembram, como imagens mentais, das coisas que já viram. Pinturas, fotografias,
páginas, anúncios, diagramas, desenhos, mapas, planos de
edifícios e telas de computador são exemplos de comunicação
visual.
Várias coisas constroem comunicações visuais de algumas
maneiras, como imagens mentais; porém, o criador de ima-
gens nunca é capaz de representar o mundo inteiro que cons-
ta em seu campo visual, a visão original sobre a qual sua
imagem se baseia. Em vez disso, oferece uma perspectiva
Imagem mental
baseada no interesse que moldou sua percepção visual ori-
ginal, o que viu como resultado de seu foco de atenção, seu
modo de ver; por isso, imagens visuais são inevitavelmente
o
o seletivas, parciais e incompletas em relação ao que pode ser
o
o visto em um campo visual. O fotógrafo enqu«ira uma ima-
gem, deixando deliberadamente algumas coisas enquanto
Comunicação Visual
inclui outras coisas com atenção; o pintor não captura todos
os detalhes em uma cena, apenas aqueles que constituirão
seu ponto visual. Às vezes, o ponto visual do criador de
imagens é o mais abstrato dos sentimentos ou a expressão
geral de uma ideia; o cartunista capta apenas os traços dis-
Figura 11 -4: Oprocesso de construção de imagem. tintivos do rosto ou do corpo de uma pessoa e, ainda assim,
256 i LETRAMENTOS
o mínimo possível; o plano de um edifício captura apenas a maneira como os objetos estão rela-
cionados e a dimensão de um espaço definido.
As comunicações visuais são, nesses aspectos, muito semelhantes às imagens mentais. Com
efeito, muitas vezes, as imagens são criadas não a partir da vida e da percepção imediata, mas de
imagens mentais, daí a visão de um edifício, ainda em construção, ser apresentada em um plano e
em renderização, ou uma pintura de um lugar imaginado. Até mesmo um retratista do cotidiano
trabalha por meio de uma seqtl.ência de imagens mentais, olhando para cima, para depois, então,
pintar a tela com base em sua imagem ou memória mental imediatamente anterior. Ou ainda o
fotógrafo, que é motivado a enquadrar a cena de maneira particular por uma imagem mental da
Imaginação: Uma capacidade fotografia que deseja criar. Nesse sentido, as comunicações visuais não são apenas
criar imagens mentais de coisas reproduções das percepções visuais de uma pessoa, mas também atos de previsão,
possíveis e reais. atos de imaginação.
Mais tarde, então, um espectador pode entrar em Interpretação visual
cena, com o trabalho de comunicação visual se Imagem menta:- 1- - - -
Design visual
li
""
li] .
· Veja: ''A oriegm do conhecimento em Locke".
A noção de design destaca o fato de que, em cada ato de percepção visual e na criação de cada
imagem mental, acrescentamos algo de nós mesmos. O artista vê aspectos de uma montanha que
quer comunicar; o frequentador da galeria, do mesmo modo, vê aspectos da pintura do artista que
considera interessantes ou atraentes.
Para desenvolver, então, a discussão que iniciamos no capítulo 8, exploraremos nesta seção como
os significados visuais são construídos, em três partes: -~
1) Designs disponíveis: designs visuais, na natureza ou construídos por pessoas, aparecem em
nossos campos perceptivos todos os dias, por meio de mensagens visuais feitas, intencionalmente
ou não, por nós ou pelos outros; usamos essas mensagens como recursos para representação
visual. Esses recursos moldam nossos modos de ver (representação visual) e nossas formas
de construir imagens (comunicação visual); criam imagens mentais para nós que influenciam
nossas visões subsequentes; ajudam a nossa visão à medida que vamos aprendendo a direcionar
258 1 LETRAMENTOS
nossa atenção de uma forma ou de outra; também nos fornecem meios, métodos, estilos,
hábitos e ordens de valor para o trabalho de design que estamos prestes a realizar.
2) Designing: quando vemos, criamos significados para nós mesmos a partir do campo da
percepção visual e do nosso repertório herdado de designs visuais rememorados. Nossa
atenção é atraída para certas coisas; nelas, atemo-nos a detalhes infinitos dentro daquilo que
é visível em um determinado campo visual. Nossa atenção vagueia, de uma coisa para outra,
em um caminho de navegação visual que, mais ou menos conscientemente, criamos, ao
posicionarmos nossos olhos e corpos. Quando vemos, projetamos nossos significados de tal
forma que não existem duas pessoas que possam ver as mesmas coisas da mesma maneira.
Cada imagem perceptiva é, por isso e até certo ponto, um produto único da nossa agência
no processo de designing.
Assim, uma vez que não estamos mais no local onde as imagens perceptuais são geradas, nossas
imagens mentais permanecem, o que acrescenta outra camada de agência à seletividade da percepção
original: a seletividade daquilo que lembramos ou a reformulação dessas lembranças, à medida que
repensamos o que vimos, ou mesmo a imaginação que criamos, à medida que recombinamos
recursos de significado para imaginar coisas que sabemos, não correspondem exatamente àquilo
que vimos anteriormente (percepção original). Isso pode se constituir em novas visões de mundos
possíveis, ou seja, recursos visuais que usamos para representação, construindo significados
transformadores para nós mesmos, assim como podemos aplicar esses significados para nós mesmos
no design de novas imagens. É também desse modo que as imagens mentais transformam ainda
mais o mundo percebido e aquele que o percebe.
li
[!] .
·.• Veja: "Introdução do livro Percepção e imaginação, de Silvia Faustino de Assis Saes".
Quando, na existência corporal humana, o significado como design se inicia? Bebês podem ver
logo que suas imagens do mundo estão sob seu controle voluntário, quando já se tornam agentes
de significado, bem antes de ler, escrever, ou mesmo falar; os bebês também aprendem a ser designers
de significado quando enxergam; a língua, então, acrescenta novas camadas a essa experiência
cognitiva inicial, essa primeira experiência de si mesmos como criadores de significado. Por exemplo,
eles conhecem seus cuidadores, a visão da comida e os efeitos visíveis de pegar objetos.
Não que nossas percepções e imagens
sejam estáveis ou que não precisem ser
ajustadas, pois, quando vemos o mundo,
é sempre um "ver" provisório. À medida
que "vemos" mais, podemos querer rever
nossas percepções; à medida que refleti-
mos mais sobre nossas imagens mentais,
podemos querer revisar nossas memórias
do que pensávamos ter visto. Será que nos-
sas percepções anteriores, com reflexão
cuidadosa ou revisão, nos serviram tão
bem quanto poderiam? Fomos influen-
ciados por imagens mentais de nossa ex - Figura 11.6: Construção de significado visual.
13 Kress, 1997.
260 1 LETRAMENTOS
esquema, gráfico, diagrama) ou em movimento (filmes, vídeos etc.) e com o som (música), que
acompanha e cossignifica em muitos gêneros digitais". 14
A seguir, daremos dois exemplos de salas de aula em que o conhecimento do modo visual é
aplicado ao design da escrita e de imagens no letramento escolar.
No primeiro, a professora Mary Brennan está trabalhando com 25 alunos do 1Q ano do ensino
fundamental, que estão lidando com a construção de significados imagéticos e escritos sobre uma
questão relacionada à sua comunidade local. Mary reúne as crianças ao seu redor, mostra a primeira
página de um jornal e diz: "O olhar da Vovó Ruth é de tristeza; ela está prestes a perder sua casa
para um novo empreendimento na área".
Esse é um design para construção de significado que ela traz para a sala de aula como um "recurso
disponível" para a aprendizagem posterior dos alunos. "Ela parece muito velha e triste", diz um
aluno. Um outro comenta: "Talvez ela precise de ajuda. A pessoa que tirou essa foto queria que as
pessoas a ajudassem, então ela estava olhando para nós, querendo que a gente fale com ela".
Podemos notar nesse exemplo um outro recurso disponível poderoso: os significados visuais
que as crianças trazem para a turma para apoiar sua compreensão de que a imagem representa
alguém "velho' e "triste': trazendo também uma interpretação sobre o tipo de interação comunicativa
com o público do jornal sugerido pela maneira como a foto projetou a imagem. Nesse sentido, as
crianças não estão apenas lendo uma reportagem na primeira página de um jornal, mas estão
também lendo a imag-em definidora da história e os interesses do fotógrafo em enquadrar a imagem
da maneira que o fez; elas estão lendo os significados gestuais na apresentação corporal da "Vovó
Ruth'' na imagem. Em outras palavras, estão trazendo consigo designs para a construção de
significados visuais baseados em sua compreensão anterior de imagens e nos significados que
criaram em suas experiências visuais do/com o mundo real.
A professora Mary, então, continua seu questionamento: "Por que vocês acham que o fotógrafo
escolheu essa imagem em particular? Por que vocês acham que essa foto está na primeira página do
jornal agora, em dezembro, pouco antes das férias?".
Esse é o começo de uma sequência de atividades que conectam a turma com a jornalista que
escreveu a matéria para o jornal e com as autoridades do governo local.
As crianças, então, pesquisam no Google, entram em várias páginas da internet e, com isso,
imergem em uma linguagem híbrida, que envolve imagem e texto escrito, à medida que se aprofundam
em mais recursos para construir significado por meio da internet. Isso as prepara para criar imagens
multimodais próprias, desenhadas e digitadas no computador, bem como vozes de apoio para a
Vovó Ruth. Desse modo, as crianças fazem a transição da imersão em designs disponíveis para o
processo de designing, conforme mostramos a seguir.
"Nós amamos Vovó Ruth e nos importamos com ela': foi a mensagem de Kenny. Lizzy diz: "Vovó
Ruth deveria ter uma escolha!': A professora Mary, então, insere todas as imagens em uma apresentação
em PowerPoint e as envia para o jornal. Pouco tempo depois, a jornalista responsáveli'iela matéria
escreve de volta, dizendo aos alunos o quanto a Vovó Ruth ficou comovida e grata em receber apoio
tão maravilhoso das crianças e das outras pessoas que escreveram para ela. Nessa parte, os designs
das crianças entram, portanto, no mundo do redesigned: significados visuais e escritos que são
produzidos para o mundo e que podem influenciar significados subsequentes no mundo. A jornalista
XOPII:
30 NHn IAfnrEJo ZOH
BOJ\OY
Figura 11.8: Cartaz sobre conservação da água de uma escola de educação infantil (crianças de 4 a 6 anos de idade).
262 j LETRAMENTOS
Análise do design visual
Construindo significado visual
Os significados visuais não apenas são um dos primeiros designs de significado que com-
preendemos quando representamos o mundo para nós mesmos e começamos a nos comunicar,
mas estão também intimamente ligados aos modos tátil e gestual. Isso porque só podemos
apreender o espaço através de imagens perceptuais, que se constituem sempre e inevitavelmen-
te multimodalmente.
Ler e escrever também são experiências visuais, embora, como práticas cognitivas de repre-
sentação e de comunicação, sejam bastante diferentes do modo de construção de significado por
meio de imagens. No entanto, na medida em que as fontes de leitura e escrita são imagens, a
língua frequentemente se torna algo muito parecido com uma imagem. Temos uma escrita mui-
to semelhante a uma imagem, por exemplo, em descrições de palavras que tentam, de alguma
forma, retratar algo que é visto. As metáforas, que são um modo de descrever uma coisa da
maneira como esta se parece com outra coisa,
do mesmo modo, produzem essa semelhança
com a imagem. Em "Jorge tem uma montanha
de trabalho", emprega-se uma metáfora visual
para evocar a enormidade das tarefas que
Jorge tem diante de si. Podemos, assim, dizer
que as metáforas englobam significados mul-
tifacetados em uma palavra ou sintagma que
representa uma imagem mental; embora as
metáforas nunca sejam exatamente como a
imagem perceptual ou a imagem mental, fa-
zem o melhor que podem por meio de pala-
vras para criar uma imagem mental equiva-
lente, constituindo local conveniente para a
sinestesia, ou alternância de um modo de
significado para outro.
Como, então, os significados são cons-
Figura 11.9: Criança pequena desenhando.
truídos nas comunicações visuais? Quais são
os blocos de construção do significado visual? Em certo sentido, eles são os mesmos que os
blocos de construção de todos os outros modos de significado, pois os significados que podem
ser construídos na língua escrita ou oral também podem ser realizados em imagens. N~entanto,
as maneiras como são construídos são fundamentalmente diferentes - de fato, tão diferentes que
os significados visuais, apenas muito superficialmente, podem ser comparados com os signifi-
cados linguísticos e com outros significados.
Percebi que fiz suposições sobre o aprendizado das crianças. Percebi que existem camadas muito mais
profundas para o aiyendizado, [como] estar ciente antes dos letramentos visuais[ ... ] Descobri que posso
olhar para a aprendizagem em um nível muito mais profundo, e eu nunca teria trabalhado em detalhes
sobre imagens nesse nível antes, eu nunca teria sonhado em fazer algo assim com crianças da educação
infantil, e o que realmente me impressionou é que essa faixa etária de crianças é mais capaz de aceitar
isso do que algumas das crianças com quem trabalho em outras áreas da escola. Trabalhei com um grupo
de apoio à alfabetização do 3º e do 42 ano e tentei usar as mesmas ideias, e é mais difícil para eles aceitarem.
Eles realmente têm que desaprender a focar no letramento alfabético e aprender que é bom usar todos
os outros [modos] que estão lá para apoiá-los no significado[ ...] A linguagem e a compreensão dos alunos
da educação infantil são muito mais profundas ou eles estão muito mais dispostos a usar essa [metalinguagem]
ou demonstrar [sua expressão multimodal]. 18
l!I
Veja: "Multimodalidade".
promovendo a cidade com um olhar crítico para o design visual. Alicia, então pergunta: "Por que
os edifícios comerciais estão em primeiro plano nas imagens, e não os prédios públicos?".
264 1 LETRAMENTOS
Na Noruega, Erstad, Gilje e de Lange descrevem as maneiras pelas quais crianças de duas
21
.
saudável" e "sistema digestivo", conteúdo previsto no currículo da escola, por meio do uso do
software Scratch. 23
■
- º[!]·.• Veja: "O uso do software Scratch na escola pública: Discussão da noção de autoria e remixagem
r-i . na contemporaneidade". ·
~ .o:
Esses são alguns exemplos de diferentes salas de aula onde os professores estão trabalhando
com seus alunos letramentos multimodais; além de trabalharem com a multimodalidade, é também
importante que os alunos possam descrever, por meio de uma metalinguagem, os elementos do
design visual com os quais estão lidando, para que possam construir significado visual; 24 é interessante,
ainda, que possam, por meio de palavras, descrever as relações entre escrita e som do texto (o
"princípio alfabético") e o modo como frases e textos inteiros são estruturados para produzir um
significado escrito.
Modos diferentes de significado são capazes de se referir aos mesmos tipos de coisas, porém os
potenciais representacionais e comunicativos de cada modo são únicos em si mesmos. Em outras
palavras, entre os vários modos, existem não apenas paralelos poderosos que permitem a tradução
de significados de um modo para outro (descrevendo uma cena em palavras, ou pintando uma
imagem da mesma cena, por exemplo), mas também diferenças que são tão profundas que os
significados nunca podem ser considerados os mesmos (há sempre algo diferente sobre a descrição
por meio de palavras e da pintura, isto é, sempre se aprende algo que não é dito em um modo
quando se vê o mesmo significado representado de outro modo).
Quanto aos paralelos, uma gramática do visual pode explicar as maneiras pelas quais as imagens
funcionam como língua escrita; por exemplo:
• ações expressas por verbos em orações podem ser expressas por vetores em imagefí.s;
• as preposições locativas ("próximo", "atrás") funcionam como primeiro plano ou plano de
fundo em imagens;
25 Kress, 2000b.
26 Caughlan, 2008.
266 1 LETRAMENTOS
informa o suficiente para que sejamos capazes de ir de A para B. Porém, direções e mapas tornam
as coisas ainda mais claras, porque podem complementar um modo de significado com outro: um
mapa representa o espaço; as direções, por sua vez, acontecem no tempo. Se colocamos as duas
coisas juntas, podemos, então, visualizar aonde estamos indo, conforme andamos.
Assim, por um lado, existem paralelos profundos entre os modos de significação - tão profundos,
de fato, que quase tudo que pode ser dito em um modo também pode ser dito em outro. No entanto,
modos diferentes possibilitam escolhas mais práticas e úteis para a construção de significado em
diferentes circunstâncias, ou seja, alguns modos são mais oportunos para significar alguns tipos
de coisas, em alguns momentos, do que outros modos.
A língua escrita, por exemplo, está aberta a uma ampla gama de possíveis visualizações em
palavras ou a uma rica descrição de cenas. Na leitura, no entanto, somos levados por uma linha
em que o criador de significado nos diz o que ver em nossa imagem mental de uma cena e na ordem
em que a apresenta. Se, finalmente, vemos uma imai em que já nos foi descrita anteriormente em
palavras, o significado anterior é, então, preenchido com toda uma gama de significados visuais
adicionais que nenhuma quantidade de palavras poderia ter evocado em nossa mente. Os elementos
visuais que comunicam a mesma cena, pelo contrário, exigem diferentes processos cognitivos ou
de pensamento. Nesse caso, o ônus é colocado no espectador para criar ordem (tempo, causa,
propósito, efeito), organizando elementos que são perceptivelmente completos, a partir do momento
em que ele (espectactor) começa a olhar para a imagem.2 7
Em outras palavras, ler um texto escrito e visualizar uma imagem requerem diferentes tipos de
interpretação, que, por sua vez, exigem formas distintas de esforço transformacional e tipos diferentes
de processos psicológicos, na medida em que representamos os significados para nós mesmos em
nossas mentes. São formas fundamentalmente diferentes de conhecer e aprender o mundo - conhecer
e aprender o mesmo mundo, mas de maneiras diversas e complementares de significado.
Os paralelos entre os modos de significado são a razão pela qual podemos descrever uma imagem
em palavras ou transformar um romance em um filme ou um plano em um edifício. Essa mistura
paradoxal de paralelismo entre imagem e texto escrito (elementos comuns do design) e a
incomensurabilidade (elementos únicos do design, que fazem com que imagem e texto nunca
possam transmitir exatamente a mesma informação da mesma maneira) entre modos de significado
são a base da pedagogia dos multiletramentos, a qual entende que letramentos multimodais
contribuem para uma aprendizagem poderosa de diversas maneiras. Uma delas é o fato de que
alguns alunos podem se sentir mais confortáveis ao lidar com um modo do que com outro. Esse
pode ser seu modo preferido de representação e comunicação (o que consideram mais fácil e, por
isso, o modo pelo qual melhor expressam o mundo para si mesmos e de si mesmos para o mundo).
Uma pessoa pode preferir conceber um projeto como uma lista de instruções, enquanto outra prevê
um diagrama de fluxo. Nesse sentido, o paralelismo significa que podemos fazer muito das mesmas
coisas em um modo por meio de um outro modo. .-.f
Assim, mesmo que o ponto de partida para o significado esteja em seu modo preferido, o aprendiz
pode estender seu repertório representativo, alternando esse modo com um menos favorável, mas
igualmente útil. Nesse caso, por exemplo, se as palavras não fizerem sentido, é possível usar o
diagrama, o que, por sua vez, pode fazer com que elas comecem a fazer sentido. Podemos, então,
fazer com que o paralelismo (elementos comuns do design) funcione para ajudar na aprendizagem,
27 Kress, 2003.
Ler ou escrever ao longo da linha, uma coisa depois da outra Ver a foto como um todo, tudo de uma vez
O leitor segue o escritor O espectador olha através da imagem à sua maneira, começan-
do com o que primeiro capta a sua atenção
Particularmente adequado para representar tempo e conexões Particularmente adequado para representar o espaço em um
causais momento no tempo
Quadro 11.3: Significados nos modos escrito e visual comparados.
Callow descreve as ma.Jleiras pelas quais estudantes analisam materiais promocionais de políticos.
Esse é um outro caso em que o design visual se encontra com o gestual, por meio da classificação
de fotos em
categorias como amigáveis/não amigáveis, confiáveis/não confiáveis; classificação de acordo com o objetivo
para o qual podem ser utilizadas, por exemplo, para um anúncio de moda, um livro sobre informações
turísticas ou fotos de férias em família; visualizar e ordenar imagens de acordo com o uso de ângulos,
para criar relações de poder, e distância da câmera, para sugerir intimidade ou distanciamento. 28
Os alunos, então, aplicam essas habilidades analíticas para desconstruir um "panfleto político,
anotando várias características como título, tipo de fotos, tipo de informação incluída, bem como
o tipo de textos escritos que foram incluídos, como depoimentos". 29
Finalmente, eles criam seu próprio panfleto, como se estivessem concorrendo ao cargo de agentes
ambientais de sua escola. Callow pergunta a uma estudante, Joanne, sobre o tipo de imagens que
as pessoas usam em várias situações de design:
Joanne: Bem, isso depende do caráter das pessoas e de como elas se parecem. Se ela fosse, tipo, uma boa
pessoa, escolheria uma tomada [de câmera] amigável, e se ela quisesse parecer dominante e poderosa,
colocaria uma tomada em close up ou uma tomada à meia distância parecendo poderosa .
..,Jt
Pesquisador: E se ela não fosse uma pessoa muito legal, você acha que colocaria algumas fotos desagradáveis?
Joanne: Não, eles querem apelar para você.
Pesquisador: Ok, então mesmo que ela não fosse uma boa pessoa, eles provavelmente usariam que tipos de
tomadas?
Joanne: Eles provavelmente tentariam colocar fotos amigáveis ou, se não pudessem, fotos poderosas.
268 1 LETRAMENTOS
Pesquisador: Por que eles colocariam fotos amigáveis? Estão tentando fazer o quê?
Joanne: Eles estão tentando atrair você e persuadi-lo a votar neles. 30
Mary Neville descreve o ambiente em outra sala de aula, ao fazer uso de contação de histórias.
)unto com um produtor de vídeo visitante, a professora da turma transformou uma parte da sua
· ciplina de leitura em uma "casa de produção de filmes':
[Eles] transformaram ... o ambiente da sala de aula e o seu arranjo de tradicional, com carteiras, cadernos
de exercícios e um quadro-negro [... ] A sala de aula não mais parecia moldar a aprendizagem; em vez
disso, textos multimodais davam a impressão de moldar um "espaço verde" na sala de aula, onde mesas
e quadro-negro eram irrelevantes e outros locais "abertos" para discussão e equipamento de filmagem
passaram a ser usados para a inovação criativa. "Meus alunos e eu adoramos estar envolvidos neste projeto"
[disse a professora]. Isso lhes deu um contexto no qual se engajar, intelectualmente, com algum pensamento
de ordem realmente superior. Isso lhes deu um senso de propósito e foco - uma maneira de canalizar
seus esforços intelectuais colaborativos em uma única e bastante complexa intenção. Foi estimulante para
todos nós, não apenas por causa da natureza do conteúdo, mas também porque exigia novas habilidades
e competências. É difícil colocar tudo isso em palavras - você tem que estar lá e ouvir suas conversas e
apreciar a complexidade de como essas crianças de 11 e 12 anos estavam pensando e se comportando ...
Os dados sugerem que a eficácia pedagógica [da sala de aula dessa professora] estava relacionada ao
aumento de oportunidades cognitivas e transformacionais para os alunos ligados à inclusão de um vídeo
"casa de produção" [com] foco no mundo real da produção de filmes ... Uma concentração pedagógica
no "como" da produção de textos multimodais proporcionou aos alunos conhecimento "interno''. Essa
concentração pedagógica tinha ligações com os professores, conhecendo o discurso das práticas sociais
em torno da multimodalidade.31
Como último exemplo de um projeto bem-sucedido em sala de aula, Bruno Cuter Albanese 32
lliscute o fato de que, embora ainda importante, o texto impresso deixou de ser a única e principal
fonte de interação e construção de conhecimento, o que traz impactos nas práticas de letramentos
essárias para que os alunos possam exercer sua cidadania na contemporaneidade. No entanto,
no ensino de literatura, em geral, essas práticas ainda não são discutidas. Nesse contexto, o autor
resenta, com base na perspectiva dos multiletramentos, um projeto de inserção do cinema nas
suas aulas de literatura, chamado "Cinema Literário", em uma turma de 9º ano do ensino fundamental
~I, de uma escola da região de Campinas.
Nesse projeto de ensino, os alunos, depois de lerem o romance Senhora, de José de Alencar,
eriam produzir um curta-metragem homônimo. Para a produção do curta, Albanese, então,
nvolveu três grandes oficinas para trabalhar a linguagem cinematográfica: a primeira foi sobre a
tscrita do roteiro; a segunda, sobre os elementos não específicos do cinema utilizados na construção
de sentidos, como iluminação, vestuário, uso de cores, desempenho dos atores, cenáráo e fenômenos
IJ()noros; a terceira e última oficina explorou o trabalho com elementos específicos do cinema, como:
t'ano (enquadramento de personagens na cena e seus efeitos de sentido); ângulos de filmagem (uso
de diferentes ângulos de filmagem e as relações estabelecidas através deles entre personagens e plateia);
e movimentos de câmera (as formas como a câmera _ se movimenta para criar a ação da cena).
30 Idem, p. 20.
1 Neville, 2008, pp. 88-89.
32 Albanese, 2017.
Sumário
• Imagens perceptuais: compreender as coisas que vemos.
• Imagens mentais: visualizar coisas que não podemos ver agora.
• O significado visual é como os significados escrito e oral:
- refere-se a pessoas e coisas;
- representa interações entre pessoas e coisas;
- é composto de maneira coerente;
- conecta-se ao seu contexto;
- tem propósitos e efeitos sociais.
• O significado visual não é como o significado escrito e oral:
- o leitor tem uma escolha mais ampla de caminhos de leitura;
- o significado é mais simultâneo/espacial do que lógico/temporal.
• Multimodalidade: o significado é sempre expresso em modos múltiplos e mistos, sobretudo na mídia digital.
• Sinestesia: a alternância de modos é uma maneira poderosa de construir sentidos sobre as coisas e de aprender.
Processos de conhecimento
Experienciando o conhecido
1. Quais são suas imagens favoritas? Escolha uma imagem que você gosta. O que lhe agrada nessa
imagem?
Analisando funcionalmente
2. Analise a imagem usando os elementos da análise do design fornecidos neste capítulo .
•,i/f"
Experienciando o novo
3. Leia sua análise do design detalhada para um colega que não tenha visto a imagem a que você
está se referindo, ou dê a ele a análise para ler. Pergunte-lhe o que imagina. Agora mostre a ele
a imagem. O quanto a imagem se assemelha ao que ele imaginou por meio de sua descrição?
O quanto ela difere? O que isso lhe diz sobre as relações entre as imagens perceptuais e as
imagens mentais e sobre até que ponto os significados nas imagens podem ser traduzidos para
a escrita e vice-versa?
270 J LETRAMENTOS
itualizando por nomeação
!onsulte a Wikipédia sobre a fisiologia e a psicologia da visão, da percepção e da imaginação.
Crie um glossário ilustrado dos termos-chave.
Analisando criticamente
6. Leia o capítulo de abertura de um romance que também esteja disponível em filme ao qual você
ainda não tenha assistido. Como os significados visuais são enquadrados na língua? Quais
dispositivos textuais são usados para representar imagens em palavras? Agora assista às cenas
de abertura do filme. O que você acha surpreendente ou não surpreendente? Como os dispositivos
são diferentes? Quão diferente é o texto? Como e por que sua interpretação do significado da
narrativa no filme é semelhante ou diferente de sua interpretação do significado do romance?
Aplicando apropriadamente
8 . Elabore uma atividade de aprendizagem para alunos de determinado nível que explore o potencial
da sinestesia. Justifique sua escolha de textos. Discuta como alunos diferentes podem aprender
de maneiras diferentes enquanto trabalham com texto e imagem. Como você avaliará os resultados
da aprendizagem?
Aplicando apropriadamente
9. Crie uma imagem pessoal (ou seja, uma imagem que você mesmo projetou), usando meios
visuais ou verbo-visuais, aplicando os princípios do design visual.
10. Aplique sua compreensão acerca dos letramentos multimodais para desenvolver uma unidade
de trabalho em outra área disciplinar, como história, geografia, ciências ou matemática.
Visão geral
Este capítulo explora três modos importantes de significado: o espacial, que é enquadrado por
forma, proximidade e movimento; o tátil, que captura nossas interações com objetos; e o gestual,
que se constitui através das expressões corporais, que vão desde movimentos das mãos e dos braços
até expressões faciais e apresentações corporais, como roupas e linguagem corporal. Esses modos
de significação estão intimamente interligados e oferecem conexões produtivas com significados
orais e escritos em ambientes de letramentos multimodais.
Significados espaciais
Referência . Como os espaços particulares foram apresentados, em plano ou em tamanho real (por
(A que os significados se referem?) exemplo, arestas, limites, volumes, características topográficas de um edifício ou paisagem)?
Como o movimento ou o posicionamento das pessoas é influenciado pelo espaço (por
exemplo, fluxos, lugares momentaneamente estáticos)?
• Como a localização é referida (por exemplo, posicionamento, proximidade/distância)?
• Como o tempo é referido (por exemplo, transposições de tempo/espaço, como uma ca-
minhada de cinco minutos, uma viagem de um dia)?
Como as coisas estão posicionadas no espaço (por exemplo, uma imagem na parede, um
ícone em uma tela)?
Como os elementos abstratos ou os conceitos gerais foram definidos (por exemplo, sím-
bolos usados em planos ou para ajudar a navegar pelo espaço)?
. Como as características do espaço são definidas (por exemplo, quantidades e qualidades
de tamanho ou escala, continuidade/repetição, mais/menos)?
Como as relações espaciais são definidas (por exemplo, parte/todo, posse, junção/não
adesão, mesmice/contraste)?
274 1 LETRAMENTOS
Estrutura . Como os elementos espaciais estão organizados (por exemplo, em todo espaço arquite-
(Como os significados, em geral, tônico ou paisagem, onde um espaço termina e outro começa, como os espaços são
se mantêm coesos?) projetados para se manterem juntos ou como eles são coerentes)?
. Como o espaço é seccionado (por exemplo, esquerda<-> direita; acima<-> abaixo, centro
<-> margem)?
O que o espaço indica (por exemplo, aspectos ou funções proeminentes/ocultos)?
. Como o espaço forma um todo integrado?
. Como os múltiplos espaços estão encadeados (por exemplo, quartos em um prédio, edi-
fícios em uma paisagem urbana, cidades em uma paisagem)?
. Como o espaço é definido por seus meios (por exemplo, materiais de construção)?
Situação . Qual é a localização do espaço? Como isso aponta para o seu entorno e este aponta para
(Como os significados são a sua localização (por exemplo, configurações assumidas ou mencionadas que estão além
moldados pelo contexto?) do espaço, como uma árvore em uma paisagem urbana comparada a uma árvore em uma
floresta)?
. Como o espaço integra ou diferencia suas partes internas e externas (por exemplo, quen-
te/frio, claro/escuro, aberto/seguro, publicidade/privacidade, dividido/aberto)?
O que o espaço assume sobre o campo de movimento de seus usuários (por exemplo, as
expectativas funcionais ou estéticas que podem trazer para o espaço, ou as restrições
espaciais por papel social, como em prisões e bancos)?
Que referências o espaço constrói (por exemplo, metáforas espaciais, como "essa loja de
luxo é como a casa de um rico': ou os muros ao redor de prisões)?
Que semelhanças e diferenças na composição geral o espaço tem com outros espaços e
tradições de criação de espaço (por exemplo, design, tipos de construção, formas de pai-
sagem)?
Intenção Como o espaço é estruturado em torno de certas prioridades (por exemplo, habitação
(A que interesses esses versus transporte)?
significados servem?) . Como o espaço é configurado seletivamente para apoiar uma posição ou afirmar um papel
ou postura (por exemplo, o visível/o oculto, o público/o privado, o bloqueável/o desblo-
queável, sua presença/ausência, primeiro plano/plano de fundo, caminhos de navegação
sugestivos, como o espaço é projetado para determinadas práticas sociais)?
. Que interesses o espaço apoia (por exemplo, um shopping em comparação a um parque)?
. Que gama de alternativas de ação o espaço sugere para o usuário (por exemplo, a partir
do posicionamento de diferentes tipos de usuários, como cozinheiros, garçons e clientes
em um restaurante)?
Quadro 12.1: Uma gramática do significado espacial.
Espaços diferentes são projetados para fazer coisas diferentes - por exemplo, casas, escolas,
prisões, bibliotecas, escritórios, igrejas, fábricas ou teatros. Eles estão localizados em lugares distintos,
apresentam designs internos e externos diferentes e nos movemos sobre eles de maneiras diferentes.
Espaços moldam os fluxos, que são as maneiras pelas quais nos movemos através dos espaços,
cujos significados são baseados em suas funções, projetadas por pessoas. Nesse sentido, espaços
J
diferentes são projetados para atender a diferentes propósitos e essas diferenças são as razões para
os fluxos - do quarto à cozinha, da casa à escola, da seção de laticínios à seção de cereais no
permercado, do bairro onde se vive às férias, de uma área em uma rede social da internet para
outra. Se lugares são algo como um "vocabulário" de significado espacial (vizinhanças, salas, gavetas,
páginas .da web), os fluxos são a sua "sintaxe" (sequências significativas de movimento).
Veja: "Guia do espaço público para inspirar e transformar", de Jeniffer Heemann e Paola Caiuby
Santiago".
276 i LETRAMENTOS
Significados táteis
Nos primeiros anos de vida, os mais fundamentais de todos os significados são construídos em
um mundo tátil, gestual, espacial, auditivo e visual, antes de aprender a falar e, mais tarde, ler e
escrever. Em outras palavras, as crianças constroem sentidos dos designs disponíveis em seu mundo
tátil, representam representam o mundo para si mesmas e começam a fazer sentido para si mesmas
ao tocarem, segurarem e moverem coisas. Uma criança pode mover um bastão pelo ar e imaginá-
-lo como a representação de um avião, ou pode segurar um bicho de pelúcia e imaginar que seja
um amigo ou um animal selvagem.
Assim, com brinquedos e outros objetos, as crianças pequenas começam a controlar seu mundo,
(re)designing as condições de sua existência imediata. Como resultado, desenvolvem capacidades
básicas para todos os significados por toda sua vida, desenvolvendo, com isso, um senso de agência,
junto com um senso de interconexão com objetos úteis e significativos; um senso de ordem entre
os objetos do mundo; um senso de interconexão com os outros através de diferentes tipos de toque
que podem expressar afeto ou raiva; um senso de que os significados das sensações t~~íveis podem
ser comunicados aos outros e interpretados (ou mal interpretados) por outros; um senso de
subjetividade ou projeção de sentimentos; e um senso de todo o eu no mundo. 3 Por isso, as crianças
lidam incessantemente com objetos, que são aspectos fundamentais da formação de seu universo
de significado.
4 Krippendorf, 2006.
5 Miller, 2010.
278 i LETRAMENTOS
Nossos meios de comunicação consistem em objetos que nos permitem construir significados
ao longo do tempo e da distância, que se constituem em elementos para atuar na vida humana 6 e
em suportes integrais em nossas práticas sociais de significado. 7 De fato, não menos que a língua,
nossas capacidades humanas de construir significados e transformar o mundo com objetos constituem
uma característica distintiva de nossa espécie, já que o significado tátil pode abranger a mesma
gama de significados que a língua. Podemos produzir silenciosamente coisas significativas por meio
do uso de objetos, falar sobre as mesmas coisas, representá-las visualmente, ou, ainda, podemos
fazer todas essas coisas juntas, multimodalmente. O significado tátil é tão transformador do mundo
quanto o é a língua, sendo, portanto, igualmente importante para nossa natureza como criaturas
que pensam e aprendem.
Podemos ter um carro como extensão de nossos "eus corpóreos", mas podemos ser feridos por
esse mesmo carro em um acidente; podemos sentir os efeitos da poluição, ou nos angustiarmos
com a precariedade de estacionamentos e autoestradas. Nesse sentido, objetos podem nos oprimir
e, inclusive, atacar nossos sentidos de maneiras que não necessariamente queremos ou antecipamos.
Às vezes, objetos podem também ser perturbadores e alienantes, ainda que nós, humanos, sejamos
responsáveis por seu design e produção, posto que nossas interpretações sobre eles podem mudar
quando vemos significados discordantes emergirem, como, por exemplo, um dispositivo que
funciona mal ou um 0'bjeto que se torna invasivo em nossas vidas. Essas interpretações podem
incluir intervenções para alterar os efeitos de significado de certos objetos; por exemplo, montando
campanhas de segurança nas estradas, instalando dispositivos de controle de poluição em nossos
carros e usando transporte público em vez de dirigir ou precisar de estacionamento. Nessa concepção,
não apenas falamos sobre essas coisas, mas também transformamos nosso mundo fazendo e usando
essas coisas em nossas vidas cotidianas por meio de objetos.
Referência Qual é a forma material do objeto (por exemplo, como se sente, como se distingue de
(A que os significados outros objetos, sendo móvel/imóvel, tocável/intocável)?
se referem?) Indica uma pessoa em particular (por exemplo, o brinquedo favorito de uma criança)?
Indica um determinado local (por exemplo, uma panela na bancada da cozinha, uma ca-
neta na mesa)?
Como o tempo é referido (por exemplo, algo que parece novo ou antigo)?
Que particularidades distinguem o objeto (por exemplo, sua função, uma tigela em com-
paração com uma panela)?
Que conceito geral o objeto representa (por exemplo, uma faca/cortante, um brinquedo/
amizade)?
Quais são as características tangíveis do objeto (por exemplo, tato, gosto, cheiro)?
Que relações tangíveis existem no objeto (por exemplo, parte/todo, posse, junção/não
adesão, semelhança/contraste)?
Diálogo Como o objeto se conecta com as pessoas de uma maneira significativa .\i°r exemplo,
(Como os significados como os objetos são configurados por seu uso ou apelo estético)?
conectam as pessoas que Como o uso é antecipado e direcionado? Como o usuário está posicionado?
estão interagindo?)
6 Suchman, 2007.
7 Scollon, 2001.
Situação Como/onde o objeto está localizado? Como isso aponta para o seu entorno (por exemplo,
(Como os significados são diferentes tipos de tabelas em diferentes tipos de salas; um teclado em relação a um
moldados pelo contexto?) computador, em relação a uma mesa)?
Como a configuração do objeto antecipa padrões de uso (por exemplo, tempo de uso,
locais de uso, mobilidade do objeto, diferentes tipos de uso em diferentes contextos)?
Como o objeto se encaixa em todo o universo de coisas significativas, do mais local ao
global?
. Que tipo de objeto é esse? Quais são suas semelhanças e diferenças em comparação com
outros objetos?
Se as crianças fazem isso com brinquedos, representando literalmente o objeto de seu significado,
ou com objetos encontrados, a transformação é igualmente profunda. Uma caixa, por exemplo,
pode ser configurada como um carro: um ato notável de simbolizar a imaginação. No entanto,
-imaginar uma configuração de significados ao redor de um carrinho de brinquedo é igualmente
transformádor: um carro que vai de um ponto X para um ponto Y na imaginação espacial da
8 Kress, 1997.
280 1 LETRAMENTOS
criança, com um certo motorista e certos passageiros para determinados fins. A diferença entre o
brinquedo e a caixa é um pouco como a diferença entre o expressionismo abstrato, em que muito
tem que ser lido no objeto representado, e a pintura de paisagem, na qual os processos de referenciação
são mais literais, muito embora ambos sejam significantes e transformadores.
Pippa Stein e Denise Newfield descrevem o trabalho de Tshidi Mmabolo, Ntsoaki Senja e Thandi
Makhabela, que ensinam no 1 º e no 2 2 anos da Escola Primária Olifantsvlei, situada às margens de
assentamentos informais ou "acampamentos" na periferia de Johanesburgo, África do Sul. O projeto
"Novas histórias" envolve as crianças em pedagogias multimodais que reúnem objetos tridimensionais,
em que elas criam imagens, fazem performances teatrais e escrevem textos. O projeto, então, incentiva
as crianças a usar esses modos de expressão para falar sobre suas vidas e experiências culturais,
conforme destacam Stein e Newfield:
Figura 12.4: Um "carro de travesseiro". Figura 12.s: Fazendo bonecas em uma escola sul-africana.
Significado gestual
282 1 LETRAMENTOS
• Espaçamento corpóreo, orientação e postura (onde o significado gestual encontra o significado
espacial; frequentemente chamado de "proxêmicà').
• Movimento corporal (sensação de movimento, outra forma em que o gestual encontra o
espacial; muitas vezes chamado de "sinestesià').
• Olhar (onde o gestual encontra o significado visual); expressões faciais; tocando, vestindo-se
e projetando outras aparências corporais (onde o gestual encontra o tátil).
Os projetos gestuais podem ser espontâneos e relativamente inconscientes (na interação social
cotidiana) ou premeditados (mimetismo, dramatização, dança, teatro).
A gesticulação consiste em movimentos das mãos e dos braços que acompanham a fala ou
imagens mentais de conversas ou gravações de conversas, profundamente integrados aos significados
orais. Nesse sentido, McNeill mostra como o significado oral e a gesticulação
l&esticulação: Um tip o de
ficado gestual que envolve são d~is lados de um processo cognitivo comum. 12 "Conduzimos" nossa fala de
das mãos e dos braços para um modo que, de alguma forma, se assemelha a um maestro e a uma orquestra.
acompanhar afal a. A "preparação" para uma gesticulação começa com o início de uma frase falada,
o "golpe" no ponto enfático em sua estrutura de significado, e a "retração", que representa o seu
fim. 13 McNeill e Kendron, ambos proeminentes analistas contemporâneos da gesticulação, usam a
palavra "gesto" para descrever o que chamamos de "gesticulação". Queremos usar a palavra "gesto"
de forma mais ampla, para agrupar os três tipos intimamente conectados de significado corpóreo:
configuração corporal, gesticulação e sinais gestuais.
10 Goffman, -1974.
li Miller, 2010.
12 McNeill, 1992.
13 Kendron, 2004.
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Figura 12.7: Alfabeto em libras.
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: Veja: "McNeill, o gesto".
284 1 LETRAMENTOS
1
Referência Qual é o significado particular de um gesto? Qual é sua forma distinguível (por exemplo,
(A que os significados se referem?) movimento da mão, posicionamento e movimento do corpo, postura, expressão facial,
andar, direção do olhar, moda, maquiagem, penteado etc.)?
Como a personalidade é mostrada (por exemplo, vestido, comportamento)?
Como o espaço e a dimensão são mostrados (por exemplo, perto/longe)?
. Como o tempo é mostrado (por exemplo, movimento rápido/lento, batida)?
Como um objeto é representado gestualmente (por exemplo, mímica)?
Que conceito geral representa um gesto (por exemplo,"pare")?
Como as características são representadas (por exemplo, tamanho, repetição)?
Como as relações são representadas (por exemplo, conexão/desconexão)?
Estrutura . Como o gesto é estruturado (por exemplo, as fases de uma gesticulação ou uma língua de
(Como os significados, em geral, sinais)?
se mantêm coesos?) Quais são seus componentes internos e como eles se combinam para construir significado
(por exemplo, sequências de ação integradas forte ou debilmente, padrões de gestos em
uma interação social - por exemplo, ir às compras, dramatizar, dança, teatro)?
. Como um padrão de gestos e uma sequência de gestos são integrados (por exemplo,
conduta, comportamento: formal/informal, raiva/entusiasmo, um estranho/amizade/inti-
midade)?
Quais são os seus modos perceptíveis de se referir (por exemplo, traçado literal ou icónico
de um movimento, apontando para algo, representação abstrato-icónica, naturalismo/
performance, espontânea/premeditada, consciente/inconsciente)?
Como o gesto é definido por suas características corporais e materiais (por exemplo, ex-
pressões faciais ou roupas)?
Intenção Como o gesto indicia certas prioridades por parte da pessoa que o faz?
(A que interesses esses Como o gesto apoia seletivamente uma posição ou afirma um papel ou postura (por
significados servem?) exemplo, felicidade/tristeza, poder/igualdade, sinceridade/falsidade)?
De quem são os interesses que o gesto apoia e até que ponto isso ocorre em detrimento
de outros interesses (por exemplo, encobrimento/transparência, aura corporal, truques de
mágica)?
Como constelações de significados gestuais expressam sentimento e identidade (por
exemplo, pretensão/autenticidade, hierarquia/igualdade)?
wadro 1 2,3: Uma
, . ,.
gramat1ca do s1gmf1cado gestual,
Eu tento me certificar de que estou me conectando com as experiências das crianças [... ] continuamente
tornando essa conexão explícita,[ ... ] conceitualizando [... ] por exemplo, desconstruindo e reconstruindo as
imagens [nos livros de contos de fadas] e o significado. Eu tive que dar a elas uma linguagem para fazer isso
[... ] A diversão de eu deitar [no chão da sala de aula], tirando uma foto da [nome da criança X], era conseguir
aquele ângulo [... ] agora uma palavra que elas realmente sabem é "ângulo". [Tirando fotografias uns dos
outros de diferentes ângulos, os alunos desenvolveram] maneiras de usar a linguagem e as habilidades para
enxergar as coisas de forma crítica[ ... ] e, então, trabalhar bem[ ... ] por que essa foto é uma imagem melhor?
Devemos usar esta? O que torna essa foto melhor? É fazê-las usar essa linguagem ou usar esses entendimentos
para enquadrar suas ideias [... ] fazendo com que elas apliquem o conhecimento delas[ ... ]
Eu me peguei, então, conversando com outros professoree que às vezes as pessoas dizem que isso é apenas
uma boa prática de ensino e isso é realmente verdade; é uma boa prática de ensino, é o que sempre fizemos,
mas, mais uma vez, acho que estamos fazendo isso em um nível mais explícito. Eu nunca teria passado
três semanas examinando fotos e contos de fadas como dessa vez, mas acho que o tempo e o esforço
realmente mostram o que as crianças estão fazendo. Antes eu talvez tivesse gastado mais tempo com isso
e assumido que o conhecimento estava lá e presumido que eles o levariam em consideração, mas não
veriam as evidências de uma maneira realmente profunda como estou vendo agora. [... ] [Os alunos estão
agora] fazendo links em suas leituras, estou vendo isso em outras áreas também, em outros ambientes,
outras atividades que eles fazem, eles estão mantendo esse conhecimento porque é muito forte e eles estão
usando isso [conhecimento de] design na forma como eles desenham seus personagens também [...] eles
trazem seus próprios significados[ ... ] você vê o poder do letramento visual chegando. 15
Em um projeto chamado "Traços corporais" ("Body tracings"), idealizado por David Andrew e
Joni Brenner, na África do Sul, estudantes de 10 anos trabalham em duplas para fazer autorretratos
em tamanho real. Eles precisam confiar em alguém para traçar o contorno do corpo, um exercício
genuinamente colaborativo no qual o gestual é traduzido para o visual. A esse respeito, David
Andrew explica:
Na prática de fazer esses textos, os alunos são encorajados a usar a noção de "sensibilidades dos artistas",
a experimentar a ideia de "improvisação", que ocorre através de mudanças em modos, materiais e mídia
em uma espécie de criatividade "menos ansiosà; que não insiste em conhecer o caminho de antemão,
mas reconhece que o próximo passo pode ser inesperado. Os resultados foram uma série de imagens que
traduziram gestos corporais e movimento em imagem: corpos estão girando, dançando, patinando,
jogando, driblando bolas.[ ... ] Nesses textos visuais, vemos alunos engajados em narrativas de si mesmos,
que, na prática de fazer, são sentidas, consideradas, imaginadas e sonhadas. 16
14 Moodie, 2004.
15 Cloonan, 2010a, pp. 180-183.
16 Stein & Newfield, 2003, p. 284.
17 Idem, ibidem.
286 1 LETRAMENTOS
Dramatização
Rob: Bem, se você está apenas lendo o livro e você vê o Nam-Huong sendo provocado, você não tem a sensação
do livro, mas se você está fazendo teatro sobre isso, você realmente sabe como ele está se sentindo.
Kate: Podemos fazer as coisas que fazemos em sala de aula da mesma forma através do teatro, como podemos
aprender através do teatro e fazer essas atividades através do teatro[... ] Você[... ] usa tanto corpo e expressão
facial quanto você quer que as pessoas nos observem [e] possam ver quem são os nossos personagens ... Então,
[teatro] é melhor porque você pode, pela expressão em seu rosto e a maneira como você está sentado e se
m ovimentando, as pessoas podem dizer como você se sente ...
John: Porque isso ajuda você a ler, escrever. Ajuda você a entender muitas coisas que nunca entendeu, além
de não fazer um teatro. Normalmente, quando você lê livros, você não entende, mas quando você está fazendo
teatro, você entende por que eles estão se sentindo e como. 18
Em aula de literatura para uma turma do ensino médio, Stephanie Power Carter discute a
interação sobre o gest,p entre dois estudantes afro-americanos. Os alunos estão realizando uma
análise de vídeo de Huckleberry Finn. Suas observações os levam a uma reflexão sobre a natureza
do significado gestual. Os alunos constroem um "quadro interpretativo" que os ajuda a se conectarem
com as imagens gestuais do vídeo. A seguir, vemos a conversa entre o pesquisador e uma das alunas,
'8:atonya:
Natonya: Muita gente gosta de homens negros afro-americanos, claro, então alguns, alguns brancos, brancos,
masculinos e femininos, e tudo mais, eles dizem que todos nós temos essa aparência pequena e assustada
ou o que for. Quero dizer...
Pesquisador: Quando diz "nós", você quer dizer...
Natonya: As mulheres afro-americanas negras.
Pesquisador: Ok.
Natonya: Hum, e é como quando, toda vez que nós gostamos de ver algo que não gostamos, ou alguém nos
diz algo, nós reviramos nossos olhos ou contorcemos nossos lábios ou algo assim, sabe? E é como se nós
tivéssemos essa atitude, que recebemos e tudo o que, algumas pessoas dizem, somos sensacionais, sabe? E
GSSim, é como, é como muitas, muitas mulheres negras afro-americanas têm, expressão facial, ou quando
estão loucas, quando não gostam de algo, quando alguém diz alguma coisa para elas e elas não gostam disso,
você sabe o que eu estou dizendo? 19
Esses são exemplos vívidos de salas de aula onde os professores estão fazend8ítos alunos
alharem nos modos de significado gestual, espacial e tátil. Seu aprendizado permite tanto
aernar entre diferentes modos quanto nomear e representar em cada um desses modos. Em resumo,
a.iultímodalidade contribuí para o processo de aprendizagem, inclusive do modo escrito.
Jjertzberg,2001,p.4.
Carter, 2006, p. 354.
Cada modo de significado é capaz de toda a gama do significado humano; como criadores adultos
de significados, usamos muitos modos de significados de maneira conjunta, simultânea ou paralelamente,
para significar de uma forma ou de outra. E se o acesso a determinado modo de significado é, por
algum motivo, restrito ou removido, por incapacidade sensorial, por exemplo, toda uma gama de
significados humanos ainda está disponível para nós através da substituição completa por outros
modos. Isso acontece, inclusive, com pessoas cegas, que podem aprender a língua escrita em Braille,
ou com pessoas surdas, que podem aprender a língua falada por meio da Libras.
Ao pensarmos no contexto de sala de aula, podemos dizer que os letramentos multimodais se
estendem, portanto, para além da própria visão vygotskyana de que a aprendizagem se dá,
primeiramente, no diálogo interpessoal e, então, de forma intrapessoal. Isso porque, o processo de
ensino e aprendizagem multimodal não considera apenas a interação verbal, mas toda uma gama
de significados que são construídos por meio da combinação de diferentes sentidos humanos
envolvidos. Assim, por exemplo, o significado espacial poderia se ater à forma como a sala de aula
é organizada e ocupada por alunos e professores; o significado visual, aos objetos, roupas e adereços
de que cada um faz uso; o significado sonoro, aos sons produzidos em sala de aula, mas também
ao que os alunos deixam de falar (silêncios), em função da presença e do uso de aparelhos tecnológicos,
como o celular etc.; o significado gestual, aos movimentos e gestos feitos quando se deixa de
compreender alguma explicação ou quando simplesmente se ignora o que está sendo dito pelo
professor etc.
Portanto, os significados não são apenas construídos na interação entre pessoas, rifas também
multimodalmente na interação com espaços, objetos, imagens, sons etc. Nesse sentido, em vez de
dividir os modos entre si, precisamos aproximá-los, reconhecendo que a sinestesia é um caminho
poderoso para aprender a significar. Se não podemos significar algo totalmente por meio de um
determinado modo, talvez possamos fazê-lo melhor por meio de outro; ou, ainda, se algo precisa
ser entendido mais profundamente, sempre podemos encontrar outro modo de significado ou
combinação de modos para acrescentar profundidade. Fazemos isso simplesmente adicionando a
288 1 LETRAMENTOS
perspectiva de outro modo, pois, por mais que os modos sejam paralelos entre si em seus potenciais
de significado, por mais que cubram o mesmo espectro de coisas pensáveis e comunicáveis, eles se
expressam de maneiras muito diferentes.
Sumário
Processos de conhecimento
Experienciando o conhecido
1. Descreva uma situação na qual você esteve envolvido, em que fez uso de "conversa corporal"
Experienciando o novo
2. Escreva uma breve visão geral sobre a Libras ou o Braille. Discuta suas dimensões do significado
multimodal.
Analisando funcionalmente
3. Analise um programa de televisão sobre reforma de casas que trabalhe os elementos do design
de significado espacial, ou um programa de culinária que trabalhe os elementos do design do
significado tátil.
Analisando criticamente
4. Faça uma análise de uma prática envolvendo brinquedos, observando uma criança pequena
usando um deles e projetando significados táteis que você espera que ocorram durante esse
entretenimento. Como o aprendizado tátil com brinquedos contribui para as capacidades da
•..Jf:
criança de construir significado?
Aplicando apropriadamente
5. Aplique a terminologia de análise do design apresentada neste capítulo a uma atividade teatral.
Aplicando criativamente
6. Crie um plano de aula para uma sequência de atividades que explorem os modos de significado
espacial, tátil e gestual.
Visão geral
Os significados sonoro e oral compartilham o sentido da audição como o meio primário de
percepção. Os significados sonoros variam de sons ambientes ou de fundo a nossa volta, a sons
· cados sonoros: Significados que possuem significado simbólico, passando também por significados complexos
dos por meio do som, incluindo representados na música. Os significados orais carregam consigo as qualidades
bientes e sons deliberadamente básicas dos significados sonoros, na medida em que modulamos o volume e o
produzidos e a música.
tom da voz ao produzirmos os sons da fala. Apesar das conexões importantes,
I
licados orais: Asformas como existem diferenças grandes e significativas entre as formas pelas quais a língua
a língua é representada na fala. é formada nos modos oral e escrito. Essas diferenças são o que motiva a mudança
de modo nas comunicações e na aprendizagem, não apenas entre os significados oral e escrito, mas
em toda a gama de modos de significados.
Significado sonoro
292 1 LETRAMENTOS
com base em seus significados (representação sonora) - o som de um sino tocando, ou um jingle
de uma propaganda publicitária, por exemplo. Nesse sentido, construímos sons que têm significa-
dos para outros interpretarem (comunicação sonora), como sons de alerta (por exemplo, a buzina
de carro) ou uma música que evoca sentimentos específicos. 1
Diálogo Que conceito geral um som representa (por exemplo, uma campainha, uma buzina de
(Como os significados conectam carro)?
as pessoas que estão Como são as características do significado representado no som (por exemplo, volume,
interagindo?) tom, textura)?
Como as relações são representadas no som (por exemplo, sons em primeiro plano/plano
de fundo)?
Como os sons posicionam o produtor do som (por exemplo, uma porta se abrindo, um
bife fritando)?
Como a outra pessoa pode interpretar o som (por exemplo, informação, um aviso)?
Situação Como o som é enquadrado pelo seu contexto de situação (por exemplo, som incidental/
(Como os significados são som focalizado, sons proeminentes/sons ambientes, como efeitos sonoros em um filme,
moldados pelo contexto?) música de elevador, música on-line, música ao vivo em um auditório)?
. Como um significado sonoro se conecta a um universo de sons (como paisagens sonoras,
notas musicais, gêneros musicais, por exemplo, música barroca/reggae)?
lall, 2010.
Significados orais
294 1 LETRAMENTOS
entanto, mantivemos essa discussão sobre o significado oral tão longe da discussão do significado
escrito quanto possível, porque queremos argumentar que a língua oral e a escrita são muito dife-
rentes. Quando as escolas ensinam o alfabeto por meio do método fônico, baseiam-se no pressu-
posto de que aprender a escrever e a ler em línguas alfabéticas é fundamentalmente uma questão
de aprendizagem de correspondências entre sons e letras. Todavia, queremos argumentar que os
significados oral e escrito são tão importante-
mente diferentes um do outro que eles não estão
mais intimamente relacionados entre si do que
com quaisquer outros modos de significado.
Eis alguns equívocos comuns sobre a cone-
xão entre fala e escrita, concepções errôneas
que precisamos questionar cuidadosamente ao
considerarmos a aprendizagem do letramento
tanto no singular quanto no plural (letramen-
tos): o primeiro equívoco é o de que a escrita
seria uma transcrição dos sons da fala. Com
efeito, nenhuma escrita captura toda a gama
de significados encontrados na fala. Para isso,
a escrita tenta, de al~ma forma, compensar
essa "deficiência'' criando maneiras bem dife-
rentes de capturar significados transportados Figura 13.2: Modos de significar.
em sons, como, por exemplo, ênfases por meio
do uso de sublinhado ou itálico, ou dúvidas e demandas por meio de pontos de interrogação. A
forma e o grau exatos do significado oral são difíceis de transcrever para a escrita, pois, não
importa o quanto a escrita tente captar um significado oral, ela nunca poderá ter sucesso. Pode
até fazer algo aproximadamente equivalente ou amplamente semelhante, mas nunca a mesma
coisa, dado que a questão da transcrição sonora se torna ainda mais confusa devido às comple-
xidades fônicas que descrevemos no capítulo 9, e seria, além disso, irrelevante para letramentos
em línguas logográficas como o chinês.
O segundo equívoco é o de que a língua escrita seria uma expressão diferente para os mesmos
significados que acontecem na língua oral. Sabemos que uma descrição oral espontânea de algo,
ainda que transcrita completa e precisamente, parecerá muito diferente de um parágrafo "bem
escrito" descrevendo a mesma coisa. No entanto, qual é a diferença entre a descrição em parágrafos
de uma cena e a fotografia dessa mesma cena? As duas estão se referindo a uma cena, mas as
maneiras pelas quais apresentam as informações são diferentes. Como os modos de significado são
diferentes, os significados nunca podem ser os mesmos, por isso a diferença entre fala e escrita é
tão grande. --.Ir
Os significados orais e escritos estão, é claro, conectados através da língua; portanto, ao se
referirem às mesmas coisas, os significados nas línguas oral e escrita podem ser paralelos entre si,
mas nunca serão os mesmos. Com efeito, existem, do mesmo modo, conexões igualmente poderosas
entre os significados oral e sonoro, porque estes compartilham a audição como um meio primário
de sentido, e entre os significados escrito e visual, porque estes compartilham a percepção visual
como um meio de sentido primário.
Diálogo . Como a fala configura as pessoas envolvidas (por exemplo, uma palestra, uma conversa}?
(Como os significados conectam Que tipos de conexões os sons audíveis da fala estabelecem entre os participantes (por
as pessoas que estão exemplo, uma afirmação, uma pergunta, uma ordem}?
interagindo?} Que padrões de ênfase são estabeleados nas unidades de significado faladas (por exem-
pio, acentuação no ponto de significância focal ou nova informação}?
Estrutura Como as unidades de fala são marcadas por variações sonoras (como pausa e altura, por
(Como os significados, em geral, exemplo, início/fim de unidades de informação oral}?
se mantêm coesos?} Como as unidades de som são coerentes entre si (por exemplo, sílabas, enunciados}?
. Como as variações sonoras significativas são encadeadas? (por exemplo, prosódia, poéti-
ca}?
Quais são as maneiras audíveis de se referir na fala (de forma literal/simbólica; por exemplo,
a semelhança sonora da onomatopeia}?
Como o significado oral é expresso (por exemplo, falado ou sussurrado, de perto ou grita-
do a distânc_ia, fala com/sem amplificação, fala ao vivo/gravada}?
Situação Como a fala é enquadrada pelo contexto de sua situação (por exemplo, uma conversa
(Como os significados são entre duas pessoas, uma discussão em grupo, um monólogo, falando consigo mesmo}?
moldados pelo contexto?} Como a qualidade oral de um enunciado se encaixa em um quadro mais amplo deformas
de falar alternativas?
Em que padrões maiores de significado oral o enunciado se encaixa por meio de seus
modos gerais de semelhança/diferença (por exemplo, sotaques, dialetos}?
Intenção Como a fala reflete ou estabelece diferenciais de função (por exemplo, tons de especiali-
(A que interesses esses zação, condescendência, poder}?
significados servem?}' De quem são os interesses ao se usar uma determinada forma de falar?
Que afinidades expressam ou sugerem a partir de seu tom (por exemplo, sério, brincalhão}?
Quadro 13.2: Uma gramática de significados orais.
296 1 LETRAMENTOS
Para começar, há diferenças importantes nos processos de design da língua oral e da língua
escrita que deixam seus traços no texto ou, no caso da escrita, que têm maneiras particulares de
esconder seus traços. À primeira vista, a fala parece ser mais confusa, cheia de marcadores
conversacionais. Existem muitos inícios de fala falsos, na medida em que se reformula uma ideia,
revisando as opções de estilo, dicção ou gramática, depois de ter ouvido a si mesmo na primeira
vez. Nesse sentido, a fala muitas vezes se assemelha a um pensamento em voz alta.
A escrita, por sua vez, parece, em princípio, ser "mais bem" formada porque é feita de maneira
mais metódica e consciente. No entanto, o processo de escrita envolve tantas mudanças para
corrigir erros quanto a fala, e, atualmente, a digitação em um teclado de computador ou em um
celular torna essas alterações mais fáceis do que nunca. De fato, é provavelmente um processo
ainda mais complicado do que a fala, pelo menos no seu esboço inicial. A principal diferença é
que, na escrita, escondemos esses traços do processo de construção do significado, porque temos
tempo para criar um rascunho final polido, com as formulações iniciais revisadas. E quando o
texto digitado é concluído, os sinais que indicam seu processo de produção, incluindo seus
detalhes, não são vistos (são facilmente apagados).
Seja falando ou escrevendo, estamos sempre fazendo nossas escolhas de palavras e selecionando
combinações de palavras para a construção de significado. Estamos sempre conscientemente
pesando em nossas próprias mentes o que acabamos de dizer, as palavras que acabaram de sair.
Contudo, fazemos issô de maneiras completamente diferentes quando falamos ou quando
escrevemos, o que resulta em tipos de texto totalmente distintos. Esses processos conscientes de
fazer mudanças imediatas são inevitavelmente audíveis no caso da fala, mas podem se tornar
invisíveis no caso da escrita, porque o sistema de escrita se constitui de tal forma que podemos
escondê-los. É por isso que, se nós transcrevêssemos cada palavra, som e pausa que saísse de
nossas bocas, pareceria uma escrita muito pobre, embora não o fosse, pois isso seria julgar a fala
pela medida da escrita.
Com efeito, não há muito sentido em transferir a fala diretamente para a escrita, já que, quando
alguém é solicitado a recordar o que outra pessoa acabou de falar, geralmente não consegue se
lembrar do que foi dito literalmente, pois se lembra de ideias, não de formulações. Sua resposta
é sempre uma paráfrase, não uma repetição. Isso ocorre porque um ouvinte segue os significados,
não as palavras, não percebendo, assim, repetições, hesitações e revisões - exceto quando estas
significam algo (como o estado de incerteza do falante ou a dificuldade com uma determinada
ideia - elementos que a escrita, incidentalmente, apaga em grande parte).
A não ser em casos específicos, as transcrições da fala para a escrita não destacam as
inadequações da primeira, como erros que são corrigidos ou deixados sem correção. Mostram,
sim, as vastas diferenças entre fala e escrita, nas quais não há erros, mas apenas mudanças
imediatas quando o falante pensa em voz alta sobre seus significados, o que constitui um processo
normal de construção de significado, no qual os ouvintes não ouvem coisas que são i-l!felevantes
para o significado. Como ouvinte, seu processo cognitivo de interpretação da fala edita revisões
desimportantes e superficiais, porque seu foco não está nos significados das palavras em si, mas
naqueles que fazem sentido para ele.
Por essas razões, e muitas mais, a transcrição da fala produziria, de certa forma, uma "escrita
pobre", porque não possuiria nenhuma das qualidades que tornam a escrita um modo de
significado que é significativamente diferente da fala. Essas diferenças começam com a maneira
298 1 LETRAMENTOS
Significado escrito: um texto da revista Significado oral: a "tradução" de Halliday para (algo mais
Scientific American semelhante à) linguagem oral
As ações civis privadas na lei têm um significado especial, na me- Uma coisa é especialmente significativa, e isso é que as pessoas
dida em que fornecem uma saída para os esforços de cidadãos deveriam ser capazes de trazer as ações civis privadas na lei, porque
independentes. Tais ações oferecem um meio pelo qual as múltiplas fazendo isso os cidadãos independentes podem se envolver. Ao
iniciativas dos cidadãos privados, individua/mente ou em grupos, trazerem essas ações, quer estejam agindo como indivíduos ou em
podem ser utilizadas na avaliação de tecnologias, na internalização grupos, os cidadãos privados podem continuar tomando a inicia-
de custos e na proteção ambiental. Constituem um canal através tiva; eles podem ajudar a avaliar a tecnologia, podem ajudar a
do qual pode ser dada expressão aos diversos interesses, perspec- internalizar custos e podem ajudar a proteger o meio ambiente. O
tivas e humores do público em geral. público, em geral, que quer todos os tipos de coisas diferentes, e que
pensa e sente de todas as maneiras diferentes, pode expressar todos
A atual preocupação popular com o meio ambiente estimulou esses desejos e pensamentos e sentimentos ao trazer ações na lei.
ações civis privadas de dois tipos principais.
Atualmente, as pessoas estão preocupadas com o meio ambiente;
então elas têm trazido algumas ações civis privadas, que foram
principalmente de dois tipos.
5 Idem.
300 1 LETRAMENTOS
Escritores, no entanto, podem criar uma sensação de que a escrita fala objetivamente, de que
seu conteúdo é verdadeiro e factual. Enquanto na fala eu diria algo como: "Eu concordo com todos
os cientistas que dizem que o aquecimento glob al foi causado por humanos", na escrita, mais
exatamente em um artigo científico, eu expressaria essa mesma ideia da seguinte form a: "Evidência
científica esmagadora apoia a tese de que a mudança climática é um subproduto da ocupação
humanà'. É assim que o uso na fala de "concordo", que mostra apenas minha opinião, contrapõe-se
à autoridade da "evidência científicà', na escrita. Note-se que, em ambos os casos, ainda "estou
concordando", mas estou fazendo com que minha opinião tenha a aparência de uma "ciência sérià'.
Contudo, nada é totalmente objetivo, pois temos sempre interesses e, todo enunciado é uma
expressão desses interesses. No entanto, podemos usar a escrita para criar a impressão de objetividade,
encobrindo nosso interesse pela voz de uma autoridade maior do que a nossa.
Podemos falar sobre as mesmas coisas por meio da fala ou da escrita; contudo, a escolha de um
modo ou de outro pode também significar de maneiras muito diferentes. É justamente por significar
de maneiras tão diferentes que a escrita e a fala acabam significando coisas diferentes e, como são
capazes de significar coisas diferentes, são usadas para diferentes propósitos, em diferentes momentos
e em diferentes lugares. Escolhemos falar ou escrever em um contexto ou outro porque, no momento,
é mais adequado à nossa intenção de significado; escolhemos um modo ou outro porque achamos
que este ou aquele funcionará melhor para nossos propósitos. As escolhas que fazemos entre fala
ou escrita são, porf:anto, consequência das peculiaridades do design de cada modo, peculiaridades
essas que não são apenas sobre como podemos nos referir, mas sobre o que podemos significar.
Existe, no entanto, uma série de espaços de cruzamento em que a fala "age mais como a escrità'
e em que a escrita "age mais como a falà'. Tomemos o primeiro caso, em que um palestrante pode
falar a partir de anotações esquemáticas, em vez de ler um roteiro, ou um especialista pode dar
respostas a perguntas em uma entrevista de rádio ou televisão. Nesses exemplos de contextos de
fala mais formais, os textos falados que o palestrante e o especialista proferem seriam parecidos
com uma escrita formal, se comparados ao modo como falariam sobre os mesmos assuntos com
um amigo enquanto tomassem uma bebida. Nas primeiras situações, o palestrante e o especialista
procuram parecer formais na entrevista ou diante do auditório porque fazem uso de algumas das
formas gramaticais características da escrita formal em seus discursos; isso faz p.ól;i'ecer que estão
falando verdades objetivas, o que, por sua vez, faz com que pareçam autoritários. Ong chama isso
de oralidade secundária, ou oralidade que foi influenciada pela escrita alfabética.6 No entanto, por
mais que tentem, os significados desses falantes ainda são irredutivelmente orais, pois, mesmo que
tenham sido fielmente escritos e não tenham sido editados como transcrições de entrevistas ou
palestras, ainda assim sempre é possível dizer que foram transcritos a partir da língua falada.
6 Ong, 1982.
Às vezes a gente tinha o rio inteiro só pra nós por muito tempo. Mais longe tavam as margens e as ilhas,
no outro lado da água; e talvez uma centelha - que era uma vela na janela de uma cabana - e às vezes
sobre a água dava pra ver uma ou duas centelhas - numa balsa ou numa chata, sabe; e a gente podia talvez
escutar uma rabeca ou uma canção vindo de uma dessas embarcações. É muito bom viver numa balsa.
A gente tinha o céu lá em <lima, todo pontilhado de estrelas, e costumava deitar de costas e olhar pra elas,
e discutir se foram feitas ou se só apareceram - Jim ele achava que foram feitas, mas eu achava que elas
aconteceram; calculava que ia levar muito tempo fazer tantas estrelas. Jim dizia que a lua podia ter posto elas;
bem, isso parecia razoável, então eu não disse nada contra, porque tinha visto um sapo pôr quase tantos
ovos, por isso é claro que podia ser feito. A gente também via as estrelas cadentes e observava os riscos
que deixavam no céu. Jim achava que elas tinham ficado mimadas e eram empurradas pra fora do ninho. 7
Embora o trecho procure reproduzir a fala por meio de uma escrita informal, trata-se de um
texto escrito que apresenta um certo hibridismo com elementos característicos da fala e da escrita.
O exemplo, então, mostra que, em toda a gama de tipos de escrita, alguns gêneros são um pouco
mais próximos das características distintivas da fala do que outros, embora ainda sejam textos
escritos. Outros gêneros escritos, usados em contextos formais, estão mais distantes da fala informal,
como artigos científicos ou contratos legais. Quando se deseja marcar relações de poder e saber, a
escrita tende a ser mais formal (com "mais cara de escrita"); quando, porém, se quer minimizar ou
superar as assimetrias de poder, a escrita é mais informal, caminhando na direção da fala cotidiana.
O ambiente atual dos recursos midiáticos está cheio desses tipos de formas híbridas e cruzadas.
E-mails são menos formais do que cartas tradicionais em ambientes de negócios; mensagens de
texto são menos formais do que os telegramas; mensagens instantâneas de aplicativos fazem uso
•.,;/T
de muitas características típicas da fala, inclusive com uso de emoticons; um blogueiro soa mais
como se estivesse falando diretamente com seu leitor do que um escritor ou jornalista de revistas
e jornais tradicionais; artigos científicos são cada vez mais "falados" em vídeos na internet; há
Illenos leitores à moda antiga de notícias de jornais, bem como ouvintes e telespectadores passivos
de notícias de rádio e de televisão, e mais pessoas expressando opiniões fortemente de maneiras
302 1 LETRAMENTOS
distintamente orais. Por isso, os significados orais estão se tornando partes cada vez mais importantes
de nossas vidas cotidianas.
~~[!]
~ Veja: "Fala e escrita - Parte 1".
~
Esses desenvolvimentos estão profundamente ligados às sensibilidades do nosso tempo, às
maneiras como parecemos valorizar a perspectiva em detrimento da informação, e como, em um
espírito mais igualitário, muitas vezes queremos minimizar a hierarquia e o poder. São, portanto,
as razões práticas pelas quais os letramentos atuais devem se concentrar não apenas na escrita em
suas formas clássicas, mas também nas suas interfaces com a fala. É também por isso que os
professores de hoje precisam centrar na alternância de modos de construção de significados,
valorizando formas híbridas intermediárias em que um modo influencia o outro, nunca apagando
suas diferenças fundamentais.
Um exemplo muito interessante de espaço cruzado entre a fala e a escrita é a clássica discussão
oral em sala de aula comparada à discussão escrita em fóruns da internet ou em fluxos de atividades
de mídias sociais. Ambas são formas de discussão, mas as duas são notavelmente diferentes, uma
vez que os fóruns da internet e as mídias sociais tornaram gêneros tradicionalmente orais em
escritos.
Em seu livro pioneiro publicado em 2001, Discurso da sala de aula (Classroom discourse),
Courtney Cazden caracteriza o padrão clássico da discussão em sala de aula como Iniciação-
-Resposta-Avaliação (I-R-A). Eis o padrão clássico:
Agora vamos comparar com as discussões que acontecem em um fluxo de atividades na internet.
Em princípio, são idênticas ao modelo anterior: um espaço de discussão em sala de aula que encena
o padrão discursivo (I-R-A). No entanto, são totalmente diferentes das seguintes maneiras:
1. Todo mundo responde. No clássico modelo I-R-A, uma pessoa responde por todas. Ao contrário
disso, nas discussões da internet, potencialmente todos respondem, ou pelo mefi.os existe a
expectativa de que todos responderão. Resultado: se a participação de todos ocorresse na
lógica da sala de aula clássica, seria algo caótico (todos os alunos tentariam falar ao mesmo
tempo) ou, então, o professor da turma teria que esperar um tempo interminável para que
todos os alunos, um de cada vez, pudessem responder.
304 1 LETRAMENTOS
6. Podemos sair das quatro paredes da sala de aula e do seu horário fixo. Nos tipos de ambientes
das mídias sociais, não há fundamentalmente diferença entre a discussão síncrona e interpessoal
em sala de aula e a discussão assíncrona a distância. Além disso, há permutações intermediárias
úteis: "Termine a discussão h-0je à noite" ou "Não está na escola hoje? Não tem problema,
participe de qualquer maneira".
7. Qualquer um pode ser um iniciador. Não é só o professor que pode iniciar uma discussão em
sala de aula. No Scholar, por exemplo, se o professor decidir abrir essa configuração em seu
ambiente de aprendizagem, é possível aos alunos fazer atualizações, o que inclui qualquer
número de mídias (imagem, som, vídeo e conjunto de dados).
8. Uma nova transparência, análise de aprendizagem e avaliação. Enquanto as discussões na
sala de aula tradicional são efêmeras, as discussões on-line são registradas. No Scholar, todos
respondem e todas as respostas podem ser vistas e analisadas, usando-se uma ferramenta de
análise de aprendizagem (learning analyti-t:s), que avalia a frequência e a extensão do
envolvimento, o nível de linguagem, as visualizações de redes de discussão e vários outros
parâmetros.
Sinestesia e aprendizagem
Há profundas razões educacionais pelas quais gostaríamos de trazer de volta para os letramentos
a alternância dos modos oral e escrito, ligada ao conceito de sinestesia, que pode, sobretudo, ser
usada como estratégia de aprendizagem. Podemos significar uma casa por meio de uma imagem
mental ou fazer isso através de uma descrição escrita; podemos ainda pedir a um aluno que desenhe
a casa e depois escreva uma descrição sobre ela. Nesses casos, os significados se referem à mesma
IX)isa, mas de maneiras completamente diferentes, o que faz com que se tornem significados diferentes
10bre a mesma coisa. O mesmo acontece com a fala e a escrita: podemos pedir a um aluno que fale
obre uma casa e depois escreva sobre ela. Os textos oral e escrito são tão diferentes um do outro
to o são o visual e o escrito. Também nesse caso a alternância de modos terá sido útil para a
dizagem, na medida em que fazer sentido sobre "a casa" através de um modo nos ajuda a
armar o significado através do outro, acrescentando também algo ao desenvolvimento do significado
-i:ral e multimodal da casa.
Os professores que atuam na alfabetização inicial, como era de esperar, têm naturalmente usado
égias sinestésicas para apoiar o desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita de seus
os. O método fônico, por exemplo, é, em si, um estratagema que faz uso da sinestesia, em seus
entos mais eficazes, explorando o nexo sutil e ilusoriamente intricado entre o sorri1 omo é ouvido,
som como é representado na escrita. Assim, para facilitar o deslocamento do modo oral para o
ito, as primeiras leituras geralmente carregam as cadências da fala para a página impressa.
Ilhada Iyer descreve um caso de alternância de modos em sala de aula de alfabetização inicial. Em
os alunos leem contos de fadas um para o outro, concentrando-se no som dessas histórias,
rme são contadas - seu tom, sua acentuação e suas ênfases. Eles, então, iniciam um processo
posição multimodal para criar seu próprio conto de fadas, uma colagem dos contos que leram.
fessor narra a história geral para toda a turma. Os alunos, então, criam várias páginas usando
Era uma vez Pinóquio, que plantou uma semente de cenoura. "Cresça, pequena semente de cenoura.
Cresça doce. Cresça forte': disse ele.
A cenoura ficou grande e doce e forte. "Eu vou puxar essa cenoura grandíssima e enorme", ele disse. MAS
ele não conseguia levantar.
Pinóquio chamou Rapunzel para ajudar.
Rapunzel chamou os Três Porquinhos para ajudar.
Os Três Porquinhos chamaram o Grande Lobo Mau para ajudar.
O Lobo Mau chamou Cinderela para ajudar.
Cinderela chamou o Patinho Feio para ajudar.
O Patinho Feio chamou a Bela Adormecida para ajudar.
A Bela Adormecida chamou Jack e o Pé de Feijão para aj udar.
Jack e o Pé de Feijão chamaram o Lenhador para ajudar.
Eles puxaram e puxaram e puxaram.
Subiu a cenoura finalmente!
Eles levaram a cenoura para casa e fizeram um grande bolo de cenoura como sobremesa. 10
A fonte oral de contos de fadas permanece na repetição e na tipografia (por exemplo, "MAS" e
"puxou e puxou"). Os alunos, então, encenam a história oralmente um para o outro e para seus
pais. O "design sonoro': conclui Iyer, "foi examinado em conjunto com o design gestual, para treinar
os alunos a produzir o texto com efeito adequado ao seu público". 11
alunos não liam os livros - a maioria nem sequer tinha os livros. Robert tentou ajudá-los a passar
nos exames finais, dando palestras sobre os temas e personagens do livro". Um de seus alunos disse-
-lhe um dia: "Estamos perdendo nosso tempo na escola porque as pessoas que estudam estão
desempregadas e aquelas que estão dirigindo carros luxuosos são os criminosos". 12 Robert diz que
isso o impulsionou a fazer uma "busca da almà: Ele, então, decidiu explorar o ensino multimodal,
para fornecer um caminho às ricas experiências orais de seus alunos com o mundo da palavra escrita.
Os alunos de Robert deveriam ler o romance da sul-africana Bessie Head, sobre uma mulher
chamada Margaret, de "raça mistà: que leciona em Botsuana. Sua mãe morreu no parto e seu corpo
está sujo no chão do hospital porque as enfermeiras se recusam a lavar alguém da tribo Masarwa.
Quando Robert pediu a seus alunos que desenhassem em vez de discutir as principais cenas do romance,
o romance ganhou vida para eles. Segundo Robert, um modo de produção semiótica levou a outro. Os
alunos tiraram fotos, cantaram músicas e executaram peças. Eles explicaram que em sua cultm:~s músicas
são cantadas para aliviar a dor, e que a atuação é catártica: "às vezes ficamos sem palavras, mas não sem a
linguagem corporal", disseram[ ... ] No final do ano, no exame Matric, os resultados mostraram uma melhora
dramática; dos 140 candidatos, apenas um não foi aprovado no exame de inglês como segunda língua. 13
306 1 LETRAMENTOS
Robert passou a explorar em maior profundidade a tradição oral dos "poemas de louvor" (ªpraise
poems") africanos, uma forma ritualística por meio da qual os negros sul-africanos se apresentam
ou identificam a si mesmos e suas situações. Toando, um estudante da turma de Robert, depois
dessa mudança, já havia escrito 81 poemas, incluindo "Soweto para jovens aberrações" ("Soweto
for young freaks"), como Stein e Newfield explicam:
Parece um tipo contemporâneo de kwaito (um gênero de música popular atual) e tsotsitaal ( uma língua
de rua multilíngue), e capta tanto o glamour quanto o perigo da vida nas ruas. É, apesar de sua ironia,
uma celebração do gueto e contribui para o arquivo da escrita sobre a vida da comunidade. 14
Meu poema de louvor a Tsonga induziu-me a conhecer minhas raízes. Eu era como uma árvore sem
raízes, um riacho sem uma fonte. [ ... ] Eu acho que essa é a coisa mais preciosa que já fiz na minha vida.
Desde que comecei a estudar, nunca tive a oportunidade de descobrir meus talentos e dons ... É como se
eu estivesse fortalecido em conhecimento e compreensão. 16
Stein e Newfield, então, concluem: "Robert caracterizou suas experiências como uma jornada,
começando com a Estação da Relutância, viajando para a Estação da Incerteza, e então chegando
à Estação da Agêncià'. 17
Em um exemplo final dos significados orais, fazemos uma viagem com Michael Newman para
uma escola de ensino médio no Queens, Nova York, EUA. Aqui ele examina o gênero do vernácu-
18 Newman, 2005, p. 405 [Yao Yao Hey yo, / Yeah Cherub blasts past everyone / Proud with ali around me. / Like my name is
the sun. / Number one. / Breaking out ali the charts / Cherub is guaranteed to spit a dart / right through your heart. / Appear
in the dark / When the night comes. / Cherub always the rhyme never done. / My style flow consistently / Ain't nobody / in
308 1 LETRAMENTOS
Ao comparar a cena rap underground à qual pertencem Querubim e seus amigos. Newman
explica que esse "esquadrão" era considerado, até certo ponto, um artefato da escola. Alguns disseram
que o trabalho de rap na escola era "apenas uma aulà'. Outros, no entanto, disseram que essa era
a única razão pela qual ainda estavam na instituição. Alguns dos artistas inclusive tinham criado
uma produtora com um site, oferecendo MP3s para download. 19
Esses são exemplos marcantes de professores explorando ao máximo as diferenças entre os
modos de significado oral e escrito e usando a sinestesia, ou alternância de modos, como base para
uma poderosa pedagogia multimodal. Com efeito, todo significado é sempre, intrínseca, inevitável
e humanamente, multimodal. Assim, a escrita não pode acontecer sem alguma visualização, nem
sem dizer coisas para nós mesmos em significado oral, na medida em que traduzimos esse significado
para a escrita. A aprendizagem sinestésica, multimodal, leva esses processos à consciência, discutindo
explicitamente a relação dos elementos do design em cada modo e fazendo com que os alunos
construam seus significados em um modo e depois em outro. Há poder cognitivo nesses dois
movimentos, o que encoraja também a metacognição intrínseca à criação de significados sobre o
significado e uma profundidade de aprendizagem proveniente da construção de sentidos em um
modo, depois em outro. Esses são os fundamentos dos letramentos (no plural).
Sumário
Significados sonoros e orais Significados escritos, comparativamente
Transportado pelo sentido da audição e, nesse aspecto, inti- Carregado pelo sentido da visão e, a esse respeito, estreita-
mamente ligado ao significado sonoro mente ligado ao significado visual
. Hesitações, revisões e reformulações no momento (síncronas) . Revisões cuidadosamente medidas, invisíveis para os leitores
(assíncronas)
Sequenciação de ideias, um fluxo linear Estruturação hierárquica de ideias (por exemplo, título, seções,
parágrafos, frases, orações)
Processos de conhecimento
Experienciando o conhecido
1. Crie um podcast para um dia ou parte de um dos seus dias. Quais alertas e avisos~ ocê encontra
em um dia? Quais sons ambientes você experimenta? Quais significados você atribui a esses sons?
this yicinity / fuck with me. / 'cause I can't count back from three. / And you can see how easily / I crush MCs / 'cause I flow
consistently. / Cherub, huh, that cat that lyrically / rip rappers in half; you know their name. / Remember this: it gonna be
the sarne/ ten years from now, but right now, fear this style. / Cause Cherub, huh, gonna freestyle (Newman, 2005, p. 405)].
19 Idem, ibidem.
significados a música evoca para você? Explique as associações que você faz.
Analisando criticamente
4. Examine alguns cruzamentos de textos orais-escritos contemporâneos, como mensagens de
texto em aplicativos. Quais características da língua oral elas têm? Quais são as vantagens e os
perigos desses tipos de comunicação? Compare com gêneros mais antigos e mais formais, como
uma carta comercial ou um telegrama.
Aplicando apropriadamente
5. Grave uma pessoa falando de improviso sobre um assunto. Transcreva o que ela diz (Que desafios
você experimentou na transcrição?) . Agora transforme esse texto em escrita formal (Que
mudanças você precisou fazer? Como os significados dos textos orais e escritos são similares e
diferentes?).
Analisando funcionalmente
6. Leia um texto escrito formal, como um relatório científico. Analise os elementos de design desse
texto que o tornam diferente da língua falada.
Aplicando criativamente
7. Planeje uma experiência de aprendizagem que mova os alunos entre a língua oral e a escrita,
de tal forma que destaque as diferenças, assim como aproveite ao máximo os paralelos entre os
dois modos.
310 1 LETRAMENTOS
Analisam criticamente as características mais e menos bem-sucedidas dos designs dos sites ("analisar
criticamente") e, então, aplicam o que aprendem na criação de um site e de um jornal da turma
("aplicar apropriadamente" e "aplicar criati~ente"). O objetivo desse passeio pelos processos de
conhecimento é aproveitar as identic!add de cada aluno de duas maneiras: explorar interesses
pessoais e desenvolver expertise para expressar esses interesses em um ambiente da internet. Além
de exigir muita leitura e escrita, o trabalho também visa explicitamente expandir o conhecimento
técnico dos alunos sobre a internet, bem como as maneiras mais eficazes de empregar seus recursos
para construir significados. 1
Esse projeto se tornou um módulo de ensino na plataforma digital de aprendizagem on-line
Scholar, e por meio dele os alunos do 62 ano contribuem com um relatório de informações sobre
tópicos pelos quais têm grande interesse para a construção de umafanzine on-line. Nesse ambiente,
eles exploram tópicos, público-alvo, propósito, características de relatórios de informações on-
-line, e, em seguida, redigem, fornecem retorno, revisam e, por fim, publicam seus relatórios no
Scholar.
Um outro projeto bastante interessante, que também buscou incorporar e explorar os "processos
de conhecimento': foi desenvolvido pela professora Walkyria Monte Mór, em um contexto
brasileiro de formação de professores.2 Com base no "Projeto Nacional de Formação de Professores:
Novos letramentos, multiletramentos e línguas", que coordenou entre 2009 e 2014, a autora,
tomando como refetência a perspectiva da aprendizagem pelo design, 3 desenvolveu estudo de
caso com grupo de alunos de uma disciplina de graduação voltada à formação inicial de professores
de línguas de uma universidade pública brasileira. De viés teórico-prático, esse estudo de caso
juntou conceitos teóricos da disciplina e práticas de narrativas autorais em vídeo construídas
pelos alunos.
Com base no arcabouço teórico da disciplina e na sua relação com a proposta de trabalho com
narrativas, surgiram resultados bastante interessantes que culminaram no replanejamento da própria
disciplina de graduação. Essa parte se constituiu em processo de "conceitualização por nomeação",
que contemplou a aprendizagem dos conceitos sociais de narrativa, com foco nas narrativas criadas
por tecnologias, digitais, e em processo de "conceitualização por teoria': que envolveu leitura e
discussão de teorias sobre narrativas, multimodalidade e construção de sentidos, multiletramentos,
letramentos críticos, autoria e agência. Como resultado, então, os estudantes desenvolveram seus
próprios conceitos para construir uma narrativa multimodal bem-sucedida.
No processo de desenvolvimento dessas narrativas, Monte Mór observou que os alunos se
engajaram na "experienciação do conhecido", ao descrevem seu desafio de enfrentar um vestibular
concorrido para entrada no curso de graduação. Ao mesmo tempo, a maioria deles também
"experienciou o novo", quando tomou conhecimento das narrativas dos colegas e quando aprendeu
a usar o programa Flash para desenvolver suas narrativas multimodais.
Os participantes também se envolveram em análises teórico-práticas, com base ntf"relação entre
os conceitos teóricos discutidos na disciplina e suas experiências e conhecimentos fora do contexto
universitário, Essa combinação lhes permitiu o engajamento em outros dois processos de
conhecimento: "analisando funcionalmente", quando tiveram a oportunidade de examinar as funções
72 i LETRAMENTOS
dos sistemas educacionais e de avaliar a adequação do suporte tecnológico para a realização de
suas tarefas, e "analisando criticamente': quando o foco de suas análises recaiu sobre as desigualdades
educacionais e sociais, b e ~ sobre o acesso a esses sistemas de ensino, rememorando, inclusive,
suas dificuldades e ansiedades pessoais durante a preparação para o vestibular.
Os alunos, então, trabalharam muito criativamente na reconstrução multimodal de narrativas
sobre sua entrada na universidade por meio do vestibular. Esse trabalho envolveu discussões
sobre o que deveria ser priorizado pelo grupo em relação ao tema escolhido (vestibular),
planejamento e produção de roteiros individuais, filmagens de narrativas individuais, escolha de
um programa de computador para montagem e produção/reconstrução de uma narrativa coletiva
do grupo.
A produção de uma narrativa multimodal coletiva foi algo inteiramente novo e estimulante para
os alunos, se comparada ao que tradicionalmente se faz no contexto universitário, em que se exigem
atividades de avaliação exclusivamente escritas. Isso fez com que eles tivessem a oportunidade de
aplicar seus conhecimentos, retratando uma diversidade complexa de situação do mundo real.
Nesse sentido, os estudantes puderam "aplicar apropriadamente" o que aprenderam, ao produzirem
uma narrativa em vídeo, e "aplicar criativamente': pois a atividade constituiu algo genuinamente
inovador, enfatizando o que havia sido transformado em suas vidas.
Aplicando
rever nossas abordagens para trabalharmos com apropriadamente
Abordagem autêntica Enfatiza fortemente •experienciar o conhecido'; começando com os interesses, as experiên-
cias e as motivaçôes do aluno. No caso da alfabetização, centra-se no método global e no
processo da escrita, valorizando a autoexpressão do aluno na escrita e o prazer significativo
da leitura (capítulo s).
Abordagem funcional Preocupa-se muito em •analisar funcionalmente'; ou em descobrir como os textos são estru-
turados para servir a diferentes propósitos e 'aplicar adequadamente'; ou aprender a criar
significados que serão poderosamente eficazes (capítulo 6).
Abordagem crítica Detém-se em •analisar criticamente: interrogar as motivações relacionadas aos significados
comunicados e criar textos que se envolvam com o mundo de maneira reflexiva; também
explora "experienciar o conhecido'; quando se trata de expressar identidades pessoais e
sociais e "aplicar criativamente'; quando se trata de fazer textos inovadores por meio de
novas mídias (capítulo 7).
Quadro 3.1: Um resumo das raízes históricas dos quatro processos de conhecimento.
O Quadro 3.2 divide cada um dos quatro processos de conhecimento em dois subprocessos,
descrevendo como podem ser traduzidos em atividades de sala de aula. Esses tipos de atividade
fornecem aos professores e alunos mais controle sobre suas escolhas e seus resultados de aprendizagem .
.4'
4 Idem, 2015d.
74 1 LETRAMENTOS
Conceitualizando í"----._ ~or nomeação: estudantes agrupam informações em categorias, aplicam os termos de
classificação e definem esses termos.
Analisando Funcionalmente: estudantes analisam conexões lógicas, relações de causa e efeito, estru-
tura e função.
Esses processos de conhecimento foram originalmente formulados pelo Toe New London Group
(NLG) para a estrutura dos multiletramentos como: prática situada, instrução aberta, enquadramento
crítico e prática transformada. Em aplicações subsequentes dessas ideias em práticas curriculares
com base no projeto da aprendizagem pelo design, reformulamos essas concepções e as traduzimos
em processos de conhecimento mais imediatamente reconhecíveis, relativos ao planejamento, à
documentação e ao rastreamento da aprendizagem. 5
Os elementos da aprendizagem pelo design são termos que podem ser usados com alunos na
sala de aula. Ao mesmo tempo, eles captam algumas diferenças profundas entre as formas de
conhecimento ou "movimentos epistêmicos". É interessante, portanto, que os professores também
se familiarizem com esses elementos, mas que não os entendam como uma sequência, já que não
existe uma ordem predeterminada a ser seguida - é possível, por exemplo, começar com conceitos,
tentar aplicá-los e conectá-los à experiência pessoal. Do mesmo modo, não se exige, necessariamente,
a mesma divisão entre os elementos, pois alguns assuntos ou situações de aprendizagem podem
demandar muito trabalho conceitua!, enquanto outros, mais trabalho experiencial. O~.J>rocessos
de conhecimento exigem, em vez disso, que os professores reflitam propositalmente sobre como
devem trabalhar os movimentos epistêmicos que fazem em suas salas de aula, podendo, assim,
justificar suas escolhas pedagógicas com base nos objetivos e resultados de aprendizagem para
indivíduos e grupos.
s Idem, 2009.
O conhecido: introduzir, mos- Por nomeação: definir ter- Funcionalmente: escrever Apropriadamente: escrever,
trar e falar sobre algo/alguma mos, fazer um glossário, rotu- uma explicação, criar um dia- desenhar, atuar deforma usual
coisa familiar ou "fácil"; ouvir, lar um diagrama, ordenar ou grama de fluxo de dados, de- para resolver um problema.
ver, assistir, visitar. categorizar coisas semelhan- senhar um diagrama técnico,
tes e distintas. criar um storyboard, fazer um Criativamente: usar o conhe-
O novo: introduzir algo menos modelo. cimento que aprendeu de
familiar, mas que, pelo menos, Com teoria: desenhar um forma inovadora, assumir risco
faça algum sentido apenas por diagrama, elaborar um mapa Criticamente: identificar lacu- intelectual, aplicar conheci-
imersão; ouvir, assistir, ver, vi- conceituai ou escrever um nas e silêncios, analisar propó- mento a um ambiente diferen-
sitar. sumário, teoria ou fórmula que sitos (para esse tipo de conhe- te, sugerir um novo problema,
una os conceitos. cimento), predizer e discutir traduzir conhecimento para
consequências, sustentar um uma mistura de "modos" de
debate, escrever um crítica. significação.
Quadro 3,4: Os processos de conhecimento - Exemplos de atividades de letramentos.
EXPERIENCIANDO APLICANDO
Estar no mundo do aluno Estar em novos mundos Fazer as coisas da maneira Fazer as coisas de maneiras
adequada interessantes
Fazer uso do conhecimento e Introduzir novas experiências
da experiência anteriores do aos alunos- reais e/ou virtuais. Agir sobre o conhecimento de Fazer coisas de maneiras inte-
aluno, formação da comunida- O"novo" é a partir da perspec- maneira esperada, previsível ressantes, ao levar o conheci-
de, interesses pessoais, expe- tiva do aluno para construir ou típica, com base no que foi mento e os recursos de uma
riência concreta, motivação sentido, pois pode ter elemen- ensinado. Envolve a transfor- determinada configuração e
individual, o cotidiano e o fa- tos familiares. mação do aluno e exige que adaptá-los a uma configura-
miliar. ele tenha oportunidades para ção diferente - tomando algo
demonstrar sua compreensão de seu contexto familiar e fa-
e seu aprendizado. zendo com que funcione em
outro lugar.
CONCEITUALIZANDO ANALISANDO
Conectar o mesmo tipo de Conectar diferentes tipos de Pensar sobre o que algo faz Pensar em quem se beneficia
coisa coisas
Examinar a função ou lógica Interrogar os propósitos hu-
Identificar novos conceitos/ Generalizar e sintetizar concei- do conhecimento, ação, obje- manos, as intenções e os inte-
ideias/temas, incluindo resu- tos, vinculando-os, compreen- to ou significado representa- resses do conhecimento, de
mo, termos generalizados, dendo como contribuem para do. Para que serve? O que isso uma ação, de um objeto ou de
convenções, recursos, estru- o todo, generalizando os rela- faz? Como funciona? Qual é significado representado.
turas, definições e regras. No- cionamentos de causa e efeito. sua estrutura, função ou quais Quais são suas consequências
mear é o primeiro passo para E se ... ? são suas conexões? Quais são individuais, sociais e ambien-
entender. suas causas/efeitos? tais? Quem ganha? Quem
perde?
Quadro 3.S: Proposta de planejamento curricular com base nos processos de conhecimento.
76 1 LETRAMENTOS
Aprendizagem experiencial dos letramentos
"Experimentar o conhecido" envolve aprendizes que possam refletir sobre suas próprias
experiências de vida, trazendo para a sala de aula conhecimento com o qual estão familiarizados
e suas formas de representar o mundo. Na perspectiva dos letramentos, experimentar o conhecido
busca fazer isso de maneira muito direta, pedindo aos alunos que tragam para a sala de aula artefatos
textuais e práticas comunicativas que possam mostrar os significados que constroem em sua vida
cotidiana. Dessa forma, a aprendizagem por meio da experimentação do conhecido se conecta com
as origens culturais, as identidades e os interesses dos alunos, envolvendo a articulação explícita
da experiência cotidiana que muitas vezes está implícita nas práticas, estimulando a autorreflexão
sobre as fontes de seus interesses e perspectivas. Esses tipos de atividade não apenas possibilitam
que os aprendizes introduzam suas experiências invariavelmente diversas na sala de aula, como
também fazem com que os professores e seus colegas comecem a ter uma noção do conhecimento
prévio de cada aluno.
"Experimentar o novo", por sua vez, ocorre com a imersão em novas situações, informações e
ideias. No caso de letramentos, isso significará principalmente se envolver com novos textos ou
textos de uma variedade desconhecida - ler textos escritos, ouvir textos falados ou sons, observar
gestos e, particularmente, textos visuais (imagens estáticas e em movimento). Dessa forma, os
alunos são expostos a novos significados, fora de suas experiências cotidianas, o que, entretanto,
só funcionará como uma experiência de aprendizagem, de fato, se estiver dentro de uma zona de
inteligibilidade e segurança - suficientemente próxima de suas próprias experiências de vida -,
dentro do que Vygotsky chama de "Zona de Desenvolvimento Proximal" (ZDP). 6 A aprendizagem
experiencial tem sido largamente articulada à tradição do que chamamos "pedagogia autênticà',
relacionada às ideias de Jean-Jacques Rousseau, John Dewey, Maria Montessori e Anísio Teixeira,
em que se aprende aquilo que é socialmente relevante e conectado com as experiências de vida e
as identidades dos aprendizes. No entanto, como uma pedagogia autônoma, ela também foi atacada
e se viu em recuo nas últimas décadas. Discutiremos mais sobre isso no capítulo 5.
7 Idem.
8 Piaget, 2002 [1923].
9 Bransford; Brown & Cocking, 2000.
78 i LETRAMENTOS
/
Aprendizagem analítica dos letramentos
''Analisar funcionalmente" engloba processos de raciocínio, de estabelecimento de conclusões
inferenciais e dedutivas, de relações funcionais (como entre causa e efeito) e de análise de conexões
lógicas, em que os aprendizes desenvolvem cadeias de raciocínio e explicam padrões de conhecimento
e experiência. Na perspectiva dos letramentos, os alunos aprendem a explicar as maneiras pelas
quais os textos trabalham para transmitir significados, ou a maneira como seus elementos de design
funcionam para criar uma representação complexa e significativa. Essa é uma das principais ênfases
da abordagem funcional do letramento, a ser analisada em detalhes no capítulo 6.
''Analisar criticamente", por sua vez, sugere avaliação das perspectivas, dos interesses e dos
motivos daqueles envolvidos na construção de conhecimento, em que os aprendizes interrogam os
propósitos relacionados aos significados ou às ações, com base na interpretação do contexto
sociocultural. Esse é o foco principal da abordagem dos letramentos críticos, que exploraremos no
capítulo 7. Um aspecto fundamental da análise crítica é refletir metacognitivamente sobre a influência
de suas próprias perspectivas e processos de pensamento, buscando torná-los mais eficientes ao
serem acompanhados pelo sistema de metacognição ou monitoramento e reflexão sobre o próprio
pensamento - uma parte integral do movimento entre o novo conhecimento, encontrado nos outros
métodos de conhecimento, e a autorreflexão sobre o próprio conhecimento e processos de
pensamento. 10
10 Idem.
80 / LETRAMENTOS
Sumário
Experienciando:
Os significados são fundamentados nos padrões de experiência do mundo real e na ação e nos interesses subjetivos.
Um movimento pedagógico-chave é a relação entre a aprendizagem escolar e as experiências práticas dos alunos fora da esco-
la, bem como entre textos e experiências familiares e não familiares.
Conceitualizando:
Conhecimentos especializados e disciplinares são baseados em distinções afinadas de conceitos e teorias, semelhantes àqueles
desenvolvidos por comunidades de prática especializadas.
Conceitualização não é meramente uma questão de reprodução de um saber do professor ou do material escolar, mas um pro-
cesso de conhecimento no qual aprendizes se tornam "conceitualizadores ativos'; fazendo do tácito o explícito e generalizando
a partir do part icular.
Em relação aos letramentos, a conceitualização ainda envolve o desenvolvimento de metarrepresentações (ou representações
de representações) para descrever os "elementos do design''.
Analisando:
"Analisar" pode signifiCi~duas coisas em um contexto pedagógico: capacidade de descrever funções analíticas ou de avaliar
intenções e motivações humanas.
Em relação aos letramentos, isso ainda envolve analisar funções textuais e questionar criticamente os interesses dos participan-
tes no processo de comunicação.
Aplicando:
Aplicação apropriada e criativa do conhecimento e a compreensão da diversidade complexa de situações do mundo real.
Capacidades de produção com os elementos do design de uma ampla variedade de tipos de texto e propósitos de comunicação.
Em relação aos letramentos, isso significa construir textos e colocá-los em uso na ação comunicativa.
Processos de conhecimento
Experienciando o conhecido
1. Descreva um momento impressionante de aprendizagem em sua vida (na escola ou fora dela)
Analisando funcionalmente
2. Tomando como base um capítulo de um livro didático ou uma unidade de trabalho criada por
Analisando criticamente
3. Quais preconceitos ou limitações você consegue identificar em termos do alcance e da sequência
dos processos de conhecimento em sua unidade de trabalho?
Visão geral
A pedagogia do letramento na abordagem didática fundou o processo de ensino e aprendizagem
leitura e da escrita quando se iniciou a educação massiva, compulsória e institucionalizada no
ado XIX, sendo, ainda ~e, amplamente advogada e aplicada nas escolas em geral. Na pedagogia
letramento na abordagem didática, exige-se a aprendizagem das formas de correspondência
entre sons e letras, bem como as regras formais daquilo que se apresenta como a "forma correta
esaità'. Trabalha-se com a ideia de "compreensão" do que os autores "realmente querem dizer':
ascando aprender a respeitar os textos do cânone literário da alta cultura. Nessa rodagem, o
auriculo determina o que deve ser ensinado; assim, o professor segue o material didático, que, por
ua vez, segue o currículo. No final desse processo de ensino e aprendizagem, para ser considerado
1ip-ovado", o aprendiz deve obter uma "notà' mínima, baseada, em geral, em testes que exigem as
respostas "corretas".
li
(!] .
·.• Veja: "Uma história de duas salas de aula''.
Didática (capítulo 4) Petrus Ramus . Experienciar o novo: ler textos literários de "alto valor cultural''.
Autêntica John Dewey e Maria Montessori Experienciar o conhecido: explorar os interesses próprios na
(capítulos) leitura e a voz pessoal na escrita.
Crítica Paulo Freire e Michael Aple . Experienciar o conhecido: desenvolver voz e identidade pessoais.
(capítulo 7)
Analisar criticamente: trabalhar agendas sociais e vieses de
textos.
84 1 LETRAMENTOS
didática, no que tange justamente à relação entre fonema e grafema, pode ser pensada como critério
de avaliação de língua portuguesa para o 1 Q ciclo:
Escrever utilizando tanto o conhecimento sobre a correspondência fonográfica como sobre a segmentação
do texto em palavras e frases. Com este critério espera-se que o aluno escreva textos alfabeticamente.
Isso significa utilizar corretamente a letra (o grafema) que corresponda ao som (o fonema), ainda que
a convenção ortográfica não esteja sendo respeitada. Espera-se, também, que o aluno utilize seu
conhecimento sobre a segmentação das palavras e de frases, ainda que a convenção não esteja sendo
respeitada (no caso da palavra, podem tanto ocorrer uma escrita sem segmentação, como em "derepente':
como uma segmentação indevida, como em "de pois"; no caso da frase, o aluno pode separar frases
sem utilizar o sistema de pontuação, fazendo uso de recursos como "e", "aí", "daí", por exemplo).
Neste capítulo, focalizaremos a ecologia da sala de aula na abordagem didática, o modo como
a sala de aula é organizada e o que acontece nela. N~sso objetivo é fornecer uma representação
gráfica dos valores, hábitos e propósitos culturais desse tipo de comunidade em sala de aula. Nossa
intenção, com isso, não é simplesmente descartar a abordagem didática por considerá-la antiquada,
mas sim buscar entendê-la, pois ela pode ainda se mostrar relevante, atualmente, em certos contextos
comunitários, para alguns alunos, e em função de determinados aspectos do processo de aprendizagem.
Daí, portanto, a necessidade de, mais uma vez, nos referirmos a letramentos (no plural), incluindo,
nesse caso, não uma 1'nica abordagem, mas uma mistura de diferentes abordagens.
Para fins de comparação entre este e os três capítulos seguintes, analisaremos as quatro abordagens
da pedagogia dos letramentos (didática, autêntica, funcional e crítica) a partir de quatro dimensões
(ver Quadro 4.2).
Dimensão 2: organização do currículo de letramento Como aquilo que os estudantes devem aprender é organiza-
do.
Dimensão 3: aprendizes fazendo letramento As maneiras pelas quais os estudantes pretendem aprender
para construir significados.
Dimensão 4: relações sociais do letramento As relações entre os estudantes e os letramentos, entre estu-
dantes e outros estudantes e entre estudantes e professores.
Quadro 4.2: Estrutura para análise das ecologias de aprendizagem em sala de aula e as pedagogias de letramento.
VI PARTE cópia cada aluno já fart em seu caderno. criança) a palavra fOITlt#ldll? Após e l&t1un1. manda- ta& { ~ 1- fari os aNnoa terem.
Emprego do h , ~ e os divel'9os stm• do ,e. A primeiro sul.o de linguag.-n esaita •91'.ê rá um dos alunos da classe escrever • palavra no
ocupeda somer,ta con, a escrita da •Baba -pc.. . qu:1dJQ. Com octo brinquodo, tSo simplae, a cleCIOe Ap.:is:Jndo eo ropntindo isto virilill V'lrZ••• vllrli.
VH PARTE tarà um retotço muito grande, tanto na leitun que oa: outroa ditongos I oi. , c,.u etc-1 não
Emprego das vogala a ditongo& naaaJa. O resultado ser6 logo animador. Raros serllo qu..-to na eacrita dé pal.wru. &preSÕntarãl dtf1ct11dtideS e poderão !Sr ~nedos
09 aluno• QIJ8 não escreverilo de maneira muito Je- sn uma só aui..
gfvol esta siab&. ENTREGA DA CARTILHA - Dominai:Sas- três
ou quatro ffções da Cartilha SodrtP prot.uor Ck'- 2!' Uçlo - Es:tando j6 dominados os diton-
!PA RTE ver6 Mtl'8g6--la ao aluno. Eata tara qua iniciar a la~ gos. o PrOfasao, escreverá, na louea, a aílilba Tn.O,
Na •uJa Mguinte o profnsor, depOi.s d#! ha ver wrada fflC$1flO , d«9de: o prfmolira l~o. O ,,..ofes=ior, Monda,A oe Cllunos ic.-em.
A 1~ sentença - CJ... po.1.o.. no..cL::&. ncordado a silaba jj ,dom;nada, i:,as&aril a ensínar enu.tanto, contfnuarà dando lições no quadro, se- Em seguida epegarê o a. e ei;creverâ o cf.
- constituirá e 1~ lição. outra ( ia..>seguindO o mesmo processo. guit'ldO o PfOC8likl- de atfabetloçãc. • longo .u1.. • farê oe. aluno. leram l"!'\.(A,L,
Se, por um lado,.os métodos sintéticos lidam com a análise que vai das partes para o todo, isto
é, das relações entre unidades sonoras e grafemas (método alfabético e/ou fônico), e entre unidades
silábicas, para a formação de palavras (método silábico), obedecendo a uma certa hierarquização,
que parte da letra ao texto por meio de soletração e silabação, dimensões importantes e necessárias
para o aprendizado da escrita, por outro lado, eles apresentam o grande problema da "artificialização"
de textos, cujo único objetivo é o treinamento e/ ou decodificação de letras e sílabas, estando,
portanto, descolados do uso social da escrita. Nesse sentido, o início da Parte I ("O professor, depois
de mostrar uma gravura correspondente à lição e após ter conversado com a classe para despertar
o interesse dos alunos, escreverá na lousa a sentença") parece soar quase como paradoxal, visto que
o trabalho com palavras e frases descontextualizadas, salvo em casos muito excepcionais, <4,íi.cilmente
despertaria o interesse dos alunos.
· Gramática tradicional
Em uma turma de ?52 ano do ensino fundamental, a professora Joana anuncia o seguinte tópico
de sua aula:
86 1 LETRAMENTOS
- Nós já começamos a estudar as classes de palavras. Vocês se lembram quais são as classes de
palavras?
Nenhum aluno da turma se manifesta. A professora, então, reforça a pergunta:
- Gente, alguém sabe o que são as classes de palavras?
Como ninguém responde, a professora continua:
- Então, para a gente escrever bem, precisamos saber como as palavras são classificadas. As classes
de palavras é como se classifica as palavras. No português, as palavras são classificadas em dez tipos,
lembram?
A professora continua, então, falando e escrevendo cada uma das classes de palavras na lousa:
Substantivo, Artigo, Adjetivo, Numeral, Verbo, Pronome, Advérbio, Preposição, Conjunção e
Interjeição.
- Na última aula, nós estudamos os substantivos e os·artigos. Hoje, vamos ver os adjetivos. Então,
o adjetivo é toda palavra que caracteriza o substantivo, que dá a ele qualidade, defeito, condição, e
por aí vai. O adjetivo varia em gênero, quer dizer, masculino e feminino, número, singular e plural,
e grau, aumentativo ou diminutivo. Por exemplo: "O menino está cansado". Nesse exemplo, quem é
o adjetivo?
- Cansado - respondem alguns alunos em coro.
- Isso. E "cansado" está se referindo a quem?
- O menino - respondem dois alunos.
- Está se referindo ao "menino". E "menino" é uma palavra masculina e está no singular. Então,
o adjetivo "cansado" também tem que estar no masculino e no singular. Tá bom?
Depois de dar mais dois exemplos de frases com substantivos e adjetivos (um no feminino
singular e outro no masculino plural), a professora escolhe um texto do livro didático, o poema
"Retrato", de Cecília Meirelles, e pede aos alunos que destaquem os adjetivos encontrados e digam
a que substantivo cada um deles se refere e se eles estão no masculino ou no feminino, no singular
ou no plural:
Retrato
(Cecília Meirelles)
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?
Podemos notar que esse é um típico exemplo de aula na abordagem didática. Vale, porém,
explicar que não há demérito algum em trabalhar conteúdo gramatical em uma aula de língua
portuguesa. Muito pelo contrário: a gramática é parte fundante no processo de ensino e aprendizagem
Dando continuidade ao ensino de classe de palavras com a mesma turma, ao abordar os verbos,
a professora Joana inicia sua aula da seguinte maneira:
88 J LETRAMENTOS
- Então, na última aula, a gente viu que existem três modos: Indicativo, Subjuntivo e Imperativo.
Hoje nós vamos ver como é a conj ugação dos verbos no indicativo, começando com os verbos de
primeira conjugação. O que são os verbos de primeira conjugação?
Ninguém responde. Então, ela mesma contínua:
- São os verbos que terminam em "ar", como "cantar", "jogar" e "falar". Vamos ver como fica a
conjugação do verbo 'Jalar".
A professora, então, copia na lousa todas as pessoas gramaticais e os tempos verbais do modo
indicativo do verbo "falar" (presente, pretérito perfeito, pretérito imperfeito, pretérito mais-que-
-perfeito, futuro do presente e futuro do pretérito), conjugando cada um desses tempos verbais na
primeira, na segunda e na terceira pessoas do singular e do plural (eu, tu, ele, nós, vós, eles). Em
seguida, ela lê em voz alta cada um deles ("Eu falo, tu falas, ele fala, nós falamos, vós falais e eles
falam. Eu falei, tu falaste" etc.).
Um aluno, antão, repete duas conjugações em voz alta em tom irônico:
- Tu foste! Vós fostes! Que engraçado! Eu não falo assim.
A professora lhe responde da seguinte forma:
- Pode parecer um pouco estranho para vocês o "vós" porque ninguém fala mais hoje em dia, mas
ele existe em vários textos antigos. Por isso, temos que aprendê-lo.
O trecho acima é mais um exemplo de ensino de gramática na abordagem didática, em que se
percebe que a professora Joana trabalha com os tempos verbais por uma lógica de memorização e
de forma descolada de seus significados e de sua função comunicativa, isto é, dos diferentes efeitos
de sentidos que os tempos verbais podem produzir em contextos diversos de uso da língua. Ela
não explora com os alunos, por exemplo, o porquê do termo "pretérito perfeito" ou "pretérito
imperfeito" e as situações reais nas quais esses tempos verbais poderiam ser usados por eles. Ainda
nesse exemplo, poderia ser explorado o fato de o "pretérito mais-que-perfeito" não ser usado na
fala e na escrita cotidianas, nem mesmo em contextos mais formais.
O mesmo poderia ser discutido em relação às pessoas gramaticais, partindo da fala do aluno
que foi irônico e questionou o fato de não usar os pronomes pessoais "tu" e "vós". É interessante
notar nesse caso, que a professora até esboça uma explicação para o não uso desses pronomes e
também uma justificativa para aprendê-los ("Pode parecer um pouco estranho para vocês o 'vós'
porque ninguém fala mais hoje em dia, mas ele existe em vários textos antigos. Por isso, temos que
aprendê-lo"), mas tanto a explicação quanto a justificativa são vagas, pois dizer que devemos
aprender a conjugar os verbos na segunda pessoa do plural usando "vós" pelo fato de este aparecer
"em vários textos antigos" não é definitivamente um argumento plausível para ensiná-lo, já que
isso se mostra bastante distante da realidade dos seus alunos. Ainda quanto aos dois pronomes, a
professora poderia também discutir como o "tu" é um pronome comum em algumas regiões do
Brasil, comparando-o com o seu correspondente "você': mais comum atualmente na maior parte
do país. .../f
...E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como o raio de sol e viveram felizes para sempre ...
- Tem muita história que acaba assim. Mas este é o começo da nossa. Quer dizer, se a gente tem que começar em algum lugar,
pode muito bem ser por aí. Vai ser a história da filha desses tais que se casaram e viveram felizes para sempre. E a história dos filhos
começa é na história dos pais. Ou na dos avós, bisavós, tataravós ou requetatatataravós - se alguém conseguir dizer isso e se lem-
brar de todas essas pessoas.
- Bem, tem alguém que lembra. [ndio lembra. Em muitas tribos, pelo menos. [...)
Mas isso é coisa de índio. Homem branco hoje em dia não liga mais para essas coisas. Prefere saber escalação de time de futebol,
anúncio de televisão, capitais de países, marcas de automóveis e outras sabedorias civilizadas. Você sabe a história dos seus pais?
E dos seus avós? E dos seus bisavós? Eu também não sei muito, não. Mas, quando não sei, invento.
- Tem gente que gosta, acha divertido. Tem gente que só quer saber de histórias muito exatas e muito bem arrumadinhas - então
é melhor mudar de história, porque esta aqui é meio atrapalhada mesmo e toda ao contrário. Ela nem começou direito e já apare-
ceram aí em cima uns índios que não têm nada a ver com a história. Mas é que eu gosto muito de índios e piratas (por isso adoro
a história de Peter Pan) e toda hora eu lembro deles.
... E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como um raio de sol e viveram felizes para sempre ...
Quadro 4.3: Trecho do livro História meio ao contrário, de Ana Maria Machado. São Paulo, Ática, 1979.
Por fim, a professora propõe duas questões de múltipla escolha sobre o texto:
Já de início, podemos notar que a professora Joana se vale de certos expedientes da abordagem
didática, como a leitura em voz alta. Nesse caso, podemos perguntar: por que escolher dois alunos
aleatoriamente para ler o trecho em voz alta para a turma? Para trabalhar que tipo de ccriíhecimento?
Em relação ao trecho em questão, podemos dizer que, embora sua escolha tenha sido bastante
interessante para um trabalho de leitura sobre contos infantis, as questões propostas são limitadas
e problemáticas, com localização de informações superficiais e, ao mesmo tempo, ambíguas, que
não buscam, de fato, explorar a complexidade do texto. Além disso, ao se restringirem a questões
de múltipla escolha, as atividades procuram exclusivamente fazer com que o aluno encontre no
texto a resposta única, correta, não valorizando, portanto, a possibilidade de diferentes respostas
que tragam à tona a própria subjetividade dos aprendizes.
90 1 LETRAMENTOS
As atividades de interpretação deixam, assim, de explorar dois pontos cruciais: o primeiro é o
fato de a história se iniciar ao contrário dos contos de fadas, que, em geral, terminam com "e foram
felizes para sempre". Ao anunciar que vai inverter a história, começando-a pelo final, inclusive
misturando-a a outras histórias (como a de "índios e piratas"), a autora busca não apenas trazer
para o seu texto um tom divertido, mas, sobretudo, questionar a própria possibilidade de pessoas
viverem felizes para sempre. O segundo ponto crucial, estreitamente ligado ao primeiro, diz respeito
à linguagem coloquial utilizada, que se aproxima muito de uma conversa informal, inclusive por
meio de questões como "você sabe a história dos seus pais? E dos seus avós?", cujo objetivo é fazer
com que o leitor pense e participe da história junto com a autora.
"Pardalzinho"
Em uma outra aula para a mesma turma, a professora Joana trabalha com os alunos o poema
"Pardalzinho", de Manuel Bandeira:
Pardalzinho
O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos! 2
Assim como na aula anterior, a professora pede aos alunos que leiam o poema silenciosamente
e, na sequência, escolhe um aluno para lê-lo em voz alta para a turma. Depois disso, ela pergunta
às crianças:
- O que vocês entenderam do poema?
- Fala de um passarinho que foi adotado porque tava com a asa quebrada, mas acabou morrendo
- diz uma aluna.
- Isso mesmo - responde, entusiasticamente, a professora.
- Eu já tive um canário belga. Ele morreu no começo do ano - diz um aluno.
- Eu também - diz um terceiro aluno.
- Ok, imagino que alguns de vocês já tiveram animais de estimação que morreram. Mas é assim
mesmo. A morte é uma coisa natural. Faz parte da vida. Agora, vamos voltar ao poema. Eu quero
que vocês prestem atenção às rimas do poema. Quais são as rimas presentes?
- 'í\sa" e "casa" - responde um dos alunos.
- "Vão" e ''prisão" - diz um outro.
- "Voou" e "enterrou" - fala um quarto.
- Faltou algum?
-Não.
- Faltou. Vejam que falta ''carinhos" e ''passarinhos".
- Manuel Bandeira. "Pardalzinho". Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1976.
A professora Joana procura seguir à risca o plano de aula anual de sua disciplina no 8º ano, no
qual estão previstas as aulas, bem como o tempo necessário para ser trabalhado todo o conteúdo.
Para isso, ela faz us9 constante do livro didático, que está adequado, capítulo por capítulo, semana
a semana, ao plano de aula da matéria.
Ao olhar para o plano de aula anual e verificar·os pontos que estão previstos para o 4º bimestre,
uma aluna da turma faz, então, a seguinte reflexão:
- "Predicativo", "Transitividade verbal: objeto direto e indireto", "Adjunto adnominal", "Adjunto
adverbial". Uau! Nem sei o que essas coisas significam. Deve ser difícil!
A aluna, todavia, também sabe que, quando terminar o ano letivo e ela olhar novamente para
o plano de aula, o trabalho que fez meses antes parecerá fácil. Não é estranho que esse conteúdo
lhe pareça tão difícil no começo? No final de cada período, há provas formais, aplicadas para avaliar,
no caso de alguns alunos, o quanto estes aprenderam e estão aptos para seguir para o anwseguinte,
ou, no caso de outros alunos, o quanto não aprenderam tanto quanto deveriam.
Organizar a transmissão do conhecimento nesse modelo é uma característica peculiar às culturas
modernas letradas e às pedagogias formalmente institucionalizadas. O estudioso francês do século
XVI Petrus Ramus é reconhecido como o precursor desse modelo, que representa um dos aspectos
mais distintivos da pedagogia do letramento na abordagem didática. 3 Um século depois da invenção
3 Ong, 1958.
92 1 LETRAMENTOS
da tipografia por Gutenberg, Ramus levou a lógica cultural da reprodução mecânica da palavra
escrita ao seu modelo de ensino, produzindo exposições detalhadas de conhecimento que mudaram
o seu centro de gravidade, antes localizado no escolasticismo e no diálogo socrático.
l!l
Veja: "Sócrates, a memória e a internet".
Nesse sentido, ao contrário de Sócrates, Ramus dirigiu os alunos para o texto impresso, mantendo
uma cópia idêntica para cada um deles. Seus livros, que chegaram a um número notável de cerca
de 1.100 edições, espalhando-se por grande parte do mundo intelectual da Europa moderna, lidavam
com dialética, lógica, retórica, gramática e matemática.
Do ponto de vista do que deveria ser ensinado, o conteúdo, Petrus Ramus não trouxe nenhuma
inovação. Seus livros eram escritos principalmente em latim, a língua comum da vida intelectual
em toda a Europa da Renascença, com os conteúdos dos textos clássicos - lembrando o antigo
passado europeu - abordando retórica ou dialética, por exemplo, consideradas importantes porque
faziam parte do legado cultural da Grécia e da Roma clássicas. A aprendizagem da gramática, do
mesmo modo, não era mais do que aprender as gramáticas do latim e do grego.
A partir, então, de Petrus Ramus, uma nova lógica foi aplicada à forma como a informação era
organizada: uma lógica que prosseguia, para usar as palavras de Ong, "por definições e divisões a
sangue-frio, levando a ainda mais definições e mais divisões, até que todas as partículas do sujeito
***
Depois de várias semanas virando as páginas do livro didático, lição por lição, capítulo a capítulo,
era hora de ver o quanto os alunos da professora Joana tinham aprendido por meio de uma avaliação
ao final do ano. Eles realmente haviam compreendido as classes de palavras? Podiam classificar
todas elas? Sabiam o que era um substantivo comum de dois gêneros? O que era um verbo transitivo
direto? Um advérbio de modo? Tudo isso havia sido "avaliado" por meio de números, dispostos
em uma grade de "progresso escolar" ao longo do ano, no peculiar "jogo da educação''.
Em uma seçi).o do livro didático do 62 ano, há uma atividade relacionada a "fontes renováveis
de energia': A professora Joana, então, decide levar seus alunos ao "laboratório de informáticà' da
escola para que pesquisem na internet sobre o assunto. Como há 30 estudantes na turma e o
laboratório possui apenas 15 computadores, Joana os divide (dois alunos por computador). Depois
que todos já estão sentados e quietos, ela pede que abram o Google e pesquisem sobre fontes
renováveis de energia, destacando que eles devem fazer buscas em, pelo menos, três sites distintos.
Passados cerca de 30 minutos, a professora solicita aos alunos que copiem em seus cadernos os
resultados das investigações realizadas, para levá-los para leitura e discussão em sala de aula. No
entanto, como a atividade de cópia dos textos pesquisados toma bastante tempo, a aula termina
antes que a turma possa retornar à sala, o que faz com que Joana adie a atividaGJe para a aula
seguinte.
Esse exemplo é bem emblemático para percebermos a questão do uso da internet na escola. Isso
porque, apesar de tentar fazer com que seus alunos usem uma "nova tecnologià' - nova em relação
às tecnologias tradicionais de sala de aula, como o livro didático, o giz e a lousa -, a professora
continuou replicando práticas tradicionais de letramento, como a solicitação de cópia à mão dos
94 i LETRAMENTOS
textos pesquisados na internet, um expediente típico da abordagem didática, que, portanto, não
mobiliza diferentes tipos de valores, prioridades e sensibilidades dos letramentos com os quais
estamos familiarizados. 5
Na aula subsequente, a professora Joana trabalha a produção textual com seus alunos. Um dos
tópicos do conteúdo programático previstos para o 4º-bimestre é a carta aberta. A professora, então,
inicia a aula dizendo:
- Hoje vocês vão escrever uma carta aberta. A carta aberta é do tipo argumentativo e tem como
principal característica fazer com que a pessoa que está escrevendo possa expor em público suas
opiniões e suas reivindicações sobre um assunto, bus&ando convencer alguém sobre suas ideias. Mas
a carta aberta é diferente de uma carta pessoal. Na carta pessoal, o que se trata são assuntos, como
o próprio nome diz, pessoais, que não dizem respeito a outras pessoas. Já na carta aberta, o assunto,
o problema, é de interesse coletivo, público. Então, a carta aberta pode ser utilizada para protestar
contra esse problema, mas também como uma forma de conscientização das pessoas ou de um
representante político, do governo, por exemplo, sobre esse problema. A carta aberta se divide nas
seguintes partes (a r,tofessora escreve na lousa):
- Agora, eu vou querer que cada um de vocês escreva uma carta aberta de, no máximo, 3 o linhas
sobre um tema b,astante atual que nós pesquisamos na aula anterior, lembram? Qual foi?
- Energia - responde um dos alunos.
- Isso. Fontes renováveis de energia - diz a professora - Vamos falar a respeito de como podemos
reduzir os problemas de falta de energia usando fontes renováveis. O que vocês pesquisaram na aula
passada no laboratório. Lembrando que o texto tem que ter título, introdução, desenvolvimento e
conclusão. E vocês têm até o final da aula para terminar e me entregar, tudo bem?
Podemos notar que, embora a professora Joana tenha trazido para sua aula um gênero textual
específico (a carta aberta), o modo como ela o explora é típico da abordagem didática, na qual o
trabalho de produção textual se constitui com base no modelo da famigerada "red~ão escolar':
Primeiramente, ela apresenta formalmente o gênero, por meio de seu conceito e sua estrutura, para,
então, solicitar de seus alunos a produção individual de um texto sobre um tema genérico, cuja
única leitora será a própria professora, que, possivelmente na aula seguinte, devolverá as redações
aos alunos "corrigidas" (do ponto de vista ortográfico e gramatical).
Como a atividade de produção textual está centralizada na figura da professora, não há espaço
concreto para a participação coletiva dos alunos, que poderiam debater o problema de forma mais
Valorizando a conformidade
O historiador Harvey Graff descreve o papel do letramento no estabelecimento de um novo
sistema de ensino institucionalizado em massa no século XIX. Segundo o autor, o letramento foi
usado como um instrumento para inculcar "pontualidade, respeito, disciplina, subordinação",
contribuindo, desse modo, para moldar "uma força de trabalho controlável, dócil e respeitosa,
disposta e capaz de seguir as ordens". 6 Em outras palavras, a abordagem didática do letramento na
educação em massa se tornara uma importante ferramenta cultural na construção da sociedade
moderna.7
(!]li'(!]
(!t] - .·.•
r,
Veja: "Em busca do letramento: As origens sociais e intelectuais dos estudos sobre letramento".
De forma específica, a ordem social moderna na educação se constituiu por meio de uma ordem
espacial da sala de aula (alunos de frente para o professor, e não de frente um para -~outro), de
uma ordem temporal do horário escolar (com um tempo destinado estritamente para a disciplina
voltada à leitura e à escrita e, outras vezes, a cada uma das demais disciplinas) e de um currículo
em geral (que permite avançar um passo após o outro, em uma sequência pré-ordenada).
96 / LETRAMENTOS
No coração da abordagem didática está o livro didático, um material formal, autoritário, não
negociável, que não é apenas uma metáfora para um sistema de ordem social, no qual o texto escrito
assume um lugar sem precedentes, mas é, sobretudo, um meio crucial de socializar as crianças na
sociedade moderna. Nesse sentido, a pedagogia do letramento na abordagem didática representa
uma enorme ruptura na história da educação, na qual, com a exceção ocasional e parcial das elites
letradas, a maioria da população funcionava principalmente interagindo entre si, usando textos
orais mais fluidos e intersubjetivos. Antes do ensino obrigatório, a socialização, para a maioria da
população, ocorria apenas informalmente ao longo de suas vidas em suas comunidades. A pedagogia
do letramento na abordagem didática, por outro lado, apresenta uma razão muito particular e
quintessencialmente moderna, que leva massas de jovens para um novo ambiente social, tornando-
-os os tipos de pessoas necessárias para essa mesma ordem social. De fato, isso muda o mundo!
Mesmo no século XXI, a pedagogia do letramento na abordagem didática continua forte em
algumas escolas, constituindo-se, ainda, em uma força cultural muito poderosa, que posiciona o
professor, firme e autoritariamente, no centro do processo "instrucional". Isso é destacado nos PCNs
como uma "pedagogia tradicional", na qual o professor é visto como figura central, cujas funções
são definidas como de vigiar e aconselhar os alunos, corrigir e ensinar a matéria. A esse respeito,
vale trazer aqui todo o trecho do documento, que detalha muito bem como se constitui essa
pedagogia:
A metodologia decorrente de tal concepção baseia-se na exposição oral dos conteúdos, numa sequência
predeterminada e fixa, independentemente do contexto escolar; enfatiza-se a necessidade de exercícios
repetidos para garantir a memorização dos conteúdos. A função primordial da escola, nesse modelo, é
transmitir conhecimentos disciplinares para a formação geral do aluno, formação esta que o levará, ao
inserir-se futuramente na sociedade, a optar por uma profissão valorizada. Os conteúdos do ensino
correspondem aos conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações passadas como verdades
acabadas, e, embora a escola vise à preparação para a vida, não busca estabelecer relação entre os conteúdos
que se ensinam e os interesses dos alunos, tampouco entre esses e os problemas reais que afetam a
sociedade. Na maioria das escolas essa prática pedagógica se caracteriza por sobrecarga de informações
que são veiculadas aos alunos, o que torna o processo de aquisição de conhecimento, para os alunos,
muitas vezes burocratizado e destituído de significação. No ensino dos conteúdos, o que orienta é a
organização lógica das disciplinas, o aprendizado moral, disciplinado e esforçado. Nesse modelo, a escola
se caracteriza pela postura conservadora. O professor é visto como a autoridade máxima, um organizador
dos conteúdos e estratégias de ensino e, portanto, o guia exclusivo do processo educativo. 8
* Na versão original do livro, os autores fazem um jogo de palavras neste trecho do parágrafo (possível em função das
rimas das palavras na língua inglesa), em que relacionam a orientação de ensino na abordagem didática aos termos
skill and drill, para se referirem a uma caricatura popular, e drill and kill, para atribuírem um tom mais depreciativo.
(N. da T.)
9 Kirschner; Sweller & Clark, 2006.
10 Idem, p. 83.
98 1 LETRAMENTOS
experiência, tendem a favorecer os estudantes cujas culturas familiares e sensibilidades estariam
mais próximas da cultura escolar. Por outro lado, para os alunos cujas experiências se distanciam
mais da cultura de letramento escolar, o ensino explícito pode, às vezes, ser mais eficaz. Some-se
a isso a questão da eficiência - às vezes, pode ser mais eficiente definir conceitos e teorias do que
fazer com que os alunos "reinventem a roda epistêmica", examinando a montanha de fatos e
redescobrindo procedimentos disciplinares. Finalmente, vale destacar que, enquanto os processos
de conhecimento de aprendizagem experiencial, que sustentam a abordagem autêntica, favorecem
o raciocínio indutivo, que vai do particular ao geral, a aprendizagem conceitual valoriza o raciocínio
dedutivo, que passa a atribuir sentido ao particular, porque o geral já faz sentido.
Outro processo de conhecimento que ainda precisamos mencionar em uma discussão sobre a
pedagogia do letramento na abordagem didática é o "experienciando o novo". Se, por um lado, a
abordagem didática negligencia os textos das vidas cotidianas dos estudantes (culturas familiares,
textos midiáticos ou cultura popular, por exemplo), isto é, não lida com o "experienciando o
conhecido': por outro, encoraja os estudantes a experienciar textos novos e muitas vezes desconhecidos,
considerados de alto valor literário, que lhes possibilitam acesso à cultura nacional.
Assim, apesar de todas as suas falhas, ainda há lugar em nossas pedagogias para algumas das
intravisões, dos métodos e dos tipos de atividades da abordagem didática. Todavia, defendemos
uma pedagogia mais equilibrada, que complemente o processo de conhecimento conceitua! com
os outros processbs de conhecimento (experiencial, analítico e aplicado).
Sumário
talll!liildo dolebamento Regras formais, uso correto, leitura para apreensão do significa-
do e do cânone literário.
Processos de conhecimento
2. Experienciando o novo
Localize uma fonte a partir da qual você pode ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia
do letramento na abordagem didática. Sua fonte pode ser um livro didático antigo ou uma entrevista
com um professor. Escreva sua própria análise das dimensões da abordagem didática sobre:
a. o conteúdo do conhecimento sobre letramento;
b. a organização do currículo de letramento;
3. Experienciando o conhecido
Descreva um momento de aprendizagem em que você experienciou a abordagem didática. Como
foi esse momento? De que forma foi um momento de aprendizagem eficaz ou ineficaz para você?
4. Aplicando apropriadamente
Neste e nos três capítulos seguintes, você se envolverá com a teoria e a prática das quatro
abordagens principais do letramento: didática, autêntica, funcional e crítica. Escolha um tópico
de letramento que possa ser ensinado em uma aula e que exemplifique a abordagem didática.
Elabore um discurso hipotético professor-aluno no decorrer dessa atividade.
s. Analisando criticamente
Debata a proposta de Bento de Núrsia (São Bento) sobre as condições ideais de aprendizagem
(veja: <http://newlearningonline.com/new-learning/ chapter-8/ st-benedict-on-the-teacher-
andthe-ensinado> ).
6. Analisando funcionalmente
Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a abordagem didática seria mais e menos
apropriada.
7. Analisando criticamente
Considere uma atividade de aplicação particularmente apropriada da abordagem didática (para
um determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
essa aplicação, cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja o didático.
100 1 LETRAMENTOS
Visão geral
As pedagogias do letramento na abordagem autêntica foram primeiramente formuladas como
contraponto direto à abordagem didática. Elas se tornaram bem conhecidas e influentes a partir
do começo do século XX, inicialmente por meio dos trabalhos de John Dewey, nos Estados Unidos,
e de Maria Montessori, na Itália. Quando relacionadas à leitura e à escrita, as pedagogias do
letramento na abordagem autêntica promovem uma espécie de "evolução natural", uma continuação
dos processos de aprendizagem da língua que se iniciaram com a aprendizagem da fala. Para tanto,
a abordagem autêntica recomenda imersão em experiências de leitura e escrita pessoalmente
significativas, com foco nos próprios processos de leitura e escrita, e não nas formalidades de regras
e adesão a convenções; trata-se, por isso, de uma abordagem centrada no aluno, que busca fornecer
espaço para sua autoexpressão. No que se refere à terminologia dos "processos de conhecimentos"
dos multiletramentos, as pedagogias do letramento na abordagem autêntica focalizam principalmente
os processos de conhecimentos experienciais.
Vitor é um aluno que acaba de ser matriculado em uma escola municipal que trabalha com a
pedagogia do letramento na abordagem autêntica. Ele foi transferido de uma escola~ outra cidade,
onde o ensino é pautado pela abordagem didática. Em seu primeiro dia de aula na turma da
professora Joana, Vitor acha tudo bem estranho. Parece que a aula da professora Joana acontece
em todo lugar. A primeira coisa que Vitor percebe é o arranjo das mesas, ordenadas em pequenos
grupos com os alunos de frente um para o outro. Isso é muito diferente da configuração da sala de
aula que havia frequentado na escola anterior.
- Bem-vindos a um novo ano escolar - diz a professora Joana alegremente. - Tenho certeza de
que será um ano maravilhoso!
Oconteúdo de letramento - Significados autênticos
1. Lili
Olhem para mim.
Eu me chamo Lili.
Eu comi muito doce
Vocês gostam de doce?
Eu gosto tanto de doce!
102 1 LETRAMENTOS
si. Além disso, a atividade explora a repetição de palavras que apresentam um fonema em comum:
/v/ ("Eva", "vê", "uva", "vovô", "ave", "voà', "Ivo" e "viu"). Assim, os alunos têm a chance de se
acostumarem com o som e a grafia das palavras que apresentam esse mesmo fonema, podendo,
então, adivinhá-las, já que, se conhecem algumas palavras na frase, mas não outras, provavelmente
poderão presumir as que não conhecem por meio do próprio padrão geral da sentença e por serem,
de alguma forma, palavras relacionadas a coisas comuns e familiares, isto é, ligadas às suas próprias
experiências de vida.
A Cartilha das mães, de onde a figura acima foi retirada, foi publicada ainda no final do século
XIX, período em que já se iniciavam no Brasil discussões acadêmicas sobre o método analítico.
Nessa cartilha, o foco do ensino da leitura eram as historietas, que resultavam da coordenação de
sentenças e de sua correlação com as imagens. Não havia atividades específicas que trabalhassem
a relação fonema-grafema, já que o ponto de partida era o significado de palavras inteiras, unidas
em sentenças simples. O objetivo, portanto, da atividade não era prover exercícios de memorização,
mas sim buscar a leitura autêntica para construir significados e, então, poder chegar às partes
menores constitutivas das palavras, e não o contrário.
Nesse sentido, diferentemente dos métodos sintéticos, que vão das "partes" para o "todo", os
métodos analíticos partem do "todo" para as "partes", pois representam uma "maneira de ensinar
introdução à leitura que começa com unidades completas de linguagem e mais adiante as divide
em palavras ou as f alavras em sons"; uma maneira de "ensinar introdução à leitura começando
1
por partes ou elementos das palavras, tais como letras, sons ou sílabas, para depois combiná-los
em palavras': 2
Os métodos analíticos contêm alguns insights importantes sobre a natureza da leitura. Isso
porque, quando lemos algo que possui significado, lemos palavras inteiras ou mesmo grupos de
palavras, não sons de letras. Se fôssemos pronunciar isoladamente cada letra enquanto lemos, o
processo de leitura seria dolorosamente lento, e o sentido, se não impossível, difícil de construir.
Nós nos tornamos leitores fluentes não porque lemos cada palavra laboriosamente, mas porque
seguimos o fluxo da linguagem, pulando os detalhes alfabéticos. É por isso que os professores no
passado costu~avam dizer aos jovens leitores que não mexessem os lábios durante a leitura silenciosa,
e é por isso que, quando revisamos o que escrevemos, costumamos ter dificuldade para perceber
os erros de digitação.
Um tipo de método analítico é o método "global". Ele destaca que o aluno aprende e desenvolve
sua linguagem em seu aspecto global, uma vez que a leitura seria uma atividade de interpretação
de ideias. Segundo Kenneth Goodman, em vez de "habilidades para atacar palavras, o programa
deve ser projetado para construir estratégias de compreensão. Crianças aprendendo a ler devem
sempre ver as palavras como partes de unidades maiores e significativas". 3 O método fónico,
de acordo com Goodman, é complicado demais para ser ensinado porque suas regras são muitas.
E, ainda que aprendamos as regras, muitas delas nunca se aplicam de forma con~ tente e orga-
nizada.
Para o autor, as regras e convenções que dizem respeito à relação fonema e grafema podem
ser mais bem aprendidas no próprio "curso de aprendizagem da leitura e da escrita, e não como
Consiste em sintetizar sequências, dados ou átomos campo- Parte das sequências completas, sendo a tarefa analisá-las e
nentes. O método de recitação do bê-á-bá encaixa-se nesse identificar os átomos.
tipo.
Mostra primeiro palavras ou frases e ensina a identificar
. Mostra primeiro as letras, ensina suas correspondências com nelas as unidades componentes, as letras e os sons que lhes
sons e depois a compor com elas as sílabas e palavras. correspondem.
Quadro 5.2: Adaptado de Mi riam Lemle. Guia teórico do a/fabetizador. São Paulo, Ática, 1998, pp. 42-43.
Hoje a turma de Vítor está aprendendo caligrafia. O que, no entanto, difere essa aula de uma
"tradicional" é que isso não é formalmente trabalhado. Os alunos da professora Joana não têm que
copiar várias vezes as letras do alfabeto, começando com as linhas de cima para baixo, em seus
cadernos, para, então, escrever repetidas vezes frases sem sentido.* Ao contrário, Joana tem muitas
coisas na sua sala de aula para que os alunos possam ver e sentir as letras, como caixas cheias de
letras do alfabeto, que podem ser usadas para formar palavras. Tem também fotos de animais, com
nomes que começam com uma letra em particular e que tomam forma através das próprias letras,
como, por exemplo, uma serpente na forma da letra "s".
- 1!1
Il
i
Todos os dias, a professa Joana concede em suas aulas um tempo para os alunos desenharem e
sempre lhes diz para usar palavras que identifiquem seus desenhos. Vítor acha que as identificações
de algumas crianças são muito difíceis de ler. Porém, de vez em quando, a professora Joana diz a
seus alunos:
- Sua letra está ótima!
Ou então:
- Que letra é essa aqui? Vamos fazer essa letra ainda mais bonita?
104 1 LETRAMENTOS
Processo de escrita: Pesquisas, rascunhos, conversas e publicação de textos
- Hoje, vamos escrever histórias e cada um vai escolher o seu próprio assunto. Eu quero que vocês
escrevam sobre coisas que realmente gostem, que realmente signifiquem algo para vocês - diz a
professora Joana.
Por mais inteligente que seja, Vitor acha difícil esse negócio de escrever sobre algo de que
realmente goste. Nunca fez isso na sua escola anterior. - Nossa, o que vou escrever? - ele pensa.
Depois de um pouco de agonia e de estímulos de alguns colegas, ele decide escrever sobre o
jogo Minecraft.
- Levaremos algumas semanas para escrever nossas histórias - diz a professora Joana. Isso porque
ela faz uso de uma abordagem que trabalha com um processo de escrita qenvolvendo pesquisas,
rascunhos, conversas e publicação de textos, seguindo alguns passos:
- Passo 1: vamos pensar nas nossas ideias, fazer ajgumas pesquisas, recolher algumas anotações;
passo 2: vamos escrever rascunhos; passo 3: vamos falar sobre nossos rascunhos; por fim, passo 4:
vamos publicar nosso trabalho finalizado em um pequeno livro que criaremos apenas para essas
histórias.
- Isso vai dar muito trabalho - Vitor pensa consigo mesmo. - Na escola que estudei antes, era
muito mais rápido do que isso para escrever uma história.
Vitor e seus colegas de turma, então, começam a trabalhar. A sala de aula se torna um espaço
de bastante conversa entre os alunos.
- O que você vai escrever? - Vítor pergunta ao colega do outro lado do pequeno grupo de mesas.
- Não sei - ele responde.
A professora Joana começa, então, a andar pela sala de aula para observar as crianças, que
iniciam seus projetos de escrita. Notando que um dos alunos (Jorge) está olhando pela janela, Joana
lhe pergunta:
- Então, o que você gostaria de escrever, Jorge? Me diga algo que o deixou surpreso ou feliz nos
últimos dias.
Ele pensa durante algum tempo e lhe responde:
- Meu time ganhou um jogo no domingo.
- Aí está, você pode escrever sobre a grande vitória de seu time - sugere a professora.
Enquanto isso, o texto de Vítor sobre o Minecraft começa a tomar forma. Ele diz:
- O Minecraft é muito legal porque pode construir um monte de lugar com blocos.
Em seguida, ele escreve algumas coisas sobre o jogo para poder se lembrar posteriormente: -
Joga sozinho, joga com outras pessoas com o avatar, pode faze blocos de madeira, mas tem que corta
árvore, de pedra, daí pega blocos do chão, pode faze feramentas de madeira, de ferro e de ouro.
Embora seu primeiro rascunho pareça bastante confuso, a professora Joana lhe diz:
.,;,/t
- Não se preocupe com isso.
Jorge parou novamente de escrever. Está preso em uma palavra. Então, pergunta:
- Como é que escreve "empurrao"?
- Não se preocupe com isso agora, Jorge. Apenas escreva a palavra como você acha que é. Nós
vamos depois ver como se escrevem as palavras e como a gente usa a pontuação direitinho - responde
Joana.
li
~ .
Veja: "Dwyer sobre escrita de conferência de proq:ssos".
Vitor, que ficou com o texto de Jorge, lê sobre os "impuroes" que o colega tomou durante a
partida de futebol. Não é uma história interessante para Vitor, porque ele não gosta muito de futebol.
Ele também não sabe a ortografia correta de "impuroes': mas, depois de pesquisar em um dicionário,
corrige a palavra e a adiciona à sua lista de ortografia pessoal.
Enquanto isso, a professora Joana anda pela sala, conversando com os alunos, um a um, sobre
a publicação do material.
- Vocês verificaram suas informações, a organização, a ortografia e a pontuação? - pergunta. -
Lembrem-se de que a melhor maneira de fazer isso é ler a sua história em voz alta para vocês mesmos
para ver se ela faz sentido para vocês. Usem também o dicionário para verificar qualquer palavra que
vocês não tenham certeza.
O barulho na sala de aula fica mais alto. Então, para a parte mais divertida do processo de escrita,
Vitor pensa: - Vamos fazer o livro!
Todo mundo transforma sua hístória em um pequeno livro, com uma capa de papelão bem
ilustrada e grampeada na borda. Foram algumas semanas de trabalho duro, mas valeu a pena, pensa
Vitor.
Leitura autodirigida
Todavia, na aula da professora Joana, existe um centro de leitura em um canto da sala, onde há
vários livros. Como primeira atividade de leitura do ano, a professora pede a cada aluno de cada
um dos grupos que escolha um livro. Depois disso, os alunos passam a receber um novo livro
sempre que tiverem concluído o livro anterior, dependendo de quanto tempo levaram para lê-lo.
- Vocês escolhem os livros. Eu dividi os livros em fácil, médio e difícil. Escolha o tipo de livro ou
o tipo de história que vocês gostariam de ler.
106 j LETRAMENTOS
De vez em quando, a professora Joana pede a um aluno que comente com o grupo, ou mesmo
com a turma toda, sobre um livro de que tenha gostado particularmente.
A professora Joana lida com uma abordagem de ensino que surgiu na virada do século XX que
chamamos de "pedagogia autêntica". Também é comumente chamada de "pedagogia progressistà',
mas escolhemos a palavra "autêntica" porque ela capta o sentido de naturalidade e relevância com
o qual esse tipo de perspectiva tentou se distinguir da abordagem didática (ver capítulo anterior).
John Dewey, nos Estados Unidos, foi um dos expoentes inovadores dessa nova filosofia do currículo
e, embora suas ideias possam ser tomadas como típicas de todo o movimento, ele certamente não
estava sozinho. Outros educadores, incluindo Maria Montessori na Itália, apresentavam uma crítica
amplamente similar à abordagem didática.
Pode-se dizer que as aulas de leitura e escrita da professora Joana são organizadas nesse espírito.
Em vez de conceitos abstratos e formais, em vez de uma disciplina para aprender as regras de uso
correto da língua, em vez de ter todos os alunos na mesma página ao mesmo tempo, o foco da
abordagem autêntica está nos significados autênticos, com a escolha de tópicos que realmente
interessam e envolvem os alunos, que são tratados como escritores, leitores e pensadores ativos,
criativos e livres.
Assim como a abordagem didática foi um produto de seu tempo e lugar, e, nesse sentido, um
produto cultural, a abordagem autêntica também o foi. Desde seu início, refletiu uma visão emergente
do tipo de educação apropriada para a sociedade moderna do século XX, em cujo coração estava
uma ideologia de mudança e progresso. O livro seminal de John Dewey A escola e a socíedade6 abre
com um capítulo intitulado ''A escola e o progresso social", baseado em uma palestra proferida por
Dewey em 1899. Um aspecto desse progresso era celebrar o domínio da natureza pela moderna
sociedade tecnológica:
[A terra] é o grande campo de cultivo, a grande mina, a grande fonte de calor luz e eletricidade. E a grande
paisagem onde alternam os oceanos, os rios, as montanhas e as planícies de que toda a nossa agricultura
e atividade mineira de exploração florestal, todas as nossas entidades de fabrico e distribuição, não
consistem senão em elementos e fatores parciais. É através de ocupações determinadas por este meio
ambiente que a humanidade tem feito os seus progressos históricos e políticos. É através dessas ocupações
que a interpretação intelectual e emocional da natureza tem vindo a ser desenvolvida. É através daquilo
que fazemos no mundo e com o mundo que lemos o seu significado e avaliamos o seu valor.7
•.;$
Essa visão de mundo teve implicações importantes para a pedagogia escolar. Isso significava
que havia um propósito cultural singular no currículo, que poderia ser atribuído a uma confiança
no progresso inevitável da sociedade industrial moderna. Por essa razão, Dewey centrou-se em
atividades práticas e experienciais, em vez da abordagem didática livresca. Contudo, como destaca
o próprio autor, na instituição escolar, essas atividades não devem se reduzir a meros "expedientes
à imposição de cima para baixo, opõem-se a expressão e o cultivo da individualidade; à disciplina externa,
opõe-se a atividade livre; a aprender por livros e professores, aprender por experiência; à aquisição por
exercício e treino de habilidades e técnicas isoladas, a sua aquisição como meios para atingir fins que
respondem a apelos diretos e vitais do aluno; à preparação para um futuro mais ou menos remoto, opõe-
-se aproveitar-se ao máximo das oportunidades do presente; a fins e conhecimentos estáticos, opõe-se a
tomada de contato com um mundo em mudança. 10
Dewey também estava preocupado com a ideia de que um currículo didático tradicional
fosse aquele que impusesse "padrões, matérias de estudo e métodos de adultos sobre os que
estão ainda crescendo lentamente para a maturidade". Segundo o autor, esse tipo de currículo
fora aplicado por pura necessidade, mas seu conteúdo, em sua natureza, estava além do alcance
da experiência que os jovens aprendizes possuíam, e, por ser-lhes imposto, inseria-se em uma
pedagogia que era nada menos do que brutal e que estava prestes a ser vista como sem sentido
pelos alunos.
Figura s.2: Frontispício de The Chi/d Centered Schoo/, texto escrito por colegas de John Dewey. À esquerda: .J
"Liberdade! Iniciativa do aluno! Atividade! Uma vida de feliz intimidade - esse é o ambiente da nova escola''.
Àdireita: "Olhos para frente! Braços cruzados! Sentem-se quietos! Prestem atenção!
Contexto de perguntas e respostas - esse era o regime do ouvir''.
8 Idem, p. 28.
9 Idem, ibidem.
10 Idem, 1976 [1938], pp. 6-7.
108 j LETRAMENTOS
Aorganização do currículo de letramento: Pedagogia de processos
e crescimento da linguagem natural
Aprendizagem natural
Dewey expressou sua visão alternativa através da metáfora do crescimento orgânico: "dê tempo
à natureza para trabalhar". Isso exigiria uma transformação dos currículos e das salas de aula e iria
à raiz da maneira como o conhecimento é apropriado, até mesmo a ponto de questionar o status
dos próprios fatos.
Em vez de ser um receptor passivo de fatos, na pedagogia de Dewey, a criança assumiria o papel
de questionadora e experimentadora, por meio, então, de uma abordagem mais autêntica, que se
propusesse a remediar três males que, na sua visão, marcariam um currículo na abordagem didática:
o primeiro seria a falta de conexão orgânica com a vida da criança. Sem tal conexão, o conhecimento
e a aprendizagem seriam puramente formais e simbólicos. Dewey não negava que o símbolo era
importante; para o autor, tratar-se-ia de um produto da realidade passada e uma ferramenta para
exploração. No entanto, era preciso que simbolizasse de forma ativa e significativa, constituindo-se,
desse modo, em algo significativo para o aprendiz. Fatos linguísticos da gramática, por exemplo,
teriam que ter um sigaificado e um propósito evidentes, caso contrário não permaneceriam mais
do que meros símbolos, mortos e estéreis.
O segundo mal seria o fato de que o ensino tradicional didático, segundo Dewey, não daria
motivos para os alunos se tornarem motivados. Um fim que é próprio da criança a leva a querer
possuir os meios para sua realização. Nesse sentido, o currículo seria mais bem-sucedido em
condições de equilíbrio de demanda mental e suprimento material.
Em terceiro lugar, ele argumentava que um método típico da abordagem didática, para simplificar
as coisas e torná-las lógicas, teria removido a natureza mais complexa e instigante da realidade,
uma vez que o conhecimento seria apresentado como memorização, não como racionalização.
Nesse sentido, De~ey apontava que "a criança não obtém a vantagem nem da formulação lógica
adulta, nem de suas próprias competências nativas de apreensão e reação". 11
Dewey achava que havia uma política na abordagem didática na qual ele não podia se inscrever,
pois, segundo o autor, constituiria um currículo promovedor das virtudes negativas da obediência
e da submissão. Era, então, mais "adequado a uma sociedade autocrática" do que a uma sociedade
na qual a responsabilidade pela própria conduta e pela conduta do governo recaísse sobre os
cidadãos. Isso teve implicações que influenciaram a micropolítica da sala de aula. Nesse sentido,
"a função do professor deve mudar de um cicerone e ditador para a de um observador e ajudante". 12
Contemporânea de Dewey, Maria Montessori (1870-1952) foi a primeira mulher médica da
Itália. Ela ajudou a estabelecer a Casa dei Bambini, em 1907, uma pré-escola em árd pobre de
Roma, projetada para receber crianças cujos pais trabalhavam fora. Montessori acreditava que o
principal papel dos educadores era ajudar as crianças a ensinarem a si próprias em um ambiente
livre, mas estruturado, e que a separação entre escola e casa (ou comunidade) deveria ser reduzida
o máximo possível.
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l!I
Veja: "Parâmetros Curriculares Montessorianos para as Classes do 1 º Segmento do Ensino
. ::. Fundamental - 6 a 12 anos':
Aprendendo a significar
A turma da professora Joana agora está trabalhando com a turma de Vitor um conjunto de
atividades integradas sobre ciências que ela planejou, sem usar um livro didático. Esse conjunto de
atividades prevê um período de quatro semanas para ser concluído, no qual serão muito trabalhadas
a leitura e a escrita. A combinação de atividades de leitura e escrita e de ciências dá aos alunos mais
tempo para realizar o trabalho.
- Agora, vamos estudar ecossistemas. Eu quero que vocês escolham um ecossistema para estudar
- floresta, mar, lago, deserto, o que lhes interessar. Na verdade, se vocês quiserem, podem fazer esse
trabalho em grupos, trabalhando em um ecossistema em que todos estejam interessados. Dessa forma,
vocês podem compartilhar recursos e ajudar uns aos outros com os relatórios que vão fazer sobre os
ecossistemas.
- Vocês vão precisar pegar livros da biblioteca, pesquisar na internet e anotar todas as fontes que
usarem. Vocês também vão precisar fazer um desenho que mostre como funciona seu ecossistema.
Então, vocês vão fazer um projeto descrevendo o funcionamento do ecossistema escolhido. Lembrem-
-se, é um sistema em que as coisas estão interligadas. É por isso que chamamos de ecossistema. Durante
todo o tempo de projeto, vocês vão ter que ler para escrever, escrevendo sobre o que estão lendo e lendo
os textos uns dos outros. E tudo isso para poder fazer um bom projeto de ciência!
- Nossa, é muito trabalho - pensa Vitor. - Como isso vai se juntar para a gente entender o que
realmente acontece em um lago? [ecossistema escolhido por Vitor]
No final do trabalho, contudo, ele se deu conta de que aprendera a pesquisar e a descobrir
informações. Ele também pôde, de fato, perceber, por meio das aulas da professora Joana, o quanto
um relatório científico era diferente do relato que havia escrito em aulas anteriores s3bre suas
experiências com o jogo Minecraft.
Além disso, gostou muito de apresentar seu projeto à turma na forma de um pôster, pois Joana
_havia colocado todos os cartazes na parede da sala de aula, para que os demais projetos concluídos
pudessem ser vistos e apresentados, mostrando que, apesar de descreverem ecossistemas distintos,
os modelos que os alunos haviam desenhado pareciam bastante semelhantes.
110 1 LETRAMENTOS
Por que aprender desse modo? Para responder a essa pergunta, recorremos ao termo cunhado
por Kenneth Goodman: "método global",* que defende que o texto permanece significativo e
intencional apenas quando é considerado em seu nível mais amplo (global). A esse respeito,
Goodman usa como analogia o modo como as crianças aprendem a língua oral: um processo de
desenvolvimento na interação significativa de textos orais entre elas e os adultos. Segundo o autor,
como as línguas escritas e orais apresentam todas as mesmas características básicas, as crianças
devem aprender a usar a língua escrita através de um ensino que trabalhe de maneira diretamente
análoga ao modo "natural" como elas aprendem a língua oral. Para Goodman, imersão e muita
leitura e escrita ativas, que estabeleçam relação com os interesses, a experiência e as intenções da
criança, são as melhores maneiras de aprender. Nesse sentido, a aprendizagem deve ser centrada
na relevância, no propósito, no respeito, no significado e no poder, com o aluno estando no controle
dos significados, sentindo algum grau de poder como construtor de conhecimento, vendo-se
envolvido em um trabalho com propósito definido e sendo respeitado por sua contribuição. 14
Um currículo voltado ao método global, como consequência, baseia-se em uma gama de "recursos
autênticos': na experiência do aluno e em suas intenções de comunicação, em vez de fundamentar-se
em fatos formais linguísticos a serem ingeridos. É assim que toda uma abordagem relacionada ao
método global pode ser relevante, na medida em que incentiva o aluno a usar a língua para seus
próprios propósitos, uma vez que esse método não se centra na língua in abstracto, mas no significado
que a criança realmente <:Ttler comunicar, respeitando sua individualidade e suas diferentes experiências
de vida. Assim, ao dar aos alunos um senso de controle e apropriação de sua própria língua, em
termos políticos mais amplos, dá-se também uma noção de seu poder potencial como atores sociais.
* O termo original, em inglês, é whole language, que se constitui em um método analítico que, em português, foi tradu-
zido como "método global". (N. da T.)
14 Goodman, 2005.
Donald Graves e Donald Murray são grandes referências acerca da noção de "escrita como
processo" que, em contraste com as tradições mais antigas de ensino de escrita, argumenta Murray,
mantém o interesse e a intenção do estudante em seu núcleo. No entanto, ainda segundo esse mesmo
autor, as atribuições do professor inibem o que os alunos têm a dizer.
Nessa perspectiva da escrita como processo, a professora Joana definiu um parâmetro amplo na
turma de Vitor, por meio do conceito de ciência como "ecossistemà: Além disso, ela também
propiciou a seus alunos meios através dos quais
o aluno encontra seu próprio assunto. Não é tarefa do professor legislar a verdade do aluno. É da
responsabilidade do estudante explorar o seu próprio mundo com a sua própria língua, para descobrir o
seu próprio significado. O professor apoia, mas não direciona essa expedição à própria verdade do aluno. ' 5
A esse respeito, Graves destaca que as crianças devem escolher seu próprio tópico para ganhar
um senso de propriedade. A partir desse ponto de partida, "o processo de escrita tem uma força
motriz chamada voz", com o papel do professor não sendo o de transmitir conhecimento, mas o
de aguardar para ajudar quando for necessário, enquanto a criança luta pelo controle. Como
resultado, os tópicos e informações iniciados pelos alunos são primários, não são convenções. Nesse
sentido, a escrita na sala de aula é concebida não como uma "questão de aprender e aplicar
corretamente as convenções, mas como uma série de etapas (um processo, aberto a qualquer
conteúdo): pré-escrita, rascunho, conversa, edição, publicação". 16
112 \ LETRAMENTOS
- Eu acho que o garoto da história foi o verdadeiro herói - opina Vincent. - Ele viu que havia
uma pessoa com problemas e chamou as salva-vidas.
Quem é o herói da história? a) o menino; b) as salva-vidas; c) as pessoas da ambulância; d) não
há heróis, pois todos estavam fazendo apenas o seu próprio trabalho. Todas as quatro respostas
retas.
e tipo de pergunta é bastante comum nas aulas da professora Joana, ela certamente
uma resposta certa ou errada. Em vez disso, pergunta:
- O que você entendeu da história?
É claro que há perguntas, cujas respostas seriam consideradas certas ou erradas, como, por
exemplo: Em que dia isso aconteceu? a) sábado; b) domingo; c) quarta-feira; d) o autor não informa
o dia da semana. Nesse caso, bastaria ao leitor procurar no texto o dia da semana correto. No
entanto, Vítor ficou tão envolvido com o fluxo da história que não prestou atenção no dia em que
ela ocorreu. Se a professora Joana fizesse essa pergunt;it, talvez fosse possível responder corretamente,
mas a informação de fato, não era importante para a narrativa. Em vez disso, Vitor - isso sim é
realmente bem mais interessante - se engaja em uma boa discussão com sua colega sobre o que
faz um herói.
No final da conversa, embora Vitor e a colega tenham chegado a conclusões diferentes sobre a
história, os dois se sentem bem, pois a interpretação de cada um foi valorizada e respeitada. A
leitura é uma atividcroe não apenas divertida, mas, nesse caso, se torna um meio através do qual os
alunos ressignificam suas identidades, em vez de dizerem um para o outro que estão certos ou
errados.
O trecho acima levanta um ponto importante sobre a leitura. Diferentes leitores leem coisas
diferentes em uma mesma história, dependendo de seus interesses e experiências. A leitura não
é apenas uma questão do que o autor diz, é tamb ém uma questão de interpretação. Um leitor,
quando lê bem, não lê a verdade no texto, mas sim seus próprios significados. Nesse sentido, a
leitura constitui um processo de construção de significado ativo, não um canal neutro para
comunicar fatos compreensíveis. Por isso, testes de leitura com respostas de múltipla escolha
parecem bastanre limitados para avaliar certos tipos de conhecimento relacionados à compreensão
leitora.
Gerando motivação
Há uma "economia moral" na pedagogia do letramento na abordagem autêntica, para usar uma
frase cunhada pelo historiador E. Thompson. º Por "economia moral': entendemos as normas sociais
2
que governam as relações interpessoais - no nosso caso, a relação entre professores e aprendizes,
à medida que estes aprendem a ler e escrever.
114 i LETRAMENTOS
Na pedagogia do letramento na abordagem autêntica, os interesses e motivações do aprendiz
são o foco da leitura e da escrita, e não as expectativas de leituras fixas e a compreensão de supostos
fatos no texto. Nesse sentido, os professores se tornam fontes profissionais autônomas de aprendizagem,
em vez de intermediários em uma relação rigidamente governada entre conteúdo curricular, livro
didático e avaliações formais. Assim, os docentes constituem não figuras de autoridade que
transmitem conteúdos inegociáveis, mas responsáveis por construir um ambiente mais sintonizado
com os processos de aprendizagem e, mais do que tudo, responsáveis pela criação de um ambiente
acolhedor que contribui para a afirmação e a formação do próprio sujeito aprendiz.
Ao mesmo tempo, a abordagem autêntica abre linhas horizontais de comunicação entre os
alunos; sua visão é direcionada uns para os outros, e não apenas para o professor e sua lousa na
frente da sala de aula. Com isso, os aprendizes conversam muito entre si, não somente quando o
professor pede que eles levantem as mãos para falar e não apenas um de cada vez, como normalmente
acontece na abordagem didática. Os alunos aprernk m trabalhando juntos, com a leitura e a escrita
se tornando atividades sociáveis.
Também é possível - até mesmo desejável em alguns momentos - criar instrução individualizada,
apropriada às necessidades dos alunos em diferentes estágios de desenvolvimento de sua aprendizagem,
para que possam, assim, trabalhar no seu próprio ritmo, tanto individualmente quanto em grupos,
nem todos tendo que estar na mesma página do livro didático ao mesmo tempo.
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Veja: "Blackburn e Powell sobre a instrução individualizadà'.
Contudo, a pedagogia do letramento na abordagem autêntica não deixa de ter suas limitações,
que inovações pedagógicas posteriores, como as abordagens funcional e crítica do letramento,
tentam, de alguma forma, compensar. A primeira limitação é que os pressupostos culturais subjacentes
à abordagem autêntica são frequentemente menos explícitos do que parecem. No caso de Dewey,
uma visão particular do progresso motivou seus pontos de vista sobre a aprendizagem da língua e
as práticas de leitura e escrita. Nessa visão, a diferença cultural era algo que as escolas precisavam
apagar ou, pelo menos, escamotear. Nesse sentido, Dewey destaca:
Em um país como o nosso, existe uma variedade de raças, afiliações religiosas e divisões econômicas.
Dentro da cidade moderna, apesar de sua unidade política nominal, há provavelmente muito mais
diversidade em termos de comunidades, costumes, tradições, aspirações e formas de governo ou controle
do que existia em um continente inteiro em uma época anterior. 21
Assim, como uma espécie de "soluçãó' necessária para essa situação, haveria "a força assimilativa
da escola pública americana". Somente através da educação pública, argumentava Dewey, "as
forças centrífugas criadas pela justaposição de diferentes grupos dentro de uma rtfesma unidade
política podem ser contrariadas". 22 Por essa perspectiva, o currículo em si seria um instrumento
para a criação de uma nação moderna, culturalmente uniforme. A "disciplina comum busca
acostumar tudo a uma unidade de perspectiva sobre um horizonte mais amplo do que é visível
para os membros de qualquer grupo enquanto está isolado". 23 Assim, é possível notar que os
Havia algumas razões sociais bastante pragmáticas pelas quais o currículo didático não era
mais considerado apropriado na educação do século XX, posto que o mundo se tornara
tremendamente ampliado e complicado, não apenas em termos de transporte e comunicações,
mas em virtude das contínuas descobertas científicas. Era um mundo onde as coisas estavam
mudando o tempo todo, o que tornaria os fatos complicados contraproducentes. Isso só serviu
para destacar ainda mais a crescente irrelevância da abordagem didática - a "desesperança do
ensino com listas de fatos". 24
Ao situar a aprendizagem da leitura e da escrita no contexto dessas grandes mudanças históricas,
a pedagogia do letramento na abordagem autêntica representou uma transformação em relação
ao que Cook-Gumperz chama de preocupação do século XIX com o "letramento como uma
ferramenta de esta~ idade social e uma ênfase emergente do século XX no letramento como
uma tecnologia fundamental sobre a qual sociedades modernas dinâmicas e em constante mudança
são construídas". 25
Nesse contexto, o currículo centrado no aluno se tornou, assim, um dos principais dispositivos
da pedagogia do letramento na abordagem autêntica. No entanto, uma das coisas que poderíamos
constatar a partir das aulas da professora Joana seria que, uma vez retirado o livro didático,
ficaria menos claro saber aonde o currículo estaria indo. Além disso, o princípio de aprendizagem
em sala de aula tenderia, nesse caso, a mudar, passando da lógica do "professor que diz coisas
aos alunos", para os alunos que tentam determinar respostas "corretas" às perguntas, adivinhando
as respostas que estão "na cabeça do professor". Nesse sentido, o jogo da aprendizagem continuaria
sendo um jogó para acertar as coisas, com a diferença de que, em vez de fornecer a resposta
certa, o professor estaria tentando levar os alunos à resposta correta por meio de perguntas.
116 1 LETRAMENTOS
(
participação e tia atividade de aprendizagem fundamentada. No caso da aprendizagem infantil, a
perspectiva construtivista é norteada pelo desenvolvimento natural e por meio de alguns estágios,
envolvendo os processos psicológicos de assimilação de significados novos nas estruturas cognitivas
existentes ou de acomodação desses significados que exigem o ajuste das estruturas cognitivas
existentes. 26
Nas salas de aula construtivistas, os aprendizes geralmente têm a oportunidade de desempenhar
um papel ativo na determinação da área em foco, formulando perguntas e selecionando atividades
nas quais desenvolvem sua aprendizagem por meio de:
• Desafios intelectuais em que têm que "descobrir as coisas por si mesmos", usando informações
gerais ou se valendo das experiências da vida cotidiana.
• Um ambiente de imersão, com uma certa orientação do professor. Os alunos são incentivados
a interagir uns com os outros e a participar de conversas colaborativas.
• "Comunidade de práticà: que se constitui por meio de confiança e de uma atmosfera de segurança
estabelecida pelos envolvidos.
• Um conteúdo culturalmente apropriado e sensível aos interesses, necessidades e origens dos
alunos. A identidade é o ponto de partida para a autoconstrução de significados.
• Contexto intrinsecamente motivador, que envolve os interesses do aluno, isto é, que faz sentido
pessoal para ele para que possa ser um construtor ativo de significados.
• Perguntas de orientação diagnósticas em que os alunos são apoiados à autoexplicação, proveniente
de sua compreensão e de seus conhecimentos prévios como ponto de partida para a aprendizagem.
Os alunos assumem, assim, um grau de propriedade e responsabilidade em seu processo de
aprendizado.
Sumário
Processos de conhecimento
Experienciando o novo
2. Localize uma fonte a partir da qual você possa ter uma noção concreta da dinâmica da pedagogia
do letramento na abordagem autêntica. Sua fonte pode ser um currículo sobre o método global
ou a escrita como processo. Pode ser ainda uma entrevista com um professor que acredita ou
lida com a abordagem autêntica. Escreva sua própria análise das dimensões da pedagogia do
letramento na a~ordagem autêntica em torno de:
a) conteúdo do conhecimento do letramento;
b) organização do currículo de letramento;
e) aprendizes praticando letramento;
d) relações sociais da aprendizagem de letramento.
Experienciando o conhecido
3. Descreva um momento de aprendizagem no qual você experimentou a pedagogia do letramento
na abordagem autêntica. Como foi esse momento? De que forma foi um momento de aprendizagem
eficaz ou ineficaz? -4
Aplicando apropriadamente
4. Ao longo dos cinco capítulos desta seção do livro, você se envolveu com teoria e prática das
principais abordagens do letramento. Escolha um tema sobre letramento que possa ser ensinado
por meio de uma atividade que exemplifique a pedagogia do letramento na abordagem autêntica.
Escreva uma conversa hipotética entre professor e aluno no decorrer dessa atividade.
118 1 LETRAMENTOS
Conceitualizando com teoria
5. Escreva um relato da teoria da aprendizagem que subjaz ao método global ou da escrita como
processo. Escolha um teórico como seu ponto de referência, como Ken Goodman, Frank Smith
ou Donald Graves.
Analisando criticamente
6. Debata a proposta de Jean-Jacques Rousseau sobre as condições ideais de aprendizagem (ver
<http:/ /newlearningonline.com/new-learning/ chapter-2/ jeanjacques-rousseau-on-emiles-
education> ).
Analisando funcionalmente
7. Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia do letramento na abordagem
autêntica seria mais e menos apropriada.
Analisando criticamente
8. Considere uma aplicação particularmente apropriada da abordagem autêntica (para um
determinado assunto ou contexto de aprendizagem) e desenvolva um plano de aula ilustrando
essa aplicação cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja autêntico.
Visão geral
Pedagogias do letramento na abordagem funcional têm como foco a aprendizagem dos alunos
para ler e compor os tipos de textos que lhes permitem ser bem-sucedidos na escola e participar
da sociedade. Seu objeitivo é que os aprendizes entendam as razões pelas quais os textos existem e
como isso afeta a forma como são construídos. Ao contrário das pedagogias didáticas, que "quebram"
a língua em partes, a fim de trabalhar as regras formais, a abordagem funcional começa com a
pergunta: "Quais são os propósitos do texto?': E, em seguida, a pergunta: "Como o texto é estruturado
para atender a esses propósitos?". A leitura e a escrita são atividades intimamente ligadas entre si,
na medida em que os alunos exploram as maneiras pelas quais diferentes tipos de textos trabalham
para construir significados diferentes no mundo.
Essa abordagem de letramento enfoca, portanto, os processos de conhecimento "analisando" e
"aplicando". Nesse sentido, a abordagem funcional fornece subsídios aos alunos para que descubram
como os textos sãq organizados no sentido de alcançar diferentes propósitos e para aprender como
usar esses textos em contextos da vida real a fim de lidar com significados socialmente poderosos.
Visando ilustrar como a pedagogia do letramento na abordagem funcional opera, este capítulo
explora um exemplo que trabalha com a noção de "gêneros textuais".
Gêneros Propósitos
Relatório científico Documento formal no qual constam procedimentos de experiências e métodos relacionados a
pesquisas.
Quadro 6.1: Gêneros distintos, propósitos distintos.
- Hoje, turma, vamos começar a trabalhar com um dos tipos de textos escritos mais importantes
que usamos na escola, além de ser usado também em muitas situações em nossas vidas: o "relatório".
Para que usamos relatórios? - pergunta a professora Danusa.
Márcia se lembra que um dia sua mãe chegou do trabalho trazendo um relatório . Ela também
ouviu falar sobre relatórios do governo em notícias no telejornal e sobre cientistas que escreveram
relatórios descrevendo suas descobertas. Mas até aquele momento nunca havia lido um relatório
na escola.
- A maioria dos relatórios fornece informações sobre o mundo e eles podem ser usados para
documentar e armazenar informações sobre diferentes assuntos - explica a professora. E continua:
- Os relatórios classificam e descrevem coisas vivas, como plantas e animais, e coisas não vivas,
como vulcões, tsunamis e estrelas. Eles também classificam e descrevem questões que afetam várias
coisas em nossas vidas, como a forma como as pessoas organizam o governo, a escola, as tecnologias
~ aapo: Assunto ou tópico que se e por aí vai. Alguns relatórios são escritos para especialistas que trabalham em
" desde assuntos cotidianos e do um campo especial, alguns para iniciantes, que estão apenas começando a aprender
senso comu ma tópicos altamente
sobre alguma coisa, e outros para pessoas com interesses e hobbies especiais. Agora,
ecializados, que podem envolver
wbulário técnico e convenções vamos escrever nosso próprio relatório de informações sobre mamíferos marinhos,
especiais de escritit.: que eu quero que todos nós façamos.
Os estágios de um gênero
Gênero Estágios
Relatório sobre mamíferos marinhos • Classificação geral
• Descrição - aparência
• Descrição - comportamentos
• Descrição - hábitos
- Para mostrar como funcionam os relatórios, vamos primeiro trabalhar juntos um relatório sobre
baleias. Vamos escrever o texto juntos, a turma inteira. Vocês vão juntar as ideias para cada estágio
que está na lousa e depois me dizer o que escrever em cada um, e eu vou anotar tu-db no quadro.
- Mas, primeiro, vou dar a vocês alguns relatórios para ler sobre todos os tipos de baleias, incluindo
as baleias-minke. Além disso, vejam quais informações vocês podem encontrar na biblioteca ou na
internet. Ao ler\f!sses materiais, vejam cuidadosamente o tipo de informação que foi selecionada e
como ela é organizada para cada relatório.
Depois de atribuir um tempo para leitura e pesquisa, a professora Danusa reúne a turma para
a construção conjunta do relatório.
- Bem, o que sabemos agora sobre as baleias-minke? Como é a aparência delas ... ?
Depois de várias perguntas, a professora Danusa expõe para os alunos um relatório consultado
do Guia ilustrado de Mamíferos Marinhos do Brasil. Em seguida, pergunta:
1
- Vocês podem ver como é a estrutura desse relatório? Começamos com o nome Relatório: Um gênero textual que
científico e os nomes populares da baleia, distribuição, habitat, as características fornece informação.
gerais e como reconhecer esse animal.
124 j LETRAMENTOS
Baleia-minke
Nome de espécie: Ba/aenoptera acutorostrata Lacépêde, 1B04.
Distribuição:
Habitat:
baleia-anã, ballena minke enana, rmcual menor, minke whale,
piked whale, dwarf minke whale.
pode ocormr em todos os oceanos.
costeiro e oceânico.
e parágrafos.
Essa abordagem funcional toma como base a linguística sistêmico-funcional, de Michael Halliday. 2
O que é comum àqueles que trabalham com essa abordagem é a ideia de que o gênero constitui
uma categoria que descreve a relação entre o propósito social do texto e a estrutura da língua. Nesse
sentido, ao se engajarem em práticas de letramento, os estudantes precisam analisar criticamente
os diferentes propósitos sociais que informam os padrões de regularidade na língua; em outras
palavras, os "ondes" e os "porquês" das convenções textuais. 3
IJ
l!I
,
.
Veja: "Trecho do livro Introdução à gramática sistémico-funcional em língua portuguesa, de
Cristiane Fuzer e Sara Regina Scotta Cabral".
126 i LETRAMENTOS
Aorganização do currículo de letramento: Lendo modelos de gênero
e escrevendo dentro de estruturas genéricas
Localizando a abordagem funcional
Aideia de "gênero"
Para a pedagogia do letramento na abordagem funcional, o "gênero" constitui o elo para conectar
as formas relativamente estáveis de tipos textuais que variam de acordo com suas intenções sociais.
Nesse sentido, textos são diferentes porque fazem coisas diferentes; por isso, qualquer pedagogia
de letramento deve se preocupar não apenas com as formalidades relativas a como os textos
funcionam, mas também com a realidade social viva dos textos em uso, uma vez que o funcionamento
de um texto está relacionado às razões de sua existência (para que ele serve?). Assim, gêneros são
processos sociais 6 que se materializam como textos, uniformizados de maneiras razoavelmente
previsíveis, segundo padrões de interação social em uma determinada cultura.
Por essa perspectiva, gêneros são intervenções textuais na sociedade, pois não são simplesmente
criados por indivíduos no momento de sua enunciação; representam padrões familiares de significado,
criados socialmente para propósitos comunicativos específicos. Além disso, diferentes gêneros
podem dar a seus usuários acesso a certos domínios de ação e interação social, espaços particulares
de influência e poder social. Tomemos, como exemplo, a "língua" do advogado, do jogador de
xadrez ou do cientista. Sabemos que esses são domínios sociais dos quais muitas pessoas estão
excluídas, e esse padrão de exclusão social é marcado pela língua usada em cada ambiente. Aprender
novos gêneros e expandir a gama de gêneros que podemos usar nos dá o poder de escolha e o
potencial linguístico de lidar com novos domínios de atividade e poder social. Não se trata de
substituir a língua e os gêneros que aprendemos nas comunidades às quais pertencemos; trata-se,
pois, de uma questão de expandir nossas capacidades e, assim, nossas oportunidades sociais, para
que possamos escolher dentre uma gama mais ampla de ação social, por meio de mais opções de
gêneros textuais.
No mundo fora da escola, a imersão na prática social de um gênero às vezes é suficiente para
"entender sua línguà', por assim dizer, embora haja obviamente outras barreiras institucionais que
ainda podem tornar isso impossível, ou quase impossível. Isso não implica afirmar que os usuários
da língua precisem estar significativamente conscientes do "como" a atividade funciona do ponto
de vista linguístico, mesmo que estejam amplamente cientes do "porquê" social de um determinado
discurso em uso. Nesse sentido, não é necessário saber sobre a língua para poder usá-la, isto é,
conhecer suas características linguísticas para poder usar socialmente o texto e perceber os seus
potenciais "porquês':
No entanto, se, por um lado, a escola é o mais significativo de todos os locais de potencial
mobilidade social, por outro, o papel social (e as limitações inerentes) da escoi'a:rização
institucionalizada afasta a língua dessa condição usual. Em termos de linguagem, a escolarização
tem o potencial de preparar os alunos para usar uma variedade de gêneros com uma ampla gama
de possíveis aplicações sociais. No entanto, isso não pode ser feito apenas por imersão, tampouco
ser considerado como um uso eficiente de recursos.
128 1 LETRAMENTOS
Nessa concepção, a escola é um lugar bastante peculiar, porque sua missão é peculiar, assim
como o são as formas discursivas ou as formas como os textos falam aos alunos, já que a escola é,
ao mesmo tempo, um refletor do mundo exterior e discursivamente bastante diferente dele. Como
precisa concentrar o mundo externo nas generalizações que compõem o conhecimento escolar, a
escola é epistemológica (a forma como ela conhece) e discursivamente (a forma como comunica)
diferente da maior parte da vida cotidiana no mundo externo. Por isso, na escola, faz sentido, por
exemplo, usar conceitos generalizados e abstrações que podem ser transferidos para muitos contextos,
em vez de apenas "pegar as coisas" por imersão.
Língua portuguesa Narrar Conta uma história, com uma orientação para personagens e
cenários, uma complicação que é o ponto da história e uma re-
solução que encerra a história.
7 Disponível em <http://www.canalciencia.ibict.br/pesquisa/0296_lmpacto_do_aquecimento_global_sobre_a_flores-
ta_amazonica.html>.
130 1 LETRAMENTOS
floresta de absorver o C0 lançado na atmosfera pelas atividades humanas. Então, o texto está
2
mostrando que pode contribuir para melhorar a região amazônica em relação ao aquecimento global.
- Por último, vocês também notaram que esse tipo de texto é bem formal. Quer dizer, tem muitas
palavras técnicas e também não usamos a primeira pessoa do singular ("eu") . Por quê? Porque em
um texto científico não costumamos colocar nossas opiniões pessoais, subjetivas, pois é fundamental
usar conceitos científicos objetivos.
Oque é a pesquisa?
As rápidas mudanças do clima do planeta, causadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis e pelo desmatamento,
podem representar uma séria ameaça às florestas da Bacia Amazônica. Apesar de o impacto do aquecimento global sobre a flores-
ta tropical ser desconhecido, já é possível prever temperaturas mais elevadas e secas prolongadas para a região, que poderão
acarretar a diminuição da biomassa florestal.
A falta de conhecimento sobre os efeitos do aumento de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera pode ser superada por meio de
pesquisas a longo prazo que façam avaliações, locais e globais, da vulnerabilidade dos ecossistemas e que proponham intervenções
as quais garantam o futuro da floresta tropical. Afinal, a Floresta Amazônica sobreviverá às secas prolongadas que virão com o
aquecimento global?
Para encontrar essa resposta, David Montenegro Lapola, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lidera uma equipe de
pesquisadores que desenvolverá o projeto AmazonFACE para entender como o aumento do CO2 atmosférico afeta a Floresta
Amazônica, a biodiversidade que ela abriga e os serviços ambientais que ela provê. Os pesquisadores acreditam que uma maior
quantidade de CO2 na atmosfera pode beneficiar a floresta porque as árvores intensificam a fotossíntese. Além disso, quanto mais
CO2 na atmosfera, menos os estômatos precisam abrir para capturá-lo durante a fotossíntese. Com menos estômatos abertos, a
planta perde menos água por transpiração. A perda de biomassa decorrente das secas prolongadas seria compensada pela inten-
sificação de fotossíntese e, consequentemente, maior crescimento das árvores e menor perda de água pelas folhas. O CO2, em alta
concentração, seria como um fertilizante para a floresta. Se comprovada essa hipótese, os pesquisadores terão uma visão mais
otimista dos futuros cenários de mudanças climáticas, sempre catastróficos. Todavia, um resultado contrário indicará a susceptibi-
lidade da floresta frente ao aumento de temperatura e à maior variação anual de chuvas, eventos climáticos já previstos por muitos
pesquisadores.
A implantação da primeira área de estudo será em 2017. Chamado pelos pesquisadores de experimento piloto, ele será importante
para avaliar as dificuldades envolvidas na construção das torres, no transporte e no fornecimento de grande quantidade de CO2 lí-
quido em uma área relativamente afastada de centros urbanos. Outra questão importante que merecerá a atenção dos pesquisa-
dores é a altura das árvores, que poderá dificultar o acesso para a realização das medições que precisam ser feitas bem próximas
Pesquisas semelhantes ao AmazonFACE, que determinaram a resposta de florestas ao aumento de CO2 atmosférico, já foram rea-
lizadas em regiões temperadas do planeta. Contudo, será a primeira vez que esse tipo de pesquisa avaliará a resposta de florestas
tropicais.
Se o efeito de fertilização da floresta em decorrência da aspersão de CO2 não for significativo como se espera, provavelmente as
florestas tropicais e sua biodiversidade estarão, de fato, vulneráveis ao aquecimento global. Se a savanização ocorrer em larga es-
cala na Amazônia, trará implicações ambientais e econômicas importantes para a região que sofrerá com a mudança no ciclo hi-
drológ ico, regional e global, menor produtividade agrícola e menor produção de energia hidroelétrica.
Os resultados alcançados com o projeto poderão subsidiar a elaboração de políticas de desenvolvimento para a região amazônica
em relação ao aquecimento glo~t. uma vez que revelarão a capacidade da floresta de absorver o CO2 lançado na atmosfera pelas
atividades humanas. São também relevantes para a definição de ações de conservação e uso sustentável da biodiversidade frente
aos cenários futuros de mudanças climáticas, podendo impulsionar o Brasil ao desenvolvimento de pesquisas ecológico-ambientais
mais complexas e abrangentes.
132 1 LETRAMENTOS
ra orientar oleitor. Qualquer parte em que o escritor tenta destacar o significado dos eventos em
estágio específico é uma avaliação. Na parte final da história, há algum tipo de estágio de resolução,
com os problemas que foram estabelecidos na parte anterior do texto sendo resolvidos para melhor
ou para pior. Então, aqui estão os estágios de uma narrativa: introdução, que é a apresentação da
,ação que vai ser desenvolvida. Nessa parte inicial, há uma ambientação do local, do tempo, dos
personagens e do que está acontecendo; em seguida vem a complicação, isto é, o desenvolvimento da
ação do conto. Nessa parte, ocorre a maioria dos diálogos dos personagens e é apresentado um conflito;
vem, então, o clímax, que é o momento culminante da narrativa, aquele de maior tensão, no qual o
conflito atinge seu ponto máximo; e finalmente o desfecho, que apresenta uma solução para o conflito,
muitas vezes surpreendente.
Depois de apresentar as características do gênero, Danusa solicita que cada aluno produza um
conto. Ao longo da elaboração de seus textos, ela os auxilia, retomando e exemplificando as partes
e características do conto, buscando, assim, instalar os aJldaimes necessários para que seus aprendizes
construàm os textos de forma independente.
conto maravilhoso;
fábula;
NARRAR lenda;
Cultura literária ficcional narrativa de aventura;
Mimesis da ação através da criação de narrativa de ficção científica;
intriga. narrativa de enigma;
novela fantástica;
conto parodiado.
texto de opinião;
diálogo argumentativo;
ARGUMENTAR carta do leitor;
Discussão de problemas sociais
carta de reclamação;
controversos
Sustentação, refutação e negociação de deliberação informal;
tomadas de posição. debate regrado;
discurso de defesa (adv.);
discurso de acusação (adv.).
seminário;
conferência;
artigo ou verbete de enciclopédia;
EXPOR
entrevista de especialista;
Transmissão e construção de saberes tomada de notas;
Apresentação textual de diferentes formas
resumo de textos"expositivos" ou explica-
dos saberes.
tivos;
relatório científico;
relato de experiência científica.
instruções de montagem;
receita;
DESCREVER AÇÕES
regulamento;
1nstruções e prescrições
regras de jogo;
Regulação mútua de comportamentos.
instruções de uso;
instruções.
Quadro 6.6: Agrupamento de gêneros.'
Vimos as fases de aprendizagem de leiturà e escrita na prática, a partir dos exemplos apresentados
neste capítulo, divididas em três: a primeira fase é a de modelagem, na qual os alunos são expostos
·a vários textos que exemplificam o gênero em questão. Se, por exemplo, a disciplina escolar é
ciências e o assunto gira em torno de golfinhos, os alunos podem ler textos sobre mamíferos
9 Idem, p. 121.
134 1 LETRAMENTOS
marinhos de ~árias fontes, que, em geral, se constituem em relatórios. Nesse caso, o professor
poderia fomentar uma discussão sobre para que servem tais textos (suas funções), como as
informações nos relatórios são organizadas (sua estrutura esquemática) e quais os aspectos relativos
ao modo como os textos comunicam (palavras e sua sequência).
A segunda fase envolve a negociação conjunta de um texto elaborado pela turma. Os
primeiros elementos nessa etapa são o estudo do campo (conhecimento especializado) e o
contexto (no qual os eventos estão acontecendo) do gênero: os alunos observam, pesquisam,
entrevistam, discutem, fazem anotações, desenham diagramas e assim por diante. Segue-se,
então, a construção conjunta de um texto de aula, ou seja, os alunos participam do processo
de produção textual de um relatório, orientados pelo professor. Este, por sua vez, atua como
um escriba, na medida em que os alunos contribuem para um texto construído em conjunto,
que se aproxima da estrutura do gênero relatório e emprega as escolhas e sequências de palavras-
-chave características dele.
Na terceira e última fase, os alunos constroem seus próprios relatórios de forma independente,
preparando-se para mais trabalho sobre um determinado assunto, verificando seus esforços
individuais de escrita com os colegas e com o
professor, reavaliando criticamente seus textos
à medida que são editados para publicação e,
por fim, talvez, exQiorando criativamente o
gênero para representar outros campos. O ciclo
pode, então, ser repetido, trabalhando aspectos
progressivamente mais sofisticados do gênero
1:elatório.
136 1 LETRAMENTOS
Sumário
As relações sociais da aprendizagem de letramento Aprendendo formas textuais poderosas para o sucesso escolar I
e o acesso social.
Processos de conhecimento
funcional: termos importantes na análise dos modos através dos quais a comunicação e a língua
funcionam e as formas como são aprendidas. Mantenha e estenda essa wiki enquanto você
trabalha com este e com os capítulos restantes deste livro.
Aplicando apropriadamente
2. Escolha um gênero textual que possa ser ensinado em uma atividade escolar. Elabore uma aula
que exeJ?plifique o ciclo de ensino-aprendizagem do gênero baseado na pedagogia do letramento
na abordagem funcional. Crie um discurso hipotético professor-aluno na fase de construção
conjunta dessa lição.
Analisando funcionalmente 4
4 . Discuta as condições de aprendizagem sob as quais a pedagogia do letramento na abordagem
funcional seria mais e menos apropriada.
Aplicando criticamente
5. Considere uma aplicação particularmente apropriada da pedagogia do letramento na abordagem
funcional (para um assunto específico ou contexto de aprendizagem que atenda às necessidades
de um determinado grupo de alunos) e desenvolva um plano de aula ilustrando essa aplicação
cujo foco principal (embora não necessariamente exclusivo) seja o funcional.