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O culto cristão e a liturgia

Qua, 05/11/2014 por Claudionor de Andrade

Karl Barth (1886-1968) afirmou, certa vez, que o culto cristão é o ato mais relevante e glorioso
na vida do homem. Acredito que nenhum crente ousaria contraditar o teólogo suíço, pois todos
nos empenhamos a santificar a Deus os mais altos louvores. Além disso, nossa índole
espiritual induz-nos a adorá-lo; é uma necessidade que nos reclama pronta satisfação. O que
muitos não querem admitir, porém, é que o culto, por mais singelo, não prescinde da liturgia.

Alguns movimentos não toleram sequer uma hipótese litúrgica. Haja vista os puritanos.
Supõem que ela destrói-nos a espontaneidade e a beleza da vida cristã. Todavia, mesmo sem
o admitirmos, temos uma liturgia. O movimento litúrgico tem início ao nos reunimos para adorar
a Deus. Prossegue já com a oração, já com os cânticos. Tem sequência com a proclamação do
Evangelho. E, finalmenter, encerra-se com a impetração da bênção apostólica.

Isso é liturgia!

Só há uma maneira de se evitá-la: banir o culto a Deus. Mas enquanto a Igreja congregar-se
para honrar-lhe o nome e tributar-lhe glória, a liturgia far-se-á presente. Nem por isso deixarão
os fiéis de ascenderem-se espiritualmente. Antes, consagrar-se-ão ainda mais ao serviço
cristão. Aliás, até mesmo a devoção individual reivindica uma liturgia.

O mal não está na liturgia; reside no formalismo que, paulatinamente, vem destruindo igrejas e
empalhando movimentos.

I. O VERDADEIRO SENTIDO DA LITURGIA

A palavra liturgia é originária do termo grego leitourgia. Este, por seu turno, é formado por dois
vocábulos: leitos, público e ergon, trabalho. Literalmente, liturgia significa serviço público. Na
Grécia, o termo era usado para designar uma função administrativa num órgão governamental.
Desde a sua origem, a liturgia tem uma forte conotação com o serviço que os súditos devem
prestar ao rei.

O termo passou, com o tempo, a designar o culto oficial da Igreja Cristã. Hoje, é definido como
a forma pela qual um ato de adoração é conduzido. Numa linguagem mais técnica, liturgia é a
soma de quanto concorre para a boa condução de um ato religioso.

Teologicamente, a definição é bastante simples. É tudo o que, diante de Deus, exprime a


devoção de uma comunidade de fé: cânticos, leituras bíblicas, testemunhos, pregação etc.

II. A LITURGIA NO ANTIGO TESTAMENTO

O culto levítico era bem elaborado. Seus gestos e sons constituíam-se num espetáculo de
raríssima beleza. Haja vista a observação da rainha de Sabá ao visitar o rei Salomão. A
soberana enalteceu a Jeová diante da postura dos israelitas na Casa de Deus (1Rs 10.5).

Os ministros do altar não poupavam esforços nem minúcias na condução do culto. Tudo tinha
de sair perfeito; nenhum detalhe haveria de ser esquecido. A apresentação do sumo sacerdote,
dos ministros da música e dos demais levitas não contemplava a menor hipótese de falha. Nos
sacrifícios e oferendas, redobrados desvelos. A atenção sacerdotal perseguia o menor
descuido. Era uma liturgia sublimada.

Na inauguração do Santo Templo, tamanha foi a majestade divina a baixar no santuário, que o
cronista simplesmente registrou: “E os sacerdotes não podiam entrar na casa do Senhor,
porque a glória do Senhor tinha enchido a sua casa” (2Cr 7.2).

III. A LITURGIA NO NOVO TESTAMENTO

Apesar de o Cristianismo não ser uma religião sacerdotal, é impossível dissociar o seu culto da
liturgia. O próprio Cristo ia regularmente à sinagoga e participava dos serviços aí realizados (Lc
4.16-22). Mais tarde, o mesmo faria Paulo. Ao chegar a uma cidade, o primeiro lugar a ser
visitado por ele era a sinagoga (At 13.5). Em nenhum momento criticou o culto hebreu. Certa
vez, aliás, propôs-se a fazer um voto tipicamente judaico para não escandalizar a sua nação
(At 21.23,24).

Sendo israelitas os primeiros membros da Igreja, o culto cristão, no início, pouco diferia do
judaico. As diferenças, porém, já eram bem nítidas. A começar pelo dia escolhido para a
reunião. Se a sinagoga congregava-se no sétimo dia, a igreja reunia-se no primeiro (At 20.7).
Além disso, em todas as reuniões os discípulos de Cristo celebravam a Santa Ceia – a mais
importante e solene cerimônia da cristandade.

Enganam-se os que pensam não haver no Novo Testamento um esquema de culto. Atentemos
a recomendação de Paulo aos coríntios que, embora fervorosos, não sabiam como dirigir suas
reuniões: “Que fazer, pois, irmãos? Quando vos congregais, cada um de vós tem salmo, tem
doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para edificação” (1Co
14.26).

A liturgia, portanto, é uma necessidade que se impõe ao culto; é um meio teologicamente


válido em nossa adoração. Todavia, a liturgia não pode ser um fim em si mesma; é um
acessório, não a essência da adoração. Por essa razão, temos de precaver-nos contra o
formalismo.

V. O FORMALISMO

É a ênfase à exterioridade em detrimento da essência religiosa: a plena comunhão com Deus.


O formalismo é o liturgismo cego. É a liturgia pela liturgia. Por isso, foi muito combatido pelos
profetas e por Nosso Senhor (Is 29.13; Mt 6.1-6). É um obstáculo à verdadeira fé.
A própria Igreja Católica, que ostenta um pomposo ritual, condena o ritualismo que, em sua
terminologia, é chamado de rubricismo, por causa das letras vermelhas que, nos missais e
breviários, indicam o modo de se recitar ou celebrar o ofício. Não obstante tal preocupação, os
católicos emprestam à liturgia uma importância exagerada. Para o Concílio Vaticano II, a liturgia
é a ação sagrada por excelência.

CONCLUSÃO

Sejamos, pois, equilibrados. Se por um lado, não podemos fazer da liturgia um fim em si
mesma; por outro, não devemos desprezá-la como o faziam os sacerdotes do tempo de
Malaquias, que achavam um enfado o culto do Senhor (Ml 1.13).

O equilíbrio é fundamental.

E se Paulo insta aos romanos a serem fervorosos no espírito, não deixa de recomendar aos
coríntios a que tudo façam com decência e ordem (Rm 12.11; 1Co 14.40).

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