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Victorino Aguiar

O INVENTÁRIO

Capítulo I

VELÓRIO

É um erro imaginar que a figura mais importante do velório é


sempre o falecido. Muitas vezes, acontece justamente o contrário, ele
faz apenas figuração. Às vezes, nem isso. Neste velório em que damos
início à nossa narração, por exemplo, a atenção de todos está voltada
para uma bela mulher. Ela não aparenta ter mais de 40 anos, e está
acompanhada de uma criança de aproximadamente 7 anos, um
menino, única criança presente ao velório. Há muitas mulheres no
ambiente, mas ela é, de longe, sem sombra de dúvida, a mais bonita.
Mas não é por causa da beleza que todos os olhares estão voltados
para ela. Com certeza é porque ela, aos prantos, está apontando para o
caixão, e dizendo para o menino, na verdade seu filho, com muita
emoção:
- Este homem era seu pai, um homem íntegro, um bom pai, um bom
marido, um homem de bem. Só tinha amigos, não tinha inimigos.
Espero que você puxe a ele; se você puxar a ele, será um grande
homem.
- Já chega. Basta! Se a Senhora não se retirar por bem, usarei de outros
meios. Não posso aceitar que a Senhora manche a memória de meu
pai, justamente na hora em que damos a ele nosso último adeus. A
Senhora é uma golpista, uma vadia, uma vigarista. Teve a coragem de
registrar uma criança com o nome do meu pai. Tentou se aproveitar da
condição dele, que não tinha como se defender desta calúnia, para
forjar direitos que a lei não lhe concede. Ponha-se para fora! A Senhora
e seu filho bastardo.
- Você é que está desrespeitando a memória de seu pai, humilhando e
fazendo mal a uma criança que não tem nada a ver com a sua má
índole. Você tenta desonrar o filho que ele deixa órfão ainda pequeno,
que não teve nem oportunidade de conviver com o pai. Você sabe
muito bem quem manchou e quem ainda mancha a memória de
Francisco. Não sou eu nem o nosso filho que manchamos a memória
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dele. Muita água vai correr por baixo da ponte. Você já chamou meu
filho de bastardo inúmeras vezes; isto não é apenas uma ofensa, é
também uma mentira, uma injúria e uma difamação, além de ser uma
infração ao Estatuto da Criança e do Adolescente. O tempo e os
documentos que tenho provarão quem é realmente o filho bastardo.
Eu tenho comigo uma certidão de união estável feita por ele, em
cartório. Tenho uma escritura pública assinada por ele, assumindo a
paternidade do meu filho. Na certidão, ele autoriza que seja tirada uma
parte do corpo dele para ser feito um teste de DNA, se alguém achar
conveniente. Estou falando de documentos com fé pública, registrados
em cartório. Eu posso exigir que seja tirado um fio de cabelo de
Francisco para o exame de DNA, mas não há necessidade disto. Se você
quer de fato ter certeza de que Francisco é pai do menino, colha você
mesmo um fio de cabelo do seu pai, que nem é seu pai, e mande fazer
o teste, o menino está aqui. Aproveita e manda também fazer um teste
para comprovar que você não é filho biológico dele. Que Francisco é pai
de meu filho, eu tenho certeza. Quanto a você, há controvérsia. Não se
julgue acima da lei e do Direito, você não está se dirigindo a uma
mulher simplória. Tenho todos os elementos para fazer valer os direitos
do meu filho e os meus direitos.

O menino está agarrado à perna da mãe. Ele chora. Sua


fisionomia é a de uma criança acuada. Ele está assustado. Ainda aos
prantos, a mulher o toma pela mão e se retira do velório.

No exato momento em que ela inicia a caminhada em direção à


porta, alguém grita que há uma mulher gravando tudo com um celular.
Logo se junta um grupo de pessoas em torno dela, e se inicia uma
discussão. Mais uma. Fábio parte para o centro da roda e se dirige à
mulher, com bastante irritação:
- Você não está autorizada a gravar nada aqui. Você nem devia estar
aqui. Veio de intrometida, ao que parece, apenas para criar problemas.
Só a deixei ficar porque pensei que se comportaria melhor do que se
comportava no trabalho. Acreditei que tivesse vindo apenas por

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consideração a meu pai, que tivesse vindo para se despedir dele. Mas
me enganei, outra vez. Ponha-se para fora.
- Vim porque tinha carinho por seu Francisco e por dona Sara. Cuidei
dela até a hora da morte, e de seu Francisco até quatro meses antes de
ele morrer. O tempo que convivi com dona Sara e com seu Francisco foi
suficiente para saber da vida de dores e sofrimento que eles
suportaram para criar os filhos e manter unido o lar, que os dois tanto
prezavam. Aprendi o suficiente sobre seu Francisco para admirá-lo. Ele
não merecia estar cercado de cobras. Ao contrário de você, que se diz
filho, eu o tenho em alta conta. Se ele não tivesse morrido, com certeza
ele daria ao menino que você chamou de bastardo o mesmo carinho
que ele deu aos demais filhos.
- Este é um local sagrado, que está sendo profanado por uma mulher
leviana, uma profissional incompetente, e que foi justamente demitida
por isto. Este não é o local indicado para a gravação de cenas
planejadas e ensaiadas para a promoção de vingança, com o único
propósito de semear discórdia. Apaga esta gravação. Este é um local
privado, você não teve autorização para gravar nada aqui.
- O celular é meu, não apago nada.
- Tudo que você está fazendo é apenas para se vingar de mim, porque a
demiti.
- Você me demitiu em obediência a esta jararaca que se aproveitou da
sua fraqueza para lhe dar o golpe do baú. Foi ela que envenenou você
contra mim, com medo de perder a sua aba.
- Demiti você porque você é uma péssima profissional. Você tinha mais
interesse em mim do que no seu trabalho. Meu pai era o que menos
importava para você.
- Isto foi o que a jararaca lhe disse. Ela já envenenou você. Ela tem cara
de santinha, mas é uma cobra, como vocês todos. Você vai descobrir
quem é ela. Vocês não enganam mais ninguém, todo mundo já sabe do
envolvimento de vocês. Vocês se merecem. O dedo dela está metido
em tudo que aconteceu e que acontece na casa. Talvez até em
atividades no mínimo suspeitas. Quem sabe, até criminosas.
- Você não é só incompetente. É também mentirosa e invejosa.

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- Eu trabalhei mais de oito anos na sua casa. Você levou mais de oito
anos para descobrir isto. Mas você não descobriu nada, você foi
envenenado pela jararaca da sua namorada.
- Só lhe dei o emprego porque tive pena de você, fiquei comovido com
a sua situação, porque você praticamente me implorou, dizendo que
estava desempregada, tinha um filho pequeno para criar e não sabia o
que fazer. Você é uma golpista! Vigarista! Uma pilantra!

Fábio está ficando fora de controle. Alguém precisa encerrar


esta discussão. Coitado de Francisco. Nem depois de morto, ele tem
paz. Puxa! Ele merece ter paz. Alguém tem de trazê-la de volta ao
ambiente. E rápido, porque a corda está esticando. Nada do que está
acontecendo terá utilidade para ninguém. Alguém tem de fazer alguma
coisa, o ideal é que seja alguém da família, que, agora, está reduzida
aos três irmãos. Fábio está no olho do furacão, está envolvido até a
medula na disputa, nada pode fazer. Fabrício é uma mosca morta.
Como sempre, está muito zen, não dá sinais de que está incomodado
com o bate-boca. Parece até que está em outra dimensão. O outro
irmão, Fernando, que mora em Portugal há mais de 12 anos, é de
natureza pacífica, odeia brigas, e não gosta de se envolver muito em
contenciosos; na verdade, está ali mais por obrigação do que por gosto.
No entanto, tem bom senso, e percebe que, do prolongamento do
bate-boca, pode advir coisa pior. Só por isso, resolve intervir:
- Deixa-a ir. Pouca utilidade terá a gravação que ela fez. Todo mundo já
percebeu que isto não passa de uma crise de ciúme e de despeito.
Quanto mais você discutir com ela, mais estará fazendo o que ela
deseja. Isto é tudo que ela quer.

Fábio deixa-a ir embora:


- Se você tiver a ousadia de divulgar isto, vou processá-la.

Fernando tinha razão. Fábio estava quase no limite. De nada


adiantaria prolongar a discussão. Melhor era interromper aquilo, deixar
a mulher ir embora e restabelecer o clima de tranquilidade. Faltava
pouco para o falecido ser conduzido para a cova. Felizmente, pararam
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de discutir. A mulher se dirige displicentemente para a saída do salão.
Mas a paz ainda está distante. Nem bem ela alcança a porta, alguém
grita:
- Tem outra mulher gravando também, ela gravou tudo que aconteceu
depois que a outra saiu com o filho.

Mais uma encrenca pela frente. Agora é uma mulher que toma
a iniciativa:
- Vera, você não se envergonha do que está fazendo? É justo você
provocar essa confusão toda, um problemão desses, para quem lhe deu
o sustento por tanto tempo? Por que vocês estão fazendo isso? Isto é
cruel, uma traição.
- Regina, não me venha com esta conversa de boa moça, a mim você
não engana. Você é que devia ter vergonha do que já fez e do que
continua fazendo. Eu sei de tudo a seu respeito. A morte daquela
menina foi muito suspeita. Francisca me tinha como uma irmã. Eu sei
muito mais a seu respeito do que você imagina.
- É muito triste. Saber que trabalhamos tanto tempo juntas... Se prestar
a um papel desse... Vocês planejaram isto tudo lá fora. Está na cara.
Estava tudo combinado.
- Eu não tenho do que me envergonhar. Estou fazendo o que é certo. Só
estou gravando a violência que está sendo cometida contra uma
mulher viúva, indefesa, sozinha no mundo, fragilizada, mãe de um filho
menor, órfão, que está sendo impedida de dar o último adeus ao
companheiro. Não é nenhum crime querer se despedir do companheiro
e do pai do filho dela.

Fernando volta a entrar em ação, antes que a coisa esquente


mais:
- Deixem-na ir, também. Nada do que elas gravaram tem valor jurídico.
Se divulgarem as gravações, poderemos processá-las. Poderemos
processar as duas, elas invadiram um espaço privado, sagrado,
profanaram uma cerimônia familiar.

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A mulher, que agora sabemos se chamar Vera, retira-se
calmamente do salão, sob os olhares atônitos dos presentes.
Não é difícil imaginar o climão. Vai demorar para o ambiente
voltar a ser condizente com um velório. Talvez nem volte mais, porque
duas horas é um tempo curto para isto. Talvez a adrenalina tenha sido
demais para os presentes. Com a saída de cena da viúva e do órfão,
ainda não reconhecidos pelos familiares como tais, tudo já poderia ter
voltado à normalidade, porque, apesar do inusitado da cena, estes
tipos de ocorrência não são tão raros assim. O problema foi as
aprendizes de repórteres cinematográficas terem se tornado também
personagens e darem sequência a dois novos atos, que, como o
primeiro, não estavam no roteiro. Estes acréscimos tiraram mais ainda
do foco a finalidade da cerimônia. Vai ser difícil, restabelecer o clima de
velório no salão. Se pelo menos se conseguir manter as aparências,
teremos conseguido bastante. O silêncio também já será uma grande
coisa. Mas nada é impossível. Deixemos que o tempo venha a devolver
pelo menos a aparência de normalidade ao evento.

Como as coisas chegaram a este ponto? Para isto, precisamos


reconhecer o protagonismo do falecido, não por acaso colocado no
centro do palco, e restituir ao personagem a importância que lhe é
devida, não apenas pelo novo status recém-adquirido, mas também
pela relevância do papel que a ele coube em vida, e que redundou
neste climão. Antes de tudo, porém, precisamos depurar o discurso de
Rosa, remover dele os efeitos danosos da forte carga emotiva de que
ele estava contaminado, compreensíveis, mas não necessariamente
verdadeiros. As coisas não eram bem assim.

Francisco era bom pai, bom marido, bom patrão; cumpria com
regularidade e esmero suas obrigações sociais, religiosas e políticas.
Nisto, Rosa tinha razão. Mas talvez ele não tivesse muitos amigos. Digo
melhor: nisto, ela não tinha razão. Mesmo uma pessoa com as
qualidades que ele tinha não consegue amealhar muitos amigos. Todos
nós sabemos que a maior parte das relações sociais se estabelece em
função de interesses dos mais variados tipos, às vezes, até
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inconfessáveis. Será verdade que os amigos podem ser contados nos
dedos das mãos? Se for assim, como a maioria de nós tem duas mãos e
cada uma delas tem cinco dedos, nenhum de nós terá mais que dez
amigos. Confesso meu pessimismo. Dez dedos é um número muito alto.
Duas mãos - um exagero. Uma, já é suficiente, mesmo com um ou dois
dedos a menos.
De qualquer modo, o velório de Francisco conta com a
presença de muitas pessoas. Certamente não são todas amigas dele, se
forem verdadeiras minhas considerações iniciais. Quanto à outra
afirmação de Rosa, de que Francisco não tinha inimigos, nisto, ela
também não tem razão. Com certeza, isto não é verdade, e pode ser
facilmente demonstrado. Por melhor que seja uma pessoa, sempre terá
muitos inimigos. Cristo, tido como modelo de amor e sabedoria, teve
inimigos suficientes para levá-lo a uma injusta condenação à tortura e à
morte da forma mais degradante na época. E não consta que o velório
dele tenha sido muito concorrido, tanto no que tange ao número de
amigos quanto ao número de inimigos presentes. Aliás, diga-se, de
passagem, que não é da natureza dos velórios contarem com a
presença de inimigos do falecido. Por isto, não devemos nos basear no
número de presentes a um velório para deduzir que o finado tem
muitos amigos ou nenhum inimigo.
Corrigidas estas pequenas imprecisões, e já sabedores de que
havia muita gente presente à cerimônia - raríssimos amigos e nenhum
inimigo -, voltemos ao velório, propriamente dito.

Os minutos iniciais que se seguiram à saída das personagens de


cena transcorreram, como era de se esperar, num clima de muito
falatório, conversas de pé de ouvido, essas coisas, comuns, diante
destes eventos inesperados. Mas o sentimento de piedade cristã, afinal,
se impôs.
A esta altura dos acontecimentos, todos já conhecem os papéis
sociais de cada uma das personagens. A mulher e o filho já são
tratados, sem cerimônia, como a viúva e o órfão. Também me rendo às
evidências. Ora, não há como negar aos dois os títulos que a eles são
devidos. Julgamentos morais à parte, nem a mais talentosa atriz do
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mundo seria capaz de uma atuação tão convincente quanto à da viúva.
Sem desmerecer a inestimável contribuição das aprendizes de
repórteres cinematográficas, sobressai de modo inquestionável o
realismo, a intensidade da atuação da viúva. O tempo todo, ela nos
passa sinceridade, verdade, autenticidade. Ela quase nos faz sentir a
dor que a domina. Claro que levo também em consideração a
existência dos documentos que ela diz carregar na bolsa. No entanto,
ainda que as referências aos documentos tenham sido apenas recursos
retóricos, mesmo que esses documentos nunca venham a ser
apresentados, ainda assim, estamos todos convencidos de que tudo
que ela disse é verdadeiro. São estas as razões pelas quais, daqui para
diante, me referirei a ela e ao filho pelos status que ela reivindicou de
forma tão convincente e tão dramática. Foram tão intensos os
incidentes, que muitos dos presentes já sabem de cor os nomes das
personagens que se ausentaram, e têm até alguma intimidade com os
nomes delas. A viúva se chama Rosa; o filho, Francisco, ou Júnior. A
primeira repórter cinematográfica atende por Amanda; a segunda, por
Vera; a jararaca se chama Regina, mulher às escondidas do filho mais
velho e provável inventariante do espólio deixado por Francisco.

Francisco deixou um formidável espólio e mais quatro filhos.


Seriam cinco, mas uma morreu recentemente, de causas obscuras.
Fábio é o mais velho deles. Solteiro, de poucos sorrisos e de poucas
palavras, era o curador do pai. Provavelmente será o inventariante.
Depois dele, vieram Fernando e Fabrício. O primeiro mora em Portugal
há mais de 12 anos; o segundo vive nas nuvens. Francisca, a princesinha
de Francisco, veio em seguida. Impotente diante de uma depressão
profunda, ela partiu na frente do pai; oficialmente, em decorrência da
ingestão simultânea de um coquetel formado por excessivas doses de
medicamentos que não podiam ser misturados. Por último, mas não
menos importante, chegou Francisco, ou Júnior, como a mãe prefere
chamá-lo, pelo menos por estas bandas. Quanto a este, ainda não há
consenso. Os irmãos o rejeitam como membro da família, apesar de
todas as evidências documentais e genéticas. Por ora, é o que nos basta
saber. Voltemos ao velório.
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O espanto e a surpresa gerados pelo impacto inicial dos


acontecimentos vão aos poucos perdendo a força; os inevitáveis
comentários e as fofocas vão perdendo o vigor, e o clima acaba
voltando à normalidade, ao menos aparentemente. Esperemos que não
surja mais nenhuma discussão até que Francisco baixe à sepultura.
Torçamos para que ele, morto e enterrado, esteja finalmente libertado,
pelo menos, das dores físicas e das limitações impostas pela doença e
pela convivência social.
Os semblantes voltam a exibir as máscaras de sempre, tudo
retorna à rotina e ao ritual típicos de um velório. Como outra coisa não
se espera que esteja estampada no rosto de quem se faz presente em
velórios, a tristeza volta a estar estampada em todos os rostos. Mas é
claro que o grau dessa tristeza varia de pessoa para pessoa; em muitos,
talvez ela seja mesmo apenas aparente, afinal, nem todos têm o
mesmo envolvimento afetivo com o falecido, o personagem central da
nossa narrativa.
Coitado de Francisco. Todos concordam que ele era uma pessoa
de boa índole. Lutou quanto pôde em benefício da família. Merecia um
final de vida melhor. Mas quem somos nós para julgar as decisões
divinas?

Foi longa, a espera de Francisco. Por mais de sete anos, ele


ficou em cima de uma maca, totalmente dependente de cuidados, sem
dizer uma palavra, sem nenhum tipo de interação. Sua sobrevivência
durante este período foi garantida por três técnicas de enfermagem já
conhecidas de nós – Regina, Amanda e Vera.
Nos últimos meses, o estado dele tinha se agravado. Ele
definhava galopantemente, sua morte era mais que esperada. Os
prognósticos médicos eram todos neste sentido. A família não julgou
conveniente transferi-lo para um hospital ou para uma clínica, preferiu
que ele desse o último suspiro em casa, cercado do amor e do carinho
dos familiares e parentes. Assim foi feito. E a morte não se fez esperar
por muito tempo.

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O fato é que a morte, mesmo esperada, mesmo iminente,
como a de Francisco, sempre traz com ela dor e sofrimento. Até para
aqueles que não tenham uma proximidade maior com o finado, ela traz
algum desconforto, porque faz lembrar a precariedade e a
transitoriedade do corpo físico. Quando falo que a morte traz dor e
sofrimento, falo para os que ficam; porque, para aqueles que são
libertados por ela, nada se pode dizer; quem vai saber se encontrarão
ou não outros tipos de dor e sofrimento depois da libertação, já
supondo que a morte seja mesmo uma libertação para quem morre.
Libertação, aliás, que, se existir, as pessoas tidas como normais não
desejam. Para os que ficaram, portanto, as dificuldades rotineiras que a
vida impõe aos sobreviventes permanecerão, como é de se esperar.
Mas a morte não traz apenas dor e sofrimento para os que
ficam, principalmente para os que tenham com o finado algum vínculo
sanguíneo mais próximo. Para estes, ela sempre traz também algum
conforto, apesar de umas poucas disputas que costumam se formar por
conta da natureza humana, geneticamente predisposta à competição
por qualquer motivo. Tudo tem seu lado bom, a morte também tem
seu lado bom. O lado bom dela é que Francisco deixou um considerável
patrimônio em imóveis residenciais, lojas e ações. Isto, sem contar as
aplicações em poupança e os valores disponíveis em conta corrente.
Com a morte do pai, Fábio, o curador, que era solteiro, morava
com o pai desde sempre e era também o filho mais velho, por ter se
mostrado um curador dedicado e competente, à altura da obrigação
recebida, passará a ser o inventariante. Nada mais justo que seja
promovido a essa condição, e com isto já concordaram informalmente
os irmãos. De qualquer modo, tudo será confirmado formalmente
depois do enterro, numa reunião que será feita entre os herdeiros -
Fábio, Fernando e Fabrício. Deixo de fora o caçula, Francisco, ou Júnior,
e Rosa, por razões mais que óbvias.

A pressa para realizar a reunião se justifica porque Fernando


precisa retornar o quanto antes a Portugal, para se desincumbir das
obrigações profissionais no Velho Mundo, e cumprir compromissos

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inadiáveis na terrinha. Veio apenas para o enterro do pai, já tem a
passagem de volta comprada e o embarque confirmado para o final
daquela noite. Ele é detentor de um alto cargo na estrutura de governo
da União Europeia. Mas é claro que estas considerações e
preocupações não dominam as almas dos familiares do finado.
Voltemos para o velório e recuemos um pouco mais no tempo, para
tornar ainda mais amplo e mais claro o contexto em que demos início à
narrativa. Vejamos a quantas andava a história, pouco antes dos
incidentes que abriram nossa narrativa. Melhor é começá-la desde o
início do velório.

Aqui e acolá, formam-se pequenos grupos, que só por pouco


tempo se separam e logo voltam a se juntar. É natural, nem todos se
conhecem. Já sabemos que há apenas uma criança no ambiente, e que
ela não deve ter mais de sete anos. Sabemos também que esta criança
acompanha uma mulher, que não aparenta ter mais de 40 anos, e é
muito bonita, talvez a mais bonita das mulheres presentes ao velório. A
relação dela com o menino todos já sabem que é de mãe e filho. É
visível que os óculos escuros que ela usa não conseguem esconder que
ela chora com pequenos intervalos, porque se podem ver as lágrimas
que escorrem por baixo das lentes. Ela e o menino não se separam. Ela
já se aproximou algumas vezes do caixão e fitou por algum tempo o
rosto do falecido; numa dessas vezes, pegou o menino no colo e
mostrou a ele o rosto do falecido, ao mesmo tempo que dizia alguma
coisa em voz baixa ao pé do ouvido da criança. Por fim, se sentou num
banco mais afastado do centro do salão, o mais próximo da única porta
que liga o ambiente à rua.

Percebe-se nitidamente que a mulher está deslocada no


ambiente. Até agora, foi muito pouca a interação dela com os demais
presentes, restringida a um bom dia ou a outros cumprimentos formais
dirigidos a ela por quem está chegando ao velório ou dele está se
ausentando, por já ter cumprido sua obrigação social. Com os
familiares, nenhuma palavra foi trocada. Pode-se perceber que alguns
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dos presentes, mais as mulheres do que os homens, dirigem a ela e à
criança discretos e repetidos olhares, motivados aparentemente pela
curiosidade, o que de certa forma pode justificar o fato de ela não estar
se sentindo muito à vontade no velório. Ela está inquieta, o coração
tomado pela tristeza.

Uma senhora vem sentar-se ao lado dela e do menino e faz um


ligeiro carinho na cabeça dele. É daí que nascerá o desentendimento
entre Fábio e Rosa:
- Caladinho, ele, não é? Parece ser bem quietinho.
- Não muito. Depois que se solta, é um problema. Eu já expliquei a ele
que aqui é um lugar de silêncio. Ele entendeu isso. Mesmo assim, se
houvesse outra criança por aí, ia ser difícil segurá-lo.
- Natural, criança tem muita energia. Quando são saudáveis, é claro.
Quantos anos ele tem?
Muito antes que a mãe responda, o menino dispara, mostrando
as duas mãos com as palmas voltadas para a senhora e sete dedos
apontados para cima.
- Sete anos.
A senhora não consegue prender uma discreta gargalhada.
- Parabéns! Já sabe contar. E seu nome, qual é?
A mãe tenta ser mais rápida que o menino, mas não consegue.
Os dois respondem a um só tempo, mas com diferentes respostas. Ele
responde “Francisco”; a mãe, “Júnior”.
- Ah... Então você tem o nome do seu pai?
A isto, o menino não responde prontamente. Sua fisionomia se
contrai, o rosto vivo e alegre dele se torna triste. Rosa se levanta
bruscamente, pega o menino pela mão e parte como uma flecha em
direção à porta.
- A Senhora dá licença, por favor. Vamos lá fora fazer um lanche, Júnior.
Só agora, já cruzando a porta, com um pé na calçada, que
Francisco, ou Júnior, vira o pescoço e responde à última pergunta da
Senhora:
- Meu pai morreu.

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Esta cena confirmou na Senhora as suspeitas que ela alimentara
desde que Rosa chegara ao velório. Sim, ela não se sentara ao lado da
criança sem nenhum propósito. Assim que os olhos dela bateram no
menino, ela teve uma espécie de déjà-vu. De início, ela julgou que
estivesse passando por uma experiência desse tipo, ainda que não
conhecesse o termo e sua definição. Tudo no menino lhe parecia
familiar - o rosto, o modo como caminhava, como olhava. Ela quis vê-lo
mais detidamente, de perto. Queria colher alguma coisa da conversa
que teria com a mãe e o menino.
Bom saber que ela não é uma pessoa qualquer; ela faz parte da
família, é prima do falecido, e conhece bastante a história dele, porque
compartilhou com ele toda a infância e um bom período da juventude
dela. Mesmo depois de adulta, mantinha com ele e a família os laços
criados pelo parentesco, e frequentava com alguma regularidade a casa
dele. Sabe que ele adoeceu há mais de sete anos, praticamente após
enterrar a mulher, depois de cuidar dela por mais de dois anos, desde
que ela adoeceu e ficou acamada, vitimada por um câncer.
Intimamente, ela desconfia que a morte da esposa concorreu para
agravar os problemas de saúde dele, que, por fim, redundaram no AVC
que o pôs fora de combate. Ao iniciar a conversa com o menino, ela já
tem um propósito em mente, que é justamente sondar quem é a
mulher, que mais parece um peixinho fora do aquário, para
compreender e esclarecer as impressões que o menino provocara nela.
Ela nem de longe adivinha as consequências daquele rápido bate-papo.
Quando ela se senta no banco e pode olhá-lo demoradamente, com
mais atenção, todo o passado dela volta-lhe à memória como um flash.
Ela tem certeza de que já conhece aquele menino, numa versão
genética mais antiga. O menino é a cara de Francisco quando este tinha
a mesma idade que o menino tem hoje. Depois que o menino diz a ela a
idade dele, e mais o nome, que a mãe tenta esconder; depois da saída
intempestiva e estabanada desta do velório, a prima não tem como não
trazer à memória as cenas da infância vivida em comum com Francisco.
O menino não herdou apenas o nome de Francisco, ele herdou também
a aparência, os traços fisionômicos do primo, e, para a prima, tudo leva
a crer que ele herdará também uma parte do espólio do falecido.
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Agora, o menino não lhe parece mais familiar; agora, ele é familiar, ele
é da família. Ela já pode dizer, sem sombra de dúvida, que o menino é
uma cópia do primo, que é filho dele e primo neto dela. Quando volta a
circular pelo ambiente, ela não consegue resistir à tentação de
comentar com a melhor amiga que lhe faz companhia no velório,
acerca do que ela acabara de confirmar. Ela não quer parecer
fofoqueira, nem tem a intenção de agir como uma repórter
sensacionalista, mesmo porque já está certa de que muito cedo toda a
verdade virá a ser descoberta. Ela quer apenas se aliviar do peso
daquela certeza. É apenas por isto que divide com a amiga do peito o
que acabou de confirmar, tendo o cuidado de pedir a esta que não
passe o segredo adiante. Mas estas coisas não funcionam assim. Quem
conheça o mínimo da natureza humana, e em particular da natureza
feminina, pode deduzir de pronto as funestas consequências dessa
confidência.

Não demora muito para que a notícia corra de boca em boca,


de ouvido em ouvido, e se alastre pelo ambiente. A mulher é amante
do falecido, o menino é filho dele e tem exatamente o nome do pai.
Basta que estes comentários cheguem aos ouvidos dos familiares do
falecido, para que seja criado um clima de inquietação entre os filhos
dele, clima em tudo desfavorável para Rosa.
Fábio não está no ambiente quando a fofocada tem início. Ele
deu uma saída, e, quando retorna, toma conhecimento dos fatos. Sabe
que Rosa foi à rua com o menino fazer um lanche. Torce para que ela
não volte. Com o passar do tempo, a esperança dele se torna certeza. É
mais que certo que ela não voltará. Com efeito, já faz mais de uma hora
desde que ela foi fazer o tal lanche e ainda não retornou. Assim, tanto
os familiares quanto os demais presentes acabam por esquecer a
provável viúva e o provável órfão, e passam a se ocupar com outras
pautas. Mas este episódio não termina por aí. Mais adiante, ele terá o
desfecho que já conhecemos.

Rosa tinha razões de sobra para sair o quanto antes do velório.


Ela sabia o que a esperava depois que a Senhora espalhasse pelo salão
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o que colhera na conversa com ela. Ela se arrependeu de ter
permanecido no velório por tanto tempo. Bastava que tivesse ficado
por lá o tempo suficiente para ela dar o último adeus a Francisco, o
tempo suficiente para que o filho visse o rosto do pai e guardasse na
memória a imagem dele. Ela não tinha nada de ficar esperando por
Fábio. Poderia falar com ele em outro momento, mostrar a ele em
outro local os documentos que ela carregava na bolsa. Era melhor que
ela não dirigisse a palavra a ele, não naquela hora, não naquele lugar.
Aquele não era o local apropriado para o tipo de conversa que ela
queria ter com ele. Esta conversa não despertaria em Fábio boas
recordações, pelo contrário, fatalmente ele se recordaria das palavras
duras que eles trocaram na última vez que ela fora visitar Francisco.
Devia era ter agradecido a Deus por não ter encontrado Fábio no
velório. Bom mesmo que ele não a visse por lá. Ela faria uma retirada
estratégica. Sim. O lanche na rua era apenas um pretexto para ela se
livrar da bisbilhoteira e sair rápido dali. Na verdade, ela estava em fuga,
batendo em retirada. Ela não pretendia fazer um lanche, nem pretendia
voltar, porque adivinhava o que a esperaria depois que a conversa
entre ela e a Senhora corresse pelo recinto. Se ela voltasse, quando ela
voltasse, todos os presentes já seriam sabedores de que ela era
namorada de Francisco e que Júnior era filho dele. Não importava que
o amor entre Francisco e ela fosse verdadeiro, que Júnior fosse fruto do
amor dos dois. O que importava é que era um romance escondido, e se
era escondido algo de ruim o romance continha. No velório, todos
estariam contra ela. Melhor era procurar Fábio num outro momento e
mostrar a ele os documentos necessários à inclusão dos nomes dela e
do menino como herdeiros, convencê-lo de que o amor dela com
Francisco era verdadeiro e desinteressado. Rosa adivinhava que Fábio
seria inventariante, e queria contar com a boa vontade dele para tornar
realidade a vontade do pai. O ideal era que tudo fosse resolvido
consensualmente, sem necessidade de se recorrer a uma disputa no
Judiciário, porque esta opção tornaria mais longo e mais caro o
processo. Com relação à pensão, Rosa poderia ela mesma resolver
tudo. Ela bem que tentou. Talvez se Fábio não estivesse ausente
quando ela chegou ao velório, ou não tivesse se demorado tanto na
15
Victorino Aguiar
rua, as coisas tivessem se desenrolado de outra forma. Provavelmente
não teria havido a conversa com aquela bisbilhoteira, aquela fofoqueira
que, afinal, foi o que detonou toda a confusão.

Esta era a ideia que movia Rosa quando ela abandonou às


pressas o velório. Foi com estes pensamentos que ela resolveu pegar
uma condução e ir embora para casa. E era na companhia destes
pensamentos que ela estava no ponto do ônibus. Ela não teria mudado
de ideia se não tivesse sido seguida por Amanda, se não tivesse tido
uma conversa com ela, no ponto de ônibus. Foi depois dessa conversa,
que ela começou a mudar de ideia. As duas se conheceram quando
Amanda ainda trabalhava na casa. Foi lá que elas, durante uma visita de
Rosa a Francisco, trocaram algumas palavras, números de telefone,
endereços eletrônicos, e se tornaram amigas no zap. A partir daí,
Amanda passou a ter um papel de destaque na história de Rosa.
Apesar de não fazer parte da família, Amanda cumpria no
velório mais que uma obrigação social, afinal, trabalhara na casa por
muitos anos. Antes mesmo de Francisco adoecer e ficar incapacitado,
Amanda já tinha trabalhado para a família por muito tempo, cuidando
de Sara, a falecida mulher de Francisco. Quando o estado de saúde de
Sara se agravou, a família precisou dos serviços de uma técnica de
enfermagem. Fábio abriu, então, uma microempresa da área de saúde,
uma MEI, para administrar diretamente a prestação desses serviços. Foi
assim que ele veio a contratar Amanda, por indicação de Dr. Arnaldo,
médico de Sara. Amanda prestou serviços na casa até que Sara viesse a
falecer. Quando Francisco por sua vez também adoeceu e ficou
incapacitado, Amanda ofereceu os serviços dela e foi novamente
contratada por Fábio para assistir o pai dele. Como se vê, ela cuidou da
mãe e do pai de Fábio. Foram mais de oito anos. Impossível não se criar
um vínculo afetivo e emocional com o paciente e seus familiares após
uma convivência tão longa. Por isto, apesar de ter sido demitida por
Fábio poucos meses antes de Francisco falecer, ela relevou este fato e
compareceu ao velório. Ela tinha combinado de se encontrar lá com
Vera, a outra técnica de enfermagem que trabalhara até o falecimento
de Francisco, para botar o papo em dia e ver se esta tinha
16
Victorino Aguiar
conhecimento de alguma oportunidade de trabalho para ela. Ela estava
esperando que a antiga colega de trabalho chegasse. Não tinha
intenção de permanecer lá por muito tempo. Pretendia ir embora antes
que Fábio retornasse da rua com Regina, uma das técnicas de
enfermagem que prestavam serviços na casa, e com quem, segundo
Amanda, Fábio mantinha um discreto relacionamento; isto é, às
escondidas, Regina era mulher dele. Amanda não tinha uma boa
relação com Regina, não queria vê-la nem morta, porque acreditava
que Regina era a responsável por Fábio tê-la demitido, sem nenhuma
explicação razoável. Ela tinha certeza de que havia dedo de Regina na
demissão. Amanda sabia que Regina a invejava e morria de ciúme dela.
E tinha muita razão para isso. Amanda era dona de uma aparência
privilegiada, tanto de rosto quanto de corpo, era mesmo muito mais
bonita, comunicativa e simpática que Regina. A verdade é que Amanda
carregava um profundo ressentimento, nunca perdoaria Regina por ter
jogado todas as fichas contra ela e ter feito tudo para que Fábio a
demitisse, alegando razões profissionais, quando, na realidade, o que a
motivava era justamente o medo de que Amanda viesse a roubar-lhe o
namorado.
Nem importa que o paciente já esteja morto e não represente
mais uma fonte de renda para Amanda, ela odeia Regina, e pronto.
Vera também comunga deste ódio contra Regina, por outras
justificadas razões que, adiante, no momento oportuno, serão trazidas
ao relato.

As três técnicas de enfermagem, desde sempre, acreditavam


que a condição de solteirão de Fábio decorria de sua personalidade
excessivamente tímida, e brincavam vez ou outra, dizendo que a falta
de coragem do rapaz só podia ser contornada, ou posta abaixo, pela
ousadia de uma mulher com disposição para partir pra luta:
- Ele tem de encontrar uma que esfregue a pepeca na cara dele.
- Ah, se ele me der um mole, eu tiver uma chance, esfrego mesmo, ah,
se não esfrego. Fábio é um partidão, mesmo que seu Francisco retorne
das sombras, já seria um bom negócio ter Fábio como marido. E ele
não é de se jogar fora.
17
Victorino Aguiar
- Eu estou fora, não curto homem sem atitude, homem fracote fique
longe de mim. Também não acho que ele esteja com esta bola toda.
Além do mais, não preciso de homem para me prover. Crio meu filho
sozinha desde que nasceu e estou satisfeita assim – desdenha Amanda.

Todas elas tinham razão. A primeira fala, de Vera, era a mais


profunda, a mais crua e a mais cruel. Não é qualquer homem que
consegue resistir a uma mulher determinada, com disposição suficiente
para se expor aos olhos dele desnuda, mesmo contra a vontade dele.
Aliás, nem precisa que lhe mostre a genitália; um decote ousado dos
promontórios, um short bem curtinho, que lhe mostre as fronteiras
inferiores do traseiro, uma sombra mais íntima das virilhas, já é
suficiente. Nem precisa, também, que esta visão seja presencial. Basta
uma foto, ou um vídeo, basta um quadro. Agora, isto tudo, estas carnes
todas, estes feromônios todos, a dedos de distância dos olhos e do
nariz de um homem, qualquer que seja este homem, é quase um
assalto a mão armada, uma coação irresistível, quase um estupro. Uma
imagem carnal como esta, enfiada olhos adentro; este cheiro, estes
feromônios, enfiados narinas adentro - quem duvida? – é uma
provação só suportada sem uma tomada de atitude biológica por parte
de um homem, se este homem for orientado sexualmente apenas para
seres do mesmo sexo biológico dele. Olhos e narizes masculinos
orientados sexualmente para mulheres, atacados e violentados desta
maneira, são impotentes diante dum arsenal deste.
Vera tinha razão. A timidez dele bem poderia transformá-lo
numa presa fácil para uma mulher ousada. Regina também está
coberta de razão na fala dela. A segunda fala é bem um retrato da
maioria do gênero feminino da atualidade, que busca, sim, na figura
masculina uma escada para a ascensão social, econômica e biológica.
Na visão desta maioria, o corpo feminino é tido como um instrumento e
uma arma de dominação, diante da qual o homem fica reduzido a um
simples objeto.

Amanda também tem razão. A falta de coragem de Fábio, se


acaso existir, é um indicativo de fraqueza, de tibieza. Não há dúvida de
18
Victorino Aguiar
que é melhor contar com os próprios recursos para prover a si e aos
filhos. As uniões baseadas em interesses apenas econômicos e estéticos
comumente se revelam péssimas escolhas.

Estas conversas, porém, eram apenas abordagens ligeiras, e


não tinham maiores desdobramentos. Não havia propriamente uma
disputa entre elas. Mas nada impedia que, volta e meia, elas jogassem
algum charme pra cima dele, que sempre se fazia de desentendido. Ele
sempre as tratava com formalidade, e não se permitia conversas além
das necessárias ao desempenho das funções delas.
A mais despojada, Regina, que nem era a mais bonita das três,
encontrou finalmente um motivo para ter conversas mais frequentes
com ele, depois que presenciou a tenebrosa e já referida discussão
entre ele e Rosa, a amante do pai, durante a última visita que esta
fizera a Francisco, na companhia do menino.

Fábio se deixou envolver por Regina, a menos atraente delas, e


começou a manter com ela um caso, que, apesar de todas as tentativas
de dissimulação, já era do conhecimento das técnicas e dos irmãos. Era
a contragosto que Regina aceitava que o romance com Fábio fosse
guardado a sete chaves. Isto não estava sendo bem digerido por ela,
que já vinha cobrando que ele assumisse o relacionamento.

Um pouco por vingança, um pouco por empatia e


solidariedade, já que ambas compartilham a condição de serem mães
de filhos sem pais reconhecidos, Amanda se torna aliada de Rosa. Vera
logo passa a fazer parte dessa aliança. É por intermédio das duas, que
Rosa tem acesso a preciosas informações sobre o dia a dia da casa, e
dos estranhos eventos que precederam a morte de Francisco.

Foi Amanda quem avisou Rosa da morte de Francisco, quem


disse a ela onde seria realizado o velório, onde seria enterrado o corpo.
A opinião de Vera e de Amanda era que Rosa devia comparecer e levar
o menino. Se Rosa fosse, encontraria as duas técnicas lá, mas elas não
achavam conveniente que Rosa conversasse com elas. É bom não
19
Victorino Aguiar
saberem que elas mantinham contato frequente antes da morte de
Francisco. Rosa se mostrava indecisa, temia ser mal recebida, não sabia
se devia ir ou não ao velório. Ela já havia passado por uma experiência
traumática na última visita que fizera a Francisco. Foi nesta visita, que
ela assumiu que era namorada de Francisco e que o menino que a
acompanhava vez ou outra nas visitas era filho de Francisco. Fábio, que
já não via com bons olhos as visitas de Rosa, iniciou uma discussão de
graves consequências para todos e que, indiretamente, redundou em
muitas peripécias na vida familiar dele. Era por estas razões que Rosa,
de início, hesitava entre comparecer ou não ao velório e enterro do
companheiro. Entretanto, animada e influenciada pelas técnicas,
acabou decidindo por comparecer à cerimônia. Sua ideia era se
despedir de Francisco e tentar marcar um encontro com Fábio para
conversarem sobre a situação dela e do menino. Infelizmente, quando
ela chegou ao velório, ela não viu Fábio no ambiente. Esperou que ele
se circulasse pelo salão para abordá-lo e tentar o tal encontro. Depois
de um tempo, teve certeza de que ele não estava presente. Imaginou
que ele tivesse saído e resolveu esperar que ele retornasse. Por isso, se
colocou no banco mais próximo ao único ponto de acesso ao salão. Foi
um erro, essa decisão.

Amanda e Vera sabiam muita coisa acerca da história de Rosa.


Sabiam que esta fora namorada de Francisco e que o menino era filho
dele. Por algumas vezes, as visitas de Rosa coincidiram com os plantões
de Vera. Numa dessas vezes, ela levou o menino a tiracolo, e Vera pôde
ouvir Fábio pedir a ela que não levasse mais o menino nas visitas.
Quando Rosa chegou ao velório, Amanda já estava lá,
esperando que Vera chegasse. Amanda viu quando Rosa chegou com o
menino. Ela estava ligada. Quando Rosa entrou com o filho no salão,
Amanda logo percebeu os olhares estranhos que foram dirigidos aos
dois pelos presentes; viu quando a prima de Francisco se sentou ao
lado do menino no banco; viu quando Rosa se levantou bruscamente e
se retirou assustada, puxando o filho pelo braço. Foi por isto que
Amanda não resistiu ao impulso de ir atrás de Rosa e ter com ela uma
conversa, queria saber o que acontecera, porque saíra bruscamente do
20
Victorino Aguiar
velório, antes da chegada de Fábio. Além disso, queria pô-la a par de
certos acontecimentos gravíssimos que ela presenciara na casa, que ela
mantinha guardado a sete chaves, e que achou arriscado passar para
ela por telefone ou pela internet.
Amanda não abria mão de apoiar Rosa e o menino. Ela também
tinha um filho pequeno, as duas compartilhavam a condição de mães
que criavam os filhos sozinhas. Era também um questão de
solidariedade. Mais do que ninguém, ela poderia ser de muita utilidade
para Rosa na disputa judicial que certamente seria travada contra os
outros filhos de Francisco. Por haver trabalhado durante tanto tempo
na casa, antes mesmo de Francisco adoecer e ficar incapacitado,
Amanda conhecia bem a família. Afinal, como vimos, foram mais de
oito anos de convivência.
Ela dependia muito dos plantões para sobreviver, só contava
com os recursos dela para custear as despesas dela e do filho e, por
isto, não podia dedicar atenção integral a ele. A mãe dela recebia um
salário-mínimo de aposentadoria. Era com a mãe que Amanda contava
para cuidar do filho quando ela estava nos plantões. Mas a mãe
também a ajudava nas despesas domésticas. Amanda trabalhava em
duas casas, porque as despesas eram grandes e os salários pequenos. O
aluguel consumia parte considerável dos recursos; quase sempre, ela
recorria a plantões extras para manter o equilíbrio nas finanças
domésticas.

Na conversa que Rosa tem com Amanda, num local próximo ao


salão onde se realiza o velório, depois que Amanda a segue até o ponto
de ônibus, Rosa fica a par de muita coisa que ainda não sabia, e que
modifica a disposição dela de bater em retirada. Rosa confia em
Amanda e conta a ela a história dela por inteiro com Francisco, desde
os primeiros contatos com ele na praça de gastronomia do Shopping
Iguatemi, na Tijuca, quando os dois se conheceram, até as últimas
conversas, quase uma despedida. Rosa está emocionada, mexida, chora
muito, precisa interromper o relato algumas vezes. Fala dos remorsos
de Francisco, ainda que a relação dos dois tivesse sido sugerida por
Sara, a esposa, e fosse do conhecimento dela. Fala da depressão pela
21
Victorino Aguiar
qual Francisco estava passando antes de adoecer e ficar acamado;
recorda as poucas horas de amor que eles tiveram, as últimas
mensagens trocadas com ele pelo zap, as últimas palavras dele, nas
quais Francisco praticamente pressagia que eles não chegarão a se
casar. Todo este relato é permeado por crises intermitentes de choro,
muitos soluços. Pela primeira vez, Rosa estava tendo com quem
conversar abertamente sobre o assunto. Amanda chora com ela em
algumas passagens. Por fim, Rosa mostra a Amanda os documentos que
comprovam tudo que houve entre ela e Francisco. As fotos, as trocas
de mensagens, as escrituras etc.
- Você não tem nada do que se envergonhar, nem nada do que temer.
Lute por seus direitos. O filho é de seu Francisco e tem direito a parte
da herança. Além daquela vez que eu estava sozinha na casa e deixei
você entrar com Júnior, eu estava de plantão em algumas das vezes que
você visitou seu Francisco. Vi que você tornou a levar seu filho numa
visita. Neste dia, Fábio estava em casa. Nós sabíamos que você era
namorada de seu Francisco, isto estava escrito na tua cara. Também
estava na cara que o menino era filho dele. Nós presenciamos muita
coisa que acontece no local de trabalho, mas temos de manter reserva,
segurar a língua. Veja só quanta coisa nós duas poderemos
testemunhar a seu favor, se isto for levado à Justiça. Eu ouvi quando
Fábio pediu a você pra não levar mais o seu filho. Você também visitou
a casa em alguns plantões de Vera. Sabemos que, na sua última visita,
Fábio a ofendeu muito, que chamou seu filho de bastardo. Sabemos de
tudo que você disse a ele, das ameaças que ele lhe fez. A Francisca
ouviu escondida toda a discussão de você com Fábio no dia em que
vocês quase saíram no tapa. Ela ouviu você dizer que Fábio não era
filho biológico de Francisco. Daí, ela pôde deduzir que ele também não
era irmão dela. A menina ficou arrasada. Dava pena de ver. Ela
comentou tudo com Vera. Um mês depois da discussão, a menina
morreu. Deve ter sido também por causa disso que ela veio a morrer.
Ela era muito apegada ao irmão mais velho, ao pai. Vera sabia bastante
coisa através de Francisca, era confidente da menina.
- Coitada! Francisco era apaixonado por ela. Vivia falando na
princesinha dele. Ele se sentia culpado por não poder dar a ela o
22
Victorino Aguiar
carinho que ele dava antes de Sara adoecer. Coitada da Francisca! E
afinal, ela morreu mesmo de quê? Eu também não engoli esta história.
- Oficialmente, ela ingeriu uma dose excessiva de remédios, pior ainda,
misturou remédios que não podiam ser misturados. A história está mal
explicada. É quase certo que haja dedo de Regina, aí, também. Quem
deu o atestado de óbito foi o Dr. Arnaldo, o mesmo que me indicou a
Fábio a primeira vez que fui contratada, para cuidar de dona Sara. Dr.
Arnaldo também não me inspira confiança. Desconfio que Regina é
peguete dele. Ele não pode ver mulher. Vivia ciscando para o meu lado
o tempo todo. Tudo bem que foi ele que me indicou a primeira vez que
trabalhei na casa, mas não é por isso que eu tenho de ir pra cama com
ele.
- Era a Regina que estava de plantão no dia em que eu e Fábio
discutimos, não era? Ele ficou na mão dela. Claro que ela ouviu a
discussão toda.
- Isso, mesmo. Depois deste dia, eles ficaram muito próximos. Viviam
sempre conversando pelos cantos. Às vezes, aos cochichos. Quem sabe
melhor sobre a Francisca é a Vera. A menina gostava muito dela,
confiava demais em Vera. Contava tudo a ela. Vou chamar Vera no zap.
Eu estava no velório esperando ela chegar, quando vi você sair
apressada. Talvez ela já tenha chegado.
Realmente, Vera já está no velório, e já sabe das fofocas; que a
prima de Francisco confirmou que o menino era mesmo filho dele, que
Rosa era amante dele etc. A esta altura, a temperatura já abaixou um
pouco, mas o clima ainda está meio estranho. Da parte de quem não
era da família, a expectativa era de que Rosa voltasse com o menino a
qualquer momento e o tempo fechasse. Fábio já tinha retornado com a
jararaca e tomara conhecimento do que ocorrera na ausência dele.
- Amiga, nem te conto quem está aqui do meu lado.
- Ah, vai. Conta logo.
- Estou batendo um papo com a Rosa, a namorada do seu Francisco.
Quando ela saiu do velório eu estava aí, vi que ela estava muito nervosa
quando saiu e vim atrás dela. Ela me contou da conversa com a prima
do seu Francisco, que se sentou ao lado dela para bisbilhotar e acabou
confirmando tudo. Eu estava aí, te esperando, mas achei que faria bem
23
Victorino Aguiar
em sair e conversar com a Rosa. Ela estava muito nervosa. Já chorou
muito. Agora está mais calma. Estou dando uma força pra ela aqui. Dá
um pulo aqui, pra gente conversar as duas com ela. Ela quer ir embora,
estou convencendo ela a voltar e enfrentar o Fábio. Puxa! Ela tem um
filho com o seu Francisco, era namorada dele. Tem documentos feitos
em cartório, escrituras, contando tudo a respeito deles dois. Nas
escrituras, ele reconhece a paternidade, dá metade da herança pra ela,
coloca o filho como herdeiro, e por aí, afora.
- Nossa! Que babado!
- Vem logo, estou te esperando aqui na segunda esquina à direita,
depois do posto de gasolina.
- Claro que vou. Já estou indo. Não perderia por nada um babado
desses. Ainda mais que a menina e o filho têm direitos.
- Falou.
Não demorou muito para que Vera viesse se juntar às duas.
Rosa está fortalecida, já se sente mais segura. Já colocou um pouco de
ordem nas ideias e nos pensamentos, mas ainda não se sente em
condições de retornar ao velório. Vera reforça todos os argumentos de
Amanda e acrescenta mais alguns. Instila em Rosa toda a força de que
esta precisa para voltar ao campo de batalha e combater o bom
combate. Ela está com a faca e o queijo nas mãos. Tem tudo de que
precisa para enfrentar não apenas Fábio, mas toda a família. Ela é mãe,
seu Francisco é o pai do filho dela. Ele mesmo autorizou que Rosa
registrasse o menino como filho dele, pediu que fosse colocado o nome
dele, se por acaso ele viesse a faltar. Não foi uma autorização de boca,
ou feita por um e-mail, por uma mensagem de aplicativo, pelo celular.
Não! Ela tem duas escrituras públicas, feitas num cartório, pelo próprio
seu Francisco, assinadas por ele, e transcritas no livro de registro do
cartório, documentos com fé pública, válidos não apenas no Brasil, mas
no resto do mundo. Uma das escrituras faz dela e do filho herdeiros de
seu Francisco, autoriza a coleta de partes do corpo dele para a
realização de um eventual teste de DNA, para a comprovação da
paternidade, mas não como exigência para o registro do menino e para
a inclusão dela e do menino como herdeiros do espólio.

24
Victorino Aguiar
- Rosa, você tem as cópias das conversas com ele, no zap, em outros
aplicativos. Tem uma porção de fotos de seu Francisco, inclusive de
quando ele ainda era criança. Essas fotos que você nos mostrou
comprovam que este menino é uma cópia, quase um clone de seu
Francisco. Esta parada está ganha. Você vai lá, nós vamos estar lá
também, para te apoiar, gravaremos tudo nos nossos celulares para
você usar como prova, se precisar. Se precisar, também
testemunharemos a seu favor na Justiça, sabemos de muita coisa que
pode até complicar a vida, não apenas de Fábio, mas, também, da
jararaca e dos irmãos. De repente, eles podem até perder o direito à
herança. Eu sei de muito mais coisas, que ainda não contei para
ninguém. Muitas coisas... Nem para Amanda eu contei tudo. Não estou
de brincadeira. São coisas graves, caso de polícia.

Epa! Parece que Vera tem mesmo uma carta na manga. Ela está
muito segura do que diz. O bichinho da curiosidade mordeu Amanda:
- Miga, que coisas são estas que você escondeu até de mim?
- Não escondi. Só quis proteger a mim e a você. Tive medo de que no
futuro pudesse estourar alguma coisa, e a gente viesse a pagar o pato.
- Miga, que coisas são essas?
- Quer mesmo saber, agora?
- Claro que quero. Quer me matar de curiosidade?
- Se segura, aí, na cadeira, então.
- Ai, meu Deus, conta logo.
- Eu gravei uma conversa de Fábio com Regina, em que eles combinam
apressar a morte de seu Francisco. Até em eutanásia, eles falam. Fábio
chega a dizer que os irmãos concordam com a eutanásia. Fábio diz que
o seu Francisco é um problema para todos. Que tem de ser descartado,
que ele não tem mais respeito por ele nem pela mãe. Nem irmã, ele
tem mais.
- Meu Deus. Então eles mataram o seu Francisco, são assassinos.
- Aumentaram as doses, diminuíram as doses, como exatamente eles
fizeram não sei. Até em desligar os equipamentos, ou não usá-los,
Regina falou. Fábio tinha medo de que o Doutor Arnaldo dificultasse as
coisas, mas Regina garantiu que ele não atrapalharia. Sugeriu a Fábio
25
Victorino Aguiar
que desse um dinheirinho a mais para o doutor. O tempo que levou
desde essa gravação até a morte do seu Francisco é quase uma prova
de que eles fizeram o que tinham decidido.
- Mostra, aí, a gravação.
- Claro que não estou com a gravação aqui, eu apaguei tudo no celular.
- Puxa! Por que fez isto?
- Porque tive medo de que alguém pudesse ter acesso à gravação, que
eu perdesse o aparelho, ou fosse roubada. Passei a gravação para um
pendrive, coloquei uma senha, e joguei o arquivo da gravação fora.
- Ah, pensei que tivesse jogado tudo fora.
- Por nada deste mundo, eu faria uma coisa dessa. Eu tenho a gravação
em casa, posso dar a gravação para Rosa, posso prestar o testemunho
pessoalmente. Mas vamos parar esta conversa e agir. É importante
Rosa voltar para o velório e ficar até o final da cerimônia.

Rosa finalmente decide voltar. Não há como discutir com as


duas técnicas, agora aliadas assumidas dela. Com o arsenal que as três
possuem, vai ser difícil ela voltar a abandonar o campo de batalha. Vera
toma a dianteira:
- Vamos lá. Eu vou na frente. Amanda chega uns dez minutos depois de
mim. Uns quinze minutos depois, você chega. Nós já vamos estar a
postos, com os celulares em ponto de bala, num lugar estratégico.

Já sabemos que quando Rosa se retirou do velório sob o


pretexto de fazer um lanche com o filho, na verdade ela estava
abandonando o campo de batalha. A razão principal de ela ter ido ao
velório era dar o último adeus ao amado, quase futuro esposo; da
mesma forma, ela queria que o filho órfão desse também o último
adeus ao pai e pudesse guardar para sempre na memória a imagem
dele. Mas ela também tinha outras razões além destas para estar ali.
Ela queria ter uma conversa reservada com Fábio, o filho mais velho e
provavelmente o inventariante do espólio de Francisco. Se Fábio
estivesse presente quando ela chegou, ela teria ido embora após esta
conversa com ele. Mas Fábio não estava presente quando ela chegou.
Por isso, ela se sentou no banco bem próximo à entrada. E não foi por
26
Victorino Aguiar
outra razão que ela se colocou naquele banco mais próximo da
entrada. Ela estava esperando que Fábio retornasse da rua, para
abordá-lo, tão logo ele adentrasse no salão. Ela alimentava a esperança
de que pudesse ter com ele uma conversa ligeira e civilizada acerca dos
desdobramentos da relação que ela mantinha com o pai dele. Ela
achava possível que ele aceitasse ter uma conversa num local próximo
ao salão ou, pelo menos, que aceitasse marcar um encontro para outro
dia, numa hora e num local mais adequados, de escolha dele, para uma
conversa mais longa e detalhada. Se tudo tivesse transcorrido
conforme ela planejara e desejara, quando Fábio retornou da rua, ela
teria dito a ele que o menino era mesmo filho de Francisco; que este
fora zeloso e tivera o cuidado e a preocupação de proteger e amparar o
filho por nascer, temeroso de que o menino viesse a ser privado para
sempre de uma convivência com ele. Ele pressentiu a tragédia que
estava para se abater sobre ele.
Se Fábio e Rosa não tivessem sido tomados pela paixão e sido
sequestrados pelos cérebros reptilianos deles, Fábio poderia ter
manuseado e lido com calma a escritura pública que o pai dele lavrara
antes de ficar acamado, declarando e reconhecendo a paternidade do
fruto dele, que Rosa já carregava no ventre. Teria tomado
conhecimento da autorização do pai para que se recolhesse uma
amostra de parte do corpo dele para um exame de DNA, que
confirmaria a escritura feita em cartório, caso os irmãos ainda viessem
a ter alguma dúvida da sanidade mental dele quando ela foi lavrada.

Se Fábio tivesse visto as coisas pelo prisma apenas do amor e


da justiça, talvez até ficasse feliz por ter um irmão a mais, talvez até
viesse a ser amigo dele, e mais feliz ainda por ter a oportunidade de
amenizar a orfandade incomum do irmão. Eram dois órfãos, mas Fábio
estava numa condição mais vantajosa que Júnior. Pelo menos convivera
com o pai, tivera o amor e o carinho de Francisco.
Agora, as coisas tomaram outro rumo. Agora, é guerra. Já faz
parte da sabedoria popular que na guerra somos todos perdedores.
Uns perdem mais, outros perdem menos. Também se diz a torto e a
direito que mais vale um mau acordo que uma boa guerra. Mas a
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Victorino Aguiar
Humanidade está sempre em guerra. A luta continua. Uns lutam pela
liberdade; outros, pela Verdade; outros, pela honra. Há quem lute por
imagens, quem lute por livros, quem lute por valores, por territórios.
Há, até, quem lute por Deus. Nada impede que a Humanidade continue
a guerrear, sempre há bons motivos para a guerra. Eleja os seus.
Movido pelo ódio, Fábio optou pela guerra. Movida pela ambição,
Regina optou pela guerra; movida pela vingança, Amanda e Vera
optaram pela guerra; movida pela justiça e pelo amor ao filho, Rosa
também optou pela guerra. São muitos os argumentos a favor da
guerra e dos preparativos para ela. Se queres a paz, prepara-te para a
guerra. No amor e na guerra, vale tudo; se nesta guerra há um filho na
linha de frente, fica difícil definir o que significa a palavra tudo. Rosa
está preparada para a guerra. E ela está de posse de munição de alto
calibre. A escritura pública que Francisco entregou a Rosa antes de
adoecer e ficar incapacitado para o resto da vida é uma verdadeira
bomba de efeito retardado para toda a família, ou o que restou dela.
Com certeza, Francisco também tomou esta atitude porque antevia a
guerra que Rosa poderia ter de enfrentar, quando reivindicasse a
paternidade do nascituro e, mais ainda, quando reivindicasse a relação
estável com ele, caso os pressentimentos dele viessem a se tornar
realidade; queria proteger de eventuais contratempos tanto Rosa
quanto o futuro filho deles, que viria a nascer seis ou sete meses depois
que ele fosse declarado incapaz. Ele queria garantir para a companheira
e o filho que ainda nasceria um futuro tranquilo. Nos documentos que
entregou a Rosa, ele assume que há um relacionamento estável entre
os dois; declara que é pai da criança que está sendo gestada por Rosa, e
faz desta herdeira de 50% de tudo que possui. Quanto aos 50%
restantes, destinados aos filhos oriundos dos relacionamentos
anteriores, acrescenta o filho que nascerá do relacionamento com Rosa
ao rol dos herdeiros necessários. Vai além, autoriza a retirada de partes
do corpo dele para a realização do teste de DNA do filho que terá com
Rosa, caso isto venha a ser exigido pelos outros filhos. Estes
documentos são mais que suficientes para garantir, não apenas os
direitos de herança da companheira e do filho; ainda que os

28
Victorino Aguiar
documentos não o digam expressamente, eles também garantem aos
dois o direito de frequentar o velório e acompanhar o féretro.
Com um arsenal deste porte em mãos, mais o apoio recém-
oferecido por Amanda e Vera, Rosa decide retornar ao velório e nele
permanecer até que o enterro se consume. Pretende acompanhar o
amado até à sepultura. Amanda e Vera estarão lá, lhe darão o suporte
moral. Já vimos que as três combinaram de retornar ao velório
separadas. Vera será a primeira a chegar. Minutos depois, Amanda
chegará. Quando faltar pouco para o enterro, Rosa chegará com o
menino. E é assim, que as coisas acontecem. Conforme o combinado,
Vera retorna para o velório. Pouco tempo depois, chega Amanda.
Trocam os cumprimentos, se beijam, e se colocam numa posição
estratégica, que facilite a gravação de qualquer coisa que possa vir a ser
usada posteriormente por Rosa.
Pouco tempo depois, contrariando as expectativas de todos,
Rosa e o filho retornam da rua. De imediato, um burburinho toma
conta do ambiente. Ela logo percebe que o clima é totalmente
diferente, para pior. Todos a olham acintosamente, de cima a baixo,
como se a estivessem investigando. O menino também é alvo destes
olhares. Mas ela não se intimida. Volta a ocupar o mesmo banco em
que estava sentada antes de ir lanchar com o filho. Tão logo ela se
senta, Fábio se dirige a ela:
- Peço que a Senhora e o menino se retirem, por favor. A Senhora não
foi convidada a comparecer a esta cerimônia, não faz parte da família, e
está provocando mal-estar nos demais presentes.
- Não temos nenhum interesse em provocar mal-estar. Não viemos aqui
com este propósito. Estamos aqui para nos despedir de alguém que nos
é querido.
- Pouco importa. Peço que se retire, por favor. A família não a conhece,
nunca soube que meu pai era seu amigo.
- Peço que tenha pelo menos um pouco de boa-vontade e de
consideração, que aceite combinarmos um encontro, num local de sua
escolha, para podermos conversar com calma e de modo civilizado, a
fim de encontrarmos a melhor solução para o problema que o destino
nos impôs. Tenho documentos que o convencerão da veracidade, da
29
Victorino Aguiar
sinceridade e da honestidade da minha parte. Documentos produzidos
por seu pai, que comprovam a seriedade do relacionamento que eu
mantinha com ele.
- Nada temos a conversar, nem hoje, nem no futuro. Para todos os
efeitos, a Senhora é uma intrusa, uma estranha.

Ele não sabe, mas Rosa agora está fortalecida, não é mais um
bicho acuado. Ela conta com o suporte das técnicas de enfermagem. Ela
aumenta o tom da voz, para o igualar ao tom usado por Fábio:
- Ao contrário do que o Senhor diz, o Senhor já me conhece; já sabe que
eu não sou uma estranha, principalmente para seu pai. É por ele e por
meu filho que estou aqui. Eu e meu filho temos o direito e o dever de
dar a ele o nosso último adeus. Este menino é meu filho, é filho de
Francisco; como os demais irmãos, ou tidos como irmãos, ele tem o
direito de ver o pai pela última vez.
As últimas palavras ditas por ela já estão numa altura suficiente
para serem ouvidas em todo o salão. Ela se levanta com determinação
e, ao invés de abandonar o recinto, puxa o menino para perto do
caixão. Já inteiramente tomada pela emoção, ela aponta para o esquife
e, aos prantos, diz ao filho:
- Este homem era seu pai, um homem íntegro, um bom pai, um bom
marido, um homem de bem. Só tinha amigos, não tinha inimigos.
Espero que você puxe a ele; se você puxar a ele, será um grande
homem.
- Já chega. Basta! Se a Senhora não se retirar por bem, usarei de outros
meios. Não posso aceitar que a Senhora manche a memória de meu
pai, justamente na hora em que damos a ele nosso último adeus. A
Senhora é uma golpista. Teve a coragem de registrar uma criança com o
nome do meu pai. Tentou se aproveitar da condição dele, que não
tinha como se defender desta calúnia, para forjar direitos que a lei não
lhe concede. Ponha-se para fora!

Daí para diante, já sabe o leitor o andar da carruagem. E é


preciso que ela ande mais rápido, porque o caminho a percorrer ainda
é longo. Espera-se que tenhamos fôlego para trilhá-lo. Para isto, mister
30
Victorino Aguiar
é conhecer primeiro os companheiros de jornada. Alguns já são bem
conhecidos do leitor; mas há outros que ainda nem embarcaram, e que
talvez anseiem por fazê-lo. Mesmo os já conhecidos de nós não se
revelaram ainda por inteiro, há ainda muita coisa a ser descoberta e
narrada sobre eles.
O certo teria sido começar a narrativa pelo inventário, ao
menos que fosse, para justificar o título que vem escrito na capa do
livro. Mas nem sempre a capa, ou o rótulo, é a parte mais importante
do livro; sucede amiúde o contrário. Isto, aliás, também se aplica ao
nome do autor. Quantos textos famosos há, cujos autores são muitas
vezes totalmente desconhecidos do público? A internet veio para
internacionalizar, massificar e banalizar injustiças e desconexões destes
tipos. Há desvios e injustiças de toda ordem - quanto a títulos, quanto a
autores, quanto a personagens. Isto vale não apenas para textos, vale
também para quadros, canções, prédios históricos, sítios arqueológicos
etc. Ora, pouco importa o autor; se a obra é boa e a autoria é
desconhecida, pode-se concedê-la a qualquer um, de preferência a
alguém já famoso e reconhecido. Pode-se também escolher
deliberadamente deixar os textos e personagens órfãos. Drácula,
Sherlock Holmes, Frankenstein – sabe o leitor por acaso quem foram os
pais desses personagens? Vale recorrer ao Google, certamente. Pois
bem, o mesmo fenômeno ocorre aqui, com a única diferença de que o
velório é uma espécie de sinopse da narrativa. Se o velório nada de
especial tivesse revelado, se ele não tivesse se dado da forma que se
deu, a história poderia ter começado da forma tradicional. O velório
subverteu a narrativa. E Rosa roubou a cena. Bem, já é hora de
passarmos adiante. Comecemos, portanto, por onde tudo costuma
começar. Pelas figuras femininas. Comecemos pelas mulheres.

31
Victorino Aguiar

Capítulo II

Mulheres

Iara – O primeiro casamento


A paixão é má conselheira. Em qualquer área, em qualquer
idade, em qualquer tipo de relacionamento. Com a mesma intensidade
que ela surge, ela pode desaparecer e deixar um rastro de dor e morte.
Raramente ela nos leva ao amor e à paz com que todos sonhamos. A
paixão pode ser comparada à luz do farol alto de um carro que se
aproxima do nosso, que nos cega e pode nos tirar da estrada. Mas ela
não é apenas luz, ela é também fogo, fogo que não apenas cega e
queima, mas também enlouquece quem por ela é visitado. Os poetas se
quedam confusos diante dela. Cada um a vê e a define de um jeito
diferente. Um deles, Camões, o mais famoso e mais antigo da nossa
língua, a confundiu com o amor e a definiu como fogo que arde, isto é,
que queima. Se queima, faz doer. E muito. Bairrismos, nacionalismos e
modernismos à parte, prefiro acompanhar e compartilhar a visão de
Vinicius de Morais, que via nela só perigos e sofrimentos,
principalmente quando associada à figura feminina. Está aí incluído o
fogo, certamente, mas este não é o único perigo trazido pela paixão.
São muitos os perigos, são demais. Não costuma ser um bom negócio
obedecer a ela. Infelizmente, quando se trata de paixão, todo conselho
é inútil. Os apaixonados só têm ouvidos e olhos para os ditames da
paixão. Só a ela obedecem. São demais, os perigos desta vida, pra
quem tem paixão.
Francisco estava em perigo. Francisco estava apaixonado.

Aos 30 anos, ele ainda não tinha se dado conta dessas coisas.
Talvez nunca viesse a se dar conta delas. Foi com esta idade que ele
conheceu Iara. Paixão fulminante, fogo morro acima. Na certidão, Iara
tinha 15 anos, mas seu corpo não era condizente com sua idade, nem
com seu comportamento. Ela era dona de um corpão capaz de entortar
32
Victorino Aguiar
os pescoços de homens e mulheres, capaz de espalhar sofrimentos por
onde passasse. Na ausência de Francisco, todos se referiam a ela como
o pitéu, aí incluídos até os poucos amigos dele. Os feromônios da
menina eram mais potentes do que uma bomba nuclear de mil
megatons. Ambiciosa, sensual, destemida, desprendida, era bem o
retrato de uma jovem dos tempos modernos, que rompe com todos os
valores e tradições que se interponham entre ela e seus desejos e
prazeres. Desassistida de todo pela família, vivia largada no mundo,
totalmente livre.

Os futuros pais se apaixonaram e se envolveram fisicamente já


nos primeiros encontros. A menina logo engravidou. O casamento foi
feito às pressas. Cartório e igreja. Para o arremedo de família que ela
possuía, o casamento foi visto como uma bênção, uma carta de alforria.
A barriga era ainda imperceptível, estava no segundo mês de gestação.
Fizeram uma festa bem simples, discreta.
Da paixão dos dois, com apenas sete meses de casamento, veio
ao mundo um menino saudável, simpático; um lindo bebê, apesar de,
para os desavisados, prematuro.
Uma esposa adolescente, agora com 16 anos, agora mãe de um
menino, com a responsabilidade de criá-lo, é pouco mais que uma
adolescente de 16 anos. Mais adolescente do que esposa. Mais
adolescente do que mãe. Um bebê nasce tirânico. Uma adolescente já
teve tempo para se tornar cruel e quase ingovernável. Principalmente
quando tem o potencial hormonal da esposa, que praticamente nem
começara a viver a juventude.
Cedo, Francisco se deu conta de que fizera uma má escolha.
Tinha em casa dois seres humanos para cuidar e educar. Um, ainda
bebê; o outro, pior ainda - adolescente. Iara era uma péssima mãe e
uma bosta de esposa. Palavras dele.

Francisco, apaixonado, não enxergara a condição de quase


criança da futura esposa; esta, como era de se esperar, não conseguia
se libertar dos impulsos naturais da idade dela, sentia falta de
movimento, das baladas, dos agitos, tanto mais que tinha um
33
Victorino Aguiar
temperamento inquieto, impetuoso, arrebatado. Baixado o fogo da
paixão, agora Francisco podia enxergar a realidade: o casamento
açodado foi um erro, mais dele do que dela, que nem era culpada por
não ter condições de avaliar corretamente o que estava fazendo; ele,
sim, que tinha 30 anos, o dobro da idade dela, tinha a obrigação de
vislumbrar a merda que ia fazer. Tudo bem que ela, no final das contas,
o seduzira, mas era ele que tinha a obrigação de proteger a ele e a ela
desta sedução; era ele que tinha a obrigação de não roubar a infância e
a juventude dela, ainda que esta apropriação se desse por iniciativa
dela. Em poucas palavras, ele percebeu que aquela relação, além de
subverter a ordem natural das coisas, era uma prisão para ele e a
menina. Ele estava roubando a infância e a juventude da menina, e
estava pagando uma pena pesada pelo roubo. O crime que ele
cometera se tornava mais grave ainda, porque a vítima fazia companhia
ao ladrão neste cativeiro. Os dois estavam presos naquela relação
exótica, desde sempre alvo de maus comentários pelos quatro cantos
do bairro. Depois de muita reflexão, Francisco ganhou coragem e
tomou a única atitude moralmente recomendável naquela situação:
optou pela separação pura e simples. Seguiria dando assistência
financeira e afetiva ao filho, mas de longe; ela ficaria livre para viver o
que lhe restava da infância e da juventude, para dar continuidade a
vida dela, que mal começava.
Iara, no entanto, não enxergou as coisas dessa maneira; ainda
era uma adolescente, na verdade, uma criança de dezoito anos; mas
era mulher também, já tinha despertada dentro de si a herança
genética comum a todas as mulheres, que vem à tona quando elas
desabrocham para a vida sentimental. Depois desse despertar, a
sensibilidade, a fragilidade emocional e o alto espírito de competição
da natureza feminina são irreversíveis. Confrontada pela situação,
sentiu logo a presença e o cheiro de outra figura feminina em cena. As
mulheres parecem que nascem todas com este fantasma dentro delas.
Claro, tinha outra mulher na parada. Com certeza! E ela não estava
totalmente equivocada.
Desgostoso, Francisco não tardou a procurar na rua um pouco
de alegria e sossego. Quem procura acha. Francisco procurou, Francisco
34
Victorino Aguiar
achou. Achou uma mulher compatível com a idade e o temperamento
dele. Alguém que se chamava Sara e tinha 32 anos. Sara, como
Francisco, era pouco afeita a baladas e agitos, prezava mais ambientes
menos barulhentos e pouco noturnos.
Assim, quando o menino tinha dois anos e alguns meses de
idade, Francisco separou-se de Iara e foi morar com outra mulher Sara,
também grávida, como a primeira. A ex-mulher, cega por causa da
rejeição e por ter sido trocada por outra de mais idade que ela, e
provavelmente como forma de se vingar da humilhação de que se
sentia vítima, decidiu deixar o filho com o pai. Mas o que o pai e a
madrasta diriam para sempre ao menino é que a mãe o havia deixado
com eles porque, com eles, o filho teria uma vida melhor.

Separação é coisa complicada:


- Você roubou meu marido, mas fica esperta, se ele fez comigo, vai
fazer com você também.
- Ele não terá motivos para fazer isto, serei melhor esposa e melhor
mãe do que você foi. Embora esta criança não tenha saído do meu
ventre, apesar de ele não ser meu filho biológico, eu nunca o
abandonarei, serei para ele uma mãe melhor que você, vou tratá-lo
como filho. Ao abandonar o próprio filho, você demonstra a péssima
pessoa que é. Mas, abandoná-lo, apesar de ser um ato abominável,
indigno de uma verdadeira mãe, ainda é o melhor que você pode fazer
por ele. Pior seria se você o criasse. Quem é capaz de abandonar o
próprio filho é capaz de cometer qualquer crime.
- Você é a boazinha, a ladra de maridos; presta atenção, quem rouba
um tostão rouba um milhão; um dia, você vai se cansar dele e vai
roubar outro marido.
- Você está usando o próprio filho para se vingar de Francisco, mas você
é responsável pelo que está passando, você mesma procurou. Foi uma
péssima mãe, uma bosta de esposa. Palavras dele. Você mereceu ter
levado um pé na bunda. Aceita que dói menos. Fedelha.

Mas Iara não aceitou. E a ferida continuou a doer. Ela voltaria à


carga. E desta vez, daria o tiro de misericórdia que ela guardava
35
Victorino Aguiar
rancorosamente. Na hora certa, ela puxaria o gatilho. Ela tinha uma
carta na manga. Quando ela julgasse que era chegado o momento, ela
se vingaria. Ela visitava o filho vez ou outra. Às vezes, o levava para
pequenos passeios, bem curtos, sempre por perto. Bem ou mal,
cumpria parte das obrigações maternas. Nestas ocasiões, unia o útil ao
agradável, e fazia dessas visitas uma oportunidade de infernizar a vida
de Sara.
Sara

O segundo casamento
Sara entregou o que prometeu. Era uma boa esposa, excelente
mãe, uma ótima madrasta. Ao enteado que ela abraçara como filho,
vieram se juntar mais dois meninos; pela ordem, Fernando e Fabrício.
Aos três, ela dispensava os mesmos cuidados, o mesmo afeto, mesmo a
Fábio, filho do primeiro casamento de Francisco. Durante todos aqueles
anos, ela nunca deixou de ser uma boa esposa e uma ótima mãe e, mais
ainda, uma excelente madrasta. Aliás, pouca gente percebia a condição
dela de madrasta, tal era o carinho que ela dispensava ao enteado.
Francisco era um homem feliz e realizado, porém ainda queria
mais um filho. Talvez sonhasse em ser pai de uma menina, por ver nisso
a chance de poder se exceder nos mimos, que só uma menina, na visão
ainda machista dele, poderia receber. Era isso, queria uma princesinha,
um bibelô. Seria bem-vinda um pouco mais de energia feminina no
ambiente familiar. Sara não partilhava esse sonho com o marido.
Queria ser uma mãe de qualidade em tempo integral. Ela se sentia
plenamente capaz de cumprir as obrigações maternais em relação aos
três, mas temia que mais um filho pudesse exigir dela além do que ela
poderia dar. Apesar de não apresentar nenhum problema sério de
saúde, Sara era vítima de frequentes enxaquecas, e volta e meia era
visitada por fortes gripes. Quanto ao resto, sua saúde podia ser
considerada normal, exceto pelas complicações habituais da natureza
feminina. Mesmo assim, Sara não excluía definitivamente a
possibilidade de ter mais um filho. Sempre deixava uma ponta de
esperança no coração do marido. Quem sabe, depois que as crianças

36
Victorino Aguiar
crescessem um pouco, ela não mudaria de ideia e realizaria mais esse
sonho dele?

Enquanto isso, a vida prosseguia harmoniosa, tranquila e sem


sobressaltos para eles. Essa rotina só era quebrada por ocasião das
visitas que Iara fazia ao filho, o que acontecia muito raramente. Nestas
ocasiões, Iara sempre encontrava uma maneira de provocar um atrito
para destilar o despeito e o ódio oriundos da separação.
Numa dessas raras visitas, ao retornar de uma saidinha rápida
com Fábio, então com cinco anos, ela forjou uma ligeira e habitual
discussão com a mulher do ex-marido. Fábio não presenciou a
discussão, porque estava longe da cena, brincando com os irmãos e
coleguinhas, mas pôde perceber que discutiam, pelo tom alterado das
vozes de ambas. Iara tinha mais interesse em ver se a profecia dela já
estava se cumprindo do que propriamente em ver o filho.
Desgraçadamente para ela, porém, o clima familiar era de paz e
harmonia. O menino estava sempre alegre e bem disposto, era uma
criança feliz. Assim que voltava dessas saídas com a mãe, ele já
retornava ligeiro às brincadeiras com os irmãos e coleguinhas. Sabia
que ela era a mãe dele, mas não tinha uma ligação muito forte com ela.
Mãe é quem cria, cuida e dá carinho. Ela, ao contrário do filho, não se
sentia nada feliz, porque as coisas não tinham se dado da maneira
como ela desejava e esperava. A segunda família do ex-marido era uma
família harmoniosa. Ele vivia melhor com a atual esposa do que vivera
com ela. Por isso, ainda mal resolvida, decepcionada e inconformada,
ela sempre procurava motivo para uma discussão. Daquela vez, no
entanto, ela se excederia.
Uma adolescente é capaz de cometer grandes crueldades; mas
isto não é exclusividade dos adolescentes, e o ser humano sempre pode
se superar. Quem pensa o contrário não sabe o que é uma mulher
rejeitada. Principalmente quando essa mulher acumula a condição de
adolescente e de ex-esposa. No auge da discussão, Iara dirá à Sara
coisas do arco da velha. Prepare o seu coração. A internet nos ensina
muitas coisas a respeito das mulheres. Algumas podem ser
comprovadas com facilidade. Por exemplo, quando duas mulheres
37
Victorino Aguiar
estão discutindo, a maneira como elas se tratam é um dos indicativos
de que a discussão é ou não à vera. Se usam o vocativo querida, a
discussão é séria, elas estão discutindo de fato, e estão com raiva.
Agora, se usam o vocativo queridinha, aí, a discussão é quase um caso
de vida ou morte, Deus nos proteja:
- Queridinha, Francisco é um tolo. Os homens não mudam assim,
facilmente, nem com o tempo. Ele sempre será um tolo, queridinha.
Iara decide então que esta é a hora de dar o tiro de
misericórdia:
- Quer saber? Eu conto: ele não é pai biológico de Fábio. Eu o enganei e
ele caiu no golpe, o primeiro. Você aplicou o segundo. Em breve, outra
chegará e aplicará o terceiro golpe. E assim como ele foi tolo e assumiu
um filho sem desconfiar de que não era pai biológico dele, mais cedo
ou mais tarde, cairá num golpe igual ou pior. Aí, queridinha, ele vai te
dar um pé na bunda também, igual ao que ele me deu.
- Haja despeito, perca a esperança de destruir o nosso relacionamento,
queridinha.
- Aqui se faz, aqui se paga. Nós somos muito parecidas; com a única
diferença, é claro, que eu nunca roubei marido de ninguém, ao
contrário de você. Hoje em dia, queridinha, os casamentos não
costumam durar muito, sete anos é uma eternidade. Prepara o teu
couro, que tua hora vai chegar.
- Você não mede esforços para destruir nosso casamento, é amargura
demais, acalma teu coração. Como consegue dizer uma barbaridade
dessas, que pode fazer mais mal ainda ao teu filho? Acha que foi pouco
o que já fez? Não tem um pingo de pena do menino? Qualquer pessoa
percebe que você quer apenas perturbar e destruir o casamento de
quem te deu um merecido pé na bunda.
- Então tire você mesma a prova. Faça o teste de DNA de Fábio. Você é
tão tola quanto Francisco, vocês se merecem. Um teste de DNA vai
comprovar o que estou te dizendo.
- Ponha-se para fora de minha casa. Quando vier ver o menino, fique na
calçada, não quero mais uma cobra venenosa como você aqui dentro.
- Francisco é sonso, de santo só tem aparência, queridinha. Ele tem
mulher na rua, mais de uma.
38
Victorino Aguiar
- Fora da minha casa, sua imunda.

Sara fica abalada, as palavras de Iara calaram fundo no coração


dela. Mas ela nada contará ao marido. Tudo poderia não passar de um
expediente para intranquilizá-la, provocar uma desavença com o
marido e destruir a família tão jovem ainda, em estágio probatório. Mas
e se isto for verdade? Ela tem medo de que seja e venha a ser
descoberto um dia. Toma a iniciativa de fazer o DNA, às escondidas.
Agora, ela tem certeza: o menino realmente não é filho do
marido. O exame comprova o que Iara revelou. Sara fica indecisa
quanto à atitude que deve tomar. Teme mais do que nunca que a
divulgação disto vire o casamento dela de pernas para o ar. Ela tem
razão para imaginar que tudo que a ex-mulher deseja é infernizar a vida
do casal e dos filhos, é este o cenário que Iara deseja construir. Por fim,
resolve esconder do marido o que ficou sabendo, e adiar o máximo que
puder a revelação, deixar para fazê-la apenas quando tiver certeza de
não estar colocando em risco a estabilidade da família. Tudo deve ser
feito em nome da tranquilidade familiar, da preservação do casamento.
Mais adiante, o estrago será muito menor. Talvez nem haja estrago. É
pensando também em Fábio, que agora ela tem certeza de não ser filho
biológico do marido, que ela tomará esta atitude. Coitado de Fábio. É
um destino muito trágico para uma criança.

A partir daquela discussão, Iara nunca mais voltaria para ver o


filho. Volta e meia o menino perguntava por ela. Sara e Francisco
davam sempre uma desculpa – que a mãe não tinha tempo, que
trabalhava muito, que tinha viajado, que tinha se mudado para outra
cidade etc. Com o tempo, o interesse do menino em saber por onde
andava a mãe foi diminuindo, os intervalos entre uma tentativa e outra
de saber o destino dela foram ficando cada vez mais longos, até o
interesse dele desaparecer quase por completo.
Sara, no entanto, preocupada com a longa ausência de Iara,
resolveu, mais uma vez por conta própria, fazer uma investigação
acerca da vida e do paradeiro dela. Foi assim que Sara descobriu que
Iara era muito mais perigosa do que se imaginava. Nesta investigação,
39
Victorino Aguiar
ela também descobriu que o pai de Fábio era um rapaz de má conduta,
violento, com vários processos nas costas, e que ele espancava Iara
com frequência. Nas visitas que Iara fazia ao filho, Sara pôde ver, pelo
menos uma vez, as marcas de ferimentos, muitas manchas roxas na
face e no resto do corpo, que Yara exibia. Ao filho, ela disse que sofrera
uma queda. Volta e meia, o marginal ia preso e passava algum tempo
na prisão, mas era logo solto. Acabou por ser morto num confronto
com a polícia. Sara soube com riqueza de detalhes que este rapaz
desprezara a mãe de Fábio, quando ela lhe apresentou a gravidez.
Segundo a pessoa que passara esta informação, ele teria dito a ela que
arranjasse um otário que lhe assumisse a barriga, que ele não nascera
para sustentar vagabundas e filhos de pais duvidosos. Ela parece ter
obedecido prontamente ao comando do marginal. Francisco foi o otário
escolhido por ela. Sara descobriu também que Iara era apaixonada pelo
marginal, e que continuara a ter envolvimento físico com ele depois da
separação, e mesmo durante o casamento. Este envolvimento só teria
fim após a morte do marginal no confronto. Tudo isto a chocava e
atemorizava bastante, mas uma informação viria tranquilizá-la para
sempre. Soube com certeza que Iara fora assassinada por um
namorado, da mesma estirpe do pai de Fábio. Era uma notícia ao
mesmo tempo boa e ruim para toda a família, mas em especial para
Fábio. Boa, porque Iara não teria mais oportunidade de prejudicá-lo,
contando a terceiros a condição dele de filho não biológico de
Francisco; ruim, porque ele era agora oficialmente órfão por parte de
pai e de mãe. Isto, a rigor, não chegava a ser uma orfandade, porque
pai e mãe, mesmo, na prática, eles nunca foram. Quanto a ser órfão por
parte de pai, isto ele nunca saberia, porque o pai dele era Francisco,
para todos os efeitos legais e morais. Todos estes segredos seriam
mantidos guardados a sete chaves por ela. Era uma questão de
humanidade; ninguém lucraria nada em sabê-los.

Livre do perigo que Iara representava para a família dela, Sara


respira aliviada. Agora, é hora de soltar os fogos e tocar as fanfarras
para anunciar o novo ciclo que ela iniciará para o casal. Para aumentar
mais ainda a felicidade do marido e consolidar definitivamente o
40
Victorino Aguiar
casamento, ela resolve finalmente atender aos apelos dele por mais um
filho, e engravida. Esta gravidez não será como as anteriores; Sara
passará por poucas e boas, enfrentará muitas dificuldades, que mais
adiante serão narradas com mais detalhes. O que importa é que desta
gravidez virá ao mundo Francisca, uma menina que será dali para
diante o xodó do pai.
Apesar dos sustos e da saúde frágil da menina, é contagiante a
felicidade de Francisco, que só se referirá a ela como minha princesa,
meu bibelô. Ao contrário do que se poderia esperar, a chegada da
menina, de início, não desperta muito ciúme nos demais irmãos, ainda
que a maior parte dos carinhos e da atenção dos pais agora passe a ser
direcionada para a irmã. Francisca é uma menina simpática, muito
sorridente, uma fofura. Todos a amam. Com a chegada dela, se inicia
mais um ciclo de paz e felicidade familiar. Durante muitos anos, a
família experimentará uma vida cheia de alegria e prosperidade. A salvo
das preocupações desnecessárias e paralisantes que costumam existir
na maioria das famílias, protegido e escudado eficientemente por Sara,
Francisco poderá, durante os dez anos seguintes, constituir um
invejável patrimônio. No início, contando apenas com o empenho e
trabalho em tempo integral dele próprio e com um pouco de ajuda da
mulher; mais tarde, com alguma participação dos filhos, principalmente
de Fábio, que será o braço direito do pai. Serão mais de dez anos de
trabalho profícuo e incessante. Apesar de trabalhar em ritmo intenso,
Sara dá conta de suas obrigações domésticas, e ainda encontra forças e
tempo para auxiliar o marido nas atividades empresariais que ele
desenvolve.
Após estes dez anos, no entanto, Sara começa a apresentar os
primeiros sinais da doença que virá a mudar a rotina de vida dela.
Aquelas enxaquecas que a importunavam esporadicamente desde a
juventude tornam-se mais frequentes e intensas. Algumas vezes, agora,
elas se fazem acompanhar por vertigens e rápidos desmaios. Os exames
a que ela é submetida não produzem achados importantes que
levantem suspeitas de algo muito grave. Com a redução de algumas
atividades, complementação vitamínica e ingestão de alguns
medicamentos, Sara consegue retornar às condições de saúde
41
Victorino Aguiar
anteriores. Francisco contrata os serviços de mais uma ajudante para as
tarefas domésticas; além disso, libera a esposa dos serviços que ela
presta nas atividades empresariais que ele desenvolve. Estas mudanças
garantem o retorno da tranquilidade à família.

Mas a doença de Sara só dá uma pequena trégua. Logo ela


retorna com mais ímpeto. Sara se assusta com a possibilidade de
Francisco vir a saber a verdadeira condição de Fábio através de
terceiros. Resolve revelar a ele o segredo guardado a sete chaves
durante tanto tempo. Francisca já está saindo da infância e entrando na
adolescência. Isto amenizará bastante o impacto que a notícia
provocará no marido. Naturalmente ele fica muito abalado e muito
triste. Confessa que, no fundo, sempre tivera um pingo de
desconfiança, porque, revirando as coisas de Iara que tinham ficado na
casa quando da separação dos dois, ele encontrou um cartão de um
laboratório, no qual havia sido anotada uma data, anterior ao dia em
que eles se conheceram. Este cartão era, no mínimo, um indício de que
ela estivera no laboratório algum tempo antes de eles terem tido os
primeiros encontros, isto é, antes das primeiras relações sexuais que
eles tiveram. Um coisa, no entanto, era uma desconfiança; outra, era a
certeza que agora ele tinha de que Iara já estava grávida quando eles
começaram a se relacionar sexualmente. Algum consolo, ele encontrou
no fato de que os pais biológicos de Fábio já estavam mortos. Isto era
uma garantia de que estas verdades foram enterradas com Iara e o
marginal que geraram Fábio. A decepção e a tristeza, porém, ele não
pode evitar, porque para ele é humanamente impossível aceitar uma
fraude daquele tipo, sem se sentir ferido na sua natureza masculina.
Apesar da tristeza e decepção, ele faz a única coisa que lhe
compete fazer. Continua a amar o filho, porque, para todos os efeitos,
Fábio, jurídica e afetivamente, é filho dele. O menino também retribui
com intensidade o afeto e a atenção que o pai dispensa a ele. A partir
do momento em que Francisco fica sabendo da condenável atitude de
Iara, até parece que seu amor pelo filho aumenta. E por amá-lo muito,
nada contará a ele, para não prejudicá-lo. É melhor que o filho fique a
salvo disso, tanto mais que ele lida mal com o abandono da mãe,
42
Victorino Aguiar
atravessa uma fase difícil, com a doença da madrasta, a quem ele ama
profundamente e a quem se dedica praticamente em tempo integral.
Francisco se refugia no trabalho e toca para a frente. Trabalha em
excesso, só pensa na família, no bem-estar de todos. A saúde dele não
era forte o suficiente para suportar o intenso ritmo de trabalho que ele
se impunha. Mas era assim que se sentia melhor, diante da descoberta
de que fora iludido por uma criança.

Quanto a Sara, não houve melhora. O quadro era cada vez pior.
Fábio e o pai já não davam conta de tudo, até mesmo porque não
dispunham de formação na área. Já não era possível a eles dispensar
todos os cuidados de que ela necessitava. Ela já necessitava de
cuidados de um profissional da saúde. Fábio cria então uma pequena
firma de prestação de serviços médicos domiciliares, uma MEI –
microempresa individual -, para eliminar a atuação de intermediários,
para ele uma dificuldade a mais. Ele mesmo administraria a contratação
e controle do profissional de saúde. Para isso, contou com o suporte do
advogado amigo do pai, Dr. Laércio, e do médico da mãe, Dr. Arnaldo,
que lhe passaram todas as coordenadas. Dr. Arnaldo fez mais que isso,
indicou a Fábio uma técnica de enfermagem de confiança dele,
Amanda. Bom que fosse assim, da confiança do médico, porque a
técnica estaria subordinada às determinações que Dr. Arnaldo
passasse. A parte burocrática da abertura da MEI era bem simplificada.
Esta medida seria também benéfica para o pai, que já mostrava sinais
de profundo abatimento. Justificados, por sinal, porque o estado de
saúde de Sara se complicava cada vez mais.
Além das dificuldades com a doença, Sara era atormentada por
outros males e preocupações. Os temores que as palavras de Iara
despertaram nela, quando da última visita desta a Fábio, se
amplificaram. Ela temia que a praga de Iara viesse a se tornar realidade.
Por isto, mais adiante, Sara advertirá ao marido a respeito desta praga
que Iara lançara sobre eles. Ela temia que ele viesse a ser alvo de algum
golpe parecido com o que Iara lhe aplicara. Não era bom facilitar.
Alguma mulher poderia ver nele um alvo fácil para este tipo de golpe.
Ela repete para o marido as palavras de Iara, que dissera a ela, com
43
Victorino Aguiar
todas as letras, que outra mulher apareceria para lhe tomar o lugar.
Aquilo não era só uma praga. Todo homem corre o risco de ser
enfeitiçado por uma mulher. Sara quer que ele prometa a ela que
tomará cuidado, para não ser enganado; lembra a ele que as mulheres
exercem um poder muito grande sobre os homens. Ela compreende
que não é mais a mesma mulher, que já não tem saúde, que não pode
mais dar a ele o prazer que ele merece, que ele precisa; que não pode
mais cumprir as obrigações conjugais dela e satisfazer as necessidades
sexuais dele. Mas implora que ele coloque os filhos acima de tudo,
porque os filhos são os maiores tesouros que uma pessoa pode possuir.
Ela compreenderá se ele buscar na rua o que lhe falta em casa, e que
ela não pode mais lhe dar. Mas implora que dessa relação não surja um
filho. Na idade em que ele e os filhos estão, um filho a mais, e ainda por
cima fora do casamento, colocaria em risco a estabilidade da família.
A mulher tinha sabedoria. Ela foi piorando cada dia mais, mal
conseguia falar, se cansava muito rapidamente. Só à base de muitos
remédios, ela conseguia se libertar das dores e dos desconfortos que a
doença lhe infligia. Até aí, os dois ainda podiam conversar um pouco
algumas vezes durante o dia, e obter dessas conversas algum prazer.
Mas mesmo esses poucos momentos de prazer acabariam por ser
negados a eles. Logo os remédios se revelaram impotentes para
permitir e manter esta rotina. Privado dos únicos momentos de alegria
de que antes podia dispor com a mulher, agravou-se em Francisco a
tristeza que já se instalara nele quando a esposa adoecera. Agora
completamente abatido, ele entrou em depressão e terminou por
também fazer uso de medicamentos controlados. A esposa dormia
praticamente o tempo todo e definhava cada vez mais. O médico
recomendou que ele buscasse vida social fora de casa, que se
distraísse, espairecesse. Outra coisa queria dizer-lhe diretamente, mas
usou de subterfúgios. Todos têm necessidade de convivência social;
quando se é homem, então, essas necessidades se tornam maiores e
mais intensas. Os olhos de Francisco murcharam um pouco e ficaram
ligeiramente úmidos. Ele entendeu as palavras do médico. E, com mais
tristeza, concordou com elas. No fim das contas, ele era homem, tinha
saúde, energia, sentia desejo. Necessitava de alguma atividade sexual.
44
Victorino Aguiar
A própria mulher já havia conversado abertamente com ele sobre isso.
Ele estava liberado. Frequentar prostíbulos não lhe parecia uma boa
ideia. Sentia repulsa por estes ambientes. E nem tinha necessidade de
frequentá-los, afinal, era relativamente novo, um homem atraente,
com uma situação financeira invejável. Achou melhor frequentar com
mais regularidade ambientes condizentes com o nível social dele, como
cinemas, teatros, livrarias. Aos poucos, foi criando o hábito de almoçar
na rua. Era mais uma maneira de se obrigar a ver o mundo lá fora.
Quase todos os dias da semana, almoçava na praça de alimentação do
Shopping Iguatemi, na Tijuca. Isto era uma forma de ele arejar um
pouco a mente

Rosa – O terceiro casamento


Foi nesses almoços que ele acabou por conhecer uma bela
mulher, na faixa dos 30 anos de idade. Aparentemente, os dois tinham
o hábito de almoçar nos mesmos horários e em mesas próximas. Mais
de uma vez, os olhares deles se cruzaram enquanto almoçavam. Estas
trocas de olhares evoluíram para as trocas de sorrisos, tímidos a
princípio. Um dia, na fila do caixa, estas trocas de sorrisos evoluíram
para uma troca de palavras. De troca em troca, passaram a
compartilhar a mesa e a trocar confidências. Não tardou para que eles
trocassem também os números de telefone e do zap. Ela lhe despertou
a atenção não apenas pela beleza física, mas também pela delicadeza e
graciosidade. Ele veio a saber que ela era professora de ensino médio
da rede estadual. A conversa dela era amena, agradável, fluía
facilmente, o tempo passava ligeiro ao lado dela, que parecia ter
bastante cultura.
Já nos primeiros encontros, ele revela a ela a situação familiar
nada peculiar na qual ele se encontra. Conta-lhe sobre a condição da
esposa - debilitada, acamada, em estágio terminal, gradativamente
corroída por uma doença incurável etc. Ressalta que o enredo não é
incomum, que compreenderá se ela também tiver a reação usual que a
maioria das mulheres costumam ter diante de tais contextos. Para ele,
basta dispor de uma amizade, nenhuma cobrança além disso fará.
Qualquer coisa além disso, para ele, é impossível, pelo menos por
45
Victorino Aguiar
enquanto; nem cogita de abandonar a esposa naquela situação. Carece
de alguma atividade sexual, não há como negar, é homem, tem ainda
este tipo de necessidade, mas não é o que mais busca. Quer também
uma companhia, alguém com quem possa dividir as aflições e conversar
um pouco sobre as áreas da atividade humana que lhes interessem;
frequentar um teatro, ir ao cinema, comer fora, sem cobranças e sem
complicação.
Ela deixa claro que entende a situação dele, o estado da esposa,
a necessidade dele de companhia e amizade, mas acresce que espera
mais que isso de uma relação. Fala dos riscos e das desvantagens de se
envolver numa amizade tão próxima e frequente com um homem, sem
nenhum compromisso de parte a parte. A última coisa que ela quer é
exigir dele qualquer retribuição, porque também ela precisa de
companhia e compartilhamento. Em poucas palavras, ela quer ter pelo
menos uma esperança de ser a primeira da fila, quando ocorrer o óbito
da esposa, tido como certo e próximo pelos médicos, por ele e pela
própria esposa, caso eles iniciem um relacionamento daquele tipo.
Ele acha razoável manter um relacionamento afetivo discreto
com ela, até que a esposa venha a ser libertada do martírio a que está
submetida durante todo este tempo. Assume o compromisso de
oficializar uma união estável com ela, algum tempo depois da morte da
esposa, o que, infelizmente, não deve demorar muito. Pede apenas que
Rosa não engravide e seja discreta, por não achar conveniente dar
publicidade à relação dos dois antes do desenlace da esposa. Pede a ela
que compreenda que terão de respeitar um período de alguns meses,
depois da morte de Sara, até que venham a se assumir como um casal
perante a sociedade.
Eles começaram por compartilhar as mesas do Shopping
Iguatemi; depois, passaram a compartilhar o carro de Francisco, nos
longos passeios que faziam, circulando na orla pelas praias da Zona Sul.
Já haviam trocado olhares, sorrisos, confidências. Agora, mesmo,
acabaram de trocar promessas. Nada mais previsível que viessem a
compartilhar uma cama de motel e a trocar carícias e intensos
orgasmos, represados pelo longo jejum que os dois haviam suportado.

46
Victorino Aguiar
Rosa não esconde de Francisco o sonho dela de ser mãe. Depois
que ela o conheceu, este sonho ficou ainda mais forte. Ela não vê a
hora de ser mãe. Francisco é o pai com que ela tanto sonha para o filho
que ela anseia ter. Não é pequeno o sacrifício que ela terá de suportar
para adiar a realização deste sonho. Promete tomar as precauções
necessárias para evitar a gravidez. Assume que está há muito tempo
sem atividade sexual. Há anos que não toma a pílula, mas reitera que
fará tudo para que não venham a ser surpreendidos por uma gravidez.
As amigas da escola, sabedoras do envolvimento dela com um
homem casado, não se cansam de dizer a ela que os homens repetem
sempre a mesma ladainha. É bom que ela se prepare, porque ela pode
vir a ser enrolada por ele. O que lhe aconselham as amigas é que ela
cuide logo de engravidar. Esta é a única chance que ela tem de criar um
envolvimento duradouro e seguro com ele, porque, mesmo que a
esposa esteja entrevada, a morte dela pode demorar um mês, um ano,
uma década, isto é, a morte da esposa não tem hora nem dia
marcados. Além disso, o cara tem problema de saúde, é depressivo,
toma remédio controlado. Rosa não vai ficar com as carnes duras para
o resto da vida, o tempo passa rápido. A velhice está logo ali.
Rosa a tudo ouve com atenção, concorda em boa parte com os
pitacos das amigas; mas ela já conhece um pouco da natureza humana,
em especial, da natureza feminina. Ela já incorporou uma expressão
muito comum nas bocas das mulheres: mulher não é amiga de mulher.
É com base nessa expressão que ela decide esperar as coisas se
resolverem para engravidar. Quem esperou estes anos todos pode
esperar mais um ou dois. Tem de ficar atenta e fazer as coisas certas,
para não pôr tudo a perder. Engravidar contra a vontade dele, a esta
altura do campeonato, pode equivaler a dar um tiro no pé. Sabe que
ele está no meio de uma tormenta, desorientado. Ele sofre por ver a
filha Francisca tão fragilizada emocionalmente. Sente remorsos por não
poder mais dispensar a ela os carinhos e os mimos a que ela estava
acostumada. Vive atormentado pelo remorso e pela culpa. Mesmo
sabendo que a esposa o libera para suprir as carências afetivas e
sexuais fora de casa, no fundo, ele sente remorso.

47
Victorino Aguiar
Sempre frutifica um pouco, uma semente lançada ao vento. A
mais forte e a que frutifica mais e melhor, no entanto, é aquela que cai
do galho e brota ao lado da árvore de onde ela caiu. Retratemos com
fidelidade os pensamentos de Rosa. Bem lá do fundo da mente dela,
uma vez ou outra, emerge um pensamento intrometido e indesejado
que lhe provoca um sentimento de insegurança e perturbação. Ela
acredita em Francisco, quanto à esposa, sente sinceridade e
honestidade nas palavras dele, mas, no fim das contas, ele é homem. É
bem possível que ele venha a se envolver com outra mulher e que esta
consiga prendê-lo para o resto da vida. Ela, no entanto, apesar disso
tudo, decide esperar as coisas se resolverem para engravidar. Quem
esperou estes anos todos pode esperar mais um ou dois.
Mas as coisas seguiriam outro rumo. O cérebro tem seus
mistérios. Nem sempre tomamos conhecimento dos pensamentos
intrometidos e indesejados que ele produz. Muitas vezes, eles atuam
na penumbra e determinam de modo imperioso, sem que possamos
percebê-los, o que acreditamos serem as nossas escolhas. Em outras
palavras, muitas vezes colhemos os frutos produzidos por sementes
que nos inseminam na calada da noite, traiçoeiramente.
Rosa teve a maior das surpresas. A despeito de todo o cuidado
que tomara, com apenas seis meses de envolvimento sexual com
Francisco, ela engravidou. Estava num beco sem saída. Um aborto
estava fora de cogitação; fazê-lo era violentar a própria consciência, ela
se sentiria culpada pelo resto da vida. Sabia que se assumisse a gravidez
correria o risco de perder Francisco, afinal, prometera a ele que não
engravidaria de jeito nenhum. Pior que ela não planejara aquilo, não
queria engravidar. Como poderia ter acontecido aquilo? A cartela não
deixava dúvidas. Ela pulara um dia. Estava lá, registrado na cartela.
Ela decidiu aguardar alguns dias para contar a ele. Quem sabe
aquilo não seria um rebate falso, quem sabe a menstruação não viria
com atraso? Ela faria pelo menos dois exames para confirmar e, só
então, depois do resultado, decidiria quando contar a ele, caso se
confirmasse a gravidez. Também alimentou a esperança de que
Francisco pudesse aceitar o filho, com o passar do tempo. Um filho
também poderia representar para ele a esperança de um novo começo.
48
Victorino Aguiar
Se já era certo que a esposa morreria em pouco tempo, bastava que os
dois mantivessem a existência do filho em segredo, até que pudessem
assumir publicamente a criança. De qualquer modo, não lhe daria logo
a notícia. Faria isso aos poucos. Ela, porém, ficaria privada muito em
breve desta opção, e não poderia dar a notícia a ele em conta gotas,
aos poucos. O destino lhe colocaria numa encruzilhada. Talvez ela
tivesse de contar a ele justamente no momento mais delicado da vida
dele.

Morte de Sara
Sara partiu num final de madrugada, que desaguaria numa
manhã calma e ensolarada de domingo. Estava terminado o calvário da
mãe dedicada, da esposa devotada, da madrasta exemplar. Pelo menos
na hora da morte, ela foi poupada da dor. Ao que tudo indica, morreu
ainda dormindo. Nenhuma expressão de dor, desconforto, medo.
Morreu em paz. Em paz descansará, se depender apenas da conduta
que pudemos ser testemunhas enquanto viveu. Desnecessário entrar
em detalhes sobre o atropelo que a morte dela provocou. O velório e o
enterro foram feitos no tempo mais curto possível. Pouco depois das
duas horas da tarde, o corpo já havia sido baixado à sepultura. A pressa
era justificável, porque Sara estava muito debilitada; na situação dela, a
decomposição do corpo se daria muito mais rapidamente do que de
costume. Nem deu tempo para Fernando vir se despedir da mãe. Desde
que a mãe ficara acamada, Fernando só a visitou uma vez.
Quando Rosa vem a saber da morte de Sara, esta já está
enterrada. Foi tudo muito rápido. Francisco conta a Rosa a experiência
que foi se despedir para sempre da mulher que convivera com ele por
tanto tempo, que dedicara a vida dela integralmente à família, desde
que passaram a morar juntos. A confusão, a choradeira. Descansou,
finalmente. Ele fez o que pôde para amenizar o sofrimento dela. Vida
que segue.

A morte de Sara repercute intensamente em Francisca.


Francisco precisa dar bastante carinho a ela, ajudá-la a superar a perda
da mãe. Pior que ele não encontra energia nem para superar a própria
49
Victorino Aguiar
tristeza. Ele sente remorso por isso. Sente tristeza ao ver sua
princesinha tão abatida. Nas conversas com Rosa, relembra a infância
de Francisca, as primeiras palavras, os primeiros passos. Rosa o
estimula a falar de Francisca, diz a ele que ela superará o mau
momento. Que ela continuará a contar com ele. Promete ajudá-lo a
complementar a criação de Francisca. Claro que ela nunca substituirá a
mãe, mas, pelo menos, poderá amenizar e ajudar a menina na
superação do luto pela partida da mãe.
- Você nunca me mostrou as fotos dela, quando ela era neném,
pequena. Eu quero ver.
- Na próxima vez que a gente se encontrar, vou trazer o álbum dela,
aliás vou trazer todos os álbuns que tenho.
- Vou adorar ver a sua cara quando era um pentelhinho. Você devia ser
bastante levado.

Rosa o consolará e nada falará a ele sobre a gravidez, por


enquanto. Quer poupá-lo, porque sabe que a revelação disto
representará para ele mais um golpe, um choque. Apenas faz
companhia a ele, o que já não é pouco. Ele mostra a ela as fotos de
Francisca, desde a saída da maternidade até pouco antes de Sara ficar
acamada.
- Nossa! Esta menina é linda desde sempre! Que fofura! Tão graciosa.
- Verdade! Não tinha quem não se apaixonasse por ela.
- Deixa eu ver os outros álbuns. Quero ver você, quando era pequeno.
Estou morrendo de curiosidade.

Francisco mostra as fotos dele, desde quando ainda era bebê


até os dias atuais. Ela pede que ele lhe dê algumas fotos que ele tem
em duplicidade, de quando era pequeno. Ele escreve uma dedicatória
numa delas em que tinha sete anos. Põe nela a data e a assina. Ele e ela
aproveitam para tirar algumas fotos juntos para acrescentar aos álbuns
deles.

A gravidez de Rosa.

50
Victorino Aguiar
Rosa está preocupada, não sabe como dizer a ele que está
grávida. Pelos cálculos dela, já deve estar com quase 60 dias de
gravidez, não pode esconder dele por muito tempo. Daqui a pouco, a
barriga vai dizer o que é obrigação dela dizer. Mas não fazia nem um
mês que Sara tinha morrido... Não tem jeito. Ela tem de criar coragem e
enfrentar a situação. Sente que ele está mais fortalecido, menos
melancólico. Ela toma coragem e resolve contar o que para ele será
uma novidade.
Num dos já costumeiros encontros de fim de tarde, ela
finalmente coloca a gravidez na pauta. Rosa diz a ele que não quer
enganá-lo, aconteceu algo que não estava programado. Era para ela ter
contado a ele antes, mas quis preservá-lo, porque temia que a notícia
agravasse o estado de ânimo dele, já tão afetado pela morte de Sara.
Francisco leva um choque ao receber a notícia, e quase surta.
Ele tem medo de estar caindo outra vez no mesmo golpe que caiu,
quando conheceu Iara.
- Eu sou um tolo, já sabia que isto ia acontecer; este golpe é velho. Não
quero assumir este filho. Não combinamos de você engravidar, pelo
contrário. Eu assumi um compromisso com você porque Sara me
liberou para isto, aliás, foi dela a ideia de eu arranjar uma namorada. E
eu aceitei porque ela estava condenada, mas ela tinha conhecimento
disto. Ela sabia da sua existência e aceitava que nós fôssemos
namorados, mas ela não queria que eu tivesse outro filho. Não foi isto
que combinamos, não foi o combinado. Eu fui um tolo, bem que Sara
falou; parece que ela sabia que isso ia acontecer de novo. Eu já
conheço este golpe, já fui vítima dele com a minha primeira mulher,
que me fez de otário e me empurrou uma barriga de outro homem; ela
se casou comigo grávida de outro homem, um marginal. Eu só vim a
saber que o menino não era meu filho muitos anos depois, quando ele
já era adolescente.

Rosa está atônita. Mal consegue respirar:


- E como você soube disso? Como pode ter certeza de que isto é
verdade?

51
Victorino Aguiar
- Minha primeira mulher contou a Sara, numa discussão que tiveram,
quando Fábio tinha cinco anos. Sara pensou a princípio que tinha sido
apenas uma tentativa de Iara de destruir o casamento dela comigo,
mas isto foi confirmado por ela no teste de DNA que ela mandou fazer,
sem eu saber, e que comprovou que eu não era mesmo o pai biológico
de Fábio. Sara só me falou dessa discussão dela com a minha primeira
mulher e do teste de DNA depois que adoeceu e teve certeza de que
iria morrer em breve. Para eu ter certeza de que tudo era mesmo
verdade, bastou eu relembrar a história dos primeiros meses do meu
relacionamento com Iara, que se encaixava perfeitamente no relato de
Sara. Agora, me vem você com a mesma história. O corpo de Sara nem
esfriou, é desumano o que você está fazendo.
- Meu amor, isto não é um golpe; eu não sou Iara, não sou uma menina;
eu tenho 35 anos, sou professora, tenho emprego, renda. Lamento por
tudo que lhe aconteceu, por Fábio, por Sara, pela doença de sua filha,
lamento também por esta gravidez que eu não programei, que eu não
queria.
- Então aborta a gestação, tem menos de dois meses, se me ama
realmente, faça a curetagem.
- Nunca farei isto, nosso filho já é um ser humano.
- Ele ainda nem começou a ser formado. Agora não confio mais em
você, você não cumpriu nosso acordo. Só há um jeito de resolver isto, é
você interromper a gravidez.
- Nunca farei isso; e eu não estou te cobrando nada, se não quiser
assumir o filho, tudo bem; vou sentir muito, mas nada farei para obrigá-
lo a isso. Não te cobro mais nada, união estável, casamento,
reconhecimento do filho, nada. Dou a liberdade de você fazer um teste
de DNA, se não confia em mim. Me desculpa, meu amor, a falha foi
minha, me esqueci de tomar a pílula, pulei um dia sem perceber. Eu já
te amo, tenho medo de te perder, o que vai ser da minha vida sem
você? Até cheguei a sonhar que este filho poderia representar um
recomeço de vida para você, e a realização do sonho que eu sempre
tive de ser mãe, que este filho seria uma bênção para nós. Eu sou uma
infeliz.

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Victorino Aguiar
Rosa não consegue mais conter as lágrimas. O choro toma
conta dela. Seus olhos estão vermelhos. Francisco fica fragilizado. Tenta
consolá-la, enxuga-lhe as lágrimas. Por fim, se acalma e promete fazer o
teste de DNA quando o filho nascer. Ele vai fazer o teste e manter o
relacionamento em sigilo. Se o teste comprovar que o filho é mesmo
dele, ele assumirá a paternidade e o registrará. No fundo, ele não tem
muita escolha, já está adaptado ao novo relacionamento, vai acabar
precisando mesmo de uma mulher. Rosa, ele já conhece. Ele esperará
um tempo e, mais tarde, quando a poeira tiver baixado, ele assumirá o
filho perante a sociedade. Ele pede uns dias para colocar a cabeça em
ordem e dedicar uma atenção maior à Fábio e à Francisca. É preciso
também agilizar a questão do espólio de Sara. Quase tudo que eles
tinham estavam no nome dele. A participação dela nas firmas era
simbólica, mas, de qualquer modo, havia o espólio. Queria logo resolver
tudo, para liberar a cabeça. ( Está faltando falar de Fernando e de
Fabrício)

Eles ficam uns dias sem se encontrar. A comunicação entre eles


fica restrita a troca de mensagens, ligações telefônicas, zap, e-mail. Este
período o ajuda a refletir melhor sobre a situação dos dois. Ele se
convence de que é uma arrematada tolice acreditar que Rosa tenha
tentado aplicar um golpe nele. Iara era uma criança, sem estudo, sem
uma base familiar, sem emprego, sem renda. As circunstâncias que o
uniram a Rosa eram totalmente diferentes daquelas que o uniram a
Iara. Rosa era uma mulher tranquila, servidora pública, equilibrada,
tinha formação em nível superior, tinha emprego e renda. Agora, ele
confia integralmente na namorada.
Por mensagens, ele comunica a Rosa as novas disposições dele.
Diz a ela que cessaram todas as preocupações e desconfianças com
relação a ela e à gravidez. Sua única preocupação, agora, é com a
própria saúde. Ele diz que tem se sentido mal, uma dor muito grande
na cabeça, tontura, enjoos. A dor já foi maior, está diminuindo, está
suportável, mas ele tem de se cuidar, vai se submeter a uma bateria de
exames. Ela o tranquiliza, diz que quer vê-lo, que está morrendo de
saudades. Marcam um encontro para a semana seguinte.
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Victorino Aguiar
Os dois se encontram bem cedinho, vão tomar o café da manhã
juntos. Ele rememora os acontecimentos dos últimos dias, o estresse,
as emoções, que foram muitas, e que o afetaram bastante. Mais que
tudo, porém, o estado de Francisca representa a principal preocupação
para Francisco. Dói-lhe o coração ver sua princesinha naquele estado,
logo a princesinha dele. Seus olhos ficam marejados. Rosa o consola, diz
que Francisca vai superar esta fase, ela é jovem, vai poder contar mais
com o carinho dele, dali para diante; tudo se resolverá. Pede que ele
não se martirize, ele fez tudo que estava ao alcance dele. No final do
encontro, já de pé, ele pega um envelope na pasta que carregava e dá a
ela:
- Ah, ia me esquecendo, aí dentro tem duas escrituras públicas.
- É sobre o quê? Posso saber?
- É sobre nós, nosso futuro.
- Quanto mistério. Espera, aí. Vou lê-las, então.
- Não precisa lê-las agora, leia depois, em casa, com calma. Nestas
escrituras eu declaro que temos uma relação estável, que você espera
um bebê e que ele deverá ser registrado como meu filho. A outra
escritura, na verdade, é um testamento, no qual eu incluo nosso filho
como herdeiro necessário, e a coloco como herdeira de 50% dos meus
bens, caso venha a acontecer alguma coisa comigo.
- Amor, você está me assustando. Você está escondendo alguma coisa
de mim? Quero ver seus exames. Você não precisava ter feito isto,
amor. Estou assustada. Você acha que vai morrer?
- Calma, Rosa. Não há nada de assustador nisto, é só uma prevenção.
Qualquer um de nós pode morrer de uma hora pra outra. Muita gente
faz testamento antes de morrer. Só estou querendo proteger você e
nosso filho. Não tem nada de errado comigo. Meus problemas de saúde
são banais, não são graves. Estou bem, me sentindo bem. Fique com os
documentos e os guarde. Quando estes momentos difíceis passarem,
nós assumiremos nosso relacionamento publicamente e constituiremos
nossa família. Depois que tiver feito todos os exames e pegar os
resultados eu vou mostrá-los a você.
- Você não tinha necessidade de fazer isso, não te cobrei nada.

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Victorino Aguiar
- Eu sei. Mas a gente nunca sabe o dia de amanhã. Quem diria que Sara
morreria assim, de uma hora para outra, tão nova?
- São situações diferentes, amor.
- Depois conversamos melhor, agora preciso ir, já passou da hora. Isso é
um segredo nosso, não comente com ninguém.
Ele a beija com ternura e diz que a quer.

Esta foi a última vez que os dois se encontraram. Talvez ele já


estivesse pressentindo o que poderia vir pela frente. Ou talvez estivesse
apenas sendo tomado pelos pensamentos catastróficos que costumam
acompanhar as depressões mais severas. Ele já descobrira na carne o
que sempre ouvira em relação a outras famílias. Em família, ninguém
adoece sozinho. Ainda mais quando uma doença se apresenta com a
gravidade e com o impacto que uma doença como a de Sara traz com
ela; mesmo numa família sólida e harmoniosa como a de Francisco, as
consequências negativas são inevitáveis.
Para Francisco, que era o provedor da família e que deixou de
contar com a ajuda da esposa na sustentação emocional e psicológica
dos filhos, as consequências foram mais intensas. A morte de Sara
libertou-o de um fardo. O peso de sabê-la em estado terminal,
esperando uma morte anunciada e iminente, não existia mais. Mas
uma nova vida é sempre um desafio, ainda mais na idade dele. Para ele,
a nova vida começaria não apenas com a incorporação definitiva e em
tempo integral de Rosa à sua rotina. Viria, com ela, o filho dos dois.
Apesar de agora ele ter certeza de que o filho era mesmo dele; de
sentir que Rosa já o amava e via nele o pai que ela queria para o filho
dela, ele não deixa de associar esta nova vida, este novo
relacionamento, aos relacionamentos anteriores, nos quais também
entrara com a futura esposa já grávida. Fora a situação deplorável da
princesinha dele. Com apenas 13 anos e já órfã de mãe. Numa fase tão
delicada da vida. Foi por isto que ele se apressou a fazer as escrituras
públicas. A vida da gente está sempre por um fio. O imponderável paira
sobre nossas cabeças. Era preciso se prevenir contra todas as
adversidades que o mundo pode nos apresentar de uma hora para
outra. Ele já tinha feito alguns exames e pegado os resultados deles, e
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Victorino Aguiar
o resultados não eram nada animadores. Pelo contrário, o
eletrocardiograma apontava uma série de distúrbios de condução,
arritmias, que poderiam evoluir para algo pior. Os exames de sangue
também registravam muitos desvios em relação ao que era
considerado normal. O desmaio que ele tivera bem poderia ser
prenúncio de algo mais sério. Isto, ele manteria em segredo para Rosa,
não queria preocupá-la. Ela não tinha nem 2 meses de gravidez. Melhor
era preservar a namorada e o bebê. Além disso, talvez aqueles
pensamentos negativos recorrentes fossem resultado da depressão.
Muitas vezes, o tempo desmentiu pensamentos negativos como
aqueles, que insistiam em assombrá-lo. Ele podia estar apenas tendo
um pressentimento falso, igual aos outros que o tempo desmentira. No
íntimo, porém, ele sabia que o destino não lhe reservava o melhor dos
mundos. O imponderável paira sobre nossas cabeças. Ele estava com
medo.

Fora de combate
E foi exatamente o que aconteceu. Os maus pressentimentos
de Francisco se tornaram realidade. Ganharam forma e viraram
novamente a família de cabeça para baixo. Diante de tanto estresse, de
tantos e sucessivos eventos traumáticos, Francisco baixou enfermaria.
Menos de dois meses depois da morte da esposa, Francisco teve uma
forte pneumonia, que se agravou celeremente. Para prevenir males
maiores, foi levado para o hospital. Já internado, sofreu um AVC de
graves consequências. Entrou e permaneceu em estado de coma por
quase um mês. Quando saiu do coma, Francisco não era mais o mesmo,
já não interagia com mais ninguém. Nenhuma palavra, nem um sorriso.
Consegue respirar e ser alimentado sem ajuda de aparelhos, mas fica
dependente de cuidados para o resto da vida. A família o instala num
cômodo da casa e torna disponíveis os recursos de que ele precisa. Para
ajudar na prestação dos cuidados que Francisco requer, Fábio terá de
contratar três técnicas de enfermagem. Ele volta a se valer da MEI que
havia criado para atender a madrasta. Amanda, que já fora cuidadora
dela, vem a saber do ocorrido e pede que ele a contrate. Dr. Arnaldo
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Victorino Aguiar
recomenda os serviços de Regina. Amanda coloca uma amiga – Vera -
na fita. O time está armado. Amanda, Regina e Vera.
Nunca mais Francisco se levantaria daquela maca.

As visitas - a primeira
Rosa está desesperada, porque não consegue fazer contato
com Francisco. Já está há mais de quatro semanas sem notícias dele.
Temerosa de que algo pior possa ter acontecido ao namorado, agora
viúvo e liberado para uma relação amorosa menos dissimulada, ela
resolve ir à casa dele. Ela não pretende exibir a barriga já um pouco
pronunciada. Usa uma cinta e veste uma roupa bem larga nesta
primeira visita. Só então, Rosa toma conhecimento da nova condição
de Francisco. Ela conversa um pouco com Fábio, mas não conta a
verdade a ele. Prefere que ele venha a sabê-la quando o pai estiver
bom, em condições de assumir o relacionamento com ela perante a
família, e de comunicar a paternidade do filho que ela terá, que se
chamará pelo mesmo nome do pai. Ela mente para Fábio, diz a ele que
é uma amiga de Francisco, que tinha muito contato com ele, se mostra
condoída com a situação dele e se coloca à disposição para ajudar no
que for preciso. Nada fala a respeito do namoro. A roupa disfarça bem
a barriguinha de Rosa; Fábio nem a percebe. Ele se diz agradecido, o pai
está recebendo todos os cuidados de que precisa. Por recomendação
médica, as visitas devem ser poucas e rápidas, limitadas a alguns
minutos. Em conformidade com a personalidade dele, o tratamento é
bastante formal, direto e objetivo. É possível que, com relação a ela, o
sexto sentido dele acentue um pouco mais a distância que ele costuma
manter diante de estranhos. A verdade é que a pessoa de Rosa não lhe
desperta nenhuma simpatia, ao contrário. Decididamente, ele não foi
com a cara dela. Ela nem precisava ouvir estas recomendações. Sabe
que a barriguinha logo ficará ostensiva. Por enquanto, ela ainda pode
disfarçar a barriga, recorrendo a uma cinta e usando uma roupa larga.
Mesmo assim, olhando bem, pode-se perceber que não se trata de uma
barriga comum. Logo, logo, porém, a barriga estará mais saliente. Na
segunda visita que ela vai fazer, ela já usará uma roupa bem mais larga
que a de agora. Ela fica emocionada, tem vontade de chorar. É uma
57
Victorino Aguiar
situação muito dolorosa para ela. Queria tanto poder dizer a Francisco
que o fruto do amor dos dois, já entrando no quarto mês de gestação,
será um menino, saudável. Lamentava tanto que Francisco não pudesse
participar da formação do enxoval. Ela só voltará a visitá-lo depois que
o filho nascer, não quer que ninguém da família saiba que ela está
grávida, para evitar mal-estar. Espera, com todas as forças, que
Francisco recupere a saúde e retorne à vida normal antes que o filho
nasça. Se isto não ocorrer, ela só voltará a vê-lo um ou dois meses
depois que a criança nascer. Para ela, isto será uma eternidade. Quinze
dias depois que Júnior nasce, ela não resiste e vai visitar Francisco. Este
não apresentou nenhuma melhora. Permanece vivo, mas a nada
responde. Não houve nenhuma mudança. Fábio a trata da mesma
forma fria e distante de sempre. Rosa imagina a alegria que Francisco
teria tido se pudesse ter participado da gravidez dela e presenciado o
parto.
Privada da companhia de Francisco, e impedida de dividir com
ele as alegrias dos primeiros anos de vida do filho, Rosa se dedica de
corpo e alma à criação de Júnior. Conta apenas com os recursos dela
para o sustento e as despesas com ele. Ela poderia recorrer à Justiça
para requerer uma pensão para o menino, já que ela dispõe de uma
certidão que comprova a união estável que ela mantinha com
Francisco, mas não se anima a fazer isto, adivinha que poderá trazer um
grande problema para ela e para o filho. Ela vai esperar que o menino
cresça e tenha entendimento para saber que o pai não está em
condições de interagir com ele. Assim que o menino estiver
maiorzinho, ela vai levá-lo numa visita. Enquanto isso, ela vai visitar
Francisco sozinha, muito esporadicamente. Apesar da cara de poucos
amigos de Fábio, ele não impede que ela visite o pai. Mesmo não o
visitando com muita frequência, ela encontra os meios de saber se o
estado dele evolui ou permanece estacionário.

Júnior vai crescendo sem a presença paterna. E já anda fazendo


perguntas sobre o pai. Percebe que é diferente dos outros meninos. Ela
sempre diz a ele que o pai mora em outra casa porque está dodói e não
pode morar com eles, pois precisa de alguém para cuidar dele, e ela
58
Victorino Aguiar
não tem condições de fazer isto. Ele também quer saber por que não
pode visitar o pai; enfim, é uma tonelada de perguntas. Quando estas
perguntas se tornam mais frequentes, ela promete a ele que o levará
para visitar o pai, logo que ele completar quatro anos. Este será um dos
presentes de aniversário que ela dará a ele.
Conforme a data se aproxima, Rosa vai ficando cada vez mais
ansiosa. Quer que Júnior complete logo os quatro anos, para dar a ele o
prometido presente de aniversário, levá-lo para conhecer o pai. Rosa
preparou bastante o filho para esta visita. Quer que esta visita se
transforme num marco para a vida dele.
Foi a partir desta visita, que ela começou a se relacionar pela
internet com uma das técnicas.

Assim que o menino fez aniversário, Rosa cumpriu a promessa


e o levou com ela numa visita, para conhecer pessoalmente o pai.
Amanda, que estava de plantão neste dia, é quem a recebe na porta. Só
havia ela na casa. Ela reluta muito em deixar Rosa entrar com o
menino. Explica que Fábio não está em casa, e que ele proíbe
terminantemente que ocorra alguma visita quando ele esteja ausente.
Rosa argumenta que ela vai uma vez ou outra ver o amigo, saber como
está, e que Fábio sempre a deixa ver o pai. Explica que fez um sacrifício
muito grande para visitá-lo. Sua fisionomia deixa transparecer muita
tristeza. Seus olhos ficam marejados. Amanda percebe o estado de
espírito de Rosa, se compadece e acaba consentindo que ela entre, mas
pede que seja rápida, porque esta é a determinação de Fábio para
todos. Diz ter medo de que ele chegue de supetão e venha a chamar a
atenção dela. Leva Rosa e o menino até o quarto e pede licença para se
ausentar e terminar uma tarefa que ela estava executando. Coisa de
três minutos, no máximo.
Rosa já havia feito o dever de casa com o menino. Ele estava
bem instruído naturalmente para permanecer calado, não perguntar
nada e só falar se ela autorizasse. Ela não tinha imaginado que poderia
ficar sozinha com o menino no quarto. Foi um presente a mais que ela e
o filho ganharam dos céus. Por isto, aproveita a oportunidade para
estreitar um pouco os laços entre o filho e Francisco. Os poucos
59
Victorino Aguiar
minutos que Rosa fica sozinha no quarto com o filho são suficientes
para ela pô-lo no colo e mostrar a ele o pai:
- Este é o seu papai. Ele está muito dodói. Não pode conversar,
responder a nada que você perguntar. Diga baixinho para ele que você
já sabe que ele é seu pai e que você gosta muito dele. Diz que você vai
esperar que ele fique sarado pra vocês passearem juntos.
O menino repete o que a mãe lhe disse. Os olhos de Rosa se
enchem de lágrimas. O menino pede a ela que não chore, que o pai vai
sarar. Rosa se apressa a colocar o filho no chão e a enxugar os olhos.
Amanda voltou a tempo de poder vê-la enxugando os olhos. Rosa fica
sem jeito e pede para ir embora, não quer trazer problemas para a
profissional. Agradece de coração pela bondade de Amanda, que
caminha com ela até a porta. Já na porta, Rosa torna a agradecer a
Amanda por ela ter permitido a visita. Amanda pede, mais uma vez,
pelo amor de Deus, que ela não comente com ninguém que a deixou
entrar. Não era nem para ela estar conversando com Rosa. Se Fábio
chegasse naquela hora e a encontrasse conversando com Rosa, com
certeza ela teria problema.
- Ele é muito reservado. É educado, mas quase não fala.
- Com todo mundo. Você não tem o telefone dele?
- Não tenho. Para dizer a verdade, nem me sinto muito à vontade para
pedir o número.
- É melhor ligar antes. Anota meu número, aí. E deixa o seu comigo.
Sempre que vier, pode me ligar antes. E se eu tiver alguma novidade te
mando um zap. Você tem?
- Sim, pode me adicionar. Vou te adicionar assim que puder.
- Ok. Mas não comente com ninguém que tem meu número. Aqui
quase tudo é proibido.

Elas trocam os números de telefone. Amanda pede licença para


entrar. Para Rosa e o filho, aquele era mais um presente de aniversário.
Agora, ela poderia se manter informada sobre as condições de
Francisco. Melhor de tudo é que, através de Amanda, Rosa conseguirá
também o telefone de Vera.

60
Victorino Aguiar
Quando Rosa retornar para mais uma visita com o menino, este
já estará com quase 5 anos, já terá uma compreensão melhor das
coisas. Ninguém espera mais que Francisco volte do coma e leve uma
vida normal. Dessa vez, Rosa será recepcionada por Fábio, que, como
sempre, a receberá com frieza. Ele olhará para o menino com cara de
poucos amigos e pedirá a Rosa que não leve mais a criança, porque isto
pode ser prejudicial para o pai, e mesmo para o menino. Rosa concorda
com ele e aceita não levar o menino nas próximas visitas. Eles não
entram em consideração sobre a condição do menino em relação a ela.
Talvez ele desconfie que o menino seja filho dela, mas isso não é da
conta dele.
Eles conversam algumas abobrinhas, Fábio se retira do quarto e
deixa Rosa conversando com a técnica de enfermagem de plantão, que
neste dia é Vera. A conversa, rápida, é também sobre amenidades e
sobre o estado do paciente.

Última visita
Pouco antes de Francisco fazer 61 anos, Rosa faz a ele uma
visita, a última, e leva Júnior com ela. Fábio demonstra claramente
estar incomodado com a visita dela. Indagado por ela, responde com
monossílabos, num tom mais formal ainda do que nas visitas
anteriores. É uma conversa quase mal-humorada, sem entusiasmo. Diz
a ela que os médicos não dão esperança de nada, que o pai dele pode
morrer a qualquer hora.
Rosa sente o clima. Até então ela conseguia manter a calma e
segurar as lágrimas, mas agora ela se sente frágil, derrotada, sem
esperança. Sente que é o fim da linha. Não basta todo o sofrimento que
a doença de Francisco provocara nela. Ela tem uma forte crise de
choro. Ela chora muito, soluça; Júnior dá demonstrações de estar aflito
com o choro da mãe, está meio abobalhado. Olha muito para o doente.

Regina é a técnica de enfermagem que cumpre plantão no


momento. Ela já conhece Rosa de visitas anteriores, inclusive das vezes
em que se fez acompanhar pelo garoto. Ela está no mesmo ambiente e
presencia a cena; faz dela uma rápida leitura e confirma as suspeitas de
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Victorino Aguiar
que a mulher e o garoto são mais do que simples visitantes. A mulher
não é uma pessoa qualquer. Pela fisionomia de Fábio, ela adivinha que
o temporal pode desabar a qualquer momento. Vem por aí temporal.
Nem precisa gastar todos os neurônios para perceber isto. Melhor é
deixar Fábio e a mulher sozinhos. Ela sai discretamente do cômodo e
vai se colocar num local onde possa ouvir o final da conversa.
Fábio se mostra incomodado com o choro compulsivo e
descontrolado da visita, que ele considera inoportuna e inconveniente:
- Por favor, evite este tipo de cena, isto pode prejudicar meu pai;
apesar de ele não interagir, ele pode ter compreensão do que está
ocorrendo e sofrer com isto. Outra coisa, da última vez que a Senhora
veio visitá-lo e trouxe este menino, pedi à Senhora que não o trouxesse
mais. Não é conveniente que a Senhora o traga, este não é um
ambiente que deva ser frequentado por uma criança dessa idade, tanto
mais que esse menino não tem nenhuma ligação com meu pai; se a
Senhora voltar e trouxer o garoto de novo, vou ser obrigado a impedir a
entrada dos dois.

O tom em que Fábio disse as últimas palavras não teve boa


repercussão em Rosa. Ela estava no limite. Já era mais que hora de
Fábio saber a verdade, se é que já não a sabia. Ela se altera e solta a
bomba:
- Esse menino tem nome, e ele tem ligação, sim, com o seu pai, é filho
dele, tanto quanto o Senhor; é seu irmão.
- A Senhora ousa dizer que esse menino é filho de meu pai, que é meu
irmão? A Senhora está dizendo que é amante do meu pai? Era o que
faltava. A Senhora se aproveita da minha boa-fé, da minha educação,
para ofender a mim e minha família com uma calúnia dessa? Não
respeita nem a condição de meu pai, que está impossibilitado de
rebater esta calúnia? A Senhora não tem esse direito, nem se fosse
amante dele. Aliás, meu pai não é homem de ter amantes, muito
menos da sua condição. Ele nunca mencionou o seu nome nessa casa; a
partir de hoje proíbo a Senhora de vir visitá-lo, mesmo sozinha. Perca a
esperança de tirar alguma vantagem da condição indefesa de meu pai;
eu sou o curador, posso decidir quem pode visitar ou não meu pai,
62
Victorino Aguiar
aliás, não sou apenas o curador, moro nesta casa, esta casa é a casa de
meu pai, é também a minha casa, meu domicílio, e nela mando eu,
posso proibi-la de entrar nesta casa. De hoje em diante, visita, só com
minha autorização.
- O Senhor pode me proibir a mim e a meu filho de tudo, só não pode
proibir meu filho de ter um pai.
- A Senhora está passando dos limites, melhor parar por aí.
- Não paro; meu filho tem pai, meu filho é seu irmão, goste ou não; não
me obrigue a contar tudo. Eu preferiria que esta conversa se desse em
outro ambiente e em outras condições, mas se o Senhor prefere que
seja assim, que seja. Eu não sou amante de seu pai, sou a namorada
dele, e esta criança que o Senhor quer impedir que visite seu pai é seu
irmão, goste ou não; foi gerado depois que sua mãe morreu, antes de
seu pai ficar incapacitado.
- A Senhora é uma golpista, quer ser valer da nossa situação para tirar
vantagem.
- Ele é seu irmão.
- Se fosse meu irmão seria bastardo; mas meu pai não é homem que se
comporte dessa maneira.
- Não chama meu filho de bastardo, ele está ouvindo tudo, respeite o
Senhor a presença de seu pai e de meu filho.
- B – A – S – T – A – R - D – O! !! B – A – S – T – A – R - D – O!
- Filho bastardo é o Senhor, o Senhor é o filho bastardo! Filho biológico
é o meu filho, o Senhor que é produto de uma fraude, de um golpe da
sua mãe, que lhe fabricou um pai e o abandonou para ser criado por
ele. B–A-S–T–A–R–D–O é o Senhor. O Senhor herdou a genética da sua
mãe criminosa. B – A – S – T – A – R -D – O! !
- A Senhora responderá por estas calúnias, tenha certeza disso!
- E o Senhor responderá por coisa pior, por ter ofendido uma criança e
a mãe dele.
- A Senhora não tem como provar nada, precisará de material para
comprar um laudo falso, e isto não vou lhe dar. Terá de provar em juízo
como conseguiu estas informações com respeito a minha mãe.
- Faça o exame de DNA, comprove o Senhor mesmo que é um filho
bastardo. Que o Senhor é um filho bastardo eu soube pelo seu próprio
63
Victorino Aguiar
pai. Sua mãe criminosa contou isto à sua madrasta, que, depois de
confirmar a veracidade disto pelo teste de DNA, contou ao seu pai. Os
dois sabiam disto, não lhe contaram para preservar a imagem de sua
mãe e para não o fazerem sofrer, por lhe amarem. O Senhor não puxou
a eles, infelizmente, puxou a sua mãe criminosa. Se sua madrasta não
se desfez do teste de DNA e o Senhor puder encontrá-lo, terá certeza
disto. Eu irei atrás dos direitos do nosso filho. Procurarei os meios
adequados para fazer valer os direitos de meu filho, estas coisas são
decididas em juízo, não dependem de curador.
- A Senhora nunca conseguirá isto, eu também sei mexer com estas
coisas, nunca abrirei mão dos meus direitos e dos meus irmãos a favor
de filhos bastardos, eu sou filho biológico, primogênito, jamais dividirei
o que é meu por direito com estranhos.
- O Senhor deveria se informar melhor; chama meu filho de bastardo,
mas se fizerem o teste de DNA, o Senhor verá que é o contrário, o
Senhor é o filho bastardo; seu pai apenas caiu num golpe, ele não é seu
pai biológico, biológico é o meu filho, que tem a felicidade de não ter
um irmão como o Senhor. Graças a Deus que meu filho não é seu
irmão.
Em seguida, Rosa cai em prantos e sai estabanadamente do
quarto, arrastando o filho pelo braço.

64
Victorino Aguiar

Capítulo III

Boa morte

Fábio agora é um homem revoltado contra os pais, por terem


omitido a condição dele de filho não biológico. Especialmente contra o
pai, por ter revelado um segredo de família a estranhos, um segredo
que afetará a imagem social dele para o resto da vida, porque a amante
bem poderá dividir este segredo com o resto da Humanidade, seja por
vingança, seja por não fazer parte da natureza feminina guardar
segredos. Revolta-o, também, o fato de o pai ter traído a mãe com uma
vadia; desconhece ele, que partiu da própria madrasta a ideia de
Francisco procurar algum consolo e conforto num relacionamento
discreto com outra mulher fora de casa. Mas Fábio adorava a madrasta.
Ela era uma santa para ele, ele tinha nela a confidente e a mãe de que o
destino o privara. Os outros irmãos nutriam por ele e pela irmã um
doentio ciúme e um incurável despeito. Ele era referido pelos outros
irmãos como o neném da mamãe; logo ele que, a rigor, nem tinha mãe.
Ele tinha o pensamento embaralhado, as emoções ainda não
estavam serenadas, mas já atinara que aqueles fatos não poderiam
passar dali. Torcia para que não houvesse ninguém na casa além de
Regina, a técnica de enfermagem que estava de plantão naquele dia, e
que presenciou o início da discussão. Ele estava preparado para o pior,
para o que desse e viesse. Como se tivesse adivinhado os pensamentos
de Fábio, pouco tardou para que Regina entrasse no quarto. Ela deve
ter ouvido tudo.
Ele percebia que Regina, aliás, que todas as três jogavam
sempre algum charme para cima dele. Ele se fazia de desentendido.
Mas, dali para diante, ele verá no assédio de Regina uma oportunidade
de transformá-la numa aliada; estreitar o relacionamento com ela
65
Victorino Aguiar
poderá representar uma oportunidade de garantir o silêncio dela e de
obter a cumplicidade dela para muitos outros propósitos.
Foi por isto que, após a tenebrosa discussão com Rosa, e depois
da saída dela do quarto, Fábio passou a dar um tratamento
diferenciado às investidas de Regina:
- Tudo bem? Posso ajudar em algo?
- Obrigado, Regina. Bem, imagino que você tenha ouvido tudo.
- Não havia como não ouvir.
- Verdade, estávamos aos berros.
- Ela começou, estava fora de controle; eu ainda estava no quarto
quando ela deu os primeiros gritos.
- Torço para que Francisca não tenha ouvido nada. Para ela, no estado
em que se encontra, isto teria um efeito devastador.
- Acredito que Francisca não tenha ouvido nada. Pela hora, ainda deve
estar dormindo. Ela tem o sono pesado. Fica na internet até tarde.
Quando sai, toma o remédio e apaga. Ela nunca acorda antes das onze
horas. E ainda são dez horas.
- Vai lá no quarto dela, como quem não quer nada, e confirma se ela
está mesmo dormindo.

Regina está enganada. Fábio e ela não foram os únicos a tomar


conhecimento das graves revelações feitas por Rosa. Francisca também
foi atingida por aquele meteoro. Claro que ela ouviu. Na altura em que
se deu a discussão, qualquer um que estivesse na casa a teria ouvido.
Ela ouviu tudo, mais do que podia, mais do que devia.
Ela ainda está na cama, deitada. Percebe que a discussão deve
ter acabado, ouve o barulho da porta da sala sendo aberta e fechada.
Quando Regina começa a girar a maçaneta, Francisca vê o movimento,
vira rapidamente para o outro lado, permanece imóvel na cama e finge
estar dormindo. Regina entra no quarto, se aproxima da cama e olha
detidamente para Francisca:
- Francisca, tudo bem?
Não obtém resposta. Ela vai até o outro lado da cama e fixa o
olhar no rosto da menina, que está coberto até a altura do nariz. Os

66
Victorino Aguiar
olhos estão fechados. Por fim, retorna ao quarto e dá a boa notícia ao
patrão.
- Graças a Deus! Isto é ótimo! É um problema a menos.
- Você está um pouco pálido, um pouco trêmulo. Não acha melhor
tomar um remédio?
- Não, obrigado. Já, já, me acalmo. Foram os momentos mais difíceis da
minha vida. Fico preocupado com meu pai. Às vezes penso que ele
pode estar sabendo de tudo que acontece, mesmo sem poder reagir.
- Nunca saberemos. Se estiver sofrendo, provavelmente, levará isto
para o túmulo.
Ela percebe que acabou de expressar uma opinião, ou um
desejo inconsciente. O cérebro tem seus mistérios. Ela tenta consertar
um pouco o estrago, que nem foi percebido pelo patrão:
- Mesmo depois de sair do coma, se ouviu algo, ele não se lembrará de
nada, levará isto com ele para o túmulo.
- Sinceramente, estou no limite.
- Coitado do seu Francisco, nestas condições há tanto tempo, sem
nenhuma esperança de que venha a retornar.
- Seria melhor que Deus o levasse. Seria um descanso para ele. Imagina
ele sair desse estado e se deparar com um filho com 7 anos. A vergonha
que sentirá. Estou desabando, esta é a verdade. A gente se sente muito
impotente. Não posso fazer nada.
- Em alguns países, a família pode decidir abreviar a vida, se achar
conveniente. Aqui, é crime.
- Deus me perdoe, devia ser permitido. Imagina se ele permanecer
assim por 20, 25, 30 anos? Eu terei mais de 60 anos quando ele morrer.
Minha vida toda perdida. Nem tenho com quem desabafar.
- Compreendo. Quero que saiba que pode contar comigo, para tudo.
- Obrigado, Regina. É bom que ninguém venha a saber o que aconteceu
aqui. Será bom para todos, para Francisca em especial.
- Quanto a mim, repito, pode contar comigo para tudo. Para tudo,
mesmo. Você é um bom filho, um bom patrão, justo, humano. Pode
contar comigo mesmo. Se eu estivesse no seu lugar, conversaria com
seus irmãos, sondaria a opinião deles sobre a eutanásia. A sociedade é

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Victorino Aguiar
hipócrita. Há muito tempo, este tipo de coisa já vem sendo feita,
principalmente em hospitais públicos. A sociedade finge que não vê.
- Já sondei eles por alto, muito superficialmente. Vou conversar mesmo
com eles, de novo. Ver o que eles pensam. Desta vez, serei mais direto.
Vou começar por Fernando. Depois, falo com Fabrício. Com Francisca,
nem posso pensar em conversar uma coisa dessas. Não quero fazer
nada de errado, para não me sentir culpado depois.
- Conversa, sim. Você já sabe que pode contar comigo, confiar em mim,
para o que der e vier.
- É bom que ninguém fique sabendo do que aconteceu aqui, nem dessa
nossa conversa. No final, todos ganharão com o silêncio, inclusive as
cuidadoras. Conto com a sua discrição.
- Tem minha palavra.
- Obrigado. Você terá minha gratidão para sempre.

É claro que ela quer mais do que a gratidão dele. Ela o quer por
inteiro, de preferência com o quinhão a que ele terá direito com a
morte do pai. Que não será pequeno, por sinal. Ela não é tão bobinha
como parece ser. Ele também não é besta, e também não está
interessado só no silêncio dela, quer mais que isso, muito mais. Sabe
que é um bom negócio garantir que ela mantenha silêncio quanto a
tudo que ela ouviu. Precisa do silêncio dela para evitar um estrago
maior, não quer que ela coloque fogo no roçado, porque a propaganda,
nesse contexto, não será a alma de um bom negócio. Melhor o
segredo. Mas ele ainda a quer para mais que isso. Ela lhe será de
grande serventia, caso os irmãos concordem em abreviar o sofrimento
do pai. Este consórcio tem tudo para dar certo, é só uma questão de
tempo. De pouco tempo.

A consequência de maior repercussão do incidente é que este


despertou em Fábio o que de pior ele tinha dentro dele. O coração dele
está tomado pelo ódio; um ódio todo direcionado para os quatro pais,
que, agora, na percepção dele, não valem por um. Esse ódio se
transforma numa eterna ruminação contra os pais, principalmente
contra Francisco. De nada adianta ele tentar racionalizar os maus
68
Victorino Aguiar
sentimentos. De um lado, uma parte dele lhe diz que o sofrimento teria
sido maior se os pais lhe tivessem contado a verdade quando ele ainda
era criança ou adolescente. Talvez até ele viesse a adoecer, a se tornar
um revoltado, ingressar numa vida de crime, afinal, por ser filho de pai
e mãe criminosos, talvez tivesse herdado também a carga genética
deles. Mas logo outra parte dele entrava em cena. Os pais tinham sido
canalhas; uma verdade amarga é sempre melhor que uma mentira
doce, porque é mais fácil uma verdade amarga se tornar doce, do que
uma mentira doce não se tornar amarga. Agora que ele sabe que foi
enganado pelos pais postiços, não encontra razões para respeitá-los e
amá-los. Com relação ao pai, os fatos tiveram uma consequência mais
grave. Não havia nenhuma chance de Francisco voltar a ter uma vida
normal. Nada justificava Fábio investir parte da vida dele para cuidar de
alguém já condenado pela ciência. Ele era o burro de carga da família,
era ele para tudo. Carregava tudo nas costas. A irmã doente, deprimida.
O irmão maconheiro e desgarrado, que só o procurava pra pegar
dinheiro. O autoexilado, que, a rigor, nem ligava muito para a herança
que o pai deixaria. Agora que Fábio sabe de tudo, enxerga em Francisco
um problema, um estorvo, uma pedra que precisa ser tirada do
caminho dele. Ele começa a dar guarida a pensamentos pouco filiais,
pouco fraternos, pouco éticos. Fábio rumina o tempo todo o ódio e o
ressentimento. O ódio e o ressentimento não são boas companhias. O
ódio e o ressentimento podem piorar as coisas para ele no futuro, pode
tornar o futuro dele mais tenebroso ainda do que o presente. Fábio
descobrirá isto da maneira mais dolorosa. A eutanásia passa a ser o seu
interesse em tempo integral. Ele se informa de tudo que diz respeito à
eutanásia. Descobre que ela já é legalizada em muitos países, e até
mesmo estimulada em alguns.
Fábio já não se considera mais filho de Francisco. O sentimento
e a percepção dele, no entanto, não têm nenhum valor jurídico. A
certidão de nascimento diz que ele é filho de Francisco. É o que basta. É
isto que tem de ser levado em conta. Não que não haja outras razões,
além da cronologia e da condição peculiar de filho não biológico.
Muitas outras há, além da importância e do protagonismo da figura
dele na narrativa.
69
Victorino Aguiar
Fábio começa a pôr em andamento o plano de aplicar a
eutanásia ao pai. O primeiro passo é conversar com Fernando a
respeito, sondar a opinião dele. Depois de trocar umas mensagens
curtas com o irmão, Fábio resolve falar com mais clareza e
profundidade sobre o assunto. Para isto, remete ao irmão uma longa e
detalhada mensagem de texto, na qual, relata o estado de espírito dele,
principalmente em decorrência da discussão dele com Rosa. Fábio
conta, quase na íntegra, a discussão, na qual Rosa revela que ele não é
filho biológico de Francisco, que a mãe Iara tinha engravidado de um
bandido, posteriormente morto num confronto com a polícia, e jogado
a barriga no colo de Francisco, que, cego pela paixão, caiu no golpe e
registrou Fábio como filho biológico. A mãe ficou sabendo disso quando
Fábio tinha cinco anos, pela mãe biológica dele, Iara, que, para se
vingar por ter sido trocada por Sara, contou a história toda para ela.
Esta, a seu turno, fez em segredo o teste de DNA e comprovou que era
tudo verdade. Em resumo, Fábio era um produto biológico resultante
do cruzamento de uma vadia com um bandido. Este, morto em
confronto com a polícia; ela, assassinada por um namorado. A
madrasta só contou a história para Francisco quando pressentiu que
estava para morrer. Até então, ela tinha resolvido manter tudo em
segredo, para preservar o casamento e proteger Fábio. Francisco
contou a história, na íntegra, para a amante, Rosa. Assim, Fábio só
tomou conhecimento de sua tenebrosa história através de Rosa,
segundo ele, outra vadia, que estava tentando aplicar em Francisco o
mesmo golpe que Iara já tinha aplicado. Fábio confessa que está
profundamente revoltado, decepcionado, exaurido; quer chutar o
balde, porque se sente traído. Por todo mundo. Pela própria mãe
biológica, pela madrasta, pelo pai biológico, por Francisco, pelos
irmãos. Porque é só ele que cuida do pai, ninguém ajuda em nada.
Fabrício só quer fumar maconha; ele não pode contar com a irmã,
porque ela também está doente, é frágil demais, vive pelos cantos
chorando, dominada pela depressão. Enfim, ele vai chutar o balde,
deixar o velho morrer. Vai parar de cuidar dele e deixar correr o barco.
De repente, se for preciso, até dará uma mãozinha para o velho partir.
Ele perdeu todo o respeito e todo o amor por Francisco e por Sara. Não
70
Victorino Aguiar
ama nem confia mais em ninguém. Acha um desperdício cuidar em
tempo integral de Francisco. A parte melhor da vida dele está sendo
jogada fora. Por fim, Fábio comunica ao irmão que vai aplicar a
eutanásia. Para ele, é a melhor solução; aliás, para todos. A mensagem
é mais que uma comunicação. Ele desabafa, se queixa, se confessa.
Melhor era que ele buscasse os serviços de um terapeuta. Talvez
evitasse, dessa maneira, os dissabores que o futuro já lhe reserva.
Fernando demora a responder ao irmão, e paga na mesma moeda. A
resposta dele à longa mensagem de texto de Fábio é também uma
longa e detalhada mensagem de texto:
- Olha, aqui em Portugal, a eutanásia é consentida em algumas
situações, com a permissão das autoridades. Existem leis que a
regulam. É preciso comunicá-la ao governo, há um rito a ser seguido.
Aí, no Brasil, ela é proibida, é considerada crime, punível com penas
muito pesadas. Eu já moro aqui há muito tempo; no meu
entendimento, e no entendimento da maioria das pessoas que vivem
aqui, não a vejo como uma coisa ruim. Este é um procedimento que
está se alastrando por todos os países da Europa, encarado como
benéfico para a pessoa que está em estágio terminal, há muito tempo
em coma, sem chance de sair dele ou, ainda, sem nenhuma condição
de interagir. A sociedade também considera a eutanásia benéfica para
os familiares que cuidam de pessoas nessas condições, porque eles
investem muito tempo e recursos financeiros nos cuidados com os
pacientes. A eutanásia, nestes casos, representa uma economia de
recursos gastos inutilmente para adiar o inevitável. O governo também
deixa de gastar com esses pacientes. O dinheiro que seria gasto com
profissionais, medicamentos, equipamentos e instalações é direcionado
à pesquisa e à prevenção das patologias que geram estas situações. Os
custos são muito altos. Além disso, se você pensar direitinho, em alguns
casos, a eutanásia também é um ato de compaixão, porque não é raro
que o paciente esteja suportando dores atrozes, consciente de tudo
que se passa à volta dele e não consiga se manifestar. A eutanásia
liberta o paciente desse martírio. Ela não é apenas uma atitude racional
baseada em fatores econômicos; ela é também uma questão de
compaixão, de humanidade. Muitos cidadãos se preparam para uma
71
Victorino Aguiar
eventualidade dessa, e já declaram, de antemão, que autorizam a
eutanásia, se e quando ela for julgada necessária. Antes mesmo que
venham a se encontrar nestas condições, já verbalizam e oficializam
que a vontade deles é que os deixem morrer em paz. Então, quando há
uma declaração expressa da pessoa nesse sentido, a eutanásia é
permitida pelo Estado. Como você vê, não é simplesmente uma
questão de matar, desligar os aparelhos, não medicar, deixar morrer;
há muitas questões envolvidas. Com relação a papai, prefiro não
interferir. Minha opinião é que você deve respeitar as leis daí. Eu sei
que você está numa situação delicada, carregando tudo sozinho. Eu sei
que Fabrício ainda está muito imaturo, e talvez não amadureça nunca;
sei que Francisca tem os problemas de saúde dela, que é uma menina
frágil, que ela era muito paparicada e muito mimada pelo papai e pela
mamãe, e talvez esteja sentindo mais a falta deles do que nós, mas
nada posso fazer quanto a isto. Imagino a dor que você deve estar
sentindo, por saber agora, tão tardiamente, a verdade sobre suas
origens. Quanto a isto, o que me ocorre dizer é que você deve acalmar
seu coração. Refugie-se na certeza de que papai e mamãe fizeram o
que achavam que seria o melhor pra você. Eles o amavam muito, acho
que até o amavam mais do que a mim, a Fabrício e a Francisca. Quando
vim para cá, a situação era outra. A família estava bem. Papai e mamãe
estavam vivos, saudáveis. Agora, já estou aqui há mais de doze anos,
tenho uma família, mulher, filho, estou bem colocado
profissionalmente. Não pretendo voltar, nem posso viajar ao Brasil com
regularidade. Minhas atividades me consomem, exigem que eu esteja
presente praticamente o tempo todo. Então, quanto a isso, não vou
interferir. Se fosse aqui, seria outra coisa. Se tudo for feito visando
apenas o bem-estar de todos, sem raiva, sem sentimento de vingança,
sem utilitarismo, acho até louvável; mas se a intenção for meramente
utilitária, com o único intuito de se livrar de um estorvo, acho
condenável. Não quero participar de nada. O que for feito, será feito
sem minha autorização, não participo, não quero participar de nada. A
decisão será sua. Nem quero tomar conhecimento de nada. Mas você
deve estar ciente de que, se optar pela eutanásia e for descoberto, terá
que responder na Justiça por isto. Eu não posso estar aí para cuidar de
72
Victorino Aguiar
papai, não posso ir aí com frequência, já expliquei; então, eu abro mão
da minha parte, abdico da minha condição de herdeiro necessário, não
quero um centavo do espólio. Se precisar, eu faço um documento com
fé pública declarando isso e remeto para aí. Não quero ser herdeiro de
nada, não sou obrigado a herdar nada. Então, é você que cuida do
papai, se quiser, pode até aplicar a eutanásia, mas não será com meu
consentimento, não será com a minha autorização. Lamento por você
estar aí nessa situação, mas quando eu vim para cá, a família estava
bem, estava tudo em ordem. Nunca imaginei que a família fosse chegar
a essa condição que chegou. Vim em busca de um sonho, e o realizei.
Eu não posso desfazer a minha vida aqui, a família que eu construí aqui.
Estou adaptado, tenho mulher e filho. Tenho quase certeza de que
papai vai falecer em pouco tempo, que não vai retornar do coma. Eu
adoro papai, quero muito que ele saia dessa, mas não tenho fé de que
ele volte. Vou seguir meu caminho. Tocar minha vida por aqui. Desejo
que você fique em paz, e que tome a melhor decisão. Não deixe papai
morrer, não mate ele não, procure outro curador para ele, siga a lei daí.
Contrate mais cuidadores, arranje outro curador. Se aplicar a eutanásia,
você pode vir a ser punido. Meu irmão, é isso que eu tenho a dizer.
Fique com Deus.

Em linhas gerais, o que Fernando fez foi lavar as mãos. Pelo


menos, esta será a leitura que Fábio fará. Se foi assim, Fernando tem as
mãos bem lavadas, afinal, teve à disposição dele todo o Oceano
Atlântico. Tomara que Fábio não venha a ser incriminado. Olha que o
parricídio é um crime inominável. Ele conta com Regina, que adere de
corpo e alma aos planos dele de apressar a morte do pai.

Já é hora de nos dedicarmos aos descendentes. Afinal, estamos


falando de inventário.

73
Victorino Aguiar

Capítulo IV

Descendentes

Fábio
De Fábio, já sabemos bastante coisa. Ele é o primeiro filho, o
primogênito, pelo menos do ponto de vista jurídico. O resto, são outros
quinhentos. Mora com o pai e, como ele, também não é muito dado a
baladas nem a paqueras. Envolve-se quase sempre com atividades
solitárias. Sabe que a mãe o deixou com o pai e a madrasta, quando ele
era ainda neném. Na última vez que se viram, ele tinha quatro ou cinco
anos. Lembra vagamente que ela e a madrasta tiveram uma discussão,
porque, de longe, podia ouvir as falas alteradas de ambas. Depois, a
mãe se despediu dele, deu-lhe um beijo e saiu. Ele sabe com certeza
que ela já morreu. Isto lhe foi contado pela madrasta e confirmado
mais tarde por ele próprio. Quando Fábio passou a entender melhor as
coisas, percebeu que a situação dele não era comum. Também se
percebia como alguém diferente dos demais. Às vezes, se sentia triste,
muito solitário. Nestas ocasiões, fazia perguntas à madrasta sobre a
infância dele, sobre a mãe.

O que a madrasta lhe contava era que a mãe dele era ainda
uma criança, muito imatura, quando conheceu o pai dele. Muito
apaixonados, num impulso, casaram-se muito rapidamente, fosse por
74
Victorino Aguiar
conta da paixão, fosse por conta da gravidez inesperada e precoce da
mãe. Francisco tinha 30 anos; Iara, 15. Isto é, Francisco tinha o dobro
da idade de Iara, que, portanto, era menor de idade. Garantia-lhe que a
mãe o amava, que tudo que fizera fora pensando no bem-estar dele.

Pai, a gente pode não ter; pode ter um, pode ter dois, pode até
não ter nenhum pai. Mas com relação a mãe, isto não é possível, todo
mundo tem uma mãe, e mãe, a gente só pode ter uma. Fábio tinha uma
mãe, estava na certidão; tinha uma madrasta, que, por sinal, era
melhor que a mãe biológica. Mas, no fundo, ele se sentia como se não
tivesse sido gerado, faltava-lhe religar-se à origem dele. Era um
sentimento paralisante, do qual ele não conseguia se libertar. A
madrasta era uma segunda mãe e confidente, única pessoa com quem
ele podia manter um elo com a mãe biológica. Para a madrasta, ele não
tinha segredos. Com ela, compartilhava a tristeza que sentia às vezes,
quando se lembrava vagamente da figura da mãe, da imagem que ele
guardava dela, da última vez que ela o visitara. Falava da discussão
entre elas, que ele julgava ter notado, de longe, enquanto brincava com
irmãos e coleguinhas. Ela sorria, e explicava que a mãe falava alto, às
vezes. Não negava que se desentendiam uma vez ou outra, mas que
não era nada importante, sempre voltavam às boas. Fábio queria saber
por que a mãe nunca mais voltara a visitá-lo depois daquele dia; por
que a mãe o abandonara. Ele se sentia abandonado.
- Meu filho, já lhe disse, sua mãe não o abandonou, ela fez o melhor
que podia, ela sofreu muito quando abriu mão de criar você, ela era
muito jovem, só tinha 16 anos quando você nasceu, era uma criança;
ela vinha te visitar sempre, ela não tem culpa de ter sido vítima de
abandono, não teve uma família regular, foi criada sem pai, a mãe não
podia dar assistência a ela; por isso tinha medo de que o mesmo viesse
a acontecer com ela e isto prejudicasse você. Ela também não teve
culpa de ter sido vítima da violência masculina, sua mãe foi assassinada,
meu querido; ela não podia dar aquilo que ela não recebeu; foi por isso
que ela não veio mais te visitar, porque foi assassinada.

75
Victorino Aguiar
Lágrimas, muitas lágrimas, eram a resposta de Fábio às palavras
da madrasta. Apesar dos 16 anos, Fábio se sentia, ainda, como uma
criança. A madrasta punha a cabeça dele no colo e o acariciava
ternamente.
Isto era o que a madrasta contava a ele. Se ela tivesse contado
a ele a verdade, outra coisa lhe contaria. E qual era a verdade? Já sabe
o leitor que Iara tinha má índole. Ela colocou nas mãos de um homem
integro, correto, cujo único erro era estar perdidamente apaixonado e
enfeitiçado pela beleza e pela juventude dela, uma barriga que não
pertencia a ele; uma barriga que era fruto de um relacionamento com
outro homem, de um homem de má conduta.
Quando ficou maiorzinho, por volta dos dezenove anos, Fábio
voltou a ser assediado e, movido pelo instinto natural de todo ser
humano, decidiu ir em busca de suas origens. Queria saber mais sobre a
mãe. Por mais que levasse em consideração tudo que a madrasta lhe
contava sobre a mãe dele, queria saber por ele mesmo a história da
mãe. Não foi muito difícil descobrir que ela era uma mulher impetuosa,
de personalidade forte, que se envolvia com pessoas de conduta pouco
recomendável. Acabou sendo assassinada por um namorado. Pelos
cálculos dele, ela deve ter morrido um pouco depois daquela última
visita que fizera a ele. Isto batia com o que a madrasta lhe contava.
Por ter pouco traquejo social e se dedicar mais a atividades
introspectivas, ele tem poucos amigos, mesmo assim quase não entra
em contato com eles. Talvez por isto mesmo não tenha se casado.
Quando o pai adoece gravemente, para que o pai tenha acesso em
tempo integral aos cuidados intensivos e permanentes de que carece,
Fábio passa a contar com os serviços das três técnicas de enfermagem.
Ele se encarrega de administrar as três cuidadoras. Horário, honorários,
solução de conflitos, admissão, dispensa etc. É ele quem diz a última
palavra sobre tudo. Ele desempenha com muito zelo suas funções de
curador. Às vezes, até em demasia.
É na condição de curador que ele toma conhecimento, da
maneira mais inesperada e traumática possível, que a história dele era
uma farsa. Pior do que ele já sabia. É pouco antes de o pai morrer que
ele vem a saber a verdadeira história dele. Coisas que abalam para
76
Victorino Aguiar
sempre e profundamente o amor e o respeito pelos pais. Ele descobre
que tivera na verdade quatro pais, para, no final, acreditar que os
quatro não valeriam por um. Era órfão de quatro pais.
O mundo vem abaixo, quando ele descobre que não era filho
biológico de Francisco. Ele desenvolve um ódio incontrolável contra os
pais. Uma revolta maior que o tamanho da dor que ele já carregava por
conta de não ter convivido com a mãe biológica dele, sabidamente de
baixa estatura moral. Era na mãe postiça que ele encontrava conforto e
carinho, principalmente nas horas mais difíceis. Francisco o tratava
como filho número um, mesmo depois que veio a saber que Fábio não
era filho biológico dele. Com o nascimento de Francisca, no entanto,
Fábio perdeu um pouco de espaço com Francisco que, naturalmente,
passou a se dedicar mais à princesinha dele, ainda mais que esta tinha
uma natureza muito sensível, e a saúde frágil. Na condição de curador,
Fábio encontrará nas técnicas de enfermagem que contratará para
cuidar do pai elementos que mudarão radical e definitivamente o curso
da vida dele.

Fernando
Fernando herdou o espírito aventureiro do avô. Ainda pequeno,
vivia falando em sair pelo mundo. Sonhava especialmente com a terra
do avô – Portugal. Assim que atingiu a maioridade, valeu-se da
condição de neto de português e adquiriu a nacionalidade portuguesa.
Tanto acalentou os sonhos da infância, que deu asas aos sonhos dele:
acabou indo fazer um curso de extensão em Portugal. E por lá foi
ficando. Casou, arranjou um excelente emprego e criou raízes por lá.
Sentia-se mais europeu do que sul-americano, mais português do que
brasileiro. Não tinha mais nenhuma ligação forte com o Brasil, na
verdade, até o rejeitava um pouco. A rigor, só vinha ao Brasil, por conta
de obrigações familiares, em situações especiais. Durante a doença do
pai, no máximo, duas vezes por ano. Quando a mãe adoeceu e ficou
acamada, ele já estava em Portugal, fazendo o curso de extensão.
Durante a doença, só veio visitá-la uma única vez. Não veio para o
velório e o enterro dela porque foi tudo muito rápido; ele chegaria no

77
Victorino Aguiar
dia seguinte, não teria nem tempo de lançar um último olhar para o
rosto da mãe.

Em Portugal, ele vive uma vida glamurosa, cercado de pessoas


de elevado poder econômico e político, consequência do cargo de alto
escalão que ele exerce na burocracia da União Europeia. Nas poucas
vezes em que esteve reunido com os irmãos para discutir como fariam
quando se desse o desenlace da situação do pai, Fernando
demonstrava pouco interesse e pouco falava. Para resumir a posição e
as expectativas dele, eram pouco significativas. Na prática, ele delegava
a Fábio todas as prerrogativas; o que ele decidisse estava decidido,
porque era Fábio que estava à frente de tudo, e era o único que
realmente se desincumbia de todas as tarefas que se faziam
necessárias. A participação dele na construção do patrimônio paterno
fora mínima, para não dizer nula. Toda a energia dele era concentrada
nos estudos e em ir viver na Europa. Mais de uma vez ele deixou claro
que não tinha muito interesse na partilha.
Fabrício
Fabrício desde pequeno demonstrava ter pouca ambição. A
vontade dos pais era que ele cursasse uma universidade e se formasse
num curso que desse a ele um bom status e um bom salário. Ele
consegue ingressar numa faculdade particular, à custa de muito
sacrifício, e, em parte, realizar o sonho dos pais. Fabrício é universitário
há bastante tempo. Mais tempo do que o necessário para concluir o
curso de Educação Física. Ele conseguiu ingressar no curso pouco
depois que o pai ficou acamado, quase sete anos atrás. Mora numa
república perto da faculdade, onde leva uma vida irresponsável, às
custas do dinheiro do pai, agora entrevado. Contra todas as
expectativas dos pais, que queriam vê-lo se formar numa profissão de
melhor retorno financeiro e de maior reconhecimento social, escolheu
o curso de Educação Física, não apenas por este ser mais consentâneo
com sua inclinação acentuada por atividades motoras, mas também por
ser um curso pouco concorrido e de fácil acesso. Cansado de tentar
realizar o sonho dos pais por três vezes, e por três vezes ser reprovado
nos exames de ingresso à universidade, Fabrício finalmente se sentiu
78
Victorino Aguiar
desobrigado de contrariar a própria natureza, depois que viu a mãe
morta e o pai entrevado e sem condições de interagir. Ele não ouviria a
ladainha de sempre, que devia se esforçar, se empenhar mais, estudar
mais. Estudar era tudo que ele não queria; imaginava que um curso de
Educação Física se restringisse basicamente a praticar esportes, que
exigisse pouco ou nenhum tempo de dedicação aos estudos, na
acepção mais comum do termo. Foi bom para todos que ele tivesse
sido aprovado nos exames depois que a mãe morreu e o pai ficou
acamado, porque isto poupou uma grande decepção aos pais. Se estes
pudessem tomar conhecimento da aprovação dele nos exames,
certamente não estariam satisfeitos com a escolha de Fabrício. Muito
menos com o desempenho dele na faculdade. Ele não era ambicioso.
Não tinha nem ambição suficiente para terminar o curso,
reconhecidamente mais fácil de ser concluído e bastante condizente
com os dotes intelectuais e físicos dele. Ele leva o curso na flauta, sem
dedicar a ele um mínimo de carinho e empenho. O carinho e empenho
negados por ele ao curso, ele desvia e aplica em outros ambientes e
outras atividades. Pelo menos estas atividades guardam alguma relação
com a Educação Física. Ele é apaixonado por esportes praieiros. Todos
os esportes praticados na praia ou na água contam com o carinho e a
dedicação de Fabrício. Futevôlei, vôlei de praia, futebol de praia,
natação, surfe, tantos quantos existirem ou forem inventados,
certamente contarão com a simpatia e a adesão dele. Pelo menos as
atividades preferidas por ele são compatíveis com o curso que ele tenta
concluir. Fora dos esportes, sua vida social se resume a luaus,
acampamentos e outras baladas do gênero. Fabrício gosta muito de ir
a Saquarema, a capital internacional do surfe, esporte que ele ama
acima de todos. Quando está em Saquarema, normalmente ele usa os
espaços e instalações do camping club. Vez ou outra, divide uma suíte
com dois ou três jovens. Dona de uma natureza exuberante, a cidade é
um paraíso para ele. Nela, ele encontra quase tudo de que gosta -
cachoeira, mar, muita areia, muita gente bonita e, é claro, as melhores
ondas do mundo para praticar o surfe, o esporte queridinho dele. Além
disso, pelo fato de Saquarema ter ainda muitas praias primitivas, ele
pode desfrutar com mais tranquilidade dos prazeres que ele acredita
79
Victorino Aguiar
encontrar na canabis sativa, mais conhecida pelos leigos como
maconha. Algumas vezes, ele faz uso dela em ambientes pouco
indicados. Ele já foi pego fumando a verdinha em espaços públicos ou
portando uma quantidade acima do razoável para um mero usuário.
Nestas ocasiões, era Fábio quem vinha socorrê-lo, isto é, pagar para ele
ser solto.

Apesar de ser muito namorador, não se prende a nenhum


relacionamento, que normalmente não resiste a mais de alguns
encontros. A rigor, ele nem chega a namorar, ele fica, para usar o
dialeto da geração dele. Ele não chega a ser um problema para a
família, ainda mais agora que a mãe está morta e o pai está
incapacitado. Na condição de curador, Fábio reserva para o irmão uma
significativa mesada, suficiente para o pagamento das mensalidades,
das despesas na república e no dia a dia.

Francisca – a princesinha
Francisca nasceu em condições adversas. A mãe já beirava os
40 anos quando ela veio ao mundo. Apesar de não ser uma idade
recomendável nem favorável à gravidez, as dificuldades do parto nem
decorreram tanto da idade, mas das condições de saúde de Sara, na
época em que engravidou. As dores de cabeça que a perseguiam desde
a juventude se agravaram com a gravidez. Os enjoos eram frequentes e
desconfortáveis. A pressão arterial era praticamente incontrolável.
Volta e meia ela era acometida por vertigens e curtos desmaios. Ela já
tinha uma intuição de que não seria fácil, mas estava decidida a passar
pelas dificuldades que ela antecipara. Falando com franqueza, se fosse
apenas pela vontade de Sara, ela teria fechado a fábrica no segundo
filho, Fabrício. Aquela gravidez era mais para satisfazer a vontade de
Francisco, que vivia sonhando com uma filha. Sara tinha em mente
estreitar mais os laços com o marido, realizar o sonho dele, de ser pai
de uma princesinha, fortalecer o casamento mais ainda, antes que o
marido viesse a saber que não era de fato o pai biológico de Fábio. Mais
cedo ou mais tarde, ela teria de contar a ele. Isto certamente seria um
choque tremendo para Francisco. Melhor era esperar ele estar bastante
80
Victorino Aguiar
envolvido com a menina para dar a ele a má notícia. De certa forma,
Francisco poderia compensar a má notícia com a presença da filha, isto
é, se a criança viesse, e se fosse mesmo uma menina. Como resultado
da má condição física de Sara, a gravidez se revelou problemática,
muito dolorosa para ela. Mais de uma vez ela teve de ser levada ao
hospital para receber maiores cuidados. Felizmente, a criança veio, e
era uma menina. Na verdade, ela não veio, foi trazida.
O resultado é que Francisca nasceu um mês antes do normal,
numa cesariana de alto risco. O peso e a altura dela estavam abaixo do
que era recomendável. Francisca permaneceu mais de 30 dias na
incubadora. Apesar de ter nascido prematuramente, durante os
primeiros anos da infância, Francisca não apresentou grandes
problemas de saúde. No geral, era uma menina alegre, simpática. Ela
atravessou a infância com relativa tranquilidade. Naturalmente, por ser
a caçula e menina, era o alvo preferencial dos carinhos e da atenção
dos pais. Principalmente de Francisco. Não tardou para despertar os
ciúmes dos irmãos. Eles não chegavam a ser agressivos com ela; o
ciúme e a inveja deles se manifestavam mais através da ironia e do
deboche.
Quando entrar na adolescência, Francisca se revelará na
plenitude: uma menina sensível, mimada, frágil. Passará por provações
de graves proporções. Verá a mãe adoecer, ficar inválida. Perderá a
atenção e os carinhos a que ela estava acostumada, tanto da parte da
mãe, quanto da parte do pai, que terá de se dedicar mais à esposa do
que à filha, sua princesinha. Depois que a mãe vier a falecer, ela
chegará à parte mais pesada da provação dela.
Agora, ela vê o pai também ser posto fora de combate. Coitada!
Ela perdeu a mãe e está em vias de perder o pai, que está entrevado e
incapacitado de interagir com ela, há mais de seis anos, a um passo da
morte. Ela perde os carinhos e os mimos que recebia deles, não tem
nenhum carinho por parte dos irmãos, que sempre sentiram ciúme e
inveja da condição dela de preferida do pai. Neste contexto, passar pela
experiência que ela acabou de passar pode se tornar fatal. Uma coisa
era saber da existência de Rosa e do menino, desconfiar da relação
deles com o pai. Até aí, ela apenas suspeitava que não havia só uma
81
Victorino Aguiar
amizade entre eles. Outra coisa era saber que Fábio não era seu irmão
biológico, que os verdadeiros pais dele eram criminosos, mortos em
condições vergonhosas. Era doloroso saber que a mãe de Fábio,
primeira mulher de Francisco, aplicou um golpe no pai dela, fazendo-o
crer que ele era pai biológico dele. O pior de tudo era o pai e a mãe
terem escondido estes fatos o tempo todo dela e de Fábio. O que dizer
da mãe, que liberou o pai para ter uma amante, que teve
conhecimento da existência de Rosa, quando esta e Francisco iniciaram
a traição? Era um golpe mortal na imagem que Francisca fazia dos pais
e do irmão mais velho. Como conviver com a ideia de que tinha um
irmão havido fora do casamento? Tudo isto era demais para uma
criatura frágil e sensível como ela, que acusa o golpe e começa a sentir
os reflexos da nova configuração familiar. Logo as sequelas se
manifestam no psicológico e no emocional, como efeitos da mudança
brusca da rotina familiar. Em família, ninguém adoece sozinho. Ela era a
princesinha, o bibelô do pai. Ainda que os irmãos a invejassem e
fizessem chacota dos excessos afetivos que ela recebia dos pais, antes
de a mãe adoecer e morrer, e o pai ficar acamado, ela contava com os
eles para amenizarem e relativizarem as implicâncias e pequenas
maldades cometidas pelos irmãos. Até ali, de Fábio, a pobrezinha ainda
recebia um pouco de atenção e de cuidados. Agora, nem isso. Também
Fábio, sofria as consequências da tragédia que se abatera sobre a
família. Depois de ele ter aquela discussão com Rosa, nunca mais fora
o mesmo; o comportamento dele em relação a ela mudara da água
para o vinho. Aquela discussão derrubara a última barreira que a
protegia da desintegração psíquica. Agora, ela só podia contar com ela
própria. A família, desde muito tempo reduzida a ela e a Fábio, agora se
resumia simplesmente a ela. Francisca era a última pessoa da família
naquela casa. Ela ficara órfã de pais e irmãos.
Fábio só tinha tempo e cuidados para Regina. Fabrício morava
numa república desde que o pai ficara acamado, muito raramente
aparecia em casa, e pouco se demorava. A rigor, a verdadeira razão
dessas visitas era pedir dinheiro ao irmão. Fernando, bem antes de a
mãe adoecer, já estava instalado definitivamente em Portugal, nem
parecia fazer mais parte da família. A família, depois das revelações
82
Victorino Aguiar
ouvidas da boca de Rosa, perdera todo sentido para Francisca. Até o
respeito e o amor que ela devotava ao pai e à memória da mãe caíram
por terra. Tudo que ela ouvira constituía um erro imperdoável
irreparável da parte dos pais. Vera era a única pessoa com quem
Francisca podia conversar e desabafar abertamente, que representava
para ela uma confidente e um ombro amigo, que ainda a protegia
contra o sentimento de abandono e insegurança. Mas Regina fazia tudo
para que o contato de Vera com a menina fosse o mínimo possível.
Bastava vê-las conversando, que inventava logo uma tarefa para Vera.
Assim, Francisca estava condenada a conviver o resto da vida com a
depressão e a fazer uso de medicamentos controlados. Sua única
companhia seriam os remédios. Era o preço que ela pagava, por ter
ouvido involuntariamente a longa discussão travada entre Fábio e Rosa.
É por isto que o estado emocional da menina se agrava, e a depressão
atinge o estágio que a leva à morte.

Amanda é quem está de plantão quando Francisca morre. Já


passa de uma hora da tarde e ela ainda não saiu da cama. Amanda
estranha que Francisca ainda não tenha se levantado. Ela nunca fica na
cama até essa hora. Nem para almoçar ela se levantou. Francisca
costuma almoçar antes das duas, e já são quase três horas. Há algo de
estranho com a menina. Amanda vai até o quarto e a chama repetidas
vezes. Francisca não dá sinais de que a está ouvindo. Nem mexer com a
cabeça ela mexe. Amanda vai até a cama e sacode a menina, que
continua sem responder. Amanda toma as primeiras providências.
Batimentos cardíacos, pressão arterial etc. Amanda leva um choque. A
situação da menina é grave, mas ela ainda está viva. Ela liga para Fábio
aos prantos para dar a notícia. Este está pelas redondezas e chega logo
depois com Regina. Em seguida, chega Dr. Arnaldo, o médico de
Francisco. O laudo médico atestará que ela ingeriu uma dose excessiva
de um coquetel de medicamentos que não podiam ser tomados
simultaneamente. A hipótese de suicídio não foi descartada, mas nada
podia ser conclusivo. A princesinha partiu precocemente para outro
reino. Descansa em paz, Francisca.

83
Victorino Aguiar
Júnior
Quando Júnior nasceu, o pai já se encontrava em estado
vegetativo. O pai não pôde vê-lo, não pôde pegá-lo no colo. Nem pôde
dizer palavras carinhosas ao pé do ouvido do bebê. Estava
definitivamente condenado à surdez, à cegueira e à mudez. Era uma
condenação de mão-dupla. Júnior também estava condenado a nunca
ouvir a voz do pai, a nunca sentir o toque dele. Até os quatro anos, o
menino não verá o rosto do pai. Só quando completar os quatro anos, a
mãe o levará para conhecê-lo. Será o presente de aniversário dele.
Mesmo assim, nessa visita, Júnior se restringirá a ver o rosto do pai por
uns poucos minutos, e a dizer algumas palavras em voz baixa no ouvido
dele, no colo da mãe.
Por mais que a mãe tente explicar a ele porque deverá ficar
quieto e em silêncio quando estiver no quarto do pai, isto não entra na
cabeça dele, não condiz com o que ele vê no dia a dia dele. Ele sempre
vê os colegas conversarem animadamente com os pais. Também é
difícil para ele compreender porque devia ficar calado e não responder
nada a ninguém no velório. Para sempre, ficará marcada no menino a
imagem da mãe chorando, diante do namorado semimorto, na última
visita que os dois fizeram a Francisco. Outras imagens também
marcarão a vida dele, como a da discussão da mãe com Fábio, quando
ele foi duramente ofendido, ainda que não compreendesse bem as
palavras de Fábio. Infelizmente, as cenas que ele presenciou diante do
pai, tanto na visita quanto no velório, o marcarão negativamente para o
resto da vida. No velório, onde presenciou a mãe ser expulsa do salão,
sob os olhares pouco amigáveis dos presentes, os sentimentos dele
eram uma mescla de medo, curiosidade e raiva. Afinal, a mãe dele
estava sendo ameaçada. Ele não tem noção do problema que
representa para os irmãos, nem da dimensão deste problema. O que
ele sabe é que a mãe e ele não eram bem-vindos naquele lugar.
Se ele pudesse contar com a presença do pai, com certeza teria
nele uma fonte a mais de carinho, a garantia de uma formação bem
mais sólida. O que fazer? A vida é assim, mesmo. Pior se estivesse na
condição de Fábio. Pelo menos, ele tinha um pai e uma mãe de boa
índole. Tinha também o nome do pai. Já era muito. Além disso, herdaria
84
Victorino Aguiar
uma parte do espólio. Como toda e qualquer criança, Júnior se
ressentia da presença física de um pai. As poucas vezes que pôde ver
Francisco não foram suficientes para ele fixar na mente a imagem do
pai. Para que ele não perdesse de vez a recordações de Francisco, vez
ou outra Rosa mostrava a ele as fotos do pai. Ele sempre disparava
perguntas desconcertantes na direção da mãe a respeito do pai. Na
verdade, nem eram perguntas propriamente, eram cobranças. Ele
queria um pai vivo, de verdade. E também sonhava com um
irmãozinho. O único amigo com quem Júnior contava era Lucas, o filho
de Amanda, também filho único, criado sem a presença do pai. Lucas
também se ressentia da presença paterna e da companhia de um
irmão. Para Júnior, Lucas fazia as vezes do irmão que ele não tinha; e
ele era, para Lucas, o irmão que o amiguinho também não tinha.

Capítulo V

O chefe tem sempre razão

Rosa ficará sabendo da morte de Francisca através de Amanda:


- Faz dois dias que ela morreu. Era eu que estava de plantão. Foi o
maior fuzuê aqui. Um estresse muito grande. Eu estranhei ela estar
demorando tanto para sair da cama. Fui até o quarto e constatei que os
sinais vitais dela estavam muito fracos e totalmente fora do padrão.
Depois de tomar as primeiras providências, liguei para o Fábio, que
85
Victorino Aguiar
estava aqui por perto e veio correndo. Chamaram o Dr. Arnaldo, às
pressas. Quando ele chegou, parece que a menina ainda estava viva.
Pelo menos, foi o que ouvi Fábio falando para Regina.
- Coitadinha. Morreu antes do pai. Muita dor que ela devia estar
sentindo. Então a levaram para o hospital...
- Nada. Saiu daqui direto para a capela. O Dr. Arnaldo deu o atestado
de óbito.
- Mas de que, ela morreu?
- No atestado diz que foi parada cardiorrespiratória. Ela nasceu com
uma porção de problemas; ficou mais de um mês na incubadora. Dona
Sara já estava com mais de quarenta anos, quando ela nasceu. O que
eu acho, porém, é que ela morreu de tristeza. Mas não descarto nada.
- Francisco era apaixonado por ela. Só vivia falando nela. Fico pensando
no sofrimento que ele terá quando sair do estado vegetativo. Vão ter
de esconder isto dele por um bom tempo.
- Agora, você vê, seu Francisco neste estado há mais de 6 anos, e ela
que morre. A vida é um enigma. Achei estranho porque ela vomitou
muito antes de morrer. Parecia que tinham dado a ela algum remédio
para vomitar. Desconheço parada cardiorrespiratória provocar vômito.
Ainda nem conversei direito com a Vera. Foi tudo tão rápido. Talvez ela
saiba mais do que eu. Ela conversava muito com a Francisca, que
confiava bastante nela. Quando eu tiver mais notícias, te falo.
- Sim, quero saber. Obrigada por me informar. Acho melhor então eu
adiar a visita que eu ia fazer, até que passe um tempo e baixe a poeira.
Não é uma boa hora para fazer visitas.
- Nem pense em vir aqui. Fábio vai surtar se souber que você veio.
- Às vezes, eu passo aí, na frente da casa. Quanta saudade do meu
amor.
- O tempo conserta tudo, você tem o Júnior. Tem de preservá-lo. Tenho
de sair da conversa. Beijo, amiga.

Já se passaram uns dois meses que Francisca se foi. Para Fábio,


as coisas já voltaram ao normal, isto é, suas preocupações retornaram
aos problemas de carne e osso que ele tem diante dele. O luto,
mesmo, ele tirou de letra. Logo ele retorna ao foco de sua
86
Victorino Aguiar
preocupação. Não adianta, Rosa não sai da cabeça dele. Ele está
mesmo preocupado com ela. Acredita que Rosa tem mesmo os
documentos que disse ter, e que ela partirá para a disputa na Justiça.
Se ela tiver mesmo as certidões e tiver disposição, conseguirá com
facilidade obter uma autorização judicial para fazer a visita e levar o
menino:
- Continuo preocupado com Rosa. Algo me diz que ela voltará com o
menino e tentará visitar meu pai. Ela pode ir além. Antes mesmo de
papai morrer, ela pode entrar com um pedido de investigação de
paternidade. Se ela tiver a certidão, e a certidão autorizar a retirada de
parte de material do corpo dele para fazer o teste de DNA, a Justiça
pode me obrigar a permitir a coleta do material, e, se a Justiça
autorizar, eu não tenho como impedir que isto seja feito. Pior, que nem
precisa fazer o exame para ter certeza de que ele é filho de papai. O
bastardo é a cara do papai quando ele era pequeno. Parece até um
clone.
- Não se preocupe com isto. Quem sabe se ela não está blefando?
Talvez nem tenha documento nenhum, se tivesse, já tinha corrido atrás
da pensão do menino. O menino já tem uns sete anos, e ela nem tentou
conseguir uma pensão alimentícia para ele. Se ela tivesse mesmo esses
documentos, já teria corrido atrás. Ela quer mesmo é os 50% dela; a
parte do menino é pouco para ela. Pra mim, ela só vai se mexer depois
que seu pai estiver morto. Até lá, não adianta a gente se preocupar.
Nós não vamos avisar a ela quando ele morrer. Ela que descubra.
Quando ela vier a saber que seu pai está morto, ele já estará enterrado,
vocês já terminaram o inventário e a partilha já foi feita. Só depois que
ela souber, que vai poder correr atrás da parte do menino.
- A parte do bastardo é quase certo que ela conseguirá.
- Tudo que ela falou pode ser blefe. Mas se você quiser, é muito fácil
afastar ela daqui para sempre. Você pode dar um susto nela. Basta
fazer uma ou duas ligações para ela e falar grosso. Esse pessoal, no
fundo, na hora do vamos ver, fica com medo. Vamos dar um susto nela.
- Como vou achar o número dela?
- Esta é a parte mais fácil. Cadê o celular do seu pai? Ela está nos
contatos dele, com certeza. O celular dele tem tudo, aliás, ele pode até
87
Victorino Aguiar
ter apagado muita coisa, mas o número dela acho difícil ele ter
apagado. E se você não conseguir o número dela, eu posso dar meu
jeito. Vera sabe muita coisa da vida dela. Ela sabe da vida de todo
mundo. Posso jogar uns verdes.
- A ideia é boa.
- Basta você fazer uma ou duas ligações. Mesmo se ela vier a perturbar
depois que ele morrer, até lá, nós teremos muitos meios de colocar ela
pra escanteio.
- Você pensa em tudo.
- Te amo, amor. Estamos juntos! Para sempre!

Fábio parecia um brinquedo nas mãos de Regina. Ela conseguia


praticamente tudo que queria dele. Ele encontra o número de Rosa no
celular de Francisco e se apressa a fazer a ligação. Diz a ela meia dúzia
de desaforos e a aconselha a desistir de conseguir alguma coisa da
família.
- Eu sei onde você mora. Onde trabalha, onde seu filho estuda. Se
cuida, viu? Por enquanto, estou me limitando a falar. Se você não tirar
estas ideias da cabeça, partirei para a ação propriamente dita.
- Você não me assusta. Tenho como me proteger. Sei dos meus direitos.
- Vai esperando proteção da Justiça. Vai morrer seca. Já falei: suma da
minha casa, para de ficar rondando, igual a urubu na carniça. Respeita a
minha família. Não quero nem ver você passar aqui na frente.
- Vai esperando.

Aparentemente, Rosa não está intimidada, manda ele ir para o


inferno e desliga o telefone na cara dele. Mas, intimamente, ela sabe
que está lidando com alguém fora de controle, num grau máximo de
revolta e de dor, capaz de cumprir as ameaças que estava fazendo.
Melhor é não pagar para ver, por enquanto. Rosa bloqueia o telefone
de Fábio. Tomara que isto seja suficiente para ela não receber mais
ameaças dele.

Mas é difícil suportar a saudade de Francisco. Rosa não


consegue tirar da cabeça que tem de visitar o amado. Ela ainda
88
Victorino Aguiar
alimenta uma leve esperança de poder visitá-lo. Não quer deixá-lo
entregue totalmente nas mãos de Fábio e Regina, por isso, vai fazer
mais uma tentativa. Ela já havia cogitado de ir à Justiça requerer os
direitos dela e do filho, mas sabe que Fábio está muito alterado. Se ela
for à Justiça, poderá agravar ainda mais as coisas. O filho tem o direito
de visitar o pai, mas, se ela forçar a barra, isto poderá traumatizá-lo
mais ainda. Já basta o estresse a que ele foi submetido, na última visita
que ela fez.
Mesmo assim, ela resolve ir sozinha e arriscar. Apesar do medo
de arrumar uma encrenca com Fábio, ela decide enfrentar a situação e
parte para a casa de Francisco. Ela nem liga para avisar que está indo,
como sempre faz, vai sem avisar. Fábio não está em casa, quem a
recebe no portão é Amanda, que tem o bom senso de não permitir que
ela entre. Ela tem medo de deixar Rosa entrar e isto vir a ser
descoberto mais tarde por Fábio; ele está no auge da revolta, é capaz
até de bater nela, de demiti-la.
Coitada! Nós já sabemos, mas ela ainda não sabe, e não saberá
tão cedo, que será demitida por Fábio, justamente por causa dessa
visita. Se Amanda contar para Fábio que Rosa tentou entrar para ver
Francisco e ela não consentiu, talvez ela não venha a ser demitida por
ele. Mas ela não contará, e isto será um dado a mais que Regina usará
para convencer Fábio a demitir Amanda.

Amanda não a deixou entrar. Fábio estava na rua e, de longe,


viu o momento em que Rosa chegou e foi atendida por Amanda. Ele
pôde assistir a tudo, desde o momento em que Rosa chegou, a longa
conversa que as duas tiveram, até a hora em que Rosa foi embora.
Aparentemente, Rosa tinha ido até a casa com a intenção de entrar e
visitar Francisco. Mas Amanda saiu para a calçada, fechou o portão e
ficou conversando um bom tempo do lado de fora com Rosa. Depois,
elas se despediram e Rosa partiu, sem nem ao menos ter cruzado o
portão. Se Amanda tivesse deixado Rosa entrar, teria arrumado uma
fabulosa encrenca. Primeiro, para si própria; depois, para Rosa. Ela agiu
com sabedoria, mas isto não será suficiente para impedir que Fábio
venha a demiti-la.
89
Victorino Aguiar
Fábio demorará um pouco para retornar da rua e não
demonstrará que está sabendo da visita de Rosa. Quer saber se
Amanda lhe contará o que ocorreu. Talvez consiga arrancar alguma
coisa dela a respeito da conversa que as duas tiveram. Mas Amanda
nada comenta. Quando Regina toma conhecimento da ida de Rosa à
casa, aproveita para envenenar Fábio mais ainda contra Amanda, e
induzi-lo a despedi-la, ao mesmo tempo que o incita a ameaçar Rosa
novamente, agora, com mais ênfase.

Lenha na fogueira
A implicância de Regina contra Amanda tem causas múltiplas.
Uma delas deriva da morte de Francisca, que provocou algumas
mudanças no andamento da carruagem. No que diz respeito ao destino
de Amanda, essas mudanças não foram nada agradáveis. Não
repercutiu bem em Regina a reação de Amanda à morte da menina.
Algo havia mudado na colega de trabalho depois da morte de Francisca.
Amanda dava a impressão de que achava a morte de Francisca
suspeita. E isto incomodava Regina. Mais coisas vindas de Amanda
incomodavam Regina, a começar pela beleza dela. Com efeito, Amanda
era muito mais bonita do que ela, muito mais do que Regina poderia
suportar. A beleza da colega roubava a tranquilidade de Regina e a
tirava do sério. Ela se sentiria melhor longe da colega. A presença de
Amanda naquela casa constituía uma ameaça para ela, representava
um perigo para a hegemonia que ela pretendia ter naquele território, e
um perigo para os planos do casal. Ela precisava convencer Fábio a
demitir Amanda. Isso não seria difícil para ela. Logo, uma oportunidade
surgiria, e Regina realizaria mas um sonho dela. No fundo, Regina não
via ameaça apenas em Amanda; as duas colegas de trabalho eram uma
ameaça para ela e o futuro dela com Fábio. Bom, era que houvesse
apenas uma mulher naquela casa: ela. Francisca já tinha partido. Menos
uma. Agora, ela tiraria Amanda do caminho. Depois, tiraria Vera. Ela
queria fazer jus ao nome dela, oriundo do latim, e que significa rainha.
Ela queria reinar absoluta. Amanda era bisbilhoteira, vivia xeretando
tudo. Era melhor mandá-la embora. Razões não faltavam. Mas se
precisasse de mais alguma, ela inventaria. Mas ela nem precisará
90
Victorino Aguiar
inventar nada. O destino entregará nas mãos dela a condição para ela
realizar o sonho tão almejado, e ela não se fará de rogada.
- Rosa não desistiu de vir visitar o amante. Tenho certeza de que ela
está armando alguma coisa. Ela anda rondando a casa, tenho certeza.
Ontem mesmo eu a vi aqui no portão conversando com Amanda. Fiquei
de longe, observando.
- Talvez até tenha entrado e visto Francisco.
- Não; eu vi a hora em que ela chegou e a hora em que foi embora.
Tenho certeza de que não entrou. Fiquei de longe vigiando o tempo
todo.
- Esta vadia não pode mais pisar nesta casa. E Amanda, te contou o que
Rosa queria, o que elas conversaram? O que ela disse?
- Até agora, não. Estou esperando, pra ver se ela vai me contar.
- Nem vai te contar. Dou minha cara a tapa. Amanda não é confiável.
Esta infeliz é traiçoeira, pode acreditar. Se ela fosse de confiança, teria
contado para você ontem mesmo, no mesmo dia, o que a vadia
conversou com ela. Ela não deixou a outra entrar com medo de que
você a demitisse. Pode crer. Não é porque ela não deixou a vadia entrar
que ela deva merecer confiança. A obrigação dela era contar, assim que
você chegou em casa. Quanto tempo elas conversaram?
- Não marquei, mas deve ter sido uns vinte minutos.
- Então... Vai saber o que elas conversaram. Quem sabe se elas não
tramaram alguma coisa contra nós.
- É estranho, ela não ter comentado. Se está escondendo, tem alguma
coisa errada aí.
- O melhor é mandar logo Amanda embora. O mais rápido possível.

A demissão
Fábio ainda espera o próximo plantão de Amanda, para ver se
consegue tirar alguma informação dela. Ela nada comenta. Por fim,
convencido de que Amanda nada falará, liga para o advogado e manda
que ele prepare as contas dela.
Finalmente, Regina conseguiu o que ela tanto queria. Sem
muitas explicações, Fábio demite Amanda. Ela ainda tenta descobrir a
motivação da dispensa, mas ele, econômico como sempre nas palavras,
91
Victorino Aguiar
segue o padrão. Os serviços dela não eram mais necessários, não se
justificava mais a existência de três técnicas de enfermagem na casa.
Era preciso economizar, ele estava gastando muito com elas, e as
despesas com remédios estavam muito altas. Mesmo diante dos
pedidos dela que ele adiasse a demissão, para que ela tentasse arranjar
outro trabalho, ele ficou irredutível. Ela devia arrumar as coisas dela e ir
embora logo, ainda na parte da manhã. Ela poderia ir direto ao
escritório do Dr. Flávio. Já estava tudo preparado para o desligamento
dela. Tudo seria feito diretamente com o advogado.

A demissão de Amanda veio no pior momento. A mãe dela


adoecera. Ela estava gastando uma fortuna com a mãe, com remédios,
transporte, exames. Pagar um plano de saúde era um sonho impossível.
Na idade dela, o plano custava mais do que ela ganhava de
aposentadoria. Se considerarmos que a aposentadoria de um salário-
mínimo era usada para complementar as despesas domésticas e parte
do aluguel, nada sobraria para os três sobreviverem. As despesas com
Lucas também eram significativas. O pior era que Amanda atravessava
um período muito pobre em plantões extras. Havia também a parte
afetiva envolvida na relação dela com o emprego. Ela não perdia
apenas um emprego. Ela se afeiçoara à família, tinha um vínculo afetivo
com os membros da família. Somando todo o tempo que ela trabalhava
na casa, eram mais de oito anos de convivência com eles. Muita afeição
envolvida: Dona Sara, seu Francisco; Francisca, Fabrício. Com Fábio,
nem tanto, porque, com ele, era impossível ter qualquer tipo de vínculo
que lembrasse de longe afeição. Enfim, chorosa, ela juntou os trapos e
partiu. Nem Vera sabia que ela estava sendo demitida.

É bom pensar antes de agir


Fábio acabou fazendo exatamente o que Regina sugeriu.
Demitiu Amanda e tornou realidade o sonho da namorada. Em seguida,
ligou de novo para Rosa e repetiu as ameaças que já tinha feito a ela.
Dessa vez, ele ligou de outro telefone, já que Rosa bloqueou o celular
que ele usou anteriormente. Agora, as ameaças são feitas num tom

92
Victorino Aguiar
mais agressivo; Rosa fica mesmo muito assustada. O medo fala mais
alto. Ela teme muito mais pelo filho do que por ela mesmo:
- Acho bom você desistir de seus planos. Suma da nossa vida. Você e
seu bastardo. Enquanto é tempo. Quem avisa amigo é.
- Isto é uma ameaça contra mim e contra meu filho? Você está me
ameaçando e a meu filho de morte? É isso?
- O que você acha? Tire suas conclusões. Se te pegar rondando minha
casa de novo, você vai se arrepender. Já te avisei. Para de rondar a
minha casa, igual urubu rondando a carniça. Esta é a última vez que te
ligo. Vai ser melhor pra você e pro seu bastardo. Quem avisa amigo é.
- Vai fazer comigo e com meu filho o que você fez com a Francisca? Vai
fazer com a gente o que fez com a sua irmã?
- O que você acha? Vai pagar para ver?
- Não duvido muito de que você a tenha matado. Vai matar Francisco
também?
- Quem sabe? Tudo pode acontecer.
- Não pense que me intimida. Na hora certa, saberei como agir.
- Se houver hora certa. Está avisada.
- Vou pensar no teu caso. Acalma o teu coração.
- Está avisada.
- Você é um homem doente. Devia se tratar.
- Último aviso.
- Você está cego pelo ódio.
- Pague para ver. Último aviso.

Rosa desiste de vez de visitar Francisco e tentar alguma coisa


na Justiça. Nem com Vera e Amanda ela comentará as ameaças feitas
por Fábio. Esperará passar o tempo, esfriará a cabeça e verá a melhor
atitude a tomar. No futuro, ela até poderá denunciá-lo, e justificar que
não o denunciou antes por ter medo de que ele cumprisse as ameaças,
afinal, ele tinha o sangue ruim. Aquelas ligações ficariam disponíveis na
operadora para o resto da vida. A qualquer hora, a Justiça poderia
requisitar cópias dessas ligações. Rosa não era tão tola e medrosa
quanto Fábio e Regina supunham. Ela estava com medo, mas o medo
não a impedia de pensar e tomar a melhor decisão, mais baseada na
93
Victorino Aguiar
razão do que na paixão. Fábio agia no sentido contrário ao de Rosa. Ele
não deveria seguir tão cegamente as ordens de Regina. Os celulares,
como as paredes, têm ouvidos, como já sabemos, mais apurados. Vai
que, no futuro, Rosa venha a denunciá-lo por estas ameaças, e a Justiça
quebre o sigilo telefônico dela? Já imaginou a complicação que isto
trará para ele? Pouco importa que ele tenha usado o celular dele ou o
celular do pai. Se a Justiça quebrar o sigilo telefônico de Rosa, todas as
ligações recebidas por ela serão exibidas. Talvez fosse melhor que ele
usasse outros recursos para intimidar Rosa. O ódio e a vingança são
paixões poderosíssimas. E as paixões são más companheiras. Mais que
isso, são más conselheiras.

Com a demissão de Amanda, Regina absorve os plantões desta,


isto é, dobra a própria renda. Por causa disso, passa a dormir na casa o
dobro de dias que dormia antes. A permanência pelo dobro de tempo
na casa, e, consequentemente, a proximidade maior com Fábio, como
era também o desejo dela, acaba por resultar num envolvimento físico
mais intenso com ele, o que é muito conveniente para os dois, para
todos os propósitos. Logo, eles deixam de ter segredos entre eles e
passam a se permitir qualquer tipo de conversa. Os dois passam
praticamente o tempo todo juntos. À noite, a casa é toda deles, porque
a empregada não dorme na casa e vai embora cedo. Eles têm liberdade
total, ficam totalmente à vontade. Quando Regina rende Vera nos
plantões, costuma chegar um pouco mais cedo para conferir e fiscalizar
as atividades de Vera. Abonada por Fábio, Regina acaba se
transformando numa espécie de patroa. De início, Vera se sente
melindrada com a atuação de Regina, porém, acaba aceitando para não
perder também o emprego, como ocorrera com Amanda. Quando
Regina está de bom humor, as duas até conversam, mas são conversas
muito rápidas, sempre sobre amenidades.

Morte da mãe de Amanda


Amanda está arrasada. O pior aconteceu. Não bastasse a
demissão, a mãe dela contraiu uma forte gripe, que evoluiu para uma
pneumonia, à qual ela não conseguiu resistir, e veio a falecer.
94
Victorino Aguiar
Desconsolada, ela liga para Vera e para Rosa. Rosa fica muito
preocupada com Amanda. A morte da mãe foi inesperada. Ela era
relativamente jovem, tinha apenas 60 anos, era o braço direito de
Amanda, que contava com a ajuda dela para cuidar do neto e educá-lo.
Uma avó tão dedicada, tão amada pelo menino... Lucas, com certeza,
sentirá bastante a falta dela e dos carinhos que ela dispensava a ele.
Amanda não perde apenas a presença física e o amor da mãe; sem
poder contar com a aposentadoria dela, Amanda perde também a
ajuda para pagar parte das despesas da casa e do aluguel.
Vera e Rosa a amparam e a confortam no momento difícil.
Ajudam-na na contratação e no pagamento das despesas com o
funeral. O pior de tudo é que Amanda atravessa uma fase difícil
na área profissional, com pouquíssimas oportunidades de trabalho. Já
no segundo mês após a morte da mãe, ela começa a ter dificuldades
para cobrir as despesas do dia a dia. O aluguel do mês tem de ser pago
com um dos três meses de depósito que ela dera de garantia. Vera a
tranquiliza, qualquer coisa pode contar com ela. Ela mora sozinha e a
casa dela é rópria. Na pior das hipóteses, Amanda terá uma casa para
morar. Vai ser uma alegria para Vera. Elas são amigas de longa data,
têm um ótimo relacionamento. Vera adora Lucas e o tem quase como
um filho. Ela é louca para ter um filho, mas sabe bem dos riscos que
correrá se vier a se envolver em relacionamentos com homens. Ela já
teve muitas decepções. Quanto a Amanda, esta fica feliz com a oferta,
mas não convive bem com a ideia de dividir uma casa com outra
pessoa. Nunca morou com ninguém. Imagina que Vera está sendo
movida pela amizade e pelo desejo sincero de ajudá-la, mas acha que
estará se aproveitando do bom coração da amiga, se aceitar a oferta.
Ela conversa com Rosa sobre a oferta da amiga; confessa que está
mesmo em dificuldades, logo ela não conseguirá cumprir os
compromissos. Preocupa-a principalmente o pagamento do aluguel.
Logo, vai ser quase impossível pagá-lo. Por enquanto, ela ainda pode
contar com o que sobrou da caução dada como garantia para a locação,
dois meses de aluguel, mas dois meses passam rápido. Rosa a
aconselha a aceitar a oferta de Vera. Pelo menos por alguns meses, até

95
Victorino Aguiar
que ela supere a fase difícil. Ela oferece também uma ajuda em
dinheiro pra Amanda.

Capítulo VI

As paredes têm ouvidos. Os celulares, também.

Hoje é um desses dias em que Regina deve render Vera. Falta


ainda uma hora para começar o plantão dela, mas Regina já está desde
cedo na casa. Ela está num dia ótimo. Assim que chegou, liberou Vera,
que correu para tomar banho e se arrumar para ir embora. Fábio e
Regina estão engrenados num animado papo, quando Vera coloca a
cara na porta e se despede deles antes de sair. Regina a acompanha até
a sala e se dirige à cozinha para pegar alguma coisa na geladeira. Pela
janela da sala, ela pode ver Vera cruzar o portão e ganhar a rua.
De volta ao quarto, continuam o papo e acabam entrando num
assunto que ultimamente é muito caro para Regina. Quando Fábio
assumirá publicamente a relação dele com ela? Ela quer que ele
assuma logo o romance. Não vê razão para manter aquele romance às
escondidas. Não são tão incomuns assim, envolvimentos afetivos entre
patrões e empregados, professores e alunos, médicos e pacientes. Eles
não estão fazendo nada de errado. São livres. Ela sonha em constituir
família com Fábio, ter filhos etc. Isto também não é nada original. Fábio
pensa ser melhor assumir o romance depois que Francisco morrer, não
quer ser acusado ou passar a impressão de estar mais envolvido com
ela do que com o pai. Afinal, ele é o curador, tem obrigações. Numa
coisa, porém, os dois concordam, e dizem isto sem nenhum pudor. Bom
é que Francisco parta logo. Só assim, eles estarão livres para viver a
vida deles. Com a morte de Francisco, Fábio se livrará daquela
obrigação ridícula. Ele está enxugando gelo. Francisco não tem mais
chance nenhuma, é preciso se livrar dele o mais rapidamente possível,
com o que Regina concorda plenamente. Com certeza ela fará tudo que
for necessário para que isto se realize. Ela não vê a hora de mandar
Vera embora também. Vera só serve para tirar a liberdade dos dois e
bisbilhotar a vida deles. Mosca morta. Fábio tem outras prioridades. A
96
Victorino Aguiar
preocupação maior dele é com Rosa. É ela que constitui a maior
ameaça para ele e que o preocupa mais.
A conversa caminha bem, mas, em dado momento, Fábio se dá
conta de que estão conversando um assunto não muito apropriado
para aquele ambiente. Ele acha uma imprudência conversarem um
assunto daqueles num tom tão alto. Ainda mais com a porta do quarto
aberta. As paredes têm ouvidos:
- Acho arriscado a gente levar este tipo de papo aqui dentro.
- Relaxa, querido. Só tem nós dois na casa.
- Você tem certeza de que Vera foi mesmo embora? De que não volta?
- Claro que tenho. Absoluta! Relaxa! Vi quando ela saiu pelo portão.
Além do mais, Vera é uma mosca morta, uma toupeira. Não tem
iniciativa para nada. Burra igual a uma anta. Tenho de ficar o tempo
todo administrando ela; se não fiscalizar, as coisas ficam todas pela
metade. Não vejo a hora de parar de ver a cara dela. Mosca morta. A
esta altura do campeonato, ela está muito longe daqui.

E estava realmente, mas não estava por inteira e, por isso,


mesmo, não estava se sentindo bem. Tinha sido tomada por um grande
mal-estar, uma espécie de tonteira, uma sensação de estar saindo do
ar. Julgou, a princípio, que fosse por causa do sol, que já ia bem alto,
àquela hora. Será que ela sentiu que Regina estava falando mal dela?
Será que sentiu uma quentura na orelha? Para ser mais exato, o que
ela sentia é que estava ali, mas não estava por inteiro. Uma parte dela
tinha sido arrancada do próprio corpo. Estava faltando uma parte dela.
Não foi difícil descobrir onde estava esta parte amputada do corpo
dela. Esta parte tinha permanecido no banheiro. Vera teria de caminhar
de volta no sol, dois quarteirões, para reintegrar ao corpo aquela parte
vital do organismo dela. O que é um ser humano sem um telefone
celular? Nada, não é mesmo? O celular é como um pulmão que ainda
respira, um coração que ainda bate, uma boca que ainda fala, um
ouvido que ainda ouve, um olho que ainda vê. Pode ser tudo, até o ar
que respiramos, a comida que comemos. É um braço, uma mão, uma
boca, é um faz-tudo, tem mil e uma utilidades, até mesmo as
inumeráveis, como dizia o poeta. Toda hora nós descobrimos uma
97
Victorino Aguiar
utilidade para o celular. A parte amputada dela ficou no banheiro, em
cima do gabinete, e ela voltou para pegá-lo. Ela entrou pela porta da
cozinha, a porta de trás, sem fazer barulho, nem precisava. Antes de
entrar no banheiro, pôde perceber que Fábio e Regina conversavam,
dava para ouvi-los nitidamente; ela nem pensou em interrompê-los. Em
cima do gabinete do banheiro, lá estava o queridinho, intacto, na
mesma posição em que ela o deixara. Com o celular na mão, já pronta
para se dirigir ao portão de saída e retomar sua caminhada até o ponto
de ônibus, ela ouviu aquelas palavras ditas por Fábio e confirmadas por
Regina, palavras que ficariam martelando na cabeça dela por muito
tempo. Não, ela não estava sonhando. Eles falaram aquilo, mesmo. Ela
sacou do celular e, com as mãos trêmulas, fez do celular uma parede
que ouvia, o terceiro ouvido dela, e rapidamente se pôs a gravar a
conversa dos dois. Daqui para a frente, o diálogo entre eles estará
sendo gravado:
- Ele é um problema para mim, para nós, para todo mundo.
- Você tem razão. Não se pode fazer mais nada. É muito peso nas suas
costas. É você pra tudo. Você não pode dar conta de tudo. Administrar
tudo dele, cuidar de Francisca esse tempo que você cuidou, do jeito
que ela estava; controlar bancos, pagamentos etc. Pode contar comigo.
Não é muito difícil, para mim é fácil. Uma dose a menos aqui, outra
dose a mais ali. Um esquecimento aqui, outro ali. Se for necessário,
posso desligar alguma coisa por um tempo. Ele vai partindo aos poucos,
ninguém notará que alguém deu uma mãozinha a ele. O doutor Arnaldo
vem vê-lo uma vez por semana. Para todos os efeitos, Francisco está
sempre sendo assistido pelo doutor Arnaldo. Não preciso de mais de
dois meses. Em dois meses, ele parte. No máximo, três.
- Eu conversei com o Fernando e o Fabrício. Quanto a Fernando, o que
eu fizer estará feito. Ele até fez uma ceninha, mas, no final, lavou as
mãos. Disse que não quer saber de nada, que até abre mão da parte
dele. Isso, a gente vai saber na hora da partilha. Na hora do vamos ver,
veremos. Para o Fabrício, isto é uma dádiva. A maconha dele estará
garantida para o resto da vida. Ele nem merece ficar com porra
nenhuma, só dá despesa, o infeliz. Em resumo, eles não estão nem aí.
Fernando disse que em uma porção de países, a eutanásia já está
98
Victorino Aguiar
legalizada. Na Holanda, Austrália, Canadá. Até em Portugal, a eutanásia
já é garantida por lei. O Brasil é sempre o último a acompanhar o
progresso. Ordem e Progresso. Parece piada. Fernando diz que está
muito feliz em Portugal. Agradece a Deus por ter conseguido se adaptar
à Europa. Ele diz que não sente saudades do Brasil, que só vem aqui por
obrigação. Segundo ele, em breve, o Brasil também vai legalizar a
eutanásia, é questão de tempo, mas eu não estou a fim de esperar. Eu
não aguento mais. Eu posso pedir à Justiça que nomeie outro curador,
mas eu nem imagino quem possa ficar no meu lugar. Seja quem for,
porém, nunca terá minha confiança, vou ter de estar sempre de olho.
Certamente, vai receber uma grana para isso. Mais uma despesa. Sem
contar que ele vai fazer tudo para manter papai vivo. Aí, é que ele não
morre mais. Afinal, papai vai ser o ganha-pão dele.
- Nem pense nisso. Eu faço o serviço. Pode deixar comigo. Quando
começo? Posso começar hoje?
- Não temos outro jeito. Veja, lá, nem pensar em comentar com
ninguém, principalmente com mulheres; lembre-se sempre disto: não
existe melhor amiga. Ninguém da família precisa saber como foi feito.
Eles sabem que será feito. É o suficiente. Para todos os efeitos, ele
morrerá de causas naturais. Muito tempo tomando medicação, muitas
sequelas.
- Amor, pode confiar em mim. Eu faço tudo por você. Eu amo você.
Quero ver você livre desta cruz.
- Meu medo é do Doutor Arnaldo, se ele pedir uma autópsia, um
exame.
- Para quê? Ele ganha uma baba para não fazer nada. Tem meses que
vem só uma vez. O combinado eram duas visitas por semana. Não é
pouco o que você paga a ele. Ele vai dar o atestado de óbito na hora. Eu
garanto. Não deu para Francisca? A situação de Francisco é muito mais
grave. Claro que ele dará todos os documentos que forem necessários.
Basta não mandar o corpo para nenhum hospital, nem clínica. Se for
para uma clínica, eles até o ressuscitam para faturar o máximo que
puderem. Morre aqui, e daqui vai direto para o velório. Conforme for,
você pede para cremar o corpo. Conheço o Arnaldo há bastante tempo.

99
Victorino Aguiar
Ofereça a ele uma gratificação, um dinheirinho a mais pra ele, pra
consolar pelo fim da mamata.
Faz-se silêncio. O coração de Vera está aos saltos. Eles podem
estar vindo para a sala. Ela vai partir em retirada. Mas não interrompe
a gravação. O gravador ainda consegue registrar as últimas palavras
que Regina diz a Fábio:
- Amor, eu te quero tanto. Como desejo ter um filho teu, meu amor.
- Regina, vamos com calma. Um filho nosso, agora, vai ser um prato
cheio para falatórios. Você é jovem, pode esperar a partilha. Aí,
podemos até casar. Você terá quantos filhos quiser. Não engravide, por
favor.

Se Vera não tivesse se assustado, se tivesse gravado mais um


pouco da conversa entre Regina e Fábio, ao invés de fugir correndo da
cena do crime que estava sendo tramado por eles, ela teria tido acesso
a informações de muita importância.

Para Vera, o melhor era que tivesse gravado a conversa por


inteiro. Uma pena, que ela tenha ficado assustada. Por causa disso, ela
perde a melhor parte da conversa. Agora, porém, o único objetivo dela
é preservar o que já conseguiu gravar e proteger a si própria de uma
atitude pouco simpática por parte de Fábio e Regina. Partiu, rua. Cruza
rapidamente a porta da sala, que estava apenas encostada, e parte
como uma flecha para a rua. Apressa o passo, quer sair o mais
rapidamente dali. Está desorientada. Que responsabilidade! Sabe que
está de posse de um material altamente explosivo. É perigoso andar pra
cima e pra baixo com aquela gravação. Agora, ela teria de caminhar
para bem longe da casa de Fábio, pegar um táxi e zarpar para casa. Ela
consegue um táxi livre, embarca nele e pede que o motorista dirija com
alguma rapidez. Quer chegar logo em casa, copiar aquela gravação para
um pendrive, anexá-la a uma mensagem e salvá-la como rascunho. É
preciso apagar definitivamente a gravação do celular. Não pode correr
o risco de perder o aparelho num assalto ou por descuido. Nem pensar
de aquela gravação cair em outras mãos. Aquilo vai ser um segredo só
dela. Nem a Amanda ela contará que possui aquela gravação. A amiga
100
Victorino Aguiar
pode colocar tudo a perder. Afinal, ela foi demitida da noite para o dia,
sem mais nem menos, sem uma justificativa razoável, e sabia que havia
dedo de Regina na demissão dela. Era muito provável que Amanda
decidisse usar a gravação para se vingar de Regina. Dependendo de
como e quando fizesse isto, Amanda provocaria a demissão de Vera, e
também privaria a colega de ter acesso ao que se passava na casa, de
se manter bem informada. Melhor era deixar tudo em segredo, até ter
certeza do que devia fazer. O principal era estar segura de que, no
futuro, estaria garantida de qualquer tentativa por parte de Regina e
Fábio de colocar nas costas dela a responsabilidade por algo de errado
que viessem a fazer. Isso mesmo, eles bem poderiam fazer uma merda
e jogar a culpa nela. Prevenir é melhor do que remediar. Aquela
gravação seria uma arma que ela poderia vir a usar numa situação
extrema. Mesmo tendo sido obtida de modo ilegal, a lei permitiria que
ela fosse usada em defesa própria, de alguma maneira.

Vera agora já se conhece um pouco melhor. Quando ela baixou


o aplicativo para gravar ligações nem imaginava que ele poderia vir a
ser um instrumento tão útil num processo judicial. Ela nem queria
baixar e instalar o aplicativo, só o fez para se sentir mais atualizada e
para seguir a manada. Ela vivia se repreendendo por ter uma péssima
memória, um poder muito pequeno de concentração. Ter esquecido o
celular no banheiro era uma prova dessa limitação. A falta de memória
e o baixo grau de concentração poderiam ser e eram limitações, mas
eram limitações congênitas. O uso do celular, no entanto, além de
agravar esta limitação, por exigir cada vez menos o uso da memória,
criava outras limitações mais graves e quase incontornáveis, derivadas
do uso irracional e desnecessário do aparelho. Uma delas, sem sombra
de dúvida, é criar a ilusão de que o aparelho faz parte do nosso corpo
de carne e osso. Sem ele, nos sentimos incompletos. No caso dela, o
celular já era uma parte do corpo dela. Sem ele, ela se sentiu como se
faltasse uma parte do próprio corpo, como se uma parte dela tivesse
sido amputada. O esquecimento era também uma prova inconteste
dessa osmose. No entanto, por causa do esquecimento, foi possível a
ela gravar a conversa dos dois. Bendito esquecimento.
101
Victorino Aguiar
Quanta coisa, Vera descobriu. O celular seria para ela, dali para
diante, um terceiro ouvido, mais sensível, mais acurado que o próprio
ouvido biológico. O celular seria também como os dez dedos dela, que
converteriam em texto tudo que fosse gravado. Seria a segunda boca,
capaz de reproduzir o conteúdo sonoro da conversa gravada. Como
consequência de todas estas descobertas, Vera também descobriu que
poderia fazer outras gravações como a que fizera, quase por acaso,
mas, agora, de modo planejado e direcionado. Agora, o celular deixaria
de ser apenas um meio de comunicação a mais na vida dela. Ele seria
uma arma com mil e uma utilidades, uma parede a mais entre ela e
Fábio e Regina. Uma parede que ouviria melhor do que ela própria seria
capaz de ouvir. A partir daquele dia, Vera passaria a estar preparada
para fazer outras gravações. O celular ficaria em ponto de bala.
Qualquer oportunidade que surgisse, ela dispararia o gravador. E nem
levantaria suspeitas de que estaria gravando, bastava que agisse com
naturalidade. Mesmo com o celular dentro do bolso do jaleco, poderia
gravar muita coisa útil para ela e comprometedora para eles.

Saudades e temores
Rosa sente muito a falta de Francisco e lamenta a morte de
Francisca. Ela não descarta mais que tenha havido um dedo de Regina
na morte da menina. Se ela estiver certa, se a morte da menina foi
consequência de alguma ação ou omissão por parte de Fábio ou Regina,
a vida de Francisco está correndo perigo. Rosa teme pela vida dele,
acredita que possa estar havendo algum tipo de interferência negativa
ou negligência nos cuidados com o namorado. O relacionamento entre
Fábio e Regina dá a esta uma ascendência maior sobre o patrão e
namorado. Ora, Fábio e Regina têm razões de sobra para isso,
principalmente agora, que Fábio já sabe que não é filho biológico de
Francisco e, por causa disso, passou a odiá-lo. A associação entre Fábio
e Regina tem tudo para levá-los a interferir no quadro de saúde de
Francisco. Rosa está dominada por esses pensamentos, está
angustiada, porque se sente impotente diante do perigo que parece
rondar a vida de Francisco. Agora, que Fábio fez uma ameaça de morte
a ela e ao filho, ela tem certeza de que ele teve responsabilidade na
102
Victorino Aguiar
morte de Francisca, e também tem certeza de que ele pode apressar a
morte do pai. O ódio que ele guarda no peito deve tê-lo cegado. Ela não
comenta com Amanda e Vera a respeito da ameaça de morte que
recebeu de Fábio, mas, ao contrário do que ela disse a ele, ela tinha,
sim, muito medo de que ele cumprisse as ameaças. Pergunta a Vera
sobre a possibilidade de ela instalar uma câmera camuflada no quarto
de Francisco, ou na sala. Tenta convencê-la de que esta seria de grande
utilidade. Vera rejeita a ideia, vê nela um risco de ser descoberta,
demitida, processada, perder a oportunidade de estar perto deles e de
alguma forma se manter a par do que acontece na casa. Se ela fizesse
isto, seria às escondidas. Ela era uma funcionária, nada poderia fazer
sem autorização do patrão. Se sugerisse isto a Fábio, fatalmente ele
recusaria a sugestão, suspeitaria dela e com certeza a demitiria. Uma
gravação obtida por ela dessa maneira, sem a anuência de Fábio, não
teria nenhum valor jurídico, e ainda poderia ser usada contra ela. Ela já
estava fazendo o que podia fazer, a coisa certa. Ela continua ligada. Os
olhos e os ouvidos dela estão a postos. Os olhos e ouvidos dela e do
celular.
Finalmente, ela consegue fazer mais uma gravação que poderá
vir a ser muito útil. Desta vez, ela pode gravar com alguma
tranquilidade, sem sobressaltos, porque Fábio está num ponto perto da
porta do quarto, aparentemente deitado num sofá. Já é bem tarde da
noite. Vera cochila no sofá da sala. No intervalo de um cochilo e outro,
acorda e percebe que Fábio está conversando ao telefone. Pelas falas
dele, fica sabendo que ele conversa com Regina. Ela aciona o gravador
e consegue gravar com nitidez trechos do diálogo, no qual eles
conversam sobre uma mudança na aparência de Francisco. Vera só
ouve as falas de Fábio, mas dá para deduzir o que Regina fala do outro
lado. Ele diz que notou alguma mudança na cor dos olhos e na
expressão de Francisco. Quer saber se aquilo já é reflexo do que Regina
vem fazendo ou deixando de fazer. Ele parece um pouco nervoso, mas
não concorda com o que aparentemente ela diz no outro lado da linha:
- Mas eu não estou nervoso, só estou perguntando. Você falou que
duraria no máximo dois meses. Já tem mais do que isso.
................
103
Victorino Aguiar
- Você tem de apressar isso. Ele tem de morrer logo. É isso que eu
quero. Resolve logo. Temos de nos livrar desse problema o quanto
antes.
..........
- Já liguei, sim. Falei com ela. Desta vez, acho que ela ficou assustada.
.........
- Vou ligar outra vez, sim. Na semana que vem.
- ...............
- Tudo bem. Amanhã a gente conversa melhor quando você estiver
aqui.
..............
- Também estou com saudades. É verdade. Parece que a gente não se
vê há um século. Para mim, também. Um dia, uma noite, uma hora,
parece uma eternidade.
...............
- Vou, sim, amor. Agora. Quero sonhar com você, com seus beijos, com
sua pele. Te quero!
..........
- Te quero, mais.

Ele desliga o telefone, cruza a sala, vai até a cozinha, pega


alguma coisa para beliscar na geladeira e se senta à mesa para comer.
Vera fica revoltada. É muita frieza, muita crueldade. Nada justifica
aquele ódio. Eles devem ter matado a pobre da Francisca.
Agora, ela dispõe de mais um elemento contra o patrão. Estas
gravações, e outras, que ela fará mais adiante, ela continuará a manter
em sigilo. Nem com Amanda, ela comentará sobre estas gravações.
Terá o cuidado de anotar dia e hora de cada uma. Se for necessário
testemunhar em juízo, ela não assumirá que tem a gravação, para não
correr o risco de o testemunho dela não ser aceito, e também para não
ser acusada de ter incorrido em crime. Ela relatará apenas que ouviu, e
informará dia, mês e hora em que isso se deu. Bastará informar isto.
Levantado o sigilo telefônico, facilmente se verificará a veracidade, e a
ligação assim obtida poderá ser usada como prova obtida legalmente.
Ela já conseguiu quatro gravações deste tipo. O suficiente para que
104
Victorino Aguiar
Fábio seja deserdado e até preso em flagrante. Com estas gravações,
ela poderá se defender de eventuais e injustas acusações de
negligência. De posse desse arsenal, ela também poderá testemunhar a
favor de Rosa, porque há muitas referências maldosas e mal
intencionadas contra Rosa e o menino, inclusive fazendo menções a
eventuais assassinatos. Há gravações de reuniões dos irmãos, nas quais
se discute a eutanásia; outras, de conversas entre Fábio e Regina, em
que são feitas referências explícitas à Francisca, à Rosa e ao menino.
Ela continuou a agir normalmente com eles, continuou a tratá-
los como sempre os tratava. Nada no comportamento dela deixava
transparecer que ela tinha sido testemunha de uma maquinação
inominável. Ela encarava tudo aquilo como uma espécie de fatalidade.
De nada adiantaria ela tomar alguma atitude. De qualquer modo, ela já
sabia que Francisco não tinha nenhuma chance de voltar a ter uma vida
normal. Mais cedo ou mais tarde, mais para mais cedo do que para
mais tarde, seu Francisco partiria. Ela não dizia estas coisas para Rosa,
por caridade, mas era este o pensamento que dominava a mente dela.
Nos dias em que ela estava de plantão, ela cumpria rigorosamente com
as obrigações dela e deixava o barco correr. Talvez desejasse
intimamente que seu Francisco se demorasse mais um pouco, porque,
bem ou mal, era dele que ela tirava parte dos rendimentos dela.
Quando ele morresse, ela teria de arranjar outro paciente para
complementar o baixo salário que ela ganhava na prefeitura. Apesar
das desvantagens e das injustiças que ela sofria na prefeitura, ainda era
uma bênção aquele emprego, porque ela era concursada e tinha
estabilidade. Ela torcia para que Amanda conseguisse logo uma
colocação, porque quando seu Francisco morresse, a renda dela se
reduziria muito. O ideal era que Amanda também conseguisse passar
num concurso para a prefeitura para poder ter uma segurança. Depois
de ser demitida por Fábio, Amanda passou por maus bocados. Logo em
seguida, a mãe dela faleceu, e ela deixou de contar com a ajuda que
ela lhe dava nas despesas e nos serviços domésticos. Compadecida da
situação da amiga, Vera acolheu Amanda e o filho, que passaram a
morar com ela.

105
Victorino Aguiar
Mortes
Era por isso que Vera suportava os caprichos e as humilhações
a que Regina costumava submetê-la. Nestas ocasiões, ela se fingia de
morta, mais do que já fingia normalmente. Hoje, Vera chegou 20
minutos atrasada. Isto foi o bastante para ouvir os desaforos de Regina:
- Chegando atrasada, de novo. Eu e Fábio temos um compromisso, com
hora marcada. Não podemos ficar aqui esperando você como dois
babacas.
- Houve um acidente, não foi culpa minha. O trânsito estava todo
parado.
- Você tem sempre uma desculpa. O certo é sair mais cedo, para se
prevenir contra estes imprevistos. Se é que houve mesmo algum
acidente. Vou começar a descontar estes atrasos. A lei permite.
- Desculpe. Você tem razão. Vou me levantar mais cedo.
- Pode começar suas atividades. Faça o favor de não ficar agarrada ao
celular. Você fica o tempo todo com este telefone nas mãos. Você está
aqui para cuidar do seu Francisco, não para ficar jogando cobrinha e
fofocando no celular. Você já sabe quais são as suas obrigações.
- Tudo bem, vou até guardar ele na bolsa.
Vera desliga o celular e o coloca na bolsa. Assim que Regina
termina seu sermão e suas grosserias, ela e Fábio saem juntos. Vera dá
início à execução dos rotineiros cuidados devidos ao paciente:
- Bom dia, seu Francisco. Dormiu bem? Sua aparência está ótima!
Para início de conversa, ela tirou as fraldas dele,
completamente sujas. Depois de retirá-las, Vera o limpou
cuidadosamente. A aparência das fezes e da urina estava muito
diferente da aparência normal. O odor estava insuportável. Ela se livrou
logo das fraldas. Depois, o colocou na cadeira higiênica, e o levou para
o banheiro.
- Vamos para o banheiro? Vamos fazer a higiene e depois tomar seu
café e os remédios.
Vera escovou os dentes dele. Depois, lavou cuidadosamente
cada parte do corpo – a cabeça, os braços, a barriga, a genitália, as
nádegas, as pernas, os pés. Ela gostava do trabalho dela. Uma pena que
uma profissão tão necessária, tão útil, não tenha o merecido
106
Victorino Aguiar
reconhecimento, e seja vista de forma tão negativa pela população e
pelo Poder Público.
- Agora, sim, está bem cheirosinho. Dá gosto de ver. Agora fica
quietinho, aí, que vou preparar o seu café da manhã.
- Obrigado, por tudo.

Não. Aquilo não era um sonho. Vera não estava sonhando. Ele
falou realmente:
- Seu Francisco! O senhor falou mesmo, ou eu estou sonhando?

Ela fita com ansiedade o rosto de Francisco, esperando por uma


resposta. Ele nada responde. Os olhos estão bem abertos. Ele move a
cabeça lentamente na direção de Vera, esboça um leve sorriso, e fecha
os olhos.
Vera enfia mecanicamente as mãos nos bolsos do jaleco, onde, por
força do hábito, espera encontrar o celular:
- Onde coloquei o bendito celular? Quando a gente mais precisa dele, o
infeliz desaparece. Está na bolsa, na sala. Ah, meu Deus, que horrível.
Totalmente sem carga. Estas coisas só acontecem comigo.
Ela procura se acalmar. Não é tão importante assim, que ela saia
ligando para todo mundo. Melhor é colocar o telefone para carregar e
continuar cumprindo as obrigações dela. Tudo tem seu tempo. Agora, o
importante é manter a calma, o sangue frio, agir com naturalidade,
para não estressá-lo.
Quando retorna da cozinha com o desjejum de Francisco, no entanto,
Vera já não o encontra mais ali. Francisco retornou ao pó. Seus olhos
estão definitivamente fechados. O sorriso continua nos lábios, mas ele
já partiu. Foi uma morte suave. A expressão de Francisco é serena,
pacífica. Ela consulta as horas. Ela tem certeza de que ele realmente
falou, da mesma forma que agora ela tem certeza de que ele está
morto. Ele não está se fingindo de morto.
São pouco mais de nove horas. Faz menos de dois meses que
Vera gravou a conversa de Fábio e Regina pelo telefone. Ela garantiu
que seu Francisco não viveria mais de dois meses. Regina entregou o
que prometeu. Sem atraso. Foi pontual. Claro que não houve nenhum
107
Victorino Aguiar
acidente. Nem engarrafamento. Regina fez a parte dela. Vera, mesmo
sem o saber, preparou com profissionalismo e carinho a encomenda.
Francisco está pronto para a entrega.
Ainda bem que ela não conseguiu ligar antes para Amanda nem para
Rosa. Teria sido muito doloroso para elas, receber a notícia da morte
dele, minutos depois de ter acreditado que ele estava de volta. Para
Fábio e Regina, no entanto, sob certo aspecto, as consequências disto
seriam desastrosas, quem sabe até com um desfecho trágico para os
dois, mesmo levando em consideração que a má notícia seria
desmentida minutos depois. Talvez nem houvesse tempo para reparar
as nefastas consequências da primeira ligação.
Agora, o celular poderia ser usado por Vera, sem o risco de ela ser
alvo de mais uma grosseria. O celular seria usado a favor apenas de
Regina e de Fábio. Com a ligação, Vera estaria dando duas excelentes
notícias para Regina. A morte de seu Francisco e a carta de demissão
dela própria. Vera não tinha coragem de dar a notícia da morte de
Francisco diretamente a Rosa. Antes ela daria a notícia a Amanda, para
que esta a repassasse para Vera. Em seguida, ligaria para Fábio que,
num piscar de olhos, retornaria da rua com Regina e o Dr. Arnaldo já a
tiracolo.

Daí para diante, já sabe o leitor os desdobramentos que


redundaram no atípico velório de Francisco, cenário de
cinematográficas cenas, com direito a choro, ameaças, xingamentos e
acusações mútuas envolvendo Rosa, Amanda, Vera, Fábio e Regina.
Passemos, então, à reunião pós-velório, que dará
prosseguimento à narrativa, e que justificará o título para ela escolhido.

108
Victorino Aguiar

Capítulo VII

Inventário

Poucas horas após o enterro, os herdeiros já estavam reunidos


para definirem as primeiras medidas a serem tomadas. A principal
delas, aliás, já estava definida, antes mesmo da reunião. Não havia
dúvida de que Fábio era a pessoa mais indicada para assumir a função
de inventariante. Ele teria muito trabalho, tanto ou mais trabalho do
que tivera enquanto o pai ainda estava vivo. Todos que ali estavam
haviam presenciado as lamentáveis cenas que se desenrolaram no
velório. Isto é, sabiam que havia uma mulher alegando ser
companheira estável de Francisco e ter havido com ele um filho, que
lhe carregava o nome e os genes. Mais que isso, ela garantia estar de
posse de documentos nos quais Francisco fazia uma declaração de
vontade de que o menino fosse registrado como filho dele e que fosse
incluído como herdeiro necessário. O inventariante, quer dizer, Fábio,
teria um trabalho imenso para lidar com estes fatos. De início, se o
menino fosse reconhecido como filho, o espólio agora teria um
herdeiro a mais, e menor. O reconhecimento da certidão de união
109
Victorino Aguiar
estável garantiria a Rosa 50% do espólio. Ela poderia ingressar em juízo
já no dia seguinte, se estivesse devidamente instruída e assistida por
um advogado, o que criaria obstáculos de toda ordem ao andamento
do processo, tornando imprevisível o tempo que ele levaria para ser
concluído. Neste cenário, ficaria descartada a possibilidade de um
inventário extrajudicial. Provavelmente, Rosa contrataria os serviços de
um advogado e ingressaria em juízo isoladamente, contando
certamente com os testemunhos de Vera e Amanda, bem como das
gravações que elas haviam feito no velório. Exigir o teste de DNA seria
desperdício de tempo e uma despesa inútil, já que o menino era quase
um clone do pai. O teste de DNA pouca influência teria, e a realização
dele dependeria exclusivamente da vontade do juiz, uma vez que não
era pré-requisito para o reconhecimento da paternidade, o que já foi
feito por Francisco na escritura pública lavrada em cartório a pedido
dele. Quanto à inclusão do menino como herdeiro necessário,
portanto, o mais provável era que isto viesse a acontecer, melhor que
eles estivessem preparados.
Com relação ao reconhecimento da união estável entre
Francisco e Rosa, ainda havia uma chance de que ela pudesse ser
negada em juízo e não ser reconhecida. O consolo era que Rosa perdia
a preferência de ser a inventariante, mesmo se fosse reconhecida como
companheira, por não estar morando com Francisco no momento da
morte dele, como a lei estipula. Nesta condição, eles podiam
reconhecer ali mesmo, formalmente, a nomeação de Fábio na função
de inventariante. Isto representava uma vantagem para a família. Como
inventariante, ele poderia dar entrada no processo já no dia seguinte.
Quanto mais rápido isto fosse feito, melhor. Se fosse aberto depois de
60 dias após a morte, tudo ficaria mais complicado.
Eles precisariam de um advogado, mais cedo ou mais tarde.
Fábio acha conveniente contratar os serviços de um advogado
recomendado por Regina, o Dr. Mílton Lustosa. O advogado tem
bastante experiência na área, conforme ele mesmo pôde comprovar,
após pesquisar na internet o portfólio do advogado. Naquela semana
mesmo, Fábio terá uma reunião com o advogado. A atuação dele no
processo, porém, representará mais uma facada na partilha. Na prática,
110
Victorino Aguiar
era mais um herdeiro. Por se tratar de um inventário não consensual,
envolvendo disputa, o desenvolvimento do processo seria mais longo,
mais complexo e consequentemente mais trabalhoso. O Dr. Mílton
Lustosa não cobraria menos de 10% sobre o valor do espólio; isto,
numa estimativa conservadora, já que o teto era de 15%.
Os outros herdeiros estavam meio atrapalhados com a
montoeira de números e dados a que Fábio fizera menção. Aonde Fábio
queria chegar, ninguém atinou. Ele terá de ser mais didático. Deduzidas
todas as despesas com taxas, honorários advocatícios, impostos,
reconhecimento de firmas, cópias, idas e vindas a cartórios e órgãos
públicos, o que restasse seria dividido por Fábio, Fabrício, Fernando e
Francisco, isto é, 25% para cada um; isto, sem considerar que Rosa
fosse também considerada herdeira da metade da metade do total que
sobrasse. Neste caso, o quinhão de cada um sofreria uma redução
considerável. Fábio considerava este valor aquém do que ele merecia,
não apenas por todo trabalho que teve para cuidar do pai durante sete
anos, mas também pelo trabalho de providenciar os primeiros socorros,
de dar assistência ao pai no período em que este permaneceu em coma
no hospital, contratação das profissionais de saúde, administração de
conflitos entre elas, cuidados com a irmã Francisca, o desgaste
emocional decorrente dos problemas de saúde dela, e as despesas com
velório e enterro dela; aquisição e controle da medicação de produtos
necessários à preservação do bem-estar de Francisco, sem contar com
o estresse que foi lidar diretamente com a golpista, não só quando o
pai ainda estava vivo, mas também no velório, e ainda continuar a ter
de lidar com ela até que termine o inventário e seja feita a partilha. E
dali para diante, o trabalho será dobrado. Ele reivindica uma
participação maior na partilha. A casa onde mora vale pouco. Ele não vê
vantagem em se manter à frente de tudo. A ideia dele era fazer um
inventário extrajudicial, bem mais em conta; mas com a participação
litigiosa de Rosa, mais do que certa, o inventário extrajudicial estava
descartado. O advogado poderia ser contratado mais tarde, depois que
já estivessem transpostas as fases que dispensam a atuação de
advogado, mas, mesmo assim, para isso, ele precisará dispor de um
valor considerável para o pagamento das primeiras despesas. Ele já
111
Victorino Aguiar
tinha agido por conta própria e mantido fora do banco um valor que ele
julgara necessário e suficiente para isso. O valor de que ele dispõe, no
entanto, é insuficiente para o pagamento das taxas e impostos,
condição para ele dar entrada no inventário judicial. Ele exige que a
parte dele seja aumentada, e que nela seja incluída a casa onde ele já
morava com a família, agora reduzida a ele e Fabrício, pelo menos
enquanto este não puder se manter com os próprios recursos. Na
opinião de Fábio, mesmo esta proposta ainda não era justa, mas
reivindicar mais que isto praticamente deixará de fora Fernando e
Fabrício. Ele esclarece, no entanto, que estes valores são baseados na
hipótese de Rosa e Júnior serem contemplados na partilha. Se isto não
acontecer, Fernando e Fabrício serão contemplados com valores bem
maiores. Ele lembra aos irmãos que os imóveis terão de ser vendidos,
para que a divisão seja feita de forma mais justa. Este será mais um
trabalho para ele.
A proposta de Fábio não encheu os olhos dos irmãos; de acordo
com ela, Fábio ficaria com a parte do leão. Fábio passou então a elencar
a participação de cada um nos cuidados com a mãe, com o pai, com a
irmã e com a casa. Rigorosamente, ninguém além dele se envolvera
com nada. Tudo tinha ficado nas costas dele, tudo. Fabrício não se
conforma, Fábio estava sendo radical. O que Fábio queria dizer, no
entendimento deles, é que o certo seria deserdar os outros irmãos. Era
demais. Mas Fábio não parecia disposto a recuar:
- Não seria injusto, deserdar vocês; nem visitá-lo, vocês vinham.
Ao que tudo indica, Fernando já não tem a mesma indiferença
que demonstrava ter em relação ao espólio. Aparentemente, a
disposição de espírito dele mudou um pouco. Ele tenta justificar a
pouca presença dele nos negócios familiares. Não é todo dia que se
pode pegar um avião e atravessar o Oceano Atlântico para vir ao Brasil.
Isto implica em gastos consideráveis. Além do que, ele tem obrigações
de ordem profissional, que exigem a presença dele na Europa em
tempo integral. Bem, com relação a Fernando, a justificativa para não
visitar o pai era mais que justa. Mas não deixava de ser uma ausência; e
esta ausência não deixava de causar problemas e de sobrecarregar a
Fábio. Aquela reunião, por exemplo, poderia ser feita no dia seguinte,
112
Victorino Aguiar
não precisaria estar sendo realizada no dia do enterro do pai. Pois é, na
hora do vamos ver, as coisas sempre mudam um pouco, não é mesmo?
Até Fabrício, que sempre se mostrava bastante ausente, agora estava
mais envolvido, e tentava se justificar:
- Você sabe que estou na faculdade. Preciso estar com a cabeça vazia.
Não iria ter condições psicológicas para estudar aqui, vendo papai
naquele estado. Quando tivesse de fazer algum trabalho em grupo, e
tem muito trabalho assim, eu teria de receber os colegas em casa.
Como é que eu ia ficar? Eu fui morar no alojamento para liberar você;
se eu morasse aqui, fatalmente acabaria incomodando.
- Fala sério, Fabrício. Sua cabeça está sempre vazia. Você foi morar no
alojamento para cair na gandaia. Seis anos para terminar um curso que
dura quatro anos. Que trabalho em grupo você faz? Fumar maconha?
Todo fim de semana você zarpa pra Saquarema. Só Deus sabe tudo o
que você faz naquelas bandas. Você nem devia abrir a boca. Você só dá
despesa e aporrinhação. Mais de uma vez, eu tive de gastar o dinheiro
do papai para resolver seus problemas com a polícia por causa da
maldita. Agora, mesmo que cada um de vocês tivesse contribuído com
muito mais, com o dobro, com o triplo, ainda assim teria sido pouco.
Fui eu que cuidei dele, o tempo todo, fui eu que trabalhei mais. Eu
carreguei tudo nas costas; na hora de carregar o piano, ninguém quis.
Pensam que é mole fazer o que eu fiz? Eu estou mais morto do que
vivo. Eu fiz a pior parte. Vocês são cúmplices, mas se der merda, eu vou
pagar o pato sozinho. Vocês logo tirarão o corpo fora. A pior parte, foi
eu que fiz. Pensem sempre nisso. A divisão está mais que justa.
Fábio altera a voz e aumenta os decibéis, para dizer a plenos
pulmões, sem cuidar, mais uma vez, que as paredes têm ouvido:
- EU O MATEI!!

Parece que desta vez os argumentos de Fábio foram mais


convincentes, mas não o suficiente para convencer Fernando. Este se
revolta com a frieza de Fábio. Ele não compactuaria com um
assassinato, Fábio já sabia da opinião dele, que tinha atravessado o
Atlântico num longo e bem elaborado SMS remetido por Fernando.
Nem mesmo a firmeza de Fábio e os altos decibéis, com os quais ele
113
Victorino Aguiar
transmitira aos irmãos a fúnebre comunicação de como a morte do pai
se dera, foram capazes de convencer Fernando. Ele não aceitou
passivamente a declaração de Fábio de que ele fora o carrasco da
sentença de morte por ele mesmo exarada. Para os ouvidos de
Fernando, a declaração soara como uma traição à memória do pai.
Querer-se merecedor de uma cota maior da herança por ter
assassinado o próprio pai era um duplo crime. Se é verdade que as
paredes têm ouvidos, e tomara que elas tenham, tomara que os
ouvidos delas sejam saudáveis. E mais que isso, tomara que elas não
guardem segredo. A experiência nos diz que não. Os ouvidos de
Fernando estão prejudicados, ficaram lesados, não são mais saudáveis.
Ele não gostou nada do que ouviu. Se vão ou não guardar segredo, não
sabemos.
- Você cometeu um assassinato, foi isso que fez. Foi movido pelo ódio,
só pelo ódio. E ainda agora, age como uma ave de rapina, querendo
avançar nas cotas de seus irmãos. Papai sempre te amou, sempre te
tratou bem, mesmo depois de saber que você não era filho biológico
dele. E não te contou para te proteger, para não fazê-lo sofrer mais do
que você já sofria, por ter uma mãe marginal, de má índole, que
enganou papai e abandonou você ainda bebê. Por mim, você pode
ficar com tudo, não quero ser beneficiário de uma vingança, de um
parricídio, porque, querendo ou não, gostando ou não, ele era seu pai.
Ele te tratava até melhor que aos outros filhos. Tirando Francisca, que
era menina e era a caçula, você era o xodó. Vou me embora, pode ficar
com tudo. Nunca mais coloco os pés neste País. Nada mais me prende
aqui.

Fernando sai da sala batendo a porta e desaparece para


sempre. Fábio e Fabrício apostarão que Fernando vai manter a boca
fechada. Quanto a eles, já se acertaram. Ficou combinado que Fábio
ficará com a casa, mais um pedaço da parte de Fabrício e a parte toda
de Fernando.

114
Victorino Aguiar
Com a morte do pai e a extinção da curatela, antes de tudo,
Fábio teria de fazer uma prestação final de contas. Talvez recebesse
logo uma citação judicial, dando ciência de que não poderia iniciar o
inventário antes da realização de uma audiência, em que deveriam
estar presentes todos os interessados.
Rosa também já deve estar correndo atrás dos direitos dela e
do filho. Para isso, ela nem precisa dos serviços de um advogado pago.
Basta que compareça ao Ministério Público e à Defensoria Pública e
relate a não inclusão no inventário de menor, legítimo herdeiro
necessário, bem como a não inclusão dela própria como herdeira, na
condição de companheira estável não convivente. Nesse caso, o
inventário ficaria paralisado até que se resolvesse o litígio.
Fábio entra logo em contato com o Dr. Mílton Lustosa. É bom
que ele não faça nada antes de conversar com o advogado. É isto que
ele faz. Já no dia seguinte, se reúne com Dr. Mílton. É preciso colocá-lo
a par de todos os pormenores. Dr. Mílton tem bastante experiência no
exercício da advocacia e suficiente perícia nessa área. Ele pede a Fábio
que lhe conte tudo, absolutamente tudo, mesmo o que Fábio possa não
considerar necessário. A confiança tem de ser absoluta. Fábio conta ao
advogado toda a história, desde o início.
- Papai estava vulnerável, fragilizado, não estava bem de cabeça. Pelas
datas, se pode provar que a criança foi concebida pouco antes de
mamãe morrer, foi justamente na pior fase dele que Rosa engravidou,
papai nem devia saber o que estava fazendo. Nós podemos alegar que
estávamos tentando interditá-lo, que ele estava apresentando
comportamento bizarro. Eu revirei os papéis dele; descobri que ele
estava tomando remédio controlado. Quem pode garantir que ela não
tenha dado algo para ele beber, ou comer, induzido ele a engravidá-la?
Nas condições em que ele estava, não era difícil ela conseguir fazer isso.
Eu tenho cópias das receitas, as notas dos remédios, os comprovantes
das consultas. Darei meu jeito; se precisar, teremos testemunhas. Ele
ficou internado dois dias, da primeira vez que passou mal. Depois que
saiu do hospital, aparentemente estava melhor. Fez uma bateria de
exames. Talvez tenha contado a ela sobre os exames e mostrado a ela
os resultados. Ela deve ter ficado com medo que ele morresse e ela
115
Victorino Aguiar
perdesse a galinha dos ovos de ouro. Com a idade dela, seria difícil
encontrar outra oportunidade como aquela. Melhor era meter logo
uma barriga, antes que não desse mais tempo. Está mais que evidente
que Rosa agiu de má-fé. Prova disso é que ela só se apresentou como
namorada e mãe do filho dele, depois que papai morreu.
Provavelmente, quis fugir da obrigação de cuidar dele. Isto é motivo
para ser deserdada. Quanto ao menino, vai ser difícil provar que ele
não é nosso irmão. A situação dele sempre estará preservada.
Poderíamos forjar um teste de DNA; não é difícil fraudar o exame, mas
o moleque é a cara de papai. Ele parece mais com papai do que a
gente. Não há como excluí-lo. Não podemos dar um jeito nisto. Quanto
a Rosa, as coisas ficam mais fáceis. A razão de ela ter se apresentado
nas visitas como amiga de papai são mais que evidentes. Ela nunca
mencionou a condição de união estável com ele. Escondeu isto para se
eximir da obrigação de cuidar dele. E esta era uma obrigação legal dela,
como companheira. Negar essa assistência é considerado abandono de
incapaz, motivo suficiente para ela ser deserdada. Se formos mais
rápidos que ela, poderemos fazer o inventário extrajudicialmente.
Quando ela vier a descobrir, já teremos feito a partilha, e poderemos
alegar que ela não apresentou a certidão do menino.

O advogado a tudo ouve com muita atenção e paciência. Já


sabe o leitor que Fábio não contou a ele toda a verdade, porque ele
teme correr algum risco se contar tudo. O primeiro deles diz respeito
ao valor dos honorários. Ora, o valor dos honorários certamente
aumentará bastante se Fábio contar ao advogado que matou o próprio
pai com a ajuda da amante. Talvez o advogado venha até a abandonar
o processo. Melhor é manter o bico fechado. Em juízo, seriam as
palavras de Rosa e das técnicas contra as palavras dele. As três eram
partes interessadas, de pouco valeriam testemunhos sem provas
materiais.
Mílton começa por descartar a possibilidade de iniciar logo o
inventário extrajudicialmente. Com herdeiro menor, com litígio, de
posse da farta documentação que Rosa tinha em mãos, mesmo sem
constituir advogado, não será difícil para ela contar com a atuação da
116
Victorino Aguiar
Defensoria Pública. Seria pura perda de tempo e de dinheiro iniciar por
esse caminho.

A viúva
Rosa é uma das três esposas de Francisco, ainda que não lhe
caiba com perfeição jurídica a denominação esposa. Para ser esposa,
ela teria que ter contraído núpcias com Francisco, diante de uma
autoridade pública. Ajustada aos tempos modernos, a nomenclatura
correta para o status de Rosa é companheira não convivente em união
estável. Além de companheira não convivente em união estável, ela
também é herdeira, por ter sido assim designada numa escritura
pública equivalente a um testamento. Pelo fato de um dos herdeiros
ser filho dela e menor de idade, ela será tutora da parte do filho.
Companheira, herdeira, mãe e tutora de herdeiro necessário e menor.
Sobre Rosa, já sabe o leitor quase tudo que é necessário; para
suprimir o quase, falta dizer pouco. Ela é filha única de um casal de
classe média, nascida num subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, mais
precisamente, no bairro de Madureira. Ainda jovem, ingressou no
serviço público como professora das primeiras séries, após a conclusão
do curso pedagógico. Com esforço, continuou os estudos e concluiu
com louvor o curso superior, tendo obtido licenciatura em Língua
Portuguesa. Não teve muita sorte com relacionamentos afetivos.
Quando conheceu Francisco, já estava com 35 anos. Grávida dois ou
três meses antes de Francisco adoecer gravemente, não teve a alegria
de ver o companheiro participar do período de gravidez nem dos
primeiros meses de vida de Júnior. Ela manteve por muito tempo em
segredo a condição de companheira estável de Francisco, na esperança
de que o companheiro voltasse à vida normal, para não embaralhar
ainda mais a movimentação das peças. Já sabemos que Francisco a
nomeou herdeira de 50% dos bens que viesse a deixar. Além de ser
uma mulher sensível, educada, fina, ela é dona também de uma
determinação excepcional, capaz de superar obstáculos por muitos
considerados intransponíveis. É por conta destes atributos que ela
conseguiu caminhar até onde caminhou. Além da frustração diante da
impossibilidade da realização dos sonhos por tanto tempo acalentados,
117
Victorino Aguiar
de ser mãe e de constituir uma família com Francisco, ela teve de arcar
com o ônus de atravessar sozinha a gravidez toda sem o suporte
emocional e financeiro do amado. Mais do que isso, teve de se
submeter por tanto tempo à frieza, indiferença e mau-humor de Fábio,
que certamente intuía a condição dela. Ela suportou com resignação e
esperança todas as dificuldades que uma situação como aquela
impunha, sempre alimentando a esperança de que Francisco retornaria
da inconsciência para os braços dela e do filho. Na última visita que fez
a Francisco, quando, afinal, Fábio matou nela as esperanças que ele
mesmo já não tinha, ela se sentiu derrotada e deixou transbordar toda
a tristeza e a dor que estava represando por tanto tempo. Ela não
contava que esse transbordamento provocasse em Fábio um ataque
histérico de tamanha dimensão. Não que esperasse dele palavras de
consolo, de conforto, diante do descontrole emocional dela. Para Rosa,
bastava que ele ficasse em silêncio e respeitasse a dor dela e a
presença do menino. Mesmo assim, na última visita a Francisco, pelo
menos os dois estavam num ambiente doméstico, privado, havia
apenas a técnica de enfermagem e a irmã de Fábio na casa. Com todos
os prejuízos que decorreram das ácidas e agressivas palavras
disparadas por Fábio contra ela e o filho, havia a atenuante de que ela
estava na casa dele. E também por ter sido esta a primeira vez que ela
reportava a ele, com todas as letras, o verdadeiro status dela e do
menino. No velório, a conversa era outra, a capela é um espaço público,
do município. Ali, havia uma agravante, as ofensas foram ditas, quer
dizer, repetidas, alto e bom som, na presença de dezenas de pessoas.
Para garantir os direitos dela e do menino, não restava a ela outro
recurso além de bater às portas do Judiciário. Ela e o pequeno exército
com que ela contava.
A primeira medida era comunicar ao Judiciário que Francisco
tinha filho menor; só isto bastava para impedir que o inventário fosse
adiante, antes que ela fosse ouvida e pudesse defender os direitos dela
e do filho. Ela já deu os primeiros passos em direção ao Ministério
Público e à Defensoria Pública. Lá, ela denunciou Fábio por calúnia,
injúria e difamação, por tê-la rotulada de golpista e vadia, da mesma
forma que ao filho de sete anos, portanto, menor, a quem ele chamou
118
Victorino Aguiar
em altos brados de bastardo. Além disso, denunciou-o também pelas
ameaças feitas contra a integridade física, emocional e moral dela,
acrescentando que ela o julgava capaz de cumprir as ameaças, porque
ele estava revoltado contra tudo e contra todos, totalmente fora de si,
desde que soubera que não era filho biológico de Francisco. Ela disse
dispor de provas suficientes para incriminá-lo como assassino do
próprio pai. A promotora foi informada da condição de viúva e meeira
de Rosa, e de herdeiro necessário de Júnior. Depois de registrar tudo
que foi dito por Rosa, a promotora informou a ela que as providências
cabíveis seriam tomadas imediatamente, que Fábio seria citado para
comparecer e se defender das acusações. Ele receberia, também, uma
notificação impedindo-o de dar início ao inventário. Primeiro, ele teria
de comparecer a uma audiência acompanhado dos demais
interessados, a qual contaria com a presença dela, que deveria estar
munida de todos os documentos de que dispusesse, inclusive de fotos.
Poderia também se fazer acompanhar das testemunhas. A promotora
garantiu a ela que nada poderia ser feito antes de ser autorizado pelo
Judiciário. Aconselhou-a comparecer à Defensoria Pública e ao
Conselho Tutelar, por haver um menor envolvido nas pendências.
Assim, antes mesmo que Dr. Mílton pusesse em ordem a
papelada para dar início ao inventário, Fábio recebeu a citação do
Ministério Público, dando conta do ingresso naquele órgão de pedido
de medidas cautelares para resguardar direitos de menor e de
companheira no inventário. O documento informava local e data da
audiência, a ser realizada com a presença de todos os interessados no
inventário. Nada poderia ser feito antes que esta audiência fosse
realizada. Fábio também foi convidado a se explicar quanto às ameaças
feitas contra Rosa, por ela relatadas com riqueza de detalhes.
Primeira audiência
A essa audiência, junto com Rosa, também compareceram
Amanda e Vera, que confirmaram integralmente as declarações de
Rosa. Vera declarou ter ouvido diversas conversas entre Fábio e Regina,
nas quais os dois tramaram ações que poderiam apressar ou mesmo
provocar a morte de Francisco. Com relação à conversa mais
comprometedora, Vera não se lembrava na íntegra do conteúdo dela,
119
Victorino Aguiar
mas as falas que ouvira eram suficientes para comprovar a
determinação dele e de Regina de assassinarem seu Francisco.
Fábio protestou, alegando que as duas eram useiras e vezeiras
em ficar pelos cantos bisbilhotando conversas para divulgá-las
posteriormente entre parentes e conhecidos. Até no velório, se deram
a este comportamento criminoso, criando um ambiente de
desassossego e tumulto. Era de se estranhar que não tivessem também
gravado as conversas que alegavam ter ouvido. As duas deviam, sim,
ser acusadas formalmente por gravar e divulgar conteúdo íntimo,
familiar, no ambiente de trabalho e em atos religiosos. Estes, sim, eram
crimes, até mais graves que as falsas denúncias de ameaças de que ele
era acusado por Rosa.
A promotora reconheceu que estas gravações eram realmente
consideradas crimes, que não poderiam ser reconhecidas como prova,
e elencou as penas descritas em lei para o cometimento de tais crimes.
Perguntada pela promotora sobre quando teria havido tais conversas,
Vera lamentou não saber precisar. Na verdade, ela tinha todas as datas
anotadas, mas, diante da insistência da promotora e do tom em que
esta formulou a pergunta, Vera ficou nervosa, teve um apagão e
tropeçou nas palavras. Sabia que foi depois da morte de Francisca.
Além dessas conversas, ela ouvira alguns diálogos deles na própria casa,
mas não tinha como provar.
Fábio justificou algum destempero da parte dele com o fato de
estar num momento de muita dor e sofrimento. A morte do pai
representava para ele uma grande perda. Ele via a família se
desintegrar em muito pouco tempo. Primeiro, foi a morte da mãe, que
desestruturou o psicológico do pai, quase o impossibilitando de assistir
a esposa. Depois, o pai adoeceu e foi posto fora de combate, em tempo
recorde. Com um irmão morando noutro continente e outro ainda
imaturo; com Francisca, de saúde frágil, menor e muito sensível, ele
era, na realidade, o único suporte de toda a família. Depois, veio a
morte da irmã tão querida, ainda tão jovenzinha. Como filho mais
velho, tudo recaía sobre as costas dele. Foi demais para ele, saber que
o pai tinha um filho fora de casa, concebido antes que a mãe tivesse
falecido, e nascido depois que o pai já estava incapacitado. Ele pedia,
120
Victorino Aguiar
sinceramente, desculpas se, por acaso, inconscientemente, tivesse se
excedido uma vez ou outra, mas reafirmava com todas as forças que
Rosa se valera da fragilidade e vulnerabilidade do pai dele para
engravidar, reiterando que não descartava a possibilidade de ela ter
colhido o esperma de Francisco para inseminar a si mesma. A
autoinseminação sem o conhecimento e a concordância do doador
constitui crime previsto em lei. A defesa de Fábio se recusa a aceitar a
certidão de união estável, alegando que Francisco só a mandara lavrar
por não desconfiar de ter sido vítima de uma gravidez derivada de
autoinseminação não consentida. Requer que sejam negadas a
condição de filho de Júnior e a condição de companheira estável não
convivente de Rosa.
O defensor público protesta; o menor, em nenhuma hipótese,
pode ser privado dos direitos derivados da condição de filho e herdeiro
necessário de Francisco. Não apenas por ser menor, mas porque as
provas da paternidade de Francisco são mais que evidentes, a começar
pela gritante semelhança física de Júnior com o de cujus. Ainda que, em
hipótese, Rosa pudesse ter se valido de expedientes escusos para
engravidar, ainda assim, o direito do menor não poderia ser atingido
pelo eventual cometimento de ilícito por parte da mãe.
Ele requer que seja realizada uma nova audiência, já que ele
não teve tempo suficiente para se dedicar ao processo e estudá-lo com
toda a atenção que este exige, o que se torna necessário para que o
processo tenha um desfecho justo para todos. Reitera a subsistência de
indícios robustos de que pode ter havido, no mínimo, negligência por
parte do curador, isto é, de Fábio, quanto às obrigações devidas ao
curatelado.

O juiz defere o pedido da Defensoria, encerra os trabalhos e


convoca a todos para uma nova audiência, quando então tudo será
decidido, após a apreciação mais detalhada de toda a documentação e
depois de ouvidas com mais vagar todas as partes, as testemunhas e o
defensor. O Ministério Público fará também um pente fino, um
minucioso levantamento junto aos cartórios e aos órgãos públicos, a
fim de melhor embasar a atuação da Justiça. Aquele primeiro
121
Victorino Aguiar
movimento era só um aquecimento. Até ali, o que se tinham eram
apenas declarações. Na próxima audiência, porém, as coisas mudariam,
todos teriam mais tempo para se preparar melhor.
Encerrados os trabalhos, o defensor convocou Rosa, Amanda e
Vera para uma reunião no gabinete dele. Ali, ele informou a elas que
estudaria os autos com bastante atenção. Esclareceu que fazia parte
das obrigações dele, antes de tudo, defender e preservar os direitos do
menor. Recomendou a elas que reunissem tudo que pudesse ser usado
em juízo contra Fábio e os outros herdeiros, e que trouxessem o
material na reunião seguinte, a ser realizada também no gabinete dele,
dali a duas semanas. Assim, elas poderiam relatar, com calma e sem
nenhuma pressão, tudo que sabiam e tinham presenciado na casa e
fora dela. Depois de analisar o material com atenção, ele faria a juntada
ao processo do que fosse pertinente. Era necessário que elas não
omitissem nada. As técnicas estavam bastante intimidadas com as
ameaças de Fábio e do advogado dele, bem como das advertências da
promotora. O defensor garantiu que nada aconteceria a elas. Para
defender Rosa, Amanda e Vera, e preservar os direitos de Júnior, era
preciso que nenhuma delas tivesse segredos para ele.
Na reunião seguinte, elas já estavam bem tranquilas. Vera
começa por relatar tudo que pôde presenciar na casa. Era comum os
três realizarem reuniões a portas fechadas, quando então eles
deliberavam sobre a situação do pai e dos desdobramentos do estado
dele.
Numa dessas reuniões entre os irmãos, eles cogitam de
apressar a morte de seu Francisco. Eles usam mais de uma vez a palavra
eutanásia. Concordam que era melhor pro seu Francisco que ele
morresse, porque era um sofrimento inútil. Fábio reclama que era ele
pra tudo, que ninguém ajudava em nada. Fernando e Fabrício
concordam que era melhor mesmo antecipar a morte do pai. Só não
querem saber de nada, nem quando nem como será feito. Fábio
esclarece que não fará nada por gosto, que só está sendo movido pela
compaixão e pelo amor ao pai. Ele não parece estar sentindo ódio. Diz
que o único problema será como praticar a eutanásia. Sabe que no
Brasil ela é proibida e punida. Fernando argumenta que o Brasil é a
122
Victorino Aguiar
terra do atraso. Na Europa, muitos países já praticam a eutanásia. Claro
que há uma regulamentação. Tudo é feito cercado de um clima de
compaixão e humanidade. A ideia é libertar os pacientes em estágio
terminal dos sofrimentos e das dores insuportáveis, inúteis e sem
sentido, a que estes pacientes são condenados. Os cuidados com estes
pacientes sobrecarregam o sistema de saúde privado e particular,
gerando gastos e investimentos que poderiam ser melhor empregados
na pesquisa e prevenção de doenças. Em linhas gerais, foi mais ou
menos isto que ela ouviu.
Nelson pergunta pelas gravações:
- E as gravações, sei que gravaram no velório. Vocês gravaram alguma
coisa na casa? Quantas gravações vocês fizeram? Preciso dessas
gravações.
- Gravei, sim, tenho quatro gravações – admite Vera. - Coloquei tudo
num pendrive. Mas não vou passar para o Senhor. Posso ser processada
por isso. Posso transcrever o conteúdo delas todas para o Senhor, mas
a gravação não dou.
- Olha, só. Eu preciso ouvir essas gravações. É claro que não vou
reproduzi-las em juízo. Quero apenas ouvi-las com atenção. De
qualquer modo, vou requisitar ao juiz a quebra do sigilo telefônico de
Fábio e Regina. Porém, fica mais fácil para mim, se eu ouvir primeiro
suas gravações, porque antes mesmo de ter os áudios e as transcrições
das ligações, eu já as terei estudado com mais cuidado e terei pronta a
argumentação. Precisamos ganhar tempo. A defesa está muito mais
bem instruída do que a Defensoria. Rosa, preciso também requerer a
quebra de seu sigilo telefônico e de Francisco, para levantar todas as
ligações entre você e ele, bem como das ligações de Fábio para você.
De posse desses dados, nós poderemos deserdar todos os herdeiros, se
as gravações comprovarem que foi verdade tudo o que vocês já
disseram. Basta convencer o juiz da veracidade do testemunho de
vocês e da autenticidade das conversas deles com você.
A muito custo, depois de muita argumentação, e também com
a ajuda de Rosa e de Amanda, o defensor consegue convencer Vera a
entregar a ele as gravações. Enfim, ela concorda em entregar as cópias.
Antes da próxima audiência, o defensor terá em mãos as gravações, os
123
Victorino Aguiar
áudios e as datas das conversas que não foram gravadas. Rosa autoriza
a quebra do sigilo telefônico dela. Ela também se compromete a
imprimir todas as conversas dela com Francisco nos aplicativos de
mensagens:
- Estamos combinados, então? Quando vocês trarão o material? Na
semana que vem, não pode ser, porque minha agenda está toda
tomada. Daqui a duas semanas, está bom? Quanto mais rápido
melhor. As coisas não costumam caminhar rápido no Judiciário. Rosa,
vamos nos adicionar no zap. É muito mais prático, funcional, muito
mais seguro. Qualquer novidade, numa emergência, se precisar de
alguma ajuda, pode me mandar uma mensagem.

Na saída, já fora do prédio, o assunto que predomina entre elas


é o brilho dos olhos do defensor público. Quem tivesse olhos para ver,
logo notaria o brilho cada vez mais intenso nos olhos dele, toda vez que
se dirigia a Rosa, desde a primeira vez que a atendera. Amanda e Vera
tinham olhos para ver o brilho nos olhos do Dr. Nelson quando eles
repousavam no rosto de Rosa. Elas tinham olhos para ver o brilho dos
olhos de Nelson e tinham bocas para dar uma de cupido:
- O homem não tira os olhos de você. É um olhar de quem está
enxergando mais que seu rosto. Você nasceu com aquilo virado pra
Lua. Nossa! Muita sorte. O cara olhou pra você e caiu logo de quatro.
Cá pra nós, basta você estalar os dedos. Ele é um pedaço de mau
caminho.
- Ele só está fazendo o trabalho dele. Mais nada. Ele sabe que fiquei
viúva há pouco. Mente imunda, a de vocês.
- O cara não é fraco, não. Foi logo pedindo o zap. Só pediu o seu. Nem
se lembrou da gente. Pode ir se preparando, vem cantada por aí.
- Gente! O que é isto? Tem menos de quatro meses que Francisco
morreu. Não tenho cabeça pra isso, não.
- Rosa, a vida continua. Daqui a pouco, as coisas mudam. Tudo passa.
Vida que segue. Pelo menos como plano B, segura o homem.

Nelson não brinca em serviço. Dois dias depois, ele envia um


zap para Rosa, pedindo que ela vá sozinha à Defensoria para tratar de
124
Victorino Aguiar
alguns itens que dispensam a presença das duas amigas. Rosa fica
sabendo que, por estar em questão um inventário litigioso, era preciso
nomear um novo inventariante para substituir Fábio, um que fosse
aceito por todos os postulantes. Rosa não tem nem ideia de quem ela
indicará. Rosa não se importa que seja o Dr. Laércio, advogado que
costumava atuar para Francisco. Se era da confiança dele, podia ser da
confiança também dos outros herdeiros e dela mesma. Todos
concordam com a participação de Dr. Laércio como inventariante. O
juiz convoca Dr. Laércio para saber se ele aceita ser nomeado
inventariante. Ele aceita. Assim que for resolvido o litígio entre os
postulantes ao espólio, o advogado formalizará a aceitação. Só então,
poderão ser tomadas as primeiras medidas para o andamento do
inventário. Enquanto isto, nada poderá ser feito.
Na data marcada as três retornaram com tudo que havia sido
solicitado pelo defensor. Naquele mesmo dia, ele encaminharia um
pedido ao juiz para levantar todos os sigilos telefônicos, a fim de ter
acesso às conversas de Fábio com Regina, Fernando e Fabrício, e às
conversas de Rosa com Francisco. Rosa entregou ao defensor todas as
conversas dela no zap com Francisco, com mensagens de texto e de
áudios, além de três vídeos. Nas mensagens, Francisco diz o suficiente
para desfazer qualquer interpretação equivocada das atitudes dele.
Francisco se diz convencido de que não tinha razões para duvidar da
honestidade e da sinceridade dela, que já firmara a convicção de que
ela estava realmente grávida dele e que ele assumiria a paternidade
assim que a criança nascesse. Ela era uma servidora pública, tinha boa
índole. Não era uma adolescente de base familiar desfavorável, era
uma mulher madura, de pés no chão. Ele não fugiria da
responsabilidade dele. Tomaria todas as providências que fossem
necessárias para garantir os direitos do filho.

Ao final da reunião, o defensor sai junto com as três. As


técnicas, de propósito, alegam que precisam se adiantar e deixam
Nelson sozinho com Rosa. Nelson não consegue resistir à ideia de
oferecer uma carona a Rosa. Esta também tem recebido mensagens
inequívocas vindas do coração. Ela reluta, resiste muito à oferta de
125
Victorino Aguiar
carona, mas acaba aceitando. Ela já não consegue enganar a si mesma
quanto ao que sente quando Nelson a olha com aqueles olhos. É assim
que ele acaba descobrindo onde ela mora.
Ela abriria mão de tudo para ter o amado de volta, para ver o
filho crescer sob os cuidados do pai e sendo alvo dos carinhos dele. Os
milhões da herança não representavam nada diante da felicidade que
sentiria, se pudesse desfrutar novamente da presença de Francisco.
Mas a vida é assim, nem sempre a gente consegue escolher.
A realidade é que ela é jovem, o tempo passará. Talvez ela
venha a recomeçar a vida amorosa, nem que seja apenas para que
Júnior possa dispor de uma figura masculina como modelo, para
contrabalançar a exclusividade da figura dela.
Isto mesmo, talvez ela venha a retribuir os olhares reveladores
do defensor público. Ela não podia negar que aqueles olhares a
perturbavam bastante. Talvez estes contatos frequentes por telefone,
no zap e no fórum que ela vinha mantendo com o defensor, já tivessem
feito germinar algum grão de afeição no fundo da alma dela, viúva
muito antes que Francisco viesse a falecer. A extremada dedicação de
Nelson ao processo, e o desfecho bem sucedido da causa, também
despertarão nela bons sentimentos. Desde o início ele se mostrara
muito sensível à situação de Rosa e se interessara de modo especial
para que os direitos dela e do menino fossem garantidos. É graças ao
empenho e à atuação dele que a justiça será feita, sem prejuízo de
nenhuma ordem para Rosa e o menino. Ele se interessara pelo
processo, é claro, mas se interessara igualmente por ela também. Mas
não bastava que os olhos dele tivessem brilhado de modo peculiar para
ela. Isto não era suficiente; era preciso que uma vez ou outra Rosa
também exibisse um pouco de luz no olhos dela. Ele também será
merecedor de um profundo sentimento de gratidão por parte dela.
Mais adiante, os olhos dela também começarão a brilhar para ele.

Segunda audiência
Iniciada a audiência, foram lidas as transcrições das declarações
de Rosa, Vera e Amanda, tomadas a termo na primeira audiência no
Ministério Público. Em seguida, foram também lidas as escrituras
126
Victorino Aguiar
públicas mandadas lavrar por Francisco, mais as cópias das conversas
entre Francisco e Rosa em aplicativos. Dr. Mílton se apressa a rebater o
conteúdo dos documentos apresentados pela Defensoria:
- Meritíssimo, estas escrituras não têm valor jurídico, Francisco as fez
quando estava sob tratamento médico, psiquiátrico, sofrendo os
efeitos de uma severa depressão. A autora se valeu da fragilidade do de
cujus para induzi-lo a fazer isto. Nem seria temerário dizer que ela pode
ter colhido o material espermático de Francisco e inseminado a si
própria, já que seria muito improvável que ele se arriscasse a manter
relações sexuais sem medidas mínimas de proteção contra doenças
sexualmente transmissíveis e, mais ainda, para evitar uma eventual
gravidez, catastrófica naquele contexto. É sabido que a depressão
severa acarreta lentificação, rouba muito da capacidade do paciente de
responder adequadamente às demandas rotineiras do dia a dia. É
público e notório que a medicação de que Francisco fazia uso
prejudicava quase irremediavelmente a consumação de relações
sexuais, seja por inibir a libido, seja por impossibilitar a ereção, pelo
menos num nível suficiente para a penetração e inseminação. Temos
como provar que ele esteve sob os efeitos de forte medicação
antidepressiva durante muitos meses antes da hospitalização e da
incapacitação definitiva. Foi tomado por este estado de espírito que ele
mandou lavrar estas escrituras. Temos os comprovantes das consultas
com o psiquiatra, as notas fiscais dos remédios. Pela data de
nascimento do menino, se ele foi mesmo fruto de relações sexuais
mantidas entre Francisco e Rosa, essas relações se deram quando a
esposa estava no auge do sofrimento, praticamente in extremis,
quando ela enfrentava os piores momentos da doença, dois ou três
meses antes da morte dela. Francisco estava tão debilitado e
desorientado, que os filhos já até cogitavam de interditá-lo, tal era a
gravidade do estado do pai, por causa da depressão e dos fortes efeitos
colaterais dos remédios que ele tomava. Acresce, meritíssimo, que ele
chegou a ficar internado por dois dias. Aqui estão todos os resultados
dos exames feitos por ele poucos dias antes de ser levado pela segunda
vez para o hospital, de onde retornou definitivamente incapacitado.
Tomografias, raios-X, exames de sangue etc. Ainda que o exame de
127
Victorino Aguiar
DNA viesse a comprovar a paternidade, esta decorreria de crime similar
a estupro de vulnerável, de abuso sexual de incapaz, cometido com o
visível propósito de obter vantagens para ela, como vulgarmente se diz,
fazendo uso do golpe da barriga. O comportamento da reclamante
atesta de modo cabal que ela tinha apenas interesse nas vantagens que
obteria após a morte de Francisco. Durante os sete anos do martírio de
Francisco, poucas vezes ela o procurou, muito raramente o visitou.
Contam-se nos dedos das mãos as vezes em que ela foi visitar aquele
que ela insiste em chamar de companheiro. Só depois de dois meses
após a incapacitação de Francisco ela deu as caras, mesmo assim, se
apresentou na condição de amiga de longa data, dupla mentira,
porque, na melhor das hipóteses para ela, nem um ano havia que eles
tinham se conhecido. Existe, inclusive, a possibilidade de que ela tenha
engravidado de outro homem.

Os argumentos contra Rosa são robustos, para usar o jargão


dos profissionais do Direito. Com base neles, já teríamos elementos
suficientes para tirar Rosa do páreo. Mas a turma das leis é treinada
para contornar a verdade e namorar a mentira. Temos de ouvir a outra
parte. Vejamos o que tem a dizer o defensor público a favor de Rosa:
- Meritíssimo, mais de uma vez a reclamante compareceu à casa dos
reclamados para visitar o amado e oferecer ajuda no que coubesse à
família. O curador, via de regra, a recebia com sete pedras na mão, com
a cara fechada, com poucas palavras. Mais de uma vez, ela tentou
conduzir a conversa com ele de modo a fazer uma ponte para colocá-lo
a par da relação dela com Francisco. Na primeira visita, por estar no
segundo mês de gravidez, realmente ela optou por não entrar no
assunto, por isso se apresentou como amiga de longa data de
Francisco, e se mostrou preocupada com a condição dele. Ela quis
poupar a si mesma e à família do amado de um estresse maior a que já
estavam sendo submetidos. Convenhamos, trazer à baila a gravidez
dela, numa situação como aquela, naquele momento, em que Francisco
acabava de se tornar incapacitado, seria também uma demonstração
de pouca consideração com a dor pela qual a família passava. Havia
bem pouco tempo que Sara, esposa de Francisco e mãe dos
128
Victorino Aguiar
reclamados, tinha falecido. Acresce, meritíssimo, que Rosa alimentava a
sincera e profunda esperança de que Francisco voltasse à vida normal
antes que o filho nascesse. Ela ouviu, da boca do próprio curador, que o
médico recomendara que Francisco recebesse o mínimo de visitas,
restritas às pessoas mais próximas do círculo familiar, e que estas
fossem de curta duração, tudo com foco na rápida recuperação do
paciente. Ela, como os demais, tinha razão de sobra para desejar com
todas as forças a recuperação do amado. Não era apenas o futuro de
Francisco que estava em jogo, era também o futuro dela e do filho
comum dos dois. Havia um filho dos dois envolvidos naquele drama.
Com o nascimento do menino, os cuidados com a criança passaram a
lhe tomar uma boa parte do tempo, tanto mais que ela não contava
com recursos suficientes para pagar a alguém que a auxiliasse. Esta foi
também outra razão para que ela não visitasse com mais frequência o
amado.

O advogado da família volta à carga:


- Meritíssimo, o colega não respondeu às principais indagações
formuladas pela defesa, para invalidar a pretendida condição da
reclamante de companheira e mãe de filho comum com Francisco.
Subsistem os elementos que incriminam cabalmente a maneira pela
qual a reclamante conseguiu engravidar, e os recursos de que ela se
valeu para a inseminação. Isto, sem considerar os crimes cometidos
pelas testemunhas, as gravações feitas sem autorização e divulgadas
criminosamente.

Os argumentos da defesa não são muito eficientes. Pelo menos


com relação à suspeita de que Rosa possa ter forjado a paternidade, o
argumento se revela ridículo. O defensor tem muitas cartas na manga.
Ele está de posse de uma foto original de Francisco, de quando este
estava com a idade de Júnior. O defensor passa esta foto junto com
outra atual de Júnior às mãos do juiz e pede juntada aos autos;
- Qualquer pessoa em sã consciência aceitaria sem exame que estas
fotos são da mesma pessoa. O menino é praticamente uma cópia do
pai, quando este tinha a idade que o filho tem agora.
129
Victorino Aguiar
- A Defensoria já tem conhecimento de que os herdeiros aceitam que o
menino é realmente filho de Francisco. O que se diz, agora, e se prova
sobejamente, é que a concepção dele se deu de modo escuso,
provavelmente sem consentimento e conhecimento do pai, que se
encontrava num quadro de depressão, sob forte efeito de remédios
controlados, com comportamento que despertava nos herdeiros a
suspeita de que ele não estivesse integralmente lúcido e orientado. Eles
chegaram a cogitar de requerer a interdição do pai, o que não foi feito
por causa da internação, do coma e da incapacitação definitiva dele.
- Meritíssimo, temos provas suficientes para contestar definitivamente
as alegações de insanidade e incapacidade mental de Francisco, à
provável época da concepção do herdeiro menor.

O defensor traz a público os áudios e as transcrições das


conversas telefônicas entre Fábio e Regina, feitas com autorização da
Justiça. As transcrições não deixam margem a dúvida: eles planejaram e
apressaram a morte de Francisco. E não fizeram isto por compaixão,
por piedade. Nas gravações, Fábio diz com todas as letras que não tem
mais respeito nem amor pelo pai não biológico. Francisco era para
Fábio um estorvo, um problema. Para Regina, era também um
obstáculo para a consecução do sonho dela de ser esposa e beneficiária
da herança que o eventual marido lhe daria. As cópias das conversas
entre Rosa e Francisco também são provas contundentes de que
Francisco sabia bem o que estava fazendo, em poucas palavras, era
responsável e capaz, em relação às decisões de mandar lavrar as
escrituras públicas em que reconhecia os direitos da companheira e do
filho que ainda estava por nascer.
A prova mais evidente da sanidade de Francisco era justamente um dos
inúmeros vídeos enviados por ele para Rosa, dos quais, a Defensoria
usará apenas dois. O defensor faz questão de exibi-los no telão:
- Amor, as escrituras que te deixei são suficientes para resguardar os
seus direitos e os do bebê. Tomara que seja verdade que vai ser um
menino. Não quero apenas registrá-lo como filho, quero que tenha
meu nome, por inteiro. Fernando já partiu e segue o caminho dele faz
muito tempo, quase nem vem visitar a família. Fabrício é irresponsável,
130
Victorino Aguiar
passa mais tempo na rua do que em casa. Ainda está na fase de afirmar
a própria individualidade. Não vai demorar muito para ele botar os pés
na estrada. Fábio já até passou da idade de formar a própria família,
mas isto pode acontecer a qualquer hora, agora que Sara morreu. A
família ficará reduzida a nós dois, à Francisca e ao nosso bebê. Vai ser
muito bonito, um casal de irmãos, Francisca e Francisco. Guarda este
vídeo, salva ele num pendrive. Se por acaso vier a acontecer alguma
coisa comigo, este vídeo será útil para você e o bebê. Ainda não contei
nada a nosso respeito para o Fábio, vou pensar direitinho antes, não vai
demorar muito. Já faz dois meses que Sara morreu, acho que ele já está
preparado para saber a verdade sobre nós e o bebê, mas tenho medo
de que ele não reaja bem e se revolte. Ele já sabe há muito tempo que
a mãe dele o abandonou ainda pequeno para que eu e Sara o
criássemos, e que os pais biológicos dele eram pessoas de má conduta.
Por causa disso, é um menino triste e solitário. Sara era mais que uma
madrasta para ele, assim como eu sou o pai que ele não teve. A
natureza humana é imprevisível. Ele pode ter uma reação negativa e se
revoltar contra Sara e contra mim, pelo menos no início. É por isso que
estou pedindo que você guarde e salve este vídeo. O mesmo amor que
já sinto por nosso bebê eu sinto por todos os meus filhos, talvez mais
ainda por Fábio, por ser o mais velho, o que mais conviveu comigo e o
que mais me ajudou, mas temos de nos proteger contra qualquer
dificuldade que venha a surgir. Está tudo bem comigo, não se preocupe.
Vou ter de fazer mais alguns exames. Só vamos nos ver depois que eu
fizer estes exames. Muito em breve poderemos viver o nosso amor na
plenitude. Te amo!

O defensor requer que as gravações feitas no velório, recusadas


pelos herdeiros, sejam aceitas como provas e tidas como legítimas, por
não terem sido tornadas públicas, envolverem defesas de direitos
líquidos e certos de Rosa e do menor, e, principalmente, por ser a
capela onde se deu o velório um ambiente público, propriedade do
município. O pedido da Defensoria é deferido, e as gravações são
passadas também no telão. Nelas, se pode ouvir Fábio dizer claramente
que Rosa seria para ele eternamente uma intrusa, uma estranha. E mais
131
Victorino Aguiar
as ofensas pesadas lançadas contra a honra de Rosa, o desonroso
epíteto de bastardo proclamado em altos brados contra o irmão. Para
ele, documentos públicos, com fé pública em todo o território nacional,
não tinham nenhum valor. Nem a vida do pai, tinha valor, segundo as
próprias palavras dele em trechos de outra gravação. Para ele, tudo que
se colocava entre ele e os sonhos escusos dele constituíam apenas
estorvos; fossem documentos, a honra de uma mulher digna, o futuro
de uma criança, já prejudicada por uma orfandade tão singular e
dolorosa, fosse a memória de quem o acolheu como filho, mesmo
depois de saber que tinha sido vítima de uma fraude. Para encerrar
com chave de ouro, o defensor reproduz os áudios das ligações em que
Fábio ameaça explicitamente Rosa e o filho dela de morte. Isto põe por
terra toda a argumentação da defesa:
- Acho bom você desistir de seus planos. Suma da nossa vida. Você e
seu bastardo. Enquanto é tempo. Quem avisa amigo é.
- Isto é uma ameaça contra mim e contra meu filho? Você está me
ameaçando e a meu filho de morte? É isso?
- O que você acha? Tire suas conclusões. Se te pegar rondando minha
casa de novo, você vai se arrepender. Já te avisei. Para de rondar a
minha casa igual urubu rondando a carniça. Esta é a última vez que te
ligo. Vai ser melhor pra você e pro seu bastardo. Quem avisa amigo é.
- Vai fazer comigo e com meu filho o que você fez com a Francisca? Vai
fazer com a gente o que fez com a sua irmã?
- O que você acha? Vai pagar para ver?
- Não duvido muito que você a tenha matado. Vai matar Francisco
também?
- Quem sabe? Tudo pode acontecer.
- Não pense que me intimida. Na hora certa, saberei como agir.
- Se houver hora certa. Está avisada.
- Vou pensar no teu caso. Acalma o teu coração.
- Está avisada.
- Você é um homem doente. Devia se tratar.
- Último aviso.
- Você está cego pelo ódio.
- Pague para ver. Último aviso.
132
Victorino Aguiar

Não há mais como escapar das acusações, são muitas as provas,


de todos os tipos, desde os testemunhos de Vera e Amanda, passando
pelas cópias de conversas entre Fábio e Regina, no zap e em ligações
telefônicas, todas obtidas com autorização judiciais.
Fábio e Regina são acusados formalmente de homicídio
intencional pela morte de Francisco, com o emprego de eutanásia. O
Ministério Público alega que os dois são criminosos de alta
periculosidade e que, em liberdade, representam um perigo para Rosa
e Francisco, como de resto para toda a sociedade, além de colocar em
risco a investigação. As gravações não deixam dúvidas do que ele é
capaz. O defensor requer também que os herdeiros sejam declarados
deserdados, e que o juiz decrete a prisão preventiva de Fábio e Regina.
O juizado está diante de provas plenas, não há como negar o pedido do
Ministério Público e da Defensoria, tanto mais que os crimes foram
cometidos contra vulneráveis - menor e idoso - protegidos por
Estatutos específicos. O juiz aceita o pedido e decreta a prisão
preventiva de Fábio. Este tem uma forte crise de choro, e é retirado
temporariamente do plenário para receber cuidados médicos. Ao
retornar, se declara arrependido e volta a chorar compulsivamente.
Mas isto não impede que ele e Regina, já saiam do fórum algemados e
direto para a prisão, onde aguardarão o julgamento pelo tribunal do
júri. Com base nas provas, o júri poderá condená-los a penas que
variarão de 9 a 12 anos, que serão cumpridas em regime fechado.
Quanto a Fernando e Fabrício, por não terem participado diretamente
da consecução do crime, e por não haver nenhum tipo de prova
material contra eles, o juiz apenas os declara deserdados, por omissão
e comportamento indigno. Desse modo, a partilha ficou restrita apenas
a Rosa e a Júnior.
Depois de formalizados e lançados nos autos o resultado
daquela audiência, o inventário poderá ser iniciado.

133
Victorino Aguiar

Capítulo VIII

Vidas que seguem

Fábio mudou de endereço. Trocou a confortável residência em


que vivia desde que tinha nascido por uma nova residência no presídio.
Foi tirado de um ambiente em que tinha liberdade e acesso a todos os
confortos que o dinheiro e a posição social podem proporcionar. Não
foi uma troca muito agradável. Coube a ele, por enquanto, a pior cota
da herança. Deserdado e condenado, ele fica apartado da herança, da
liberdade, da companhia e da cumplicidade de Regina. A condenação
deles é também uma condenação à separação definitiva do destino dos
dois. Ele seguirá daí para diante um caminho diferente do dela. Ele
amargará na prisão, em regime fechado, os anos a que foi condenado
pelo parricídio. A pior pena, no entanto, o pior castigo será saber que o
filho que Regina espera na verdade não é dele. Fábio terá o dissabor de
descobrir que o verdadeiro pai da criança que Regina dará à luz é na
verdade Dr. Arnaldo. E terá ainda uma agravante: os dois assumirão o
romance, se casarão e, mais adiante, Regina terá mais um filho com
Arnaldo, antes mesmo de ela adquirir a liberdade ao cumprir um sexto
da pena. Isto tudo ele vem a saber através de Fabrício, única pessoa da
família com quem ele ainda mantém contato, nas esporádicas visitas
que o irmão faz a ele.

134
Victorino Aguiar
Mas nada de inútil acontece no universo. Mesmo um evento
traumático como este traz alguma coisa de bom. Preso, Fabio teve mais
tempo para refletir e concluir que Francisco fizera por ele o que
acreditava ser o melhor que podia fazer. Já no tribunal, Fábio teve uma
compreensão menos irracional do drama que o destino lhe reservara.
Percebeu que no fundo ele continuava a amar Francisco com a mesma
intensidade que o amava antes de saber que não era filho biológico
dele. Foi por isso, aliás, que ele não pegou a pena máxima. Foram
sinceras as lágrimas que ele derramou no tribunal, durante boa parte
do julgamento e ao receber a condenação aos 5 anos de prisão. Foi por
causa dessas lágrimas que a pena dele foi atenuada. Também o fato de
ele ter cuidado com denodo do pai, praticamente sozinho, até tomar
conhecimento de que fora mantido por ele na ignorância de não ser
realmente filho biológico dele, certamente pesou na estipulação da
pena. Outra atenuante de muito peso foi o áudio em que Francisco
declara amor profundo pelo filho, e atesta que Fábio foi quem mais se
empenhou na construção do pequeno império pela família. Os cinco
anos em regime fechado a que Fábio foi condenado ficarão reduzidos a
menos de dois anos, após aplicados os direitos garantidos por lei a
quem tenha cumprido mais de um sexto da pena e apresente bom
comportamento. Mas este tempo é suficiente para que Fábio recupere
a razão e a humanidade. Este período foi para ele uma espécie de ano
sabático. Fábio agora é um homem novo. Com selo de qualidade. Em
todos os sentidos. Ele fez significativas descobertas acerca de si próprio
e da natureza humana, neste primeiro ano de prisão. A primeira delas é
que as mulheres não cumprem um papel positivo na vida dele. Elas
sempre trazem dissabores à vida dele. Regina vem mostrar a ele, de
modo definitivo, que a praia dele é outra. Mais uma vez, se confirma a
má sorte dele com mulheres. Elas sempre representaram problemas
para ele, a começar pela mãe, que o abandonou pequeno ainda nos
braços de Francisco. Tudo como vingança por ter sido trocada por outra
pelo marido. A segunda figura feminina que entra em cena, Sara, a
madrasta, o enganou o tempo todo, escondendo dele a condição de
filho não biológico de Francisco. Por causa dela, o segredo da condição
dele de filho não biológico veio a se tornar de domínio público. A ele,
135
Victorino Aguiar
que tinha o legítimo direito de tomar conhecimento deste estigma em
primeira mão, foi sonegado este sagrado direito. Não bastasse isso,
Sara ainda jogou Francisco numa aventura, e colocou em risco o
patrimônio da família, o que resultou na entrega integral em mãos
estranhas de tudo que foi construído com o esforço da família. Depois,
chega Francisca, que lhe roubou o posto de mais querido e que vivia
inventando males para sugar de Francisco o pouco de carinho que este
ainda lhe dedicava. A lista é longa. Rosa, vagabunda, vadia, golpista,
que se valeu de uma barriga obtida criminosamente e de um filho
bastardo para entrar na posse do que não merecia. Esta só entrou na
história da vida dele para usurpar o direito que ele tinha à herança do
pai. Chegou a vez de Regina, que só se aproximou dele para desfrutar
da herança que ele teria direito com a morte de Francisco, e que
mantinha em segredo um caso com o médico da família, de quem
pegou uma barriga, que fatalmente seria empurrada para ele, que a
teria assumido inocentemente, caso o plano dela tivesse dado certo,
tal qual havia sido feito com Francisco. Mas ele já superou tudo isto. Ele
não guarda mágoas, nem ressentimento. Apesar dor, decorrente da
privação da liberdade, são positivas as experiências pelas quais ele
passou até ali. Ele se arrepende sinceramente de ter agido como agiu
em relação ao pai. O ódio finalmente deixa de fazer morada no coração
dele. Reconhece que Francisco e Sara foram generosos com ele, e que,
apesar da má sorte, ele teve ainda muitos momentos de felicidade
junto aos familiares. Ele vai se reinventando, de certa forma, se
conformando com que a vida lhe apresenta. Por ter curso superior,
Fábio é colocado num pavilhão diferenciado. Ele tem direito a visitas
íntimas; bem pode conseguir uma companhia feminina, mas o interesse
dele por mulheres já não existe mais. Enfim, decididamente, as
mulheres são para ele apenas fontes de dor e decepção. A maneira dele
de encarar a própria sexualidade sofre uma radical transformação.
Concorre para isto esse pavilhão em que ele foi colocado, destinado a
condenados com nível superior e de baixa periculosidade.
Aos poucos, Fábio vai se abrindo para novas modalidades de
consórcio afetivo e sexual. Quem sabe, ele não estará apenas dando
vazão à natureza dele, à verdadeira orientação sexual com que
136
Victorino Aguiar
nascera? Para sorte dele, ele não é o único presidiário nesta condição;
há outros com o mesmo estado de espírito dele. Bem, Fábio acaba por
se envolver com um desses presidiários e os dois decidem se casar. O
futuro marido de Fábio já cumpriu boa parte da pena e, em pouco
tempo, também terá direito ao regime semiaberto. O casamento será
realizado no próprio presídio, e será registrado como uma união estável
homoafetiva.

Nas esporádicas visitas que Fabrício lhe faz, Fábio toma


conhecimento de como está o mundo lá fora. Da mesma forma,
confidencia ao irmão as profundas mudanças por que está passando.
Fábio já não é mais um homem amargurado. Fabrício fica contente de
saber que o irmão está em paz, e não se mostra chocado quando toma
conhecimento de que Fabio vai se casar com um companheiro de
presídio.

Regina
Agora, que Fábio ficou órfão da herança deixada pelo pai,
Regina está apartada da boa vida que ele proporcionava a ela. Tempos
difíceis. A gravidez não chega a ser uma pena, um castigo, mas não
deixa de ser um encargo mais duro e um fardo mais pesado para quem
cumpre pena em regime fechado num presídio feminino da Zona Oeste
do Rio de Janeiro. Não há mais interesse da parte dela em esconder,
nem há como esconder, que a criança que ela dará à luz não é filho de
Fábio, mas, sim, de Dr. Arnaldo, que assume a paternidade da criança
sem problemas. Ela dará à luz um menino, poucos meses depois do
início do cumprimento da pena. Então eram verdadeiras as suspeitas de
Vera e Amanda de que Regina tinha um caso com Dr. Arnaldo. Eles se
assumirão como amantes e se casarão ainda durante o cumprimento
da pena dela. A lei é dura, mas não tanto. Na condição de mãe, dona de
bom comportamento, logo Regina terá o direito de cumprir a pena em
regime semiaberto, com o uso de uma tornozeleira eletrônica. De dia,
sob os auspícios do marido, ela trabalhará na Saúde, retornando para a
prisão à noite. Uma nova gravidez, afinal, será um salvo-conduto para a

137
Victorino Aguiar
liberdade condicional. São duas crianças que dependem dos cuidados
maternais. Lei é lei.

Fabrício
Quando Fabrício se deu conta de que a galinha de ovos de ouro
estava prestes a morrer, começou a se empenhar ao máximo na
faculdade. Tinha de terminar o curso de qualquer jeito. Sabia que ia
enfrentar um longo tempo de vacas magras. Não pretendia voar muito
alto. Bastava ter um cantinho para viver, alguma coisa para comer, uma
maconha para fumar. Quem sabe ele não venha a se decidir a morar
em Saquarema? Esta, aliás, é a primeira ideia que lhe ocorre, quando
tem certeza de que terá de contar com os próprios e limitados recursos
intelectuais de que dispõe. Lá, ele terá tudo de que precisa e que o fará
feliz. Quem sabe venha a se envolver com uma artesã que possua uma
barraca na Feira dos Hippies? Afinidades não faltariam. Teriam tudo a
ver um com o outro. Existem artesãos que conseguem tirar uma boa
renda na Feira dos Hippies, vendendo brincos, pulseiras, colares e
outras bugigangas. Muitos artesãos conseguem até comprar dessa
maneira uma casa confortável na área rural ou mesmo na área urbana.
Já imaginaram se ele consegue se envolver com uma artesã, que o
convide para morar com ela numa suíte perto da praia, ou para dividir
com ela uma casinha ao pé da serra, na área rural? Ele não precisaria se
esforçar muito para se adaptar à cidade, porque já está acostumado
com o ritmo e os ares dela, de tanto visitá-la e ficar acampado,
principalmente nos períodos em que ocorrem os torneios e
campeonatos de surfe, o esporte queridinho dele. Se ele resolver morar
lá, antes mesmo de terminar o curso, ele já estará integrado na cidade.
Logo uma dondoca o contratará para ser o treinador pessoal dela. Será
fácil conseguir uma vaga no ônibus universitário para cumprir os dois
anos que ainda faltam para ele concluir o curso. A ida e vinda no ônibus
será uma verdadeira festa para ele. Através da dondoca, ele poderá
conhecer uma liderança política local, que o convidará certamente para
ser cabo eleitoral. Trabalho leve. Nada que o estresse. Daí para entrar
na prefeitura pela janela será um pulo. Conseguir um contrato na
prefeitura, meu Deus, que glória! Empregado, com uma renda fixa,
138
Victorino Aguiar
pequena que seja, será um partido bom para a hippie que tem uma
barraca na Feira. Casamento, na certa. A esta altura, ele já será um
artesão, já a ajudará a produzir as mercadorias que os dois venderão na
Feira. Ele até poderá ajudá-la a vender o que produzirem, trabalhando
na barraca, nas noites dos fins de semana, principalmente na alta
temporada. Fabrício será um homem de bem, e levará a vida com que
sempre sonhou. Tomara que ele consiga isso e seja feliz. A vida é
simples demais, a gente é que complica. Cachoeiras, trilhas,
parapentes, ondas - as melhores do mundo-, gente bonita. Saquarema
é um paraíso. Só não vai dar pra voar muito alto, mas voar não é
mesmo a praia dele. Voar é com os socós, as imponentes aves que
sobreviveram aos predadores e ainda enfeitam as luxuriantes lagoas da
cidade. Elas também não voam muito alto, nem para muito longe. E
nem precisam fazer isto. E talvez esta seja a explicação para que elas
tenham sobrevivido aos humanos. O negócio de Fabrício é o mar.
Mesmo gelado e bravio, o mar nunca será um risco para ele; ao
contrário, será sempre uma fonte de prazer. A simples contemplação
do mar, uma centena de braçadas pela manhã, ou uma surfada básica
antes de começar o expediente, qualidade de vida - estas coisas não
têm preço. Em Saquarema, ele estará em casa.
Tomara que ele consiga iniciar a nova vida que se apresenta a
ele. E que consiga ser feliz. Ele pede tão pouco. A vida é muito simples,
a gente é que complica

Fernando
Fernando vai bem, obrigado. Faz muito bem a ele os ares da
terrinha. Agora mesmo é que ele não tem mais nada a ver com o Brasil.
Os pais estão mortos; Francisca está morta; Fábio está preso, e vai
permanecer preso por muito tempo; com Fabrício, nunca teve mesmo
muita conexão; imagina então com Júnior, o irmão caçula.
Ele não se incomodou muito com o fato de não ser
contemplado com nada do espólio. Nunca morreu mesmo de amores
pelo patrimônio do pai. Até porque o que ganhava com o cargo na
União Europeia já lhe tornara possível formar um pequeno patrimônio,
que ele decerto saberia multiplicar com o tempo. Além disso, ele dava
139
Victorino Aguiar
mais importância ao status, e também neste quesito ele já tinha dado
um grande passo. O fim do processo de inventário deu a ele o que ele
mais queria. Talvez a melhor parte. Ele teve direito à tão sonhada
liberdade. Cortava de vez o cordão umbilical e os laços familiares.
Agora, ele estava definitivamente desobrigado de atravessar o Oceano
Atlântico para visitar a família que, para ele, nem mais existia. Bye, bye,
Brasil.

Rosa
Enquanto não entra na posse do que lhe cabe da herança, para
se sentir viva, superar a tristeza e não deixar que esta se eternize e
piore a situação do filho, Rosa se dedica com exclusividade à vida
profissional e aos cuidados com Júnior. O menino certamente
necessitará de cuidados redobrados para que a dolorosa experiência
por que passou não venha a prejudicá-lo irremediavelmente no futuro.
O inventário é uma fonte de preocupação para Rosa. O
processo não anda na velocidade desejada, tudo anda muito devagar,
apesar da ajuda de Nelson; é muita burocracia. Rosa não vê a hora de
tudo ser resolvido, não vê a hora de a partilha ser feita, para que ela
possa finalmente dar início à nova vida que a espera. Ela garante a si
mesma que, quando isto acontecer, ela encontrará um meio de ajudar
as amigas. Talvez fosse bom abrir uma empresa de prestação de
serviços médicos domiciliares em sociedade com elas, e colocá-las
como gestoras.
Já foi solicitado ao juiz um alvará autorizando a retirada dos
valores existentes nas contas bancárias de Francisco, para pagar as
despesas do processo. A situação de Amanda também a preocupa. Ela
insiste em que Amanda deve aceitar a oferta de Vera de ir morar com
ela. Pelo menos por um período, até que as coisas melhorem.
Amanda não enxerga uma solução melhor. Na realidade, ela
nem tem outra opção. Desocupa a casa e pega de volta o que resta da
caução, valor equivalente a um mês de aluguel. Vende a maior parte da
mobília e guarda o que obtém com a venda para o futuro. Este valor
servirá para pagar a mudança e custear as despesas do dia a dia que

140
Victorino Aguiar
terá a partir de então. Rosa tira um peso das costas, com a decisão de
Amanda. Ela queria tanto retribuir a ajuda desinteressada das duas...
Os dias transcorrem com lentidão para Rosa. De casa para o
trabalho, do trabalho para casa. Ela ainda não assimilou a tragédia que
foi ter perdido o companheiro; era duro ter de criar um filho que foi
privado da convivência com o pai desde o nascimento. É como se o filho
já tivesse nascido órfão.
Mas a luz volta a brilhar no horizonte. É com alegria que ela
recebe uma ligação de Nelson, convocando-a para uma conversa a
respeito do inventário. Parece que as coisas andaram. Ele a coloca a
par de que, em menos de quinze dias, ela entrará na posse da herança
e será nomeada tutora de Júnior. Nelson alonga a conversa com Rosa.
Na verdade, nem havia necessidade de uma conversa daquela fora do
ambiente da Defensoria. O que Nelson queria era um pé para estreitar
a proximidade física entre os dois.
- Você andava meio tristinha. Eu já estava até preocupado com você.
Agora vai ficar tudo melhor. Como é que você está de cabeça?
- Eu ando muito abatida, é muito problema, muita coisa para a minha
cabeça. Às vezes, parece que ela vai explodir, me dá até vontade de
chorar.
O cérebro é uma máquina misteriosa. A simples menção da
palavra chorar faz os olhos de Rosa se encherem de lágrimas. Coitados
dos homens. Eles ficam desconfortáveis diante dessas cenas. Mulheres
chorando, na presença de homens, enfraquecem muito o gênero
masculino. Principalmente se essas cenas contarem com a participação
de homens com o perfil de Nelson. E se os olhos desse homem já
brilhavam antes disso, a coisa complica; mais desconfortáveis ainda os
homens ficam. Nelson está fraquinho. E tenta consolá-la:
- Isso tudo vai passar, Rosa. A vida não se acaba, nem para quem
morre, nem para quem fica. Se eu pudesse, faria tudo ao meu alcance
para ver seus olhos brilharem. Tente se divertir, passear um pouco, se
desliga um pouco, você ainda tem muita coisa para realizar, muita vida
para ser vivida neste plano.
Ele enxuga carinhosamente as lágrimas dela, e pergunta pelas
amigas:
141
Victorino Aguiar
- E Vera e Amanda, como elas estão?
- As coisas não andam boas para Amanda. A mãe dela morreu e ela está
com dificuldade de arrumar trabalho. Está morando de favor na casa de
Vera. Pelo menos, Vera não paga aluguel. Felizmente, as duas estão se
entendendo muito bem. Elas estão dividindo as tarefas de casa, enfim,
estão tocando a vida, na medida do possível. A situação de Amanda
estava complicada, porque ela dependia da mãe para tomar conta do
filho, Lucas, e também para pagar parte das despesas de casa. Eu ajudei
como pude, emprestei a ela uma pequena quantia. Queria poder ajudar
mais, porém, as coisas também não andam muito boas para mim.
Agora, graças a Deus, ela está melhor. Tirando o luto pela morte da
mãe e a escassez de plantões, ela está bem, vai levando. Por sorte, o
menino dela também se adaptou à nova casa. Vera o trata como a um
filho, e ele também a adora.
Nelson sugere a Rosa que eles se encontrem mais fora do
ambiente da Defensoria, confessa que gosta da companhia dela, que se
sente bem na presença dela. Ela desconversa, alega que tem pouco
tempo para atividades deste tipo. Durante a semana, ela trabalha todos
os dias, nos turnos da manhã e da tarde. Passa o dia todo na escola do
Estado, nem almoça em casa. Sai de manhã cedinho e retorna no final
da tarde. De segunda a sexta, o menino fica o dia todo sob os cuidados
da babá. Nos fins de semana, ela tem de confeccionar os testes e as
provas. Depois, tem de corrigir tudo e lançar as notas nos diários.
Parece que o trabalho nunca tem fim. Ela só tem os sábados e
domingos para dar uma geral na casa, porque a grana é curta, e não dá
para ter uma empregada em tempo integral. De 15 em 15 dias, ela se
dá ao luxo de dispor de uma diarista. Em resumo, tem muito pouco
tempo disponível. De qualquer modo, sempre pode aparecer uma
oportunidade. Ele sugere um sábado à noitinha, ela pode levar o filho,
se quiser. Ela não acha conveniente que o filho vá com ela, porque ele é
muito levado, e dorme muito cedo:
- A gente vai se falando pelo zap.

Aceitar a oferta de Vera se revela uma ótima decisão para


Amanda. A casa dela é grande e confortável, com dois quartos
142
Victorino Aguiar
enormes, um dos quais vazio. Este está sendo usado por Amanda e
Lucas. A sala é também bem ampla, há espaço para colocar alguma
coisa que Amanda trouxe da casa antiga. Amanda e Vera compartilham
o mesmo hábito de não ter televisão na sala. A única televisão que
Amanda tem foi colocada no quarto que ela divide com o filho. Apesar
de Lucas ter a cama dele, ele dorme na cama da mãe, onde os dois
assistem à televisão juntos.
Rapidamente, os três se adaptam à nova rotina. Amanda, no
entanto, não pretende ficar muito tempo morando na casa da amiga.
Assim que ela se aprumar, pretende alugar um cantinho pra ela e o
filho. Enquanto isso, vai se virando como pode, substituindo alguma
colega que precise faltar ao plantão. Dessa forma, ela consegue ajudar
a amiga nas despesas. Quando Amanda consegue um plantão, Vera
ajusta o horário dela para que Lucas não fique sozinho. Ainda que ele
esteja com oito anos, e já tenha maturidade para ficar algumas horas
sozinho, não é aconselhável que passe a noite sem a companhia de
uma delas.

As duas conseguem viver num clima de harmonia, dividindo


igualitariamente as obrigações domésticas. Elas não são muito
expansivas, praticamente não têm amizades muito próximas. As únicas
visitas que elas recebem são de Rosa e Júnior. Uma vez ou outra, Vera
recebe a visita de Itamar, colega de trabalho dela na prefeitura. O rapaz
a visita com regularidade, mas são visitas de médico. Nestas ocasiões,
Amanda costuma deixar os dois a sós. Por mais que Vera tente colocar
Amanda na conversa, esta acredita que está roubando um pouco da
privacidade da amiga.
Amanda julga haver algum carinho entre dois. Sente-se um
pouco intrusa. Teme que possa estar rolando alguma coisa entre os
dois:
- Você está tendo alguma coisa com este rapaz?
- Claro que não, somos apenas colegas de trabalho. Você já sabe disso.
Trabalhamos juntos no município. Às vezes, ele me dá uma carona. Por
quê?

143
Victorino Aguiar
- Eu não gostaria de ser surpreendida com a notícia de que está rolando
alguma coisa entre vocês. É melhor eu ir me preparando para encontrar
outro ninho.
- Amiga, você está vendo coisas. Por que está me perguntando isto? De
onde você tirou esta ideia? Somos amigos, só isso.
- Tudo bem. Deixa pra lá. Só perguntei.

Já se passou algum tempo que os contatos com Nelson


diminuíram muito de frequência. Os vínculos formais - profissionais e
jurídicos - entre os dois já não existiam mais. A rigor, pouco havia a ser
tratado entre eles. Eles tinham algumas afinidades, mas não havia
nenhuma desculpa para que continuassem a se encontrar. Mas os olhos
de Nelson queriam continuar a brilhar para Rosa. E para isto, era mister
que os dois se encontrassem. Nelson continuou a procurar uma brecha
para manter o contato entre ele e Rosa. Volta e meia, ele mandava a
ela pelo zap uma figurinha carregada de carinho, que era sempre
retribuída por ela com outra menos efusiva.
Rosa pensa sempre nas palavras de Vera e Amanda. Elas
também perceberam que os olhos de Nelson ficavam muito brilhantes
quando eles se dirigiam para ela. Dessas coisas, Nelson não conseguia
se defender. A faculdade de Direito não ensina aos futuros advogados
como disfarçar estes estremecimentos, estes ataques disparados contra
o coração da gente. O coração iguala a todos. Ele pode ser um
excelente defensor público, pode ter se formado na melhor faculdade
de Direito do mundo, mas nada disto terá utilidade para ele em
algumas situações. Apesar de ser advogado e defensor público, ele não
consegue defender a si próprio desses picos de energia. Ninguém tem
como se defender disso. Rosa também não tem como se defender das
investidas de Nelson, já tem algum sentimento por ele. Também o
coração dela altera os batimentos e faz brilhar um pouco os olhos dela,
quando ela recebe estas figurinhas que Nelson não cansa de mandar
para ela. Numa das investidas dele, ela retribui com uma figurinha mais
efusiva. Isto é tudo que basta para Nelson a convidar para um almoço.
A desculpa é a mais esfarrapada possível. Ele pede a ela que leve o
filho. Ele poderia ter sido romântico e dito a ela que os olhos dele
144
Victorino Aguiar
perderam o brilho, e que eles queriam novamente brilhar para ela. Mas
ele se limitou a dizer que sentia a falta da presença dela. E isto também
bastou para ela. Ela aceita o convite para o almoço e leva o menino. O
menino já conhece o defensor; Rosa já o levara uma vez na Defensoria,
mas os dois não chegaram a conversar. Nelson quer saber dos planos
de Rosa.
Vida que segue. Por ora, ela ainda não tem nada muito
definido, são só conjeturas. A única coisa de que ela tem certeza é que
venderá a casa onde Francisco morava. Não pretende morar nela.
Melhor iniciar vida nova em outra residência. A casa só lhe trará
recordações do sofrimento de Francisco. Pretende vendê-la tão logo
seja possível. Ela manterá na administração dos bens herdados a
mesma administradora que prestava serviços para Francisco. De médio
prazo, por enquanto, ela tem apenas um projeto em mente. Mais
adiante, pretende abrir uma escola para oferecer creche, maternal e
ensino fundamental do 1º. ao 9º. ano, primeiro e segundo segmentos.
Esta será também uma maneira de ocupar o tempo e retribuir ao
mundo, em serviços, parte da herança que ela e Júnior herdaram.
Quanto a Amanda e Vera, elas estão superbem, agora, moram na
mesma casa. Amanda ficou numa situação muito delicada com a morte
da mãe, porque a aposentadoria que esta recebia ajudava a
complementar o pagamento das despesas da casa. Além disso, a mãe
cuidava do menino quando Amanda dava plantões. Se não fosse a
ajuda de Vera, Amanda ficaria durante muito tempo em maus lençóis.
Rosa diz que, assim que tomar posse da herança, pretende constituir
uma MEI para a prestação de cuidados médicos em domicílio, e colocar
Amanda e Vera como sócias e gestoras da firma. Será uma forma de
agradecer às duas a inestimável ajuda que elas prestaram no momento
tão difícil que ela teve de enfrentar e, também, uma maneira de
manter, estreitar e consolidar a amizade das três. Uma amizade que ela
pretende que seja para a vida inteira. Mas ela ainda não conversou a
respeito disso com as duas. Vai esperar que se cumpram todas as
formalidades e que ela entre realmente na posse do que lhe cabe.
Assim que estiver tudo resolvido, ela chamará as duas para acertar isto.
Na verdade, a firma será das duas, porque Rosa não terá nenhum tipo
145
Victorino Aguiar
de envolvimento com a firma; a área dela é a Educação. Ela não
abandonará o magistério, continuará a lecionar no Estado.

Júnior está um pouco retraído. Ouve a conversa dos dois com


atenção. Nelson tenta colocá-lo na conversa e puxa assunto com ele:
- E você, como está? Ainda não sei a sua idade. Quantos anos você
tem?

Júnior dá um sorriso e responde da mesma forma que


respondera à prima de Francisco no velório. Com as palmas das mãos
voltadas para Nelson e os dedos apontados para cima, ele mostra cinco
dedos da mão esquerda e dois dedos da outra. Rosa manda que ele
diga a idade com palavras:
- Ele pegou a mania de dizer a idade desta forma. Júnior, diga a sua
idade com palavras para ele.
- Tudo bem, eu entendi. Sete anos. Agora, quero ver você dizer seu
nome fazendo gestos.
- O nome não dá - responde Júnior, com um sorriso no rosto. - Meu
nome é Francisco. O mesmo nome de meu pai.
- É um nome bacana.
- Você tem pai? Qual o nome dele?
- Tenho pai, sim. O nome dele é Teodoro.
- Eu não tenho pai. Meu pai morreu. Ele me deixou.
- Seu pai não morreu. Ele não está morto, ele continua vivo. O corpo
dele é que desapareceu, agora ele vive com outro corpo. Todo corpo
um dia desaparece. Até a Terra, um dia, vai deixar de existir, vai
desaparecer e se transformar em outra coisa. Desaparece aqui e
aparece em outro lugar. Essa é a lei do Universo. Seu pai não
abandonou você, e também não é culpado nem responsável por ter de
trocar de corpo. Você pode continuar a amá-lo.
– Mas eu amo meu pai morto, e amo você também.
- Seu pai está no céu. Nós todos vamos trocar de corpo um dia. Vamos
todos para o céu. Você vai encontrá-lo no céu.
- Mamãe já me falou isso. Mas eu quero ter um pai vivo, igual a todo
mundo. Mamãe, eu vou ter um outro pai aqui na Terra? Você vai
146
Victorino Aguiar
arranjar um pai pra mim? Eu quero ter um pai aqui na Terra, um pai
vivo.

Rosa fica desconcertada. Antes que ela responda ao menino,


Nelson tenta, sem sucesso, mudar de assunto:
- Acho que vou pedir um sorvete pra nós. Você gosta de sorvete?
- Muito. Quero de coco. Você tem irmão?
- Não, não tenho irmão.
- Nem filhos?
- Por enquanto, não, Júnior. Não sou casado. Ainda.
Os olhares de Nelson e Rosa se cruzam. O ambiente fica mais
iluminado. Mas o interrogatório ainda não acabou. Júnior continua
disparando uma pergunta atrás da outra:
- Onde você mora? Você mora com seu pai e com a sua mãe?
- Não, eu moro sozinho.
- Por que você mora sozinho?
- Essa, eu já respondi. Moro sozinho porque não sou casado, ainda.
- Seu pai e sua mãe moram onde? Por que você não mora com seus
pais?
- Meu pai é juiz, mora em outra cidade. Minha mãe mora no céu,
também, igual ao seu pai.
- Eu também quero um irmão. Mamãe, eu vou ter um irmão? Eu quero
um irmão. Seu pai mora com quem, então?
- Papai mora com a esposa dele e com os filhos dela.
- Ué, a esposa do seu pai não é sua mãe?
- Não, meu pai casou de novo. E não tem filhos com a nova esposa. Ela
é que tem filhos, mas eles não são meus irmãos.

A conversa está ficando complicada para Nelson. Mas parece


que eles estão conseguindo se entender. O defensor é apaixonado por
crianças, não por acaso ele se especializou na vara de família. Francisco
é uma criança esperta, inteligente, muito meiga. Os olhos de Nelson
também brilharam para Júnior. Nelson amou o menino desde o
primeiro contato. Foi amor à primeira vista. Prontamente
correspondido. Solteirão, ele sempre agasalhou o sonho de ser pai, mas
147
Victorino Aguiar
a dedicação integral aos estudos e à carreira de certa forma o impediu
de dispensar uma atenção maior à vida sentimental. Nos fins de
semana, ele levava pilhas de processos para casa, para poder dar conta
das obrigações. Além disso, para ascender na carreira, foi preciso
aceitar lotação em outras comarcas, quase sempre distantes da capital.
A conjugação dessas condições era a responsável pela não realização
do sonho dele de constituir família e ser pai.
Júnior quer brincar um pouco no parquinho que fica bem em
frente às mesas onde eles estão sentados. Rosa faz as recomendações
de sempre e libera o menino.
Ele está numa fase muito bonita, mas também muito
trabalhosa. Tudo pergunta, tudo quer saber. Nelson acha supernormal
o comportamento de Júnior. Ele retomará a conversa com Rosa e logo
dará um jeito de entrar no assunto que lhe domina o espírito:
- É um bom sinal, esta enxurrada de perguntas. Estou encantado com
teu filho. Não vejo a hora de estabelecer um relacionamento afetivo
com alguém e realizar o meu sonho de ser pai. Se demorar mais um
pouco, vou acabar ficando pra titio.
Rosa recebeu bem a tirada de Nelson. Vem aí um largo sorriso.
E mais um pouquinho que isso:
- Difícil, alguém na sua condição ficar para titio.
- Isso, é o que você pensa. Os tempos são outros; hoje, as coisas estão
mais fáceis, é verdade, mas não para quem queira algo mais sério. As
relações entre homens e mulheres estão muito superficiais e vulgares,
quase sempre baseadas em interesses sexuais e econômicos.
- Eu nem cogito de iniciar um relacionamento. Estou ainda muito
mexida com a morte de Francisco. E é muito complicado iniciar um
relacionamento tendo um filho com a idade que tem o Júnior. Os
homens querem relacionamento com mulheres que não tenham filhos
menores.
- Mas eu não vejo nenhum tipo de impedimento; para mim não é
impedimento nenhum, uma mulher ter um filho menor. Pelo contrário,
considero isto até uma vantagem, porque demonstra que a mulher já
tem maturidade, responsabilidade, experiência, compromisso. Além de
já ter uma companhia para um eventual filho do novo companheiro. Se
148
Victorino Aguiar
o filho for uma criança como o Júnior, melhor ainda. Júnior é o enteado
que muitos gostariam de ter.
Nélson não está mentindo. Ele gosta realmente do menino. E se
Rosa abrir a guarda, ele mergulha de cabeça num relacionamento sério
com ela. Ela que se cuide, ele está apaixonado. E não tem pressa. Ele
sabe que ela ainda está vivenciando o luto, mas também sabe que tudo
passa. Aliás, já está passando. Ela já se pega vez ou outra imaginando
coisas com ele. É a vida.

Ao final do encontro, Nelson dá uma carona a Rosa e Júnior e


deixa os dois na porta de casa. Nelson faz um carinho na cabeça de
Júnior e diz que gostou muito dele. O menino está encantado com
Nelson. Nem bem ele e a mãe entram em casa, Júnior já comenta com
a mãe a impressão que Nélson lhe causou:
- Ele é legal. Gostei dele, mãe. Vocês estão namorando?
- Ainda não.
- Poxa vida! Quando é que vocês vão começar a namorar?
- Que isso, Júnior? Você enche a gente de pergunta. Nossa! Isso
enlouquece a gente!
- Eu gostei dele, mamãe, ele é legal.
- Eu disse que ia namorar ele, por acaso?
- Você disse que ainda não namorava, é a mesma coisa que dizer que
vai namorar.
O menino estava com a razão. Rosa se deixou trair pelas
palavras. Falara com o coração. O coração não mente nunca. Nem os
olhos. Os dela já não eram os mesmos, estavam diferentes, com um
brilho parecido com o brilho dos olhos de Nelson. E dava para ver de
longe. Aquele encontro fez bem a todos. O estado de espírito de Rosa
já era outro. O amor tem seu jeito peculiar de se fazer presente e impor
seu reinado. Conhece todos os percalços pelos quais tem de passar e
superar; sabe, também, de antemão, os atalhos que deve pegar, para
unir quem tenha de ser unido. Para o amor, tempo, distância, posição
social, idade, cor da pele, sexo – nada disso representa obstáculos
intransponíveis. Toda hora o mundo nos mostra isso. Mas há quem não
enxergue isto e tente resistir.
149
Victorino Aguiar

Vera e Amanda
Vera e Amanda são duas pessoas desse tipo, resistem quanto
podem a se relacionar afetivamente com alguém. Será que elas
conseguirão? Parece que Amanda não leva muito a sério a
determinação de Vera de não se envolver com ninguém.
Apesar de Vera não dar sinais de que possa não respeitar e não
seguir a decisão dela, Amanda não se sente segura, sempre conta com
a possibilidade de isto vir a acontecer, e ela ter de abandonar a casa.
Bom é que ela se prepare para esta possibilidade. Numa das conversas
que as duas mantêm, enquanto elas assistem displicentemente e sem
compromisso à televisão, Amanda comenta com ela que já está
sondando as ofertas de casas para alugar. Quer estar preparada para
quando ela finalmente se aprumar na vida. Por mais que Vera tente
tranquilizá-la quanto a isto, Amanda continua preocupada.
- Minha amiga. Fica tranquila. Você pode ficar aqui o tempo que quiser,
o tempo que precisar.
- Mas não é justo, eu tenho de seguir o meu caminho. Não posso privar
você de viver sua vida. Se você se envolver com alguém, você tem o
direito de se acertar com ele. Não acho justo você se privar de ser feliz
com alguém, por minha causa.
- Minha amiga, eu nunca estive tão feliz na minha vida. Se depender de
mim, você mora aqui para sempre. Você e Lucas já fazem parte da
minha família. Para mim, vocês são a minha família. Quero que vocês
sejam felizes, de preferência, aqui comigo, ao meu lado.
- Eu também estou muito feliz, amiga. Lucas também.

Realmente, excluindo a tristeza por causa da morte da avó,


Lucas está muito satisfeito na casa de Vera. Ele já se acostumou à nova
casa, e não gosta muito da ideia de mudar dali. As crianças são assim,
mesmo; se estão perto de quem as ama e as trata bem, elas estão no
lugar certo. A casa importa pouco, Lucas tem praticamente tudo de que
precisa naquela casa. Este é um bom argumento a favor de Vera:
- Bem, se é para o bem de todos e para a felicidade geral da família,
diga a nós dois que você fica – brinca ela.
150
Victorino Aguiar
- É tudo que eu quero, amiga. Mas peço que me prometa, por favor,
que se vier a se envolver com alguém não deixará de seguir adiante por
minha causa. Tudo pode acontecer. Você pode de uma hora pra outra
encontrar alguém que mexa com seu coração. Pode mudar de ideia e
querer casar um dia.
- Não penso nem em namorar, que dirá em casar. Quer saber quando
me envolverei com um homem? NUNCA! Isto já está resolvido dentro
da minha cabeça e do meu coração. Já tive decepções suficientes.
- Então somos duas. Mas me prometa, amiga.
- Não posso prometer isto. Nunca me envolverei com outra pessoa.
- Como assim, com outra pessoa? Você já está envolvida com alguém?
- Amanda, é melhor a gente não conversar sobre isso. Não tem a menor
importância. Vivemos bem, os três. Somos uma família. Somos felizes.
É o que basta. Nem amigos, eu tenho; tirando Itamar, o colega de
trabalho da prefeitura, praticamente nem converso com ninguém.
Aliás, nosso círculo de amizades é restrito a Rosa, Nelson e Itamar, já
reparou? Nem visita, eu recebo. Já percebeu isto?
- Sim, já percebi. Perguntei por perguntar. Vamos mudar de assunto.
Melhor, vamos continuar a assistir ao filme. Melhor assim.
A segurança com que Vera afirmara que nunca se relacionaria
afetivamente com alguém impressionou bastante a amiga. Esta
conversa fica martelando na cabeça de Amanda por um bom tempo. As
últimas palavras da amiga soam um pouco enigmáticas para ela; mas o
enigma se decifrará muito mais rápido do que Amanda imagina.

As duas já se habituaram definitivamente a assistir à televisão


no quarto de Vera, que gosta da ideia de ter com quem dividir e
comentar os programas e filmes a que assistem. Para Amanda, esta é
uma maneira de não interferir no sono do filho. Mais do que
compartilhar a programação, as duas aproveitam estes momentos para
conversar amenidades e trocar abobrinhas. São papos que varam a
madrugada, muitas vezes elas acabam dormindo juntas. Numa dessas
vezes, quando elas despertam de madrugada, se descobrem abraçadas,
com os corpos totalmente grudados, em posições não muito usuais.
Elas nada comentam; Amanda se levanta e vai para o quarto dela
151
Victorino Aguiar
dormir com o filho. Mas o impacto foi forte no espírito dela. Ela demora
um pouco para voltar a dormir. Sente que algo indefinível está
acontecendo dentro dela. Ela está confusa.

Vera dá dois plantões no município, hoje é um desses dias.


Amanda se encarrega de ajudar nas tarefas domésticas e cuidar de
Lucas. Quando acontece de haver uma chance de ela cobrir alguma
folga ou falta aos plantões de colegas e conhecidas, se o dia não
coincidir com o dia que Vera dá plantão, Amanda arruma mais um
dinheirinho. Quanto a Itamar, de certa forma Amanda já se acostumou
à amizade de Vera com o rapaz. Ela o vê algumas vezes, quando ele traz
Vera de carona e a deixa no portão. Às vezes, ela vai até a calçada e
troca duas ou três palavras com ele. Normalmente, ele nem sai do
carro. Outras vezes, ele sai do carro e fica conversando com Vera um
pouco na calçada, encostado no capô. Raramente ele entra um pouco
para tomar um copo d’água, um café ou fazer um lanche.
Infelizmente, ocorreu que, numa das vezes que ele saiu do
carro e ficou um tempo conversando com Vera na calçada, ele mexeu
carinhosamente nos cabelos de Vera e depois se beijaram na hora da
despedida. Vera estava de costas para Amanda, que teve a nítida
impressão que eles tinham se beijado na boca. Aquilo despertou em
Amanda o pior sentimento em relação ao futuro afetivo de Vera. Os
temores de que a amiga viesse a se envolver com algum homem
voltaram a assombrá-la. Na verdade, ela já havia desconfiado que entre
eles havia mais do que uma simples amizade de colegas de trabalho.
Nas conversas que os dois mantinham nas raras visitas de médico que o
rapaz costumava fazer, ou quando ele entrava um pouco ao trazê-la de
carona, muitas vezes Amanda julgou ver carinho demais na maneira
com que eles se olhavam. As suspeitas de Amanda de que Vera e o
rapaz têm algo a mais que uma amizade aumentam. Isto alimenta a
insegurança dela:
- Você está tendo alguma coisa com este rapaz?
- Claro que não, somos apenas colegas de trabalho. Você já sabe disso.
Trabalhamos juntos no município. Às vezes, ele me dá uma carona. Por

152
Victorino Aguiar
quê? Ainda não acredita? Você não está me atrapalhando em nada,
Amanda, pelo amor de Deus.
- Eu não gostaria de ser surpreendida com a notícia de que está rolando
alguma coisa entre vocês. É melhor eu ir me preparando para encontrar
outro ninho.
- Amiga, você está vendo coisas. Por que está me perguntando isto?
Somos amigos, só isso.
- Amigos se beijam na boca? Isto é novidade pra mim.
- Eu não beijei ninguém na boca. Apenas nos beijamos nas bochechas.
- O que eu vi foi outra coisa.
- Você está com ciúmes de mim, ou eu estou sonhando?
- Não estou, não. Só fiquei decepcionada, porque você quase me jurou
que nunca ia se envolver sentimentalmente com ninguém.
- Mas eu não estou envolvida sentimentalmente com ninguém. Você
está com ciúme de mim. Claro que está. Só pode ser.
- Nada a ver. Você jurou que não se envolveria com ninguém. Me
enganou. Melhor eu ir me preparando mesmo. Não quero te
atrapalhar. Só isto. Acho melhor assim.
Amanda começa a chorar. Vera fica surpresa, não sabe como
reagir. Amanda se recompõe:
- Desculpe, ando muito sensível. Acho que ainda não digeri bem a
morte de mamãe.
O episódio é logo esquecido. Elas continuam a manter a mesma
rotina de sempre, principalmente à noite. As duas já não conseguem
mais dormir separadas. Não demorará muito, e elas partirão para as
primeiras demonstrações de carinho através dos olhares e dos toques.
Depois disto, chegarão aos primeiros afagos, às mexidas recíprocas nos
cabelos. Daí, para os primeiros beijos, pouco tempo passará. Para
encurtar a história, o amor baterá o martelo, e dirá a última palavra.
As duas se descobrem apaixonadas. E agora? Bem, agora, a
prudência manda que elas mantenham este amor em segredo; no
entendimento delas, para preservar o menino e a imagem delas. Agora,
Amanda e Vera já sabem com certeza o sentimento que as une. Não há
como negar. Elas deviam saber que é da natureza do que é secreto vir à

153
Victorino Aguiar
tona, principalmente quando a matéria-prima do segredo é o amor. Os
olhos do defensor público que o digam.
Depois que as duas se assumem, Amanda fica sabendo que
Vera vinha alimentando a ideia de ser mãe. Faltava apenas definir como
ela faria isto. Amanda sugere que ela recorra a um banco de sêmen.
Não quer nem pensar que Vera vai ser penetrada por um homem:
- Quanto a isto, pode relaxar. Jamais me deitarei com um homem.
- Eu sei, mas esta amizade de Itamar com você me incomoda, vocês são
muito carinhosos. Não gosto.
- De novo, está com ciúmes? Agora você não tem mais motivos para
desconfiar de nós dois. Está com ciúmes? De novo?
- Estou, sim, e daí? Você jurou que não se envolveria com ninguém.
Nada de muita intimidade com ele. Nem com ninguém.
- Tolinha, minha amizade com ele é de irmãos. Ele está me dando apoio
para o projeto da maternidade.
- O quê? Como assim? Que tipo de apoio? Vocês vão transar?
- Meu amor, ele é gay, desde criancinha. Jamais ele se deitaria comigo.
Minha ideia é fazer a autoinseminação, há muito tempo. Não vejo
problema de ele doar o esperma. Ele é uma pessoa saudável, tem bom
coração, não pretende ser pai. É independente financeiramente. Tem
todas as condições.
A ideia de fazer a autoinseminação começou a nascer quando
Vera ouviu a acusação feita a Rosa por Fábio; depois de se informar
bastante a respeito do assunto, a ideia cresceu. Ela não gostava de se
imaginar penetrada por um homem, tremia só de pensar. E só aceitaria
realizar o sonho de ser mãe se fosse através da autoinseminação. A
única pessoa em quem ela pode confiar é Itamar. Itamar, na verdade,
apesar de ser muito discreto e ter poucos trejeitos femininos, é mesmo
gay desde criancinha. Ele já foi sondado por Vera e aceitou ser o doador
do esperma para a autoinseminação. Vera garante a Amanda que ela
não será penetrada pelo rapaz:
- Sou tua. Só tua, para sempre. Te amo.
- Também te amo! Muito!

154
Victorino Aguiar
As duas resolvem oficializar uma união estável entre elas, e
promover uma pequena solenidade com a presença de alguns colegas
de trabalho e, é claro, Rosa e Nelson. Elas torcem para que os dois se
acertem também. O defensor arrasta as duas asas para Rosa; elas ficam
felizes com isso, porque sabem que a amiga merece ser feliz. Ela já
sofreu muito com tudo que aconteceu. O ideal é que Rosa e Nelson
aceitem ser os padrinhos do bebê que elas terão. Quem sabe, eles
também não terão um filho? Júnior vive pedindo a Rosa um pai vivo e
um irmão. Lucas também sonha com um irmão. Lucas e Júnior são
amigos demais, mas não são irmãos. Se Rosa e Nelson tiverem um filho,
as duas vão pedir pra elas serem as madrinhas. Na próxima visita de
Rosa, as duas conversarão melhor com ela. O bebê de Vera e Amanda
terá duas mães; os filhos de Nelson e Rosa terão duas madrinhas.
Tempos modernos. Elas também pretendem propor a Rosa que seja
feita uma única solenidade para os dois casamentos. Já pensou, que
chique?

Finalmente é feita a partilha. Rosa toma posse da herança e se


torna tutora da parte de Júnior. Já se passou mais de um ano que
Francisco partiu. Ela já se permite imaginar num novo relacionamento.
Se dependesse da pilha de Amanda, de Vera, de Júnior, e até de
Lucas, os dois já estariam casados, há muito tempo. Para Júnior, o
casamento de Rosa com Nélson garantiria a chegada de um irmão para
ele.

Vera e Amanda estão radiantes. Finalmente, Rosa e Nelson vão


ter seu primeiro encontro com uma pauta totalmente desvinculada de
assuntos formais. Eles vão passar a tarde de domingo juntos. Por ser
domingo, Rosa não conta com a ajuda da babá. Júnior quer ir com eles,
mas Rosa prefere deixá-lo na casa das amigas. Aliás, a ideia foi de Vera
e Amanda. Amanda está sozinha em casa com Lucas, porque Vera está
de plantão. Claro que elas estão torcendo por Rosa. Elas têm muitos
motivos para torcerem pela amiga. Os meninos ainda não se conhecem,
estão na mesma faixa etária, e vivem situações muito parecidas do
ponto de vista familiar. É bom que fiquem amiguinhos, porque tudo
155
Victorino Aguiar
indica que Rosa e Nelson já estão começando a se acertar. Sem a
presença de Júnior, Rosa e Nelson ficarão mais soltos. Amanda não
perde a chance de pôr lenha na fogueira:
- Amiga, deixa de ser travada. Desencana. O homem está de quatro por
você. O Júnior adora o cara. E vice-versa. A vida continua. Você ainda
pode ter um filho. Aproveita enquanto você pode. Se ele faz tanta
questão de ter um filho, ao concretizar este sonho dele, você vai
aumentar mais ainda as chances de sucesso do relacionamento. Você
sabe que não é qualquer homem que assume uma mulher na sua
idade, com filho ainda pra criar. Caraca! Não rolou nem um beijo
ainda! O que você está esperando? Que apareça outra e leve o bofe?
Você está aí caindo pelas tabelas. Está de asa arriada, também. Fala,
sério! Dá logo pro cara.
- Calma. Tudo tem seu tempo. Não tenho pressa. Ainda penso em
Francisco. Volta e meia me recordo dos bons momentos que tive ao
lado dele. Foram poucos, mas foram muito intensos. Sei que esta
tristeza um dia vai se transformar numa saudade gostosa, sem dor. Mas
a ferida ainda está aberta.
- É normal. Mas você tem de fazer a sua parte. Não pode se entregar.
Você está viva, tem uma vida longa para viver aqui na Terra. Sua missão
não acabou.
- É isso, mesmo. Vou me adiantar, está quase na hora de ele vir me
pegar. Pedi para ele me pegar na esquina. Vou ficar no portão. Quando
ele chegar vai dar uma buzinada.

Rosa se despede de Amanda e vai para o portão. Júnior vai


atrás dela:
- Mãe, quero ir com você. Deixa eu ir.
- Não, Júnior. Já falei. Vai para dentro, Júnior. Eu não vou demorar.
- Você vai encontrar o Nelson? Quero ir.

A buzina toca. Júnior reconhece o carro de Nelson que está


parado na esquina. Amanda vem até o portão e arrasta o menino para
dentro:

156
Victorino Aguiar
- Quero ir com a mamãe. Ela tá saindo com o Nelson. Quero ir com eles.
Eu gosto dele. Quero que ele seja meu pai vivo.
- Vamos para dentro. Vai brincar com o Lucas. Você vai gostar dele.

Lucas e Júnior estão se vendo pela primeira vez, mas parece


que já se conhecem há muito tempo; os dois estão se dando
maravilhosamente bem, e já entabularam uma conversa muito
interessante, que tem tudo a ver com eles, envolvendo referências a
pais mortos e pais vivos, à condição deles de filhos únicos e à iminente
chegada de irmãos. Em resumo, o assunto gira em torno dos interesses
e sonhos comuns dos dois. Amanda, de longe, ouve dissimuladamente
a conversa dos meninos:
- Eu tenho um pai morto, mas não tem graça. Acho que mamãe vai
arranjar um pai vivo pra mim. Eu quero ter um pai vivo, pra jogar bola
comigo, me levar no parquinho, pra passear comigo, a pé, de carro; pra
me carregar no ombro, pra me buscar na escola. Eu gosto do meu pai
morto, mas ele não pode fazer nada disso. Meus colegas todos da
escola têm pai vivo; quando tem festa na escola, os pais deles estão
sempre lá. Você tem pai? Cadê seu pai?
- Eu não tenho pai. Nem morto, nem vivo. Eu tenho duas mães. Você
tem irmão?
- Ainda não, mas acho que vou ter. Vou ganhar um irmão, quando
minha mãe arranjar um pai vivo pra mim. Ela me prometeu. Ela tem um
amigo legal. Acho que ele quer namorar ela. Foi com ele que ela saiu
agora. Ela me deixou aqui com a sua mãe pra sair e poder ficar sozinha
com ele. Eu queria ir junto, mas ela não deixou. Ele já me falou que
quer ter um filho. Se mamãe se casar com ele, eu vou ter um irmão.
Quero que ele seja meu pai vivo, ele é legal. Acho que eles já estão até
namorando. Tomara que eles se casem. Quero que meu pai vivo seja o
Nelson. E você, tem irmão?
- Eu também ainda não tenho, mas vou ter. Minhas mães me falaram
que vão ter mais um filho; aí, eu vou ter um irmão, vou ganhar um
irmãozinho. Ele vai ser igual a mim, vai ter duas mães. (acrescentar
texto)

157
Victorino Aguiar
Quando Rosa retorna da saída com Nelson, este pede que Rosa
chame o filho para ele dar um abraço no menino e entregar um
presente para ele. Júnior vem correndo como um foguete:
- Trouxe uma caixinha de sorvete para você. Mas só dou se você
adivinhar qual é o sabor.
- Claro que é de coco.
- Ah, assim não vale. Sua mãe lhe falou.
- Falou, não. Nem sabia que você ia me trazer uma caixa de sorvete.
- Puxa! Acho que você tem superpoderes.
- Você já sabia que eu gosto de sorvete de coco. Esqueceu que me deu
uma caixinha naquele dia?
- Puxa! Você é muito inteligente. Agora quero ver você adivinhar o que
mais eu trouxe.
- Fácil! Você trouxe outra caixa de sorvete para o Lucas!
- Epa! Você está ganhando todas! Caramba! Aqui, Lucas, a sua caixa de
sorvete. Nem vou perguntar de que sabor é. Estou perdendo todas.
-Mas eu sei. É de coco, também.
- Ainda bem que eu não perguntei.
Quando Nelson liga o carro pra sair, Júnior faz a ele a pergunta
de um milhão de caixinhas de sorvete de coco:
- Você vai namorar mamãe? Eu quero, quero que você seja meu pai
vivo. Vai? E quero um irmãozinho, também.

Essa, foi de matar.


- Júnior, que coisa feia. Isso é pergunta que se faça?

Nelson e Rosa trocam um beijo na face e Nelson parte. Júnior


vai falar alguma coisa, mas Rosa o manda calar a boca. O sermão ainda
não acabou, vai continuar dentro de casa, mas não vai demorar muito,
porque Amanda já olha com aflição para Rosa, ávida por notícias. Ela
despacha os dois meninos para o quintal, pra ela poder conversar à
vontade com Rosa. Amanda não cabe em si de tanta felicidade. E está
quase morta de curiosidade. Quer saber se eles se acertaram:
- Amiga, sua cara não nega. A farra foi boa. Sinto que você
desencantou. Conta tudo. E aí, comeu?
158
Victorino Aguiar
- Calma, menina. Que pressa é essa? Tá ficando igual ao Júnior.
Chamando o bombeiro antes de acender o fogo.
- Você está com cara de quem viu o passarinho verde.
- Vi muitos passarinhos. Fui às nuvens, vi estrelas, também.
- Deu ou não deu?
- Tá cedo demais, vamos com calma. Não foi dessa vez. Mas beijei
muuuuito!
- Graças a Deus! Já foi um grande passo.
- Não sei. Faz tão pouco tempo que Francisco morreu. Até me sinto um
pouco culpada. Espero que esteja fazendo a coisa certa.
- Não tenho dúvida. Você está fazendo a coisa certa. Vai ser bom pra
você, pro Júnior, pro Nelson. Até pra nós, vai ser bom. É normal esse
medinho que você ainda está sentindo. Todo mundo tem um pouco de
medo de amar, de se apaixonar. É isto que está acontecendo com você,
está com medo do amor. Esse friozinho que você está sentindo na
barriga não tem nada a ver com Francisco. Todo mundo sente medo de
assumir seus sentimentos, de se entregar. Eu mesma acabei de passar
por isto. E ainda estou passando, para dizer a verdade.
- Como assim, arrumou um bofe, também? Você também tem um
filho, como eu. O que vale para mim, vale para você.
- Não tem bofe nenhum, amiga. É melhor do que bofe. Vou te contar
tudo.
Amanda passa a contar para Rosa o que aconteceu entre ela e
Vera. Entra até nos detalhes. Rosa fica surpresa, mas logo assume com
naturalidade o romance das duas, e até dá força para que elas o levem
adiante. Não vê necessidade de elas colocarem um letreiro na testa ou
um outdoor nas ruas para tornar público o amor que elas sentem uma
pela outra. Mas também não vê nenhum motivo para elas sentirem
vergonha ou culpa por se amarem. Sugere colocar Nelson na fita, para
que ele esclareça as duas quanto aos aspectos jurídicos da relação,
principalmente no que diz respeito à parte patrimonial e aos direitos de
Lucas.
Amanda quer saber se Rosa aceita ser madrinha do filho que
Vera terá:
- Claro que quero. Pode contar comigo.
159
Victorino Aguiar
- Bom é que você e Nelson se acertem e os dois sejam padrinhos.
- Da minha parte, está tudo bem, quanto a ele, não sei. Nós trocamos
os primeiros beijos hoje. Foi o primeiro amasso que ele me deu.
Normalmente, os padrinhos são casados, mas as coisas estão mudando.
Se a coisa não for adiante, ou se ele não aceitar, eu posso ser a
madrinha sozinha. Se vocês aceitarem.
- Vira essa boca pra lá. Vocês vão se casar, está na cara.
- Vou conversar com ele. Primeiro, eu conto que vocês vão se casar, pra
ver a reação dele. Dependendo da reação dele, conto que vocês
querem que ele e eu sejamos os padrinhos.

Nelson e Rosa
Amanda tem uma boca abençoada. A relação de Nelson e Rosa
deslancha. Depois desse primeiro encontro e dos beijos que eles
trocaram, após ter ignorado por tanto tempo as chamadas de vídeo
que Nelson fazia, ela finalmente passa a aceitá-las.
Eles fizeram grandes progressos. Rosa está bem mais solta. Já
vai longe o tempo em que ela usava um tratamento formal quando se
dirigia a ele. No princípio, ela misturava o Senhor e o Dr. com o você.
Agora, depois de tanto ele insistir, as duas primeiras formas de
tratamento já foram simplesmente jogadas na lata de lixo. Agora, todas
as vezes que ele faz chamada de vídeo, ela aceita sem nenhuma
cerimônia. Eles já têm um horário costumeiro para essas chamadas, e
ela chega a sentir falta quando ele atrasa a chamada ou fica
impossibilitado de fazê-la. Não raro, é ela quem toma a iniciativa de
convidá-lo. É numa dessas chamadas, a primeira que ela recebe após
saber do novo status do relacionamento entre Vera e Amanda, que ela
passa a novidade para ele:
- Se segura bem na cadeira, aí. Você nem é capaz de imaginar o que
aconteceu com elas. É algo que vai mudar a vida delas para sempre.
- Mudança para melhor ou para pior? Não me assusta. Foi alguma coisa
grave? Coisa boa ou ruim?
- Boa e ruim.
- Sou fraco em charadas. Conta logo, meu amor!
- Elas saíram do armário. Se apaixonaram. Coisa séria.
160
Victorino Aguiar

Rosa percebeu que a forma de tratamento que Nelson


costumava usar havia mudado. Mas isso soou bem aos ouvidos dela.
Ela não demonstrou nada pra ele, mas ficou feliz. O primeiro meu amor
a gente nunca esquece. O ataque de riso que ela teve poderia ser
confundido com uma legítima expressão de alegria que a mudança
inesperada de tratamento provocou nela. Mas poderia também ser
apenas uma resposta excessivamente empática ao ataque de riso que
ele tivera do outro lado da tela. Os dois passaram um bom tempo
gargalhando gostosamente. Quando o riso cessou, Nelson tratou logo
de expressar a aprovação dele ao romance das duas:
- Mas isso não tem nada de ruim. É tudo de bom.
- Também acho. Mas a sociedade ainda não encara com naturalidade
essas mudanças. Elas enfrentarão, sim, muitas barreiras, até
conseguirem que a relação delas não seja motivo de fofocas e
provocações.
- Para mim, é apenas mais uma forma de amor.
- São dois. Agora, se prepare para o resto.
- Tem mais?
- Sim. Elas vão ter um filho. Querem fazer uma autoinseminação.
Implantar um óvulo de Amanda no útero de Vera e fecundá-lo.
- Isto é trabalhoso, envolve um gasto considerável. Mas é possível, e
aceitável, além de ser perfeitamente legal.
- Pois é, você pode dar uma assistência a elas neste assunto.
- Com certeza.
- Mas ainda não acabou.
- Tem mais, ainda?
- Sim. Elas querem que nós sejamos os padrinhos.
- Eu aceito, mas, aí, nós teríamos de ser casados. Ou não? Solteiros já
podem ser padrinhos?

Olha aí, o perigo. Vai que estes dois finalmente saiam também
do armário particular em que se encontram e assumam um
relacionamento. Pelo andar da carruagem, isto se mostra cada vez mais

161
Victorino Aguiar
possível. Nelson aproveita, como sempre, a oportunidade para disparar
mais uma flechada na direção de Rosa:
- Eu vou adorar ser padrinho do filho delas. E se for na condição de seu
marido, vou gostar mais ainda.
- Claro que os padrinhos não precisam mais ser casados. Nem precisa
ser um homem e uma mulher. Pode ser um homem, dois homens; uma
mulher, duas mulheres. Pode ser solteiro, sim.
- Tudo bem, meu amor. Aqueles beijos do domingo aumentaram o
brilho dos meus olhos, fizeram o meu coração bater mais forte por
você. O meu coração já é seu. Até sonhei. Agora, vou pagar na mesma
moeda. Prepare-se você também para ouvir o que eu já quero te dizer
faz tempo. Se segura aí na cadeira: Eu te amo! Quero me casar com
você. Quando a gente se casar quero que você me dê um filho.
- Ai, Nélson.
- E tem mais.
- Mais ainda? Assim, eu vou cair da cadeira mesmo.
- Vou querer que Vera e Amanda sejam madrinhas do nosso filho. Já
estou imaginando a cara de felicidade de Júnior, ganhando um pai vivo
e um irmão ao mesmo tempo.
- Esqueci de dizer. Elas sugeriram que façamos uma única cerimônia
para os dois casamentos.
- Eu topo. Vamos ter tempo suficiente para colocar isto tudo em
prática. O que elas querem fazer vai ser demorado; tem muitas etapas
para serem cumpridas.
- As duas vão ficar muito felizes se nos casarmos também. Elas são suas
aliadas. Se dependesse da torcida delas, nós já estaríamos casados.
- Nós temos muitos aliados. Você sabe. A gente já poderia marcar um
encontro os quatro, mais as crianças. Pode ser na rua, na casa dela, na
sua casa, na minha casa.
- Melhor num ambiente aberto, onde haja brinquedos e mais crianças
para eles aproveitarem também.
- Tudo bem. Veja o dia com elas. Tem de ser num domingo.

Nelson e Rosa assumem o namoro com alguma reserva. Eles


marcam um almoço na casa de Nelson e convidam as amigas Vera e
162
Victorino Aguiar
Amanda. Vai ser a primeira atividade social com a presença dos dois
casais e das crianças. A casa de Nelson é uma casa muito chique. Tem
uma piscina de porte médio e outra infantil; um lindo jardim, um salão
social, um espaço onde se pode fazer churrascos e dar festa. Há
bastante espaço para as crianças brincarem. Nelson pega Rosa e Júnior
pela manhã em casa. Depois passam na casa de Vera, que vai de carro
com Amanda e Lucas. Eles vão seguir o carro de Nelson.
Todos estão sentados à beira da piscina, inclusive as crianças.
Nélson e Rosa comunicam que estão oficialmente noivos e que se
casarão em breve. As crianças são as primeiras a reagir quando ouvem
a boa nova:
- Eba! Vai ter festa!
- Quero um irmãozinho.
- Isto merece um brinde.
- Aos noivos!
- Beija! Beija!

As crianças estão se esbaldando na piscina. Na mesa, agora, a


conversa entre os quatro é sobre reprodução não tradicional, nenéns,
batizados, e por aí afora. Os quatro já concordaram em fazer uma
cerimônia única de casamento no cartório e dar uma festa na casa de
Nelson. Os casais pretendem ter filhos e fazer também os batizados no
mesmo dia e local, seguidos de uma festa única. Nélson e Rosa serão os
padrinhos do bebê de Vera; e Vera e Amanda serão as madrinhas do
bebê de Nélson e Rosa.

Agora, que Nelson e Rosa se assumiram como namorados, as idas


dela à casa de Nelson se tornam mais frequentes. Rosa sempre leva
Júnior a tiracolo. Uma vez ou outra, os dois dormem na casa. Nos fins
de semana, quando o tempo está bom, Nélson pega Rosa e Júnior pela
manhã e os leva para passar o fim de semana com ele. Júnior sempre
puxa assunto com Nélson, adora conversar com ele, fica encantado
com os assuntos dele. É papo para muitas horas. Haja tempo. O que
Nelson faz, na verdade, é aproveitar estas conversas para enriquecer a
educação de Júnior e estimular a inteligência do futuro enteado, que
163
Victorino Aguiar
ele já tem como filho. Um assunto em especial aguça a imaginação de
Júnior. Quando Nélson fala sobre o espaço sideral, da imensidão do
universo, os olhinhos de Júnior brilham. Ele já tinha mostrado ao
menino um globo terrestre:
- A Terra é assim, redonda?
- Sim, a forma dela é circular, parece uma bola, não parece?
- Parece, mas não dá para jogar futebol, né?
- Claro que não, a Terra é muito grande. Onde a gente ia arranjar um pé
pra chutar a bola? Você vai querer ser jogador de futebol, quando
crescer ? Eu vi você jogando bola com Lucas. Você joga bem.
- Não, eu gosto de brincar com bola, mas não quero ser jogador de
futebol, quando crescer.
- E o que você quer ser quando crescer?
- Quero ser motorista.
- Motorista de quê? Tem muito tipo de motorista.
- De ônibus, táxi, caminhão, trem, avião, navio, qualquer um.
- De trem, é maquinista; de táxi, é taxista; de avião, é piloto.
- E de navio, é o quê?
- Piloto, também, igual ao de avião.
- Quero ser motorista de qualquer coisa, qualquer um serve.

Numa noite, Júnior pergunta a Nélson sobre as estrelas:


- Aquelas luzinhas lá em cima são corpos em forma de bolas, parecidas
com a Terra, são bolas, também, cada uma tem um nome.
- Tem muitas bolas lá em cima iguais à Terra?
- Muitas.
- Mas essas bolas todas, tem gente morando lá, igual aqui?
- Nem todas. Muitas ainda nem chegaram a ter gente morando.
- Quem mora nas bolas é igual a nós?
- Pode ser igual, pode ser diferente, bem diferente, mas são seres
humanos como nós. Uns são mais bondosos e inteligentes que nós,
outros ainda são menos bondosos e menos inteligentes que nós.
- A gente pode ir lá nestas bolas, pra conhecer quem mora lá?
- Ainda não. Já mandaram foguetes, mas, até agora, não acharam uma
bola com gente morando. Mas não vão demorar muito a achar.
164
Victorino Aguiar
- Onde a gente aprende a ser motorista de foguete? Eu quero ser
motorista de foguete quando eu crescer.
- Não é motorista, é piloto ou comandante. E não se diz mais foguete,
o nome certo é nave espacial.
- Então eu quero ser piloto ou comandante de nave espacial. Não quero
mais ser motorista de barco, nem de navio, nem de ônibus, nem de
caminhão. Agora, quero ser motorista de foguete.

A amizade dos casais se consolidou. Foi um sucesso a


autoinseminação de Vera. Já vai para quase dois meses a gravidez dela.
Ela tem de observar muitos cuidados. O mesmo vale para Rosa, que
está com 40 anos e já teve um aborto. Eles estão grávidos, mas Rosa e
Vera enfrentam uma gravidez de risco. Felizmente, elas conseguem
engravidar quase na mesma época. Tudo indica que as crianças
nascerão em datas próximas, o que torna possível os planos deles de
batizarem as crianças no mesmo dia, exatamente como fizeram quando
se casaram. Os quatro serão padrinhos recíprocos. Rosa e Nelson
batizarão o filho de Vera e Amanda, e estas batizarão o filho de Rosa e
Nelson. Ainda falta escolher os nomes dos bebês. Para isto, no entanto,
terão bastante tempo, porque ainda faltam mais de seis meses para o
parto. Imaginem a festa que será quando estes bebês nascerem. As
crianças estão muito felizes com a chegada iminente dos irmãos. Para
comemorar o bom andamento dos projetos, eles vão passar um
feriadão em Saquarema. É verão; o fim de semana promete ser
ensolarado. Instalados numa confortável pousada no bairro de Itaúna,
eles passarão o sábado e o domingo na cidade, com direito a desfrutar
das praias paradisíacas que ela oferece. Já no sábado pela manhã, eles
colocam os apetrechos nos carros e optam pela Praia da Vila, distante
da pousada dez minutos de carro. Pena que o mar não esteja muito
bem-humorado e recomendável para banho nesse dia. As bandeiras
vermelhas estão tremulando ao longo de todas as praias, 35
quilômetros. Bandeira vermelha pra todo lado. Não é só a agitação que
torna perigosa e desconfortável a permanência na água. A temperatura
dela é muito baixa, quase gelada. O perigo de cãibra é muito grande:

165
Victorino Aguiar
- Lucas e Francisco, cuidado, o mar está muito agitado, não saiam
daqui, fiquem brincando aqui na piscina. Nem pensar de botar o pé na
água. Além disso, a água está muito gelada. Dá pra se divertir bastante
aqui. Parece até a piscina da casa do Nelson.
- Mãe, eu quero a bola, deixa a gente brincar com a bola aqui na
piscina.
- Não, vocês vão acabar perturbando as pessoas próximas daqui,
jogando areia em todo mundo.
- Mas tem gente jogando vôlei, ali, ó!
- Nada de bola.
- Deixa, tia. A gente não vai jogar a bola pra longe, não, só vai brincar
aqui dentro da piscina.
- `Tá bom. Mas nada de brincar na areia, também. A piscina está bem
grande, parece até a piscina da casa de Nelson.

Aquele piscinão caiu do céu. Além de a água ali represada não


ser gelada, na verdade é até morninha, a distância dela até o mar é
considerável. Mas mãe é mãe. Rosa se mostra ainda um pouco
preocupada:
- Amanda, você tem certeza de que eles estão seguros, lá?
- Claro que sim. O mar formou uma piscina imensa numa depressão
próxima da grama. Os meninos estão bem longe do mar. Eles estão
igual pinto no lixo. Tem algumas crianças lá com eles. Crianças se
enturmam com muita facilidade. Eles estão seguros. Daqui, dá para a
gente ver bem os dois.

Os casais conversam animadamente, enquanto consomem as


latinhas de cerveja compradas de um ambulante. Eles avaliam as
vantagens de morar numa cidade pequena e litorânea como
Saquarema, dispondo de tantos atrativos naturais. Cachoeiras, trilhas,
matas, praias primitivas, uma rede bancária, segurança etc., a menos
de 100 quilômetros da capital. É uma paz difícil de ser desfrutada numa
cidade grande ou média. Para quem está acostumado com a agitação e
os riscos de uma metrópole, é uma tentação fixar residência numa

166
Victorino Aguiar
cidade assim. Mas também existe o risco de a pessoa não se adaptar à
mudança. Amanda se lembra de Fabrício:
- Quem gostava muito de passar os finais de semana aqui era o
Fabrício. Ele adorava esta cidade. Vira e mexe, ele vinha pra cá. Era
fácil, enquanto ele tinha a mesada que Fábio dava a ele; agora, quem
sabe por onde ele anda. Tadinho, deve estar morando no alojamento
até hoje. Eu amo aquele menino. Quando fui trabalhar na casa, ele era
bem jovenzinho. Depois que cresceu, foi se afastando cada vez mais da
casa. Quando entrou na faculdade, praticamente desapareceu, só ia
para pegar dinheiro. Fábio escrachava a cara do menino. Volta e meia
tinha de salvar a pele de Fabrício e tirá-lo das encrencas em que ele se
metia por causa da maconha. Quem sabe por onde andará o meu
menininho.
O papo ia alto, até ser quebrado por alguns gritos, vindos das
proximidades. Logo se forma uma aglomeração na beira do mar,
justamente na direção da piscina onde brincavam Francisco e Lucas. A
piscina está vazia. Muita gente. Muita gritaria. Vera e Rosa querem ir
ver o que aconteceu. Amanda toma a frente e vai sozinha. Ela tem
razão de sobra para mantê-las longe da confusão. Lucas vem correndo
ao encontro dela:
- O menino deu um bico na bola, a bola foi parar no mar. Júnior foi
atrás dela, a onda carregou ele pra longe. Ele está se afogando.

Rosa e Vera não se contêm, se levantam e vão ver também o


que houve:
- Meu filho, ai, meu filho, minha vida. Deus, salva meu filho.
- Calma, Rosa. O guarda-vidas já está perto dele, ele vai resgatar o
Júnior. Se precisar, eles usam um helicóptero. Os bombeiros têm um.
Júnior não vai precisar de ser levado ao hospital. Se precisar, também
tem um posto de saúde aqui bem perto. Vai terminar tudo bem.
- Ele deve estar engolindo muita água. Meu filho... Nossa Senhora de
Nazaré, salva meu filho!
- Calma, o guarda-vidas já está trazendo ele. Ele tem de nadar no
sentido da onda. Eles têm prática. Fique calma, Rosa.

167
Victorino Aguiar
A praia toda está torcendo pelo menino. Todos dirigem suas
súplicas aos céus. Cada um na sua fé:
- Odoyá, Iemanjá!!
- O sangue de Jesus tem poder!
- Salva o meu filho, Nossa Senhora de Nazaré!
- Mãe das Águas, valei-nos!

A praia retrata com fidelidade o resultado da mistura de etnias


e culturas que vem construindo o Brasil ao longo dos séculos. Nelson é
espírita, Rosa é católica, Amanda e Vera são umbandistas.
Nelson não fica fora da torcida. Ele apela para as entidades
mais conhecidas no Espiritismo:
- Irmãozinhos do plano espiritual, rogamos que amparem e protejam o
nosso menino. Bezerra de Menezes, André Luiz, rogamos que nos
ajudem a acalmar os nossos corações e a nos conformar com a
realização dos planos divinos.
Ao mesmo tempo, ele tenta acalmar Rosa, que está aos
prantos:
- Tenha calma, Rosa. Sinto que ainda não está na hora de Júnior
desencarnar, de voltar pra pátria espiritual. Oremos e confiemos no Pai
Supremo.

São só dez minutos, mas parece uma eternidade. Graças a


Deus, eles já estão chegando, já estão quase na areia. Chegaram. Ai, ai,
ai... Júnior parece não estar respirando. Rosa tem razão, ele deve ter
engolido muita água:
- Está sem vida, o meu filho. Ai, meu Deus.

O guarda-vidas está prestando os primeiros socorros ao


menino. Há muita gente em volta deles. E estão perto demais:
- Se afasta, por favor, se afasta. Não pode ter aglomeração. Vocês estão
atrapalhando o atendimento.

Os populares se afastam, mas a torcida não para, a torcida


continua de longe:
168
Victorino Aguiar
- Odoyá, Iemanjá!!
- O sangue de Jesus tem poder!
- Salva o meu filho, Nossa Senhora de Nazaré!
- Mãe das Águas! Salva esta criança!

Júnior está voltando. Júnior coloca toda água pra fora. Palmas
ecoam por toda a Praia da Vila. Rosa e Amanda chegam perto do
menino. Amanda é a primeira a ver que o guarda-vidas é Fabrício. O
menino foi salvo pelo irmão. Amanda o abraça, chora muito, Fabrício,
emocionado demais, também está chorando muito:
- Você acabou de salvar o seu irmão, Fabrício. Este menino é o Júnior.
- Meu irmãozinho... Júnior. Ele vai viver. Já está bem.
- Rosa, você se lembra dele? É o Fabrício.

É querer demais que essa gente toda não se ponha a chorar. Só


quem tem o coração muito duro pode represar o sal dentro de si,
diante desta cena. Ainda há muitas palmas. Fabrício está visivelmente
exausto. Fala com dificuldade:
- Foi quase um milagre, ele se salvar. Eu já estava quase perdendo a
esperança de que ele se salvasse. Nem sei como consegui. As ondas
estão muito agitadas. Parecia que tinha uma força me ajudando.

Júnior aparentemente está bem, mas, para desencargo de


consciência, é levado até o Posto de Saúde, onde é examinado e
liberado. Graças a Deus, o menino está bem. Antes de voltarem para a
pousada, eles combinam de visitar Fabrício, e almoçar com ele no
domingo. Neste almoço, certamente, Fabrício terá muitas novidades
para contar.

No trajeto de volta para a pousada, Júnior também tem muitas


novidades para contar:
- Eu vi o meu pai morto, ele veio andando numa luz branca, saiu lá no
fim do mar, veio andando na luz.
- Caramba! Como é que foi isso?

169
Victorino Aguiar
- Ele me pegou no colo e disse que ia me entregar ao meu irmão para
ele me levar para a areia de novo, mas antes ia me mostrar algumas
coisas que existiam no lugar onde ele estava morando. Perguntei a ele
porque ele estava vestido com uma roupa diferente da que eu vi
quando ele estava morto, dentro do caixão. Ele disse que não estava
morto, e que tinha trocado de roupa. Eu disse que gostava dele, e que
agora eu estava contente, porque tinha um pai vivo, que gostava de
mim e eu gostava dele. Eu disse que estava contente de ver meu pai
morto também, que eu gostava mais dele do que do meu pai vivo, que
eu queria ficar com ele pra sempre. Ele disse de novo que estava vivo,
que ninguém morre, que a gente só muda de carro, mas continua a ser
o motorista, que eu não podia ficar com ele e tinha de voltar. Ele sabia
que eu queria ser motorista quando crescer. Falou para eu ser
bonzinho pra meu pai Nelson e para meu irmãozinho que vai chegar.
- Então você matou as saudades dele.
- Sim. Fiquei muito feliz de ele me pegar no colo.
E o que mais você disse a ele?
- Quero que você me leve na escola, que vá nas festas da escola,
passeie comigo. Quero ficar aqui com você.
- Você não pode ficar aqui por muito tempo, por enquanto. Eu vou te
levar para passear enquanto seu irmão não chega aqui. Quando ele
chegar, vou entregar você a ele, e ele vai te levar para a areia.
Ele me levou num lugar muito bonito. Tinha muitas flores, as
casas eram transparentes, a gente podia ver por dentro delas, parecia
que as paredes e os telhados eram de luz. Eu tive vontade de ficar lá
com ele.

Rosa é católica, não dá muito crédito a estes tipos de experiência:


- A luz que você viu foi a luz do Sol, meu filho. Você estava
desacordado, sonhou com as coisas que costuma conversar com
Nélson, reproduziu as palavras que você está acostumado a ouvir. Isto é
tudo fruto da sua cabecinha.

O momento não é oportuno para debates de cunho religioso.


Melhor mudar a pauta. De qualquer modo, esta experiência parece ter
170
Victorino Aguiar
afetado profundamente o espírito do menino. É Nelson que dá o tom.
Ele faz uma prévia do que Lucas e Júnior encontrarão na casa de
Fabrício:
- Vocês dois vão adorar a casa de Fabrício, é bem roça, lá. Tem muitos
animais, cachoeira, vocês vão se divertir bastante.

Claro que foi uma surpresa para eles, descobrirem que Fabrício
estava morando em Saquarema. Eles não sabiam, nem imaginavam que
Fabrício estava vivendo na cidade. Amanda, em especial, está muito
feliz por ter reencontrado Fabrício, principalmente por saber que ele
amadureceu, constituiu família e está realizado. Fabrício está casado
com uma hippie - Eva - com quem teve um filho – Bob Marley - ainda
antes de se formar. Ele abandonou o alojamento e foi morar com ela
numa casa no pé de uma serra. Eva também está grávida de dois
meses, e vai dar à luz a uma menina, que se chamará Janis Joplin.
De tanto visitar Saquarema, Fabrício acabou se tornando uma
pessoa conhecida e muito querida na cidade. Eva apresentou a ele um
candidato a vereador, com quem ele fez uma grande amizade. Foi este
candidato que conseguiu para Eva a doação deste terreno ao pé da
serra, onde os dois, com muito sacrifício, construíram uma meia água.
Daí, para Fabrício arrumar um emprego na prefeitura foi um pulo.
Através do amigo, já eleito vereador, ele entrou na prefeitura pela
janela e foi cedido para o Corpo de Bombeiros, onde trabalha como
guarda-vidas. Ele já terminou o curso na faculdade e trabalha também
como treinador pessoal. Nos fins de semana, ele ajuda Eva na feirinha
hippie.
A casa de Fabrício é simples, pequena, mas muito bem
arrumadinha. O ambiente exala um forte cheiro de incenso. Numa
prateleira na sala, há uma imagem de Buda. As roupas de Eva são
típicas dos hippies, em tudo lembra a Índia e os países orientais.
Fabrício conta a eles que Fábio se arrependeu profundamente
do que fez. Tem muitos remorsos por ter apressado a morte do pai.
Fábio sofreu muito quando veio a saber que Regina estava realmente
envolvida com o Dr. Arnaldo. O filho que Regina esperava era de fato
do médico. Dr. Arnaldo reconheceu a paternidade da criança e assumiu
171
Victorino Aguiar
oficialmente o relacionamento com Regina. Ela já está no regime
semiaberto e deve sair para outro regime, porque está grávida de novo.
Não vai demorar muito, e ela estará totalmente livre. No fim das
contas, ele foi muito influenciado por ela. Ele deu muito poder a ela,
porque estava dominado pela revolta, pelo ódio. Agora, ele é outra
pessoa. Está em paz. Ele se assumiu como homoafetivo e está
sentimentalmente envolvido com um presidiário, com o qual contraiu
matrimônio no presídio, e com quem pretende morar quando adquirir
direito à liberdade. Também tem a intenção de ter um filho com o
companheiro.

Júnior e Lucas estão doidos para ganharem o terreiro. Eles


praticamente engolem a comida. Júnior não consegue disfarçar que
está um pouco confuso com a aparência e a indumentária de Eva. Ela
fala com muita calma, bem devagar, altamente relaxada. É uma hippie
de primeira geração, e não abandonou o hábito nem os modos,
manteve-se, de certa forma, fiel aos anos 60. Os olhos de Júnior estão
inquietos. Ele olha com curiosidade para Eva. Antes de ir para o quintal
com Lucas, ele arrasta Nélson até a saída para a varanda, e com toda a
inocência característica dos seus quase nove anos, faz ao segundo pai a
pergunta que não quer calar:
- Pai, ela é desta bola, ou de outra bola?
- Fala baixo, meu filho. Ela é desta bola, sim. Depois a gente conversa.
Agora, vocês já podem brincar. Vão pro quintal.
Filhos – como não tê-los?

Os dois partem para o terreiro. A maior parte da tarde, eles


passarão correndo para cima e para baixo. Há muitos animais no
quintal. Muito chão para eles correrem. Quanto a Júnior, nenhum sinal
de que o incidente do dia anterior o tenha afetado.

Logo na semana seguinte ao incidente, Fabrício visita Fábio e


conta a ele tudo que aconteceu em Saquarema:
- Foi todo mundo no domingo lá em casa. Eles almoçaram comigo.
Vera e Amanda se casaram e vão ter um filho. Vera fez
172
Victorino Aguiar
autoinseminação. Rosa também está grávida. Eles programaram para
os bebês nascerem mais ou menos na mesma época.
- E como foi esse afogamento?
- Quando eu vi, as ondas já tinham levado o Júnior para muito longe da
areia. Eu tinha quase certeza de que ele morreria. Não sei de onde tirei
tanta força, tanta fé. Parecia que tinha uma força me ajudando. Só fui
saber que era o Júnior depois que ele colocou a água toda para fora e
deixaram Amanda chegar perto da gente. Nós choramos muito. Apesar
desta confusão toda, eu gosto dela. É uma pessoa muito maneira.
Contei
a elas sobre você, sobre a Regina e o Dr. Arnaldo. Rosa chorou demais.
Prometeu que vai me dar uma casa lá em Saquarema. Falei a ela sobre
o seu casamento com Bruno. Ela achou legal. O Dr. Nélson tem uma
situação boa. Eles se casaram e estão morando numa das casas dele.
Ela comentou sobre você continuar morando com seu marido na casa
que a gente morava. Ela estava pensando em vender a casa. O que você
acha? Impressionante. Não senti nenhum ressentimento nela. Ela passa
a casa pro seu nome no cartório. Basta você querer. Se você aceitar, vai
ser bom pra mim, também, porque vou ter um lugar pra ficar quando
vier ao Rio.

Fábio aceita a doação da casa. Ele e o marido já passaram pro


regime semiaberto, em breve serão soltos, por terem bom
comportamento e terem lido centenas de livros. Cada livro lido
representa uma redução do tempo da pena. O marido de Fábio é
advogado e trabalha numa banca. Quando forem soltos, eles residirão
na casa onde Fábio foi criado. Eles adotarão uma criança recém-nascida
e a registrarão como filho.
Fabrício e Eva também cresceram mais um pouco e se
multiplicaram. Eva deu à luz uma fofurinha de menina que foi
registrada com o nome de Janis Joplin.
Todas as crianças são batizadas no mesmo dia e no mesmo
cartório. Os pais celebram o batizado numa única cerimônia ecumênica.
Após o batizado, foram todos para a casa de Nélson, que promoveu

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Victorino Aguiar
uma festança digna de registro. Apesar de Fábio e seu marido serem
ateus, eles aceitam participar da cerimônia e da festança.

Capítulo IX

Os seres humanos são herdeiros de seus atos

Segundo nos diz a tradição budista, todos nós somos herdeiros


dos nossos atos. Talvez sejamos herdeiros não apenas dos nossos atos,
mas também dos atos alheios; de uma pessoa, de um povo, de uma
cultura. Gostemos ou não, queiramos ou não, de alguma forma, sempre
herdamos alguma coisa de nossos antepassados - o idioma, a religião, o
caráter, o folclore. Quase sempre, essa herança nos é passada através
de relatos orais e também por escrito. O certo é que, na maioria das
vezes, a gente nem tem como recusar a herança. Ela é simplesmente
imposta. A começar pela principal e inevitável herança genética.
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Victorino Aguiar
Depois, pela herança ambiental. Aqui, na nossa narrativa, as coisas não
são muito diferentes. Cada um, a seu modo, no fim das contas, recebeu
o seu quinhão. Formalmente herdeiros ou não, de uma forma ou outra,
todos receberam alguma coisa do espólio de Francisco. E quando
falamos de coisas, é bom que se ressalte, nem sempre estamos falando
de coisas tangíveis, corpóreas, materiais. E nem sempre os bens
tangíveis são os mais valiosos e duradouros. Assim, é possível até que a
melhor parte deste espólio nem estivesse relacionado no inventário.
Porque há sempre muitos bens intangíveis não incluídos no inventário.
Quando se fala de pais, nunca é demais relembrar que a melhor
herança que eles podem deixar para os filhos não são os bens
materiais, porque estes podem ser dilapidados pelos herdeiros, e quase
sempre é isto que acontece. Uma boa educação, bons exemplos, boas
lembranças. É extensa a lista dos bens que os pais podem legar aos
filhos. Tomara que cada um tenha herdado não apenas bens físicos,
mas também os bens morais e espirituais legados por Francisco.

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