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Os Sistemas de Ideias
Os Sistemas de Ideias
OS SISTEMAS DE IDEIAS
Primeiras definições
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Diferentemente da química, da qual se podem extrair princípios universais de atracção, re-
pulsão, combinação entre elementos, não se pode conceber uma «química das ideias». Estas obe-
decem, realmente, a atracções, repulsões, exclusões, combinações, mas em situações sempre si-
tuadas e datadas.
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EDGAR MORIN
Todo o sistema de ideias, incluindo uma teoria «aberta», como uma teoria cientí-
fica, comporta o seu fechamento, a sua opacidade e a sua cegueira:
1.0 núcleo duro é constituído por postulados indemons traveis e por princípios
ocultos (paradigmas); estes são indispensáveis à constituição de qualquer
sistema de ideias, incluindo o científico (Morin, 1990, p. 44). O núcleo deter-
mina os princípios e regras de organização das ideias, comporta os critérios
que legitimam a verdade do sistema e seleccionam os dados fundamentais
nos quais se apoia; determina portanto a rejeição ou ignorância do que
contradiz a sua verdade e escapa aos seus critérios; elimina aquilo que, em
função dos seus axiomas e princípios, lhe parece destituído de sentido ou de
realidade. Toda a teoria comporta portanto no seu núcleo uma zona cega.
Assim, os axiomas/princípios das teorias científicas actuais interditam-lhes
que concebam a acção terapêutica de uma substância extremamente diluída
e ministrada em doses infinitesimais (homeopatia). Como diz Jacques
Schlanger(1978 b , p . 35): «É-lhes impossível apreender qualquer coisa que
seja exterior e contrária ao tecido da interpretação que elas permitem.»
Um sistema de ideias nunca pode criticar os seus próprios axiomas e os seus
próprios princípios. Max Weber denunciou muitas vezes «a irresistível
tendência monista das teorias, refractárias à crítica de si próprias». Dife-
rentemente de uma doutrina, uma teoria científica é certamente capaz de
modificaros seus subsistemas e de reconhecer os desacordos que existiriam
entre as suas predições e os dados colhidos no seu campo de pertinência; mas,
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O MÉTODO
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Desde 1935, Ludwig Fleck, filósofo e médico polaco, observava como um sistema de cren-
ça, estruturado e coerente, no qual se podem reunir múltiplos elementos em relação estreita uns
com os outros, tendia a consolidar-se e fechar-se, oferecendo uma resistência dura e durável a
tudo o que se lhe opunha: 1) uma contradição do sistema aparece como impensável; 2) o que não
está de acordo com o sistema continua sem ser observado, ou, se o é, fica silencioso; 3) só rete-
mos as concepções alternativas que corroboram o sistema de crença (citado in Rossi Monti,
1984).
2
A despeito das suas grandes vantagens, o modo de cálculo decimal, repelido pelo modo de
cálculo anterior, levou mais de um século até ser adoptado na Europa ocidental, após a sua in-
trodução por Fibonaci de Pisa (1202).
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EDGAR MOR/N
periência que lhe é contrária, uma teoria melhor argumentada. Por isso, é raro, para que
uma teoria se desintegre, bastar uma experiência decisiva, um argumento «imbatível».
Énecessária uma longa série de provas acumuladas das suas carências e insuficiências,
e é também necessário o aparecimento de uma nova teoria que evidencie uma maior
pertinência. Assim, na história das ciências, as teorias resistem dogmaticamente como
doutrinas, mas, finalmente, a regra do jogo competitivo e crítico leva-as a emendarem -
-se, e depois a retirarem-se para o grande cemitério das ideias mortas.
Teoria da teoria
O que é próprio da teoria é admitir a crítica exterior, segundo regras aceites pela
comunidade que cuida, suscita, critica as teorias (comunidade filosófica ou científica).
O campo de existência das teorias é recente, frágil. Constituiu—se pela primeira vez há
vinte e cinco séculos, em Atenas, onde a instauração da filosofia abriu uma esfera de
debate livre de ideias, sem sanções, exclusão ou liquidação daqueles que eram admi-
tidos no debate. Depois, a ciência europeia criou o seu próprio campo, no qual toda a
teoria deve obedecer a regras empíricas/lógicas limitativas, e aceitar as verificações/re-
futações que poderiam diminuir-lhe a autoridade.
Assim, um sistema de ideias continua a ser teoria enquanto aceitar a regra do jogo
competitivo e crítico, enquanto evidenciar maleabilidade interna, isto é, capacidade de
adaptação e modificação na articulação entre os seus subsistemas, como a possibilida-
de de abandonar um subsistema e de o substituir. Por outras palavras, uma teoria é ca-
paz de modificar as suas variáveis (que se definem nos termos do seu sistema) mas não
os seus parâmetros (os próprios termos que definem o sistema). Assim, as caracterís-
ticas «fechadas» de uma teoria são contrabalançadas pela procura de acordo entre a sua
coerência interna e os dados empíricos que ela evidencia: é isso que constitui a sua ra-
cionalidade.
A teoria é aberta porque é ecodependente. Depende do mundo empírico onde se in-
sere. A teoria vive das suas trocas com o mundo: ela metaboliza real para viver. Éo seu
tipo aberto de auto-eco-organização que dá à teoria uma resistência constitutiva ao
dogmatismo e à racionalização. Mas este tipo aberto está correlativamente ligado às re-
gras pluralistas do meio que a alimenta, isto é as sociedades/comunidades filosóficas
ou, melhor, científicas. A esfera filosófica e a esfera científica são esferas de existên-
cia democrática/liberal para as teorias. Na esfera científica há, além disso, provas e um
veredicto de promoção ou eliminação. Assim, a teoria aceita a crítica no quadro filo-
sófico, mas é no quadro científico que ela tem de admitir o princípio da sua biodegra-
dabilidade: uma teoria aberta é uma teoria que aceita a ideia da sua própria morte.
Doutrina
Quanto à doutrina, ela recusa a contestação, assim como recusa qualquer verifi-
cação empírico-lógica que lhe seja impôs ta por uma instância exterior. Ela é intrinseca-
mente irrefutável. Nem por isso é totalmente fechada ao mundo exterior; tem necessi-
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O MÉTODO
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Mario Rossi Monti (1984) indicou bem que há, ao fim e ao cabo, uma semelhança muito
grande entre a psicologia do paranóico e a noologia doutrinária: «Selectividade radical da aten-
ção, desatenção selectiva, rigidez direccional da atenção, hipervigilância, são alguns dos termos
usados para descrever a capacidade... para extrair da realidade a série de factos muito restrita nos
quais se apoia (o) sistema» Sobre o comportamento imunológico das doutrinas ver o meu tra-
balho Pour sortir du XX' siècle, pp. 96-109.
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mais intensa, mais ardente que as teorias; a ideia doutrinária pode mesmo adquirir a so-
berania de um deus. Seria necessário estudar a dedicação e o culto para com a Ideia su-
prema.
SISTEMAS DE IDEIAS
DOUTRINAS TEORIAS
Auto-referência Auto-exo-referência
Fechamento doutrinário Abertura ao exterior
(fraca ecodependência) (forte ecodependência)
Dogmatismo Flexibilidade
Idealismo Empirismo
Ortodoxia Autodoxia
(verdade absoluta e única) (comporta-se em função
dos seus princípios)
Autotranscendência Autocentrismo
auto-sacralização,
autodeificação
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O MÉTODO
Deve sublinhar-se desde já que a diferença entre doutrina e teoria depende com fre-
quência, não das ideias em si próprias, que compõem o sistema, mas do fechamento ou
da abertura da sua organização. Um mesmo sistema de ideias pode tornar-se teoria ou
doutrina. A abertura depende do ecossistema psicocultural. Assim, o ecossistema
científico garante de maneira bastante eficaz a abertura das teorias, que então só in-
completamente podem tornar-se doutrinas. O ecossistema de um partido político rigi-
damente centralizado favorece a criação de doutrina, a qual, ela própria, favorece a
centralização rígida: assim, por exemplo, no contexto do mundo universitário, o mar-
xismo pode tornar-se teoria aceitando ser discutido e posto em confronto com outras
teorias, mas, no seio da seita ou do partido que se fez proprietário e intérprete dele, o
mesmo m arxismo torna-se doutrina; considera-se ter sido verificado para sempre e ser
irrefutável, e rejeita então, de maneira imunológica, qualquer informação, qualquer ar-
gumento que o contestem.
Idealismo e racionalização
Dizer que a abertura teórica exige condições externas favoráveis é o mesmo que di-
zer que todo o sistema de ideias tende a fechar-se sobre si próprio. O dogmatismo e a
ortodoxia são as suas tendências naturais, e estas são compensadas apenas por condi-
ções exteriores. É o que dizia Auguste Comte à sua maneira: «O dogmatismo é o es-
tado normal da inteligência humana, aquele para o qual ela tende, pela sua natureza,
continuamente e em todos os géneros.» ParaG. K. Chesterton: «O dogma significa, não
a ausência de pensamento, mas a finalidade do pensamento.» Estas duas fórmulas não
são totalmente verdadeiras para a inteligência e para o pensamento humanos, mas são-
-no para as entidades que emergem dessa inteligência e desse pensamento: os sistemas
de ideias.
Lupasco definia a ideologia como «um sistema de ideias que resiste à informação».
Isto é verdade para todo o sistema de ideias, incluindo a teoria, mas a resistência da teo-
ria não é irredutível, ao passo que a doutrina, não só resiste à informação, mas também
a destrói.
Acrescentemos duas tendências propriamente noológicas, cujas consequências são
perversas para o conhecimento humano. A primeira, como já indicámos, saiu da incli-
nação natural do sistema para se fechar na sua armadura lógica, que se torna assim ra-
cionalizadora. Racionalidade e racionalização têm o mesmo tronco comum, que é a
procura de coerência. Mas, enquanto a racionalidade está aberta ao que resiste à lógi-
ca e se mantém em diálogo com o real, a racionalização integra à força o real na lógi-
ca do sistema e pensa então que o possui. Esta tendência racionalizadora equivale aqui
à tendência «idealista» profunda de todo o sistema de ideias, que é a de absorver a rea-
lidade que nomeia, designa, descreve, explica. Sob o ponto de vista noológico, os sis-
temas de ideias não se alimentam apenas das energias e paixões dos humanos. Eles su-
gam e esvaziam a realidade que evidenciam. Desvendando as «leis» que dirigem o
mundo, as teorias científicas aspiram por elas à soberania universal dessas leis. Há,
como diz Manuel de Dieguez (1970), transubstanciação mística dos factos pela teoria».
Mesmo no momento em que as tomamos pela realidade, as ideias, de maneira qua-
se alucinatória, tornam-se fantasmas que escapam à realidade. O mediador substitui o
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mediatizado (o mundo, oreal). O «poder absoluto das ideias», que, segundo Mauss, ca-
racteriza a Magia, torna-se o culminar idealista da absorção dos espíritos e do real pe-
la ideia. A ideia que transporta consigo a essência do real torna-se então mais real que
o real, domina ou expulsa este último. Aqui adquire sentido a intuição genial de Witt-
genstein: «A eliminação da magia (pela teoria) tem... o carácter da magia.»
Há, nestas condições não só reificação (a palavra é adequada) da ideia, mas poder
1
verdadeiramente mágico e verdadeiramente mítico da ideia. Ela torna-se poder de
posse sobre o real, quase no sentido vodu do termo.
O idealismo não poupou de modo nenhum o mundo das teorias científicas; pelo
contrário, a sua abstracção matemática e a sua concordância com as «leis» da Nature-
za favoreceram uma idealização particular a que Whitehead chamou «o pensamento
concreto mal colocado», «a falácia da concretude deslocada» (thefallacy ofmisplaced
concreteness). Ele dizia, da física clássica: «Esta concepção do universo está soli-
damente construída em termos de alta abstracção e... por engano, tomámos as nossas
abstracções por realidades concretas» (Whitehead, 1930, p. 79). Tudo o que foi deita-
do fora como não assimilável pelas teorias científicas foi considerado subproduto do
real, epifenómenos, logros, boatos: a existência, o sujeito, as coisas singulares, os con-
juntos orgânicos, em suma, o verdadeiro pensamento concreto. O conceito, a lógica, a
matemática, o sistema, roubaram esta concretude ao real. Os conceitos chave das pró-
prias teorias científicas carregaram-se com uma substancialidade absoluta; assim
aconteceu também durante muito tempo com a noção de matéria; depois também su-
cedeu o mesmo com a energia, noção reificada embora seja, em si, impossível de agar-
rar e só apareça através das suas manifestações físico-químicas; depois, para alguns,
a informação tornou-se um ser concreto e soberano, quando ela existe realmente na
computação e na comunicação.
Foram sobretudo as entidades matemáticas, os seres de espírito menos dotados de
existência física, que se dotaram da realidade física suprema. Já dissemos que os nú-
meros matemáticos passam naturalmente à existência noológica, e daí à sobre-existên-
cia pitagórica. Acrescentemos agora que eles se tornam, não só senhores do real, que
obedece às suas ordens, mas essência do real. Levando ao último extremo idealista a
expressão de Galileu segundo a qual o livro da Natureza está escrito em linguagem ma-
temática, um Eddington acaba por pensar que o universo é inteiramente feito de ma-
temáticas. O real físico é assim substituído pelo real noológico.
O idealismo torna-se então o estádio supremo da tomada de posse do real pela ideia.
O idealismo filosófico é apenas um caso particular do idealismo, não menos presente
no materialismo dos físicos. O idealismo é o mito natural da ideia. A racionalização é
a arma mágica da ideia contra o real. As teorias científicas estão melhor armadas con-
tra a racionalização, mas os themata e os paradigmas a que elas obedecem favorecem
poderosamente a sua tendência para o idealismo. É necessário que o ecossistema hu-
mano lhes forneça um ingrediente fortemente empirista (a crença de que o real está nos
factos e não na ideia ou na fórmula matemática) ou um ingrediente fortemente místico
(a crença em que as verdades profundas estão para além do conceito e do discurso) pa-
ra contrabalançar a tendência natural das entidades logomorfas para o idealismo.
1
Sobre a magia, ver O Método III, cap. 1.
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Claude Bernard dizia: «Os sistemas tendem a subjugar o espírito humano.» É
subjugando o real que a idealização e a racionalização subjugam o espírito humano. E,
como veremos, são as doutrinas e as ideologias fortemente carregadas de substancia
mitológica ou religiosa que amplificam estas tendências.
A tendência humana inveterada para tomar o mapa pelo território, a palavra pela
coisa, a ideia pela realidade, talvez tenha uma das suas fontes num modo de existência
dos seres de espírito? Também aqui o remédio só pode estar na abertura do sistema teó-
rico, a qual depende da abertura do espírito humano, isto é, da sua aptidão crítica e au-
tocrítica, a qual é favorecida nas situações culturais pluralistas e abertas.
Os sistemas filosóficos
Distingamos:
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filosóficos mais ou menos envolvidos por cultos. A grande originalidade dos sistemas
budistas em relação a quase todos os sistemas filosóficos ocidentais é terem o vazio ou
o nada como ponto de partida e de chegada.
Na Europa, os sistemas laicos de ideias que constituem visões do mundo, da vida,
do homem, do real, aparecem nas ilhas gregas seis séculos antes da nossa era. Um sé-
culo mais tarde, em Atenas, institui-se um espaço autónomo, propício ao livre desen-
volvimento dos sistemas filosóficos. Este espaço alastrará durante o Império romano,
mas a Igreja cristã, tornada única religião do império, interditará a filosofia laica. É cer-
to que o cristianismo medieval saberá integrar em si o aristotelismo como subsistema,
e as doutrinas filosóficas com uma soberania limitada poderão afrontar-se à sombra da
Cruz.
O Renascimento fará ressurgir um espaço filosófico que obterá a sua plena auto-
nomia dois séculos mais tarde. Essa autonomia não será, no entanto, definitivamente
assegurada. No século XX, o poder estalinista suprimirá o espaço filosófico, e o poder
nazi expulsará desse espaço as ideias insanas.
A esfera filosófica é portanto historicamente recente e frágil; ela está, além disso,
socialmente limitada a uma casta de filósofos que, a partir do século XIX se encerra nas
universidades. Enfim, o desenvolvimento das ciências fez-se repelindo as ideias fi-
losóficas ou negando-lhes qualquer pertinência. Contudo, foram o esforço e o floresci-
mento filosóficos os iniciadores e os estimulantes do processo de laicização que formou
a sociedade europeia moderna; foi do cadinho filosófico que saíram todas as grandes
ideologias que animaram a história política e social das nações europeias e que ainda
animam a do mundo.
A partir do Renascimento, a reintegração do mundo, depois de Cristóvão Colom-
bo ter aumentado a Terra, e depois de Copérnico e Galileu a terem tornado mais peque-
na no céu, a reinterrogação de Deus, a reinterrogação do homem, a interdependência
destas reintegrações, determinam uma problematização geral. A perda dos antigos fun-
damentos de inteligibilidade e de crença suscita a procura incessante de novos funda-
mentos e a formação ininterrupta de novos sistemas filosóficos, os quais levantam mais
questões do que fornecem respostas, o que faz com que a procura seja constantemen-
te retomada. E assim, anoosfera filosófica europeia desenvolve-se com um a prodigio-
sa intensidade apresentando duas faces opostas e ligadas uma à outra: por um lado, uma
actividade crítica que se exercejánão apenas nem principalmente sobre a religião, mas
sobre os próprios sistemas racionais (racionalizadores), as ideias mestras, os princípios,
os fundamentos; por outro lado, uma elaboração ininterrupta de sistemas, até ao mais
grandioso de todos, o de Hegel; a partir desse momento, a história da filosofia será um
corpo a corpo sem tréguas entre o pensamento sistemático e o pensamento anti—sis-
temático. Assim, a cultura europeia é como que um laboratório noológico onde se pu-
desse observar a formação e o florescimento dos sistemas, os seus conflitos, as suas
simbioses, as suas trocas, as suas corrupções, as suas escleroses, as suas mutações, os
seus rejuvenescimentos, as suas agonias.
Um sistema filosófico é uma concepção que tem em vista elucidar o ser do mundo,
do real, do homem, e cada um deles reelabora o mundo num grandioso jogo de constru-
ções com ideias e conceitos. Neste sentido, os grandes sistemas filosóficos represen-
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1
tam construções que, levadas ao extremo, podem ser delirantes , no seu esforço para
apreender o Uno e abarcar o todo, e para dar respostas em ideias às grandes interroga-
ções do espírito humano. Mas, noutro sentido, as grandes filosofias são concepções
muito ricas e complexas, frequentemente polinucleares, tendendo a ligar e entrefe-
cundar o físico e o metafísico, o conhecimento e a ética. Nem todas têm a ambição de
abarcar todos os problemas, mas todas têm a ambição de enfrentar as questões funda-
mentais, de produzir os princípios e categorias necessários ao verdadeiro pensamento.
Há teoria e doutrina nos sistemas filosóficos. Diferentemente das teorias científi-
cas, eles não têm relações orgânicas de trocas com o mundo empírico e não obedecem
ao imperativo da verificação. Também diferentemente das teorias científicas, eles as-
sociam em si as verdades cognitivas e as verdades éticas. Mas, tal como as teorias cien-
tíficas, eles são relativamente abertos e aceitam a polémica. Alimentados de tradição
crítica/laica, eles só tendem para a arrogância no regaço de uma religião soberana. O
meio em que existem está cheio de vírus críticos, de polémicas com argumentos, de in-
tensas lutas de ideias, o que mantém neles uma abertura particular. Submetidos a uma
actividade crítica intensa da parte dos sistemas rivais ou inimigos, são, ao mesmo tem-
po, aguerridos e frágeis, capazes de responder aos assaltos mais vigorosos, capazes
também de se emendarem, de se modificarem, de assimilarem elementos exteriores, ou
mesmo de levarem a cabo simbioses das quais sairá um sistema novo. Os sistemas fi-
losóficos são, enfim, suficientemente complexos para disporem eventualmente de uma
aptidão reflexiva e crítica que os torna capazes de pensar os outros sistemas de ideias
e de se pensarem a si próprios.
1
Freud escrevia, em Totem e Tabu, que o delírio paranóico é a caricatura de um
losófico. Também se pode dizer que o sistemafilosóficoéaformaespiritualizadado
nóico. Ferenczi escrevia, em 1914, que «os sistemas filosóficos que procuram exp
mente o devir completo do mundo, não deixam nenhum lugar residual, não só para o
mas mesmo para o que é temporariamente inexplicável, e são aparentados aos sistemas
tes paranóicos, os quais se caracterizam pela tendência para explicar «racionalmenle».
dos acontecimentos do mundo exterior, as suas próprias pulsões irracionais interi
lado, Gabriel Mareei dizia: «É terrível sermos obrigados a constatar que o coi
rado dos grandes sistemas filosóficos não substitui o mais modesto bom senso, eqne»
casos, talvez contribua para o abafar.»
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EDGAR MORIN
As ideologias
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O MÉTODO
Os ideomitos
Pensou-se, no século XDC e princípios do século xx, que a promoção das ideias lai-
cas correspondia à evolução necessária e progressiva do mito para a razão, da religião
para a ciência; o desaparecimento gradual dos mitos antropomorfos e o estreitamento
da área religiosa deviam ir até ao seu desaparecimento final, que corresponderia ao
triunfo das verdades positivas, racionais e científicas.
Ora esta concepção, que Augusto Com te formulou como lei evolutiva, era um mi-
to, e, de resto, Auguste Comte teve a loucura genial de coroar a era positiva com uma
nova religião, concreta e universal, onde a adorada Clotilde de Vaux incarnava a Hu-
manidade-Mátria.
De maneira mais convincente, Max Weber concebera o desaparecimento gradual
dos mitos, religiões, ritos, tradições, como um processo de secularização em proveito
das ideologias, da ética e das crenças subjectivas. É interessante observar que dois ra-
mos divergentes saíram deste desaparecimento gradual: por um lado o da abstracção,
da racionalização (no sentido weberiano, diferente do aqui utilizado), do desencanta-
mento, e, por outro lado, o da interiorização, da subjectivização, da estetização. Com
efeito, podemos constatar que os génios, demónios, espectros que povoavam a nature-
za, foram despachados para umanoosfera estética, para se tornarem heróis de romance
ou estrelas de cinema, ou entraram para os interiores psíquicos para tomarem a forma
fluida das pulsões e sentimentos. Podemos pensar que estes desenvolvimentos estéti-
cos e subjectivos estão dialogicamente ligados aos desenvolvimentos antinómicos e
concomitantes do pensamento racional-empírico-lógico e dos sistemas de ideias abs-
tractas, teorias científicas, doutrinas, ideologias.
Interrogámo-nos sobre as ressurreições de mitos no campo estético das novas artes
de massas (romance popular, cinema, televisão, desporto) (Morin, 1957,1962). Ad-
mirámo-nos igualmente com a resistência das grandes religiões, e até com as suas
contra-ofensivas vitoriosas nos terrenos desolados do desencanto e do niilismo. Mas,
sobretudo, é necessário ver aquilo que Max Weber não viu: a reinvasão do mito e mes-
mo da religião nos sistemas de ideias aparentemente racionais.
Georges Bataille (1972, pp. 393-394), por seu lado, bem observara que havia no
mundo moderno «avidez de mitos». Acrescentemos: novos mitos fizeram ninho no
próprio coração das ideias abstractas. Digamos por outras palavras: as estruturas arcai-
cas do mito apossaram-se das estruturas evoluídas da ideia.
O Wittgenstein dos manuscritos de 1931 descobrira, durante uma longa meditação
sobre Le Rameau d'or de Frazer, não só que «a eliminação da magia tem... o carácter
da magia», mas também que a metafísica podia ser considerada «uma espécie de ma-
gia» Freud perguntava a si próprio, pouco mais ou menos na mesma altura (1933), se
1
a própria teoria científica não seria mitológica .
1
«Talvez tenham a impressão de que as nossas teorias são uma espécie de mitologia... Mas
não será verdade que toda a ciência da natureza se aproxima de uma tal espécie de mitologia? Se-
rá hoje diferente o que se passa com a física?», carta de Freud e Einstein (Warum Krieg, 1933).
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EDGAR MOR IN
Esta interrogação merece ser tomada em consideração. É certo que as teorias cien-
tíficas, com as suas características abertas e profanas, estão nos antípodas do mito. Mas
o seu núcleo comporta uma zona cega onde se pode instalar um fermento que transfor-
me em mito a ideia tornada soberana: assim, a ideia pitagórica da realeza do Número
torna-se mito, do mesmo modo que a ideia galileana, newtoniana, laplaciana, da ordem
matemática do mundo...
Toda a passagem a ser de um sistema de ideias comporta um potencial mitológico.
Toda a idealização/racionalização doutrinária tende para autotranscendentalizar o sis-
tema. A partir daí, o mito pode instalar-se no núcleo do sistema e divinizar as ideias
mestras. Assim se opera a mitologização da ideia abstracta. As teorias científicas evi-
tam a doutrinarização, mas o seu núcleo permite a mitificação. Os themata são ideias
mestras obsessionais que tendem a ser carregadas de forçamítica. Assim, emboraman-
tendo-se empírico-racionáis, as teorias científicas podem absorver mito nos seus nú-
cleos.
O mito introduz-se clandestinamente, como um vírus que se introduzisse no ADN
do hospede e nele se integrasse, passando a originar uma actividade propriamente mi-
tológicamas invisível. Melhor ainda: o mito invadiu o que lhe parecia mais hostil e que
deveria tê-lo liquidado.
Se o mito pode introduzir-se no núcleo das teorias científicas, sem, no entanto, o
controlar totalmente, pode invadir completamente as doutrinas e as ideologias. Ao pas-
so que as teorias científicas se mantêm profanas por natureza, a despeito da tendência
própria de todos os sistemas de ideias para se autotranscendentalizarem, as doutrinass
auto-sacralizam-se e auto-idolatram-se. O conceito fundamental torna-se soberano
do universo. A doutrina exige a veneração dos seus adeptos, que têm de lhe obedecer
literalmente, citá-la ritualmente e utilizar a língua litânica de um quase-culto. A par-
tir daí, a transcendentalização e a deificação próprias da mitologia e da religião entra-
ram sub-repticiamente, mas profundamente, no mundo laico da doutrina.
Acontece o mesmo com a ideologia. Com todo o sistema de ideias, a ideologia com-
porta um núcleo que determina a organização dos conceitos e a natureza da visão do
mundo. Este núcleo não se limita a fazer a fusão (ou a confusão) entre paradigmas/
axiomas e valores. Ele contém, enterrada em si, uma substancia mítica, ela própria con-
fundida com a sua substancia doutrinal. Os valores adquirem uma vida superior que os
torna míticos: a Justiça, a Ordem, a Liberdade, a Igualdade, o Amor, a Verdade, o Ho-
mem, mantendo-se como valores, tornam-se míticos e divinizam-se. Assim, o ho-
mem, fonte de direito e de fraternidade na filosofia humanista, encontra-se, de certa
maneira, mitologizado e divinizado na ideologia humanista, onde acede a uma dignida-
de sobrenatural que o impele para a conquista e domínio da Natureza. A ideia do homem
e o mito do homem entrecontaminam-se, e o mito tende a tomar posse da ideia. Dife-
rentemente do mito tradicional, o mito moderno é invisível sob a abstracção ideal e sob
a lógica do sistema. Torna-se tanto mais invisível quanto mais usa a máscara da ciên-
cia «desmistificadora». Assim, o mito da salvação terrestre assumiu a forma do «ma-
terialismo científico».
Hoje, no nosso mundo ocidental, só de maneira estética, com forma romanesca ou
cinematográfica, consumimos os mitos do tipo arcaico, antigo ou exótico, que são nar-
rativas bio-antropomorfas. Os nossos mitos profundos e tirânicos são metidos em cáp-
sulas dentro das ideias abstractas, incluindo na ideia desmistificadora da Razão. Estão
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O MÉTODO
incluídos e são virulentos nas nossas ideologias. Há muito tipicamente moderno quan-
do há, nas ideias mestras de uma ideologia, coagulação de fortes cargas de verdade éti-
ca (valores), e quando essas ideias se tornam autoritárias, dominadoras, sacralizadas,
soberanas. A ideologia contém então, subterraneamente, no seu coração, as estruturas
do pensamento simbólico-mágico-mítico, escondidas sob as do pensamento lógico-
—empírico—racional.
A virulência de uma ideologia pode tornar-se extrema. A ideologia, lembremos,
tem sempre uma força motriz que deriva da sua forte carga mitológica e do seu carácter
político, isto é, de praxis no seio da cidade. As ideologias tomam então posse e subju-
gam os humanos, como faziam os deuses. É certo que os humanos retiram daí, em troca,
satisfações psíquicas: são detentores da verdade que os possui, dominam ouniverso por
ideologia interposta, gozam, como em verdadeiros coitos psicológicos, com a repeti-
ção dos seus themata obsessionais, os quais fornecem à doutrina o seu erotismo enfei-
tiçador. Os humanos são então capazes de viver e morrer pela ideia.
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B. U. 63 — 9
EDGAR MURIN
As ideologias da promessa
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O MÉTODO
dade absoluta da democracia é apenas a regra do jogo que permite às verdades antago-
nistas confrontarem-se no seu terreno.
Todas as ideologias possuem o seu ingrediente mítico. Assim, a ideologia da «so-
ciedade industrial» (elaborada, como teoria, desde Saint-Simon até Raymond Aron,
tomou-se, durante um certo período, ideologia/mito tecnocrático-político) teve a sua
1
componente e a sua promessa mítica. De resto, não se poderia conceber ideia política
sem este ingrediente. Não se poderia pensar o próprio ser humano sem este ingrediente.
A ideia e o real
A ideologia, tal como o mito e a religião, mas através da ideia, serve para apreen-
der o real, e ao mesmo tempo proteger-se dele. Ela dá resposta, nos tempos contem-
porâneos, às mesmas necessidades fundamentais que o mito, e por vezes a religião.
Assim, as ideologias políticas alimentam-se dessas poderosas fontes negentrópi-
cas que são as aspirações, sonhos, necessidades, desejos, temores, que brotam e fer-
mentam constantemente nas nossas sociedades. No seu seio, os conceitos tomam-se
seres-deuses ou seres-demónios: assim acontece, não só com a razão, a ciência, o
homem, mas também com o «capitalismo», o «socialismo», que, como vimos, são do-
tados de intenções, de consciência, de manha...
As ideologias carregam-se de emoção como as nuvens se carregam de electrici-
dade, e, em condições favoráveis, adquirem forma expansiva, eruptiva, explosiva. Al-
gumas delas foram capazes, no nosso século, de substituir a religião de salvação e pas-
sar a dispor de um formidável poder de invasão e extermínio. Vimos então em acção
as duas grandes ideologias antagonistas. Uma igualitária e messiânica para toda a hu-
manidade, a outra hierárquica e exaltando a raça superior, ambas ligando nuclearmen-
te os mitos do socialismo e da nação. A segunda morreu num desastre militar, e não de
uma derrota de ideias, e a primeira acabou por se enfraquecer por causa da contradição
absoluta entre o seu mito e a realidade que ele criou...
Mas fora esta contradição que lhe dera o seu poder supremo! Assim, foi o fracasso
cultural e social do consumismo nos anos 1920-1924, que levou o marxismo, tornado
estalinista, a automitificar-se em «marxismo-leninismo», doutrina infalível, Bíblia-
-fonte de todas as verdades. Fora o desmentido do real que o levara a transformar a sua
relação com o real e a infligir a este último os piores suplícios, para nunca proferir a sua
verdade e proferir, pelo contrário, a verdade exigida pelo Partido.
Incapaz de negociar com ela, o mito estalinista tornou-se capaz de esmagar e sub-
jugar a realidade que o desmentia. Este massacre de sectores inteiros da realidade —
massacre dos Kulaks, dos opositores exteriores e depois dos opositores que se encon-
travam na esfera de Estaline, massacre realizado quase ao acaso de suspeitas—foi ca-
paz de esmagar a realidade. E, para isso, foi necessário abater todas as outras ideias e
ideologias. Assim, o fracasso do «socialismo real» permitiu que triunfasse, durante se-
tenta anos, um socialismo irreal, mas sobre-real, mais forte que a realidade.
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Georges Sorel, no princípio do século, introduzira a noção de mito na política. Compreen-
dera bem que não havia política sem mito, mas não compreendera bem a própria noção de mi-
to (ver J. Monnerot, 1974, e J. Freund, 1974, pp. 79-80).
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EDGAR MORIN
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KJ IV 111,1 KJLSKJ
O mistério da nação
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Conclusão
Teorias, doutrinas, filosofias, ideologias, não têm de ser julgadas apenas como
erros e verdades na tradução que fazem da realidade; elas não têm de ser concebidas
apenas como produtos de uma cultura, de uma classe, de uma sociedade. São também
seres noológicos, alimentando-se de substância mental e cultural, e algumas delas,
carregadas de forte substância mítico-religiosa, podem desenvolver um poder extraor-
dinário de subjugação e posse.
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MORIN, Edgar.
O método IV: as ideias – a sua natureza, vida, habitat e organizaçao.
Mem Martins: Publicações Europa-América, 1991.
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