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OS SISTEMAS DE IDEIAS

Organização e etologia das ideias

Primeiras definições

Um sistema de ideias é constituído por uma constelação de conceitos associados


de maneira solidária, cuja arrumação é estabelecida por laços lógicos (ou aparentemen-
te lógicos), em virtude de axiomas, postulados e princípios de organização subjacen-
tes; um tal sistema produz, no seu campo de competência, enunciados que têm valor de
verdade e, eventualmente, previsões quanto a todos os factos e acontecimentos que aí
deverão manifestar-se.
Mediadores entre os espíritos humanos e o mundo, os sistemas de ideias ganham
consistência e realidade objectiva a partir da sua organização.

A organização das ideias

Podemos fazer duas analogias para conceber o sistema de ideias. A primeira é a do


sistema atómico, no qual partículas associadas formam uma constelação de electrões
em torno de um núcleo, a segunda é a do sistema celular, que comporta um núcleo con-
tendo o património genético, um citoplasma que efectua as trocas com o exterior e uma
membrana que filtra, isto é, acolhe/repele os elementos exteriores.
As ideias reunidas em sistemas não são, evidentemente, nem partículas nem m o -
léculas; podem ser consideradas unidades informacionais/simbólicas que se juntam
1
umas às outras em função de afinidades próprias ou de princípios organizacionais (ló-
gicos, paradigmáticos). Uma ideia isolada não tem praticamente existência; só adqui-
re consistência em relação a um sistema que a integra.
Chegamos assim a um modelo de sistema que se inspira e se diferencia do do áto-
mo e do da célula. Segundo este modelo, um sistema de ideias comporta:

— u m núcleo (axiomas que legitimam o sistema, regras fundamentais de orga-

1
Diferentemente da química, da qual se podem extrair princípios universais de atracção, re-
pulsão, combinação entre elementos, não se pode conceber uma «química das ideias». Estas obe-
decem, realmente, a atracções, repulsões, exclusões, combinações, mas em situações sempre si-
tuadas e datadas.

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EDGAR MORIN

nização, ideias mestras); por vezes trata-se de um complexo polinuclear, no


caso de o sistema reunir no seu seio vários sistemas anteriormente indepen-
dentes, os quais, sob o seu domínio, se tomam subsistemas (ver o exame do
marxismo, p. 130);
— subsistemas dependentes/interdependentes, dos quais os mais periféricos
constituem, eventualmente, uma cintura de segurança;
— um dispositivo imunológico de protecção.

Um sistema de ideias comporta portanto a sua auto-organização e a sua autodefe-


sa. A sua auto—organização é simultaneamente geradora (dispondo, no seu núcleo, dos
seus princípios geradores e regeneradores) e fenomenal (constituindo os dispositivos
propriamente metabólicos e defensivos do sistema no seio do meio que o rodeia).
Todo o sistema de ideias é, ao mesmo tempo, fechado e aberto. É fechado porque
se protege e defende contra as degradações ou agressões externas. É aberto porque se
alimenta de confirmações e verificações que vêm do mundo exterior. No entanto, em-
bora não haja uma fronteira nítida e estável entre uns e outros, podemos distinguir e
opor dois tipos ideais: os sistemas em que há prioridade da abertura em relação ao en-
cerramento, a que chamaremos aqui teorias, e os sistemas em que o encerramento é
prioritário, e a que aqui chamaremos doutrinas.

Todo o sistema de ideias, incluindo uma teoria «aberta», como uma teoria cientí-
fica, comporta o seu fechamento, a sua opacidade e a sua cegueira:

1.0 núcleo duro é constituído por postulados indemons traveis e por princípios
ocultos (paradigmas); estes são indispensáveis à constituição de qualquer
sistema de ideias, incluindo o científico (Morin, 1990, p. 44). O núcleo deter-
mina os princípios e regras de organização das ideias, comporta os critérios
que legitimam a verdade do sistema e seleccionam os dados fundamentais
nos quais se apoia; determina portanto a rejeição ou ignorância do que
contradiz a sua verdade e escapa aos seus critérios; elimina aquilo que, em
função dos seus axiomas e princípios, lhe parece destituído de sentido ou de
realidade. Toda a teoria comporta portanto no seu núcleo uma zona cega.
Assim, os axiomas/princípios das teorias científicas actuais interditam-lhes
que concebam a acção terapêutica de uma substância extremamente diluída
e ministrada em doses infinitesimais (homeopatia). Como diz Jacques
Schlanger(1978 b , p . 35): «É-lhes impossível apreender qualquer coisa que
seja exterior e contrária ao tecido da interpretação que elas permitem.»
Um sistema de ideias nunca pode criticar os seus próprios axiomas e os seus
próprios princípios. Max Weber denunciou muitas vezes «a irresistível
tendência monista das teorias, refractárias à crítica de si próprias». Dife-
rentemente de uma doutrina, uma teoria científica é certamente capaz de
modificaros seus subsistemas e de reconhecer os desacordos que existiriam
entre as suas predições e os dados colhidos no seu campo de pertinência; mas,

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O MÉTODO

embora aceitando a crítica/refutação exterior, ela não dispõe de aptidão


reflexiva para se autocriticar nos seus fundamentos e na sua natureza. Uma
teoria rende-se, mas não se suicida. O hara-kiri é uma operação desconhe-
cida na noosfera.
2. Um sistema de ideias resiste às críticas e refutações externas, não só através
da capitalização das provas anteriormente estabelecidas da sua pertinência,
mas também apoiando—se na sua própria coerência lógica. Quando a lógica
de um sistema teórico não pode integrar os dados empíricos que a contradi-
zem, o sistema fecha-se então à perturbação empírica para salvaguardar a
sua própria lógica; a sua racionalidade torna-se racionalização.
3. Um sistema de ideias elimina tudo o que tende a perturbá-lo e a desregulá-
-lo. Desencandeia dispositivos imunológicos que repelem ou destroem to-
do o dado ou ideia perigosa para a sua integridade.
4. Um sistema de ideias é autocêntrico: situa-se, por si próprio, no centro do
seu universo; é autodoxo, isto é, comporta-se em função dos seus princípios
e das suas regras e tende a tornar-se ortodoxo; é monopolista e vem ocupar
sozinho o seu terreno de verdade. É autoritário (mesmo uma teoria científi-
ca dispõe da autoridade soberana das Leis da Natureza, cujo segredo pene-
trou). É agressivo em relação a qualquer rival que o venha contestar no seu
1
terreno .
2
Assim, os sistemas de ideias são autoconservadores e resistem a tudo o que pode-
ria não só ameaçar a sua existência, mas alterar a sua homeostasia. Resistem não só à
contestação e à inovação, mas até, como dizia Lupasco, à informação.
O coração da resistência encontra-se no núcleo, onde estão concentrados os prin-
cípios de organização do sistema (paradigmas, lógica, categorias). Se é verdade que
uma teoria científica deve obedecer à regra superior que a manda desaparecer se o meio
científico a rejeita, fica ainda o facto de os seus princípios organizadores ocultos, que
não estão submetidos directamente ao controlo empírico, produzirem novas teorias,
melhor adaptadas que as anteriores, mas comportando as mesmas cegueiras cognitivas.
É por isso que o conhecimento científico, por mais elucidante e crítico que seja, com-
portou e comporta ainda uma cegueira em profundidade, de origem paradigmática.
Com a força do seu carácter autoritário e da sua pretensão monopolista, uma teo-
ria, mesmo científica, tende sempre para recusar um desmentido dos factos, uma ex-

1
Desde 1935, Ludwig Fleck, filósofo e médico polaco, observava como um sistema de cren-
ça, estruturado e coerente, no qual se podem reunir múltiplos elementos em relação estreita uns
com os outros, tendia a consolidar-se e fechar-se, oferecendo uma resistência dura e durável a
tudo o que se lhe opunha: 1) uma contradição do sistema aparece como impensável; 2) o que não
está de acordo com o sistema continua sem ser observado, ou, se o é, fica silencioso; 3) só rete-
mos as concepções alternativas que corroboram o sistema de crença (citado in Rossi Monti,
1984).
2
A despeito das suas grandes vantagens, o modo de cálculo decimal, repelido pelo modo de
cálculo anterior, levou mais de um século até ser adoptado na Europa ocidental, após a sua in-
trodução por Fibonaci de Pisa (1202).

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EDGAR MOR/N

periência que lhe é contrária, uma teoria melhor argumentada. Por isso, é raro, para que
uma teoria se desintegre, bastar uma experiência decisiva, um argumento «imbatível».
Énecessária uma longa série de provas acumuladas das suas carências e insuficiências,
e é também necessário o aparecimento de uma nova teoria que evidencie uma maior
pertinência. Assim, na história das ciências, as teorias resistem dogmaticamente como
doutrinas, mas, finalmente, a regra do jogo competitivo e crítico leva-as a emendarem -
-se, e depois a retirarem-se para o grande cemitério das ideias mortas.

Teoria da teoria

O que é próprio da teoria é admitir a crítica exterior, segundo regras aceites pela
comunidade que cuida, suscita, critica as teorias (comunidade filosófica ou científica).
O campo de existência das teorias é recente, frágil. Constituiu—se pela primeira vez há
vinte e cinco séculos, em Atenas, onde a instauração da filosofia abriu uma esfera de
debate livre de ideias, sem sanções, exclusão ou liquidação daqueles que eram admi-
tidos no debate. Depois, a ciência europeia criou o seu próprio campo, no qual toda a
teoria deve obedecer a regras empíricas/lógicas limitativas, e aceitar as verificações/re-
futações que poderiam diminuir-lhe a autoridade.
Assim, um sistema de ideias continua a ser teoria enquanto aceitar a regra do jogo
competitivo e crítico, enquanto evidenciar maleabilidade interna, isto é, capacidade de
adaptação e modificação na articulação entre os seus subsistemas, como a possibilida-
de de abandonar um subsistema e de o substituir. Por outras palavras, uma teoria é ca-
paz de modificar as suas variáveis (que se definem nos termos do seu sistema) mas não
os seus parâmetros (os próprios termos que definem o sistema). Assim, as caracterís-
ticas «fechadas» de uma teoria são contrabalançadas pela procura de acordo entre a sua
coerência interna e os dados empíricos que ela evidencia: é isso que constitui a sua ra-
cionalidade.
A teoria é aberta porque é ecodependente. Depende do mundo empírico onde se in-
sere. A teoria vive das suas trocas com o mundo: ela metaboliza real para viver. Éo seu
tipo aberto de auto-eco-organização que dá à teoria uma resistência constitutiva ao
dogmatismo e à racionalização. Mas este tipo aberto está correlativamente ligado às re-
gras pluralistas do meio que a alimenta, isto é as sociedades/comunidades filosóficas
ou, melhor, científicas. A esfera filosófica e a esfera científica são esferas de existên-
cia democrática/liberal para as teorias. Na esfera científica há, além disso, provas e um
veredicto de promoção ou eliminação. Assim, a teoria aceita a crítica no quadro filo-
sófico, mas é no quadro científico que ela tem de admitir o princípio da sua biodegra-
dabilidade: uma teoria aberta é uma teoria que aceita a ideia da sua própria morte.

Doutrina

Quanto à doutrina, ela recusa a contestação, assim como recusa qualquer verifi-
cação empírico-lógica que lhe seja impôs ta por uma instância exterior. Ela é intrinseca-
mente irrefutável. Nem por isso é totalmente fechada ao mundo exterior; tem necessi-

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O MÉTODO

dade de se alimentar de verificações e confirmações, mas só selecciona elementos ou


acontecimentos que a confirmem; filtra-os cuidadosamente e submete-os a um crac-
king que só retém o que é assimilável.
Enquanto a teoria reconhece que os seus axiomas ou postulados são indemons-
tráveis, a doutrina considera-os como princípios de evidencia, verídicos para sempre
e assegurando a virtude inalterável do seu sistema. Enquanto a teoria conserva a sua ra-
cionalidade nas trocas incertas com o mundo exterior, a doutrina recusa tudo o que se
rebela contra a sua lógica racionalizadora.
Assim, diferentemente da teoria, a doutrina está blindada contra as agressões exte-
riores. Cada um dos seus conceitos está tão protegido como o núcleo. As suas articula-
ções internas são rígidas. A doutrina é dogmática por natureza: o dogmatismo é justa-
mente a união da rigidez, da blindagem e da arrogância doutrinárias. A doutrina detém
sozinha a verdade, arroga-se todos os direitos, é sempre ortodoxa. O que para ela é es-
tranho é, ipsofacto, suspeito de ser inimigo, e é rejeitado. Os argumentos contrários são
transformados em argumentos contra os contraditores (assim, todo o argumento que
demonstrasse não ser a URSS democrática, foi, durante cinquenta anos, recambiado
como «ignóbil calúnia anticomunista», desqualificando irremediavelmente os seus
1
autores) . A doutrina mantém-se em estado de mobilização permanente e inflama de
maneira contínua o entusiasmo dos seus fiéis. Violentamente ofensiva, ela ataca sem
tréguas as teorias e as outras doutrinas que ela anatematiza. É cruel, e pode exigir, não
só a condenação como a morte dos seus detractores.
As trocas entre a doutrina e o mundo empírico são rarefeitas. Mas nem por isso a
doutrina é totalmente fechada. Ela assegura trocas mínimas seleccionando unicamen-
te o que a confirma. Vai buscar poderosas energias regeneradoras aos espíritos-cére-
bros dos humanos.
Naturalmente, as teorias, assim como as doutrinas, alimentam-se dos desejos, as-
pirações, temores, paixões, obsessões dos humanos; as próprias teorias científicas são
alimentadas pelos themata (Holton, 1982), ideias fixas obsessionais dos cientistas.
Mas, ao mesmo tempo, as teorias têm necessidade de estar de acordo com os dados ex-
teriores e com as normas impostas pelo jogo filosófico ou científico. Como a doutri-
na não tem nenhuma necessidade de procurar esse acordo, que considera estabelecido
uma vez por todas, chama a si as necessidades de certeza, os desejos de absoluto, a pro-
cura obsessional da palavra chave, e alimenta-se dela avidamente. Esta regeneração
exterior estimula uma fonte regeneradora interna, que é a palavra sacralizada dos seus
fundadores. Assim como a repetição dos artigos da fé regozija os deuses e regenera a
religião, as exegeses, citações, recitações ininterruptas dos textos originários dos Pais
da doutrina reforçam o vigor e a juventude desta última. Assim, as doutrinas não são
petrificadas, como coisas inanimadas; não são sepulcros branqueados: são uma vida

1
Mario Rossi Monti (1984) indicou bem que há, ao fim e ao cabo, uma semelhança muito
grande entre a psicologia do paranóico e a noologia doutrinária: «Selectividade radical da aten-
ção, desatenção selectiva, rigidez direccional da atenção, hipervigilância, são alguns dos termos
usados para descrever a capacidade... para extrair da realidade a série de factos muito restrita nos
quais se apoia (o) sistema» Sobre o comportamento imunológico das doutrinas ver o meu tra-
balho Pour sortir du XX' siècle, pp. 96-109.

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mais intensa, mais ardente que as teorias; a ideia doutrinária pode mesmo adquirir a so-
berania de um deus. Seria necessário estudar a dedicação e o culto para com a Ideia su-
prema.

SISTEMAS DE IDEIAS

DOUTRINAS TEORIAS

Auto-referência Auto-exo-referência
Fechamento doutrinário Abertura ao exterior
(fraca ecodependência) (forte ecodependência)

Núcleo duro insensível Núcleo duro resistente


à experiência à experiência

Primado da coerência interna Primado do acordo lógico-


(racionalização) -empírico (racionalidade)

Rigidez das ligações Necessidade lógica das


entre conceitos relações entre conceitos

Auto-regeneração a partir Auto-exo-regeneração


dos fundamentos próprios

Imunologia muito forte Imunologia


(só aceita o que a confirma) (só rejeita o que não é
pertinente)

Recusa de qualquer crítica Aceitação das críticas


sob condições

Anátema Vigor polémico

Dogmatismo Flexibilidade

Idealismo Empirismo

Ortodoxia Autodoxia
(verdade absoluta e única) (comporta-se em função
dos seus princípios)

Autotranscendência Autocentrismo
auto-sacralização,
autodeificação

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O MÉTODO

Deve sublinhar-se desde já que a diferença entre doutrina e teoria depende com fre-
quência, não das ideias em si próprias, que compõem o sistema, mas do fechamento ou
da abertura da sua organização. Um mesmo sistema de ideias pode tornar-se teoria ou
doutrina. A abertura depende do ecossistema psicocultural. Assim, o ecossistema
científico garante de maneira bastante eficaz a abertura das teorias, que então só in-
completamente podem tornar-se doutrinas. O ecossistema de um partido político rigi-
damente centralizado favorece a criação de doutrina, a qual, ela própria, favorece a
centralização rígida: assim, por exemplo, no contexto do mundo universitário, o mar-
xismo pode tornar-se teoria aceitando ser discutido e posto em confronto com outras
teorias, mas, no seio da seita ou do partido que se fez proprietário e intérprete dele, o
mesmo m arxismo torna-se doutrina; considera-se ter sido verificado para sempre e ser
irrefutável, e rejeita então, de maneira imunológica, qualquer informação, qualquer ar-
gumento que o contestem.

Idealismo e racionalização

Dizer que a abertura teórica exige condições externas favoráveis é o mesmo que di-
zer que todo o sistema de ideias tende a fechar-se sobre si próprio. O dogmatismo e a
ortodoxia são as suas tendências naturais, e estas são compensadas apenas por condi-
ções exteriores. É o que dizia Auguste Comte à sua maneira: «O dogmatismo é o es-
tado normal da inteligência humana, aquele para o qual ela tende, pela sua natureza,
continuamente e em todos os géneros.» ParaG. K. Chesterton: «O dogma significa, não
a ausência de pensamento, mas a finalidade do pensamento.» Estas duas fórmulas não
são totalmente verdadeiras para a inteligência e para o pensamento humanos, mas são-
-no para as entidades que emergem dessa inteligência e desse pensamento: os sistemas
de ideias.
Lupasco definia a ideologia como «um sistema de ideias que resiste à informação».
Isto é verdade para todo o sistema de ideias, incluindo a teoria, mas a resistência da teo-
ria não é irredutível, ao passo que a doutrina, não só resiste à informação, mas também
a destrói.
Acrescentemos duas tendências propriamente noológicas, cujas consequências são
perversas para o conhecimento humano. A primeira, como já indicámos, saiu da incli-
nação natural do sistema para se fechar na sua armadura lógica, que se torna assim ra-
cionalizadora. Racionalidade e racionalização têm o mesmo tronco comum, que é a
procura de coerência. Mas, enquanto a racionalidade está aberta ao que resiste à lógi-
ca e se mantém em diálogo com o real, a racionalização integra à força o real na lógi-
ca do sistema e pensa então que o possui. Esta tendência racionalizadora equivale aqui
à tendência «idealista» profunda de todo o sistema de ideias, que é a de absorver a rea-
lidade que nomeia, designa, descreve, explica. Sob o ponto de vista noológico, os sis-
temas de ideias não se alimentam apenas das energias e paixões dos humanos. Eles su-
gam e esvaziam a realidade que evidenciam. Desvendando as «leis» que dirigem o
mundo, as teorias científicas aspiram por elas à soberania universal dessas leis. Há,
como diz Manuel de Dieguez (1970), transubstanciação mística dos factos pela teoria».
Mesmo no momento em que as tomamos pela realidade, as ideias, de maneira qua-
se alucinatória, tornam-se fantasmas que escapam à realidade. O mediador substitui o

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mediatizado (o mundo, oreal). O «poder absoluto das ideias», que, segundo Mauss, ca-
racteriza a Magia, torna-se o culminar idealista da absorção dos espíritos e do real pe-
la ideia. A ideia que transporta consigo a essência do real torna-se então mais real que
o real, domina ou expulsa este último. Aqui adquire sentido a intuição genial de Witt-
genstein: «A eliminação da magia (pela teoria) tem... o carácter da magia.»
Há, nestas condições não só reificação (a palavra é adequada) da ideia, mas poder
1
verdadeiramente mágico e verdadeiramente mítico da ideia. Ela torna-se poder de
posse sobre o real, quase no sentido vodu do termo.
O idealismo não poupou de modo nenhum o mundo das teorias científicas; pelo
contrário, a sua abstracção matemática e a sua concordância com as «leis» da Nature-
za favoreceram uma idealização particular a que Whitehead chamou «o pensamento
concreto mal colocado», «a falácia da concretude deslocada» (thefallacy ofmisplaced
concreteness). Ele dizia, da física clássica: «Esta concepção do universo está soli-
damente construída em termos de alta abstracção e... por engano, tomámos as nossas
abstracções por realidades concretas» (Whitehead, 1930, p. 79). Tudo o que foi deita-
do fora como não assimilável pelas teorias científicas foi considerado subproduto do
real, epifenómenos, logros, boatos: a existência, o sujeito, as coisas singulares, os con-
juntos orgânicos, em suma, o verdadeiro pensamento concreto. O conceito, a lógica, a
matemática, o sistema, roubaram esta concretude ao real. Os conceitos chave das pró-
prias teorias científicas carregaram-se com uma substancialidade absoluta; assim
aconteceu também durante muito tempo com a noção de matéria; depois também su-
cedeu o mesmo com a energia, noção reificada embora seja, em si, impossível de agar-
rar e só apareça através das suas manifestações físico-químicas; depois, para alguns,
a informação tornou-se um ser concreto e soberano, quando ela existe realmente na
computação e na comunicação.
Foram sobretudo as entidades matemáticas, os seres de espírito menos dotados de
existência física, que se dotaram da realidade física suprema. Já dissemos que os nú-
meros matemáticos passam naturalmente à existência noológica, e daí à sobre-existên-
cia pitagórica. Acrescentemos agora que eles se tornam, não só senhores do real, que
obedece às suas ordens, mas essência do real. Levando ao último extremo idealista a
expressão de Galileu segundo a qual o livro da Natureza está escrito em linguagem ma-
temática, um Eddington acaba por pensar que o universo é inteiramente feito de ma-
temáticas. O real físico é assim substituído pelo real noológico.
O idealismo torna-se então o estádio supremo da tomada de posse do real pela ideia.
O idealismo filosófico é apenas um caso particular do idealismo, não menos presente
no materialismo dos físicos. O idealismo é o mito natural da ideia. A racionalização é
a arma mágica da ideia contra o real. As teorias científicas estão melhor armadas con-
tra a racionalização, mas os themata e os paradigmas a que elas obedecem favorecem
poderosamente a sua tendência para o idealismo. É necessário que o ecossistema hu-
mano lhes forneça um ingrediente fortemente empirista (a crença de que o real está nos
factos e não na ideia ou na fórmula matemática) ou um ingrediente fortemente místico
(a crença em que as verdades profundas estão para além do conceito e do discurso) pa-
ra contrabalançar a tendência natural das entidades logomorfas para o idealismo.

1
Sobre a magia, ver O Método III, cap. 1.

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Claude Bernard dizia: «Os sistemas tendem a subjugar o espírito humano.» É
subjugando o real que a idealização e a racionalização subjugam o espírito humano. E,
como veremos, são as doutrinas e as ideologias fortemente carregadas de substancia
mitológica ou religiosa que amplificam estas tendências.
A tendência humana inveterada para tomar o mapa pelo território, a palavra pela
coisa, a ideia pela realidade, talvez tenha uma das suas fontes num modo de existência
dos seres de espírito? Também aqui o remédio só pode estar na abertura do sistema teó-
rico, a qual depende da abertura do espírito humano, isto é, da sua aptidão crítica e au-
tocrítica, a qual é favorecida nas situações culturais pluralistas e abertas.

Podemos agora enunciar uma nova definição do sistema de ideias: um sistema de


ideias tem um certo número de caracteres auto—eco-reorganizadores que garantem a
sua integridade, a sua identidade, a sua autonomia, a sua perpetuação; eles permitem-
-Ihe metabolizar, transformar e assimilar os dados empíricos que são da sua compe-
tência; ele reproduz-se através dos espíritos-cérebros nas condições socioculturais
que lhe são favoráveis. Pode adquirir suficiente consistência e poder para retroagir
sobre os espíritos humanos e subjugá-los.

Sistemas filosóficos e grandes ideologias

Os sistemas filosóficos

Distingamos:

— os sistemas de ideias cujo campo de pertinência está limitado apenas ao co-


nhecimento (teorias científicas);
—os sistemas de ideias que ligam estreitamente factos e valores e que têm, por
isso, um aspecto normativo (teorias não científicas, doutrinas, sistemas fi-
losóficos, ideologias políticas);
— os sistemas de ideias que têm a pretensão explicativa universal (grandes
doutrinas, grandes sistemas filosóficos, grandes ideologias).

Os sistemas filosóficos, pelo menos sob a forma laicizada, apareceram tarde na


história das sociedades e o seu domínio é marginal. É certo que há, apoiando as mito-
logias, concepções antropológicas e cosmológicas que podemos hoje considerar filo-
sofias. No seio de todas as grandes religiões constituíram-se armaduras de ideias que,
por vezes, seriam sistemas filosóficos integrais se não integrassem, como travejamen-
to legitimado, racional mesmo, a Fé e o Culto.
A grande excepção está na área do budismo, que é, ele próprio, uma religião
excepcional, ou melhor, uma concepção do mundo e da vida que deu origem a ramos

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filosóficos mais ou menos envolvidos por cultos. A grande originalidade dos sistemas
budistas em relação a quase todos os sistemas filosóficos ocidentais é terem o vazio ou
o nada como ponto de partida e de chegada.
Na Europa, os sistemas laicos de ideias que constituem visões do mundo, da vida,
do homem, do real, aparecem nas ilhas gregas seis séculos antes da nossa era. Um sé-
culo mais tarde, em Atenas, institui-se um espaço autónomo, propício ao livre desen-
volvimento dos sistemas filosóficos. Este espaço alastrará durante o Império romano,
mas a Igreja cristã, tornada única religião do império, interditará a filosofia laica. É cer-
to que o cristianismo medieval saberá integrar em si o aristotelismo como subsistema,
e as doutrinas filosóficas com uma soberania limitada poderão afrontar-se à sombra da
Cruz.
O Renascimento fará ressurgir um espaço filosófico que obterá a sua plena auto-
nomia dois séculos mais tarde. Essa autonomia não será, no entanto, definitivamente
assegurada. No século XX, o poder estalinista suprimirá o espaço filosófico, e o poder
nazi expulsará desse espaço as ideias insanas.
A esfera filosófica é portanto historicamente recente e frágil; ela está, além disso,
socialmente limitada a uma casta de filósofos que, a partir do século XIX se encerra nas
universidades. Enfim, o desenvolvimento das ciências fez-se repelindo as ideias fi-
losóficas ou negando-lhes qualquer pertinência. Contudo, foram o esforço e o floresci-
mento filosóficos os iniciadores e os estimulantes do processo de laicização que formou
a sociedade europeia moderna; foi do cadinho filosófico que saíram todas as grandes
ideologias que animaram a história política e social das nações europeias e que ainda
animam a do mundo.
A partir do Renascimento, a reintegração do mundo, depois de Cristóvão Colom-
bo ter aumentado a Terra, e depois de Copérnico e Galileu a terem tornado mais peque-
na no céu, a reinterrogação de Deus, a reinterrogação do homem, a interdependência
destas reintegrações, determinam uma problematização geral. A perda dos antigos fun-
damentos de inteligibilidade e de crença suscita a procura incessante de novos funda-
mentos e a formação ininterrupta de novos sistemas filosóficos, os quais levantam mais
questões do que fornecem respostas, o que faz com que a procura seja constantemen-
te retomada. E assim, anoosfera filosófica europeia desenvolve-se com um a prodigio-
sa intensidade apresentando duas faces opostas e ligadas uma à outra: por um lado, uma
actividade crítica que se exercejánão apenas nem principalmente sobre a religião, mas
sobre os próprios sistemas racionais (racionalizadores), as ideias mestras, os princípios,
os fundamentos; por outro lado, uma elaboração ininterrupta de sistemas, até ao mais
grandioso de todos, o de Hegel; a partir desse momento, a história da filosofia será um
corpo a corpo sem tréguas entre o pensamento sistemático e o pensamento anti—sis-
temático. Assim, a cultura europeia é como que um laboratório noológico onde se pu-
desse observar a formação e o florescimento dos sistemas, os seus conflitos, as suas
simbioses, as suas trocas, as suas corrupções, as suas escleroses, as suas mutações, os
seus rejuvenescimentos, as suas agonias.
Um sistema filosófico é uma concepção que tem em vista elucidar o ser do mundo,
do real, do homem, e cada um deles reelabora o mundo num grandioso jogo de constru-
ções com ideias e conceitos. Neste sentido, os grandes sistemas filosóficos represen-

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1
tam construções que, levadas ao extremo, podem ser delirantes , no seu esforço para
apreender o Uno e abarcar o todo, e para dar respostas em ideias às grandes interroga-
ções do espírito humano. Mas, noutro sentido, as grandes filosofias são concepções
muito ricas e complexas, frequentemente polinucleares, tendendo a ligar e entrefe-
cundar o físico e o metafísico, o conhecimento e a ética. Nem todas têm a ambição de
abarcar todos os problemas, mas todas têm a ambição de enfrentar as questões funda-
mentais, de produzir os princípios e categorias necessários ao verdadeiro pensamento.
Há teoria e doutrina nos sistemas filosóficos. Diferentemente das teorias científi-
cas, eles não têm relações orgânicas de trocas com o mundo empírico e não obedecem
ao imperativo da verificação. Também diferentemente das teorias científicas, eles as-
sociam em si as verdades cognitivas e as verdades éticas. Mas, tal como as teorias cien-
tíficas, eles são relativamente abertos e aceitam a polémica. Alimentados de tradição
crítica/laica, eles só tendem para a arrogância no regaço de uma religião soberana. O
meio em que existem está cheio de vírus críticos, de polémicas com argumentos, de in-
tensas lutas de ideias, o que mantém neles uma abertura particular. Submetidos a uma
actividade crítica intensa da parte dos sistemas rivais ou inimigos, são, ao mesmo tem-
po, aguerridos e frágeis, capazes de responder aos assaltos mais vigorosos, capazes
também de se emendarem, de se modificarem, de assimilarem elementos exteriores, ou
mesmo de levarem a cabo simbioses das quais sairá um sistema novo. Os sistemas fi-
losóficos são, enfim, suficientemente complexos para disporem eventualmente de uma
aptidão reflexiva e crítica que os torna capazes de pensar os outros sistemas de ideias
e de se pensarem a si próprios.

Podemos agora conceber os sistemas filosóficos como entidades que, elaboradas


muitas vezes a partir de um espírito demiúrgico (Aristóteles, Platão, Descartes, Espino-
sa, Leibniz, etc), adquirem vida auto-eco-organizadora. Estas entidades vão b u s c a r »
seu ecossistema cultural as energias de que se alimentam e regeneram. Vão buscar aos
espíritos individuais não só a aspiração ao conhecimento e a preocupação de se si-
tuarem no mundo, não só a sede de certezas, mas também o questionamento antropo-
lógico; assim, elas comunicam com o insondável abismo da interrogação humana.
Correlativamente, as entidades filosóficas nunca deixaram de ir buscar ao devir/críac
da cultura europeia um a problematização sempre renovada pela desintegração dos aafe-
gos mitos, pela modernização da religião, pela erosão ininterrupta das ideias n a -
cionais, pela actividade crítica permanente. Neste sentido, a problematização c a k a n l

1
Freud escrevia, em Totem e Tabu, que o delírio paranóico é a caricatura de um
losófico. Também se pode dizer que o sistemafilosóficoéaformaespiritualizadado
nóico. Ferenczi escrevia, em 1914, que «os sistemas filosóficos que procuram exp
mente o devir completo do mundo, não deixam nenhum lugar residual, não só para o
mas mesmo para o que é temporariamente inexplicável, e são aparentados aos sistemas
tes paranóicos, os quais se caracterizam pela tendência para explicar «racionalmenle».
dos acontecimentos do mundo exterior, as suas próprias pulsões irracionais interi
lado, Gabriel Mareei dizia: «É terrível sermos obrigados a constatar que o coi
rado dos grandes sistemas filosóficos não substitui o mais modesto bom senso, eqne»
casos, talvez contribua para o abafar.»

125
EDGAR MORIN

atiça a problemática antropológica, a qual atiça, em retomo, a problematização cultu-


ral, provocando tudo isto, eventualmente, um vazio e uma confusão que originam en-
tão a crise da problematização e dão lugar aos retornos e renovações da grande religião
e das filosofias que a justificam. A vitalidade reinterrogativa muito grande que animou
o pensamento europeu desde o século xvi impediu que os sistemas se esclerosassem
e se imobilizassem. Conjuntamente, a actividade polémica intensa, por meio de argu-
mentos, refutações, críticas, permitiu que se mantivesse uma vitalidade intercrítica que
impediu os sistemas propriamente filosóficos de se autodeificarem. Pelo contrário, as
grandes ideologias que se espalham na cidade,polis, e às quais, neste sentido, chama-
remos políticas, automitificam-se e autodeificam-se.

As ideologias

Há, simultaneamente, continuidade e ruptura entre as filosofias e as ideologias, as


quais, na maior parte dos casos, têm origem em ideias filosóficas. As ideologias são
vulgáticas (vulgata: versão espalhada) e estendem a sua influência para lá da intelli-
gentsia, no mundo político e social.
As ideologias vão buscar às filosofias o seu núcleo axiomático, as suas ideias
mestras; elas retiram daí a sua coerência organizadora, mas de uma maneira simplifica-
dora, degradada, dogmática, que faz delas sistemas de natureza diferente: as ideologias
perderam a problemática e a complexidade que fazem a originalidade das filosofias.
Compreende—se agora o sentido pejorativo do termo «ideologia», sempre conotado
com um defeito, uma falta, uma ilusão.
Diferentemente das filosofias, que são e continuam a ser teorias, as ideologias são
fortemente doutrinárias. Elas são racionalizadoras (tudo se explica pela sua lógica) e
idealistas (todo o real é assimilado/apropriado pela sua ideia). Notemos que as ideolo-
gias são doutrinárias, mesmo quando assumem um aspecto «crítico»: as ideologias ra-
cionalista, cientista, marxista, têm por fonte uma crítica aos dogmas e doutrinas, mas
produzem novos dogmas com os nomes de Razão, Ciência, Materialismo dialéctico.
Assim, as conotações pejorativas da palavra «ideologia» correspondem à reificação
idealista, à rigidez racionalizadora, à abstracção enganadora, e, finalmente, à ilusão de
deter a verdade dentro de um sistema de ideias.
A ideologia política é uma concepção da realidade antropo-social que, como o sis-
tema filósofo, comporta, de maneira implícita ou explícita, uma concepção do mundo
e do real (assim, o marxismo ideológico conserva do marxismo filosófico o materia-
lismo dialéctico). Assim como os sistemas filosóficos, o núcleo das ideologias é feito
através de uma ligação forte entre o princípio de conhecimento e o princípio ético. Mas,
ao passo que o mundo dos sistemas filosóficos é como que estratosférico, as ideologias
têm uma motricidade directamente ligada à praxis política e social.

126
O MÉTODO

Os ideomitos

Pensou-se, no século XDC e princípios do século xx, que a promoção das ideias lai-
cas correspondia à evolução necessária e progressiva do mito para a razão, da religião
para a ciência; o desaparecimento gradual dos mitos antropomorfos e o estreitamento
da área religiosa deviam ir até ao seu desaparecimento final, que corresponderia ao
triunfo das verdades positivas, racionais e científicas.
Ora esta concepção, que Augusto Com te formulou como lei evolutiva, era um mi-
to, e, de resto, Auguste Comte teve a loucura genial de coroar a era positiva com uma
nova religião, concreta e universal, onde a adorada Clotilde de Vaux incarnava a Hu-
manidade-Mátria.
De maneira mais convincente, Max Weber concebera o desaparecimento gradual
dos mitos, religiões, ritos, tradições, como um processo de secularização em proveito
das ideologias, da ética e das crenças subjectivas. É interessante observar que dois ra-
mos divergentes saíram deste desaparecimento gradual: por um lado o da abstracção,
da racionalização (no sentido weberiano, diferente do aqui utilizado), do desencanta-
mento, e, por outro lado, o da interiorização, da subjectivização, da estetização. Com
efeito, podemos constatar que os génios, demónios, espectros que povoavam a nature-
za, foram despachados para umanoosfera estética, para se tornarem heróis de romance
ou estrelas de cinema, ou entraram para os interiores psíquicos para tomarem a forma
fluida das pulsões e sentimentos. Podemos pensar que estes desenvolvimentos estéti-
cos e subjectivos estão dialogicamente ligados aos desenvolvimentos antinómicos e
concomitantes do pensamento racional-empírico-lógico e dos sistemas de ideias abs-
tractas, teorias científicas, doutrinas, ideologias.
Interrogámo-nos sobre as ressurreições de mitos no campo estético das novas artes
de massas (romance popular, cinema, televisão, desporto) (Morin, 1957,1962). Ad-
mirámo-nos igualmente com a resistência das grandes religiões, e até com as suas
contra-ofensivas vitoriosas nos terrenos desolados do desencanto e do niilismo. Mas,
sobretudo, é necessário ver aquilo que Max Weber não viu: a reinvasão do mito e mes-
mo da religião nos sistemas de ideias aparentemente racionais.
Georges Bataille (1972, pp. 393-394), por seu lado, bem observara que havia no
mundo moderno «avidez de mitos». Acrescentemos: novos mitos fizeram ninho no
próprio coração das ideias abstractas. Digamos por outras palavras: as estruturas arcai-
cas do mito apossaram-se das estruturas evoluídas da ideia.
O Wittgenstein dos manuscritos de 1931 descobrira, durante uma longa meditação
sobre Le Rameau d'or de Frazer, não só que «a eliminação da magia tem... o carácter
da magia», mas também que a metafísica podia ser considerada «uma espécie de ma-
gia» Freud perguntava a si próprio, pouco mais ou menos na mesma altura (1933), se
1
a própria teoria científica não seria mitológica .

1
«Talvez tenham a impressão de que as nossas teorias são uma espécie de mitologia... Mas
não será verdade que toda a ciência da natureza se aproxima de uma tal espécie de mitologia? Se-
rá hoje diferente o que se passa com a física?», carta de Freud e Einstein (Warum Krieg, 1933).

127
EDGAR MOR IN

Esta interrogação merece ser tomada em consideração. É certo que as teorias cien-
tíficas, com as suas características abertas e profanas, estão nos antípodas do mito. Mas
o seu núcleo comporta uma zona cega onde se pode instalar um fermento que transfor-
me em mito a ideia tornada soberana: assim, a ideia pitagórica da realeza do Número
torna-se mito, do mesmo modo que a ideia galileana, newtoniana, laplaciana, da ordem
matemática do mundo...
Toda a passagem a ser de um sistema de ideias comporta um potencial mitológico.
Toda a idealização/racionalização doutrinária tende para autotranscendentalizar o sis-
tema. A partir daí, o mito pode instalar-se no núcleo do sistema e divinizar as ideias
mestras. Assim se opera a mitologização da ideia abstracta. As teorias científicas evi-
tam a doutrinarização, mas o seu núcleo permite a mitificação. Os themata são ideias
mestras obsessionais que tendem a ser carregadas de forçamítica. Assim, emboraman-
tendo-se empírico-racionáis, as teorias científicas podem absorver mito nos seus nú-
cleos.
O mito introduz-se clandestinamente, como um vírus que se introduzisse no ADN
do hospede e nele se integrasse, passando a originar uma actividade propriamente mi-
tológicamas invisível. Melhor ainda: o mito invadiu o que lhe parecia mais hostil e que
deveria tê-lo liquidado.
Se o mito pode introduzir-se no núcleo das teorias científicas, sem, no entanto, o
controlar totalmente, pode invadir completamente as doutrinas e as ideologias. Ao pas-
so que as teorias científicas se mantêm profanas por natureza, a despeito da tendência
própria de todos os sistemas de ideias para se autotranscendentalizarem, as doutrinass
auto-sacralizam-se e auto-idolatram-se. O conceito fundamental torna-se soberano
do universo. A doutrina exige a veneração dos seus adeptos, que têm de lhe obedecer
literalmente, citá-la ritualmente e utilizar a língua litânica de um quase-culto. A par-
tir daí, a transcendentalização e a deificação próprias da mitologia e da religião entra-
ram sub-repticiamente, mas profundamente, no mundo laico da doutrina.
Acontece o mesmo com a ideologia. Com todo o sistema de ideias, a ideologia com-
porta um núcleo que determina a organização dos conceitos e a natureza da visão do
mundo. Este núcleo não se limita a fazer a fusão (ou a confusão) entre paradigmas/
axiomas e valores. Ele contém, enterrada em si, uma substancia mítica, ela própria con-
fundida com a sua substancia doutrinal. Os valores adquirem uma vida superior que os
torna míticos: a Justiça, a Ordem, a Liberdade, a Igualdade, o Amor, a Verdade, o Ho-
mem, mantendo-se como valores, tornam-se míticos e divinizam-se. Assim, o ho-
mem, fonte de direito e de fraternidade na filosofia humanista, encontra-se, de certa
maneira, mitologizado e divinizado na ideologia humanista, onde acede a uma dignida-
de sobrenatural que o impele para a conquista e domínio da Natureza. A ideia do homem
e o mito do homem entrecontaminam-se, e o mito tende a tomar posse da ideia. Dife-
rentemente do mito tradicional, o mito moderno é invisível sob a abstracção ideal e sob
a lógica do sistema. Torna-se tanto mais invisível quanto mais usa a máscara da ciên-
cia «desmistificadora». Assim, o mito da salvação terrestre assumiu a forma do «ma-
terialismo científico».
Hoje, no nosso mundo ocidental, só de maneira estética, com forma romanesca ou
cinematográfica, consumimos os mitos do tipo arcaico, antigo ou exótico, que são nar-
rativas bio-antropomorfas. Os nossos mitos profundos e tirânicos são metidos em cáp-
sulas dentro das ideias abstractas, incluindo na ideia desmistificadora da Razão. Estão

128
O MÉTODO

incluídos e são virulentos nas nossas ideologias. Há muito tipicamente moderno quan-
do há, nas ideias mestras de uma ideologia, coagulação de fortes cargas de verdade éti-
ca (valores), e quando essas ideias se tornam autoritárias, dominadoras, sacralizadas,
soberanas. A ideologia contém então, subterraneamente, no seu coração, as estruturas
do pensamento simbólico-mágico-mítico, escondidas sob as do pensamento lógico-
—empírico—racional.
A virulência de uma ideologia pode tornar-se extrema. A ideologia, lembremos,
tem sempre uma força motriz que deriva da sua forte carga mitológica e do seu carácter
político, isto é, de praxis no seio da cidade. As ideologias tomam então posse e subju-
gam os humanos, como faziam os deuses. É certo que os humanos retiram daí, em troca,
satisfações psíquicas: são detentores da verdade que os possui, dominam ouniverso por
ideologia interposta, gozam, como em verdadeiros coitos psicológicos, com a repeti-
ção dos seus themata obsessionais, os quais fornecem à doutrina o seu erotismo enfei-
tiçador. Os humanos são então capazes de viver e morrer pela ideia.

Aparentemente, os Tempos modernos caracterizam-se pela dominação dos siste-


mas abstractos de ideias ou ideologias e pelo retrocesso dos sistemas mitológicos e reli-
giosos. Mas a grande e real laicização da noosfera não deve impedir-nos de ver a inva-
são dos mitos no seu próprio seio. Assim, assistimos a que a razão, desviando-se da
racionalidade para a racionalização, se tornou ídolo e até deusa. A razão só existe como
actividade crítica e autocrítica, mas tomou-se uma entidade em si, que se arrogou a
soberania, a providencialidade, e até divindade. A ideologia cientista também se cons-
tituiu como sistema simultaneamente racionalizador e idealista, que suscitou em si
própria a aglutinação dos mitos da Certeza, da Razão, do Progresso; assim, a ciência
viu ser-lhe atribuída a missão providencial de guiar a humanidade para a salvação ter-
restre.
É nestas condições que a palavra Razão se torna desrazoável, a palavra Ciência an-
ticientífica. Adorno e Horkheimer bem tinham visto que a Razão (fechada) se torna por
si só própria autoritária: estendendo a sua universalidade potencial ao universo, ela
apropria-se do universo; identifica a sua ordem com a ordem cósmica ou histórica e
apropria-se das leis da Natureza. A Razão, com maiúscula, torna-se abstracta e racio-
nalizadora, instaura em si uma guilhotina ideológica e uma potencialidade totalitária.
Já portadoras em si próprias de paixões e violências, a mitificação e a deificação
que penetram na ideologia abstracta, vão ser penetradas pela fria crueldade da lógica,
pelo delírio gelado da racionalização. Assim, o nazismo e o estalinismo associaram em
si o frio absoluto da sua lógica e o fogo devorador da sua salvação para levarem a ca-
bo os maiores extermínios da história.
O fenómeno chave deste século é o desfraldar mito-religioso de grandes ideologias
políticas com, primeiro, o triunfo, e depois, para o fim do século, com a erosão (pro-
visória? definitiva?) dos mitos de salvação terrestre.

129
B. U. 63 — 9
EDGAR MURIN

As ideologias da promessa

Tomemos o exemplo privilegiado e ainda pouco arrefecido do marxismo para ilus-


trar o que afirmamos. O marxismo é, à partida, um sistema de ideias muito complexo
e ambivalente. É uma filosofia que intenta ultrapassar a filosofia para se tornar cien-
cia. Mas, logo que pretende ser a única e verdadeira ciência, deixa de ser teoria para se
tornar doutrina e impõe-se como doutrina ortodoxa no ecossistema político do parti-
do que dela se reclama.
O marxismo, como sistema filosófico, comporta três núcleos fortemente soldados
num só: 1) o paradigma que determina as categorias fundamentais e o modo de utiliza-
ção da lógica (materialismo dialéctico); 2) o princípio do devir antropo-histórico pelo
jogo dialéctico do desenvolvimento das forças produtivas e da luta de classes (materia-
lismo histórico); 3) a missão histórica do proletariado, destinado a instaurar a sociedade
sem classes e fazer com que acabe a pré-história da humanidade. O carácter mítico do
terceiro núcleo é simultaneamente camuflado e exaltado pelo carácter «científico» dos
dois primeiros.
O marxismo torna-se ideologia quando o sistema perde a sua complexidade (rique-
za e ambiguidade), quando uma das suas versões ideológicas simplificadas se degra-
da em doutrina ortodoxa (única ciência verdadeira, previsão certa do futuro) e quando
o fermento messiânico da salvação terrestre, assumindo o comando do triplo núcleo,
se torna motor do movimento revolucionário. O mito da salvação é camuflado, apro-
priado pela ideologia, mas, feito isso, ele apropria-se da ideologia que se apropria de-
le. A profundidade mitológica do marxismo é tanto maior quanto mais ele se apropriou
de todos os grandes mitos que se formaram no seio das ideologias modernas: assim, pre-
tendendo apropriar-se da racionalidade, apropria-se do mito da razão providencial e
soberana; pretendendo apropriar-se dacientificidade, apropria-se dos mitos cientistas
da posse da verdade e da missão emancipadora da ciência, ao que acrescenta o seu
próprio mito, aposse «científica» das leis da história. Ao dedicar-se aos interesses uni-
versais da humanidade, apropria-se do direito de guiar a humanidade; afirmando-se
servidor do povo soberano, apropria-se da soberania do povo. Criando o mito do pro-
letariado, messias salvador vujo suplício vai regenerar o mundo, apropria-se, com o
mito da salvação e da missão de messias do proletariado, das energias religiosas da tra-
dição judaico-cristã, e apropria-se de todos os direitos sobre o proletariado e sobre a
história mundial. Assim, unidas no marxismo e dispersas fora do marxismo, as mito-
logias da razão, da ciência, do desenvolvimento, da salvação, caíram sobre o séculoxx,
agitaram-no e transformaram-no.

A ideologia democrática é uma das grandes ideologias políticas dos Tempos


modernos. Anterior ao marxismo, ela renova as suas energias através do enfraque-
cimento do marxismo. A ideologia democrática transporta no seu seio o grande mito
trinitario Liberdade/Igualdade/Fratemidade. Ela leva para onde há servidão, ditadura,
totalitarismo, a esperança e a promessa emancipadora. Contudo, a ideologia democráti-
ca não poderia pretender converter-se em religião de salvação, nem deter a ortodoxia
de uma doutrina. A ideologia/mito democrática tem no seu seio os princípios de tolerân-
cia e pluralismo: ela tem no seu coração um núcleo irredutível de laicidade: a única ver-

130
O MÉTODO

dade absoluta da democracia é apenas a regra do jogo que permite às verdades antago-
nistas confrontarem-se no seu terreno.
Todas as ideologias possuem o seu ingrediente mítico. Assim, a ideologia da «so-
ciedade industrial» (elaborada, como teoria, desde Saint-Simon até Raymond Aron,
tomou-se, durante um certo período, ideologia/mito tecnocrático-político) teve a sua
1
componente e a sua promessa mítica. De resto, não se poderia conceber ideia política
sem este ingrediente. Não se poderia pensar o próprio ser humano sem este ingrediente.

A ideia e o real

A ideologia, tal como o mito e a religião, mas através da ideia, serve para apreen-
der o real, e ao mesmo tempo proteger-se dele. Ela dá resposta, nos tempos contem-
porâneos, às mesmas necessidades fundamentais que o mito, e por vezes a religião.
Assim, as ideologias políticas alimentam-se dessas poderosas fontes negentrópi-
cas que são as aspirações, sonhos, necessidades, desejos, temores, que brotam e fer-
mentam constantemente nas nossas sociedades. No seu seio, os conceitos tomam-se
seres-deuses ou seres-demónios: assim acontece, não só com a razão, a ciência, o
homem, mas também com o «capitalismo», o «socialismo», que, como vimos, são do-
tados de intenções, de consciência, de manha...
As ideologias carregam-se de emoção como as nuvens se carregam de electrici-
dade, e, em condições favoráveis, adquirem forma expansiva, eruptiva, explosiva. Al-
gumas delas foram capazes, no nosso século, de substituir a religião de salvação e pas-
sar a dispor de um formidável poder de invasão e extermínio. Vimos então em acção
as duas grandes ideologias antagonistas. Uma igualitária e messiânica para toda a hu-
manidade, a outra hierárquica e exaltando a raça superior, ambas ligando nuclearmen-
te os mitos do socialismo e da nação. A segunda morreu num desastre militar, e não de
uma derrota de ideias, e a primeira acabou por se enfraquecer por causa da contradição
absoluta entre o seu mito e a realidade que ele criou...
Mas fora esta contradição que lhe dera o seu poder supremo! Assim, foi o fracasso
cultural e social do consumismo nos anos 1920-1924, que levou o marxismo, tornado
estalinista, a automitificar-se em «marxismo-leninismo», doutrina infalível, Bíblia-
-fonte de todas as verdades. Fora o desmentido do real que o levara a transformar a sua
relação com o real e a infligir a este último os piores suplícios, para nunca proferir a sua
verdade e proferir, pelo contrário, a verdade exigida pelo Partido.
Incapaz de negociar com ela, o mito estalinista tornou-se capaz de esmagar e sub-
jugar a realidade que o desmentia. Este massacre de sectores inteiros da realidade —
massacre dos Kulaks, dos opositores exteriores e depois dos opositores que se encon-
travam na esfera de Estaline, massacre realizado quase ao acaso de suspeitas—foi ca-
paz de esmagar a realidade. E, para isso, foi necessário abater todas as outras ideias e
ideologias. Assim, o fracasso do «socialismo real» permitiu que triunfasse, durante se-
tenta anos, um socialismo irreal, mas sobre-real, mais forte que a realidade.

1
Georges Sorel, no princípio do século, introduzira a noção de mito na política. Compreen-
dera bem que não havia política sem mito, mas não compreendera bem a própria noção de mi-
to (ver J. Monnerot, 1974, e J. Freund, 1974, pp. 79-80).

131
EDGAR MORIN

Os costumes das ideias

As ideologias que se situam em campos diferentes de competência ignoram-se


umas às outras. As que cobrem um mesmo campo opõem-se. As que comportam em
si uma concepção do mundo são incompatíveis e os seus conflitos são ferozes. Assim,
um conflito radical tem oposto a grande religião da salvação celeste à religião da salva-
ção terrestre. Por causa da visão do mundo contrária e da mensagem de salvação idênti-
ca mas concorrente, o marxismo e o cristianismo têm-se combatido em todos os conti-
nentes. Contudo, e este é um caso notável de química própria às ideias, a analogia entre
cristianismo e marxismo levou a cabo, localmente e em determinadas condições histó-
ricas, sociais e culturais, uma simbiose que substitui o duelo de morte, nomeadamente
na América latina. E contudo, aí, a Igreja estava tradicionalmente ligada às forças con-
servadoras que oprimiam uma plebe miserável. Foi justamente nessas condições que
a ideia de fraternidade cristã para os pobres e infelizes pôde corroer o núcleo da ideo-
logia católica/conservadora, e aí abrir uma fenda. A partir daí, nada mais se opunha à
atracção mútua entre a ideia de fraternidade socialista e a ideia de fraternidade cristã.
Esta última pôde reencontrar no proletariado mártir a experiência do Cristo sofredor e
perseguido. O comunismo revelou-se então, jánão como inimigo do cristianismo, mas
como portador da sua verdade terrestre. Naturalmente, o ateísmo do comunismo mar-
xista era contrário à fé em Cristo, mas esta contradição pôde ser ultrapassada por um
modus vivendi entre o Céu e a Terra. Estando o Céu reservado a Deus, a fé pôde então
ver facilmente no Partido comunista uma missão terrestre de natureza crística. Nestas
condições, a mensagem marxista e a mensagem crística puderam entrecomplementar-
-se, e constituiu-se uma ideologia simbiótica, dita «teologia da libertação»; depois, em
muitos católicos, incluindo padres, a religião marxista de salvação terrestre revelou-se
capaz de absorver e assimilar em si a religião crística da salvação celeste.
Assim, no seu movimento ascensional, o marxismo-leninismo é capaz de fagocitar
as energias mitológicas da religião concorrente. De igual modo, ele mostrou-se capaz
de captar as energias do mito nacional (do qual falaremos um pouco adiante). Embo-
ra de essência internacionalista, e sem esgotar a fonte internacionalista, o marxismo es-
talinista, enraizando-se na URSS, pôde captar para si, nas condições propícias da
ameaça hitleriana dos anos 30, a herança nacionalista e patriótica da Rússia csarista, e,
em todos os países, o comunismo tornou-se «patriótico» com o fim de se apoderar das
energias do mito da nação. (De resto, o mitôda nação também absorveu o mito comu-
nista tanto quanto este absorveu aquele.) Assim, na sua fase ascendente, a ideologia
comunista é dotada de um grande poder de fagocitose que lhe permite apropriar-se de
mitos e ideias mestras adversas, e de as assimilar. Mas, na fase descendente, em que a
ideologia comunista perde a salvação terrestre, o cristianismo aproveita-se dessa desi-
lusão e alimenta-se da desintegração da fé comunista; da mesmamaneira, o nacionalis-
mo torna-se força de resistência e de oposição ao sistema ideológico que pensava tê-lo
domesticado...
Estes rápidos exemplos indicam-nos que as relações entre ideologias podem ser
complexifiçadas pelas relações ecológicas (culturais, sociais, históricas) da sua exis-
tência, condições que favorecem a captação das ideias-força de umas pelas outras, ou
a atracção entre mitos análogos que até então se repeliam. As palavras/mitos de «so-

132
KJ IV 111,1 KJLSKJ

cialismo», «democracia», «nação», podem ser assim roubadas, integradas, transforma-


das, desmitificadas, remitificadas...

O mistério da nação

Vejamos agora aquilo que, constituído ao mesmo tempo na sociosfera e na noos-


fera, é portador, simultaneamente, de ideologia, mito e religião, sendo um ser feito de
substâncias diversas reunidas numa só: a nação.
O Estado-Nação é um ser ao mesmo tempo social, político, cultural, ideológico,
mítico, religioso. È uma sociedade vivendo num determinado território, e organizada.
É uma entidade política dotada de um Estado e de leis próprias. É, culturalmente, uma
comunidade de destinos comportando a sua memória e os seus costumes particulares.
Éum sistema ideológico de racionalização autocêntrica. É um ser mítico de substância
simultaneamente maternal e paternal: a Mãe-Pátria. É finalmente, como viu Toynbee,
uma religião de tipo especial onde, de maneira quase durkheimiana, o Estado-Nação
se antodeifica. Todos estes constituintes são, não só complementares, mas recursiva-
mente associados, cada um deles produzindo os outros que, por sua vez, o produzem.
Um ser tão complexo como este formou-se de maneira multissecular e aleatória,
primeiro em Inglaterra, França, Espanha. O seu acabamento mitológico e ideológico
fez-se na e pela Revolução francesa, onde o Estado-Nação se torna soberano legítimo
e absoluto.
Uma vez estabelecida, a fórmula Estado-Nação difundiu-se muito rapidamente,
primeiro na Alemanha e em Itália, depois em toda a Europa, e finalmente, no século xx,
em todo o planeta. Por vezes em simbiose, outras vezes em oposição à religião oficial
dopais, o Estado-Nação, divinizado de maneiramatripatriótica, institui realmente uma
religião própria, comportando o seu culto e os seus sacrifícios, que alimenta e se ali-
menta do amor e da obediência absoluta dos «filhos da pátria» (Morin, 1987 pp. 61 -64).
Assim, o Estado-Nação é uma entidade sociológica original que só é assim porque
é, ao mesmo tempo, uma realidade histórica concreta e uma realidade noosférica não
menos concreta, que comunicam através das suas raízes: anação enraiza-se em profun-
didade no tufo material/biológico da «terra e dos mortos», onde se encontra justamen-
te a sua substância mítica: «terra—mãe», «mãe—pátria».
As teorias da nação são todas insuficientes. No que se refere à sua natureza nooló-
gica, Michelet e Renan bem viram que a nação é um ser de espírito, ao passo que os
alemães viam aí um ser «biológico». Estes dois pontos de vista são, na realidade, com-
plementares: a nação é um ser vivo metabiológico porque éum ser de espírito.
Hoje, que se coloca o problema de ultrapassar o Estado-Nação, a dificuldade não
está somente nos interesses em jogo, mas também na consistência mito-religiosa das
nações, que continuará a resistir vitoriosamente enquanto não forem constituídas en-
tidades superiores, de forte densidade mitológica, como a Europa, e sobretudo enquan-
to a ideia de humanidade não ascender ao zénite mitológico do planeta Terra.

133
EDGAR MORIN

Conclusão

Teorias, doutrinas, filosofias, ideologias, não têm de ser julgadas apenas como
erros e verdades na tradução que fazem da realidade; elas não têm de ser concebidas
apenas como produtos de uma cultura, de uma classe, de uma sociedade. São também
seres noológicos, alimentando-se de substância mental e cultural, e algumas delas,
carregadas de forte substância mítico-religiosa, podem desenvolver um poder extraor-
dinário de subjugação e posse.
_______________________________________________________________
.
.
MORIN, Edgar.
O método IV: as ideias – a sua natureza, vida, habitat e organizaçao.
Mem Martins: Publicações Europa-América, 1991.

134

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