Você está na página 1de 3

Análise da categoria consciência no filme

Lion – Uma jornada para casa


Eduardo Choi; Larissa da Silva Romano; Luísa Silva Paulino; Rafael Elias Castoldi

Segundo Martins (2001), o psiquismo possui caráter duplo que se manifesta nas
formas da atividade e da consciência. A atividade corresponde à forma primária e
objetiva do psiquismo, enquanto a consciência como seu aspecto ideal, subjetivo.
É importante definir que a realidade objetiva existe a priori e independente de
qualquer fenômeno psicológico. A consciência, portanto, é reflexo psíquico da realidade
objetiva e determina-se na relação sujeito-objeto, sendo simultaneamente expressão do
sujeito que constrói reflexos ideais do real, assim como expressão do objeto que influi
na construção da consciência. Podemos afirmar, portanto, que a consciência não é
composta por uma subjetividade pura, mas, como afirma Martins (2001), é um ato
psíquico vivenciado pelo indivíduo e ao mesmo tempo expressão de suas relações com
os outros homens e o mundo.
Para Leontiev o sentido da ação é dado por aquilo que liga, na consciência do
sujeito, o objeto de sua ação (seu conteúdo) ao motivo dessa ação. A atividade, externa
e interna, do sujeito é mediada e regulada por um reflexo psíquico da realidade. O que o
sujeito vê no mundo objetivo são motivos e objetivos, e as condições de sua atividade
devem ser recebidas por ele de uma forma ou de outra, apresentadas, compreendidas,
retidas e reproduzidas em sua memória; isto também se aplica aos processos de sua
atividade e ao próprio sujeito - a sua condição, a suas características e idiossincrasias.
Leontiev coloca que a consciência individual só pode ocorrer diante de uma consciência
social e da linguagem que é o seu real substrato. Assim, no processo de materialização
dos homens a linguagem, que também é produzida, serve como meio de comunicação,
sendo portadora dos significados elaborados socialmente.
O desenvolvimento da consciência no indivíduo se dá a partir do momento que
este passa a se distinguir do ambiente que o rodeia e passa a perceber esse ‘outro’ como
objeto passível de análise. Dessa forma, já é possível identificar em Saroo as evidências
do desenvolvimento da sua consciência. É capaz de distinguir-se da mãe e dos irmãos, e
capaz de diferenciá-los entre si a partir das diferentes relações que estabeleceu com cada
um. Em uma das cenas do filme, Saroo tem consciência de que é um ser diferente de sua
irmã, o que mostra que não se sente confortável sendo responsável por ela. Saroo, pela
relação com os parentes e pelas diferentes atividades que um cada desempenha
(incluindo ele próprio) é capaz de construir uma imagem subjetiva de si, do mundo e da
relação que estabelecida entre eles. Vê a mãe e o irmão como provedores e cuidadores
para a família, enquanto ele e a irmã mais nova são cuidados, ao mesmo tempo que
também assume a função de cuidar da irmã quando os mais velhos não se encontram.
Além disso, a família vive em situação de pobreza e ele passa a compreender, pelas
atividades que realiza acompanhando o irmão, que bens de consumo podem ser
adquiridos através de compra ou troca. Ele se coloca no mundo de forma diferente
daqueles que conseguem ter a oportunidade de comprar algum bem, ele toma
consciência, por exemplo, na cena dos Jalebis, que não possui uma situação financeira
igual à condição das demais pessoas da feira, naquele momento, ele não compreende
exatamente o fato de não estão na mesma situação financeira, mas nota que eles têm
poder para comprar algo que lhes satisfaça e ele não possui essa oportunidade. Ele não
entende o todo, mas se coloca naquela situação e compreende alguma parte dela, de
modo que ele diz que um dia quer ter todos aqueles Jalebis. Compreende também que
frequentemente os mais velhos precisam se ausentar para trabalhar, e que isso é
necessário para que eles supram suas necessidades básicas. Por fim, Saroo investe na
atividade de trabalhar carregando pedras com o irmão.
Para entender o processo de desenvolvimento da consciência de Saroo até sua
‘tomada de atitude’ de trabalhar com o irmão, é preciso entender a unidade dialética
atividade/consciência como mediadoras do psiquismo. Enquanto a atividade possibilita
a formação de reflexos ideais do objeto sobre o qual atua, complexificando assim a
consciência, esta, por sua vez, desenvolve-se a ponto de passar a regular a atividade,
determinando seus motivos e sentidos. As atividades cotidianas de Saroo, sujeitas à
particularidade das condições sociais, econômicas e históricas em que ele e sua família
estavam inseridos (ou seja, a dimensão social da formação da sua consciência)
promoveram a complexificação do reflexo subjetivo dessa realidade, até o ponto em que
Saroo tornou-se capaz de entender a condição de miséria a que estava submetido e quais
ações e operações eram capazes de satisfazer as necessidades advindas dessa condição.
Isso corresponde à dimensão individual da formação da consciência de Saroo, e
exemplifica muito bem as duas formas de expressão da consciência definida por
Vásquez (1978): produção de conhecimentos (conceitos, hipóteses, etc.) e produção de
finalidades (objetivos que precedem e orientam as ações humanas).
As vivências de Saroo mostradas no filme, como ajudar o irmão a carregar
carvão roubado para comprar leite, desejar jalebis mas não poder comprar, testemunhar
a mãe e o irmão se ausentando por dias para trabalhar, entre outras coisas que
provavelmente não foram mostradas no filme, possivelmente promoveram na
consciência do garoto uma série de conceitos e hipóteses, como “é preciso ter dinheiro
ou mercadorias de troca para suprir minhas necessidades”, “trabalhar resulta em
dinheiro”, “é preciso trabalhar para suprir necessidades”, “quanto mais pessoas
estiverem trabalhando, mais dinheiro é ganho” até chegar ao ponto de desenvolvimento
em que sua consciência foi capaz de regular a atividade, produzindo uma finalidade que
orientasse suas ações (“quero ir trabalhar com meu irmão para ajudar a sustentar
minha família”).
A formação desses “valores” em Saroo se dá de forma menos explícita, Saroo
não entende que o dinheiro é um elemento que faz parte de um sistema no qual ele está
inserido, ele não entende que o dinheiro no mundo capitalista é hipervalorizado, mas
toma consciência de que, naquele ambiente em que ele vive, ele consegue algumas
mercadorias, ou coisas que ele não consegue se não tiver a moeda. Assim como Saroo,
as crianças apreendem aquilo que está ao seu alcance, aquilo que é palpável para
compreender a forma que o mundo funciona, de modo que ele pode generalizar alguns
comportamentos. Saroo passa a exercer uma atividade com a finalidade de obter aquilo
que se pode comprar com dinheiro. Provavelmente, se ele tivesse se apegado em outro
elemento da realidade que não se consegue comprando, com o dinheiro, talvez a
finalidade ou o motivo da atividade que ele exerce seria outro, ou mesmo pudesse
modificar a atividade. O fato é que ele compreendeu uma parte da realidade e do mundo
adulto e a partir disso toma consciência daquilo que realiza.

Você também pode gostar