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Vanessa R.

L ea

M emor ial
Pr epar ado par a a r eclassificação por mér ito
par a pr ovimento de um car go de Pr ofessor Titular

Departamento de Antropologia, IFCH-UNICAMP


Área de Etnologia Indígena
Março de 2010

SUM ÁRI O
Influência latina ................................................................................................................ 2
Graduação ......................................................................................................................... 3
Pós-Graduação.................................................................................................................. 5
América Latina ................................................................................................................. 6
Doutorado ......................................................................................................................... 8
Pesquisa de campo no doutorado e posteriormente........................................................ 10
Docência ......................................................................................................................... 17
Tese................................................................................................................................. 18
Pós-doutorado e produção de um livro........................................................................... 21
Língua mebengokre ........................................................................................................ 26
Perícias............................................................................................................................ 29
Ensino na UNICAMP ..................................................................................................... 29
Professor convidado ....................................................................................................... 35
Orientações ..................................................................................................................... 35
Educação Indígena.......................................................................................................... 38
Publicações ..................................................................................................................... 40
Participação de bancas.................................................................................................... 42
Assessoria ....................................................................................................................... 43
Administração................................................................................................................. 43
Coordenação de Grupos de Trabalho e de Simpósios .................................................... 44
Participação em Congressos, etc. com trabalhos apresentados.......................................45
Ensino de inglês e Tradução ........................................................................................... 45
Trabalho Fotográfico ...................................................................................................... 45
Balanço inteletual e da conjuntura atual da etnologia .................................................... 46
Projetos de Pesquisa para o futuro.................................................................................. 50
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A DELIBERAÇÃO CONSU-A-27, de 22-04-2008, que dispõe sobre o Perfil de


Professor Titular no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, solicita um memorial
circunstanciado sobre as atividades por ele desenvolvidas desde sua última promoção.
Fui promovida de Professor Assistente a Professor Associado MS5 no dia 03/01/2001,
portanto, este relato enfoca mais especificamente minhas atividades a partir de 2001. No
entanto, já que eu não compreendia bem o espírito de um memorial na última ocasião
que redigi um, em 2000, julguei necessário apresentar um novo memorial abrangente.
Para quem, como eu, a língua materna é inglês, um memorial soa como algo apropriado
apenas para os mortos.
Tendo em vista requisitos do Conselho Universitário (CONSU), desde já apresento um
breve resumo quantitativo de minha produção acadêmica a partir do ano de 2001:
Publicações: 7 capítulos de livro; 4 artigos; 1 livro no prelo.
Ministrei 12 cursos de graduação e 9 cursos de pós-graduação.
Participei de 25 bancas de mestrado e de doutorado.
Orientações concluídas: 2 de mestrado.
Obtive quatro bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq.
Fui chefe do Depto. de Antropologia entre agosto de 2005 e fevereiro de 2008.
Atualmente ocupo a coordenação do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI).

I nfluência latina

Minha iniciação à cultura latina veio aos cinco anos de idade quando fui à
Maiorca de férias. Apaixonei-me por dança flamenca, mas naquela época era impossível
encontrar aulas de flamenco em Liverpool. Minha primeira experiência de ensino foi
também na Espanha quando, aos quinze anos (em 1969), trabalhei brevemente para uma
família de Valência, ensinando inglês para uma moça.
A partir de 1961 cursei uma escola católica depois de mudar de casa, por falta de
vaga em outra escola, dando grande desgosto a minha avó materna, descendente de
protestantes escoceses que encarava os católicos de modo muito preconceituoso. Meu
pai me aconselhou a não revelar que eu não havia sido batizada e suponho que foi essa
exposição a pontos de vista conflituosos que me proporcionou um olhar relativista
desde cedo. Meu pai não concordou com minha transferência para uma escola de teatro,
como eu queria. No entanto, frequentei uma escola de artes cênicas aos sábados, em
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Liverpool, e segui o currículo de exames nos seus diferentes graus – certificado, bronze,
prata e ouro – nas categorias leitura de poesia e de prosa, Shakespeare, apresentação de
trechos de peças teatrais etc. Escrevi uma peça de teatro com dez anos de idade e a
partir daí comecei a escrever poesia. Além disso, frequentei o círculo de poetas de
Liverpool durante algum tempo antes de entrar na universidade.
Minha relação com a América Latina começou aos sete anos de idade na
mudança de casa já mencionada. Várias casas na mesma rua acabaram sendo alugadas a
famílias de cônsules. Assim sendo, passei a conviver com uma família espanhola,
seguida por uma família venezuelana, e simultaneamente com uma família peruana,
seguida por uma família uruguaia/brasileira. Acabei sendo bastante integrada no
cotidiano dessas famílias. Íamos juntos para escola onde havia inclusive uma família
brasileira cujo pai, também cônsul, teve que voltar ao Brasil em 1964.
Influenciada por peças de Tchechov e romances russos quis aprender russo, mas
somente a escola católica para meninos oferecia essa possibilidade. Tive que assistir
aulas de latim a contragosto, desperdiçando uma oportunidade que teria contribuído
para o estudo das demais línguas que aprendi mais tarde porque não me conformava em
ter que aprender uma língua morta. Tive que esperar até treze anos de idade para
começar a estudar espanhol, algo que ansiava fazer devido a minha convivência intensa
com pessoas que falavam essa língua. Comecei a estudar francês aos onze anos de idade
e pretendia estudar literatura francesa e espanhola na universidade. Em francês eu tinha
lido autores como Molière, Racine e Mauriac, além de muita poesia, e o currículo em
espanhol incluiu Cervantes, Pio Baroja, de Lara entre outros. No equivalente ao
vestibular acabei colocando como primeira opção os estudos latino-americanos, sem
saber que isso implicava a rejeição automática pelos cursos de literatura francesa e
espanhola.

Gr aduação

Ingressei na Universidade de Essex em 1971, no School of Comparative Studies,


no programa de estudos latino-americanos, pretendendo estudar literatura com a
professora Jean Franco. Porém, no meu primeiro ano ela foi embora para os EUA, fruto
da fuga de cérebros, para ganhar um salário melhor. O primeiro ano da faculdade
juntava alunos de estudos latino-americanos com alunos de estudos soviéticos, norte-
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americanos e europeus. Estudávamos política, sociologia, história, literatura e arte.


Lembro que o primeiro semestre enfocou o século das luzes e o terceiro semestre o tema
da revolução (a russa e a cubana). Não me lembro o tema do segundo semestre. Foi
também nessa época que iniciei o estudo de português. Um dos meus professores foi o
poeta brasileiro Bruno Tolentino que morreu alguns anos atrás.
Meu principal professor de literatura foi Gordon Brotherston, conhecido hoje em
dia como especialista em literatura maia. O curso de arte incluía visitas mensais a
galerias em Londres, a uma hora de meia de Essex. Gostava de arte, mas achava que a
opção por essa área implicaria em uma escolha por um meio social elitista. Dawn Ades,
curadora de exposições de arte latino-americana, foi uma dos meus professores. Já que
achava fácil o estudo de literatura e uma grande novidade o estudo de sociologia e,
devido ao clima altamente politizado da Universidade de Essex naquela época, acabei
optando por me formar em política e sociologia.
No segundo ano em Essex estudei metodologia das ciências sociais, política e
teoria sociológica, sistemas políticos da América Latina, sociologia da América Latina,
e português. No terceiro ano estudei populismo, urbanização, sociologia política e
literatura política. Como projeto de graduação pretendi estudar literatura pós-
revolucionária cubana. Porém, minha tentativa de obter um visto para visitar Cuba
fracassou por coincidir com a expulsão de um diplomata cubano de Londres.

Em 1973 acabei indo estudar mudança e continuidade num kibbutz em Israel, em


parte por ser economicamente viável. A viagem aérea foi permutada por trabalho num
kibbutz. Trabalhei em vários setores de um kibbutz perto da fronteia com Líbano,
principalmente numa plantação de banana, podando bananeiras e preparando o café da
manhã para os demais trabalhadores. Tive as tardes livres para realizar entrevistas,
dando início à experiência de pesquisa de campo. Israel era um tema polêmico no
ambiente universitário daquela época e queria entender melhor de primeira mão o
embate entre palestinos e israelenses. Pude fazer isso viajando por Israel e a área do
Sinai depois de terminar o estágio no kibbutz.
Chegar à América Latina acabou sendo bem mais complicado. Quando meus
vizinhos peruanos retornaram a seu país me convidaram a visitá-los depois, mas a
viagem acabou não se materializando. A Universidade de Essex não teve recursos para
mandar os estudantes a América Latina na época da minha graduação e acabamos indo
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fazer um curso de português em Lisboa, frustrando novamente o desejo de conhecer a


América Latina.
Na Universidade de Essex havia tantos alunos latino-americanos que algumas
aulas foram ministradas em espanhol. Lembro-me, por exemplo, de uma aula de Laclau
sobre mais-valia em espanhol. Em sociologia foi dado destaque ao tema de urbanismo,
de industrialização substituindo importação e as teorias de dependência econômica.
Dois de meus professores, Ernesto Laclau e Ezequiel Gallo, me convenceram a
continuar com meus estudos latino-americanos ao nível de pós-graduação.

Pós-Gr aduação

Fui aceita no programa do M.Phil no Latin American Centre da Universidade de


Oxford em 1974, num curso de dois anos com exames escritos no final (no meu caso
sobre história latino-americana, sociedade latino-americana, a sociedade brasileira e as
sociedades ameríndias) e a produção de uma dissertação. No segundo ano obtive uma
bolsa integral do Social Science Research Council (SSRC).
Inicialmente fui inscrita na área de política e estava interessada em pesquisar a
guerrilha. Fiquei desiludida ao descobrir que política no Latin American Centre era
reduzida ao estudo dos sistemas políticos institucionalizados; havia muito interesse pelo
populismo, especialmente o peronismo e o varguismo. Acabei me transferindo para a
área de sociologia. Meu professor de sociologia em Oxford era um moçambicano,
Hermínio Martins, com quem enfoquei temas como o racismo e a teoria da dependência
econômica. Todos os alunos estudavam também a história da América Latina.
Ao ingressar a Universidade de Oxford fui admitida a Linacre College onde se
concentrava muitos alunos estrangeiros e fui alocada ao Prof. Peter Rivière como moral
advisor, uma espécie de padrinho. Ele foi um dos primeiros antropólogos a realizar
pesquisa de campo nas terras baixas da America Latina na década de 1960, pesquisando
os Trio da Guiana Inglesa. Ele incentivou meu interesse pela antropologia e fui a única
estudante do Latin American Centre que optou por um curso de antropologia, o que me
deu o privilégio de ter aulas particulares com Rivière. Assisti palestras dele ministradas
aos alunos do diploma em Antropologia, no Institute of Social Anthropology e,
conforme o estilo de tutorials de Oxford, redigia trabalhos que li em voz alta para meu
professor. Assisti também algumas aulas de Audrey Butt Colson no Museu Pitt Rivers.
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Essa antropóloga foi uma pioneira no estudo de xamanismo nas terras baixas da
América Latina. Naquela época havia um clima de antipatia entre o Institute of Social
Anthropology e o Museu Pitt Rivers. As pessoas ligadas ao instituto olhavam o museu
com desprezou, associando-o ao evolucionismo e difusionismo. A metamorfose em
antropóloga, no entanto, demorou a consolidar-se até chegar ao Brasil.
Para minha dissertação pesquisei a participação dos índios Mapuche do Chile no
governo popular de Allende. Eles tinham a reputação de terem sido uma vanguarda
política daquele governo devido a sua ocupação de latifúndios. Entrevistei alguns
líderes Mapuche refugiados na Inglaterra, mas a dissertação era basicamente
bibliográfica, uma preparação para fazer pesquisa de campo ao nível de doutorado
(D.Phil). O titulo da dissertação foi: The Mapuche Indians of Chile. Their Struggle for
Land. Foi orientada por Alan Angell por ser mais sociológica do que antropológica.
Devido ao grau de repressão política no Chile fui aconselhada de que não
haveria condições para pesquisa antropológica lá naquela época. Tive que aguardar o
fim da ditadura de Pinochet ou mudar de pesquisa. Era frustrante passar mais dois anos
estudando América Latina sem ainda conhecer o continente de primeira mão. Decidi
tentar obter uma bolsa de estudo para viajar a América Latina antes de entrar no
doutorado. Hoje em dia, com o endividamento de estudantes universitários através de
empréstimos para financiar seus estudos, o tipo de trajetória que tive, o de abandonar o
país de origem, torna-se cada ver mais difícil. Em 2005 naturalizei-me brasileira mais
por minha indignação com a invasão de Iraque pela Inglaterra do que por acreditar que
esse ato modificaria minha vida no Brasil.

Amér ica L atina

Havia três possibilidades de bolsa de estudo, todas mediadas pelo Conselho


Britânico. Descartei México por estar perto demais dos EUA e Argentina não me atraia
por ser considerada a Europa da América Latina. Resolvi então tentar pleitear uma bolsa
para estudar no Brasil. Era oferecida pelo Ministério das Relações Exteriores,
Departamento de Cooperação Cultural, Científica e Tecnológica, Divisão de
Cooperação Intelectual. Foi ainda no tempo da ditadura, mas fazer pesquisa no Brasil
não era considerado tão perigoso quanto seria no Chile daquela época. Fiquei amiga de
um antropólogo norte-americano, Ken Brecher, que havia feito pesquisa entre os Waurá
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no Alto Xingu. Foi ele quem me recomendou optar pelo Museu Nacional no Rio de
Janeiro. Nessa mesma época conheci o casal de etnólogos Stephen e Christine Hugh-
Jones, da Universidade de Cambridge. Lembro-me que Steve desaconselhou pesquisa
etnológica no Brasil afirmando que a Inglaterra já tinha três etnólogos sul-
americanistas, Peter Rivière, Joanna Overing e ele mesmo e não haveria emprego para
mais um. A própria Christine Hugh-Jones abandonara a antropologia quando o
departamento de Cambridge recusou admitir um casal de etnólogos. Em seguida ela se
formou como médica, profissão que exerce desde então. Em 2000 fui convidada a
candidatar-me para o emprego de Rivière quando se aposentou. O motivo por não
aproveitar essa oportunidade não é relevante ao memorial.
Realizei aulas de intercambio com um antropólogo brasileiro, José Sávio
Leopoldi. Eu lhe ensinava inglês e ele me ensinava português. Devido à repressão
política no Brasil, Ken Brecher me aconselhou a não assumir abertamente que estava
interessada pelos índios. Aproveitei meus estudos de sociologia para redigir um projeto
sobre a colonização da Transamazônica, um projeto governamental. Fui convocada pela
embaixada brasileira onde fui entrevistada pelo então embaixador, o economista
Roberto Campos. Tinha muito medo que ele pudesse perceber que meu projeto oficial
era mera fachada, mas dominava o assunto suficientemente para convencê-lo do meu
interesse pela estrada e fiquei aguardando a resposta sobre a bolsa.
No meio tempo, depois de terminar os exames de fim de curso (dois dias
inteiros) fiz um curso de ensino de inglês (TEFL) e comecei a dar aulas. Agi também
como intérprete para alguns refugiados chilenos, através do Chile Solidarity Campaign
de Oxford, conhecendo diretamente vítimas da tortura. O World University Service me
alocou como aluno particular de inglês um médico comunista que acabara de sair da
prisão depois de mais de um ano preso. Já no final do curso em Oxford começaram a
chegar refugiados da ditadura argentina me colocando em contato direto com
testemunhas da repressão política que assolava o continente naquela época.
Enquanto guardava notícias da bolsa viajei para os EUA e fui de Nova Iorque a
Boston para conhecer Shelton Davis, conhecido de Ken Brecher, meu amigo em
Oxford. Davis foi um dos fundadores de um centro de pesquisa importante, o
Anthropological Resource Centre (ARC) e havia realizado pesquisa de campo entre
índios guatemaltecos. Ele me arrumou um emprego voluntário num importante jornal,
Akwesasne Notes, dos índios Mohawk ligados ao American Indian Movement (AIM).
Trabalhei como tradutora de correspondência entre índios norte e sul americanos. Fui
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morar numa casa de madeira, sem água encanada ou luz elétrica, nas montanhas
Adirondack no estado de Nova Iorque, na fronteira com Canadá. Depois de pouco
tempo um voluntário cubano convenceu os Mohawk a expulsar os não índios da
comunidade (eu e um holandês; o cubano permaneceu).
Em seguida encontrei um ride center, coordenando pessoas oferecendo e
precisando de carona. Parti com um motorista de ônibus de Oregon para entregar um
carro em Los Angeles numa viagem de uns dez dias. Convenci meu co-motorista a
visitar Grand Canyon e as áreas indígenas dos Hopi e Navajo no meio do caminho.
Viajei de Los Angeles a San Francisco e de lá a México e Guatemala. Por meio de
indicações de Sandy Davis fui à comunidade de Santa Eulália onde ele havia feito sua
pesquisa de campo, numa área montanhosa, e andei a pé pelo campo. A Guatemala é o
país mais bonito que já vi, com paisagens maravilhosas e belíssimas roupas bordadas
diferenciando cada etnia indígena do país. Em fevereiro de 1977 o resultado da bolsa
saiu finalmente e viajei ao Brasil via Panamá.

Doutor ado

Cheguei ao Museu Nacional de mochila e gostava de usar roupas que trouxe da


Guatemala. Seeger me disse depois que havia alguma dúvida se eu era uma hippie ou se
eu queria estudar mesmo. Fui encaminhada a Anthony Seeger devido à minha intenção
de pesquisar índios da Amazônia e por ele conhecer Sandy Davis. Os Mebengokre me
interessavam desde que li notícias sobre eles na Inglaterra e sua resistência à construção
da estrada BR-80. Seeger pesquisava os Suyá, um grupo vizinho dos Mebengokre no
Parque do Xingu. Porém, insistia que era prematuro realizar um novo estudo sobre os
Mebengokre, o objeto do doutorado do orientador de doutorado dele, o Terence Turner.
Lembro que no início da minha pesquisa a etnóloga Manuela Carneiro da Cunha
também me aconselhou contra o estudo dos Mebengokre argumentando que não restava
nada novo a dizer. Posteriormente ela mudou de idéia, algo evidenciado em sua
publicação em 1993, «Les Études Gé» (L’ Homme. XXXIII n0 126-128), assim como
seu livro recém-lançado, os quais fazem referência à minha pesquisa.
Para ter uma primeira experiência de campo, Seeger me mandou aos Kayabi, um
povo Tupi-Guarani, também no Parque do Xingu. Fui junto com outro aluno de
antropologia, Miguel, e nada convencia os índios de que não se tratava de um casal. Eu
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lhes fazia perguntas e eles respondiam para Miguel. Eu pretendia estudar xamanismo,
mas Prepori, o grande pajé dos Kayabi, morava em outra aldeia. Era a época da
derrubada do mato para preparar novas roças e a pequena aldeia ficava deserta durante o
dia. A esposa do chefe Yurumuc falava português melhor do que seu marido, mas, na
presença dele ela me falava somente em kayabi, o que não entendia. O primeiro
Mebengokre que conheci pessoalmente era Bedjai que trabalhava como motorista de
barco na administração do Parque. Ele era mais orgulhoso do que os Kayabi que haviam
aprendido manifestar um certo estilo de submissão perante os não índios durante seus
anos de trabalho nos seringais. Atraia-me a idéia de uma grande aldeia e a descrição de
‘ festas’ (cerimônias) que duravam do anoitecer até o amanhecer do dia seguinte.
Combinei com Miguel que ele continuaria pesquisando os Kayabi e eu partiria,
finalmente, para os Mebengokre.
Foi no Museu Nacional que comecei a aprofundar o estudo de antropologia.
Meus professores no primeiro ano incluíam Roberto DaMatta e Castro Faria. Escolhi
uma mistura eclética de cursos. Estudei etnologia com Seeger e com João Pacheco,
campesinato e Kautsky com Moacir Palmeira e Lygia Sigaud, e linguística com Yonne
Leite. Naquela época não havia outros antropólogos interessados em lingüística; por
isso tive o privilégio de um semestre inteiro (o primeiro de 1981) como única aluna
antropóloga da professora Yonne. Fiz um curso de antropologia econômica com
Afrânio Garcia, um curso sobre ideologia com Ruben Cesar Fernandes e fui ouvinte de
um curso de Luis Fernando Dias Duarte sobre nomes. Geralmente os alunos
frequentavam aulas apenas de um determinado grupo, ou os etnólogos ou os marxistas,
mas consegui transitar entre um grupo a outro.
Eu e outra bolsista da Divisão de Cooperação Intelectual do Itamaraty, Bruna
Frachetto, da Itália, conseguimos renovar a bolsa duas vezes, dando um total de três
anos de financiamento. Nos anos 1977 e 1978 eu frequentava o Museu Nacional como
estagiária. Naquela época fui entrevistada no London School of Economics (LSE) como
candidata ao doutorado em Antropologia Social. Joanna Overing, que estudou os
Piaroa, um povo indígena na Venezuela, me aceitou como orientanda, mas Maurice
Bloch sugeriu que eu deveria fazer o diploma em antropologia antes de começar o
doutorado. Na mesma época o Museu Nacional iniciou seu programa de doutorado em
antropologia. Apresentei um projeto que foi aceito e obtive a nota mais alta na prova de
francês. O conhecimento de francês tem sido útil devido à grande influência da
antropologia francesa e porque é mais fácil ler obras em francês do que inglês para
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apresentá-las em português na sala de aula. E, ao redigir este memorial, estou


traduzindo citações do francês para o português para o meu livro.
Foi difícil escolher entre o LSE e o Museu. Acabei achando que fazia mais
sentido ficar no Brasil, já que ia realizar minha pesquisa de campo em Mato Grosso, do
que voltar para Inglaterra e batalhar bolsas para um diploma e o doutoramento
(incluindo pesquisa de campo no Brasil). Obtive uma bolsa de doutorado do CNPq a
partir de 1980, que foi renovada várias vezes e depois transformada em
complementação salarial até setembro de 1984. Eduardo Viveiros de Castro era outro
aluno da primeira turma do doutorado e também foi orientado por Seeger. Foi Eduardo
quem me sugeriu a leitura de Lévi-Strauss sobre as "sociedades de casas", peça
fundamental para o desenvolvimento da minha tese.
O Museu Nacional era um ambiente intelectual bem estimulante e possibilitou a
realização de várias etapas da pesquisa de campo, ao contrário da experiência da
maioria dos doutorandos europeus e norte-americanos que tendem a concentrar sua
pesquisa numa única longa viagem.

Pesquisa de campo no doutor ado e poster ior mente

Apresento a seguir uma tabela de toda a pesquisa que realizei no Brasil de 1977
até o presente, um total de aproximadamente dois anos. Para o doutorado fiz quase um
ano de pesquisa.

Tabela de pesquisa de campo no Brasil central


Viagem L ocalização Datas M eses e dias M eses e Apoio
N0 de acor do dias total financeir o
com
localização
K AYABI X INGU
I Parque do Xingu, 11/7/1977 – 1.17 1.17 Projeto de A.
com Kayabi 28/8/1977 Seeger,
Museu
Nacional
M ẼTYKTIRE X INGU
IIa Parque do Xingu 15/01/1978 – 2.05 Projeto de A.
20/03/1978 Seeger,
11

Museu
Nacional 1
IIb Aldeia Mẽtyktire 22/01/1978 – 1.26
19/03/1978

IIIa Parque do Xingu 01/09/1979 – 5.00 Projeto de A.


01/02/1980 Seeger,
Museu
Nacional
IIIb Aldeia Mẽtyktire 15/09/1979 – 4.15
01/02/1980

IV Aldeia Mẽtyktire 17/08/1980 – .05 .05 ABA


21/08/1980

Va Parque do Xingu 12/11/1981 – 7.06


18/06/1982
Vb Aldeia Mẽtyktire 13/11/1981 – 7.04
17/06/1982
VI Gorotire 26/07/1983 – .16 dias .16 National
10/08/1983 Geographic
VII Mẽtyktire 24/6/87 – .50 dias 1 .20 FINEP
12/8/97
VIII Parque do Xingu e 12/09/1994 – .06 dias .06 Justiça
Kapoto 17/9/94 Federal
IX Mẽtyktire von 09/12/1994 – .13 dias .13 Wenner-Gren
Martius 21/12/94
X Kapoto 13/01/1995 – .19 dias .19 Wenner-Gren
30/01/95
XI Kubẽkàkre, Pará 01/08/1998 – .06 dias .06 FUNAI
06/08/1998
XIIa Piaraçu 03/10/02 – .11 dias .11 FUNAI
11/10/02
XIIb Mẽtyktire von 22/09/2002 – .09 dias .09 FAEP
Martius 02/10/2002 UNICAMP
XIII Piaraçu 02/09/2005 – . 09 dias .09 FUNAI
10/09/2005
XIV Piaraçu 27/11/09 – .09 dias .09 FUNAI
5/12/09 SEDUC*
TOTAL 23.01
A PINAYÉ
XIV São José, 12/01/2008 – 19 dias FAEP &
Tocantins 30/01/2008 CNPq
Total de pesquisa de campo no Parque do Xingu, Kapoto-Jarina e Gorotire: 23 meses,
além de 19 days com os the Apinajé.
* SEDUC Superintendência de Educação Básica de Mato Grosso

1
As viagens realizadas entre 1978 e 1979 foram financiadas com recursos do Museu
Nacional. A bolsa do CNPq iniciou-se em março de 1980.
12

Inicialmente, dando continuidade a minha formação na Inglaterra, pretendi


estudar a relação entre os Mebengokre e a sociedade envolvente. Com essa finalidade
fiz contato com Darcy Ribeiro, inimigo declarado de Roberto DaMatta. Lembro
também da influência do livro de N. Wachtel, La vision des vaincus. Pretendi pesquisar
a visão dos Mebengokre acerca de sua subordinação aos brancos. Outro autor que me
interessava muito naquela época era Bourdieu, especialmente o livro Esquisse d´une
Théorie de la Pratique précédé de trois études d´ethnologie Kabyle. Os etnólogos não
gostavam muito desse autor que era lido pelos marxistas, mas Seeger me disse
posteriormente que eu tinha razão na minha insistência de incluir esse livro num curso
dele. Bourdieu (1977), partindo de um estudo sobre Argélia, sugere que nas sociedades
tradicionais, onde há ausência de acumulação econômica, pode haver competição para o
acúmulo de capital simbólico – honra e prestígio. Preferi o termo “ bens simbólicos”
para evitar a projeção da noção do capital numa sociedade indígena, e isso acabou sendo
o foco da minha tese.
Um autor muito influente no Museu naquela época era Dumont e sua teoria de
hierarquia. Foi também no Museu Nacional que comecei a ler Lévi-Strauss. Em Oxford
minhas leituras de antropologia se restringiam a um curso introdutório sobre a Etnologia
Sul-Americana, usando diversos autores. Foi no Museu que li também Mauss pela
primeira vez.
A pesquisa de campo para o doutorado dividiu-se em três etapas. Além disso, fui
ao Xingu em 1980 como representante da ABA, para obter informações sobre a morte
de onze peões pelos Metyktire, a subdivisão dos Mebengokre que pesquisava. No início
da pesquisa de campo fiquei impressionada quanto era obsessivo o assunto dos bens
industrializados (nekretx). Já que essa palavra era claramente um termo da língua
mebengokre, ao contrário de neologismos como ‘ tsal’ (sal) e ‘ txabão’ (sabão), intrigou-
me descobrir sua etimologia. Aos poucos fui adentrando o mundo das riquezas
imateriais dos Mebengokre – seus nomes e nekretx.
Realizei um levantamento da população da aldeia de Kretire, o local da minha
pesquisa, e fiquei intrigada pela dificuldade em obter os nomes das pessoas. Elas
discutiam entre si qual nome me contar, o primeiro nome, o nome bonito ou comum.
Descobri que as pessoas tinham vários nomes, sendo que um menino tinha mais de
trinta. Paralelamente fui aprofundando a diferença entre o que eu denominava Casas
Velhas e casas, o que subsequentemente designava como Casas ou matri-casas versus
13

habitações. Aparentemente dizia respeito a algum tipo de matrilinearidade, mas não


parecia se tratar claramente de clãs e linhagens. Meu orientador insistia que era
impossível a existência de matrilinearidade que não havia sido percebida por seu
orientador.
Encontrava-me na contramão do clima intelectual do meu tempo, sintetizado por
um artigo do meu orientador entitulado “ By Gê out of Africa” , ou seja, propondo uma
rejeição dos modelos provenientes da Antropologia inglesa, e em particular a teoria de
descendência e todas as suas implicações, tais como a existência de grupos corporados e
transmissão de propriedade. Tal rejeição foi um dos temas de um simpósio realizado em
Paris, no Congresso de Americanistas, organizado por Overing, publicado em 1977. O
tema da rejeição dos modelos africanistas clássicos foi divulgado no Brasil através do
artigo “ A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras” , de Seeger,
DaMatta e Viveiros de Castro, publicado em 1979 no Boletim do Museu Nacional (NS
32. pp. 2–19). Até hoje esse artigo tem muita repercussão. Estava na vanguarda da
descoberta antropológica do corpo como objeto de pesquisa etnológica, embora seja
lido frequentemente como a afirmação da especificidade simbólica da relevância do
corpo nas terras baixas da América Latina. Na minha opinião, o corpo é elaborado
simbolicamente de forma universal, embora o tema só ganhasse proeminência em outras
áreas etnográficas mais tarde. Acontece que o destaque dado ao corpo nas humanidades
deu um novo alento à noção de pessoa, ligado a um novo enfoque na questão da
subjetividade e à noção de agency. Uma das lições importantes para mim daqueles anos
no Museu Nacional foi a percepção de que o indivíduo é um produto histórico e não
uma pedra angular das sociedades de modo universal.
Nessa mesma época eclodiu a proposta do governo de emancipação indígena e
eu participava de reuniões da Comissão Pró-Índio no Rio de Janeiro, junto com meu
orientador, Seeger, que estava ativo nesse movimento anti-governamental.
O final da década de 1970, no mundo intelectual do Rio de Janeiro, foi também
marcado pela explosão de interesse no feminismo. Três colegas da minha turma, Bruna
Franchetto, Maria Laura Cavalcanti e Maria Luiza Heilborn lançaram a revista
Perspectivas Antropológicas da Mulher e a questão de gênero era um assunto debatido
diariamente. Dois fatos no meu passado já haviam me sensibilizado para essa questão.
Minha avó materna me contou que quando se casou, meu avô quebrou seu equipamento
de retocar fotografias (sua profissão na época). A partir daí o único provedor era ele. E
minha mãe reclamava que o pai dela não se preocupava com a educação dela, mas
14

somente do irmão dela; ele acabou estudando em Ruskin College, Oxford, e era
comunista.
Na minha pesquisa de campo a questão de gênero estava sempre presente.
Ficava inconformada quando meu poderoso “ pai” Raoni me despachava para a roça
quando estavam acontecendo reuniões políticas importantes nos Postos da FUNAI e eu
era impedida de ir junto. Apesar disso ele me levava à casa dos homens para ficar
ouvindo a conversa dos velhos. Minha “ mãe” , a mulher dele, perguntava se eu tinha
pênis quando ia à casa dos homens. Eu retrucava que não tinha pênis, mas tampouco
filhos com quem ficar em casa de noite. Também afirmava que os chefes no meu país
eram duas mulheres – a rainha Elizabeth e Margaret Thatcher.
Os homens Mebengokre afirmavam que não buscavam água ou lenha por não
precisar disso e as mulheres me exortavam a levar bastante comida da roça para
alimentar meu pai. Os homens transportavam apenas uma espingarda, estando de
prontidão para proteger as mulheres de onças e de índios bravos (não contatados). Os
homens eram antipáticos com seu ar beligerante. Antes de aprender a falar mebengokre
eu dependia dos poucos homens que falavam algum português. Aos poucos fui
aprendendo a língua, especialmente depois de estudar um pouco de linguística. Quando
tentava aprender inicialmente me debatia com situações como perguntar “ como se diz
nós dormimos em mebengokre?” , e receber como resposta três possibilidades: “ gu
ngono; gwai ngono” e ainda “ gu mẽ ngono” . Foi somente com a ajuda da lingüística que
descobri que gu é um pronome inclusivo que significa “ eu e você” ; “ gwai” remete a
“ nós” - enquanto um grupo pequeno de pessoas, e “ gu mẽ” significa “ nós todos” .
Na primeira ida aos Mebengokre, em 1978, somente três homens sabiam ler e
escrever em português e outros estavam ávidos a aprender, reclamando que os Villas-
Boas afirmavam que a escrita era algo dos brancos que eles não precisavam. Procurei a
ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI), em São Paulo, que já estava envolvida com
projetos de alfabetização em várias áreas indígenas e solicitei a ajuda de Maria Elisa
Ladeira para elaborar uma cartilha de alfabetização em português para os índios
Metyktire no Parque do Xingu. Trabalhamos nesse projeto nos meses de junho e julho
de 1979. O projeto foi aplicado por mim entre setembro de 1979 e fevereiro de 1980.
Havia somente alunos de sexo masculino porque nenhuma mulher falava português.
Vários alunos desistiram depois de pouco tempo ao descobrir que alfabetização era bem
mais complicada do que imaginavam. Alguns continuaram, inclusive depois da minha
15

saída do campo. Inicialmente eu usava fichas plastificadas, mas depois o CTI publicou a
cartilha.
A publicação não citou meu nome como co-autora por ser estrangeira, o que
poderia causar minha expulsão do país caso surgissem problemas. De fato a FUNAI
alegou que os verbetes, baseados em textos colecionados na minha primeira ida ao
campo, colocavam os índios contra seus irmãos não índios e a cartilha foi tirada de
circulação. Nessa mesma época fui alertada por uma professora no Posto de Diauarum,
no Parque do Xingu, Mariana Ferreira (hoje antropóloga), que ela tinha visto um
relatório sendo preparado pelo Chefe do Posto, o qual me denunciava como insuflando
os índios, acusação corriqueira aos antropólogos naquela época. Algum tempo depois a
FUNAI me recusou autorização para voltar à área. Gilberto Velho, chefe do depto. de
Antropologia no Museu Nacional, corajosamente convocou o Coronel Zanoni do SNI
em Brasília para ir dar explicações sobre os motivos de estar impedindo a realização de
pesquisa desenvolvida por um de seus estudantes. Após a reunião no Museu a
autorização acabou sendo liberada. Numa ocasião anterior a autorização havia sido
conseguida somente com a intervenção direta do chefe Metyktire Ropni.
Voltando à minha estratégia de troca, os alunos do curso de alfabetização
alegavam que não tinham tempo para me ensinar mebengokre fora da sala de aula
porque as aulas de alfabetização já interferiam com suas atividades de pesca. E minha
“ irmã” reclamou que os homens deveriam me alimentar porque eu só trabalhava com
eles. De qualquer maneira, foi uma primeira iniciativa de introduzir educação indígena
na área. Em 1982 uma professora não índia foi contratada pela FUNAI e foi morar na
aldeia, me desincumbindo de continuar com essa tarefa. Em 1981 publiquei um artigo
sobre essa experiência numa coletânea da Comissão Pró-Índio em São Paulo.
No decorrer da pesquisa de campo, à medida que aprendi a língua consegui
ocupar menos tempo participando dos trabalhos de subsistência e pude dedicar mais
tempo à pesquisa propriamente dita. Adotei a estratégia de circular de casa em casa,
levando um pedaço de plástico para poder sentar no chão e fazer anotações no meu
caderno. Meu orientador recomendou levar um pedaço de plástico para forrar goteiras
no teto, mas acabou se transformando no meu ‘ escritório móvel’ . Complementei o
censo da população da aldeia com o levantamento de genealogias. Descobri que, ao
contrário do que imaginava, a aldeia não era endogâmica. Acabei levantando vinte oito
genealogias que remetem a toda a população Mebengokre a oeste e a leste do rio Xingu.
Esse material foi anexado à tese em 1986, algumas genealogias medindo mais de um
16

metro de largura. Acabei a pesquisa de campo para o doutorado em meados de 1982


depois de uma última estadia de sete meses.
Em julho de 1981 participei de uma equipe de levantamento de dados sobre os
índios do Nordeste (Bahia, Pernambuco e Sergipe), para o Centro Ecumênico de
Documentação e Informação (CEDI) de São Paulo. Vários grupos visitados tinham
vivido como caboclos durante certo tempo, fruto da discriminação contra os índios. A
maioria era indistinguível fisicamente da população circunvizinha, uma situação bem
diferente do Parque do Xingu. Os Tuxá moravam numa ilha no rio São Francisco onde
irrigavam suas terras com um sistema elaborado de canais. Pouco tempo depois seu belo
sistema de roças irrigadas foi inundado pela construção da barragem de Itaparica em
1988. Nos anos seguintes a área do Nordeste foi objeto de análise das identidades
emergentes, reelaboração cultural e reafirmación étnica, estudadas entre outros por João
Pacheco de Oliveira. O fato de ter visitado vários desses grupos pessoalmente
enriqueceu minha bagagem etnológica.
No Parque do Xingu as entradas e saídas da área de pesquisa me deram a
oportunidade de visitar várias etnias além daquelas que pesquisei diretamente. No alto
Xingu visitei as aldeias dos Waurá, Kamayura, Yawalapiti e Trumai. E perto do Posto
de Diauarum, ao norte do Parque, visitei os Panará. Isso ajudou a aguçar meu
entendimento do contexto da criação e funcionamento do Parque, além de entender
melhor a especificidade dos Metyktire.
Em meados de 1983 viajei à aldeia Mebengokre de Gorotire, a leste do Xingu,
acompanhando um fotógrafo brasileiro, Miguel Rio Branco, que foi retratar o
envolvimento dos índios com as atividades de garimpo naquela área, incluindo a
poluição do rio Fresco com mercúrio. Meu texto acompanhou as fotografias dele
publicado na revista National Geographic e posteriormente republicado em francês e
holandês. Essa viagem, que se materializou via contatos entre o fotógrafo e Eduardo
Viveiros de Castro, me permitiu conhecer outra divisão dos Mebengokre e, do ponto de
vista acadêmico foi importante porque a revisão feita pela National Geographic foi
minuciosa, contribuindo para minha aprendizagem em redação.
No início de 2008 viajei até a aldeia Apinajé de São José, no Tocantins, junto
com minha orientanda de doutorado, Raquel Pereira Rocha. Anos antes Roberto
DaMatta havia me convidado a pesquisar os Apinajé como assistente de pesquisa dele,
mas, naquela época eu insisti em pesquisar os Mebengokre. De 1994 a 2000 Odair
Giraldin pesquisou os Apinajé para sua tese de doutorado sob minha orientação e outra
17

orientanda estudou os Apinajé para sua dissertação de mestrado entre 1999 e 2001.
Fiquei fascinada com a proximidade aparente, linguística e cultural, entre os Apinajé e
os Mebengokre.
Um colega escocês, Peter Gow, visitou vários de seus orientandos no campo e
aderi a esse exemplo indo ao campo junto com Raquel. Uns vinte dias antes de nossa
viagem os Apinajé mataram quatro não índios encapuzados que invadiram sua área para
tentar resgatar um trator que os índios haviam sequestrado numa das suas aldeias. O
clima era muito tenso com os Apinajé de oito aldeias congregados em São José por
medo de represálias. Fomos muito bem vindas, oferecendo uma espécie de apoio moral
ao chegar nesse contexto.
Numa reunião para a preparação dos depoimentos dos Apinajé para a Polícia
Federal, um dos índios chegou a referir à morte dos brancos como “ um crime bárbaro” .
Foi corrigido pelo Procurador da República que afirmou que os índios agiram em
legítima defesa. Posteriormente, perguntei ao porta-voz Apinajé que palavra
correspondia a “ bárbaro” na sua língua. Respondeu-me que era “ tàjtx” , que traduz como
‘ duro’ ou ‘ valente’ , o que é diferente do significado corrente da palavra “ bárbaro” em
português. Esse episódio demonstra a importância de estar sempre atenta à língua
indígena, fazendo a conversão para suas próprias categorias daquilo que dizem em
português.
Pude então finalmente verificar a proximidade linguística entre os Apinajé e os
Mebengokre. Os Apinajé são conhecidos na literatura antropológica como Timbira
ocidentais (situados a oeste do rio Tocantins), em contraste com outros povos Jê
daquela região conhecidos como Timbira orientais. Em novembro de 2008 apresentei a
comunicação: “ Problematizando a classificação das línguas Jê setentrionais e o rótulo
Timbira” , no VI Encontro de línguas e culturas macro-Jê, realizado na Universidade
Federal de Goiás. Foi publicado como capítulo pelos organizadores do livro proveniente
do encontro no início de 2009. Fiquei satisfeita que a viagem rendeu uma publicação
que contribui à classificação dos povos Jê setentrionais e que ocorreu com tanta rapidez.

Docência

Em agosto de 1983 ingressei no Conjunto de Antropologia da UNICAMP. O


primeiro curso, com duas turmas, foi dado junto com o professor Brandão. Fui
18

contratada junto com Luis Eduardo Soares que estudou no Museu Nacional junto
comigo. Substituímos Peter Fry, um dos fundadores do conjunto de Antropologia.
Pouco tempo depois do meu ingresso no IFCH minha colega Manuela Carneiro da
Cunha foi embora para trabalhar na USP.
O etnólogo Anthony Henman foi contratado pelo IFCH em setembro de 1981,
mas permaneceu somente até meados de 1989. Nádia Farage ingressou o conjunto no
início de 1985, mas aos poucos foi se distanciando da Etnologia. O etnólogo Robin
Wright ingressou na UNICAMP em meados de 1987 e foi um interlocutor intelectual às
avessas durante muitos anos. Discordamos sobre a universalidade da religião e do
sagrado, algo que nos rendeu boas discussões. Em 1990 apoiei a transferência de
Márcio Silva do IEL para o IFCH onde permaneceu até maio de 1998 quando foi
trabalhar na USP. Em 1992 foi cogitada a contratação pelo departamento de Eduardo
Viveiros de Castro, algo que acabou não vingando. Em 1994 participei da banca que
contratou John Monteiro, especialista em história colonial. Aracy Lopes da Silva entrou
no departamento em 1998, mas faleceu em outubro de 2000.
A UNICAMP se orgulha, com toda razão, por ter desenvolvido a antropologia
urbana como uma das suas marcas definidoras. Com poucos etnólogos, em comparação
ao Museu Nacional, a USP e a UnB, tem sido difícil atrair bons alunos para a área de
Etnologia. Meu colega John Monteiro não padece do mesmo grau de isolamento por
poder recorrer a interlocutores no Depto. de História. A heterogeneidade dos interesses
dos etnólogos tem sido bom, de um lado, mas de outro lado tem dificultado a elaboração
de um projeto comum para obter recursos financeiros.

Tese

Foi na UNICAMP que terminei a tese de doutorado em 1986. Depois da saída de


Seeger do Museu Nacional, por volta de 1983, fui orientada durante um tempo por
Eduardo Viveiros de Castro. Depois, para Seeger poder retornar ao Brasil para minha
defesa, fui repassada a ele novamente. Participaram da banca Seeger, Eduardo Viveiros
de Castro, Roberto DaMatta, J.C. Melatti e Aracy Lopes da Silva. Meu então
companheiro, Caio Navarro de Toledo, me disse que nunca havia assistido uma defesa
tão polêmica. Roberto DaMatta foi particularmente contestador. Soube depois que ele
19

não entendeu bem a tese e não conseguiu acreditar que um povo Jê pudesse fazer uma
distinção entre donos plenos e usufrutuários, conforme eu argumentava.
Tive a oferta de publicação da tese pela editora Marco Zero, pertencente a um
casal que estudou comigo no Museu Nacional e que publicara a dissertação de outro
aluno do Museu daquela época, José Sergio Leite Lopes. Lamentavelmente recusei a
oferta, insistindo em fazer uma revisão antes. David Maybury-Lewis se ofereceu para
encontrar uma editora nos EUA para publicar meu livro quando nos encontramos no
Rio de Janeiro em 1994, durante a reunião da ABA realizada em Niterói. Antes de eu
poder fazer a revisão necessária ele ficou doente e depois morreu. Eu também ficava
com receio dele querer censurar minhas críticas ao seu projeto Harvard-Brasil Central.
Também me senti usada como um meio para ele extravasar seus atritos com Terence
Turner.
A banca da tese havia me convencido que a questão da descendência matrilinear
ainda não estava bem resolvida e argumentava-se, com razão, que Lévi-Strauss elaborou
a noção de “ sociedades de casas” como ferramenta analítica para sociedades cognáticas,
sendo que nego até hoje a pertinência de cognatismo para a sociedade Mebengokre, a
não ser no sentido em que todas as sociedades reconhecem uma parentela cognática,
mesmo tendo descendência matrilinear, patrilinear ou dupla.
Depois da tese, dois outros caminhos de pesquisa se abriram, um sobre a
mitologia e sua relação com a organização social e o outro sobre aliança matrimonial. A
publicação dos dois volumes de mitologia Jê nos EUA, organizados por Wilbert e
Simoneau, o primeiro em 1978 e o segundo em 1984, foi muito importante por
disponibilizar uma quantidade enorme de mitos da maioria das sociedades Jê,
facilitando a comparação entre versões distintas num mesmo povo e em povos
aparentados em termos culturais e linguísticos. Eu mesmo publiquei três mitos
Mebengokre no segundo volume, provenientes da minha pesquisa de campo. Lembro-
me que Seeger considerou essa contribuição prematura, sendo que ainda não havia
defendido minha tese, enquanto a maioria dos autores já era mais conhecida. Ao estudar
os dois volumes de mitologia reconheci diversos nomes pessoais em uso entre a
população que estudei, o que me alertou para a conexão entre os mitos e a organização
social, um aspecto que pude incorporar no livro atualmente no prelo.
A geração ascendente de ‘ Jêólogos’ , Maybury-Lewis e seus ex-alunos como
Terence Turner, estava convencida de que não havia nenhuma forma de aliança
matrimonial entre os povos Jê. O ano em que terminei a pesquisa de campo para o
20

doutorado (1982), foi defendida a dissertação de mestrado de Maria Elisa Ladeira que
levantou a questão da relação entre a circulação dos nomes e dos cônjuges. Isso suscitou
dois colegas, Márcio Silva e Eduardo Viveiros de Castro, a me perguntar sobre a
relevância de aliança matrimonial entre os Mebengokre, algo que comecei a investigar a
partir daí.
Retornei ao campo em 1987, com financiamento da FINEP, num projeto
desenvolvido junto com meu colega Robin Wright. As duas aldeias que estudei para a
pesquisa de doutorado tinham se juntado a partir de 1985. Isso me permitiu verificar que
as matri-casas provenientes dessas duas aldeias estavam situadas no círculo de acordo
com sua posição tradicional em relação aos pontos cardeais. Fiz um censo, levantando
dados sobre casamento e gravei dez horas de mitos. Tive que sair do campo quando
contrai malária. O ano seguinte, engravidei de minha filha Julia e a pesquisa de campo
pode ser retomada somente em 1994.
Entre 1994 e 1996 desfrutei de uma bolsa da Fundação Wenner-Gren dos EUA.
Foi o melhor financiamento que já tive. A fundação prioriza resultados sem criar
grandes complicações burocráticas. Com essa bolsa realizei viagens às duas novas
aldeias Mẽtyktire que resultaram de uma cisão da aldeia que visitei em 1987. Em 1994
havia uma aldeia na beira do rio Xingu, perto da cachoeira von Martius e outra no
cerrado. Nessas visitas de 1994 e 1995 os homens e as mulheres Mẽtyktire estavam
fabricando pulseiras num ritmo frenético para vender à Body Shop. Uma mulher me
disse que gostaria de tomar anticoncepcionais para não ter mais filhos, dedicando-se à
produção de pulseiras para poder ter seu próprio dinheiro. Ou seja, havia um
questionamento em relação ao papel dos homens como provedores exclusivos de
dinheiro.
Nas duas aldeias atualizei os censos, chequei as genealogias e revisei a lista dos
nomes e de nekretx usadas na tese. Entre 1994-5 haviam 552 Metyktire cujas
genealogias remetem a 1.667 pessoas. Pesquisei a história conjugal de diversas pessoas.
Fiz novas gravações de mitos, com homens e mulheres, atentando para uma observação
de Seeger a respeito da diferença entre o estilo de narração dos homens e das mulheres.
Fotografei a última geração de homens que ainda usa batoques, e a pintura corporal que
está sendo trocada gradativamente por roupa.
Em julho de 1995, um dos homens Mẽtyktire, Mỳjkàrỳ, veio em casa em São
Paulo para me ajudar com a transcrição e tradução de mitos. Comecei a digitalizar as
narrações de Meyre, um velho de batoque cuja fala é difícil de entender. Suas narrativas
21

incluem a origem da morte, quando a lua esmagou um túmulo, tornando a morte


permanente. Logo depois de iniciar esse trabalho fomos informados que a esposa de
Mojkàr`y estava gravemente doente e ele teve que retornar à aldeia às pressas.
Na volta do campo, ainda com os recursos da bolsa, contratei uma pessoa para
me ensinar a usar o programa Corel Draw, sendo que somente em 1990 comecei a usar
o computador (em 1997 comecei a usar e-mail). O programa do Corel possibilitou, a
partir de 1996, desenhar plantas de aldeias no computador, mostrando a distribuição das
Casas e habitações. Incorporei o esquema de cores que usei na tese, uma cor para cada
Casa. Tal esquema foi incorporado não somente nas plantas, mas também nos censos
das aldeias e nas genealogias.
Nessa mesma época Wilmar Rocha d’ Angelis, linguista do IEL, me assessorou
na revisão da ortografia da língua mebengokre. Isso foi indispensável para fazer uma
lista de todos os nomes Mebengokre anotados no campo (totalizando 63 páginas), para
padronizar sua escrita. Por tratar-se de um povo ágrafo, tive que decidir como
uniformizar a ortografia dos nomes para evitar, por exemplo, listar duas vezes uma
mesma pessoa num banco de dados, devido à mudança de uma letra ou apenas um
acento. Uma mera diferença desse tipo pode subverter tal organização provocando
diferenciações espúrias. Wilmar indicou uma aluna de iniciação científica, Patrícia
Azeredo, para digitalizar dados linguísticos, uma tarefa que durou sete meses, de
dezembro de 1994 a julho de 1995. Ela incorporou dados provenientes de Earl Trapp,
um missionário do Miceb que estudou a língua na década de 1950, e os dados
provenientes dos missionários do SIL nas décadas de 1960 e 1970.
Em janeiro de 1996 descobri que minha coleção de 776 slides (1978 a 1987) estava
com fungo. Nessa mesma época outro aluno, Marcos Mendes, começou a escanear as
fotografias provenientes da pesquisa. Já que eu não dispunha de condições para conservar
os slides, iniciei o processo de doação para o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da
UNICAMP. Foi somente em 2001 que consegui catalogar a coleção e em 2002 que obtive
recursos do FAEP, UNICAMP, para copiá-la.

Pós-doutor ado e pr odução de um livr o

Na medida em que fazia mais viagens ao campo, adquirindo novos dados e


digitalizando dados já obtidos, ficava difícil encontrar tempo para reescrever a tese de
22

doutorado para publicação. A partir de 1988 consegui bolsas de pesquisa pós-doutoral


do CNPq, mas em 1999, pela primeira vez desde a obtenção do título de doutora, o
CNPq não concedeu a renovação da bolsa de produtividade em pesquisa, alegando que
meu projeto era “ uma peripécia cibernética” – aludindo a meu uso de gráficos com
Corel Draw, e a referencias à interface entre imagens, gravações e a escrita. Foi uma
mazela do mundo acadêmico no sentido em que a FAPESP aprovou o mesmo projeto
para realizar um pós-doutoramento na Universidade de Cambridge, Inglaterra. O
convite foi feito em 1998, por Stephen Hugh-Jones, durante o festschrift em
homenagem a Peter Rivière. O campo da pesquisa de Hugh-Jones, o Noroeste da
Amazônia, é a região onde há grupos de descendência patrilineares (sibs ou clãs),
oferecendo analogias interessantes com as matri-casas Mebengokre.
No Brasil, na década de 1990, devido à dificuldade de acesso a publicações no
exterior e à existência de linhas de pesquisa como Antropologia da Periferia
(desenvolvida na UNICAMP por Roberto Cardoso de Oliveira), o etnólogo tinha a
impressão de que sua perspectiva seria modificada de forma significativa com acesso a
novas informações provenientes do ‘ Centro’ . O ano na Inglaterra me convenceu que a
Etnologia Brasileira não é nada periférica hoje em dia.
O ano em Cambridge possibilitou uma série de leituras novas e ainda consegui
fazer vários pequenos cursos sobre informática. Minhas leituras incluiram uma
coletânea de Strathern, Property, Substance and Effect. Anthropological Essays on
Persons and Things, publicada em 1999. Esse livro foi importante por deslocar meu
foco dos nomes e nekretx enquanto objetos para enxergá-los enquanto aspectos partíveis
da pessoa, motivo pelo qual incorporei a expressão “ pessoas partíveis” no título do meu
livro que está no prelo.
A discussão sobre a noção Levi-Straussiana de sociedades de casas, que eu havia
feito na tese, deslanchou depois que ela foi defendida, principalmente nas seguintes
publicações:
M ACDONALD, Charles (org.) 1987. De la hutte au palais: sociétés “ à maison” en
Asie du Sud-Est insulaire. Paris:Centre Nacional de la Recherche Scientifique.
CARSTEN, Janet e HUGH-JONES, S. (orgs.) 1995. About the house: Lévi-Strauss and
beyond. Cambridge: CUP.
JOYCE, ROSEMARY A. E GILLESPIE, SUSAN D . (orgs.). 2000. Beyond Kinship: Social
and Material Reproduction in House Societies. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press.
23

Em 1990 participei do workshop realizado na Universidade de Cambridge por


Carsten e Hugh-Jones que resultou em sua coletânea publicada em 1995 e que inclui um
capítulo da minha autoria. Em Cambridge reli os livros de Macdonald, Cartsten e Hugh-
Jones, além de ler o livro recém-lançado organizado por Joyce e Gillespie. Isso me
convenceu a recomeçar a redação do meu livro do zero. Escrevi um capítulo em 2000,
contextualizando o caso Mebengokre nessa discussão. Ao produzir um novo manuscrito
em inglês, de 122 páginas, descobri que era um pesadelo tentar modificar a tese inteira,
além de traduzi-la em inglês. Resolvi então que, após a atualização teórica relativa às
“ sociedades de casas” , era insensato continuar desvinculando o manuscrito do livro da
tese. De volta ao Brasil redigi um capítulo novo (sobre o cotidiano) e depois resolvi
apenas modificar os demais capítulos. A tese foi defendida quando os computadores
pessoais estavam começando a serem usados e, consequentemente, foi datilografada, o
que significou digitá-la inteira. Foi feita a tentativa de scanear a tese, mas não deu certo,
sobrando tantos erros que inviabilizaram a correção. Somente pude retomar a revisão e
tradução em inglês no final de 2003. Depois de inúmeras interrupções, a versão em
inglês foi terminada no início de 2005.
Em julho de 2005, durante a revisão final do manuscrito do livro, dei conta do
fato de que minha decisão de excluir as vinte oito genealogias do livro acabou
eliminando o eixo vertical das matri-casas, algo essencial para o argumento de que tais
Casas estão estruturadas em termos de uma matri-linha de ancestrais. Excluí as
genealogias porque, além de não estarem digitadas, algumas delas medem mais de um
metro horizontalmente, algo que dificulta sua publicação num livro. A solução
encontrada, para comprovar que tais dados existem (na dificuldade de alguém consultar
a tese de 1986), foi elaborar uma série de diagramas que sintetizam a linha ascendente
da mulher mais velha de cada Casa (ver diagrama abaixo), deixando de lado a extensão
horizontal de cada genealogia para ser explorada em outra ocasião (na próxima etapa da
pesquisa).
24

1279 1280

Genealogy 23
House XVII
Pãjnmokr a Bepkrw àjkà

1281 695?

Pàd’yre ‘Ôkêt

1284 1285

Pykatànkwàrỳ Beppr êkti


G 24

91 580 175 172 1298 40 100 99 159 150 86 87 128 129

Ter oj Ngrebati Màdti’i Kutôj ‘Yànju Papojtx Bep’i Kenmy Porekrô


in PM* house 6
Kretire
1982
house 10 117 118 598 599 house 15 77 78 107 110 111 42 house 11 house 17 house 9 house 14
Kretire Kretire Kretire Kretire Kretire Kretire
1982 1982 1982 1982 1982 1982

Beptok Kôkônhôti Kwàrykà


` ‘Ôkêt ~ `
Nhidjy Iredjô Nhàknhôti
in PM PM house 6
Kretire
1982
house 13 106 139 house 8 house 12 house 12
Kretire Kretire Kretire Kretire
1982 1982 1982 1982

house 15
Kretire
1982
~
PM* = in Posto Mekr ãgnõti
Genealogy 24 complements G 23
Genealogy 25 refers to House XIII, absent from Kretir e

Foi necessário reler uma série de mitos Jê (nas publicações organizadas por
Wilbert e Simoneau, de 1978 e 1984), para me certificar a respeito da análise que faço
no capítulo sobre a fonte dos nomes. A tradução da extensa lista de bens simbólicos
pertencentes a cada matri-casa implicou um trabalho cuidadoso de pesquisa numa série
de livros sobre a flora e a fauna, checando os nomes em português, inglês, Mẽbêngôkre,
além dos nomes científicos em latim.
Seeger e outras pessoas me recomendaram que era mais importante publicar o
livro no Brasil do que no exterior. A revisora de português de minha tese de doutorado,
Wanda Caldeira Brandt, considerou que eu mesmo era capaz de traduzir meu livro.
Depois de constatar a péssima qualidade da tradução do livro O Indivíduo e a Sociedade
na Guiana, do meu ex-professor Rivière, publicada pela Edusp em 2001, que
praticamente significou o sucateamento do livro, resolvi traduzir meu próprio livro. Pelo
menos já estava digitado dessa vez em inglês, permitindo usar abundantemente o
recurso de cortar e colar. Já que tive pouquíssimo tempo para estudar o português
depois de chegar ao Brasil, em 1977, achei que a experiência da tradução ajudaria a
melhorar meu português. Acho que de fato ajudou, mas foi um empreendimento
gigantesco. Comecei a tradução em português no início de 2007 e terminei somente em
janeiro de 2010. Além de ser traduzida, a versão em português precisou de várias
revisões antes de ser entregue à editora.
25

Quando estava em Cambridge, a University Press daquela cidade já não se


interessava mais pela publicação de monografias, considerando coletâneas mais
rentáveis no mercado de livros. Tentei a Oxford University Press em 2001, mas essa
editora também já estava desistindo de publicar monografias. Em 2007, quando o livro
já estava pronto, tentei a editora Berghahn, recomendado por Rivière, mas essa me
respondeu que estava inundada com propostas naquele momento. Em 2008 tentei
Ashgate, recomendada por meu ex-colega, Robin Wright, mas nem obtive resposta. Em
2009 tentei a University of America Press, também recomendada por Robin Wright. A
proposta foi aceita em julho de 2009, mas acabei precisando recusar a assinar o
contrato, pois seria obrigada a comprar cem cópias do livro. Foi frustrante ter que tomar
essa atitude depois de tantas tentativas para achar uma editora, mas a FAPESP me
informou que essa fundação não financiaria duas edições, e naquele tempo eu já estava
tentando publicar o livro em português.
Em meados de 2007 tentei a editora Cosac & Naify, mas essa respondeu que
estava empenhada em republicar livros clássicos de antropologia. Encaminhei uma
proposta de publicação para a Edusp no dia 17/03/2008. Uma parte do manuscrito
estava em português e o resto ainda em inglês. A editora me informou que não precisava
ter aguardado a tradução do manuscrito em português. Se a editora tivesse interesse ela
mesma encomendaria a tradução. A Edusp aceitou publicar o livro em abril de 2009.
Inicialmente dei preferência à Edusp, pois ia me dar a resposta ao final de três meses.
Mas, para economizar tempo mandei o manuscrito à UNESP no dia 24/03/2008 com a
proposta de publicação. Essa editora especificava um ano para dar a resposta.
O site da Editora da UNICAMP exigia três cópias do manuscrito. No dia
01/05/2008 encaminhei a ficha com a proposta de publicação. A editora respondeu que
não se interessava sequer em ver o manuscrito. Um membro do conselho editorial
aconselhou o chefe de departamento, John Monteiro, a encaminhar o livro
pessoalmente, afirmando que a editora recebe muitas propostas e dá atenção apenas para
aquelas encaminhadas pessoalmente. O editor Prof. Dr. Paulo Franchetti reafirmou seu
desinteresse pela publicação do livro. É irônico esse tratamento na instituição onde já
trabalhava durante vinte cinco anos, especialmente porque a editora da UNICAMP já
publicou a dissertação de mestrado de um orientando meu.
Ao contrário do tratamento que recebi da Editora da UNICAMP, tanto a editora
da UNESP quanto a editora da USP aceitaram publicar o livro. O manuscrito foi aceito
pela UNESP em dezembro de 2008. Tanto a Edusp quanto a UNESP exigiam co-
26

financiamento. A UNESP aceitou fazer uma co-edição com a Edusp, mas essa última
editora tinha receios em relação à UNESP. A editora da UNESP me forneceu um
orçamento para encaminhar à FAPESP. A solicitação de recursos da FAPESP foi feita
em agosto de 2009 e a resposta afirmativa saiu no fim do ano. A editora da UNESP me
informou que precisava saber quanto a FAPESP estaria contribuindo. Mandei uma carta
com a quantia, mas não tive mais notícias. No meio tempo a Edusp disse que poderia
editar o livro com os recursos obtidos da FAPESP e aceitei essa proposta. A revisão do
português foi iniciada em novembro de 2009 e o contrato assinado em janeiro de 2010.
Esse mesmo mês, depois de ter entregado tudo menos as ilustrações, a editora me
informou que cada citação precisaria ser traduzida para o português. Já que o livro
dialoga basicamente com uma bibliografia em inglês e em francês há muitas citações
nessas línguas, algumas traduzidas e outras não. Achava que eu poderia deixar as
citações na língua original, pelo menos nas notas, mas a editora insistiu na necessidade
de traduzir tudo. Atenderei a essa exigência depois da entrega desse memorial.

L íngua mebengokr e

No primeiro semestre de 1988, ministrei no IEL, UNICAMP, junto com a Profa.


Lucy Seki, o curso Tópicos de Lingüística Antropológica, com o subtítulo: A Língua
Kayapó. Havia uma demanda proveniente da professora da FUNAI que residia na aldeia
de Kretire (onde fiz a maior parte da pesquisa de campo) de assessoria linguística. Ela
foi contratada em 1982, sem conhecimento prévio da língua mebengokre, para ministrar
aulas para adultos e crianças. Eu concordava que havia necessidade de pesquisa sobre
fonética, fonologia e sintaxe, e sobre o processo de educação, ou seja, campo para
vários pesquisadores em linguística. A finalidade do curso era examinar os materiais já
disponíveis sobre a língua e encontrar alunos de linguística interessados em pesquisá-la.
Naquela época não surgiu ninguém para levar tais empreendimentos adiante.
Em 1995, com a ajuda de uma estudante de linguística, comecei a digitar os
dados lexicais disponíveis, a maior parte proveniente de diversos missionários. Também
comecei a padronizar a escrita dos nomes Mebengokre, um passo indispensável para
montar as genealogias. A lista dos nomes pessoais rendeu um artigo sobre a poética dos
nomes, publicado em Recife em 2008, fruto de um encontro macro-Jê realizado na
Universidade Federal de Pernambuco em 2005.
27

Em 1996 obtive um pequeno auxílio do Fundo de Apoio ao Ensino e à Pesquisa


(FAEP) da UNICAMP para completar a digitação do material lexical Mẽbengôkre.
Naquele mesmo ano conheci um casal de mestrandos em linguística, Amélia Reis Silva
e Andrés Pablo Salanova, do IEL, UNICAMP, num evento sobre a língua mebengokre
no Museu Nacional. Resolvi redigir um projeto para a elaboração de um dicionário da
língua mebengokre que eu coordenaria com o auxílio dos dois lingüistas. O projeto foi
aprovado pela FAPESP e executado entre 1998-2000. A proposta era de que os
linguistas partiriam dos dados já digitados no projeto anterior para então conferir a
transcrição no campo.
No ano 2000, ao sair do Brasil por um ano, a FAPESP me obrigou a transferir a
coordenação do projeto para outro docente durante minha ausência. Gentilmente o
linguista Wilmar Rocha d’ Angelis, professor do IEL, assumiu a responsabilidade pelo
fim do projeto e pela entrega do relatório final. Mekarõ, administrador regional das
aldeias Metyktire, estava ciente do projeto e dava seu aval, mas quando os linguistas
chegaram em Colider, Mato Grosso, para ingressar na aldeia, o chefe Ropni afirmou que
ele não havia sido consultado e não autorizava a continuidade da pesquisa. Em 2002 ele
me disse que achava que o projeto ia servir para levar embora materiais como acontecia
na época em que missionários do SIL moravam com seu povo. Havia também uma certa
rivalidade entre os professores indígenas bilíngues, ávidos por ganhar salários, e o
assistente principal dos linguistas, Noru. Os professores olhavam o projeto com
desconfiança por ameaçar seu monopólio de atividades ligadas à educação. O projeto do
dicionário não poderia ser encaixado dentro dos cursos esporádicos e de curta duração
para a formação dos professores bilíngues e necessitava informantes com sensibilidade
específica em relação à questão da língua.
O casal de linguistas ganhou a antipatia da coordenadora de tais cursos na
FUNAI depois da publicação de um artigo crítico a respeito deles. Os dois linguistas
acabaram indo aos EUA, sendo que Andrés foi aceito no doutorado do Massachusetts
Institute of Technology (MIT). O casal resolveu retomar sua pesquisa com os Xicrin,
uma subdivisão dos Mebengokre. Seu assessor principal, Noru, morreu num acidente de
carro (junto com vários outros jovens ‘ guerreiros’ Metyktire) e o projeto acabou sendo
abandonado. Apesar de tudo houve um saldo positivo; tive a oportunidade de refletir
bastante sobre os dados lexicais provenientes dos Metyktire o que contribuiu para eu
não esquecer a língua à medida em que minha permanência no campo diminuiu depois
28

de completar o doutorado, ministrar aulas regularmente na UNICAMP e ter uma filha


para criar.
Dando continuidade a esse interesse pela língua mebengokre, participo, desde
2002, dos Encontros Macro-Jê organizados por linguistas e com a maior parte dos
participantes dessa área. O primeiro encontro foi realizado quando eu estava no exterior.
O 20 Encontro, em 2002, foi realizado no IEL, UNICAMP, e resultou em um artigo de
minha autoria publicado na Revista Liames sobre os termos triádicos mebengokre. No
Brasil isso não suscitou reação nenhuma, mas dois lingüistas na Austrália (incluindo o
atual chefe do departamento de linguística da Australian National University, em
Melbourne) ficaram muito interessados sendo que, até hoje, o fenômeno dos termos
triádicos havia sido encontrado somente entre os aborígenes australianos.
Para dar apenas um exemplo, se eu (mulher falando) me dirijo a minha irmã para
falar a respeito da minha filha, eu não digo “ minha filha” (ikra) nem “ tua filha
[classificatória]” (akra); digo akadjwojtx (ou akadjwojte se for caçula). Trata-se de um
terceiro termo que junta duas perspectivas simultaneamente: Tua filha = minha filha,
ou: tua filha que é minha filha. Ou seja, ao falar com minha irmã sobre minha filha
incorporo a relação dela com minha filha, além da minha relação com minha filha. Em
português (e em inglês), na mesma situação, eu evitaria dizer “ minha filha” ou “ tua
sobrinha” ; iria referir à minha filha apenas pelo nome dela. Em suma, esse recurso em
mebengokre permite incorporar duas perspectivas simultaneamente, no exemplo citado,
a minha e a da minha irmã.
O 30 Encontro Macro-Jê foi realizado na UnB, Brasília, em 2003 e rendeu uma
publicação que registrei como sendo em co-autoria com Bêribêri Txukarramãe, uma
anciã sábia que morreu em 2009. O artigo, intitulado “ Uma aula de choro cerimonial” é
fruto da transcrição de uma entrevista realizada com essa mulher em 1982, sobre a arte
do choro cerimonial, algo que envolve performances dramáticas por parte das mulheres
Mebengokre que batem suas cabeças com facões enquanto emitem o choro altamente
estilizado. Essa publicação exemplifica um dos propósitos do meu projeto de encontrar
uma maneira de dialogar com os Mẽbêngôkre, permitindo que sejam ouvidos em vez do
antropólogo ser apenas o seu porta-voz.
O 40 Encontro Macro-Jê rendeu um artigo sobre a poética dos nomes
Mebengokre, já mencionado neste memorial. Aproveitei o 50 Encontro Macro-Jê,
realizado na USP em 2007, para apresentar a terminologia de parentesco aos linguistas
porque no Brasil o parentesco é considerado assunto de antropólogos que os lingüistas
29

pouco entendem, ao contrário a países como Austrália onde esse tema é objeto
principalmente de linguistas. No mesmo paper, que será publicado em 2010, articulo
meu ponto de vista sobre a questão de gênero, retomado a partir de uma comunicação
feita na ANPOCS em 2001. A comunicação apresentada no 60 Encontro Macro-Jê,
publicada em seguida, já foi mencionada acima, referente a uma visita aos Apinajé.

Per ícias

Em 1987 fiz um primeiro trabalho técnico para a Procuradoria Geral da


República, analisando um laudo feito por outro antropólogo. Em 1994 realizei duas
perícias histórico-antropológicas como perita da Justiça Federal. Ambas incluíram
pesquisa de campo, no Parque do Xingu e na Área Indígena Kapoto. As duas perícias
foram publicadas pela UNICAMP em 1997. A elaboração das perícias me deu a
oportunidade de reestudar a legislação brasileira relativa aos índios, incluindo a
Constituição de 1988 e de entender melhor a linguagem jurídica. Também me
possibilitou visitar/revisitar diversas etnias no Parque do Xingu, tais como os Suyá (um
povo Jê), os Juruna ou Iudjá (Tupi) e os Kayabi (Tupi Guarani).
Em abril de 1998 foi realizado um seminário sobre perícias referentes às Áreas
Indígenas cuja transcrição seria colocada no site da ABA. Uma das participantes,
Virginia Valadão, morreu um mês depois do seminário e havia concordado com a
transcrição do seminário. Bruna Franchetto, do Museu Nacional, outra participante,
também concordou e a procuradoria da república manifestou seu interesse. O texto foi
enviado inicialmente ao jurista Sérgio Leitão, vinculado naquela época à ONG ISA em
São Paulo. No seminário, uma das questões levantadas por ele era se os antropólogos
estavam recebendo a formação necessária para elaborar perícias. Pouco tempo depois
ele foi morar em Brasília e nunca devolveu o material do seminário, apesar de várias
tentativas da minha parte para recuperá-lo.

Ensino na UNI CAM P

Graduação

Antes de concentrar no período após 2001 é necessário recapitular, brevemente, o


trajeto de ensino na UNICAMP como um todo para melhor caracterizar a coerência da
30

minha atuação ao longo do tempo. De meados de 1983 até 2001 ministrei cursos
regularmente na graduação no curso de Ciências Sociais no período diurno e depois de
sua criação em 1992, no período noturno. A partir da defesa da tese de doutorado, no
fim de 1986, comecei a ministrar aulas na pós-graduação no mestrado em Antropologia
e no doutorado em Ciências Sociais e, depois da criação da área em 1995, no doutorado
em Antropologia. Na graduação dei cursos de Organização Social e Simbolismo (cujos
subtítulos incluíram a noção de cultura, e o indivíduo e a pessoa), Etnologia Indígena,
Família e Parentesco, História da Antropologia e Introdução à Antropologia (com o
subtítulo Totemismo). Na pós-graduação ministrei cursos de Etnologia, Organização
Social e Parentesco, Tópicos Avançados em Família e Relações de Gênero, e História
do Pensamento Antropológico (sobre o funcionalismo estrutural britânico) e coordenei
o curso de seminário de tese junto com John Monteiro. Um curso ministrado no IEL
como já foi mencionado.
De 2001 até o fim de 2009 ministrei treze cursos na graduação, incluindo o
período diurno e noturno, nas áreas de parentesco, etnologia, pesquisa antropológica e
mito e rito. Dei um curso obrigatório sobre parentesco oito vezes entre 2001 e 2007. Em
função da frequência com que me foi alocado esse curso vale a pena citar o texto que
acompanhou o programa que ministrei a última vez em 2007.

Disciplina: HZ 467/A/B Antropologia e Estudo de Parentesco


(A bibliografia do curso pode ser encontrada no site da DAC, UNICAMP, no internet).
Os graduandos em Ciências Sociais tendem a achar que já entendem de parentesco por
experiência própria ou, alternativamente, que se trata de assunto feminino. Alguns ficam
chocados ao descobrir que, além de ter um jargão próprio, essa disciplina pode ser
altamente técnica e formal. O curso pretende mostrar que, além de ter sido uma das
áreas temáticas fundadoras da Antropologia Sócio-Cultural, dialoga com as novas
tecnologias de ponta e continua sendo muito relevante socialmente. Os parentes
continuam atuando onde o Estado é omisso como, por exemplo, sustentando pessoas
desempregadas. E basta assistir as propagandas de televisão para constatar a força do
parentesco nas representações no senso comum que atingem todas as classes sociais. O
natal é o grande ritual e potlatch das sociedades euro-americanas contemporâneas,
centrado na noção de família.
O curso fará um mapeamento dos primórdios da disciplina e das teorias clássicas
de descendência e de aliança matrimonial, além de inovações recentes como a noção
Lévi-straussiana de ‘ sociedades de casas’ . Será analisado como parentesco e gênero se
constituem mutuamente. O estudo da família e do casamento em sociedades não-
ocidentais visa desnaturalizar a familiaridade com o campo do parentesco e historiar o
enfoque no indivíduo, concebido pela antropologia como um produto histórico. Será
abordada também a relatividade da dicotomia do público e do privado. Um dos efeitos
não intencionais da tendência a universalizar os direitos humanos é a imposição de uma
nova hegemonia, naturalizando os valores euro-americanos, por exemplo, condenando
31

casamentos arranjados e poligamia. Será debatido se qualquer semelhança com o


paradigma evolucionista (na consolidação do colonialismo) é fortuita, ou um verdadeiro
déjà vu.
Plano de Desenvolvimento
Unidades para aulas expositivas: Teoria de descendência (unifiliação) e de aliança
matrimonial; a casa enquanto pessoa jurídica (sociétés à maisons); novas tecnologias
reprodutivas; gênero.

Já que se trata de um curso obrigatório para a formação em antropologia os


alunos tendem a encará-lo sem muita empolgação, embora eles mesmos tenham
resistido durante muitos anos às tentativas de reforma curricular propostas pelo
Departamento para transformá-lo em curso optativo. Para tornar o tema menos árido
venho propondo a realização de pesquisa por parte dos alunos sobre um determinado
assunto. Em 2006 o tema elegido foi o natal como palco para representar a família e o
parentesco na sociedade urbana contemporânea. Foi um desafio convencer os alunos a
dissociar natal de suas conotações religiosas para concentrar no seu aspecto de ritual de
parentesco, mas acabou rendendo trabalhos interessantes. Os alunos eram unânimes em
interpretar o natal como ritual que mobiliza a parentela enquanto o réveillon é um
evento que envolve os amigos. Ou seja, configura-se de modo ego-centrado uma rede de
parentes no natal, marcada pela comensalidade. Foi interessante constatar a dificuldade
em fazer os alunos reconhecerem que se dá um presente para mãe, irmão etc. não por
ser parente, mas para marcá-los como parentes, ou seja, para reafirmar uma relação. Foi
proveitoso concentrar num tema específico, pois esse permitia maior aprofundamento.
Em 2007 o tema sugerido foi o fenômeno do “ ficar” . Já foi objeto de
dissertações e de polêmicas e constituí outro gancho para refletir sobre o parentesco e,
mais especificamente sobre namoro e o casamento. Esse tema empolgou tanto os alunos
que as aulas noturnas costumavam durar mesmo até 11 horas da noite. Os alunos
estudaram o fenômeno do “ficar” entre diversas faixas etárias e classes sociais, entre
heterossexuais e homossexuais, enfocando a prática e a gíria associada a ela. A
bibliografia incluiu publicações de antropologia e de psicologia. Naquele semestre o
papa visitou o Brasil e foi citado na imprensa condenando o comportamento de “ ficar” .
Foi recompensador constatar que meus alunos trataram o assunto com maior
profundidade nos seus trabalhos e nas discussões em sala de aula do que a imprensa que
cobriu a visita do papa. E foi proveitoso constatar junto aos alunos a relevância da
antropologia para refletir sobre assuntos que mobilizam a opinião pública e os meios de
comunicação e que tendem a desencadear julgamentos moralizantes.
32

No segundo semestre de 2008 ministrei o curso de Pesquisa Antropológica (HZ


460) no período diurno, com 8 alunos, e no período noturno, com 14 alunos. Dessa vez
contei com dois monitores, Raul Ortiz Contreras e Fabiane Vinente dos Santos, ambos
alunos da pós-graduação. Quando ministrado por meus colegas, o curso costumava
incluir um projeto de pesquisa. Em vez disso solicitei uma pequena pesquisa em si e foi
muito proveitoso ter dois monitores para sanar as dúvidas dos alunos. Raul até
acompanhou diversos alunos em suas pesquisas de campo em Campinas.
Foi pesquisado um amplo elenco de temas, tais como bandas de rock cristãs,
uma eco-vila, a idéia da previdência investigada em uma agência bancária, atendimento
na rede pública de saúde, grafite em São Paulo, segurança fornecida pelo tráfico de
drogas num bairro de periferia; uma obra de reforma numa usina hidrelétrica; um
projeto educativo de integração social (PEIS); anorexia; o “ design inteligente” no
contexto da UNICAMP; revistando a sociedade d’ Os Parceiros do Rio Bonito; o
chamado “ desenvolvimento” e as populações indígenas; Le Parkour em Campinas; a
distinção entre antropologia e sociologia; as mulheres nas baterias de escolas de samba.
Foi bem diferente do que a experiência de eleger um tema, como ocorreu referente ao
natal e ao fenômeno do ficar em cursos anteriores, já mencionados. Funcionou muito
bem a proposta de realizar uma pesquisa em vez de redigir um projeto, já que todos nos
sabemos que a redação de um projeto exige uma determinada abordagem e que, na
realidade, o projeto sempre muda ao confrontar nosso campo. O viés escolhido para o
curso facilitou a abordagem de temas como o envolvimento do pesquisador com seu
objeto de estudo, a objetividade, métodos quantitativos versus qualitativos; a web como
campo e como ferramenta de pesquisa etc. A diretora da biblioteca do IFCH (Regiane
Alcantara) fez uma aula expositiva para cada turma dentro da biblioteca central,
explicando os recursos disponíveis on-line. Os alunos gostaram muito e comentaram
que essa aula deveria ser integrada ao currículo de Ciências Sociais no primeiro
semestre do curso.
Foi abordada a problematização das noções de sociedade, de cultura e a
desconstrução do conceito de natureza na antropologia contemporânea. Rendeu muita
discussão o contraste entre a face pública e privada de Malinowski, baseado na
comparação de sua introdução ao livro Argonautas do Pacífico Ocidental e seu diário.
Outro assunto que gerou muita polêmica foi um artigo do jornal Folha de São Paulo
sobre um jornalista que passou alguns dias disfarçado de carroceiro. Isso suscitou várias
questões sobre a ética do pesquisador. Foram convidados alguns jovens pesquisadores
33

para falar sobre sua experiência de campo sobre temas como africanas presas em São
Paulo acusadas de tráfico de drogas, e os índios Apinajé e projetos de desenvolvimento
e seu envolvimento com o cultivo de maconha para comercialização.
No 10 semestre de 2009 dei o curso Etnologia Sul Americana no período diurno
para 24 alunos. Já que era impossível levar os alunos ao campo tentei transmitir alguma
sensação desse campo pelo uso extensivo de vídeos ao longo do semestre. Na primeira
metade de cada aula foram discutidos textos provenientes de uma ampla bibliografia, os
vídeos sendo reservados para a segunda metade de cada aula. Tanto na minha graduação
como na minha pós-graduação na Inglaterra tive acesso a muitos filmes, fora do período
de aula, mas como atividade ligada às universidades. Conhecia os clássicos cineastas
brasileiros como Glauber Rocha e isso foi um ingrediente importante para a minha
formação.
Apresento, a seguir, o resumo do curso Etnologia Sul Americana (HZ 669):
Há poucos anos atrás era impossível ministrar um curso de etnologia na
graduação sem recorrer a uma bibliografia em inglês ou francês. Hoje em dia, devido à
expansão da produção brasileira nessa área, tornou-se plenamente viável usar,
exclusivamente, textos publicados em português. O curso parte da ótica das próprias
sociedades indígenas sul-americanas das terras baixas para explorar alguns dos temas e
debates que nortearam as pesquisas empreendidas nas últimas décadas, como, por
exemplo, parentesco, organização social, cosmologia, mitologia, gênero e sexualidade,
xamanismo e feitiçaria, diferenciação social, riquezas imateriais, arte, linguagem,
urbanização e transformação social. O intuito é mapear a etnologia brasileira
contemporânea de uma maneira que permita quem for dedicar-se a uma pesquisa nessa
área obter as ferramentas necessárias para, após o curso, seguir seu próprio caminho.

No segundo semestre de 2009 dei o curso Mito e Rito para 15 alunos no período
diurno e para 10 alunos no período noturno.
Apresento, a seguir, o resumo do curso Mito e Rito (HZ466)
O curso vai abordar um fragmento da pletora de teorias desenvolvidas para analisar ritos
e mitos. A parceria entre mitos e ritos é uma herança das especulações que surgiram a
partir do final do século XIX, exemplificada pela idéia de que o mito justificaria um rito
ou, alternativamente, que o ritual seria um performance do mito. Atualmente qualquer
conjugação necessária entre mitos e ritos é questionável. O curso parte dessa conjuntura
para enfatizar que mitos e ritos não são fenômenos que remetem de forma privilegiada à
alteridade (outras sociedades, outras épocas), algo sugerido nos meios de comunicação
quando jornalistas lamentam a ausência dos ritos de passagem nas sociedades
contemporâneas euro-americanas.
Os significados do termo ‘ mito’ são tão heterogêneos que vamos investigar se há
equivalências entre as diversas acepções. Tentaremos destrinchar a atração do tema dos
mitos e ritos ao campo da religião ao longo da história da antropologia, além de
investigar se a religião é uma categoria universal. Será indagado se a noção do sagrado
tem mais substância do que a noção do totemismo. Nos últimos anos discutiu-se
34

bastante a relação entre mito e história. E agora há um interesse crescente nos mitos da
ciência, como (da perspectiva de Dumont) o mito do surgimento da sociedade ou cultura
a partir de um estado de natureza. Com o desmoronamento dos pilares da antropologia
clássica, sociedade e cultura, junto com sua antítese, a natureza, se torna relevante
submeter tais noções ao crivo da mitologia.

Novamente solicitei o desenvolvimento de uma pesquisa ao longo do semestre a


ser apresentada oralmente na sala de aula e por escrito ao final do semestre. Minhas
sugestões de temas incluíram a democracia racial, desenvolvimento e progresso
enquanto mitos hegemônicos do nosso tempo e o ritual do trote no ingresso à
universidade. Foram usados textos de autores clássicos como van Gennep, Frazer,
Malinowski, Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard, Lévi-Strauss e Leach, além de textos
mais recentes de autores como DaMatta e Houseman. Foi mais fácil conseguir
entendimento de ritual do que de mito. No decorrer dos últimos dez anos fui apenas a
segunda professora do departamento que julgou pertinente usar alguns capítulos das
Mitológicas de Lévi-Strauss nesse curso. Encerrei o curso, em dezembro, com o ensaio
O suplício de papai Noel desse mesmo autor. Sintetiza vários temas do curso e garantiu
lembrar os alunos do curso cada vez que surgisse o tema do papai Noel.
Na avaliação do curso um dos alunos disse que muitos professores consideram
que dar aula é expor seus conhecimentos e não envolver os alunos em debates. O
procedimento de insistir aos alunos, individualmente, que manifestem suas opiniões é
algo que adotei a partir de um curso no Museu Nacional com Moacir Palmeira. É um
procedimento possível somente em turmas relativamente pequenas, algo que geralmente
tive a sorte de ter.

Pós-graduação

Dos oito cursos de pós-graduação ministrados desde 2001 (data da última


promoção) vale a pena destacar três deles. No segundo semestre de 2001 dei o curso
Mito, Rito e Simbolismo. Foi uma oportunidade para abordar duas questões
fundamentais na etnologia: cosmologia versus religião e a noção do sagrado, e mito
versus história. Numa das raras ocasiões nas quais ministrei um curso de Tópicos
Especiais, no segundo semestre de 2003, dei um curso sobre a obra de Marilyn
Strathern, complementado com um texto de Gell, e L’ énigme du don, de M. Godelier
(1996), outro livro que foi importante para minha própria pesquisa. Estudamos o livro
35

Property, Substance and Effect. Anthropological Essays on Persons and Things, um


capítulo do Gender of the Gift e alguns ensaios.
No segundo semestre de 2007 ministrei o curso de Etnologia Sul-Americana
enfocando a questão de gênero. Os alunos incluíram, além dos regulares, meu
orientando de pós-doutorado, Levi Marques Pereira, da Universidade Federal de Grande
Dourados (UFGD). Ele veio para a UNICAMP para desenvolver o projeto “ Gênero e
geração na produção da socialidade Kaiowá: uma abordagem do microcosmo da vida
social” . A partir do curso resolvemos (Levi e eu) propor a coordenação de um Grupo de
Trabalho sobre gênero na Etnologia Indígena na ABA, realizado em Porto Seguro (algo
retomado adiante).

Pr ofessor convidado

No mês de abril de 2005 passei um mês em Paris como Directeur d’ études et


maître de conférences invité, na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales
(EHESS), Paris, convidada por Philippe Descola da EHESS e do Laboratoire
d’ Anthropologie Sociale, Collège de France. Meu programa foi entitulado: ‘ Personnes,
biens et parenté : nouvelles approches de l’ ethnographie des Mẽbêngôkre du Brésil
central’ . Isso incluiu três conferências : « Les ‘ matrimaisons’ mẽbêngôkre comme
personnes morales » ; « Réciprocité, revanche et prédation chez les Mẽbêngôkre » e
« Parenté, identité sexuelle et amitié formelle chez les Mẽbêngôkre ». As conferências
suscitaram boas discussões e tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Lévi-
Strauss com quem havia correspondido por carta anteriormente. Para meu espanto ele
lembrava quem eu era, nossa correspendência de anos atras e minhas publicações sobre
nomes e as Casas Mebengokre. Elogiou meu capítulo da coletânea publicada em
Cambridge afirmando que foi o que mais gostou no livro.

Or ientações

Das cinco dissertações de mestrado orientadas e defendidas na década de 1990, três


foram publicadas como livro:
36

Da terra das primaveras à ilha do amor: reggae, lazer e identidade em São Luís do
Maranhão, de Carlos Benedito Rodrigues da Silva, publicado pela editora da
Universidade Federal de Maranhão, em 1995.
Cayapó e Panara: Luta e Sobrevivência de um povo Jê no Brasil Central, de Odair
Giraldin, publicado pela editora da UNICAMP em 1997.
Aspectos Fundamentais da Cultura Kaingang, de Juracilda Veiga, publicado pela
editora Curt Nimuendajú em 2006, com um prefácio de minha autoria.
O livro de Odair Giraldin confirma a identificação dos Panará como Kayapó do
Sul, um dos povos Jê setentrionais. Sua pesquisa em arquivos históricos localizou listas
de vocabulário da língua panará até então desconhecidas. Entre os séculos XVIII e XX
os Kayapó do Sul circularam por uma área que se estendeu do Mato Grosso e Goiás ao
noroeste do atual estado de São Paulo. A primeira tentativa de contar essa história foi
empreendida por Giraldin.
O livro de Juracilda Veiga constitui a primeira etnografia da organização social
dos Kaingang, um dos dois povos Jê meridionais. Os Kaingang não foram estudados por
pesquisadores anteriores por serem considerados muito aculturados. Juracilda mapeia a
diversidade das situações de vida desse povo atualmente, espalhado desde São Paulo até
Rio Grande do Sul, e documenta seu sistema de descendência patrilinear. Sua pesquisa
motivou uma retomada de interesse por esse povo, sendo obra de referência para
estudos posteriores.
Entre 2001 e 2002 foram defendidas mais duas dissertações de mestrado sob
minha orientação sobre povos Jê, um sobre a questão de gênero entre os Apinajé e outro
sobre a história da colonização do atual estado de Maranhão e os embates com os
Ramkokamekra-Canela, um povo Timbira da família linguística Jê.
Em 1993 um doutorando proveniente da Universidade Federal de Roraima, que
estava estudando os Xocleng, outro povo Jê meridional, teve que ser reprovado no
exame de qualificação por falta de condições de levar o doutorado adiante.
Dois alunos que fizeram seu mestrado sob minha orientação ingressaram no
doutorado em Antropologia e defenderam suas teses de doutorado em 2000. A Juracilda
deu continuidade a sua pesquisa sobre os Kaingang, enfocando o ritual de kiki, e Odair
estudou os Apinajé. Sua tese argumenta que os dois sistemas de metades identificados
por DaMatta constituem, na realidade, manifestações alternadas de um único sistema.
Desde seu doutorado Juracilda trabalha na FUNAI e Odair é professor adjunto da
Fundação Universidade Federal do Tocantins.
37

Nessa última década tive dois alunos de pós-doutoramento, uma advogada com
doutorado em geografia que trabalha há muitos anos com povos indígenas, mas que teve
dificuldades em publicar os resultados de sua pesquisa interdisciplinar, sobre
conhecimentos tradicionais, e um etnólogo, já mencionado, da Universidade Federal de
Grande Dourados (UFGD) que pesquisa os Kaiowá de Mato Grosso, e que na sua
passagem pela UNICAMP ajudou a editar um número especial da Revista Idéias, da
UNICAMP, além de coordenar um grupo na ABA comigo, algo já mencionado.
Atualmente tenho oito orientandos. Uma aluna de Iniciação Científica, Roberta
Cristina Neves, pesquisa o debate acerca do "infanticídio" indígena, com uma bolsa da
FAPESP. Um aluno de mestrado, João Veridiano (também com bolsa FAPESP), está
com a defesa agendada para abril de 2010. Sua dissertação trata do xamanismo e da
assistência médica entre os Kalapalo, povo Caribe do Alto Xingu. Tenho dois
mestrandos Mapuche, com bolsas da Fundação Ford, cada um estudando um aspecto de
seu povo, algo que me permite retomar meu interesse por essa etnia chilena.
Em julho de 2003, após o Congresso de Americanistas, realizado em Santiago,
Chile, assisti a um congresso de índios chilenos durante dois dias, realizado na cidade
de Temuco, e depois passei uma semana na casa de uma família Mapuche, ao convite de
um antropólogo inglês realizando pesquisa de campo para seu doutoramento. Embora os
Mapuche fossem o tema do meu mestrado, foi somente em 2003 que surgiu a
oportunidade de viajar para uma área Mapuche. Foi uma experiência importante para
adquirir uma perspectiva comparativa da situação indígena em outro país da América do
Sul.
No doutorado em Antropologia tenho três orientandos que entraram em 2007,
com bolsas, respectivamente, da FAPESP, FAPEAM e do CNPq. Já mencionei uma
aluna com quem viajei para os Apinajé e que começou a estudar essa etnia no seu
mestrado. Atualmente ela está estudando projetos de desenvolvimento entre esse povo.
Fabiane Vinente dos Santos está pesquisando a relação entre índios e militares em áreas
indígenas de fronteira. Ilana Seltzer Goldstein está estudando a exposição e a
comercialização de artes indígenas nas sociedades ocidentais. Nesse momento está
pesquisando arte aborígene na Austrália, orientada por Howard Morphy, com uma
bolsa-sanduíche. Tenho também um orientando de pós-doutoramento, Gabriel Coutinho
Barbosa, estudando o intercâmbio de bens e circulação de pessoas nas Guianas. Neste
momento ele está no campo. Participamos do mesmo projeto temático na USP, sobre
38

redes sociais, e através de sua inserção no departamento de Antropologia no IFCH


pretendo incentivar maior diálogo entre os etnólogos da USP e da UNICAMP.

Educação I ndígena

Já foi mencionada a elaboração de uma cartilha e projeto piloto de alfabetização


entre os índios Mẽtyktire entre 1979 e 1980. Em 1998 iniciei minha participação no
curso (a 2ª etapa) para a formação de professores Mebengokre, na aldeia de Kubẽkàkre,
no Pará, onde foi abordada pela primeira vez a questão da necessidade de uniformizar a
escrita mebengokre para possibilitar a elaboração e publicação de materiais
pedagógicos. Depois desse curso, a partir do segundo semestre de 1998, tive que fazer
várias modificações na minha ortografia da língua mebengokre para minimizar as
discrepâncias com a ortografia sendo usada pelos próprios índios. Essa revisão
necessitou a modificação das 62 páginas da lista de nomes pessoais incluindo, em
alguns casos, a ordem alfabética.
Quadro que demonstra a modificação da minha transcrição ao longo do tempo

fonema V. Lea
1978 1995 1998
/e/ è - ê
/ɔ/ ò - o
/o/ o - ô
/ɯ/ ù - y
/ɤ/ ë - ỳ

/ʈ ʃ / ts tx -

/dʒ/ dz dj -
/j/ y - j

No que diz respeito ao período abrangido pelo memorial, participei da 7a (2002),


10a (2005) e 13a (2009) etapas do curso de formação de professores bilingues
Mebengokre, Tapaiuna (Goronã) e Panará, realizados na aldeia/Posto de Vigilância de
Piaraçu, Mato Grosso. É notável a transformação da conotação da palavra “ pesquisa” ao
longo do período da minha participação nesse curso. Inicialmente era algo pejorativo,
associado à predação de dados por pesquisadores acusados de enriquecer às custas dos
índios. Desde então os índios estão assumindo gradativamente o papel de pesquisadores
embora a ambivalência perante as pessoas provenientes da academia persista.
39

Em 2002 minha experiência foi bastante frustrante. Tentei abordar a questão dos
termos triádicos (mencionada anteriormente) como exemplo de um recurso lógico,
ausente em línguas como português e inglês. Os Mebengokre exigiram a tradução em
português de tais termos, e quando argumentei que não havia um equivalente eles
achavam que eu estava recusando traduzi-los por estar levantando dados para minha
pesquisa. Outro tema que tentei abordar foi a distinção entre história oral e documental,
algo fundamental nas perícias judiciais que dizem respeito às suas terras. Rejeitaram
esse tema alegando que se quisessem saber de sua história iam perguntar para seus
próprios velhos.
No final de 2009, ao ir embora do curso, encontrei na pista de pouso com o
antropólogo Terence Turner, que acabara de chegar para falar sobre a história
Mebengokre, trazendo consigo gravações de um velho Mebengokre. Esse exemplo e
aquele referente à “ pesquisa” demonstram a versatilidade das atitudes dos índios em
relação à questão da educação neste momento. Uma afirmação feita numa ocasião pode
mudar radicalmente quando o assunto for retomado posteriormente. Em suma, o ponto
de vista dos Mebengokre sobre a questão da educação escolar (e outras etnias com uma
história semelhante de contato com a sociedade envolvente) está em ebulição. É
importante frisar essa falta de cristalização de atitudes para relativizar algo dito num
momento que não se sustenta em outro.
Em 2005 minha experiência foi mais frutífera. Não estava ensinando
antropologia em si, mas abordando temas de interesse aos Mebengokre, Tapaiuna e
Panará, enquanto líderes nas suas comunidades, e não apenas como professores
escolares. Um tema que produziu resultados interessantes foi a questão de se os índios
têm religião. Inicialmente acharam que não, mas, perante a ameaça constante de
proselitismo evangélico chegaram à conclusão pragmática que religião está vinculada ao
xamanismo. A caracterização da economia foi outro tema de grande interesse, incluindo
a questão de desenvolvimento, progresso, desigualdade sócio-econômica,
empoderamento etc. Chama a atenção a reificação da noção de cultura. É traduzida em
mebengokre com facilidade como kukràkdà enquanto muitas outras noções em
português apresentam dificuldades quando se tenta encontrar um equivalente. Os índios
afirmam sua preocupação em encontrar recursos para impedir a perda de sua cultura e
os professores se apoderaram da noção de pesquisa como ferramenta que pode auxiliá-
los a preservá-la.
40

Em 2009 iniciei o módulo de antropologia discutindo a distinção entre artesanato


e arte. Os alunos ficaram interessados, especialmente por desconhecerem o que é
considerado “ arte” . Outro tema que pretendi desenvolver era a questão de gênero,
sendo que hoje em dia os financiadores de projetos querem saber como os recursos vão
beneficiar tanto os homens quanto as mulheres. Ao abordar a divisão sexual do trabalho
e a identificação dos homens com um etos guerreiro eclodiu um terremoto na sala de
aula. Foi afirmado que os líderes proibiram as pessoas de falar em guerra, algo que
poderia acirrar os ânimos entre povos que guerreavam no passado. Foi notável também
a rejeição total do tema de homossexualidade. Ao contrário de outros povos indígenas
onde o assunto está se fazendo presente, entre os Mebengokre é considerado um enigma
exótico do mundo dos brancos.
Perante a demanda da coordenadora do curso para tratar das transformações em
curso pretendi falar do casamento de índios com não índios, mas a própria coordenadora
vetou esse tema porque uma das alunas do curso, filha do diretor regional da FUNAI, é
uma índia casada com branco. Os índios ficaram interessados pela questão dos índios
presidiários no sul do Mato Grosso, outra questão que desconheciam. Alguns dias foram
tomados expondo a questão do projeto da hidrelétrica de Belo Monte, baseado num
artigo de colega da UNICAMP, Oswaldo Sevá Filho, que é engenheiro e geógrafo.
Fiquei frustrada com o tempo enorme dedicado à redação de mais uma carta de protesto,
atividade julgada necessária pela coordenadora do curso. Em suma, essa exposição
detalhada da experiência de participação na formação de professores indígenas foi
julgada relevante para deixar claro quanto se distancia do ensino no Departamento de
Antropologia da UNICAMP. É também relevante por ser um papel irrecusável, embora
às vezes incômodo, na atual conjuntura da relação entre os antropólogos e os povos
indígenas brasileiros.

Publicações

Algumas publicações já foram mencionadas referentes à língua mebengokre, à


educação indígena, às perícias antropológicas etc. Aqui trato das demais publicações de
caráter etnográfico, a maior parte das quais resultou da participação em reuniões
científicas ao longo dos anos, iniciado com um artigo apresentado na ANPOCS em
41

1983 sobre o indigenismo em co-autoria com Bruna Franchetto, colega no doutorado no


Museu Nacional.
Duas das primeiras publicações mais conhecidas são: um artigo sobre a
onomástica mebengokre, publicado na Man em 1992, e um capítulo de livro sobre as
matri-casas mebengokre (já mencionado) de 1995. Uma versão semelhante a esse
capítulo foi publicado no Brasil em 1993, numa coletânea organizada por Viveiros de
Castro e Carneiro da Cunha a partir de um simpósio em Belém em 1987. Esse livro,
organizado por esses dois antropólogos renomados, ficou parado na editora da
UNICAMP de 1990 a 1992 e acabou sendo publicado pelo núcleo de história indígena e
de indigenismo da USP. Outro livro de etnologia que está encalhado na editora há uns
dez anos é o estudo de Cecília McCallum sobre gênero na sociedade kaxinauá, já
publicado em inglês e recomendado para tradução pelo núcleo Pagu.
Um artigo meu sobre as cerimônias de nominação mebengokre foi publicado
numa revista polonesa de estudos latino-americanos em 2005. O ano seguinte foi
traduzido em russo e publicado numa revista russa de estudos latino-americanos. Em
2001 foi publicado um capítulo de livro pela editora da Universidade de Oxford sobre a
composição das unidades domésticas Mebengokre, baseado em uma análise estatística
que contesta o modelo de T. Turner relativo à dominância do sogro. Em 1995 foi
publicado um capítulo de livro em português sobre amizade formal e aliança
matrimonial mebengokre num livro organizado por Viveiros de Castro. Esse tema, que
comecei a pesquisar depois do doutorado, foi fortemente influenciado pelos escritos
desse autor sobre o dravidianato nas terras baixas da América do Sul. Os comentários de
Viveiros de Castro à versão preliminar do meu trabalho foram mais extensos do que
meu próprio texto, muitos deles tendo sido incorporados na versão final.
Outro tema que começou a me interessar na década de 1990 é a comparação
entre a etnologia das terras baixas da América do Sul e da Melanésia. Participei do
primeiro colóquio de amazonistas e melanesianistas, em Satterthwaite, Cumbria,
Inglaterra em 1994, o que rendeu um artigo no Journal of the Anthropological Society
of Oxford (JASO). E em 2008 participei de um GT em homenagem a Marilyn Strathern
num congresso sobre propriedade e apropriação na Universidade de Auckland, na Nova
Zelândia. A organizadora, Lisette Josephides de Queen’ s University, Belfast, está
tentando publicar um livro a partir dos trabalhos apresentados.
Um tema que me acompanha desde a chegada ao Museu Nacional, conforme já
mencionado, é a questão de gênero. Na UNICAMP me beneficiei da possibilidade de
42

apresentar dois trabalhos no Núcleo de Estudos Pagu onde pude contar com Marisa
Correia e Adriana Piscitelli como interlocutoras. Publiquei um primeiro artigo sobre
gênero feminino nos Cadernos Pagu em 1994, e outro na Revista de Estudos Feministas
em 2000. Publiquei um artigo sobre a performance do choro cerimonial, uma arte
feminina, na revista Indiana, em Berlim, depois de apresentar o trabalho no Congresso
de Americanistas no Chile em 2003. Retorno a esse tema num trabalho sobre a morte,
apresentado no México e publicado num livro no Peru em 2007, além do capítulo de
livro sobre uma aula de choro, já mencionado. Ainda ligado à questão de gênero,
publiquei um capítulo de livro sobre a pintura corporal Mebengokre, executada pelas
mulheres, e outro capítulo na primeira coletânea dedicada à questão da paternidade
múltipla.
Nas décadas de 1980 e 1990 publiquei alguns trabalhos de divulgação científica
(ver CV). Em 1996 organizei um volume publicado na série Texto Didático, publicada
pelo IFCH. O texto consistiu de um artigo de Lévi-Strauss. Fiz a revisão técnica da
tradução e escrevi a apresentação desse texto, que teve a terceira edição no IFCH em
2004. Escrevi uma nota sobre a morte de Lévi-Strauss para o jornal da ADUNICAMP
em 2009.
Desde 2003 fiz quatro resenhas, a primeira sobre uma coletânea póstuma do
etnobiólogo Darrell Posey, a segunda sobre a tradução em inglês de um livro de Louis
Dumont, a terceira a respeito de um livro sobre tatuagem maori na Nova Zelândia. E em
2010 será publicada uma resenha de uma coletânea francesa sobre matrilinearidade e
uxorilocalidade em diversas regiões do mundo.
Publiquei uma carta na SBPC on-line e fiz algumas entrevistas para jornais,
revistas e radio.
Minha publicação de maior fôlego, com quase 400 páginas de texto além dos
apêndices (umas 100 páginas), está no prelo da EDUSP e deve sair em 2010. A versão
em inglês desse livro, de umas 148.603 palavras, está pronta e pretendo ainda encontrar
uma editora nos EUA ou, alternativamente, lançar uma versão digital em inglês, um e-
book.

Par ticipação de bancas


43

Desde 2001, na UNICAMP, USP e UFRJ (Museu Nacional) participei de quinze


exames de qualificação, três bancas de mestrado e sete bancas de doutorado. No IFCH,
participei de duas bancas de seleção de mestrado em Antropologia Social, duas bancas
de seleção de alunos para o Doutoramento em Ciências Sociais, na área de Etnologia, e
duas bancas de seleção de alunos para o Doutoramento em Antropologia, IFCH.
Em 2003 participei de uma banca examinadora num processo seletivo no Núcleo
de Estudos de População (NEPO) UNICAMP. E em 2009 presidi a banca examinadora
do processo seletivo para o provimento de um etnólogo para o Museu Goeldi, Belém do
Pará.

Assessor ia

O trabalho de parecerista consome uma quantidade enorme de tempo e é uma


atividade invisível. A partir de 2001 fiz aproximadamente trinta pareceres para
FAPESP, cinquenta e três para o CNPq, dezesseis para FAEP, UNICAMP, um para
FAPES do Espírito Santo e um para a revista Cadernos Pagu. Um total de cento e um
pareceres entre 2001 e 2009.

Administr ação

Acompanhei a transformação do Conjunto de Antropologia em Departamento,


em meados de 1991. No período anterior a 2001, de maior relevância para o presente é
minha participação na criação da Área de Etnologia, no Doutoramento de Ciências
Sociais, em 2004, efetivamente implantada no IFCH em 1995. Apoiei com entusiasmo a
criação do Doutoramento em Antropologia em setembro de 2004. Foi uma conquista
importante o Departamento de Antropologia ter conseguido sua própria área de
Doutorado. Num mundo globalizado não há como escapar de multi-disciplinaridade,
mas para o antropólogo isto não se restringe a dialogar com a Ciência Política e a
Sociologia, como foi o caso quando existia apenas a Doutorado em Ciências Sociais.
Fui uma dos membros fundadores do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena
(CPEI) no IFCH, em 1996, que coordeno desde 2009. A atividade principal do CPEI é a
realização regular de seminários para informar os alunos sobre pesquisas em andamento
44

e sobre questões relevantes para a etnologia, tais como a polêmica a respeito da


construção da hidrelétrica de Belo Monte.
Entre agosto de 2005 e fevereiro de 2008 fui chefe do Departamento de
Antropologia no IFCH. Meu esforço maior foi direcionado à tentativa de obter novas
contratações para o departamento para equipará-lo aos demais centros de excelência em
antropologia no país, como a USP, o Museu Nacional, a UnB e a Universidade Federal
de Santa Catarina. Até o relatório da Capes daquela época frisou a necessidade de
contratar mais etnólogos. Esse empenho foi muito frustrante porque nenhuma
contratação foi obtida no período da minha chefia.
Na chefia participei da homenagem para nosso saudoso ex-professor, Roberto
Cardoso de Oliveira, em 2007 e participei dos preparativos para a assinatura de um
convênio com CIESAS, no México, um processo terminado pelo atual chefe do
departamento, John Monteiro.
No final de 2007 organizei um encontro de dois dias entre os professores do
departamento. Foi muito proveitoso porque deu oportunidade aos colegas exporem suas
pesquisas e fazerem um balanço da situação do departamento naquela época. O atual
chefe, John Monteiro, deu continuidade a essa iniciativa num encontro semelhante
realizado em 2009.

Coor denação de Gr upos de Tr abalho e de Simpósios

No período sob consideração no memorial coordenei um GT na ABA, em 2008


(já mencionado), e um simpósio na Espanha. Ainda pretendo encaminhar para
publicação alguns dos trabalhos apresentados no GT da ABA para a revista do Pagu.
Não fiz isso até agora por falta de tempo. O simpósio foi realizado em Sevilha, em
2006, no 520 Congresso Internacional de Americanistas, com o tema “ Rethinking
Descent in Native America”. Foi coordenado junto com dois antropólogos do London
School of Economics (LSE), Magnus Course e Isabella Lepri. Eu propus a inclusão no
simpósio de alguns pesquisadores norte-americanos além de especialistas nas terras
baixas. Participaram Peter Whiteley, do American Museum of Natural History, a
respeito do Hopi, Maureen Trudelle Schwarz, da Universidade de Syracuse, a respeito
dos Navajo, e David Robichaux, da Universidade Iberoamericana do México, a respeito
de Mesoamérica. Um problema logístico foi que os norte-americanos não entendem
45

português e vários brasileiros não entendem inglês, dificultando a comunicação entre o


bloco que fala inglês e aquele que fala português ou espanhol. Planejamos publicar um
livro em inglês, mas Isabella Lepri acabou abandonando a antropologia e Magnus
ingressou num novo emprego na Universidade de Edinburgh, Escócia e tal plano foi
abandonado. Eu propus a organização de uma coletânea em português, junto com
Geraldo Andrello, um dos participantes (e ex-orientando) que trabalha atualmente na
Universidade Federal de São Carlos. Ele demonstrou interesse, mas a aceitação do meu
próprio livro para publicação me obrigou a adiar essa questão para depois do
lançamento desta coletânea.

Par ticipação em Congr essos, Simpósios e Reuniões científicas com tr abalhos


apr esentados

A partir de 2001 apresentei trabalhos em dezenove congressos, simpósios e


reuniões científicas, no Brasil e no exterior. A lista completa está no CV e menção nesse
memorial se limita às publicações que resultaram dessa participação. Nesse mesmo
período dei palestras e participei em aulas como professora convidada em sete ocasiões,
todas arroladas no CV.

Ensino de inglês e Tr adução

Foi mencionado que minhas primeiras experiências de ensino foram com a


língua inglesa; fiz também algumas traduções e trabalhei como intérprete e locutora de
vídeo. O único caso na abrangência deste memorial foi junto com uma delegação de
Maori da Nova Zelândia à UNICAMP, no final de 2001. Traduzi para os performers e
para os dois debatedores dessa delegação no IFCH. Em 2008 visitei um dos membros
dessa delegação na Nova Zelândia, o líder de uma das ‘ tribos’ maori, o que me permitiu
um acesso privilegiado ao mundo maori.

Tr abalho Fotogr áfico


46

Em 1983 eu e Eduardo Viveiros de Castro fizemos uma exposição de fotografias


em conjunto, entitulada “ Alguns índios” , no MASP de São Paulo e no MAM do Rio de
Janeiro. Alguns dessas fotografias serão incorporadas ao meu livro que está no prelo.

Balanço inteletual e da conj untur a atual da etnologia

Até hoje meus esforços intelectuais estiveram concentrados na etnografia dos


Mebengokre. Já passei a fase de vida de pesquisa de campo intensiva e acumulei uma
grande quantidade de dados, muitos ainda não processados. No livro que está no prelo
acabei minimizando os resultados da pesquisa pós-doutoral sobre os vínculos entre as
Casas e a mitologia, realizado em 1987, e sobre a amizade formal e a questão da aliança
matrimonial, iniciada na década de 1990. Pretendo retomar e aprofundar esses temas no
futuro próximo.
Comecei a redigir um estudo comparativo sobre amizade formal em todas as
sociedades Jê visando uma tese de livre docência, mas acabei publicando somente meu
modelo hipotético de aliança matrimonial mebengokre, enfocando as filhas das amigas
formais como cônjuges virtuais. Minha pesquisa abordou os Jê setentrionais, centrais e
meridionais; faltava tratar somente o caso dos Suyá, dos Parakatejê e os estudos
anteriores sobre os Mebengokre. James Boster, da Universidade da Califórnia, Irvine,
que conheci num congresso no Equador, montou uma rede de alianças e de relações
extra-conjugais dos índios Esse Eja na fronteira da Bolívia e Peru. No caso Mebengokre
seria interessante tentar mapear não somente uma rede de alianças, mas também das
casas onde os homens deixam filhos. Os casos extra-conjugais são demasiadamente
numerosos para tentar documentá-los.
Uma das tarefas que pretendo terminar depois da publicação do livro atualmente
no prelo é a digitação das genealogias, incorporando dados dos censos realizados em
1987, 1994-5 e 2002. Já foram elaborados no Corel os censos anteriores a 2002 (de
1978, 1979, 1981-2, 1994-5) e foram usados para levantar dados sobre casamentos. Para
processar tais dados, pretendo usar o programa desenvolvido recentemente por meu ex-
colega Márcio Silva, faltando para isso anotar o pai e mãe de cada indivíduo; se julgar
necessário, utilizarei também o programa desenvolvido por Laurent Barry da França.
No festschrift realizado para Rivière, em 1998, Steve Hugh-Jones, da Universidade de
47

Cambridge, afirmou que meu trabalho derrubou o mito da irrelevância das genealogias.
Ainda não consegui encerrar essa questão.
Em suma, minha pesquisa enfoca principalmente a organização social, incluindo
os temas da matrifocalidade, a matrilinearidade, a uxorilocalidade e o mito do
matriarcado. Idealmente gostaria de fazer um estudo etnográfico sobre as emoções,
especialmente o ciúme, um tema corriqueiro no cotidiano, mas, na atual conjuntura da
etnologia essa proposta não seria aceita pelas comunidades indígenas.
A etnologia brasileira passa por uma crise gerada, indiretamente, pela
democratização da sociedade, acompanhada pela evolução da relação das populações
indígenas com a sociedade nacional. Aos poucos os índios passam de tutelados a donos
da palavra. Cada vez mais são as lideranças as porta-vozes de suas comunidades e não
mais os antropólogos. Isto pode ser constatado nos filmes etnográficos. Na década de
1960, por exemplo, em um documentário sobre sal indígena, os índios foram filmados,
mas não falaram nada, enquanto hoje em dia eles estão fazendo seus próprios vídeos.
Acompanhei o processo dos Mebengokre assimilarem a noção de sua cidadania
no Estado brasileiro, introjetando consciência de seus direitos em relação à terra, saúde,
e educação. De forma gradativa todas suas reivindicações passam a ser formuladas em
torno dessa tríade que anseiam transformar em ‘ projetos’ . A incorporação da linguagem
de direitos estimulou a formação de uma nova geração de lideres, versada na arte de
defender os direitos coletivos e se auto-promoverem através das associações indígenas
que, junto às ONGs, vão substituindo a tutela da FUNAI.
Os líderes Apinajé estão sujeitos à tirania dos projetos. Hoje em dia tudo se
converte num ‘ projeto’ . Por exemplo, a FUNAI informou que a obtenção de água
encanada e luz, e a própria oficialização das novas aldeias que vão surgindo, dependem
da elaboração de um projeto. A burocracia das prefeituras municipais e instâncias
governamentais estaduais, como a secretaria de saúde, vão dissipando as energias das
lideranças.
Em mẽbêngôkre e, deduzo que nas línguas indígenas das terras baixas de modo
geral, não há nada que pode ser traduzido como ‘ direitos’ , no sentido que tal termo
adquiriu nas sociedades que o herdaram do direito romano. Portanto, a assimilação
pelos índios, pelo menos pelas lideranças, da noção abstrata de ‘ direitos’ , equivale a
uma metamorfose que fez com que etnias indígenas como os Mẽbêngôkre assimilassem
a idéia de que são, simultaneamente, índios e brasileiros. O fato dos índios
reconhecerem-se como brasileiros não significa acreditar numa essência identitária, mas
48

apenas estarem convencidos de que têm direitos. E, do ponto de vista dos índios,
permanece nebulosa a distinção entre direitos coletivos e individuais.
Nos cursos para a formação de professores bilíngües dos quais participei, em
1998 e 2002, ficou patente a hostilidade dos índios perante os antropólogos,
considerados (junto com lingüistas, missionários e fotógrafos) como predadores de seus
conhecimentos. Isto tende a ser exacerbado pelo destaque crescente às questões de bio-
pirataria, propriedade intelectual e imaterial, e pela reificação de cultura nos meios de
comunicação de massa (especialmente os jornais e a televisão).
Na minha estadia na França, em 2005, notei que a reificação da cultura não é
apenas uma questão brasileira. Um artigo no jornal Le Monde postulava que a cultura
européia se diferencia da cultura americana, destacando valores como solidariedade e
fraternidade. E pouco tempo depois o canal BBC, da televisão britânica, discutiu a
necessidade de integrar sua população muçulmana, com os mesmos argumentos que são
usados no Brasil a respeito das populações indígenas.
Atualmente, os índios brasileiros tendem a ver o antropólogo como alguém que
pode ajudá-los a formular projetos para a obtenção de recursos nas áreas de educação,
saúde, defesa da terra, ou desenvolvimento econômico. Perante essa conjuntura, os
estudantes universitários estão preferindo estudar as associações indígenas, fazer
pesquisas históricas, ou pesquisar índios urbanizados, evitando a imersão numa
comunidade indígena, e contornando a aprendizagem de uma língua indígena.
Enquanto a lingüística experimenta um boom, relacionado a uma campanha
internacional para a proteção das línguas ameaçadas de extinção, a etnologia passa por
uma crise de identidade já que os antropólogos têm consciência de que a cultura não é
reificada; está num processo de reformulação constante. Evidentemente as línguas
tampouco são petrificadas, mas têm um núcleo constituído pela fonologia, morfologia e
sintaxe, que permite abordá-las como se fossem entidades dotadas de permanência, e
que estão ameaçadas de extinção. No caso de culturas, é menos claro o que seria esse
núcleo.
De uma perspectiva teórica, me interessa a questão de como conciliar a
‘ diferença’ com a cidadania numa economia globalizada. Pretendo investigar a
possibilidade de travar um diálogo inter-cultural que não se reduz a proselitismo para o
sistema neo-liberal. Por exemplo, casamentos infantis são corriqueiros em muitas
sociedades indígenas brasileiras, mas este fenômeno é abordado na imprensa brasileira
como uma contravenção aos direitos humanos. Tais dilemas testam os limites do
49

relativismo, uma das pedras angulares da antropologia. Outro exemplo é que a noção de
cidadania supostamente transcende a questão de gênero e a UNESCO destaca
atualmente a importância de educação para mulheres, visando consolidar a igualdade de
oportunidades para ambos os sexos. No entanto, a sociedade mẽbêngôkre continua
praticando segregação sexual. É questionável a necessidade de intervir para modificar
essa situação, algo que entraria em choque com o direito (amplamente reconhecido) de
auto-determinação. Cabe ao antropólogo apenas discutir tais questões com a
comunidade, delegando a ela a solução.
A situação vai se modificando gradativamente. No curso de educação indígena
no qual participei em 1998 o papel das mulheres se limitou a cozinhar e a lavar pratos.
Em 2002 não tiveram nenhuma participação. O curso foi realizado no Posto Piaraçu, em
vez de uma aldeia, onde havia poucas mulheres para distrair os homens de seus estudos.
Foi naquele ano que defrontei com monitores sanitários indígenas pela primeira vez,
além dos monitores de saúde que já existiam há mais tempo. Ambos os ofícios oferecem
novas vias de acesso ao trabalho assalariado. Em 2009 já haviam duas mulheres no
curso de formação de professores, uma praticamente mono-língue e a outra moradora da
cidade que fala apenas português.
A maioria dos antropólogos que lidou com a questão de gênero nas sociedades
indígenas tentou solucionar o conservadorismo indígena, da perspectiva euro-
americana, apelando para a complementaridade sexual (Overing 1986, Gow 1991,
McCallum 2001). A meu ver, isso não resolve questões como o acesso diferencial a
uma renda monetária, nem a crença da sociedade hegemônica na necessidade de
igualdade de oportunidades educacionais para ambos os sexos. A adesão à idéia de
direitos humanos universais, quando aplicada a minorias étnicas e não aos estados-
nações, esbarra no direito à diferença. A legislação internacional (como aquela já citada
acima) afirma o direito à diferença, mas está simultaneamente enraizada em valores
euro-americanos tomados, de forma implícita, como absolutos. Trata-se de um tema de
grande complexidade e não me parece que a antropologia encontrou uma saída para esse
impasse (de Coppet, 2001, faz uma discussão incipiente dessa questão). É algo que
discuto com meus alunos com regularidade, sem nenhum avanço significativo até agora.
É um ponto cego do discurso oficial de instâncias como as Nações Unidas.
Em outubro de 2003 apresentei uma comunicação no IEL, UNICAMP, a
respeito de minha participação no curso do ano anterior. Argumentei que a educação
escolar indígena pode servir como uma forma de proselitismo leigo, impondo
50

conformidade aos parâmetros das sociedades euro-americanas, devido à pressão


prematura de consolidar uma grade curricular. A escrita é algo potencialmente criativo,
que poderia ser usada para documentar histórias de vida, entre outras coisas, mas acaba
se esgotando em documentos oficiais.
A febre desenvolvimentista, hegemônica na atual conjuntura mundial,2 equivale
ao zelo missionário para converter os índios ao cristianismo, algo que se iniciou com a
chegada dos jesuítas no Brasil. O termo desenvolvimento ainda não é empregado pelos
Mẽbêngôkre, mas a noção de ‘ melhoras’ tende a ser usada como sinônimo. Estabelece-
se uma ponte entre os proponentes de desenvolvimento e os índios por meio de uma fé
quase religiosa em melhoras. Evoca até o zelo revolucionário de determinadas gerações
ao longo do século XX e a crença dos positivistas no ‘ progresso’ , algo perpetuado até
hoje na própria bandeira brasileira.
Não pretendo negar que modificações e melhoras possam ser feitas. Um
exemplo, mencionado na televisão recentemente, é o emprego de computadores pelos
Ashaninka, no Acre, para facilitar a fiscalização das suas terras, podendo comunicar
invasões com rapidez às autoridades competentes. O problema é que a maioria das
mudanças, como a introdução da educação escolar, acaba exacerbando a diferenciação
sócio-econômica nas comunidades indígenas, fomentando a formação de novas elites. O
hiato crescente entre os ricos e os pobres, uma característica de grande parte do mundo
contemporâneo, acaba sendo assimilado pelos índios. Numa primeira fase, os índios
foram obrigados a tornarem-se cada vez mais sedentários, uma das estratégias da
sociedade colonial e, subsequentemente, do Estado nacional para apoderar-se de vastas
extensões de suas terras. Atualmente, a depredação dos recursos naturais – a floresta, a
fauna, os rios e até o subsolo, está levando ao empobrecimento dos índios. Isso está
resultando na sua conversão em necessitados de assistencialismo ao sucatear sua
herança de conhecimentos relativos à biodiversidade que caracterizam a Amazônia, seja
na floresta ou no cerrado.

Pr oj etos de Pesquisa par a o futur o

2
Ver a Convenção 169 da Organização Mundial de Trabalho, de 1989, e a United Nations Declaration on
the Rights of Indigenous Peoples, 2007 (7 setembro), onde ‘ desenvolver’ é usado em contraste com o
termo ‘ manter’ , ou seja, aponta para uma modificação do estado atual de um aspecto qualquer da vida
social.
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Há curto prazo preciso resolver como disponibilizar meu livro em inglês.


Pretendo redigir em inglês um artigo sobre os termos triádicos e, se possível, fazer um
curso sobre semântica na UNICAMP ou na USP. Continuo interessada pela questão de
educação, projetos de desenvolvimento e suas implicações para a desigualdade – tanto
entre homens e mulheres quanto entre os próprios índios.
O adicional de bancada do CNPq, a partir de setembro de 2003, está sendo
fundamental para dar continuidade à pesquisa e para participar de congressos. Em 2009
digitalizei oitenta e três fitas K7 da pesquisa e, em seguida, começarei a processar o
material fotográfico. Futuramente retomarei à possibilidade de organizar um banco de
dados multimeios e a transcrever os diários de campo.
A partir da viagem à Nova Zelândia comecei a me interessar pela literatura
produzida pelos Maori (como o romance Mutuwhenua, de Patrícia Grace e livro de
contos Pounamu Pounamu de Witi Ihimaera). Essa literatura é uma fonte riquíssima de
dados a ser explorada pela análise antropológica, oferecendo um via de acesso ao
pensamento que se diferencia de entrevistas e participação observante. Pretendo
explorar o que está começando a ser produzido em termos de escrita criativa entre os
índios brasileiros. Se não for muito promissor, outra direção possível seria mergulhar na
mitologia, a partir dos meus dados, da obra de Lévi-Strauss e das coletâneas de Wilbert
e Simoneau. Uma opção mais radical seria embarcar numa nova pesquisa na Nova
Zelândia.

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