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169 - o Inventário - Arquivo Único
169 - o Inventário - Arquivo Único
O INVENTÁRIO
Capítulo I
VELÓRIO
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Victorino Aguiar
consideração a meu pai, que tivesse vindo para se despedir dele. Mas
me enganei, outra vez. Ponha-se para fora.
- Vim porque tinha carinho por seu Francisco e por dona Sara. Cuidei
dela até a hora da morte, e de seu Francisco até quatro meses antes de
ele morrer. O tempo que convivi com dona Sara e com seu Francisco foi
suficiente para saber da vida de dores e sofrimento que eles
suportaram para criar os filhos e manter unido o lar, que os dois tanto
prezavam. Aprendi o suficiente sobre seu Francisco para admirá-lo. Ele
não merecia estar cercado de cobras. Ao contrário de você, que se diz
filho, eu o tenho em alta conta. Se ele não tivesse morrido, com certeza
ele daria ao menino que você chamou de bastardo o mesmo carinho
que ele deu aos demais filhos.
- Este é um local sagrado, que está sendo profanado por uma mulher
leviana, uma profissional incompetente, e que foi justamente demitida
por isto. Este não é o local indicado para a gravação de cenas
planejadas e ensaiadas para a promoção de vingança, com o único
propósito de semear discórdia. Apaga esta gravação. Este é um local
privado, você não teve autorização para gravar nada aqui.
- O celular é meu, não apago nada.
- Tudo que você está fazendo é apenas para se vingar de mim, porque a
demiti.
- Você me demitiu em obediência a esta jararaca que se aproveitou da
sua fraqueza para lhe dar o golpe do baú. Foi ela que envenenou você
contra mim, com medo de perder a sua aba.
- Demiti você porque você é uma péssima profissional. Você tinha mais
interesse em mim do que no seu trabalho. Meu pai era o que menos
importava para você.
- Isto foi o que a jararaca lhe disse. Ela já envenenou você. Ela tem cara
de santinha, mas é uma cobra, como vocês todos. Você vai descobrir
quem é ela. Vocês não enganam mais ninguém, todo mundo já sabe do
envolvimento de vocês. Vocês se merecem. O dedo dela está metido
em tudo que aconteceu e que acontece na casa. Talvez até em
atividades no mínimo suspeitas. Quem sabe, até criminosas.
- Você não é só incompetente. É também mentirosa e invejosa.
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Victorino Aguiar
- Eu trabalhei mais de oito anos na sua casa. Você levou mais de oito
anos para descobrir isto. Mas você não descobriu nada, você foi
envenenado pela jararaca da sua namorada.
- Só lhe dei o emprego porque tive pena de você, fiquei comovido com
a sua situação, porque você praticamente me implorou, dizendo que
estava desempregada, tinha um filho pequeno para criar e não sabia o
que fazer. Você é uma golpista! Vigarista! Uma pilantra!
Mais uma encrenca pela frente. Agora é uma mulher que toma
a iniciativa:
- Vera, você não se envergonha do que está fazendo? É justo você
provocar essa confusão toda, um problemão desses, para quem lhe deu
o sustento por tanto tempo? Por que vocês estão fazendo isso? Isto é
cruel, uma traição.
- Regina, não me venha com esta conversa de boa moça, a mim você
não engana. Você é que devia ter vergonha do que já fez e do que
continua fazendo. Eu sei de tudo a seu respeito. A morte daquela
menina foi muito suspeita. Francisca me tinha como uma irmã. Eu sei
muito mais a seu respeito do que você imagina.
- É muito triste. Saber que trabalhamos tanto tempo juntas... Se prestar
a um papel desse... Vocês planejaram isto tudo lá fora. Está na cara.
Estava tudo combinado.
- Eu não tenho do que me envergonhar. Estou fazendo o que é certo. Só
estou gravando a violência que está sendo cometida contra uma
mulher viúva, indefesa, sozinha no mundo, fragilizada, mãe de um filho
menor, órfão, que está sendo impedida de dar o último adeus ao
companheiro. Não é nenhum crime querer se despedir do companheiro
e do pai do filho dela.
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Victorino Aguiar
A mulher, que agora sabemos se chamar Vera, retira-se
calmamente do salão, sob os olhares atônitos dos presentes.
Não é difícil imaginar o climão. Vai demorar para o ambiente
voltar a ser condizente com um velório. Talvez nem volte mais, porque
duas horas é um tempo curto para isto. Talvez a adrenalina tenha sido
demais para os presentes. Com a saída de cena da viúva e do órfão,
ainda não reconhecidos pelos familiares como tais, tudo já poderia ter
voltado à normalidade, porque, apesar do inusitado da cena, estes
tipos de ocorrência não são tão raros assim. O problema foi as
aprendizes de repórteres cinematográficas terem se tornado também
personagens e darem sequência a dois novos atos, que, como o
primeiro, não estavam no roteiro. Estes acréscimos tiraram mais ainda
do foco a finalidade da cerimônia. Vai ser difícil, restabelecer o clima de
velório no salão. Se pelo menos se conseguir manter as aparências,
teremos conseguido bastante. O silêncio também já será uma grande
coisa. Mas nada é impossível. Deixemos que o tempo venha a devolver
pelo menos a aparência de normalidade ao evento.
Francisco era bom pai, bom marido, bom patrão; cumpria com
regularidade e esmero suas obrigações sociais, religiosas e políticas.
Nisto, Rosa tinha razão. Mas talvez ele não tivesse muitos amigos. Digo
melhor: nisto, ela não tinha razão. Mesmo uma pessoa com as
qualidades que ele tinha não consegue amealhar muitos amigos. Todos
nós sabemos que a maior parte das relações sociais se estabelece em
função de interesses dos mais variados tipos, às vezes, até
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Victorino Aguiar
inconfessáveis. Será verdade que os amigos podem ser contados nos
dedos das mãos? Se for assim, como a maioria de nós tem duas mãos e
cada uma delas tem cinco dedos, nenhum de nós terá mais que dez
amigos. Confesso meu pessimismo. Dez dedos é um número muito alto.
Duas mãos - um exagero. Uma, já é suficiente, mesmo com um ou dois
dedos a menos.
De qualquer modo, o velório de Francisco conta com a
presença de muitas pessoas. Certamente não são todas amigas dele, se
forem verdadeiras minhas considerações iniciais. Quanto à outra
afirmação de Rosa, de que Francisco não tinha inimigos, nisto, ela
também não tem razão. Com certeza, isto não é verdade, e pode ser
facilmente demonstrado. Por melhor que seja uma pessoa, sempre terá
muitos inimigos. Cristo, tido como modelo de amor e sabedoria, teve
inimigos suficientes para levá-lo a uma injusta condenação à tortura e à
morte da forma mais degradante na época. E não consta que o velório
dele tenha sido muito concorrido, tanto no que tange ao número de
amigos quanto ao número de inimigos presentes. Aliás, diga-se, de
passagem, que não é da natureza dos velórios contarem com a
presença de inimigos do falecido. Por isto, não devemos nos basear no
número de presentes a um velório para deduzir que o finado tem
muitos amigos ou nenhum inimigo.
Corrigidas estas pequenas imprecisões, e já sabedores de que
havia muita gente presente à cerimônia - raríssimos amigos e nenhum
inimigo -, voltemos ao velório, propriamente dito.
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Victorino Aguiar
O fato é que a morte, mesmo esperada, mesmo iminente,
como a de Francisco, sempre traz com ela dor e sofrimento. Até para
aqueles que não tenham uma proximidade maior com o finado, ela traz
algum desconforto, porque faz lembrar a precariedade e a
transitoriedade do corpo físico. Quando falo que a morte traz dor e
sofrimento, falo para os que ficam; porque, para aqueles que são
libertados por ela, nada se pode dizer; quem vai saber se encontrarão
ou não outros tipos de dor e sofrimento depois da libertação, já
supondo que a morte seja mesmo uma libertação para quem morre.
Libertação, aliás, que, se existir, as pessoas tidas como normais não
desejam. Para os que ficaram, portanto, as dificuldades rotineiras que a
vida impõe aos sobreviventes permanecerão, como é de se esperar.
Mas a morte não traz apenas dor e sofrimento para os que
ficam, principalmente para os que tenham com o finado algum vínculo
sanguíneo mais próximo. Para estes, ela sempre traz também algum
conforto, apesar de umas poucas disputas que costumam se formar por
conta da natureza humana, geneticamente predisposta à competição
por qualquer motivo. Tudo tem seu lado bom, a morte também tem
seu lado bom. O lado bom dela é que Francisco deixou um considerável
patrimônio em imóveis residenciais, lojas e ações. Isto, sem contar as
aplicações em poupança e os valores disponíveis em conta corrente.
Com a morte do pai, Fábio, o curador, que era solteiro, morava
com o pai desde sempre e era também o filho mais velho, por ter se
mostrado um curador dedicado e competente, à altura da obrigação
recebida, passará a ser o inventariante. Nada mais justo que seja
promovido a essa condição, e com isto já concordaram informalmente
os irmãos. De qualquer modo, tudo será confirmado formalmente
depois do enterro, numa reunião que será feita entre os herdeiros -
Fábio, Fernando e Fabrício. Deixo de fora o caçula, Francisco, ou Júnior,
e Rosa, por razões mais que óbvias.
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Victorino Aguiar
inadiáveis na terrinha. Veio apenas para o enterro do pai, já tem a
passagem de volta comprada e o embarque confirmado para o final
daquela noite. Ele é detentor de um alto cargo na estrutura de governo
da União Europeia. Mas é claro que estas considerações e
preocupações não dominam as almas dos familiares do finado.
Voltemos para o velório e recuemos um pouco mais no tempo, para
tornar ainda mais amplo e mais claro o contexto em que demos início à
narrativa. Vejamos a quantas andava a história, pouco antes dos
incidentes que abriram nossa narrativa. Melhor é começá-la desde o
início do velório.
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Victorino Aguiar
Esta cena confirmou na Senhora as suspeitas que ela alimentara
desde que Rosa chegara ao velório. Sim, ela não se sentara ao lado da
criança sem nenhum propósito. Assim que os olhos dela bateram no
menino, ela teve uma espécie de déjà-vu. De início, ela julgou que
estivesse passando por uma experiência desse tipo, ainda que não
conhecesse o termo e sua definição. Tudo no menino lhe parecia
familiar - o rosto, o modo como caminhava, como olhava. Ela quis vê-lo
mais detidamente, de perto. Queria colher alguma coisa da conversa
que teria com a mãe e o menino.
Bom saber que ela não é uma pessoa qualquer; ela faz parte da
família, é prima do falecido, e conhece bastante a história dele, porque
compartilhou com ele toda a infância e um bom período da juventude
dela. Mesmo depois de adulta, mantinha com ele e a família os laços
criados pelo parentesco, e frequentava com alguma regularidade a casa
dele. Sabe que ele adoeceu há mais de sete anos, praticamente após
enterrar a mulher, depois de cuidar dela por mais de dois anos, desde
que ela adoeceu e ficou acamada, vitimada por um câncer.
Intimamente, ela desconfia que a morte da esposa concorreu para
agravar os problemas de saúde dele, que, por fim, redundaram no AVC
que o pôs fora de combate. Ao iniciar a conversa com o menino, ela já
tem um propósito em mente, que é justamente sondar quem é a
mulher, que mais parece um peixinho fora do aquário, para
compreender e esclarecer as impressões que o menino provocara nela.
Ela nem de longe adivinha as consequências daquele rápido bate-papo.
Quando ela se senta no banco e pode olhá-lo demoradamente, com
mais atenção, todo o passado dela volta-lhe à memória como um flash.
Ela tem certeza de que já conhece aquele menino, numa versão
genética mais antiga. O menino é a cara de Francisco quando este tinha
a mesma idade que o menino tem hoje. Depois que o menino diz a ela a
idade dele, e mais o nome, que a mãe tenta esconder; depois da saída
intempestiva e estabanada desta do velório, a prima não tem como não
trazer à memória as cenas da infância vivida em comum com Francisco.
O menino não herdou apenas o nome de Francisco, ele herdou também
a aparência, os traços fisionômicos do primo, e, para a prima, tudo leva
a crer que ele herdará também uma parte do espólio do falecido.
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Agora, o menino não lhe parece mais familiar; agora, ele é familiar, ele
é da família. Ela já pode dizer, sem sombra de dúvida, que o menino é
uma cópia do primo, que é filho dele e primo neto dela. Quando volta a
circular pelo ambiente, ela não consegue resistir à tentação de
comentar com a melhor amiga que lhe faz companhia no velório,
acerca do que ela acabara de confirmar. Ela não quer parecer
fofoqueira, nem tem a intenção de agir como uma repórter
sensacionalista, mesmo porque já está certa de que muito cedo toda a
verdade virá a ser descoberta. Ela quer apenas se aliviar do peso
daquela certeza. É apenas por isto que divide com a amiga do peito o
que acabou de confirmar, tendo o cuidado de pedir a esta que não
passe o segredo adiante. Mas estas coisas não funcionam assim. Quem
conheça o mínimo da natureza humana, e em particular da natureza
feminina, pode deduzir de pronto as funestas consequências dessa
confidência.
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- Rosa, você tem as cópias das conversas com ele, no zap, em outros
aplicativos. Tem uma porção de fotos de seu Francisco, inclusive de
quando ele ainda era criança. Essas fotos que você nos mostrou
comprovam que este menino é uma cópia, quase um clone de seu
Francisco. Esta parada está ganha. Você vai lá, nós vamos estar lá
também, para te apoiar, gravaremos tudo nos nossos celulares para
você usar como prova, se precisar. Se precisar, também
testemunharemos a seu favor na Justiça, sabemos de muita coisa que
pode até complicar a vida, não apenas de Fábio, mas, também, da
jararaca e dos irmãos. De repente, eles podem até perder o direito à
herança. Eu sei de muito mais coisas, que ainda não contei para
ninguém. Muitas coisas... Nem para Amanda eu contei tudo. Não estou
de brincadeira. São coisas graves, caso de polícia.
Epa! Parece que Vera tem mesmo uma carta na manga. Ela está
muito segura do que diz. O bichinho da curiosidade mordeu Amanda:
- Miga, que coisas são estas que você escondeu até de mim?
- Não escondi. Só quis proteger a mim e a você. Tive medo de que no
futuro pudesse estourar alguma coisa, e a gente viesse a pagar o pato.
- Miga, que coisas são essas?
- Quer mesmo saber, agora?
- Claro que quero. Quer me matar de curiosidade?
- Se segura, aí, na cadeira, então.
- Ai, meu Deus, conta logo.
- Eu gravei uma conversa de Fábio com Regina, em que eles combinam
apressar a morte de seu Francisco. Até em eutanásia, eles falam. Fábio
chega a dizer que os irmãos concordam com a eutanásia. Fábio diz que
o seu Francisco é um problema para todos. Que tem de ser descartado,
que ele não tem mais respeito por ele nem pela mãe. Nem irmã, ele
tem mais.
- Meu Deus. Então eles mataram o seu Francisco, são assassinos.
- Aumentaram as doses, diminuíram as doses, como exatamente eles
fizeram não sei. Até em desligar os equipamentos, ou não usá-los,
Regina falou. Fábio tinha medo de que o Doutor Arnaldo dificultasse as
coisas, mas Regina garantiu que ele não atrapalharia. Sugeriu a Fábio
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Victorino Aguiar
que desse um dinheirinho a mais para o doutor. O tempo que levou
desde essa gravação até a morte do seu Francisco é quase uma prova
de que eles fizeram o que tinham decidido.
- Mostra, aí, a gravação.
- Claro que não estou com a gravação aqui, eu apaguei tudo no celular.
- Puxa! Por que fez isto?
- Porque tive medo de que alguém pudesse ter acesso à gravação, que
eu perdesse o aparelho, ou fosse roubada. Passei a gravação para um
pendrive, coloquei uma senha, e joguei o arquivo da gravação fora.
- Ah, pensei que tivesse jogado tudo fora.
- Por nada deste mundo, eu faria uma coisa dessa. Eu tenho a gravação
em casa, posso dar a gravação para Rosa, posso prestar o testemunho
pessoalmente. Mas vamos parar esta conversa e agir. É importante
Rosa voltar para o velório e ficar até o final da cerimônia.
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Victorino Aguiar
documentos não o digam expressamente, eles também garantem aos
dois o direito de frequentar o velório e acompanhar o féretro.
Com um arsenal deste porte em mãos, mais o apoio recém-
oferecido por Amanda e Vera, Rosa decide retornar ao velório e nele
permanecer até que o enterro se consume. Pretende acompanhar o
amado até à sepultura. Amanda e Vera estarão lá, lhe darão o suporte
moral. Já vimos que as três combinaram de retornar ao velório
separadas. Vera será a primeira a chegar. Minutos depois, Amanda
chegará. Quando faltar pouco para o enterro, Rosa chegará com o
menino. E é assim, que as coisas acontecem. Conforme o combinado,
Vera retorna para o velório. Pouco tempo depois, chega Amanda.
Trocam os cumprimentos, se beijam, e se colocam numa posição
estratégica, que facilite a gravação de qualquer coisa que possa vir a ser
usada posteriormente por Rosa.
Pouco tempo depois, contrariando as expectativas de todos,
Rosa e o filho retornam da rua. De imediato, um burburinho toma
conta do ambiente. Ela logo percebe que o clima é totalmente
diferente, para pior. Todos a olham acintosamente, de cima a baixo,
como se a estivessem investigando. O menino também é alvo destes
olhares. Mas ela não se intimida. Volta a ocupar o mesmo banco em
que estava sentada antes de ir lanchar com o filho. Tão logo ela se
senta, Fábio se dirige a ela:
- Peço que a Senhora e o menino se retirem, por favor. A Senhora não
foi convidada a comparecer a esta cerimônia, não faz parte da família, e
está provocando mal-estar nos demais presentes.
- Não temos nenhum interesse em provocar mal-estar. Não viemos aqui
com este propósito. Estamos aqui para nos despedir de alguém que nos
é querido.
- Pouco importa. Peço que se retire, por favor. A família não a conhece,
nunca soube que meu pai era seu amigo.
- Peço que tenha pelo menos um pouco de boa-vontade e de
consideração, que aceite combinarmos um encontro, num local de sua
escolha, para podermos conversar com calma e de modo civilizado, a
fim de encontrarmos a melhor solução para o problema que o destino
nos impôs. Tenho documentos que o convencerão da veracidade, da
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sinceridade e da honestidade da minha parte. Documentos produzidos
por seu pai, que comprovam a seriedade do relacionamento que eu
mantinha com ele.
- Nada temos a conversar, nem hoje, nem no futuro. Para todos os
efeitos, a Senhora é uma intrusa, uma estranha.
Ele não sabe, mas Rosa agora está fortalecida, não é mais um
bicho acuado. Ela conta com o suporte das técnicas de enfermagem. Ela
aumenta o tom da voz, para o igualar ao tom usado por Fábio:
- Ao contrário do que o Senhor diz, o Senhor já me conhece; já sabe que
eu não sou uma estranha, principalmente para seu pai. É por ele e por
meu filho que estou aqui. Eu e meu filho temos o direito e o dever de
dar a ele o nosso último adeus. Este menino é meu filho, é filho de
Francisco; como os demais irmãos, ou tidos como irmãos, ele tem o
direito de ver o pai pela última vez.
As últimas palavras ditas por ela já estão numa altura suficiente
para serem ouvidas em todo o salão. Ela se levanta com determinação
e, ao invés de abandonar o recinto, puxa o menino para perto do
caixão. Já inteiramente tomada pela emoção, ela aponta para o esquife
e, aos prantos, diz ao filho:
- Este homem era seu pai, um homem íntegro, um bom pai, um bom
marido, um homem de bem. Só tinha amigos, não tinha inimigos.
Espero que você puxe a ele; se você puxar a ele, será um grande
homem.
- Já chega. Basta! Se a Senhora não se retirar por bem, usarei de outros
meios. Não posso aceitar que a Senhora manche a memória de meu
pai, justamente na hora em que damos a ele nosso último adeus. A
Senhora é uma golpista. Teve a coragem de registrar uma criança com o
nome do meu pai. Tentou se aproveitar da condição dele, que não
tinha como se defender desta calúnia, para forjar direitos que a lei não
lhe concede. Ponha-se para fora!
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Capítulo II
Mulheres
Aos 30 anos, ele ainda não tinha se dado conta dessas coisas.
Talvez nunca viesse a se dar conta delas. Foi com esta idade que ele
conheceu Iara. Paixão fulminante, fogo morro acima. Na certidão, Iara
tinha 15 anos, mas seu corpo não era condizente com sua idade, nem
com seu comportamento. Ela era dona de um corpão capaz de entortar
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os pescoços de homens e mulheres, capaz de espalhar sofrimentos por
onde passasse. Na ausência de Francisco, todos se referiam a ela como
o pitéu, aí incluídos até os poucos amigos dele. Os feromônios da
menina eram mais potentes do que uma bomba nuclear de mil
megatons. Ambiciosa, sensual, destemida, desprendida, era bem o
retrato de uma jovem dos tempos modernos, que rompe com todos os
valores e tradições que se interponham entre ela e seus desejos e
prazeres. Desassistida de todo pela família, vivia largada no mundo,
totalmente livre.
O segundo casamento
Sara entregou o que prometeu. Era uma boa esposa, excelente
mãe, uma ótima madrasta. Ao enteado que ela abraçara como filho,
vieram se juntar mais dois meninos; pela ordem, Fernando e Fabrício.
Aos três, ela dispensava os mesmos cuidados, o mesmo afeto, mesmo a
Fábio, filho do primeiro casamento de Francisco. Durante todos aqueles
anos, ela nunca deixou de ser uma boa esposa e uma ótima mãe e, mais
ainda, uma excelente madrasta. Aliás, pouca gente percebia a condição
dela de madrasta, tal era o carinho que ela dispensava ao enteado.
Francisco era um homem feliz e realizado, porém ainda queria
mais um filho. Talvez sonhasse em ser pai de uma menina, por ver nisso
a chance de poder se exceder nos mimos, que só uma menina, na visão
ainda machista dele, poderia receber. Era isso, queria uma princesinha,
um bibelô. Seria bem-vinda um pouco mais de energia feminina no
ambiente familiar. Sara não partilhava esse sonho com o marido.
Queria ser uma mãe de qualidade em tempo integral. Ela se sentia
plenamente capaz de cumprir as obrigações maternais em relação aos
três, mas temia que mais um filho pudesse exigir dela além do que ela
poderia dar. Apesar de não apresentar nenhum problema sério de
saúde, Sara era vítima de frequentes enxaquecas, e volta e meia era
visitada por fortes gripes. Quanto ao resto, sua saúde podia ser
considerada normal, exceto pelas complicações habituais da natureza
feminina. Mesmo assim, Sara não excluía definitivamente a
possibilidade de ter mais um filho. Sempre deixava uma ponta de
esperança no coração do marido. Quem sabe, depois que as crianças
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Victorino Aguiar
crescessem um pouco, ela não mudaria de ideia e realizaria mais esse
sonho dele?
Quanto a Sara, não houve melhora. O quadro era cada vez pior.
Fábio e o pai já não davam conta de tudo, até mesmo porque não
dispunham de formação na área. Já não era possível a eles dispensar
todos os cuidados de que ela necessitava. Ela já necessitava de
cuidados de um profissional da saúde. Fábio cria então uma pequena
firma de prestação de serviços médicos domiciliares, uma MEI –
microempresa individual -, para eliminar a atuação de intermediários,
para ele uma dificuldade a mais. Ele mesmo administraria a contratação
e controle do profissional de saúde. Para isso, contou com o suporte do
advogado amigo do pai, Dr. Laércio, e do médico da mãe, Dr. Arnaldo,
que lhe passaram todas as coordenadas. Dr. Arnaldo fez mais que isso,
indicou a Fábio uma técnica de enfermagem de confiança dele,
Amanda. Bom que fosse assim, da confiança do médico, porque a
técnica estaria subordinada às determinações que Dr. Arnaldo
passasse. A parte burocrática da abertura da MEI era bem simplificada.
Esta medida seria também benéfica para o pai, que já mostrava sinais
de profundo abatimento. Justificados, por sinal, porque o estado de
saúde de Sara se complicava cada vez mais.
Além das dificuldades com a doença, Sara era atormentada por
outros males e preocupações. Os temores que as palavras de Iara
despertaram nela, quando da última visita desta a Fábio, se
amplificaram. Ela temia que a praga de Iara viesse a se tornar realidade.
Por isto, mais adiante, Sara advertirá ao marido a respeito desta praga
que Iara lançara sobre eles. Ela temia que ele viesse a ser alvo de algum
golpe parecido com o que Iara lhe aplicara. Não era bom facilitar.
Alguma mulher poderia ver nele um alvo fácil para este tipo de golpe.
Ela repete para o marido as palavras de Iara, que dissera a ela, com
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Victorino Aguiar
todas as letras, que outra mulher apareceria para lhe tomar o lugar.
Aquilo não era só uma praga. Todo homem corre o risco de ser
enfeitiçado por uma mulher. Sara quer que ele prometa a ela que
tomará cuidado, para não ser enganado; lembra a ele que as mulheres
exercem um poder muito grande sobre os homens. Ela compreende
que não é mais a mesma mulher, que já não tem saúde, que não pode
mais dar a ele o prazer que ele merece, que ele precisa; que não pode
mais cumprir as obrigações conjugais dela e satisfazer as necessidades
sexuais dele. Mas implora que ele coloque os filhos acima de tudo,
porque os filhos são os maiores tesouros que uma pessoa pode possuir.
Ela compreenderá se ele buscar na rua o que lhe falta em casa, e que
ela não pode mais lhe dar. Mas implora que dessa relação não surja um
filho. Na idade em que ele e os filhos estão, um filho a mais, e ainda por
cima fora do casamento, colocaria em risco a estabilidade da família.
A mulher tinha sabedoria. Ela foi piorando cada dia mais, mal
conseguia falar, se cansava muito rapidamente. Só à base de muitos
remédios, ela conseguia se libertar das dores e dos desconfortos que a
doença lhe infligia. Até aí, os dois ainda podiam conversar um pouco
algumas vezes durante o dia, e obter dessas conversas algum prazer.
Mas mesmo esses poucos momentos de prazer acabariam por ser
negados a eles. Logo os remédios se revelaram impotentes para
permitir e manter esta rotina. Privado dos únicos momentos de alegria
de que antes podia dispor com a mulher, agravou-se em Francisco a
tristeza que já se instalara nele quando a esposa adoecera. Agora
completamente abatido, ele entrou em depressão e terminou por
também fazer uso de medicamentos controlados. A esposa dormia
praticamente o tempo todo e definhava cada vez mais. O médico
recomendou que ele buscasse vida social fora de casa, que se
distraísse, espairecesse. Outra coisa queria dizer-lhe diretamente, mas
usou de subterfúgios. Todos têm necessidade de convivência social;
quando se é homem, então, essas necessidades se tornam maiores e
mais intensas. Os olhos de Francisco murcharam um pouco e ficaram
ligeiramente úmidos. Ele entendeu as palavras do médico. E, com mais
tristeza, concordou com elas. No fim das contas, ele era homem, tinha
saúde, energia, sentia desejo. Necessitava de alguma atividade sexual.
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A própria mulher já havia conversado abertamente com ele sobre isso.
Ele estava liberado. Frequentar prostíbulos não lhe parecia uma boa
ideia. Sentia repulsa por estes ambientes. E nem tinha necessidade de
frequentá-los, afinal, era relativamente novo, um homem atraente,
com uma situação financeira invejável. Achou melhor frequentar com
mais regularidade ambientes condizentes com o nível social dele, como
cinemas, teatros, livrarias. Aos poucos, foi criando o hábito de almoçar
na rua. Era mais uma maneira de se obrigar a ver o mundo lá fora.
Quase todos os dias da semana, almoçava na praça de alimentação do
Shopping Iguatemi, na Tijuca. Isto era uma forma de ele arejar um
pouco a mente
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Victorino Aguiar
Rosa não esconde de Francisco o sonho dela de ser mãe. Depois
que ela o conheceu, este sonho ficou ainda mais forte. Ela não vê a
hora de ser mãe. Francisco é o pai com que ela tanto sonha para o filho
que ela anseia ter. Não é pequeno o sacrifício que ela terá de suportar
para adiar a realização deste sonho. Promete tomar as precauções
necessárias para evitar a gravidez. Assume que está há muito tempo
sem atividade sexual. Há anos que não toma a pílula, mas reitera que
fará tudo para que não venham a ser surpreendidos por uma gravidez.
As amigas da escola, sabedoras do envolvimento dela com um
homem casado, não se cansam de dizer a ela que os homens repetem
sempre a mesma ladainha. É bom que ela se prepare, porque ela pode
vir a ser enrolada por ele. O que lhe aconselham as amigas é que ela
cuide logo de engravidar. Esta é a única chance que ela tem de criar um
envolvimento duradouro e seguro com ele, porque, mesmo que a
esposa esteja entrevada, a morte dela pode demorar um mês, um ano,
uma década, isto é, a morte da esposa não tem hora nem dia
marcados. Além disso, o cara tem problema de saúde, é depressivo,
toma remédio controlado. Rosa não vai ficar com as carnes duras para
o resto da vida, o tempo passa rápido. A velhice está logo ali.
Rosa a tudo ouve com atenção, concorda em boa parte com os
pitacos das amigas; mas ela já conhece um pouco da natureza humana,
em especial, da natureza feminina. Ela já incorporou uma expressão
muito comum nas bocas das mulheres: mulher não é amiga de mulher.
É com base nessa expressão que ela decide esperar as coisas se
resolverem para engravidar. Quem esperou estes anos todos pode
esperar mais um ou dois. Tem de ficar atenta e fazer as coisas certas,
para não pôr tudo a perder. Engravidar contra a vontade dele, a esta
altura do campeonato, pode equivaler a dar um tiro no pé. Sabe que
ele está no meio de uma tormenta, desorientado. Ele sofre por ver a
filha Francisca tão fragilizada emocionalmente. Sente remorsos por não
poder mais dispensar a ela os carinhos e os mimos a que ela estava
acostumada. Vive atormentado pelo remorso e pela culpa. Mesmo
sabendo que a esposa o libera para suprir as carências afetivas e
sexuais fora de casa, no fundo, ele sente remorso.
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Sempre frutifica um pouco, uma semente lançada ao vento. A
mais forte e a que frutifica mais e melhor, no entanto, é aquela que cai
do galho e brota ao lado da árvore de onde ela caiu. Retratemos com
fidelidade os pensamentos de Rosa. Bem lá do fundo da mente dela,
uma vez ou outra, emerge um pensamento intrometido e indesejado
que lhe provoca um sentimento de insegurança e perturbação. Ela
acredita em Francisco, quanto à esposa, sente sinceridade e
honestidade nas palavras dele, mas, no fim das contas, ele é homem. É
bem possível que ele venha a se envolver com outra mulher e que esta
consiga prendê-lo para o resto da vida. Ela, no entanto, apesar disso
tudo, decide esperar as coisas se resolverem para engravidar. Quem
esperou estes anos todos pode esperar mais um ou dois.
Mas as coisas seguiriam outro rumo. O cérebro tem seus
mistérios. Nem sempre tomamos conhecimento dos pensamentos
intrometidos e indesejados que ele produz. Muitas vezes, eles atuam
na penumbra e determinam de modo imperioso, sem que possamos
percebê-los, o que acreditamos serem as nossas escolhas. Em outras
palavras, muitas vezes colhemos os frutos produzidos por sementes
que nos inseminam na calada da noite, traiçoeiramente.
Rosa teve a maior das surpresas. A despeito de todo o cuidado
que tomara, com apenas seis meses de envolvimento sexual com
Francisco, ela engravidou. Estava num beco sem saída. Um aborto
estava fora de cogitação; fazê-lo era violentar a própria consciência, ela
se sentiria culpada pelo resto da vida. Sabia que se assumisse a gravidez
correria o risco de perder Francisco, afinal, prometera a ele que não
engravidaria de jeito nenhum. Pior que ela não planejara aquilo, não
queria engravidar. Como poderia ter acontecido aquilo? A cartela não
deixava dúvidas. Ela pulara um dia. Estava lá, registrado na cartela.
Ela decidiu aguardar alguns dias para contar a ele. Quem sabe
aquilo não seria um rebate falso, quem sabe a menstruação não viria
com atraso? Ela faria pelo menos dois exames para confirmar e, só
então, depois do resultado, decidiria quando contar a ele, caso se
confirmasse a gravidez. Também alimentou a esperança de que
Francisco pudesse aceitar o filho, com o passar do tempo. Um filho
também poderia representar para ele a esperança de um novo começo.
48
Victorino Aguiar
Se já era certo que a esposa morreria em pouco tempo, bastava que os
dois mantivessem a existência do filho em segredo, até que pudessem
assumir publicamente a criança. De qualquer modo, não lhe daria logo
a notícia. Faria isso aos poucos. Ela, porém, ficaria privada muito em
breve desta opção, e não poderia dar a notícia a ele em conta gotas,
aos poucos. O destino lhe colocaria numa encruzilhada. Talvez ela
tivesse de contar a ele justamente no momento mais delicado da vida
dele.
Morte de Sara
Sara partiu num final de madrugada, que desaguaria numa
manhã calma e ensolarada de domingo. Estava terminado o calvário da
mãe dedicada, da esposa devotada, da madrasta exemplar. Pelo menos
na hora da morte, ela foi poupada da dor. Ao que tudo indica, morreu
ainda dormindo. Nenhuma expressão de dor, desconforto, medo.
Morreu em paz. Em paz descansará, se depender apenas da conduta
que pudemos ser testemunhas enquanto viveu. Desnecessário entrar
em detalhes sobre o atropelo que a morte dela provocou. O velório e o
enterro foram feitos no tempo mais curto possível. Pouco depois das
duas horas da tarde, o corpo já havia sido baixado à sepultura. A pressa
era justificável, porque Sara estava muito debilitada; na situação dela, a
decomposição do corpo se daria muito mais rapidamente do que de
costume. Nem deu tempo para Fernando vir se despedir da mãe. Desde
que a mãe ficara acamada, Fernando só a visitou uma vez.
Quando Rosa vem a saber da morte de Sara, esta já está
enterrada. Foi tudo muito rápido. Francisco conta a Rosa a experiência
que foi se despedir para sempre da mulher que convivera com ele por
tanto tempo, que dedicara a vida dela integralmente à família, desde
que passaram a morar juntos. A confusão, a choradeira. Descansou,
finalmente. Ele fez o que pôde para amenizar o sofrimento dela. Vida
que segue.
A gravidez de Rosa.
50
Victorino Aguiar
Rosa está preocupada, não sabe como dizer a ele que está
grávida. Pelos cálculos dela, já deve estar com quase 60 dias de
gravidez, não pode esconder dele por muito tempo. Daqui a pouco, a
barriga vai dizer o que é obrigação dela dizer. Mas não fazia nem um
mês que Sara tinha morrido... Não tem jeito. Ela tem de criar coragem e
enfrentar a situação. Sente que ele está mais fortalecido, menos
melancólico. Ela toma coragem e resolve contar o que para ele será
uma novidade.
Num dos já costumeiros encontros de fim de tarde, ela
finalmente coloca a gravidez na pauta. Rosa diz a ele que não quer
enganá-lo, aconteceu algo que não estava programado. Era para ela ter
contado a ele antes, mas quis preservá-lo, porque temia que a notícia
agravasse o estado de ânimo dele, já tão afetado pela morte de Sara.
Francisco leva um choque ao receber a notícia, e quase surta.
Ele tem medo de estar caindo outra vez no mesmo golpe que caiu,
quando conheceu Iara.
- Eu sou um tolo, já sabia que isto ia acontecer; este golpe é velho. Não
quero assumir este filho. Não combinamos de você engravidar, pelo
contrário. Eu assumi um compromisso com você porque Sara me
liberou para isto, aliás, foi dela a ideia de eu arranjar uma namorada. E
eu aceitei porque ela estava condenada, mas ela tinha conhecimento
disto. Ela sabia da sua existência e aceitava que nós fôssemos
namorados, mas ela não queria que eu tivesse outro filho. Não foi isto
que combinamos, não foi o combinado. Eu fui um tolo, bem que Sara
falou; parece que ela sabia que isso ia acontecer de novo. Eu já
conheço este golpe, já fui vítima dele com a minha primeira mulher,
que me fez de otário e me empurrou uma barriga de outro homem; ela
se casou comigo grávida de outro homem, um marginal. Eu só vim a
saber que o menino não era meu filho muitos anos depois, quando ele
já era adolescente.
51
Victorino Aguiar
- Minha primeira mulher contou a Sara, numa discussão que tiveram,
quando Fábio tinha cinco anos. Sara pensou a princípio que tinha sido
apenas uma tentativa de Iara de destruir o casamento dela comigo,
mas isto foi confirmado por ela no teste de DNA que ela mandou fazer,
sem eu saber, e que comprovou que eu não era mesmo o pai biológico
de Fábio. Sara só me falou dessa discussão dela com a minha primeira
mulher e do teste de DNA depois que adoeceu e teve certeza de que
iria morrer em breve. Para eu ter certeza de que tudo era mesmo
verdade, bastou eu relembrar a história dos primeiros meses do meu
relacionamento com Iara, que se encaixava perfeitamente no relato de
Sara. Agora, me vem você com a mesma história. O corpo de Sara nem
esfriou, é desumano o que você está fazendo.
- Meu amor, isto não é um golpe; eu não sou Iara, não sou uma menina;
eu tenho 35 anos, sou professora, tenho emprego, renda. Lamento por
tudo que lhe aconteceu, por Fábio, por Sara, pela doença de sua filha,
lamento também por esta gravidez que eu não programei, que eu não
queria.
- Então aborta a gestação, tem menos de dois meses, se me ama
realmente, faça a curetagem.
- Nunca farei isto, nosso filho já é um ser humano.
- Ele ainda nem começou a ser formado. Agora não confio mais em
você, você não cumpriu nosso acordo. Só há um jeito de resolver isto, é
você interromper a gravidez.
- Nunca farei isso; e eu não estou te cobrando nada, se não quiser
assumir o filho, tudo bem; vou sentir muito, mas nada farei para obrigá-
lo a isso. Não te cobro mais nada, união estável, casamento,
reconhecimento do filho, nada. Dou a liberdade de você fazer um teste
de DNA, se não confia em mim. Me desculpa, meu amor, a falha foi
minha, me esqueci de tomar a pílula, pulei um dia sem perceber. Eu já
te amo, tenho medo de te perder, o que vai ser da minha vida sem
você? Até cheguei a sonhar que este filho poderia representar um
recomeço de vida para você, e a realização do sonho que eu sempre
tive de ser mãe, que este filho seria uma bênção para nós. Eu sou uma
infeliz.
52
Victorino Aguiar
Rosa não consegue mais conter as lágrimas. O choro toma
conta dela. Seus olhos estão vermelhos. Francisco fica fragilizado. Tenta
consolá-la, enxuga-lhe as lágrimas. Por fim, se acalma e promete fazer o
teste de DNA quando o filho nascer. Ele vai fazer o teste e manter o
relacionamento em sigilo. Se o teste comprovar que o filho é mesmo
dele, ele assumirá a paternidade e o registrará. No fundo, ele não tem
muita escolha, já está adaptado ao novo relacionamento, vai acabar
precisando mesmo de uma mulher. Rosa, ele já conhece. Ele esperará
um tempo e, mais tarde, quando a poeira tiver baixado, ele assumirá o
filho perante a sociedade. Ele pede uns dias para colocar a cabeça em
ordem e dedicar uma atenção maior à Fábio e à Francisca. É preciso
também agilizar a questão do espólio de Sara. Quase tudo que eles
tinham estavam no nome dele. A participação dela nas firmas era
simbólica, mas, de qualquer modo, havia o espólio. Queria logo resolver
tudo, para liberar a cabeça. ( Está faltando falar de Fernando e de
Fabrício)
54
Victorino Aguiar
- Eu sei. Mas a gente nunca sabe o dia de amanhã. Quem diria que Sara
morreria assim, de uma hora para outra, tão nova?
- São situações diferentes, amor.
- Depois conversamos melhor, agora preciso ir, já passou da hora. Isso é
um segredo nosso, não comente com ninguém.
Ele a beija com ternura e diz que a quer.
Fora de combate
E foi exatamente o que aconteceu. Os maus pressentimentos
de Francisco se tornaram realidade. Ganharam forma e viraram
novamente a família de cabeça para baixo. Diante de tanto estresse, de
tantos e sucessivos eventos traumáticos, Francisco baixou enfermaria.
Menos de dois meses depois da morte da esposa, Francisco teve uma
forte pneumonia, que se agravou celeremente. Para prevenir males
maiores, foi levado para o hospital. Já internado, sofreu um AVC de
graves consequências. Entrou e permaneceu em estado de coma por
quase um mês. Quando saiu do coma, Francisco não era mais o mesmo,
já não interagia com mais ninguém. Nenhuma palavra, nem um sorriso.
Consegue respirar e ser alimentado sem ajuda de aparelhos, mas fica
dependente de cuidados para o resto da vida. A família o instala num
cômodo da casa e torna disponíveis os recursos de que ele precisa. Para
ajudar na prestação dos cuidados que Francisco requer, Fábio terá de
contratar três técnicas de enfermagem. Ele volta a se valer da MEI que
havia criado para atender a madrasta. Amanda, que já fora cuidadora
dela, vem a saber do ocorrido e pede que ele a contrate. Dr. Arnaldo
56
Victorino Aguiar
recomenda os serviços de Regina. Amanda coloca uma amiga – Vera -
na fita. O time está armado. Amanda, Regina e Vera.
Nunca mais Francisco se levantaria daquela maca.
As visitas - a primeira
Rosa está desesperada, porque não consegue fazer contato
com Francisco. Já está há mais de quatro semanas sem notícias dele.
Temerosa de que algo pior possa ter acontecido ao namorado, agora
viúvo e liberado para uma relação amorosa menos dissimulada, ela
resolve ir à casa dele. Ela não pretende exibir a barriga já um pouco
pronunciada. Usa uma cinta e veste uma roupa bem larga nesta
primeira visita. Só então, Rosa toma conhecimento da nova condição
de Francisco. Ela conversa um pouco com Fábio, mas não conta a
verdade a ele. Prefere que ele venha a sabê-la quando o pai estiver
bom, em condições de assumir o relacionamento com ela perante a
família, e de comunicar a paternidade do filho que ela terá, que se
chamará pelo mesmo nome do pai. Ela mente para Fábio, diz a ele que
é uma amiga de Francisco, que tinha muito contato com ele, se mostra
condoída com a situação dele e se coloca à disposição para ajudar no
que for preciso. Nada fala a respeito do namoro. A roupa disfarça bem
a barriguinha de Rosa; Fábio nem a percebe. Ele se diz agradecido, o pai
está recebendo todos os cuidados de que precisa. Por recomendação
médica, as visitas devem ser poucas e rápidas, limitadas a alguns
minutos. Em conformidade com a personalidade dele, o tratamento é
bastante formal, direto e objetivo. É possível que, com relação a ela, o
sexto sentido dele acentue um pouco mais a distância que ele costuma
manter diante de estranhos. A verdade é que a pessoa de Rosa não lhe
desperta nenhuma simpatia, ao contrário. Decididamente, ele não foi
com a cara dela. Ela nem precisava ouvir estas recomendações. Sabe
que a barriguinha logo ficará ostensiva. Por enquanto, ela ainda pode
disfarçar a barriga, recorrendo a uma cinta e usando uma roupa larga.
Mesmo assim, olhando bem, pode-se perceber que não se trata de uma
barriga comum. Logo, logo, porém, a barriga estará mais saliente. Na
segunda visita que ela vai fazer, ela já usará uma roupa bem mais larga
que a de agora. Ela fica emocionada, tem vontade de chorar. É uma
57
Victorino Aguiar
situação muito dolorosa para ela. Queria tanto poder dizer a Francisco
que o fruto do amor dos dois, já entrando no quarto mês de gestação,
será um menino, saudável. Lamentava tanto que Francisco não pudesse
participar da formação do enxoval. Ela só voltará a visitá-lo depois que
o filho nascer, não quer que ninguém da família saiba que ela está
grávida, para evitar mal-estar. Espera, com todas as forças, que
Francisco recupere a saúde e retorne à vida normal antes que o filho
nasça. Se isto não ocorrer, ela só voltará a vê-lo um ou dois meses
depois que a criança nascer. Para ela, isto será uma eternidade. Quinze
dias depois que Júnior nasce, ela não resiste e vai visitar Francisco. Este
não apresentou nenhuma melhora. Permanece vivo, mas a nada
responde. Não houve nenhuma mudança. Fábio a trata da mesma
forma fria e distante de sempre. Rosa imagina a alegria que Francisco
teria tido se pudesse ter participado da gravidez dela e presenciado o
parto.
Privada da companhia de Francisco, e impedida de dividir com
ele as alegrias dos primeiros anos de vida do filho, Rosa se dedica de
corpo e alma à criação de Júnior. Conta apenas com os recursos dela
para o sustento e as despesas com ele. Ela poderia recorrer à Justiça
para requerer uma pensão para o menino, já que ela dispõe de uma
certidão que comprova a união estável que ela mantinha com
Francisco, mas não se anima a fazer isto, adivinha que poderá trazer um
grande problema para ela e para o filho. Ela vai esperar que o menino
cresça e tenha entendimento para saber que o pai não está em
condições de interagir com ele. Assim que o menino estiver
maiorzinho, ela vai levá-lo numa visita. Enquanto isso, ela vai visitar
Francisco sozinha, muito esporadicamente. Apesar da cara de poucos
amigos de Fábio, ele não impede que ela visite o pai. Mesmo não o
visitando com muita frequência, ela encontra os meios de saber se o
estado dele evolui ou permanece estacionário.
60
Victorino Aguiar
Quando Rosa retornar para mais uma visita com o menino, este
já estará com quase 5 anos, já terá uma compreensão melhor das
coisas. Ninguém espera mais que Francisco volte do coma e leve uma
vida normal. Dessa vez, Rosa será recepcionada por Fábio, que, como
sempre, a receberá com frieza. Ele olhará para o menino com cara de
poucos amigos e pedirá a Rosa que não leve mais a criança, porque isto
pode ser prejudicial para o pai, e mesmo para o menino. Rosa concorda
com ele e aceita não levar o menino nas próximas visitas. Eles não
entram em consideração sobre a condição do menino em relação a ela.
Talvez ele desconfie que o menino seja filho dela, mas isso não é da
conta dele.
Eles conversam algumas abobrinhas, Fábio se retira do quarto e
deixa Rosa conversando com a técnica de enfermagem de plantão, que
neste dia é Vera. A conversa, rápida, é também sobre amenidades e
sobre o estado do paciente.
Última visita
Pouco antes de Francisco fazer 61 anos, Rosa faz a ele uma
visita, a última, e leva Júnior com ela. Fábio demonstra claramente
estar incomodado com a visita dela. Indagado por ela, responde com
monossílabos, num tom mais formal ainda do que nas visitas
anteriores. É uma conversa quase mal-humorada, sem entusiasmo. Diz
a ela que os médicos não dão esperança de nada, que o pai dele pode
morrer a qualquer hora.
Rosa sente o clima. Até então ela conseguia manter a calma e
segurar as lágrimas, mas agora ela se sente frágil, derrotada, sem
esperança. Sente que é o fim da linha. Não basta todo o sofrimento que
a doença de Francisco provocara nela. Ela tem uma forte crise de
choro. Ela chora muito, soluça; Júnior dá demonstrações de estar aflito
com o choro da mãe, está meio abobalhado. Olha muito para o doente.
64
Victorino Aguiar
Capítulo III
Boa morte
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Victorino Aguiar
olhos estão fechados. Por fim, retorna ao quarto e dá a boa notícia ao
patrão.
- Graças a Deus! Isto é ótimo! É um problema a menos.
- Você está um pouco pálido, um pouco trêmulo. Não acha melhor
tomar um remédio?
- Não, obrigado. Já, já, me acalmo. Foram os momentos mais difíceis da
minha vida. Fico preocupado com meu pai. Às vezes penso que ele
pode estar sabendo de tudo que acontece, mesmo sem poder reagir.
- Nunca saberemos. Se estiver sofrendo, provavelmente, levará isto
para o túmulo.
Ela percebe que acabou de expressar uma opinião, ou um
desejo inconsciente. O cérebro tem seus mistérios. Ela tenta consertar
um pouco o estrago, que nem foi percebido pelo patrão:
- Mesmo depois de sair do coma, se ouviu algo, ele não se lembrará de
nada, levará isto com ele para o túmulo.
- Sinceramente, estou no limite.
- Coitado do seu Francisco, nestas condições há tanto tempo, sem
nenhuma esperança de que venha a retornar.
- Seria melhor que Deus o levasse. Seria um descanso para ele. Imagina
ele sair desse estado e se deparar com um filho com 7 anos. A vergonha
que sentirá. Estou desabando, esta é a verdade. A gente se sente muito
impotente. Não posso fazer nada.
- Em alguns países, a família pode decidir abreviar a vida, se achar
conveniente. Aqui, é crime.
- Deus me perdoe, devia ser permitido. Imagina se ele permanecer
assim por 20, 25, 30 anos? Eu terei mais de 60 anos quando ele morrer.
Minha vida toda perdida. Nem tenho com quem desabafar.
- Compreendo. Quero que saiba que pode contar comigo, para tudo.
- Obrigado, Regina. É bom que ninguém venha a saber o que aconteceu
aqui. Será bom para todos, para Francisca em especial.
- Quanto a mim, repito, pode contar comigo para tudo. Para tudo,
mesmo. Você é um bom filho, um bom patrão, justo, humano. Pode
contar comigo mesmo. Se eu estivesse no seu lugar, conversaria com
seus irmãos, sondaria a opinião deles sobre a eutanásia. A sociedade é
67
Victorino Aguiar
hipócrita. Há muito tempo, este tipo de coisa já vem sendo feita,
principalmente em hospitais públicos. A sociedade finge que não vê.
- Já sondei eles por alto, muito superficialmente. Vou conversar mesmo
com eles, de novo. Ver o que eles pensam. Desta vez, serei mais direto.
Vou começar por Fernando. Depois, falo com Fabrício. Com Francisca,
nem posso pensar em conversar uma coisa dessas. Não quero fazer
nada de errado, para não me sentir culpado depois.
- Conversa, sim. Você já sabe que pode contar comigo, confiar em mim,
para o que der e vier.
- É bom que ninguém fique sabendo do que aconteceu aqui, nem dessa
nossa conversa. No final, todos ganharão com o silêncio, inclusive as
cuidadoras. Conto com a sua discrição.
- Tem minha palavra.
- Obrigado. Você terá minha gratidão para sempre.
É claro que ela quer mais do que a gratidão dele. Ela o quer por
inteiro, de preferência com o quinhão a que ele terá direito com a
morte do pai. Que não será pequeno, por sinal. Ela não é tão bobinha
como parece ser. Ele também não é besta, e também não está
interessado só no silêncio dela, quer mais que isso, muito mais. Sabe
que é um bom negócio garantir que ela mantenha silêncio quanto a
tudo que ela ouviu. Precisa do silêncio dela para evitar um estrago
maior, não quer que ela coloque fogo no roçado, porque a propaganda,
nesse contexto, não será a alma de um bom negócio. Melhor o
segredo. Mas ele ainda a quer para mais que isso. Ela lhe será de
grande serventia, caso os irmãos concordem em abreviar o sofrimento
do pai. Este consórcio tem tudo para dar certo, é só uma questão de
tempo. De pouco tempo.
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Victorino Aguiar
Capítulo IV
Descendentes
Fábio
De Fábio, já sabemos bastante coisa. Ele é o primeiro filho, o
primogênito, pelo menos do ponto de vista jurídico. O resto, são outros
quinhentos. Mora com o pai e, como ele, também não é muito dado a
baladas nem a paqueras. Envolve-se quase sempre com atividades
solitárias. Sabe que a mãe o deixou com o pai e a madrasta, quando ele
era ainda neném. Na última vez que se viram, ele tinha quatro ou cinco
anos. Lembra vagamente que ela e a madrasta tiveram uma discussão,
porque, de longe, podia ouvir as falas alteradas de ambas. Depois, a
mãe se despediu dele, deu-lhe um beijo e saiu. Ele sabe com certeza
que ela já morreu. Isto lhe foi contado pela madrasta e confirmado
mais tarde por ele próprio. Quando Fábio passou a entender melhor as
coisas, percebeu que a situação dele não era comum. Também se
percebia como alguém diferente dos demais. Às vezes, se sentia triste,
muito solitário. Nestas ocasiões, fazia perguntas à madrasta sobre a
infância dele, sobre a mãe.
O que a madrasta lhe contava era que a mãe dele era ainda
uma criança, muito imatura, quando conheceu o pai dele. Muito
apaixonados, num impulso, casaram-se muito rapidamente, fosse por
74
Victorino Aguiar
conta da paixão, fosse por conta da gravidez inesperada e precoce da
mãe. Francisco tinha 30 anos; Iara, 15. Isto é, Francisco tinha o dobro
da idade de Iara, que, portanto, era menor de idade. Garantia-lhe que a
mãe o amava, que tudo que fizera fora pensando no bem-estar dele.
Pai, a gente pode não ter; pode ter um, pode ter dois, pode até
não ter nenhum pai. Mas com relação a mãe, isto não é possível, todo
mundo tem uma mãe, e mãe, a gente só pode ter uma. Fábio tinha uma
mãe, estava na certidão; tinha uma madrasta, que, por sinal, era
melhor que a mãe biológica. Mas, no fundo, ele se sentia como se não
tivesse sido gerado, faltava-lhe religar-se à origem dele. Era um
sentimento paralisante, do qual ele não conseguia se libertar. A
madrasta era uma segunda mãe e confidente, única pessoa com quem
ele podia manter um elo com a mãe biológica. Para a madrasta, ele não
tinha segredos. Com ela, compartilhava a tristeza que sentia às vezes,
quando se lembrava vagamente da figura da mãe, da imagem que ele
guardava dela, da última vez que ela o visitara. Falava da discussão
entre elas, que ele julgava ter notado, de longe, enquanto brincava com
irmãos e coleguinhas. Ela sorria, e explicava que a mãe falava alto, às
vezes. Não negava que se desentendiam uma vez ou outra, mas que
não era nada importante, sempre voltavam às boas. Fábio queria saber
por que a mãe nunca mais voltara a visitá-lo depois daquele dia; por
que a mãe o abandonara. Ele se sentia abandonado.
- Meu filho, já lhe disse, sua mãe não o abandonou, ela fez o melhor
que podia, ela sofreu muito quando abriu mão de criar você, ela era
muito jovem, só tinha 16 anos quando você nasceu, era uma criança;
ela vinha te visitar sempre, ela não tem culpa de ter sido vítima de
abandono, não teve uma família regular, foi criada sem pai, a mãe não
podia dar assistência a ela; por isso tinha medo de que o mesmo viesse
a acontecer com ela e isto prejudicasse você. Ela também não teve
culpa de ter sido vítima da violência masculina, sua mãe foi assassinada,
meu querido; ela não podia dar aquilo que ela não recebeu; foi por isso
que ela não veio mais te visitar, porque foi assassinada.
75
Victorino Aguiar
Lágrimas, muitas lágrimas, eram a resposta de Fábio às palavras
da madrasta. Apesar dos 16 anos, Fábio se sentia, ainda, como uma
criança. A madrasta punha a cabeça dele no colo e o acariciava
ternamente.
Isto era o que a madrasta contava a ele. Se ela tivesse contado
a ele a verdade, outra coisa lhe contaria. E qual era a verdade? Já sabe
o leitor que Iara tinha má índole. Ela colocou nas mãos de um homem
integro, correto, cujo único erro era estar perdidamente apaixonado e
enfeitiçado pela beleza e pela juventude dela, uma barriga que não
pertencia a ele; uma barriga que era fruto de um relacionamento com
outro homem, de um homem de má conduta.
Quando ficou maiorzinho, por volta dos dezenove anos, Fábio
voltou a ser assediado e, movido pelo instinto natural de todo ser
humano, decidiu ir em busca de suas origens. Queria saber mais sobre a
mãe. Por mais que levasse em consideração tudo que a madrasta lhe
contava sobre a mãe dele, queria saber por ele mesmo a história da
mãe. Não foi muito difícil descobrir que ela era uma mulher impetuosa,
de personalidade forte, que se envolvia com pessoas de conduta pouco
recomendável. Acabou sendo assassinada por um namorado. Pelos
cálculos dele, ela deve ter morrido um pouco depois daquela última
visita que fizera a ele. Isto batia com o que a madrasta lhe contava.
Por ter pouco traquejo social e se dedicar mais a atividades
introspectivas, ele tem poucos amigos, mesmo assim quase não entra
em contato com eles. Talvez por isto mesmo não tenha se casado.
Quando o pai adoece gravemente, para que o pai tenha acesso em
tempo integral aos cuidados intensivos e permanentes de que carece,
Fábio passa a contar com os serviços das três técnicas de enfermagem.
Ele se encarrega de administrar as três cuidadoras. Horário, honorários,
solução de conflitos, admissão, dispensa etc. É ele quem diz a última
palavra sobre tudo. Ele desempenha com muito zelo suas funções de
curador. Às vezes, até em demasia.
É na condição de curador que ele toma conhecimento, da
maneira mais inesperada e traumática possível, que a história dele era
uma farsa. Pior do que ele já sabia. É pouco antes de o pai morrer que
ele vem a saber a verdadeira história dele. Coisas que abalam para
76
Victorino Aguiar
sempre e profundamente o amor e o respeito pelos pais. Ele descobre
que tivera na verdade quatro pais, para, no final, acreditar que os
quatro não valeriam por um. Era órfão de quatro pais.
O mundo vem abaixo, quando ele descobre que não era filho
biológico de Francisco. Ele desenvolve um ódio incontrolável contra os
pais. Uma revolta maior que o tamanho da dor que ele já carregava por
conta de não ter convivido com a mãe biológica dele, sabidamente de
baixa estatura moral. Era na mãe postiça que ele encontrava conforto e
carinho, principalmente nas horas mais difíceis. Francisco o tratava
como filho número um, mesmo depois que veio a saber que Fábio não
era filho biológico dele. Com o nascimento de Francisca, no entanto,
Fábio perdeu um pouco de espaço com Francisco que, naturalmente,
passou a se dedicar mais à princesinha dele, ainda mais que esta tinha
uma natureza muito sensível, e a saúde frágil. Na condição de curador,
Fábio encontrará nas técnicas de enfermagem que contratará para
cuidar do pai elementos que mudarão radical e definitivamente o curso
da vida dele.
Fernando
Fernando herdou o espírito aventureiro do avô. Ainda pequeno,
vivia falando em sair pelo mundo. Sonhava especialmente com a terra
do avô – Portugal. Assim que atingiu a maioridade, valeu-se da
condição de neto de português e adquiriu a nacionalidade portuguesa.
Tanto acalentou os sonhos da infância, que deu asas aos sonhos dele:
acabou indo fazer um curso de extensão em Portugal. E por lá foi
ficando. Casou, arranjou um excelente emprego e criou raízes por lá.
Sentia-se mais europeu do que sul-americano, mais português do que
brasileiro. Não tinha mais nenhuma ligação forte com o Brasil, na
verdade, até o rejeitava um pouco. A rigor, só vinha ao Brasil, por conta
de obrigações familiares, em situações especiais. Durante a doença do
pai, no máximo, duas vezes por ano. Quando a mãe adoeceu e ficou
acamada, ele já estava em Portugal, fazendo o curso de extensão.
Durante a doença, só veio visitá-la uma única vez. Não veio para o
velório e o enterro dela porque foi tudo muito rápido; ele chegaria no
77
Victorino Aguiar
dia seguinte, não teria nem tempo de lançar um último olhar para o
rosto da mãe.
Francisca – a princesinha
Francisca nasceu em condições adversas. A mãe já beirava os
40 anos quando ela veio ao mundo. Apesar de não ser uma idade
recomendável nem favorável à gravidez, as dificuldades do parto nem
decorreram tanto da idade, mas das condições de saúde de Sara, na
época em que engravidou. As dores de cabeça que a perseguiam desde
a juventude se agravaram com a gravidez. Os enjoos eram frequentes e
desconfortáveis. A pressão arterial era praticamente incontrolável.
Volta e meia ela era acometida por vertigens e curtos desmaios. Ela já
tinha uma intuição de que não seria fácil, mas estava decidida a passar
pelas dificuldades que ela antecipara. Falando com franqueza, se fosse
apenas pela vontade de Sara, ela teria fechado a fábrica no segundo
filho, Fabrício. Aquela gravidez era mais para satisfazer a vontade de
Francisco, que vivia sonhando com uma filha. Sara tinha em mente
estreitar mais os laços com o marido, realizar o sonho dele, de ser pai
de uma princesinha, fortalecer o casamento mais ainda, antes que o
marido viesse a saber que não era de fato o pai biológico de Fábio. Mais
cedo ou mais tarde, ela teria de contar a ele. Isto certamente seria um
choque tremendo para Francisco. Melhor era esperar ele estar bastante
80
Victorino Aguiar
envolvido com a menina para dar a ele a má notícia. De certa forma,
Francisco poderia compensar a má notícia com a presença da filha, isto
é, se a criança viesse, e se fosse mesmo uma menina. Como resultado
da má condição física de Sara, a gravidez se revelou problemática,
muito dolorosa para ela. Mais de uma vez ela teve de ser levada ao
hospital para receber maiores cuidados. Felizmente, a criança veio, e
era uma menina. Na verdade, ela não veio, foi trazida.
O resultado é que Francisca nasceu um mês antes do normal,
numa cesariana de alto risco. O peso e a altura dela estavam abaixo do
que era recomendável. Francisca permaneceu mais de 30 dias na
incubadora. Apesar de ter nascido prematuramente, durante os
primeiros anos da infância, Francisca não apresentou grandes
problemas de saúde. No geral, era uma menina alegre, simpática. Ela
atravessou a infância com relativa tranquilidade. Naturalmente, por ser
a caçula e menina, era o alvo preferencial dos carinhos e da atenção
dos pais. Principalmente de Francisco. Não tardou para despertar os
ciúmes dos irmãos. Eles não chegavam a ser agressivos com ela; o
ciúme e a inveja deles se manifestavam mais através da ironia e do
deboche.
Quando entrar na adolescência, Francisca se revelará na
plenitude: uma menina sensível, mimada, frágil. Passará por provações
de graves proporções. Verá a mãe adoecer, ficar inválida. Perderá a
atenção e os carinhos a que ela estava acostumada, tanto da parte da
mãe, quanto da parte do pai, que terá de se dedicar mais à esposa do
que à filha, sua princesinha. Depois que a mãe vier a falecer, ela
chegará à parte mais pesada da provação dela.
Agora, ela vê o pai também ser posto fora de combate. Coitada!
Ela perdeu a mãe e está em vias de perder o pai, que está entrevado e
incapacitado de interagir com ela, há mais de seis anos, a um passo da
morte. Ela perde os carinhos e os mimos que recebia deles, não tem
nenhum carinho por parte dos irmãos, que sempre sentiram ciúme e
inveja da condição dela de preferida do pai. Neste contexto, passar pela
experiência que ela acabou de passar pode se tornar fatal. Uma coisa
era saber da existência de Rosa e do menino, desconfiar da relação
deles com o pai. Até aí, ela apenas suspeitava que não havia só uma
81
Victorino Aguiar
amizade entre eles. Outra coisa era saber que Fábio não era seu irmão
biológico, que os verdadeiros pais dele eram criminosos, mortos em
condições vergonhosas. Era doloroso saber que a mãe de Fábio,
primeira mulher de Francisco, aplicou um golpe no pai dela, fazendo-o
crer que ele era pai biológico dele. O pior de tudo era o pai e a mãe
terem escondido estes fatos o tempo todo dela e de Fábio. O que dizer
da mãe, que liberou o pai para ter uma amante, que teve
conhecimento da existência de Rosa, quando esta e Francisco iniciaram
a traição? Era um golpe mortal na imagem que Francisca fazia dos pais
e do irmão mais velho. Como conviver com a ideia de que tinha um
irmão havido fora do casamento? Tudo isto era demais para uma
criatura frágil e sensível como ela, que acusa o golpe e começa a sentir
os reflexos da nova configuração familiar. Logo as sequelas se
manifestam no psicológico e no emocional, como efeitos da mudança
brusca da rotina familiar. Em família, ninguém adoece sozinho. Ela era a
princesinha, o bibelô do pai. Ainda que os irmãos a invejassem e
fizessem chacota dos excessos afetivos que ela recebia dos pais, antes
de a mãe adoecer e morrer, e o pai ficar acamado, ela contava com os
eles para amenizarem e relativizarem as implicâncias e pequenas
maldades cometidas pelos irmãos. Até ali, de Fábio, a pobrezinha ainda
recebia um pouco de atenção e de cuidados. Agora, nem isso. Também
Fábio, sofria as consequências da tragédia que se abatera sobre a
família. Depois de ele ter aquela discussão com Rosa, nunca mais fora
o mesmo; o comportamento dele em relação a ela mudara da água
para o vinho. Aquela discussão derrubara a última barreira que a
protegia da desintegração psíquica. Agora, ela só podia contar com ela
própria. A família, desde muito tempo reduzida a ela e a Fábio, agora se
resumia simplesmente a ela. Francisca era a última pessoa da família
naquela casa. Ela ficara órfã de pais e irmãos.
Fábio só tinha tempo e cuidados para Regina. Fabrício morava
numa república desde que o pai ficara acamado, muito raramente
aparecia em casa, e pouco se demorava. A rigor, a verdadeira razão
dessas visitas era pedir dinheiro ao irmão. Fernando, bem antes de a
mãe adoecer, já estava instalado definitivamente em Portugal, nem
parecia fazer mais parte da família. A família, depois das revelações
82
Victorino Aguiar
ouvidas da boca de Rosa, perdera todo sentido para Francisca. Até o
respeito e o amor que ela devotava ao pai e à memória da mãe caíram
por terra. Tudo que ela ouvira constituía um erro imperdoável
irreparável da parte dos pais. Vera era a única pessoa com quem
Francisca podia conversar e desabafar abertamente, que representava
para ela uma confidente e um ombro amigo, que ainda a protegia
contra o sentimento de abandono e insegurança. Mas Regina fazia tudo
para que o contato de Vera com a menina fosse o mínimo possível.
Bastava vê-las conversando, que inventava logo uma tarefa para Vera.
Assim, Francisca estava condenada a conviver o resto da vida com a
depressão e a fazer uso de medicamentos controlados. Sua única
companhia seriam os remédios. Era o preço que ela pagava, por ter
ouvido involuntariamente a longa discussão travada entre Fábio e Rosa.
É por isto que o estado emocional da menina se agrava, e a depressão
atinge o estágio que a leva à morte.
83
Victorino Aguiar
Júnior
Quando Júnior nasceu, o pai já se encontrava em estado
vegetativo. O pai não pôde vê-lo, não pôde pegá-lo no colo. Nem pôde
dizer palavras carinhosas ao pé do ouvido do bebê. Estava
definitivamente condenado à surdez, à cegueira e à mudez. Era uma
condenação de mão-dupla. Júnior também estava condenado a nunca
ouvir a voz do pai, a nunca sentir o toque dele. Até os quatro anos, o
menino não verá o rosto do pai. Só quando completar os quatro anos, a
mãe o levará para conhecê-lo. Será o presente de aniversário dele.
Mesmo assim, nessa visita, Júnior se restringirá a ver o rosto do pai por
uns poucos minutos, e a dizer algumas palavras em voz baixa no ouvido
dele, no colo da mãe.
Por mais que a mãe tente explicar a ele porque deverá ficar
quieto e em silêncio quando estiver no quarto do pai, isto não entra na
cabeça dele, não condiz com o que ele vê no dia a dia dele. Ele sempre
vê os colegas conversarem animadamente com os pais. Também é
difícil para ele compreender porque devia ficar calado e não responder
nada a ninguém no velório. Para sempre, ficará marcada no menino a
imagem da mãe chorando, diante do namorado semimorto, na última
visita que os dois fizeram a Francisco. Outras imagens também
marcarão a vida dele, como a da discussão da mãe com Fábio, quando
ele foi duramente ofendido, ainda que não compreendesse bem as
palavras de Fábio. Infelizmente, as cenas que ele presenciou diante do
pai, tanto na visita quanto no velório, o marcarão negativamente para o
resto da vida. No velório, onde presenciou a mãe ser expulsa do salão,
sob os olhares pouco amigáveis dos presentes, os sentimentos dele
eram uma mescla de medo, curiosidade e raiva. Afinal, a mãe dele
estava sendo ameaçada. Ele não tem noção do problema que
representa para os irmãos, nem da dimensão deste problema. O que
ele sabe é que a mãe e ele não eram bem-vindos naquele lugar.
Se ele pudesse contar com a presença do pai, com certeza teria
nele uma fonte a mais de carinho, a garantia de uma formação bem
mais sólida. O que fazer? A vida é assim, mesmo. Pior se estivesse na
condição de Fábio. Pelo menos, ele tinha um pai e uma mãe de boa
índole. Tinha também o nome do pai. Já era muito. Além disso, herdaria
84
Victorino Aguiar
uma parte do espólio. Como toda e qualquer criança, Júnior se
ressentia da presença física de um pai. As poucas vezes que pôde ver
Francisco não foram suficientes para ele fixar na mente a imagem do
pai. Para que ele não perdesse de vez a recordações de Francisco, vez
ou outra Rosa mostrava a ele as fotos do pai. Ele sempre disparava
perguntas desconcertantes na direção da mãe a respeito do pai. Na
verdade, nem eram perguntas propriamente, eram cobranças. Ele
queria um pai vivo, de verdade. E também sonhava com um
irmãozinho. O único amigo com quem Júnior contava era Lucas, o filho
de Amanda, também filho único, criado sem a presença do pai. Lucas
também se ressentia da presença paterna e da companhia de um
irmão. Para Júnior, Lucas fazia as vezes do irmão que ele não tinha; e
ele era, para Lucas, o irmão que o amiguinho também não tinha.
Capítulo V
Lenha na fogueira
A implicância de Regina contra Amanda tem causas múltiplas.
Uma delas deriva da morte de Francisca, que provocou algumas
mudanças no andamento da carruagem. No que diz respeito ao destino
de Amanda, essas mudanças não foram nada agradáveis. Não
repercutiu bem em Regina a reação de Amanda à morte da menina.
Algo havia mudado na colega de trabalho depois da morte de Francisca.
Amanda dava a impressão de que achava a morte de Francisca
suspeita. E isto incomodava Regina. Mais coisas vindas de Amanda
incomodavam Regina, a começar pela beleza dela. Com efeito, Amanda
era muito mais bonita do que ela, muito mais do que Regina poderia
suportar. A beleza da colega roubava a tranquilidade de Regina e a
tirava do sério. Ela se sentiria melhor longe da colega. A presença de
Amanda naquela casa constituía uma ameaça para ela, representava
um perigo para a hegemonia que ela pretendia ter naquele território, e
um perigo para os planos do casal. Ela precisava convencer Fábio a
demitir Amanda. Isso não seria difícil para ela. Logo, uma oportunidade
surgiria, e Regina realizaria mas um sonho dela. No fundo, Regina não
via ameaça apenas em Amanda; as duas colegas de trabalho eram uma
ameaça para ela e o futuro dela com Fábio. Bom, era que houvesse
apenas uma mulher naquela casa: ela. Francisca já tinha partido. Menos
uma. Agora, ela tiraria Amanda do caminho. Depois, tiraria Vera. Ela
queria fazer jus ao nome dela, oriundo do latim, e que significa rainha.
Ela queria reinar absoluta. Amanda era bisbilhoteira, vivia xeretando
tudo. Era melhor mandá-la embora. Razões não faltavam. Mas se
precisasse de mais alguma, ela inventaria. Mas ela nem precisará
90
Victorino Aguiar
inventar nada. O destino entregará nas mãos dela a condição para ela
realizar o sonho tão almejado, e ela não se fará de rogada.
- Rosa não desistiu de vir visitar o amante. Tenho certeza de que ela
está armando alguma coisa. Ela anda rondando a casa, tenho certeza.
Ontem mesmo eu a vi aqui no portão conversando com Amanda. Fiquei
de longe, observando.
- Talvez até tenha entrado e visto Francisco.
- Não; eu vi a hora em que ela chegou e a hora em que foi embora.
Tenho certeza de que não entrou. Fiquei de longe vigiando o tempo
todo.
- Esta vadia não pode mais pisar nesta casa. E Amanda, te contou o que
Rosa queria, o que elas conversaram? O que ela disse?
- Até agora, não. Estou esperando, pra ver se ela vai me contar.
- Nem vai te contar. Dou minha cara a tapa. Amanda não é confiável.
Esta infeliz é traiçoeira, pode acreditar. Se ela fosse de confiança, teria
contado para você ontem mesmo, no mesmo dia, o que a vadia
conversou com ela. Ela não deixou a outra entrar com medo de que
você a demitisse. Pode crer. Não é porque ela não deixou a vadia entrar
que ela deva merecer confiança. A obrigação dela era contar, assim que
você chegou em casa. Quanto tempo elas conversaram?
- Não marquei, mas deve ter sido uns vinte minutos.
- Então... Vai saber o que elas conversaram. Quem sabe se elas não
tramaram alguma coisa contra nós.
- É estranho, ela não ter comentado. Se está escondendo, tem alguma
coisa errada aí.
- O melhor é mandar logo Amanda embora. O mais rápido possível.
A demissão
Fábio ainda espera o próximo plantão de Amanda, para ver se
consegue tirar alguma informação dela. Ela nada comenta. Por fim,
convencido de que Amanda nada falará, liga para o advogado e manda
que ele prepare as contas dela.
Finalmente, Regina conseguiu o que ela tanto queria. Sem
muitas explicações, Fábio demite Amanda. Ela ainda tenta descobrir a
motivação da dispensa, mas ele, econômico como sempre nas palavras,
91
Victorino Aguiar
segue o padrão. Os serviços dela não eram mais necessários, não se
justificava mais a existência de três técnicas de enfermagem na casa.
Era preciso economizar, ele estava gastando muito com elas, e as
despesas com remédios estavam muito altas. Mesmo diante dos
pedidos dela que ele adiasse a demissão, para que ela tentasse arranjar
outro trabalho, ele ficou irredutível. Ela devia arrumar as coisas dela e ir
embora logo, ainda na parte da manhã. Ela poderia ir direto ao
escritório do Dr. Flávio. Já estava tudo preparado para o desligamento
dela. Tudo seria feito diretamente com o advogado.
92
Victorino Aguiar
mais agressivo; Rosa fica mesmo muito assustada. O medo fala mais
alto. Ela teme muito mais pelo filho do que por ela mesmo:
- Acho bom você desistir de seus planos. Suma da nossa vida. Você e
seu bastardo. Enquanto é tempo. Quem avisa amigo é.
- Isto é uma ameaça contra mim e contra meu filho? Você está me
ameaçando e a meu filho de morte? É isso?
- O que você acha? Tire suas conclusões. Se te pegar rondando minha
casa de novo, você vai se arrepender. Já te avisei. Para de rondar a
minha casa, igual urubu rondando a carniça. Esta é a última vez que te
ligo. Vai ser melhor pra você e pro seu bastardo. Quem avisa amigo é.
- Vai fazer comigo e com meu filho o que você fez com a Francisca? Vai
fazer com a gente o que fez com a sua irmã?
- O que você acha? Vai pagar para ver?
- Não duvido muito de que você a tenha matado. Vai matar Francisco
também?
- Quem sabe? Tudo pode acontecer.
- Não pense que me intimida. Na hora certa, saberei como agir.
- Se houver hora certa. Está avisada.
- Vou pensar no teu caso. Acalma o teu coração.
- Está avisada.
- Você é um homem doente. Devia se tratar.
- Último aviso.
- Você está cego pelo ódio.
- Pague para ver. Último aviso.
95
Victorino Aguiar
que ela supere a fase difícil. Ela oferece também uma ajuda em
dinheiro pra Amanda.
Capítulo VI
99
Victorino Aguiar
Ofereça a ele uma gratificação, um dinheirinho a mais pra ele, pra
consolar pelo fim da mamata.
Faz-se silêncio. O coração de Vera está aos saltos. Eles podem
estar vindo para a sala. Ela vai partir em retirada. Mas não interrompe
a gravação. O gravador ainda consegue registrar as últimas palavras
que Regina diz a Fábio:
- Amor, eu te quero tanto. Como desejo ter um filho teu, meu amor.
- Regina, vamos com calma. Um filho nosso, agora, vai ser um prato
cheio para falatórios. Você é jovem, pode esperar a partilha. Aí,
podemos até casar. Você terá quantos filhos quiser. Não engravide, por
favor.
Saudades e temores
Rosa sente muito a falta de Francisco e lamenta a morte de
Francisca. Ela não descarta mais que tenha havido um dedo de Regina
na morte da menina. Se ela estiver certa, se a morte da menina foi
consequência de alguma ação ou omissão por parte de Fábio ou Regina,
a vida de Francisco está correndo perigo. Rosa teme pela vida dele,
acredita que possa estar havendo algum tipo de interferência negativa
ou negligência nos cuidados com o namorado. O relacionamento entre
Fábio e Regina dá a esta uma ascendência maior sobre o patrão e
namorado. Ora, Fábio e Regina têm razões de sobra para isso,
principalmente agora, que Fábio já sabe que não é filho biológico de
Francisco e, por causa disso, passou a odiá-lo. A associação entre Fábio
e Regina tem tudo para levá-los a interferir no quadro de saúde de
Francisco. Rosa está dominada por esses pensamentos, está
angustiada, porque se sente impotente diante do perigo que parece
rondar a vida de Francisco. Agora, que Fábio fez uma ameaça de morte
a ela e ao filho, ela tem certeza de que ele teve responsabilidade na
102
Victorino Aguiar
morte de Francisca, e também tem certeza de que ele pode apressar a
morte do pai. O ódio que ele guarda no peito deve tê-lo cegado. Ela não
comenta com Amanda e Vera a respeito da ameaça de morte que
recebeu de Fábio, mas, ao contrário do que ela disse a ele, ela tinha,
sim, muito medo de que ele cumprisse as ameaças. Pergunta a Vera
sobre a possibilidade de ela instalar uma câmera camuflada no quarto
de Francisco, ou na sala. Tenta convencê-la de que esta seria de grande
utilidade. Vera rejeita a ideia, vê nela um risco de ser descoberta,
demitida, processada, perder a oportunidade de estar perto deles e de
alguma forma se manter a par do que acontece na casa. Se ela fizesse
isto, seria às escondidas. Ela era uma funcionária, nada poderia fazer
sem autorização do patrão. Se sugerisse isto a Fábio, fatalmente ele
recusaria a sugestão, suspeitaria dela e com certeza a demitiria. Uma
gravação obtida por ela dessa maneira, sem a anuência de Fábio, não
teria nenhum valor jurídico, e ainda poderia ser usada contra ela. Ela já
estava fazendo o que podia fazer, a coisa certa. Ela continua ligada. Os
olhos e os ouvidos dela estão a postos. Os olhos e ouvidos dela e do
celular.
Finalmente, ela consegue fazer mais uma gravação que poderá
vir a ser muito útil. Desta vez, ela pode gravar com alguma
tranquilidade, sem sobressaltos, porque Fábio está num ponto perto da
porta do quarto, aparentemente deitado num sofá. Já é bem tarde da
noite. Vera cochila no sofá da sala. No intervalo de um cochilo e outro,
acorda e percebe que Fábio está conversando ao telefone. Pelas falas
dele, fica sabendo que ele conversa com Regina. Ela aciona o gravador
e consegue gravar com nitidez trechos do diálogo, no qual eles
conversam sobre uma mudança na aparência de Francisco. Vera só
ouve as falas de Fábio, mas dá para deduzir o que Regina fala do outro
lado. Ele diz que notou alguma mudança na cor dos olhos e na
expressão de Francisco. Quer saber se aquilo já é reflexo do que Regina
vem fazendo ou deixando de fazer. Ele parece um pouco nervoso, mas
não concorda com o que aparentemente ela diz no outro lado da linha:
- Mas eu não estou nervoso, só estou perguntando. Você falou que
duraria no máximo dois meses. Já tem mais do que isso.
................
103
Victorino Aguiar
- Você tem de apressar isso. Ele tem de morrer logo. É isso que eu
quero. Resolve logo. Temos de nos livrar desse problema o quanto
antes.
..........
- Já liguei, sim. Falei com ela. Desta vez, acho que ela ficou assustada.
.........
- Vou ligar outra vez, sim. Na semana que vem.
- ...............
- Tudo bem. Amanhã a gente conversa melhor quando você estiver
aqui.
..............
- Também estou com saudades. É verdade. Parece que a gente não se
vê há um século. Para mim, também. Um dia, uma noite, uma hora,
parece uma eternidade.
...............
- Vou, sim, amor. Agora. Quero sonhar com você, com seus beijos, com
sua pele. Te quero!
..........
- Te quero, mais.
105
Victorino Aguiar
Mortes
Era por isso que Vera suportava os caprichos e as humilhações
a que Regina costumava submetê-la. Nestas ocasiões, ela se fingia de
morta, mais do que já fingia normalmente. Hoje, Vera chegou 20
minutos atrasada. Isto foi o bastante para ouvir os desaforos de Regina:
- Chegando atrasada, de novo. Eu e Fábio temos um compromisso, com
hora marcada. Não podemos ficar aqui esperando você como dois
babacas.
- Houve um acidente, não foi culpa minha. O trânsito estava todo
parado.
- Você tem sempre uma desculpa. O certo é sair mais cedo, para se
prevenir contra estes imprevistos. Se é que houve mesmo algum
acidente. Vou começar a descontar estes atrasos. A lei permite.
- Desculpe. Você tem razão. Vou me levantar mais cedo.
- Pode começar suas atividades. Faça o favor de não ficar agarrada ao
celular. Você fica o tempo todo com este telefone nas mãos. Você está
aqui para cuidar do seu Francisco, não para ficar jogando cobrinha e
fofocando no celular. Você já sabe quais são as suas obrigações.
- Tudo bem, vou até guardar ele na bolsa.
Vera desliga o celular e o coloca na bolsa. Assim que Regina
termina seu sermão e suas grosserias, ela e Fábio saem juntos. Vera dá
início à execução dos rotineiros cuidados devidos ao paciente:
- Bom dia, seu Francisco. Dormiu bem? Sua aparência está ótima!
Para início de conversa, ela tirou as fraldas dele,
completamente sujas. Depois de retirá-las, Vera o limpou
cuidadosamente. A aparência das fezes e da urina estava muito
diferente da aparência normal. O odor estava insuportável. Ela se livrou
logo das fraldas. Depois, o colocou na cadeira higiênica, e o levou para
o banheiro.
- Vamos para o banheiro? Vamos fazer a higiene e depois tomar seu
café e os remédios.
Vera escovou os dentes dele. Depois, lavou cuidadosamente
cada parte do corpo – a cabeça, os braços, a barriga, a genitália, as
nádegas, as pernas, os pés. Ela gostava do trabalho dela. Uma pena que
uma profissão tão necessária, tão útil, não tenha o merecido
106
Victorino Aguiar
reconhecimento, e seja vista de forma tão negativa pela população e
pelo Poder Público.
- Agora, sim, está bem cheirosinho. Dá gosto de ver. Agora fica
quietinho, aí, que vou preparar o seu café da manhã.
- Obrigado, por tudo.
Não. Aquilo não era um sonho. Vera não estava sonhando. Ele
falou realmente:
- Seu Francisco! O senhor falou mesmo, ou eu estou sonhando?
108
Victorino Aguiar
Capítulo VII
Inventário
114
Victorino Aguiar
Com a morte do pai e a extinção da curatela, antes de tudo,
Fábio teria de fazer uma prestação final de contas. Talvez recebesse
logo uma citação judicial, dando ciência de que não poderia iniciar o
inventário antes da realização de uma audiência, em que deveriam
estar presentes todos os interessados.
Rosa também já deve estar correndo atrás dos direitos dela e
do filho. Para isso, ela nem precisa dos serviços de um advogado pago.
Basta que compareça ao Ministério Público e à Defensoria Pública e
relate a não inclusão no inventário de menor, legítimo herdeiro
necessário, bem como a não inclusão dela própria como herdeira, na
condição de companheira estável não convivente. Nesse caso, o
inventário ficaria paralisado até que se resolvesse o litígio.
Fábio entra logo em contato com o Dr. Mílton Lustosa. É bom
que ele não faça nada antes de conversar com o advogado. É isto que
ele faz. Já no dia seguinte, se reúne com Dr. Mílton. É preciso colocá-lo
a par de todos os pormenores. Dr. Mílton tem bastante experiência no
exercício da advocacia e suficiente perícia nessa área. Ele pede a Fábio
que lhe conte tudo, absolutamente tudo, mesmo o que Fábio possa não
considerar necessário. A confiança tem de ser absoluta. Fábio conta ao
advogado toda a história, desde o início.
- Papai estava vulnerável, fragilizado, não estava bem de cabeça. Pelas
datas, se pode provar que a criança foi concebida pouco antes de
mamãe morrer, foi justamente na pior fase dele que Rosa engravidou,
papai nem devia saber o que estava fazendo. Nós podemos alegar que
estávamos tentando interditá-lo, que ele estava apresentando
comportamento bizarro. Eu revirei os papéis dele; descobri que ele
estava tomando remédio controlado. Quem pode garantir que ela não
tenha dado algo para ele beber, ou comer, induzido ele a engravidá-la?
Nas condições em que ele estava, não era difícil ela conseguir fazer isso.
Eu tenho cópias das receitas, as notas dos remédios, os comprovantes
das consultas. Darei meu jeito; se precisar, teremos testemunhas. Ele
ficou internado dois dias, da primeira vez que passou mal. Depois que
saiu do hospital, aparentemente estava melhor. Fez uma bateria de
exames. Talvez tenha contado a ela sobre os exames e mostrado a ela
os resultados. Ela deve ter ficado com medo que ele morresse e ela
115
Victorino Aguiar
perdesse a galinha dos ovos de ouro. Com a idade dela, seria difícil
encontrar outra oportunidade como aquela. Melhor era meter logo
uma barriga, antes que não desse mais tempo. Está mais que evidente
que Rosa agiu de má-fé. Prova disso é que ela só se apresentou como
namorada e mãe do filho dele, depois que papai morreu.
Provavelmente, quis fugir da obrigação de cuidar dele. Isto é motivo
para ser deserdada. Quanto ao menino, vai ser difícil provar que ele
não é nosso irmão. A situação dele sempre estará preservada.
Poderíamos forjar um teste de DNA; não é difícil fraudar o exame, mas
o moleque é a cara de papai. Ele parece mais com papai do que a
gente. Não há como excluí-lo. Não podemos dar um jeito nisto. Quanto
a Rosa, as coisas ficam mais fáceis. A razão de ela ter se apresentado
nas visitas como amiga de papai são mais que evidentes. Ela nunca
mencionou a condição de união estável com ele. Escondeu isto para se
eximir da obrigação de cuidar dele. E esta era uma obrigação legal dela,
como companheira. Negar essa assistência é considerado abandono de
incapaz, motivo suficiente para ela ser deserdada. Se formos mais
rápidos que ela, poderemos fazer o inventário extrajudicialmente.
Quando ela vier a descobrir, já teremos feito a partilha, e poderemos
alegar que ela não apresentou a certidão do menino.
A viúva
Rosa é uma das três esposas de Francisco, ainda que não lhe
caiba com perfeição jurídica a denominação esposa. Para ser esposa,
ela teria que ter contraído núpcias com Francisco, diante de uma
autoridade pública. Ajustada aos tempos modernos, a nomenclatura
correta para o status de Rosa é companheira não convivente em união
estável. Além de companheira não convivente em união estável, ela
também é herdeira, por ter sido assim designada numa escritura
pública equivalente a um testamento. Pelo fato de um dos herdeiros
ser filho dela e menor de idade, ela será tutora da parte do filho.
Companheira, herdeira, mãe e tutora de herdeiro necessário e menor.
Sobre Rosa, já sabe o leitor quase tudo que é necessário; para
suprimir o quase, falta dizer pouco. Ela é filha única de um casal de
classe média, nascida num subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, mais
precisamente, no bairro de Madureira. Ainda jovem, ingressou no
serviço público como professora das primeiras séries, após a conclusão
do curso pedagógico. Com esforço, continuou os estudos e concluiu
com louvor o curso superior, tendo obtido licenciatura em Língua
Portuguesa. Não teve muita sorte com relacionamentos afetivos.
Quando conheceu Francisco, já estava com 35 anos. Grávida dois ou
três meses antes de Francisco adoecer gravemente, não teve a alegria
de ver o companheiro participar do período de gravidez nem dos
primeiros meses de vida de Júnior. Ela manteve por muito tempo em
segredo a condição de companheira estável de Francisco, na esperança
de que o companheiro voltasse à vida normal, para não embaralhar
ainda mais a movimentação das peças. Já sabemos que Francisco a
nomeou herdeira de 50% dos bens que viesse a deixar. Além de ser
uma mulher sensível, educada, fina, ela é dona também de uma
determinação excepcional, capaz de superar obstáculos por muitos
considerados intransponíveis. É por conta destes atributos que ela
conseguiu caminhar até onde caminhou. Além da frustração diante da
impossibilidade da realização dos sonhos por tanto tempo acalentados,
117
Victorino Aguiar
de ser mãe e de constituir uma família com Francisco, ela teve de arcar
com o ônus de atravessar sozinha a gravidez toda sem o suporte
emocional e financeiro do amado. Mais do que isso, teve de se
submeter por tanto tempo à frieza, indiferença e mau-humor de Fábio,
que certamente intuía a condição dela. Ela suportou com resignação e
esperança todas as dificuldades que uma situação como aquela
impunha, sempre alimentando a esperança de que Francisco retornaria
da inconsciência para os braços dela e do filho. Na última visita que fez
a Francisco, quando, afinal, Fábio matou nela as esperanças que ele
mesmo já não tinha, ela se sentiu derrotada e deixou transbordar toda
a tristeza e a dor que estava represando por tanto tempo. Ela não
contava que esse transbordamento provocasse em Fábio um ataque
histérico de tamanha dimensão. Não que esperasse dele palavras de
consolo, de conforto, diante do descontrole emocional dela. Para Rosa,
bastava que ele ficasse em silêncio e respeitasse a dor dela e a
presença do menino. Mesmo assim, na última visita a Francisco, pelo
menos os dois estavam num ambiente doméstico, privado, havia
apenas a técnica de enfermagem e a irmã de Fábio na casa. Com todos
os prejuízos que decorreram das ácidas e agressivas palavras
disparadas por Fábio contra ela e o filho, havia a atenuante de que ela
estava na casa dele. E também por ter sido esta a primeira vez que ela
reportava a ele, com todas as letras, o verdadeiro status dela e do
menino. No velório, a conversa era outra, a capela é um espaço público,
do município. Ali, havia uma agravante, as ofensas foram ditas, quer
dizer, repetidas, alto e bom som, na presença de dezenas de pessoas.
Para garantir os direitos dela e do menino, não restava a ela outro
recurso além de bater às portas do Judiciário. Ela e o pequeno exército
com que ela contava.
A primeira medida era comunicar ao Judiciário que Francisco
tinha filho menor; só isto bastava para impedir que o inventário fosse
adiante, antes que ela fosse ouvida e pudesse defender os direitos dela
e do filho. Ela já deu os primeiros passos em direção ao Ministério
Público e à Defensoria Pública. Lá, ela denunciou Fábio por calúnia,
injúria e difamação, por tê-la rotulada de golpista e vadia, da mesma
forma que ao filho de sete anos, portanto, menor, a quem ele chamou
118
Victorino Aguiar
em altos brados de bastardo. Além disso, denunciou-o também pelas
ameaças feitas contra a integridade física, emocional e moral dela,
acrescentando que ela o julgava capaz de cumprir as ameaças, porque
ele estava revoltado contra tudo e contra todos, totalmente fora de si,
desde que soubera que não era filho biológico de Francisco. Ela disse
dispor de provas suficientes para incriminá-lo como assassino do
próprio pai. A promotora foi informada da condição de viúva e meeira
de Rosa, e de herdeiro necessário de Júnior. Depois de registrar tudo
que foi dito por Rosa, a promotora informou a ela que as providências
cabíveis seriam tomadas imediatamente, que Fábio seria citado para
comparecer e se defender das acusações. Ele receberia, também, uma
notificação impedindo-o de dar início ao inventário. Primeiro, ele teria
de comparecer a uma audiência acompanhado dos demais
interessados, a qual contaria com a presença dela, que deveria estar
munida de todos os documentos de que dispusesse, inclusive de fotos.
Poderia também se fazer acompanhar das testemunhas. A promotora
garantiu a ela que nada poderia ser feito antes de ser autorizado pelo
Judiciário. Aconselhou-a comparecer à Defensoria Pública e ao
Conselho Tutelar, por haver um menor envolvido nas pendências.
Assim, antes mesmo que Dr. Mílton pusesse em ordem a
papelada para dar início ao inventário, Fábio recebeu a citação do
Ministério Público, dando conta do ingresso naquele órgão de pedido
de medidas cautelares para resguardar direitos de menor e de
companheira no inventário. O documento informava local e data da
audiência, a ser realizada com a presença de todos os interessados no
inventário. Nada poderia ser feito antes que esta audiência fosse
realizada. Fábio também foi convidado a se explicar quanto às ameaças
feitas contra Rosa, por ela relatadas com riqueza de detalhes.
Primeira audiência
A essa audiência, junto com Rosa, também compareceram
Amanda e Vera, que confirmaram integralmente as declarações de
Rosa. Vera declarou ter ouvido diversas conversas entre Fábio e Regina,
nas quais os dois tramaram ações que poderiam apressar ou mesmo
provocar a morte de Francisco. Com relação à conversa mais
comprometedora, Vera não se lembrava na íntegra do conteúdo dela,
119
Victorino Aguiar
mas as falas que ouvira eram suficientes para comprovar a
determinação dele e de Regina de assassinarem seu Francisco.
Fábio protestou, alegando que as duas eram useiras e vezeiras
em ficar pelos cantos bisbilhotando conversas para divulgá-las
posteriormente entre parentes e conhecidos. Até no velório, se deram
a este comportamento criminoso, criando um ambiente de
desassossego e tumulto. Era de se estranhar que não tivessem também
gravado as conversas que alegavam ter ouvido. As duas deviam, sim,
ser acusadas formalmente por gravar e divulgar conteúdo íntimo,
familiar, no ambiente de trabalho e em atos religiosos. Estes, sim, eram
crimes, até mais graves que as falsas denúncias de ameaças de que ele
era acusado por Rosa.
A promotora reconheceu que estas gravações eram realmente
consideradas crimes, que não poderiam ser reconhecidas como prova,
e elencou as penas descritas em lei para o cometimento de tais crimes.
Perguntada pela promotora sobre quando teria havido tais conversas,
Vera lamentou não saber precisar. Na verdade, ela tinha todas as datas
anotadas, mas, diante da insistência da promotora e do tom em que
esta formulou a pergunta, Vera ficou nervosa, teve um apagão e
tropeçou nas palavras. Sabia que foi depois da morte de Francisca.
Além dessas conversas, ela ouvira alguns diálogos deles na própria casa,
mas não tinha como provar.
Fábio justificou algum destempero da parte dele com o fato de
estar num momento de muita dor e sofrimento. A morte do pai
representava para ele uma grande perda. Ele via a família se
desintegrar em muito pouco tempo. Primeiro, foi a morte da mãe, que
desestruturou o psicológico do pai, quase o impossibilitando de assistir
a esposa. Depois, o pai adoeceu e foi posto fora de combate, em tempo
recorde. Com um irmão morando noutro continente e outro ainda
imaturo; com Francisca, de saúde frágil, menor e muito sensível, ele
era, na realidade, o único suporte de toda a família. Depois, veio a
morte da irmã tão querida, ainda tão jovenzinha. Como filho mais
velho, tudo recaía sobre as costas dele. Foi demais para ele, saber que
o pai tinha um filho fora de casa, concebido antes que a mãe tivesse
falecido, e nascido depois que o pai já estava incapacitado. Ele pedia,
120
Victorino Aguiar
sinceramente, desculpas se, por acaso, inconscientemente, tivesse se
excedido uma vez ou outra, mas reafirmava com todas as forças que
Rosa se valera da fragilidade e vulnerabilidade do pai dele para
engravidar, reiterando que não descartava a possibilidade de ela ter
colhido o esperma de Francisco para inseminar a si mesma. A
autoinseminação sem o conhecimento e a concordância do doador
constitui crime previsto em lei. A defesa de Fábio se recusa a aceitar a
certidão de união estável, alegando que Francisco só a mandara lavrar
por não desconfiar de ter sido vítima de uma gravidez derivada de
autoinseminação não consentida. Requer que sejam negadas a
condição de filho de Júnior e a condição de companheira estável não
convivente de Rosa.
O defensor público protesta; o menor, em nenhuma hipótese,
pode ser privado dos direitos derivados da condição de filho e herdeiro
necessário de Francisco. Não apenas por ser menor, mas porque as
provas da paternidade de Francisco são mais que evidentes, a começar
pela gritante semelhança física de Júnior com o de cujus. Ainda que, em
hipótese, Rosa pudesse ter se valido de expedientes escusos para
engravidar, ainda assim, o direito do menor não poderia ser atingido
pelo eventual cometimento de ilícito por parte da mãe.
Ele requer que seja realizada uma nova audiência, já que ele
não teve tempo suficiente para se dedicar ao processo e estudá-lo com
toda a atenção que este exige, o que se torna necessário para que o
processo tenha um desfecho justo para todos. Reitera a subsistência de
indícios robustos de que pode ter havido, no mínimo, negligência por
parte do curador, isto é, de Fábio, quanto às obrigações devidas ao
curatelado.
Segunda audiência
Iniciada a audiência, foram lidas as transcrições das declarações
de Rosa, Vera e Amanda, tomadas a termo na primeira audiência no
Ministério Público. Em seguida, foram também lidas as escrituras
126
Victorino Aguiar
públicas mandadas lavrar por Francisco, mais as cópias das conversas
entre Francisco e Rosa em aplicativos. Dr. Mílton se apressa a rebater o
conteúdo dos documentos apresentados pela Defensoria:
- Meritíssimo, estas escrituras não têm valor jurídico, Francisco as fez
quando estava sob tratamento médico, psiquiátrico, sofrendo os
efeitos de uma severa depressão. A autora se valeu da fragilidade do de
cujus para induzi-lo a fazer isto. Nem seria temerário dizer que ela pode
ter colhido o material espermático de Francisco e inseminado a si
própria, já que seria muito improvável que ele se arriscasse a manter
relações sexuais sem medidas mínimas de proteção contra doenças
sexualmente transmissíveis e, mais ainda, para evitar uma eventual
gravidez, catastrófica naquele contexto. É sabido que a depressão
severa acarreta lentificação, rouba muito da capacidade do paciente de
responder adequadamente às demandas rotineiras do dia a dia. É
público e notório que a medicação de que Francisco fazia uso
prejudicava quase irremediavelmente a consumação de relações
sexuais, seja por inibir a libido, seja por impossibilitar a ereção, pelo
menos num nível suficiente para a penetração e inseminação. Temos
como provar que ele esteve sob os efeitos de forte medicação
antidepressiva durante muitos meses antes da hospitalização e da
incapacitação definitiva. Foi tomado por este estado de espírito que ele
mandou lavrar estas escrituras. Temos os comprovantes das consultas
com o psiquiatra, as notas fiscais dos remédios. Pela data de
nascimento do menino, se ele foi mesmo fruto de relações sexuais
mantidas entre Francisco e Rosa, essas relações se deram quando a
esposa estava no auge do sofrimento, praticamente in extremis,
quando ela enfrentava os piores momentos da doença, dois ou três
meses antes da morte dela. Francisco estava tão debilitado e
desorientado, que os filhos já até cogitavam de interditá-lo, tal era a
gravidade do estado do pai, por causa da depressão e dos fortes efeitos
colaterais dos remédios que ele tomava. Acresce, meritíssimo, que ele
chegou a ficar internado por dois dias. Aqui estão todos os resultados
dos exames feitos por ele poucos dias antes de ser levado pela segunda
vez para o hospital, de onde retornou definitivamente incapacitado.
Tomografias, raios-X, exames de sangue etc. Ainda que o exame de
127
Victorino Aguiar
DNA viesse a comprovar a paternidade, esta decorreria de crime similar
a estupro de vulnerável, de abuso sexual de incapaz, cometido com o
visível propósito de obter vantagens para ela, como vulgarmente se diz,
fazendo uso do golpe da barriga. O comportamento da reclamante
atesta de modo cabal que ela tinha apenas interesse nas vantagens que
obteria após a morte de Francisco. Durante os sete anos do martírio de
Francisco, poucas vezes ela o procurou, muito raramente o visitou.
Contam-se nos dedos das mãos as vezes em que ela foi visitar aquele
que ela insiste em chamar de companheiro. Só depois de dois meses
após a incapacitação de Francisco ela deu as caras, mesmo assim, se
apresentou na condição de amiga de longa data, dupla mentira,
porque, na melhor das hipóteses para ela, nem um ano havia que eles
tinham se conhecido. Existe, inclusive, a possibilidade de que ela tenha
engravidado de outro homem.
133
Victorino Aguiar
Capítulo VIII
134
Victorino Aguiar
Mas nada de inútil acontece no universo. Mesmo um evento
traumático como este traz alguma coisa de bom. Preso, Fabio teve mais
tempo para refletir e concluir que Francisco fizera por ele o que
acreditava ser o melhor que podia fazer. Já no tribunal, Fábio teve uma
compreensão menos irracional do drama que o destino lhe reservara.
Percebeu que no fundo ele continuava a amar Francisco com a mesma
intensidade que o amava antes de saber que não era filho biológico
dele. Foi por isso, aliás, que ele não pegou a pena máxima. Foram
sinceras as lágrimas que ele derramou no tribunal, durante boa parte
do julgamento e ao receber a condenação aos 5 anos de prisão. Foi por
causa dessas lágrimas que a pena dele foi atenuada. Também o fato de
ele ter cuidado com denodo do pai, praticamente sozinho, até tomar
conhecimento de que fora mantido por ele na ignorância de não ser
realmente filho biológico dele, certamente pesou na estipulação da
pena. Outra atenuante de muito peso foi o áudio em que Francisco
declara amor profundo pelo filho, e atesta que Fábio foi quem mais se
empenhou na construção do pequeno império pela família. Os cinco
anos em regime fechado a que Fábio foi condenado ficarão reduzidos a
menos de dois anos, após aplicados os direitos garantidos por lei a
quem tenha cumprido mais de um sexto da pena e apresente bom
comportamento. Mas este tempo é suficiente para que Fábio recupere
a razão e a humanidade. Este período foi para ele uma espécie de ano
sabático. Fábio agora é um homem novo. Com selo de qualidade. Em
todos os sentidos. Ele fez significativas descobertas acerca de si próprio
e da natureza humana, neste primeiro ano de prisão. A primeira delas é
que as mulheres não cumprem um papel positivo na vida dele. Elas
sempre trazem dissabores à vida dele. Regina vem mostrar a ele, de
modo definitivo, que a praia dele é outra. Mais uma vez, se confirma a
má sorte dele com mulheres. Elas sempre representaram problemas
para ele, a começar pela mãe, que o abandonou pequeno ainda nos
braços de Francisco. Tudo como vingança por ter sido trocada por outra
pelo marido. A segunda figura feminina que entra em cena, Sara, a
madrasta, o enganou o tempo todo, escondendo dele a condição de
filho não biológico de Francisco. Por causa dela, o segredo da condição
dele de filho não biológico veio a se tornar de domínio público. A ele,
135
Victorino Aguiar
que tinha o legítimo direito de tomar conhecimento deste estigma em
primeira mão, foi sonegado este sagrado direito. Não bastasse isso,
Sara ainda jogou Francisco numa aventura, e colocou em risco o
patrimônio da família, o que resultou na entrega integral em mãos
estranhas de tudo que foi construído com o esforço da família. Depois,
chega Francisca, que lhe roubou o posto de mais querido e que vivia
inventando males para sugar de Francisco o pouco de carinho que este
ainda lhe dedicava. A lista é longa. Rosa, vagabunda, vadia, golpista,
que se valeu de uma barriga obtida criminosamente e de um filho
bastardo para entrar na posse do que não merecia. Esta só entrou na
história da vida dele para usurpar o direito que ele tinha à herança do
pai. Chegou a vez de Regina, que só se aproximou dele para desfrutar
da herança que ele teria direito com a morte de Francisco, e que
mantinha em segredo um caso com o médico da família, de quem
pegou uma barriga, que fatalmente seria empurrada para ele, que a
teria assumido inocentemente, caso o plano dela tivesse dado certo,
tal qual havia sido feito com Francisco. Mas ele já superou tudo isto. Ele
não guarda mágoas, nem ressentimento. Apesar dor, decorrente da
privação da liberdade, são positivas as experiências pelas quais ele
passou até ali. Ele se arrepende sinceramente de ter agido como agiu
em relação ao pai. O ódio finalmente deixa de fazer morada no coração
dele. Reconhece que Francisco e Sara foram generosos com ele, e que,
apesar da má sorte, ele teve ainda muitos momentos de felicidade
junto aos familiares. Ele vai se reinventando, de certa forma, se
conformando com que a vida lhe apresenta. Por ter curso superior,
Fábio é colocado num pavilhão diferenciado. Ele tem direito a visitas
íntimas; bem pode conseguir uma companhia feminina, mas o interesse
dele por mulheres já não existe mais. Enfim, decididamente, as
mulheres são para ele apenas fontes de dor e decepção. A maneira dele
de encarar a própria sexualidade sofre uma radical transformação.
Concorre para isto esse pavilhão em que ele foi colocado, destinado a
condenados com nível superior e de baixa periculosidade.
Aos poucos, Fábio vai se abrindo para novas modalidades de
consórcio afetivo e sexual. Quem sabe, ele não estará apenas dando
vazão à natureza dele, à verdadeira orientação sexual com que
136
Victorino Aguiar
nascera? Para sorte dele, ele não é o único presidiário nesta condição;
há outros com o mesmo estado de espírito dele. Bem, Fábio acaba por
se envolver com um desses presidiários e os dois decidem se casar. O
futuro marido de Fábio já cumpriu boa parte da pena e, em pouco
tempo, também terá direito ao regime semiaberto. O casamento será
realizado no próprio presídio, e será registrado como uma união estável
homoafetiva.
Regina
Agora, que Fábio ficou órfão da herança deixada pelo pai,
Regina está apartada da boa vida que ele proporcionava a ela. Tempos
difíceis. A gravidez não chega a ser uma pena, um castigo, mas não
deixa de ser um encargo mais duro e um fardo mais pesado para quem
cumpre pena em regime fechado num presídio feminino da Zona Oeste
do Rio de Janeiro. Não há mais interesse da parte dela em esconder,
nem há como esconder, que a criança que ela dará à luz não é filho de
Fábio, mas, sim, de Dr. Arnaldo, que assume a paternidade da criança
sem problemas. Ela dará à luz um menino, poucos meses depois do
início do cumprimento da pena. Então eram verdadeiras as suspeitas de
Vera e Amanda de que Regina tinha um caso com Dr. Arnaldo. Eles se
assumirão como amantes e se casarão ainda durante o cumprimento
da pena dela. A lei é dura, mas não tanto. Na condição de mãe, dona de
bom comportamento, logo Regina terá o direito de cumprir a pena em
regime semiaberto, com o uso de uma tornozeleira eletrônica. De dia,
sob os auspícios do marido, ela trabalhará na Saúde, retornando para a
prisão à noite. Uma nova gravidez, afinal, será um salvo-conduto para a
137
Victorino Aguiar
liberdade condicional. São duas crianças que dependem dos cuidados
maternais. Lei é lei.
Fabrício
Quando Fabrício se deu conta de que a galinha de ovos de ouro
estava prestes a morrer, começou a se empenhar ao máximo na
faculdade. Tinha de terminar o curso de qualquer jeito. Sabia que ia
enfrentar um longo tempo de vacas magras. Não pretendia voar muito
alto. Bastava ter um cantinho para viver, alguma coisa para comer, uma
maconha para fumar. Quem sabe ele não venha a se decidir a morar
em Saquarema? Esta, aliás, é a primeira ideia que lhe ocorre, quando
tem certeza de que terá de contar com os próprios e limitados recursos
intelectuais de que dispõe. Lá, ele terá tudo de que precisa e que o fará
feliz. Quem sabe venha a se envolver com uma artesã que possua uma
barraca na Feira dos Hippies? Afinidades não faltariam. Teriam tudo a
ver um com o outro. Existem artesãos que conseguem tirar uma boa
renda na Feira dos Hippies, vendendo brincos, pulseiras, colares e
outras bugigangas. Muitos artesãos conseguem até comprar dessa
maneira uma casa confortável na área rural ou mesmo na área urbana.
Já imaginaram se ele consegue se envolver com uma artesã, que o
convide para morar com ela numa suíte perto da praia, ou para dividir
com ela uma casinha ao pé da serra, na área rural? Ele não precisaria se
esforçar muito para se adaptar à cidade, porque já está acostumado
com o ritmo e os ares dela, de tanto visitá-la e ficar acampado,
principalmente nos períodos em que ocorrem os torneios e
campeonatos de surfe, o esporte queridinho dele. Se ele resolver morar
lá, antes mesmo de terminar o curso, ele já estará integrado na cidade.
Logo uma dondoca o contratará para ser o treinador pessoal dela. Será
fácil conseguir uma vaga no ônibus universitário para cumprir os dois
anos que ainda faltam para ele concluir o curso. A ida e vinda no ônibus
será uma verdadeira festa para ele. Através da dondoca, ele poderá
conhecer uma liderança política local, que o convidará certamente para
ser cabo eleitoral. Trabalho leve. Nada que o estresse. Daí para entrar
na prefeitura pela janela será um pulo. Conseguir um contrato na
prefeitura, meu Deus, que glória! Empregado, com uma renda fixa,
138
Victorino Aguiar
pequena que seja, será um partido bom para a hippie que tem uma
barraca na Feira. Casamento, na certa. A esta altura, ele já será um
artesão, já a ajudará a produzir as mercadorias que os dois venderão na
Feira. Ele até poderá ajudá-la a vender o que produzirem, trabalhando
na barraca, nas noites dos fins de semana, principalmente na alta
temporada. Fabrício será um homem de bem, e levará a vida com que
sempre sonhou. Tomara que ele consiga isso e seja feliz. A vida é
simples demais, a gente é que complica. Cachoeiras, trilhas,
parapentes, ondas - as melhores do mundo-, gente bonita. Saquarema
é um paraíso. Só não vai dar pra voar muito alto, mas voar não é
mesmo a praia dele. Voar é com os socós, as imponentes aves que
sobreviveram aos predadores e ainda enfeitam as luxuriantes lagoas da
cidade. Elas também não voam muito alto, nem para muito longe. E
nem precisam fazer isto. E talvez esta seja a explicação para que elas
tenham sobrevivido aos humanos. O negócio de Fabrício é o mar.
Mesmo gelado e bravio, o mar nunca será um risco para ele; ao
contrário, será sempre uma fonte de prazer. A simples contemplação
do mar, uma centena de braçadas pela manhã, ou uma surfada básica
antes de começar o expediente, qualidade de vida - estas coisas não
têm preço. Em Saquarema, ele estará em casa.
Tomara que ele consiga iniciar a nova vida que se apresenta a
ele. E que consiga ser feliz. Ele pede tão pouco. A vida é muito simples,
a gente é que complica
Fernando
Fernando vai bem, obrigado. Faz muito bem a ele os ares da
terrinha. Agora mesmo é que ele não tem mais nada a ver com o Brasil.
Os pais estão mortos; Francisca está morta; Fábio está preso, e vai
permanecer preso por muito tempo; com Fabrício, nunca teve mesmo
muita conexão; imagina então com Júnior, o irmão caçula.
Ele não se incomodou muito com o fato de não ser
contemplado com nada do espólio. Nunca morreu mesmo de amores
pelo patrimônio do pai. Até porque o que ganhava com o cargo na
União Europeia já lhe tornara possível formar um pequeno patrimônio,
que ele decerto saberia multiplicar com o tempo. Além disso, ele dava
139
Victorino Aguiar
mais importância ao status, e também neste quesito ele já tinha dado
um grande passo. O fim do processo de inventário deu a ele o que ele
mais queria. Talvez a melhor parte. Ele teve direito à tão sonhada
liberdade. Cortava de vez o cordão umbilical e os laços familiares.
Agora, ele estava definitivamente desobrigado de atravessar o Oceano
Atlântico para visitar a família que, para ele, nem mais existia. Bye, bye,
Brasil.
Rosa
Enquanto não entra na posse do que lhe cabe da herança, para
se sentir viva, superar a tristeza e não deixar que esta se eternize e
piore a situação do filho, Rosa se dedica com exclusividade à vida
profissional e aos cuidados com Júnior. O menino certamente
necessitará de cuidados redobrados para que a dolorosa experiência
por que passou não venha a prejudicá-lo irremediavelmente no futuro.
O inventário é uma fonte de preocupação para Rosa. O
processo não anda na velocidade desejada, tudo anda muito devagar,
apesar da ajuda de Nelson; é muita burocracia. Rosa não vê a hora de
tudo ser resolvido, não vê a hora de a partilha ser feita, para que ela
possa finalmente dar início à nova vida que a espera. Ela garante a si
mesma que, quando isto acontecer, ela encontrará um meio de ajudar
as amigas. Talvez fosse bom abrir uma empresa de prestação de
serviços médicos domiciliares em sociedade com elas, e colocá-las
como gestoras.
Já foi solicitado ao juiz um alvará autorizando a retirada dos
valores existentes nas contas bancárias de Francisco, para pagar as
despesas do processo. A situação de Amanda também a preocupa. Ela
insiste em que Amanda deve aceitar a oferta de Vera de ir morar com
ela. Pelo menos por um período, até que as coisas melhorem.
Amanda não enxerga uma solução melhor. Na realidade, ela
nem tem outra opção. Desocupa a casa e pega de volta o que resta da
caução, valor equivalente a um mês de aluguel. Vende a maior parte da
mobília e guarda o que obtém com a venda para o futuro. Este valor
servirá para pagar a mudança e custear as despesas do dia a dia que
140
Victorino Aguiar
terá a partir de então. Rosa tira um peso das costas, com a decisão de
Amanda. Ela queria tanto retribuir a ajuda desinteressada das duas...
Os dias transcorrem com lentidão para Rosa. De casa para o
trabalho, do trabalho para casa. Ela ainda não assimilou a tragédia que
foi ter perdido o companheiro; era duro ter de criar um filho que foi
privado da convivência com o pai desde o nascimento. É como se o filho
já tivesse nascido órfão.
Mas a luz volta a brilhar no horizonte. É com alegria que ela
recebe uma ligação de Nelson, convocando-a para uma conversa a
respeito do inventário. Parece que as coisas andaram. Ele a coloca a
par de que, em menos de quinze dias, ela entrará na posse da herança
e será nomeada tutora de Júnior. Nelson alonga a conversa com Rosa.
Na verdade, nem havia necessidade de uma conversa daquela fora do
ambiente da Defensoria. O que Nelson queria era um pé para estreitar
a proximidade física entre os dois.
- Você andava meio tristinha. Eu já estava até preocupado com você.
Agora vai ficar tudo melhor. Como é que você está de cabeça?
- Eu ando muito abatida, é muito problema, muita coisa para a minha
cabeça. Às vezes, parece que ela vai explodir, me dá até vontade de
chorar.
O cérebro é uma máquina misteriosa. A simples menção da
palavra chorar faz os olhos de Rosa se encherem de lágrimas. Coitados
dos homens. Eles ficam desconfortáveis diante dessas cenas. Mulheres
chorando, na presença de homens, enfraquecem muito o gênero
masculino. Principalmente se essas cenas contarem com a participação
de homens com o perfil de Nelson. E se os olhos desse homem já
brilhavam antes disso, a coisa complica; mais desconfortáveis ainda os
homens ficam. Nelson está fraquinho. E tenta consolá-la:
- Isso tudo vai passar, Rosa. A vida não se acaba, nem para quem
morre, nem para quem fica. Se eu pudesse, faria tudo ao meu alcance
para ver seus olhos brilharem. Tente se divertir, passear um pouco, se
desliga um pouco, você ainda tem muita coisa para realizar, muita vida
para ser vivida neste plano.
Ele enxuga carinhosamente as lágrimas dela, e pergunta pelas
amigas:
141
Victorino Aguiar
- E Vera e Amanda, como elas estão?
- As coisas não andam boas para Amanda. A mãe dela morreu e ela está
com dificuldade de arrumar trabalho. Está morando de favor na casa de
Vera. Pelo menos, Vera não paga aluguel. Felizmente, as duas estão se
entendendo muito bem. Elas estão dividindo as tarefas de casa, enfim,
estão tocando a vida, na medida do possível. A situação de Amanda
estava complicada, porque ela dependia da mãe para tomar conta do
filho, Lucas, e também para pagar parte das despesas de casa. Eu ajudei
como pude, emprestei a ela uma pequena quantia. Queria poder ajudar
mais, porém, as coisas também não andam muito boas para mim.
Agora, graças a Deus, ela está melhor. Tirando o luto pela morte da
mãe e a escassez de plantões, ela está bem, vai levando. Por sorte, o
menino dela também se adaptou à nova casa. Vera o trata como a um
filho, e ele também a adora.
Nelson sugere a Rosa que eles se encontrem mais fora do
ambiente da Defensoria, confessa que gosta da companhia dela, que se
sente bem na presença dela. Ela desconversa, alega que tem pouco
tempo para atividades deste tipo. Durante a semana, ela trabalha todos
os dias, nos turnos da manhã e da tarde. Passa o dia todo na escola do
Estado, nem almoça em casa. Sai de manhã cedinho e retorna no final
da tarde. De segunda a sexta, o menino fica o dia todo sob os cuidados
da babá. Nos fins de semana, ela tem de confeccionar os testes e as
provas. Depois, tem de corrigir tudo e lançar as notas nos diários.
Parece que o trabalho nunca tem fim. Ela só tem os sábados e
domingos para dar uma geral na casa, porque a grana é curta, e não dá
para ter uma empregada em tempo integral. De 15 em 15 dias, ela se
dá ao luxo de dispor de uma diarista. Em resumo, tem muito pouco
tempo disponível. De qualquer modo, sempre pode aparecer uma
oportunidade. Ele sugere um sábado à noitinha, ela pode levar o filho,
se quiser. Ela não acha conveniente que o filho vá com ela, porque ele é
muito levado, e dorme muito cedo:
- A gente vai se falando pelo zap.
143
Victorino Aguiar
- Eu não gostaria de ser surpreendida com a notícia de que está rolando
alguma coisa entre vocês. É melhor eu ir me preparando para encontrar
outro ninho.
- Amiga, você está vendo coisas. Por que está me perguntando isto? De
onde você tirou esta ideia? Somos amigos, só isso.
- Tudo bem. Deixa pra lá. Só perguntei.
Vera e Amanda
Vera e Amanda são duas pessoas desse tipo, resistem quanto
podem a se relacionar afetivamente com alguém. Será que elas
conseguirão? Parece que Amanda não leva muito a sério a
determinação de Vera de não se envolver com ninguém.
Apesar de Vera não dar sinais de que possa não respeitar e não
seguir a decisão dela, Amanda não se sente segura, sempre conta com
a possibilidade de isto vir a acontecer, e ela ter de abandonar a casa.
Bom é que ela se prepare para esta possibilidade. Numa das conversas
que as duas mantêm, enquanto elas assistem displicentemente e sem
compromisso à televisão, Amanda comenta com ela que já está
sondando as ofertas de casas para alugar. Quer estar preparada para
quando ela finalmente se aprumar na vida. Por mais que Vera tente
tranquilizá-la quanto a isto, Amanda continua preocupada.
- Minha amiga. Fica tranquila. Você pode ficar aqui o tempo que quiser,
o tempo que precisar.
- Mas não é justo, eu tenho de seguir o meu caminho. Não posso privar
você de viver sua vida. Se você se envolver com alguém, você tem o
direito de se acertar com ele. Não acho justo você se privar de ser feliz
com alguém, por minha causa.
- Minha amiga, eu nunca estive tão feliz na minha vida. Se depender de
mim, você mora aqui para sempre. Você e Lucas já fazem parte da
minha família. Para mim, vocês são a minha família. Quero que vocês
sejam felizes, de preferência, aqui comigo, ao meu lado.
- Eu também estou muito feliz, amiga. Lucas também.
152
Victorino Aguiar
quê? Ainda não acredita? Você não está me atrapalhando em nada,
Amanda, pelo amor de Deus.
- Eu não gostaria de ser surpreendida com a notícia de que está rolando
alguma coisa entre vocês. É melhor eu ir me preparando para encontrar
outro ninho.
- Amiga, você está vendo coisas. Por que está me perguntando isto?
Somos amigos, só isso.
- Amigos se beijam na boca? Isto é novidade pra mim.
- Eu não beijei ninguém na boca. Apenas nos beijamos nas bochechas.
- O que eu vi foi outra coisa.
- Você está com ciúmes de mim, ou eu estou sonhando?
- Não estou, não. Só fiquei decepcionada, porque você quase me jurou
que nunca ia se envolver sentimentalmente com ninguém.
- Mas eu não estou envolvida sentimentalmente com ninguém. Você
está com ciúme de mim. Claro que está. Só pode ser.
- Nada a ver. Você jurou que não se envolveria com ninguém. Me
enganou. Melhor eu ir me preparando mesmo. Não quero te
atrapalhar. Só isto. Acho melhor assim.
Amanda começa a chorar. Vera fica surpresa, não sabe como
reagir. Amanda se recompõe:
- Desculpe, ando muito sensível. Acho que ainda não digeri bem a
morte de mamãe.
O episódio é logo esquecido. Elas continuam a manter a mesma
rotina de sempre, principalmente à noite. As duas já não conseguem
mais dormir separadas. Não demorará muito, e elas partirão para as
primeiras demonstrações de carinho através dos olhares e dos toques.
Depois disto, chegarão aos primeiros afagos, às mexidas recíprocas nos
cabelos. Daí, para os primeiros beijos, pouco tempo passará. Para
encurtar a história, o amor baterá o martelo, e dirá a última palavra.
As duas se descobrem apaixonadas. E agora? Bem, agora, a
prudência manda que elas mantenham este amor em segredo; no
entendimento delas, para preservar o menino e a imagem delas. Agora,
Amanda e Vera já sabem com certeza o sentimento que as une. Não há
como negar. Elas deviam saber que é da natureza do que é secreto vir à
153
Victorino Aguiar
tona, principalmente quando a matéria-prima do segredo é o amor. Os
olhos do defensor público que o digam.
Depois que as duas se assumem, Amanda fica sabendo que
Vera vinha alimentando a ideia de ser mãe. Faltava apenas definir como
ela faria isto. Amanda sugere que ela recorra a um banco de sêmen.
Não quer nem pensar que Vera vai ser penetrada por um homem:
- Quanto a isto, pode relaxar. Jamais me deitarei com um homem.
- Eu sei, mas esta amizade de Itamar com você me incomoda, vocês são
muito carinhosos. Não gosto.
- De novo, está com ciúmes? Agora você não tem mais motivos para
desconfiar de nós dois. Está com ciúmes? De novo?
- Estou, sim, e daí? Você jurou que não se envolveria com ninguém.
Nada de muita intimidade com ele. Nem com ninguém.
- Tolinha, minha amizade com ele é de irmãos. Ele está me dando apoio
para o projeto da maternidade.
- O quê? Como assim? Que tipo de apoio? Vocês vão transar?
- Meu amor, ele é gay, desde criancinha. Jamais ele se deitaria comigo.
Minha ideia é fazer a autoinseminação, há muito tempo. Não vejo
problema de ele doar o esperma. Ele é uma pessoa saudável, tem bom
coração, não pretende ser pai. É independente financeiramente. Tem
todas as condições.
A ideia de fazer a autoinseminação começou a nascer quando
Vera ouviu a acusação feita a Rosa por Fábio; depois de se informar
bastante a respeito do assunto, a ideia cresceu. Ela não gostava de se
imaginar penetrada por um homem, tremia só de pensar. E só aceitaria
realizar o sonho de ser mãe se fosse através da autoinseminação. A
única pessoa em quem ela pode confiar é Itamar. Itamar, na verdade,
apesar de ser muito discreto e ter poucos trejeitos femininos, é mesmo
gay desde criancinha. Ele já foi sondado por Vera e aceitou ser o doador
do esperma para a autoinseminação. Vera garante a Amanda que ela
não será penetrada pelo rapaz:
- Sou tua. Só tua, para sempre. Te amo.
- Também te amo! Muito!
154
Victorino Aguiar
As duas resolvem oficializar uma união estável entre elas, e
promover uma pequena solenidade com a presença de alguns colegas
de trabalho e, é claro, Rosa e Nelson. Elas torcem para que os dois se
acertem também. O defensor arrasta as duas asas para Rosa; elas ficam
felizes com isso, porque sabem que a amiga merece ser feliz. Ela já
sofreu muito com tudo que aconteceu. O ideal é que Rosa e Nelson
aceitem ser os padrinhos do bebê que elas terão. Quem sabe, eles
também não terão um filho? Júnior vive pedindo a Rosa um pai vivo e
um irmão. Lucas também sonha com um irmão. Lucas e Júnior são
amigos demais, mas não são irmãos. Se Rosa e Nelson tiverem um filho,
as duas vão pedir pra elas serem as madrinhas. Na próxima visita de
Rosa, as duas conversarão melhor com ela. O bebê de Vera e Amanda
terá duas mães; os filhos de Nelson e Rosa terão duas madrinhas.
Tempos modernos. Elas também pretendem propor a Rosa que seja
feita uma única solenidade para os dois casamentos. Já pensou, que
chique?
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Victorino Aguiar
- Quero ir com a mamãe. Ela tá saindo com o Nelson. Quero ir com eles.
Eu gosto dele. Quero que ele seja meu pai vivo.
- Vamos para dentro. Vai brincar com o Lucas. Você vai gostar dele.
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Victorino Aguiar
Quando Rosa retorna da saída com Nelson, este pede que Rosa
chame o filho para ele dar um abraço no menino e entregar um
presente para ele. Júnior vem correndo como um foguete:
- Trouxe uma caixinha de sorvete para você. Mas só dou se você
adivinhar qual é o sabor.
- Claro que é de coco.
- Ah, assim não vale. Sua mãe lhe falou.
- Falou, não. Nem sabia que você ia me trazer uma caixa de sorvete.
- Puxa! Acho que você tem superpoderes.
- Você já sabia que eu gosto de sorvete de coco. Esqueceu que me deu
uma caixinha naquele dia?
- Puxa! Você é muito inteligente. Agora quero ver você adivinhar o que
mais eu trouxe.
- Fácil! Você trouxe outra caixa de sorvete para o Lucas!
- Epa! Você está ganhando todas! Caramba! Aqui, Lucas, a sua caixa de
sorvete. Nem vou perguntar de que sabor é. Estou perdendo todas.
-Mas eu sei. É de coco, também.
- Ainda bem que eu não perguntei.
Quando Nelson liga o carro pra sair, Júnior faz a ele a pergunta
de um milhão de caixinhas de sorvete de coco:
- Você vai namorar mamãe? Eu quero, quero que você seja meu pai
vivo. Vai? E quero um irmãozinho, também.
Nelson e Rosa
Amanda tem uma boca abençoada. A relação de Nelson e Rosa
deslancha. Depois desse primeiro encontro e dos beijos que eles
trocaram, após ter ignorado por tanto tempo as chamadas de vídeo
que Nelson fazia, ela finalmente passa a aceitá-las.
Eles fizeram grandes progressos. Rosa está bem mais solta. Já
vai longe o tempo em que ela usava um tratamento formal quando se
dirigia a ele. No princípio, ela misturava o Senhor e o Dr. com o você.
Agora, depois de tanto ele insistir, as duas primeiras formas de
tratamento já foram simplesmente jogadas na lata de lixo. Agora, todas
as vezes que ele faz chamada de vídeo, ela aceita sem nenhuma
cerimônia. Eles já têm um horário costumeiro para essas chamadas, e
ela chega a sentir falta quando ele atrasa a chamada ou fica
impossibilitado de fazê-la. Não raro, é ela quem toma a iniciativa de
convidá-lo. É numa dessas chamadas, a primeira que ela recebe após
saber do novo status do relacionamento entre Vera e Amanda, que ela
passa a novidade para ele:
- Se segura bem na cadeira, aí. Você nem é capaz de imaginar o que
aconteceu com elas. É algo que vai mudar a vida delas para sempre.
- Mudança para melhor ou para pior? Não me assusta. Foi alguma coisa
grave? Coisa boa ou ruim?
- Boa e ruim.
- Sou fraco em charadas. Conta logo, meu amor!
- Elas saíram do armário. Se apaixonaram. Coisa séria.
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Victorino Aguiar
Olha aí, o perigo. Vai que estes dois finalmente saiam também
do armário particular em que se encontram e assumam um
relacionamento. Pelo andar da carruagem, isto se mostra cada vez mais
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Victorino Aguiar
possível. Nelson aproveita, como sempre, a oportunidade para disparar
mais uma flechada na direção de Rosa:
- Eu vou adorar ser padrinho do filho delas. E se for na condição de seu
marido, vou gostar mais ainda.
- Claro que os padrinhos não precisam mais ser casados. Nem precisa
ser um homem e uma mulher. Pode ser um homem, dois homens; uma
mulher, duas mulheres. Pode ser solteiro, sim.
- Tudo bem, meu amor. Aqueles beijos do domingo aumentaram o
brilho dos meus olhos, fizeram o meu coração bater mais forte por
você. O meu coração já é seu. Até sonhei. Agora, vou pagar na mesma
moeda. Prepare-se você também para ouvir o que eu já quero te dizer
faz tempo. Se segura aí na cadeira: Eu te amo! Quero me casar com
você. Quando a gente se casar quero que você me dê um filho.
- Ai, Nélson.
- E tem mais.
- Mais ainda? Assim, eu vou cair da cadeira mesmo.
- Vou querer que Vera e Amanda sejam madrinhas do nosso filho. Já
estou imaginando a cara de felicidade de Júnior, ganhando um pai vivo
e um irmão ao mesmo tempo.
- Esqueci de dizer. Elas sugeriram que façamos uma única cerimônia
para os dois casamentos.
- Eu topo. Vamos ter tempo suficiente para colocar isto tudo em
prática. O que elas querem fazer vai ser demorado; tem muitas etapas
para serem cumpridas.
- As duas vão ficar muito felizes se nos casarmos também. Elas são suas
aliadas. Se dependesse da torcida delas, nós já estaríamos casados.
- Nós temos muitos aliados. Você sabe. A gente já poderia marcar um
encontro os quatro, mais as crianças. Pode ser na rua, na casa dela, na
sua casa, na minha casa.
- Melhor num ambiente aberto, onde haja brinquedos e mais crianças
para eles aproveitarem também.
- Tudo bem. Veja o dia com elas. Tem de ser num domingo.
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Victorino Aguiar
- Lucas e Francisco, cuidado, o mar está muito agitado, não saiam
daqui, fiquem brincando aqui na piscina. Nem pensar de botar o pé na
água. Além disso, a água está muito gelada. Dá pra se divertir bastante
aqui. Parece até a piscina da casa do Nelson.
- Mãe, eu quero a bola, deixa a gente brincar com a bola aqui na
piscina.
- Não, vocês vão acabar perturbando as pessoas próximas daqui,
jogando areia em todo mundo.
- Mas tem gente jogando vôlei, ali, ó!
- Nada de bola.
- Deixa, tia. A gente não vai jogar a bola pra longe, não, só vai brincar
aqui dentro da piscina.
- `Tá bom. Mas nada de brincar na areia, também. A piscina está bem
grande, parece até a piscina da casa de Nelson.
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Victorino Aguiar
cidade assim. Mas também existe o risco de a pessoa não se adaptar à
mudança. Amanda se lembra de Fabrício:
- Quem gostava muito de passar os finais de semana aqui era o
Fabrício. Ele adorava esta cidade. Vira e mexe, ele vinha pra cá. Era
fácil, enquanto ele tinha a mesada que Fábio dava a ele; agora, quem
sabe por onde ele anda. Tadinho, deve estar morando no alojamento
até hoje. Eu amo aquele menino. Quando fui trabalhar na casa, ele era
bem jovenzinho. Depois que cresceu, foi se afastando cada vez mais da
casa. Quando entrou na faculdade, praticamente desapareceu, só ia
para pegar dinheiro. Fábio escrachava a cara do menino. Volta e meia
tinha de salvar a pele de Fabrício e tirá-lo das encrencas em que ele se
metia por causa da maconha. Quem sabe por onde andará o meu
menininho.
O papo ia alto, até ser quebrado por alguns gritos, vindos das
proximidades. Logo se forma uma aglomeração na beira do mar,
justamente na direção da piscina onde brincavam Francisco e Lucas. A
piscina está vazia. Muita gente. Muita gritaria. Vera e Rosa querem ir
ver o que aconteceu. Amanda toma a frente e vai sozinha. Ela tem
razão de sobra para mantê-las longe da confusão. Lucas vem correndo
ao encontro dela:
- O menino deu um bico na bola, a bola foi parar no mar. Júnior foi
atrás dela, a onda carregou ele pra longe. Ele está se afogando.
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Victorino Aguiar
A praia toda está torcendo pelo menino. Todos dirigem suas
súplicas aos céus. Cada um na sua fé:
- Odoyá, Iemanjá!!
- O sangue de Jesus tem poder!
- Salva o meu filho, Nossa Senhora de Nazaré!
- Mãe das Águas, valei-nos!
Júnior está voltando. Júnior coloca toda água pra fora. Palmas
ecoam por toda a Praia da Vila. Rosa e Amanda chegam perto do
menino. Amanda é a primeira a ver que o guarda-vidas é Fabrício. O
menino foi salvo pelo irmão. Amanda o abraça, chora muito, Fabrício,
emocionado demais, também está chorando muito:
- Você acabou de salvar o seu irmão, Fabrício. Este menino é o Júnior.
- Meu irmãozinho... Júnior. Ele vai viver. Já está bem.
- Rosa, você se lembra dele? É o Fabrício.
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Victorino Aguiar
- Ele me pegou no colo e disse que ia me entregar ao meu irmão para
ele me levar para a areia de novo, mas antes ia me mostrar algumas
coisas que existiam no lugar onde ele estava morando. Perguntei a ele
porque ele estava vestido com uma roupa diferente da que eu vi
quando ele estava morto, dentro do caixão. Ele disse que não estava
morto, e que tinha trocado de roupa. Eu disse que gostava dele, e que
agora eu estava contente, porque tinha um pai vivo, que gostava de
mim e eu gostava dele. Eu disse que estava contente de ver meu pai
morto também, que eu gostava mais dele do que do meu pai vivo, que
eu queria ficar com ele pra sempre. Ele disse de novo que estava vivo,
que ninguém morre, que a gente só muda de carro, mas continua a ser
o motorista, que eu não podia ficar com ele e tinha de voltar. Ele sabia
que eu queria ser motorista quando crescer. Falou para eu ser
bonzinho pra meu pai Nelson e para meu irmãozinho que vai chegar.
- Então você matou as saudades dele.
- Sim. Fiquei muito feliz de ele me pegar no colo.
E o que mais você disse a ele?
- Quero que você me leve na escola, que vá nas festas da escola,
passeie comigo. Quero ficar aqui com você.
- Você não pode ficar aqui por muito tempo, por enquanto. Eu vou te
levar para passear enquanto seu irmão não chega aqui. Quando ele
chegar, vou entregar você a ele, e ele vai te levar para a areia.
Ele me levou num lugar muito bonito. Tinha muitas flores, as
casas eram transparentes, a gente podia ver por dentro delas, parecia
que as paredes e os telhados eram de luz. Eu tive vontade de ficar lá
com ele.
Claro que foi uma surpresa para eles, descobrirem que Fabrício
estava morando em Saquarema. Eles não sabiam, nem imaginavam que
Fabrício estava vivendo na cidade. Amanda, em especial, está muito
feliz por ter reencontrado Fabrício, principalmente por saber que ele
amadureceu, constituiu família e está realizado. Fabrício está casado
com uma hippie - Eva - com quem teve um filho – Bob Marley - ainda
antes de se formar. Ele abandonou o alojamento e foi morar com ela
numa casa no pé de uma serra. Eva também está grávida de dois
meses, e vai dar à luz a uma menina, que se chamará Janis Joplin.
De tanto visitar Saquarema, Fabrício acabou se tornando uma
pessoa conhecida e muito querida na cidade. Eva apresentou a ele um
candidato a vereador, com quem ele fez uma grande amizade. Foi este
candidato que conseguiu para Eva a doação deste terreno ao pé da
serra, onde os dois, com muito sacrifício, construíram uma meia água.
Daí, para Fabrício arrumar um emprego na prefeitura foi um pulo.
Através do amigo, já eleito vereador, ele entrou na prefeitura pela
janela e foi cedido para o Corpo de Bombeiros, onde trabalha como
guarda-vidas. Ele já terminou o curso na faculdade e trabalha também
como treinador pessoal. Nos fins de semana, ele ajuda Eva na feirinha
hippie.
A casa de Fabrício é simples, pequena, mas muito bem
arrumadinha. O ambiente exala um forte cheiro de incenso. Numa
prateleira na sala, há uma imagem de Buda. As roupas de Eva são
típicas dos hippies, em tudo lembra a Índia e os países orientais.
Fabrício conta a eles que Fábio se arrependeu profundamente
do que fez. Tem muitos remorsos por ter apressado a morte do pai.
Fábio sofreu muito quando veio a saber que Regina estava realmente
envolvida com o Dr. Arnaldo. O filho que Regina esperava era de fato
do médico. Dr. Arnaldo reconheceu a paternidade da criança e assumiu
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Victorino Aguiar
oficialmente o relacionamento com Regina. Ela já está no regime
semiaberto e deve sair para outro regime, porque está grávida de novo.
Não vai demorar muito, e ela estará totalmente livre. No fim das
contas, ele foi muito influenciado por ela. Ele deu muito poder a ela,
porque estava dominado pela revolta, pelo ódio. Agora, ele é outra
pessoa. Está em paz. Ele se assumiu como homoafetivo e está
sentimentalmente envolvido com um presidiário, com o qual contraiu
matrimônio no presídio, e com quem pretende morar quando adquirir
direito à liberdade. Também tem a intenção de ter um filho com o
companheiro.
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Victorino Aguiar
uma festança digna de registro. Apesar de Fábio e seu marido serem
ateus, eles aceitam participar da cerimônia e da festança.
Capítulo IX
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