Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
sustentabilidade
liderança e pessoas
mudança
inspirada em
Paulo Freire
A Mercur, conhecida fabricante
de borrachas do Rio Grande do
Sul, renunciou ao lucro como
único indicador de sucesso em
nome de resultados melhores
no futuro. Seu líder, Jorge Hoelzel
Neto, vem fazendo os tradeoffs
necessários, como conta o
consultor Vicente Gomes
O case é de autoria de
Vicente Gomes,
consultor de empresas e autor de Liderança
para uma Nova Economia, e é publicado com
exclusividade em HSM Management.
94 | edição 104
eliminando
seu chefe
A estrutura hierárquica típica pode
ser substituída por colegiados
de funcionários responsáveis por
setores organizacionais, como fez a
Mercur, apoiados por facilitadores
que antes eram diretores, mas isso
requer uma reeducação para o
v
empoderamento, como a empresa
fez com o método de Paulo Freire
Você, gestor, já imaginou fazer uma mu- colégio próximo à sede da em-
dança radical em uma empresa quase cen- presa. Jorge Neto, suas irmãs
tenária, bastante tradicional, com 550 fun-
fatos da Mercur Débora e Flávia e o braço
cionários e navegando no azul? É o que está Fundada em direito deles na operação da
acontecendo, de 2008 para cá, com a gaú- 1924 por Jorge Mercur, o diretor Breno Strus-
e Carlos Hoelzel,
cha Mercur, que produz artefatos de borra- descendentes smann, disseram: “Queremos
cha tão variados quanto pisos, revestimen- de imigrantes o mundo de um jeito bom para
tos e bolas em Santa Cruz do Sul (RS). alemães, para todos. Ter produtos que levem
produzir artefatos
Um dia, em 2008, Jorge Hoelzel Neto, in- de borracha que bem‑estar. Praticar a sustenta-
tegrante da terceira geração da família no consertavam pneus. bilidade em relação às pessoas.
comando dos negócios, principal executivo Atuar em mercados éticos, que
da empresa desde 1991 e que hoje se deno- Sociedade anônima, valorizem a vida”.
mina seu “conselheiro”, teve uma espécie de não listada em bolsa, Poderia ser apenas mais um
teve receita em
revelação, derivada de sua prática espiritual: 2013 de R$ 110,8 discurso motivacional para
sua empresa não estava no caminho certo. milhões e Ebitda funcionário ver –e um futuro
O empresário deu-se conta de que as de R$ 6,9 milhões. discurso de marketing para os
organizações em geral, e a sua integrava consumidores finais. Mas não
o grupo, “olhavam apenas para o próprio fábrica tem 550
A está sendo.
funcionários e
umbigo”, esquecendo seu dever primor- produz 1,5 mil
dial de servir as pessoas –e, assim, torna- itens para o HIERARQUIA acaba
vam‑se reféns de seu capital. Com as ir- consumidor final, de Em 2011, veio a primeira de-
prática de esportes
mãs, que o apoiaram, resolveu reescrever e saúde, como bolas cisão da Mercur, que marcou
essa história, estimulando clientes, forne- de exercício, bolsas o que ficou conhecido interna-
cedores e funcionários a integrar uma ca- térmicas e muletas. mente como a “virada de cha-
deia de produção e consumo sustentável e No segmento ve”: eliminar os chefes. Os cin-
B2B, oferece
benéfica para o planeta. soluções co diretores foram rebatizados
customizadas, de “facilitadores” e sua princi-
virada de chave como lençóis pal função passou a ser abrir os
de borracha,
Em 13 de julho de 2009, a proposta de caminhos para a implantação
Fotos: shutterstock
pisos especiais,
mudar foi anunciada à comunidade de imobilizadores etc. dos propósitos direcionadores
funcionários reunidos no auditório de um da companhia.
edição 104 | 95
estratégia e execução | case
96 | edição 104
À esq., mosaico de projetos da empresa:
(1) Projeto Expedição, com a parceria
da Vaga Lume, na Amazônia, (2) projeto
Diversidade na Rua, (3) Projeto Óleo de
Mamona e (4) Projeto Educação
guntado por que as organizações, em geral, vêm apresentando resul- é um livro sem rodeios. Vai direto à es-
sência de como líderes diferenciados
tados insatisfatórios. Seja bem-vindo(a) a essa crescente rede de pes-
NOVA
mas, demandas e paradoxos fazem parte
no Brasil, que se transformaram ou emergiram nos últimos 30 anos, do cotidiano e desafiam os modelos tra-
navegando nas ondas das mudanças e encontrando caminhos inova- dicionais de gestão.
dores, diferentes e próprios para operar, com resultados invejáveis. “A pesquisa e os insights que Vicente
ECONOMIA
Elas estão antenadas com as últimas descobertas científicas sobre o exemplos claros a força mobilizadora que
surge em organizações em que há um pro-
o fosso salarial
O Brasil ainda tem pela frente muitos desafios para alcançar o nível de trabalhamos mais fortes e saudáveis.”
pesquisador da evolução organizacional e
humana, especialista em transformação or-
desenvolvimento com que tanto sonhamos, e é justamente isso que NEy SilVA ,
consultor e ex- diretor de RH da Natura.
configura a grande oportunidade apontada neste livro. Atuando de
A avaliação do desempe-
ca formado pelo instituto Tecnológico de
prios sem destruir o que temos de mais precioso: a facilidade de nos novo modelo de gestão, que efetivamen-
Aeronáutica (iTA) e pós-graduado em ad-
ministração industrial pela Fundação Van- relacionarmos uns com os outros, nosso empreendedorismo, nossa te crie um ambiente que mereça a paixão
ça a amadurecer na Mercur,
projetos de Felicidade interna Bruta nas pena ler sobre as diferentes possibilida-
empresas. é cofundador do movimento Ca- des em curso, dentro e fora do Brasil, e co-
ISBN 978-85-916983-0-1
pitalismo Consciente Brasil e também con- nhecer o arcabouço proposto por ele – e
edição 104 | 97
estratégia e execução | case
Propósitos, cultura
e organização
5 Propósitos
• O propósito maior da empresa
é para com a Terra e a sociedade.
• O sucesso tem várias dimensões
e atende múltiplos stakeholders. Projeto da Mercur para incentivar a retomada
da produção de borracha natural na região
• Há metas claras de diminuição denominada Terra do Meio, em Altamira, no
de insumos não sustentáveis. estado do Pará, com novas tecnologias
• Criamos novos modelos de negócio
para maximização da ocupação e
lucros, que pode render até um Um episódio marcante da
renda de trabalhadores.
salário e meio a mais por ano. nova fase ocorreu ainda em
• Respeitamos todas as formas de vida.
6
Ainda foi proposto um pro- 2009, após a “virada de cha-
grama intensivo de promo- ve”. Havia alguns anos, a Mer-
ções: a Mercur hoje pratica- cur vinha pesquisando a fabri-
Ênfases culturais mente só recruta novos funcio- cação de uma nova esteira de
• Cuidado das pessoas como
nários para o chão de fábrica; material atóxico para linhas de
estratégia de sustentabilidade.
as demais posições são preen- produção, alternativa à esteira
• Valorização da vida.
chidas por talentos internos. de PVC, por encomenda de
• Compaixão e atuação ética.
Outro ponto enfatizado pela um cliente da indústria do ta-
• Diálogo como instrumento Mercur é que não se planejam baco que havia sido advertido
de coordenação.
demissões na empresa. “O que pela Agência Nacional de Vi-
• Respeito e tolerância.
estamos montando é para to- gilância Sanitária (Anvisa).
• Autonomia e protagonismo.
8
dos nós; se fizermos direito, o Formulação pronta, mer-
benefício voltará para todos”, cados promissores abrindo‑se
explica Jorge Neto. no horizonte, a Mercur refle-
Mudanças organizacionais tiu: “Esse lucro que financia-
• Redução drástica da hierarquia. Escolha dos clientes ria nosso bem‑estar particular
• Escolha de setores de atuação e conforme os propósitos viria do mesmo fumo que pro-
parceiros conscientemente coerente Imagine-se rejeitando clien- voca câncer”. A empresa pro-
com o propósito.
tes não porque não sejam lu- curou o cliente e avisou: não
• Colegiados organizados por
setores da empresa e facilitadores
crativos, mas porque não são produziria a esteira. “Precisa-
corresponsáveis. adequados aos propósitos da mos explicar muitas vezes que
• Diminuição da diferença entre o maior empresa. agíamos em favor das pessoas,
e o menor salário na empresa. A mudança da Mercur mas acho que o pessoal da in-
• Incentivo variável coletivo baseado já chegou a esse ponto. Ela dústria do tabaco entendeu”,
no resultado global da empresa. vem revendo os contratos diz Jorge Neto.
• Cadeia de valor sustentável. e, quando julga necessário, Meses depois, surgiu ou-
• Marketing consciente. descontinua linhas de pro- tra situação de tradeoff. Uma
• Uso de materiais naturais dutos que não correspon- montadora, depois de vencer
e sustentáveis. dem aos novos anseios, dimi- licitação para a venda de veí-
nuindo a receita. culos para a Organização das
98 | edição 104
conversa com
jorge neto,
conselheiro da mercur
Houve momentos em que vocês
pensaram em desistir das mudanças?
Nunca pensamos em desistir, mas em várias
ocasiões precisamos fazer ajustes de velocidade,
porque entendemos que cada pessoa tem seu
tempo. Se quisermos andar todos juntos, o que
é fundamental em nosso propósito, precisamos
nos adequar a essas velocidades. Além disso,
quem atua em função de seus propósitos, sem
o oportunismo das situações momentâneas,
dificilmente conseguirá mudar de rumo ou
voltar as costas para aquilo em que acredita.
Nações Unidas (ONU), pro- números e futuro A mudança acabará ou é contínua?
curou a Mercur para produzir A transformação da Mer- Operar com paradigmas que valorizam a
uma peça que deveria servir cur teve início em um tem- vida acima de qualquer outra oportunidade
de apoio para atiradores. Um po de grande prosperidade situacional é um processo contínuo de evolução
sem data para terminar nem objetivo a atingir.
funcionário do chão de fábri- financeira –os anos 2010 e
ca questionou a finalidade da 2011 foram ótimos para a O que fornecedores e clientes
produção e a encomenda não companhia. No entanto, a lu- pensam dessa mudança?
foi fechada. cratividade da empresa final- Os parceiros vão se engajando à medida
O leitor pode argumentar mente começou a ser afetada que seus propósitos se encontram com os
nossos. E é isso mesmo o que queremos:
que, tanto no caso da esteira pelas medidas tomadas e, no atuar com parceiros cujos propósitos se
como no da peça para o veí- final de 2012, ela foi obriga- identifiquem com os nossos, sem que eles
culo, tratava‑se de receita não da a se perguntar: “Se já não abram mão de sua identidade.
realizada, algo de que, em entra tanto, o que pode dei-
Como a mudança avança este ano?
teoria, é mais fácil abrir mão. xar de sair?”.
Estamos na fase de experimentações,
Difícil mesmo seria renunciar Cortaram‑se, por exemplo, trabalhando em muitos projetos “incubados”.
a ganhos correntes e polpu- investimentos em áreas que Em 2014, estamos criando um laboratório
dos, não? parecem não mais fazer sen- de inovação social, que terá um espaço
Mas a Mercur fez isso tam- tido no novo modo de ope- físico aqui na sede da empresa, mas também
bém. Ela licenciava produtos ração, como as dispendiosas vai fazer atividades itinerantes. Seguimos
fortalecendo nossa teia de aprendizados por
com personagens adorados feiras de papelaria em gran- meio de muito relacionamento.
pelas crianças, como Barbie des centros.
e Moranguinho, e seus fun- É uma prova de fogo, mas
cionários se deram conta de o discurso do CEO Jorge Ne-
que não fazia sentido a mes- to é de confiança no futuro,
ma borracha escolar custar o amparado pela certeza de es-
dobro só porque tinha a ima- tar investindo no que será a
gem da Barbie. “Nós nos per- economia do futuro. Como
guntamos: queremos conviver ela será? Ainda não se sabe
com isso?” A reflexão coletiva ao certo, mas vai basear-se
resultou na ruptura dos licen- em relacionamento, inova-
Fotos: sdivulgação
edição 104 | 99