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REFLEXÕES

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Denis Lerrer Rosenfield

REFLEXÕES
SOBRE
O DIREITO
À PROPRIEDADE
4a Tiragem
© 2008, Elsevier Editora Ltda.

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ISBN: 978-85-352-2795-6

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Rosenfield, Denis Lerrer
Reflexões sobre o direito à propriedade / Denis Lerrer Rosenfield. – Rio
de Janeiro: Elsevier, 2008. 4a reimpressão.

ISBN 978-85-352-2795-6

1. Democracia 2. Direito de propriedade 3. Igualdade 4. Liberdade


5. Propriedade 6. Propriedade - Aspectos sociais I. Título.

07-5111 CDU-347.78
_____________________________________________________________________
O Autor

Denis Lerrer Rosenfield nasceu em 21 de novembro de 1950,


em Porto Alegre. Graduado em Filosofia pela Universidade Nacional
Autônoma do México, fez pós-graduação na França, tendo obtido
o grau máximo de Doutor de Estado pela Universidade de Paris I
Panthéon Sorbonne, em 1982.
É atualmente professor titular de Filosofia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador I-A do CNPq. Autor
de vários livros e artigos em português, francês e espanhol, além de
professor visitante na França, Alemanha, Argentina e Estados Unidos.
É articulista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo, e colabo-
rador da Folha de S. Paulo.
Capítulo I

Democracia e democracia
totalitária

Ideias estruturam o comportamento humano, a ação dos


homens, organizando, desta maneira, o mundo. Uns matam e
se matam em nome de um credo religioso ou político, outros
procuram sustentar uma sociedade baseada nos valores da
racionalidade e do diálogo. Todos, de uma ou outra forma,
estamos engajados numa “grande luta de ideias”,1 quer nos
acomodemos ou não com a situação em que vivemos. Os cons-
cientes terminam participando do que tende a se impor sobre
nós, os inconscientes apenas sofrem com o que vivenciam. Por
exemplo, a onda do politicamente correto é cada vez mais inva-
sora e, por culpa moral ou por mera acomodação, as resistências
começam a cair. Uma sociedade miscigenada como a brasileira,
de repente, se defronta com problemas de sistema de cotas em
universidades, decretos de desapropriação de supostos qui-
lombos ou leis de igualdade racial, que terminam, inclusive,
relativizando, como veremos, a propriedade privada. O senso

1
Hayek, Friedrich A. The Constitution of Liberty. The University of Chicago Press,
1978, p. 2.

1
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comum começa a ser modificado em nome do que é incomum,


no caso, a introdução de uma outra forma de discriminação.
Quando uma sociedade e, mesmo, uma civilização2
se desencanta com os seus próprios princípios, quando ela
começa a não mais neles crer, quando os relativiza por ra-
zões culturais, políticas ou outras, ela abre uma brecha em
que se inserem ações que visam a destruí-la a partir de um
campo propício de desenvolvimento. Se, por exemplo, uma
sociedade começa a relativizar o princípio da propriedade
privada, por razões sociais ou raciais, ela abre o caminho
para que um princípio cesse de ser um princípio, tornando-se
um valor relativo que pode ser contestado por todos. Da
mesma maneira, vemos a liberdade ser contestada por
aqueles que dizem pretender reformar uma sociedade que
estaria, na verdade, fundada em falsos princípios. A tradi-
ção socialista se situa precisamente nesta posição de negar
os fundamentos da liberdade em nome de uma alternativa
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

religiosa de igualdade social, material, dando origem às


formas modernas da democracia totalitária.
A ideia da liberdade é uma dessas ideias estruturantes
do comportamento que veio dar lugar à democracia represen-
tativa, à economia de mercado e ao estado de direito. Graças
a ela, os homens começaram a se desembaraçar de governos
tirânicos, emancipando as relações comerciais dos entraves
feudais, mercantilistas e outros. Graças a ela, os homens vieram
a ser proprietários do seu corpo, tornando-se independentes.
Graças a ela, os diferentes credos puderam passar a ser exerci-

2
Entendamos por civilização, aquilo que os gregos chamavam de “politeia”,
conceito que congregava tanto uma constituição propriamente dita quanto os
hábitos e costumes, os valores, que a sustentavam. Cf. Strauss, Leo. Droit naturel
et histoire. Paris, Plon, 1954, pp. 150-3.

2
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dos, independentemente de uma coerção exterior. Isto significa


que a liberdade não é um valor particular entre outros, mas
um princípio do qual depende a maioria dos valores morais.
A liberdade, como dizia Kant,3 se torna a própria condição de
elaboração dos valores morais. Sem ela, cai-se no dogmatismo
dos valores culturalmente impostos por ancestrais, cuja vali-
dade é dada por pertencerem a tradições.
A superioridade do Ocidente4 reside, precisamente,
em ter feito da liberdade um princípio que deveria nortear
e organizar as relações humanas, embora essa mesma civi-
lização tenha igualmente engendrado valores que atentam
contra o seu bem maior. E poder-se-ia ainda acrescentar que
a superioridade de um argumento liberal reside em se con-
frontar racionalmente aos outros, em estar baseado na razão,
na discussão, em aceitar a diferença e a diversidade, com o
intuito de fazer com que as relações humanas possam se estru-
turar segundo uma convivência pacífica e, sobretudo, livre. E
quando se diz livre, diz-se com isto a realização da liberdade
em suas distintas determinações, da liberdade econômica à
política, passando pela civil, pela de pensamento, pela de
circulação e pela de auto-organização.
CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

1. Democracia e opinião pública


A democracia está baseada na formação da opinião pú-
blica, que termina presidindo as decisões majoritárias. Pode-se
mesmo dizer que a democracia se define, cada vez mais, pelo

3
Kant, I. Fundamentação à metafísica dos costumes. Werke. Tomo VII. Frankfurt am
Main, 1968. Há tradução brasileira pela Editora Abril, Coleção Os Pensadores.
4
Cf. Ian Buruma & Avishai Margalit. Occidentalism. The West in the Eyes of Its
Enemies. London. Penguin Books, 2004. Há uma tradução da Jorge Zahar Editor,
2007, Ocidentalismo. O Ocidente aos olhos de seus inimigos.

3
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governo da opinião pública5 mediante as enormes transfor-


mações que sofreram os meios de comunicação. A informação
circula a uma velocidade inaudita, veiculando fatos, versões,
análises e interpretações, onde o compromisso com a verdade
é, muitas vezes, escassamente seguido. Logo, a esfera de forma-
ção da opinião pública, da cena pública, é aquela que deve ser
mais preservada, na medida em que, lá, se decide o destino de
um determinado governo ou de uma sociedade. Eis por que a
liberdade de expressão, de discussão e de imprensa é indissociá-
vel de uma sociedade livre e democrática. Se um determinado
governo, por exemplo, procura acaparar para si o processo de
formação da opinião pública, isto se deve aos seus propósitos,
que se encaminham para o autoritarismo ou o totalitarismo. É,
portanto, necessário que os espaços da minoria sejam aqueles
que devem ser mais preservados, pois são a condição mesma
de uma sociedade livre.
A opinião pública se forma por ideias abstratas, que
vão se sedimentando pouco a pouco, sem que a maioria das
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

pessoas que delas fazem uso conheçam a sua origem ou os


filósofos e pensadores que as elaboraram. Provavelmente, boa
parte da esquerda brasileira jamais leu Proudhon, embora
considere a propriedade privada como sendo um roubo. A
máxima proudhoniana de que a “propriedade é um roubo”6
veio a fazer parte de todo um imaginário de esquerda, que
orienta suas ações, sem que essas pessoas saibam que ela foi
utilizada retoricamente como uma mera exclamação. No en-
tanto, a sua fortuna foi imensa, vindo a marcar decisivamente

5
Rosenfield, Denis L. A democracia ameaçada. O MST, o teológico-político e a liberdade.
Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, Capítulo I.
6
Proudhon, Pierre Joseph. Qu’est-ce que la propriété? Paris: Tops / H.Trinquier, 1997,
Capítulo I. Cf. também Proudhon. Política. Seleção de textos feita por Paulo-Edgar
A. Resende e Edson Passei. São Paulo: Ática, 2006.

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o pensamento de Marx e, através dele, todo o século XX e,


mesmo agora, o século XXI. Poderíamos ainda acrescentar
que essa máxima parte de uma certa leitura de Rousseau, a
do Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, que,
por sua vez, veio a fazer parte das cartilhas de esquerda,
sobretudo voltadas contra a propriedade privada da terra.
Ideias persistem, apesar de seus autores poderem ter sido,
inclusive, esquecidos. O mundo dos mortos, neste caso, con-
tinua a governar o mundo dos vivos.
Outras formas de persistência das ideias se fazem
presentes nos modos mediante os quais os cidadãos de uma
sociedade democrática exigem uma melhoria das condições
sociais, como se coubesse ao Estado resolver qualquer tipo de
problema. A maioria pode exigir que o Estado conceda um
mesmo padrão de vida a todos, desconsiderando, por ausência
de visão, pela preponderância de certas ideias, que a riqueza
vigente não é fruto dessa maioria, mas de uma minoria que
empreendeu, assumiu riscos e teve o seu esforço recompensa-
do. Eis o problema de partidos e governos cuja preocupação
central reside na distribuição de riquezas e não em sua criação.
O bolsa-família é um exemplo de como a maioria da nação
votou de acordo com a propaganda e com os benefícios decor- CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

rentes desse programa, sem que, no entanto, a discussão sobre


as formas de saída desse tipo de assistencialismo social e de
clientelismo político tenha comparecido ao debate. Inclusive
a discussão sobre as condições do crescimento econômico e
do desenvolvimento social, através das reformas previden-
ciária, tributária (no sentido da desoneração dos impostos
para os contribuintes) e trabalhista-sindical (modernização
da legislação), desapareceu de pauta. É como se o Estado ou,
mais particularmente, o governo fosse o responsável pela

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criação de riqueza, quando ele é, na verdade, um repassador,


um distribuidor, um mediador.
No início da Revolução Americana, um opúsculo, cujo
título já é altamente sugestivo, O senso comum,7 teve um forte
impacto sobre os eventos revolucionários. A sua reputação foi
semelhante a que teve posteriormente Sieyès, com o seu O que
é o terceiro estado, na Revolução Francesa. Ambos são textos de
intervenção política, que procuram alterar a opinião dos seus
concidadãos, esteios dos respectivos regimes vigentes. Em
1776, o texto de Paine recebeu mais de 16 edições, certamen-
te um recorde para a América do século XVIII. Washington8
chegou a afirmar que se alguns argumentos de ferro e fogo
viessem, como os de Falmouth e Norfolk, a se acrescentar
aos raciocínios e à “sã doutrina” de common sense, as pessoas
não hesitariam a se pronunciar sobre a oportunidade de uma
separação em relação ao Reino Unido. Paine bem mediu o
papel da formação da opinião pública no desenlace do pro-
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

cesso revolucionário. Uma vez que as pessoas passam a pen-


sar diferentemente, as condições da ação política se alteram
substancialmente.
O argumento de Paine consiste na importância da for-
mação da opinião pública, tarefa essa que foi preenchida preci-
samente por seu folheto, voltado para abolir o que considerava
os “preconceitos” vigentes. O senso comum da América de
então é identificado como um “falso” senso comum, enquanto
o “verdadeiro” seria aquele que ele trata de introduzir. Os
americanos viveriam no “erro”, à espera, por assim dizer, da

7
Paine, Thomas. Le sens commun. Common Sense. Paris: Aubier, 1983.
8
Ibid., Apresentação, p. 17. Cf. também a introdução de Maria Tereza Sadek
Ribeiro de Souza à edição brasileira de Thomas Paine. Os direitos do homem. Pe-
trópolis: Vozes, 1989, pp. 12-16.

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“boa-nova”. Entretanto, para que essa pudesse chegar e, sobre-


tudo, vingar do ponto de vista político, tornava-se necessário
que os americanos passassem a pensar diferentemente, pois,
assim, poderiam ver a realidade de outro modo. Logo, a ação
reside na formação da opinião pública. Em suas palavras:
“um longo hábito de não pensar um coisa errada confere a ela
a aparência superficial de ser correta...”.9 A tarefa intelectual,
por excelência, consiste no esclarecimento da opinião pública
por estar essa imersa em preconceitos e falsas noções10 que
impedem uma correta apreensão da realidade. Uma vez que as
mentes não são esclarecidas, elas permanecem reféns daquilo
que foi simplesmente transmitido pelos hábitos e costumes
como sendo justo, embora seja, na verdade, injusto.
No início da Revolução Francesa, um outro opúsculo,
O que é o terceiro estado?,11 escrito pelo abade Sieyès, teve
igualmente um grande impacto sobre a opinião pública. Na
época, esse opúsculo conheceu várias edições às vésperas dos
acontecimentos revolucionários, tornando o seu autor um per-
sonagem conhecido e muito influente. O seu objetivo, apesar
da imensa satisfação teórica com sua própria obra, era eminen-
CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária
temente político, voltado para a formação da opinião pública,
que consumia, neste momento, avidamente tal tipo de escrito.
Não se trata, estrito senso, de uma obra “científica” no sentido
acadêmico do termo, mas de um texto que procura desvendar
os fundamentos da política e, ao mesmo tempo, influenciar
duradouramente o seu curso. Sieyès estava particularmente

9
Ibid., p. 55.
10
Cf. Os direitos do homem, p. 29.
11
Sieyès, Emmanuel. Qu’est-ce que le Tiers Etat? Essai sur les privilèges. Paris: PUF,
1982.

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consciente de que os destinos da revolução e de uma sociedade


livre passavam pela abertura das mentes, por novas ideias que
pudessem fazer o seu caminho, livres do que ele considerava
como sendo os “preconceitos” do Antigo Regime.
Sieyès12 observa, a propósito de sua noção de precon-
ceito, de privilégio, que basta uma ideia falsa preponderar
por muito tempo para que venha a ter carta de cidadania,
como se verdadeira fosse. O tempo pode solidificar nas men-
tes uma ideia falsa que passa, então, a comandar as ações
e os hábitos humanos. O próprio entendimento humano
vem, assim, a ser corrompido por ideias que, obedecendo
a determinados interesses particulares, passam a vigorar
como sendo o senso comum de uma determinada sociedade
ou época. Pense-se, por exemplo, no imaginário brasileiro,
segundo o qual cabe ao Estado tudo prover como se fosse um
demiurgo a organizar a vida dos homens. Pense-se, ainda, no
significado pejorativo atribuído às privatizações realizadas
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

durante o governo Fernando Henrique, como se fosse um


mal, quando, na verdade, possibilitou um imenso ganho
para a sociedade brasileira. Na área das telecomunicações,
os telefones eram, antes, objetos de luxo, declaráveis no Im-
posto de Renda, e vendidos, conforme as diferentes regiões
do país, por alguns milhares de dólares. Hoje, um telefone
celular, objeto de consumo popular, pode, conforme o plano
e a operadora, ser dado gratuitamente ou vendido por um
preço irrisório. Qualquer trabalhador autônomo o utiliza
como indispensável instrumento de trabalho. No entanto, a
opinião pública considera as privatizações um mal, presente,
inclusive, no uso da palavra “privataria”.

12
Ibid., p. 15.

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A vitória de Lula, nas últimas eleições, com particu-


lar ênfase no segundo turno, mostrou o quanto ideias são
fundamentais para a orientação da ação. Quando a equipe
vitoriosa suscitou o problema das privatizações, o candi-
dato Geraldo Alckmin ficou completamente desorientado,
não sabendo o quê nem como responder. Posteriormente, o
marqueteiro de Lula, João Santana, numa entrevista à Folha
de S. Paulo, reconheceu que ele apostou numa ideia arraigada
na opinião pública brasileira, resultado, aliás, de um longo
trabalho petista de crítica acirrada às privatizações realiza-
das durante o governo anterior. Soube ele extrair os frutos
dessa avaliação. Perguntado o que realmente pensava das
privatizações, respondeu, paradoxalmente, que elas eram um
sucesso, sobretudo na área de telecomunicações. Se ideias
atrasadas imperam, a sociedade não avançará. Se ideias
progressistas passam a predominar, a sociedade poderá ter
um novo amanhã.
Também em seu opúsculo sobre os privilégios,13 Sieyès
insiste na tarefa propriamente política de esclarecimento da
opinião pública, de tal maneira que as luzes sejam trazidas ao
povo, verdadeira condição de uma transformação sociopolítica.
CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária
Na linha do Século das Luzes, da Aulärung, ele aposta neste
processo de uso público da razão, para utilizar uma expressão
de Kant.14 A razão, doravante, deve tudo submeter ao seu es-
crutínio. Nada há de sagrado que possa escapar do seu exame.
Não esqueçamos que, na época, Sieyès chegou a ser considerado
o Kant francês. “O império da razão cresce cada dia mais; ele
necessita, mais e mais, da restituição dos direitos usurpados”,15

13
Ensaio sobre os privilégios, ibid.
14
Kant. O que é o esclarecimento? In: Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1974, pp. 100-17.
15
Sieyès, op. cit., p. 54.

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escreveu ele. A razão deveria abranger a totalidade da cena


pública, contra todas as espécies de preconceitos, de opiniões
impostas, de dogmas religiosos e políticos.

2. A democracia totalitária
A grande modificação introduzida pelas democracias
totalitárias consistiu precisamente no aprofundamento de
correntes que ao desprezarem o esclarecimento racional o
fizeram apoiadas na grande massa dos cidadãos, naquilo que
poderíamos chamar de uma formação perversa da opinião
pública. Embora eu não fosse anteriormente adepto dessa
denominação, tendo preferido, na esteira de Hannah Arendt,
o termo de totalitarismo, a experiência populista-socialista
da América Latina conduz a uma revalorização desse ter-
mo, elaborado por Talmon, em seu belo livro As origens da
democracia totalitária.16 E não apenas por esses experimentos
de “transição ao socialismo”, característicos dos processos
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

venezuelano e boliviano sob as lideranças de Chávez e de


Morales, e, mais recentemente, de Rafael Correa, no Equa-
dor, mas também pelas tentativas petistas de introdução do
conceito de democracia participativa enquanto forma subs-
tituta/complementar da democracia representativa. Em todo
caso, estamos diante de diferentes tentativas de subversão
da democracia representativa, que começam por assinalar
as suas imperfeições com o intuito de que esse processo leve
à sua completa remodelação.
A esse respeito, Hayek17 assinala que a democracia este-
ve primeiramente voltada para o controle dos atos arbitrários
emanados do Estado. No momento, porém, em que passou a

16
Talmon, J. L. Les origines de la démocratie totalitaire. Paris, Calman-Lévy, 1966.
17
Hayek, F., op. cit., p. 106.

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ELSEVIER

se basear na vontade ilimitada do povo, ela cedeu lugar, em


seu próprio seio, a uma nova forma de arbitrariedade, a arbi-
trariedade dita popular. É como se aquilo que fosse decidido
pela maioria se tornasse, por ato de mágica, por isso mesmo,
bom. A “boa lei” seria necessariamente oriunda da “vontade
majoritária”. O surgimento da democracia totalitária reside
precisamente nesta identificação entre a lei e a vontade ilimitada
do povo, que passa a ser representada e/ou usurpada por uma
minoria que “sabe” qual é o melhor regime político, a melhor
forma de sociedade. Os seus dirigentes almejam mesmo se
substituir ao povo, embora se apresentem como o seu mais
fiel depositário. Considerando que não querem reconhecer a
sua verdadeira intenção, velam a sua ação com um discurso
“democrático”, que seja aceitável junto a essa opinião pública.
Neste sentido, as democracias totalitárias, ao se dizerem po-
pulares, procuram, em nome da democracia, abolir a própria
democracia. A subversão da democracia se faz hoje por meios
democráticos.
Significativo, neste sentido, é que vários políticos brasi-
leiros tendem, por exemplo, a considerar a Venezuela como
um regime democrático. O que entra aqui principalmente em
linha de consideração é o fato de haver, neste país, eleições; CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

como se eleições, por si só, fossem um sinal distintivo e su-


ficiente para caracterizar um Estado como democrático. Um
processo eleitoral por si mesmo, isolado, não é nem pode ser
critério de uma sociedade livre. A questão central consiste no
controle dos poderes delegados, pois o governo não pode ficar
nas mãos de um ou de alguns que se arrogam uma força ou
legitimidade ilimitadas. Se eleições se diferenciam do processo
político da representação, elas podem se tornar instrumentos
de um governo despótico. Referindo-se à situação inglesa, es-
crevia Paine: “Não é porque uma parte do governo é eleita que

11
ELSEVIER

ele é menos despótico, se as pessoas eleitas possuem depois,


como um Parlamento, poderes ilimitados. Eleição neste caso
é diferente de representação, e os candidatos são candidatos
ao despotismo.”18
O relevante a assinalar reside em que há uma ampla
participação dos excluídos nos processos de mobilização po-
pular, orquestrados por uma liderança que, seja via partidos,
seja via “comitês”, organiza e enquadra essas pessoas tornadas
massa de manobra. O enquadramento pela liderança carismá-
tica, graças a esse auxílio de partidos e “movimentos”, molda
esse conjunto segundo ideias que são um resgate das posições
marxistas-leninistas. Estamos presenciando a mesma doutrina
de negação do indivíduo (identificado ao egoísmo), da livre
iniciativa (identificada ao descontrole), da responsabilidade
moral (que remete sempre à pessoa em sua singularidade), da
propriedade privada (considerada fonte de todos os males), da
democracia (tida por burguesa), das liberdades (que devem ser
restringidas em nome do “coletivo”). Tais posições repetem a
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

história das democracias totalitárias do século XX, agora com


um colorido populista e histriônico latino-americano.
O Estado vem a ganhar uma função propriamente reli-
giosa, a de realizar a ideia de perfeição, a utopia, como se o
Reino de Deus fosse factível na Terra. Eis por que a captura do
aparelho de Estado e a sua completa remodelação tornam-se
tarefas essenciais. O Estado passa a ser a encarnação de um
dever-ser. Posicionar-se contra tal concepção do Estado confere
àqueles que o fazem a conotação de seres-imorais, porque as
suas ações se situariam nas antípodas deste dever-ser encar-
nado numa instituição terrena. Alguns nomes que o Estado
ganhou no curso de sua trajetória histórica vieram a referendar

18
Paine, Os direitos do homem, p. 167.

12
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politicamente essa concepção, na medida em que ele passou a


ser concebido como o representante da soberania popular ou
como a vontade geral. A questão torna-se ainda mais decisiva
quando ocorre a identificação entre Estado e vontade geral, em
expressões do tipo: “O Estado é a vontade geral.” Uma outra
versão sua poderia igualmente ser: “O Estado é o povo.” Todo
um caminho é, então, aberto para que aqueles que detenham o
poder de Estado sejam imediatamente identificados à “vontade
geral” e ao “povo”. Logo, eles não seriam meros governantes
aos quais incumbiria um mandato, nem simples representantes,
mas indivíduos cuja vontade seria de natureza ético-política.
Não é, de fato, um acaso da História que Robespierre, dono de
todos os poderes durante um período da Revolução Francesa,
senhor da vida e da morte, tenha sido nomeado “O Incorrup-
tível”.
Para que se criem as condições de realização terrena da
ideia de perfeição, é necessário que a utopia ganhe a certeza
dos que nela acreditam, tornando-se um objeto de fé. Mas um
objeto prático de fé, capaz de ser realizado praticamente. A
ideia de perfeição, enquanto permanecia confinada ao terreno
religioso, podia tanto ser objeto de crença em um outro mundo,
quanto de tratamento filosófico, como quando a razão se per- CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

guntava pelo seu estatuto teórico, por sua origem e validade.


O problema muda, porém, de figura quando ela se torna um
projeto, uma ideia que passa a orientar as ações humanas. De
ideia teórica, ela se torna ideia prática, como se sua execução
dependesse apenas da vontade humana, política. A utopia se
tornaria factível.
Para que essa passagem possa, no entanto, se confir-
mar sua condição preliminar consiste na elaboração de um
conjunto de ideias de caráter mundano. É quando começam

13
ELSEVIER

a ser elaboradas as teorias de uma ordem natural, que seria


preexistente à desigualdade e à degradação atual. Um co-
munismo primitivo ou um estado idílico da humanidade. A
ação humana, segundo essa visão, consistiria em restabelecer
uma sociedade que foi injustamente suprimida, mas que é
suscetível de ser novamente recriada no futuro. Entram aí em
consideração ideias como as de Rousseau, conforme o qual
a propriedade privada seria a responsável por essa grande
transformação, fonte inesgotável de injustiça. Engels, com
sua teoria do comunismo primitivo, segue a mesma linha.
Bastaria suprimir a propriedade privada para que a sociedade
voltasse aos trilhos da verdadeira relação humana. Mesmo em
países como o Brasil, encontra-se presente essa ideia de um
Estado redentor, capaz de fornecer aos homens não apenas
o seu bem-estar material, mas também a sua felicidade. O
Estado se torna, assim, o depositário de todas as demandas,
de todas as esperanças, como se dependesse dele, de sua
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

“pessoa”, a satisfação de todas as carências e expectativas


sociais e espirituais.

3. A via ocidental
Há uma grande confusão conceitual relativa ao que
está ocorrendo na América Latina. Artigos se multiplicam no
Financial Times, no Economist, no Monde, no Wall Street Journal
e em outros influentes jornais internacionais sobre o que é
genericamente chamado de “populismo latino-americano”.
Recentemente, George Soros retomou a mesma questão, em
uma entrevista concedida ao jornal Valor Econômico,19 sobre o
populismo de Chávez. Chega mesmo a atribuir parcialmente a
Bush o êxito da experiência chavista, como se essa se medisse

19
Março de 2007.

14
ELSEVIER

pelas posições do presidente norte-americano. Se Bush não


existisse, Chávez o teria inventado, segundo as necessidades
de seu próprio projeto político.
A confusão relativa à experiência venezuelana, que ago-
ra se espraia para a Bolívia e o Equador, diz respeito a uma
identidade indevida entre o populismo latino-americano, com
seus líderes carismáticos e seu apelo às massas, e o projeto de
construção de uma sociedade socialista, autoritária. O apelo a
líderes carismáticos não é uma característica exclusiva do po-
pulismo latino-americano, mas se fez igualmente presente nas
experiências socialistas/comunistas, fascistas e nazista. Stalin
foi um líder carismático, Mao também, assim como o é Fidel
Castro. Mussolini foi um líder carismático, assim como Hitler.
Quanto ao apelo às massas, o populismo latino-americano,
do tipo Getúlio Vargas, Perón ou Cárdenas, se caracterizava
por um projeto de organização da sociedade, sindicalizando
os trabalhadores e os incorporando ao mercado de trabalho.
O vocabulário da luta de classes não era admitido, pois o seu
objetivo consistia numa união da sociedade mediante a cola-
boração entre trabalhadores e empresários. O projeto socialista
atual, por sua vez, está baseado na luta de classes, tendo, porém,
substituído o proletariado de Marx pelos deserdados, pelos ex- CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

cluídos, pelos que estão fora do mercado de trabalho. É essa


massa que constitui a sua margem de manobra, com intuito de
destruir a economia de mercado e a democracia representativa.
Os equívocos na caracterização das experiências vene-
zuelana, boliviana e, agora, equatoriana residem na identifi-
cação, inadequada, entre revolução socialista e uso imediato
e forte da violência enquanto forma de conquista do poder. É
como se a tomada socialista do poder fosse sinônimo de um
golpe de tipo militar ao estilo da tomada do Palácio de In-
verno pelos bolcheviques na Rússia, da guerra civil na China,

15
ELSEVIER

ou dos assaltos a quartéis e praças fortes por Fidel Castro e


Guevara, em Cuba. A violência revolucionária se identificou
à experiência socialista, como se não houvesse um outro
meio de chegar ao controle do Estado, voltando-o, aí, contra
a sociedade. Há, no entanto, uma outra via, a via “pacífica”,
“democrática”, de acesso socialista ao poder. Chamemos a
primeira, via “oriental” e, a segunda, via “ocidental”.
A via oriental se caracteriza pela conquista violenta
do poder, com um partido de vanguarda, centralizado e
hierarquicamente comandado, que segue as ordens de uma
cúpula. A democracia é considerada, por eles, como uma
superestrutura que deve ser liminarmente eliminada, por ser
um mero instrumento de dominação política da burguesia. O
seu apreço pelo sistema representativo de governo é nulo. A
hierarquia partidária, cujo exemplo mais acabado é o partido
bolchevique, sob as ordens de Lenin e depois de Stalin, com o
beneplácito de Trotsky, organiza os seus militantes segundo
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

uma férrea disciplina, não deixando nenhum espaço para a


crítica ou a reflexão pessoal. Com tal propósito, era neces-
sária uma ideologia que suscitasse a adesão completa dos
seus membros. Ora, se a filosofia política se inclina diante da
autoridade, se ela serve a uma causa, ela deixa de ser filosofia
propriamente dita, transformando-se em ideologia.20 Ao de-
generar desta maneira, ela torna-se a apologia de uma causa
apresentada como absoluta.
Isto se torna ainda mais claro na degeneração do mar-
xismo, convertendo-se numa mera bandeira política, que
segue um projeto salvacionista. O marxismo e, mais ainda, o
marxismo-leninismo, ao prometer uma sociedade socialista,

20
Strauss, Leo. Op. cit., p. 109.

16
ELSEVIER

a redenção da humanidade, preenchiam perfeitamente essa


função. O seu manto moral humanista capturava as mentes
incautas, provocando, inclusive, no Ocidente, a adesão maciça
de intelectuais. Até hoje, observamos que o socialismo é do-
tado de uma aura, enquanto os seus críticos são vistos como
“hereges”, “imorais”, quase inumanos. A violência veio a ser
considerada, então, um instrumento, e o mais natural, para
parir uma nova sociedade. Em nome do socialismo tudo era – e
para alguns é – justificado.
Segundo essa ideologia, a sociedade deveria ser molda-
da completamente pelo Estado, comandado pelo partido de
vanguarda, que ditaria as regras daquilo que considerasse como
sendo o “planejamento”. O lucro seria suprimido, as pessoas
deveriam seguir as ordens estatais e a propriedade privada
ser simplesmente abolida. Os cidadãos viriam a ser súditos
do Estado, perdendo o controle dos seus bens e não podendo
empreender qualquer iniciativa baseada na livre escolha, pois
isto seria considerado um traço “capitalista”, “burguês”, a ser
eliminado. Com a estatização dos meios de produção, os con-
tratos entre as partes deixariam de ser validados, na medida
em que tudo dependeria do Estado-partido em todas as suas
instâncias. A partir do momento em que a propriedade privada CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

fosse abolida, em que a liberdade econômica fosse suprimida,


os direitos civis desapareceriam e, com eles, toda forma de
participação política. A insegurança jurídica e pessoal tomaria
conta da sociedade. Os que se rebelassem seriam enviados a
campos de reeducação, na verdade, de concentração, onde
seriam assassinados em nome de atividades “antissociais”,
“antissocialistas” ou “antipartido”.
Marx e Engels se colocaram claramente na defesa dessa
via oriental: a destruição violenta do capitalismo enquanto

17
ELSEVIER

condição para a construção do socialismo. Em suas próprias


palavras: “Esboçando as fases mais gerais do desenvolvimento
do proletariado, seguimos a guerra civil (Bürgerkrieg) mais ou
menos oculta dentro da sociedade atual, até o momento em que
ela explode numa revolução aberta e o proletariado funda sua
dominação com a derrubada violenta da burguesia.”21 Atente-
se para o uso de expressões como “guerra civil” e “derrubada
violenta”, marcando, inclusive com uma linguagem militar, o
antagonismo irredutível da sociedade capitalista. Neste sentido,
não haveria nenhuma reconciliação possível, nenhuma forma
de unidade social, pois a sociedade estaria, desde os seus fun-
damentos, irremediavelmente fraturada. A violência revolucio-
nária é, nada mais, do que um desenlace dessa fratura. Engels,
no final de sua vida, em virtude de sua convivência com Eduard
Bernstein, o pai da social-democracia alemã, o reformista por
excelência, infletiu a sua posição ao reconhecer a possibilidade
da conquista do poder ser feita por meios democráticos, não
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

violentos, inaugurando uma outra via, a ocidental.


A via ocidental de conquista do poder prescinde da
violência explícita num primeiro momento, utilizando os
meios democráticos para a captura do Estado e o controle
da sociedade. Não podemos, no entanto, nos equivocar com
a questão central: os meios democráticos são usados para
destruir a própria democracia. Experiências desse tipo foram
utilizadas na antiga Tchecoslováquia, onde a conquista do
poder foi feita através de eleições, sendo, depois, os defenso-
res da democracia descartados, inclusive fisicamente. Hitler,
numa outra vertente, chegou também democraticamente ao
poder, para destruir a democracia. Gramsci, por sua vez,

21
Marx, Karl e Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes,
1990, p. 77.

18
ELSEVIER

teorizou sobre a conquista da opinião pública, mediante


o aparelhamento de escolas, universidades e redações de
jornais enquanto meio de conquista do poder. Tal estratégia
permite atrair a simpatia dos desavisados, dos incautos ou
dos que não têm clareza conceitual.
Trata-se de um erro crasso relacionar a democracia à rea-
lização de eleições. Eleições são uma condição da democracia,
porém não a esgotam. Há outras condições tão ou mais impor-
tantes. Para que uma democracia se efetive é necessário: a) criar
e manter condições para que a oposição, em minoria, possa
chegar, por sua vez, ao poder; b) respeitar o estado de direito,
as regras que não podem ser mudadas segundo o bel-prazer
dos governantes; c) conceder ampla liberdade de opinião, de
organização e de manifestação; d) respeitar a independência
dos poderes, de tal maneira que haja um equilíbrio institucional;
e) observar a autonomia dos meios de comunicação, que não
devem ser controlados e monitorados pelo Estado.
Tomemos o caso de Chávez por ser aquele cujo projeto
se torna cada vez mais nítido, embora Evo Morales e Rafael
Correa sigam os seus passos. O que faz o ditador-presidente da
Venezuela?: a) restringe, cada vez mais, o espaço das oposições,
passando, progressivamente, a criminalizá-las por exercerem CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

a sua função; b) extingue o estado de direito com novas regras


que são incessantemente promulgadas. Com um Poder Legis-
lativo submisso, o ditador-presidente passa a governar por lei
delegada; ele se torna ele mesmo o Poder Legislativo, prescin-
dindo do Parlamento; c) reduz, cada vez mais, a liberdade de
opinião, fazendo surgir o crime de delito de opinião, como o de
falar mal do ditador-presidente ou de seus familiares. Há, hoje,
uma lei que permite processar os adversários considerados,
assim, como inimigos, “criminosos”; d) impõe que os Poderes
Legislativo e Judiciário passem a seguir as suas ordens, os quais

19
ELSEVIER

perdem completamente a sua autonomia. Tornam-se meras


correias de transmissão do Poder Executivo; e) determina que
os meios de comunicação passem a ser monitorados pela lei
de delito de opinião e, alguns, estatizados, de tal maneira que
as vozes discordantes se calem.
No sentido estrito, o que se chama de populismo
latino-americano para caracterizar o projeto que está sendo
realizado na Venezuela, Bolívia e Equador, deveria ser mais
apropriadamente denominado “transição ao socialismo”. Uma
vez que se vençam as etapas de eliminação da democracia
representativa, os próximos passos, que começam a ser dados,
concernem à estatização dos meios de produção, começando
por aqueles que são tidos por estratégicos para o projeto socia-
lista. É o caso dos setores de energia em geral, com especial
atenção ao petróleo e gás, e de telecomunicações, incluindo
companhias telefônicas e redes de televisão. É também o caso
da propriedade da terra com expropriações ou desapropriações
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

em curso, etapa já inaugurada na Venezuela e na Bolívia. A


estatização de alguns meios de produção, seguindo o linguajar
marxista, vem acompanhada do discurso do resgate de injus-
tiças milenares. Não deve, portanto, estranhar a sedução que
esse projeto exerce sobre várias tendências do PT, MST, CUT,
CPT e outras organizações similares.
Chávez, no entanto, continua a gozar de certa com-
placência de determinados meios financeiros e empresariais
em escala global. E isto se deve ao fato de o seu discurso de
expropriação de setores de energia e de telecomunicações não
ter sido acompanhado das medidas práticas correspondentes.
Na verdade, ele está pagando pelas desapropriações efetuadas,
embora sempre deixe essa questão no ar, como se nenhum
pagamento devesse ser feito. Ele alcança, então, dois objetivos:

20
ELSEVIER

a) primeiro, ele faz derrubar o preço de mercado das empresas


que serão estatizadas, com ameaças reiteradas de que elas já
lucraram suficientemente, de modo que o Estado nada deve-
ria. Segundo o tom das ameaças, o valor de mercado dessas
empresas poderia cair entre 20% e 50%; b) segundo, quando
essas empresas pensam que nada mais ganharão, ou seja, que
os seus bolsos estarão vazios, o ditador-presidente as compra
pelo valor de mercado, depreciado, seguindo as regras capita-
listas. O resultado é que elas chegam a ficar contentes, porque
entre nada receber e receber um certo valor, é sempre a última
opção a melhor.
Não podemos tampouco esquecer que o Tesouro Público,
na Venezuela, veio a ser o caixa do ditador-presidente, que pode
dispor arbitrariamente dele. Ele não possui restrições legais.
Com o expressivo aumento do preço do petróleo desde que
chegou pela primeira vez ao poder, Chávez pode se dar ao luxo
de comprar empresas, porque recursos não lhe faltam e não
há, por conseguinte, processos internacionais que sejam feitos
contra os seus atos. O mundo é, hoje, globalizado juridicamente,
de modo que processos de expropriações feitos por um país
podem ser julgados segundo tribunais de outros países, de acor-
CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária
do com os termos dos contratos firmados. Estrategicamente,
Chávez está evitando esse tipo de processo, porque lhe seria
muito prejudicial financeira e internacionalmente. A questão
fica em suspenso em relação ao que aconteceria com uma queda
abrupta do preço do petróleo. Tais cuidados, porém, não estão
sendo tomados por Evo Morales, na Bolívia, por contar esse
país com muito menos recursos.
O discurso chavista, assim como o de Morales, tem
travestido a estatização de certos setores da economia com

21
ELSEVIER

o uso demagógico da expressão “propriedade social”. Que-


rem eles, com isto, mascarar o que estão fazendo, apelando
ideologicamente para a adesão a uma suposta justiça social,
como se a equidade fosse o seu objetivo. Observemos que seus
discursos discorrem sobre a “propriedade social” ou sobre a
“nacionalização” de empresas. Seu objetivo consiste em não
apresentar diretamente a sua ação como de estatização, com
receio de perder adeptos, pois a experiência da via oriental
de construção do socialismo ainda continua presente. Com o
emprego da palavra “nacionalização”, eles apelam para uma
nação que seria supostamente espoliada, explorada, intro-
duzindo, assim, o discurso de resgate da dignidade nacional
contra os “imperialistas”. Com o discurso da “propriedade
social”, eles procuram focar a sua ação na busca da satisfação
da sociedade, dos deserdados, escondendo, desta maneira, o
seu real propósito de fortalecimento do Estado e de controle
dessas mesmas sociedade e população. Eliminando a proprie-
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

dade privada, eles suprimem as liberdades em nome de uma


suposta igualdade social. Usando a expressão “propriedade
social”, eles introduzem também a ideia de um suposto con-
trole social da propriedade, que seria exercido por conselhos
populares, relacionados a formas de democracia participativa
ou direta. Assim, eles criam condições sociais para a abolição
da democracia representativa.

4. Propriedades
O mundo atual não cessa de nos surpreender. Oposicio-
nistas de esquerda, no governo, se convertem a posições ditas
de direita ou neoliberais. Oposicionistas de direita, de repente,
descobrem os encantos da esquerda no poder. As ideias se em-
baralham e exibem a precariedade dos referenciais tradicionais

22
ELSEVIER

entre esquerda e direita. Há uma metamorfose, particularmente


intrigante, que produz uma reviravolta no imaginário político
que guiou, durante décadas, um certo tipo de mentalidade, de
opinião pública. Os herdeiros do maoismo, na China comu-
nista, se tornaram francos adeptos da economia de mercado,
inscrevendo, na Constituição, a defesa da propriedade priva-
da. Enquanto isto, na Venezuela, na contramão da história, a
propriedade privada começa a ser destruída em nome de uma
suposta “propriedade social”, administrada pelo Estado – logo,
estatal. No universo petista mais radical, junto com os seus
adeptos do MST, da CPT, do MLST, da CUT e de organizações
similares, a China estaria traindo a “causa”, enquanto a Vene-
zuela estaria no “bom” caminho.22
A China deve ser compreendida desde uma perspectiva
histórica. De Estado totalitário, liderado por Mao, ela está
abrindo caminho para uma economia de mercado, estando,
agora, no estágio da liberalização econômica, conduzida por
um governo autoritário. A etapa atual é a do autoritarismo,
herdeiro de uma transição do totalitarismo para uma nova
forma de organização socioeconômica. Em sua estrutura
totalitária anterior, os maoistas, que chegaram a ser incen-
sados por Sartre, que distribuía nas ruas de Paris o jornal CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

maoista/totalitário La cause du Peuple, dizimaram 60 milhões


de pessoas, em lugares ditos eufemisticamente “Campos de
reeducação”. Reeducar o cidadão, formar o novo homem,
significava, na verdade, eliminar todo aquele que se opunha
ao regime, ou melhor, aquele que era considerado enquanto
tal pelos detentores do poder.
Refletindo sobre a experiência russa, a elite dirigente chi-
nesa optou por um outro caminho, o da transição autoritária,
22
Uma primeira versão dessa parte foi publicada, sob forma de artigo, no site do
jornalista Diego Casagrande, em 19 de março de 2007.

23
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com o estrito controle das liberdades políticas e dos direitos


civis, enquanto liberava as forças de mercado, instituindo,
progressivamente, a liberdade econômica e as suas formas
contratuais. O recente reconhecimento legal da propriedade
privada se inscreve neste processo de modernização da so-
ciedade chinesa. Digno de nota é o fato de todos os dirigentes
do Partido Comunista chinês23 reconhecerem a economia de
mercado como o único regime capaz de desenvolver o país,
criando empregos, dinamizando as empresas e superando os
problemas de estatais deficitárias. As suas desavenças, hoje, não
atingem esse acordo básico relativo às virtudes da economia
de mercado e da liberdade econômica. Eles reconhecem que as
necessidades da população não foram atendidas sob o antigo
regime comunista.
O seu ponto interno de discórdia, ainda não resolvido,
diz respeito à liberdade de expressão, à livre organização
partidária, à partilha do poder e não à economia de mercado.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Provavelmente, observaremos nos próximos anos um progres-


sivo afrouxamento das restrições às liberdades política e civil,
na medida em que o desenvolvimento de uma economia de
mercado traz consigo o estado de direito e a participação dos
cidadãos. Por exemplo, um problema urgente da sociedade
chinesa concerne à corrupção. Como pode ser ela controlada
se não há liberdade de imprensa? Como podem as denúncias
ser feitas? Como podem os dirigentes partidários corruptos ser
punidos se o próprio governo não tem meios de saber o que
está acontecendo?
No entanto, no lado de cá do planeta, na América Latina,
observamos um processo que percorre o sentido contrário. Na

23
Nathan, Andrew e Bruce Gilley. China’s New Rulers: The Secret Files. New York
Review of Books, 2003. (Agradeço a Armínio Fraga a indicação desse livro.)

24
ELSEVIER

Venezuela, sob o comando do ditador-presidente Hugo Chávez,


a propriedade privada está sendo questionada, e fortemente.
Sob o signo de uma suposta desapropriação de terras impro-
dutivas, o tão propalado latifúndio, foi promulgada uma nova
lei relativa à “propriedade social”. Embora o palavreado seja
pomposo, como se houvesse a reparação de uma injustiça his-
tórica, como se o social fosse enfim prioritário, o governo está
estatizando a propriedade. Em vez da propriedade privada,
surge uma forma de propriedade estatal, que se apresenta sob
a bandeira do coletivo. O alvo mais imediato, evidentemente, é a
propriedade privada, associada ao lucro, à ambição e à ganância.
Na verdade, o objetivo perseguido consiste em fazer voltar a roda
da História, rumo ao socialismo que caracterizou o século XX,
batizado, agora, de socialismo do século XXI. O seu corolário
já se faz sentir no sufocamento das liberdades individuais,
manifesto na lei que coíbe a livre expressão e a liberdade
de imprensa. Na esteira da estatização da propriedade e de
empresas, a independência dos poderes é abolida, com a sua
subordinação ao Poder Executivo e, mais especificamente, a
um ditador-presidente que legisla por decretos.
Neste sentido, há ações políticas que estão voltadas para
perpetuar a condição de existência da propriedade privada CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

defectiva, daquela que não se realizou plenamente, sendo


refém dos mais diferentes tipos de privilégios, como veremos
a seguir. A sua bandeira consiste, frequentemente, no uso de
um discurso demagógico, que relaciona a plena propriedade
privada à defectiva. Atribuem à primeira o que é o resultado
da segunda, conservando o status quo e impedindo que os
cidadãos possam tomar em mãos a sua liberdade de escolha.
Observamos no discurso populista e no esquerdista em geral a
mesma identificação, como se a injustiça vigente fosse resultado
da propriedade privada, quando é, na verdade, o produto de

25
ELSEVIER

sua falta. E é nesta brecha assim aberta que se desenvolvem


todas as ações políticas que visam a abolir a propriedade
privada, tornada responsável de todos os males existentes. O
discurso propriamente de esquerda se ancora, precisamente,
na destruição da propriedade privada e na estatização dos
meios de produção, tal como esse processo foi realizado na
União Soviética de Lenin, Trotsky e Stalin, tendo o seu exem-
plo frutificado depois na China, em Cuba, no Camboja e nos
países do Leste Europeu. No Brasil, há todo um imaginário
social, particularmente presente nas várias tendências do PT,
MST, CPT, MLST, PSOL e em outras agremiações, que tem
como fundamento essa ideia de que a propriedade privada é
a grande causa dos males sociais.
A propriedade privada é cada vez mais questionada em
nosso país. Em nome de movimentos ditos sociais, que são, na
verdade, organizações políticas com projetos de cunho socialis-
ta-autoritário, os atentados e questionamentos se multiplicam
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

contra a livre iniciativa e a liberdade econômica. Em março de


2007, surgiu uma nova união na constelação política. O Movi-
mento dos Sem-Teto se une ao MST, irmanados numa mesma
luta contra a propriedade privada, na cidade e no campo. O
Movimento dos Sem-Teto multiplica uma série de ações no país,
centrando-se no estado de São Paulo, como se tratasse-se de
uma reação espontânea de pessoas desassistidas. Ao vender tal
imagem, essa organização política procura capturar a opinião
pública e fazê-la simpática à ocupação da propriedade alheia
enquanto ato de justiça. Ao coordenar a sua ação em níveis
nacional e local, ela mostra uma estrutura organizacional e
midiática importante. Ademais, não pode deixar de chamar à
atenção o fato de essas invasões ocorrerem junto às invasões
do MST, em um outro tipo de coordenação. O Brasil assiste a

26
ELSEVIER

uma articulação de diferentes movimentos ditos sociais, que


estão avançando uma mesma pauta e empregando uma mesma
estratégia.
A reação da polícia nos estados, sobretudo em São Paulo,
foi suficiente e bem feita para impedir a proliferação e mesmo
a execução de invasões. O Movimento dos Sem-Teto está no
seu começo, embora, no passado, outras tentativas tivessem
também ocorrido. Trata-se de um movimento que encontra difi-
culdades em se arraigar, porque a ideia da propriedade urbana,
sobretudo residencial, está fortemente enraizada na população,
tornando pouco simpático o seu desrespeito. O que dirá um
trabalhador que paga uma prestação da casa própria frente a
invasores que não querem nada pagar? Ademais, a ação poli-
cial, ao ser eficiente e imediata, impede que se consolide uma
situação que se tornou usual no campo. Uma vez a propriedade
invadida, cria-se todo um problema legal de reintegração de
posse, como se os invasores não devessem ser retirados ime-
diatamente pela polícia. Mutatis mutandis, seria equivalente a
pedir autorização judicial para desalojar um bandido da própria
casa. Em caso de crescimento desse tipo de ação, toda a cadeia
produtiva da construção civil ficaria prejudicada.
CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

5. A tentação tupiniquim
O imaginário brasileiro é em muito estruturado em fun-
ção de ideias de tipo anticapitalista, com severas restrições ao
livre uso da propriedade privada. A propriedade privada é,
frequentemente, defendida apenas condicionalmente, como se
a sua relativização fosse a condição da justiça social. Constitu-
cionalmente, há o dispositivo da função social da propriedade
que deveria valer tanto para a cidade quanto para o campo.
Em torno dele, terminou se criando uma mentalidade jurídica

27
ELSEVIER

e política que se contenta com recitar esse preceito, como se, a


partir dele, qualquer atentado contra a propriedade privada
estivesse justificado, podendo contar com a benevolência da
opinião pública, de promotores e de juízes. Ainda mais recente-
mente, via um projeto de lei sobre o Estatuto da Igualdade Ra-
cial, que tramita na Câmara de Deputados, busca-se introduzir
uma outra relativização da propriedade, a da função racial da
propriedade.24 Quando a propriedade deixa de ser defendida
intransigentemente, quando ela é cada vez mais relativizada, a
própria existência de uma sociedade livre é posta em questão.
Todas as sociedades que fizeram a experiência da abolição da
propriedade privada, como as sociedades socialistas, desem-
bocaram na democracia totalitária, na mais violenta forma de
dominação política.
A função social da propriedade, no campo brasileiro, se
tornou o instrumento de uma organização política, o MST, que
tem como objetivo fazer do Brasil uma sociedade socialista-
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

autoritária, que siga os moldes cubanos ou da antiga União


Soviética. Em termos de orientação atual, o seu farol se situa
na Venezuela de Chávez, na medida em que, neste país, está
ocorrendo um processo de “transição ao socialismo”. A ban-
deira dessa organização é, só aparentemente, a justiça social,
porque o seu alvo consiste em abolir a propriedade privada,
inviabilizar a economia de mercado e desrespeitar o estado de
direito. Observa-se que, nos últimos anos, o discurso político
deixou de ser contra o “latifúndio improdutivo” e voltou-se
contra o agronegócio, ou seja, contra a moderna empresa capi-
talista. Daí, o surgimento de expressões políticas tais como luta

24
Cf. Rosenfield, Denis os seguintes artigos publicados nos jornais Estado de S.
Paulo e O Globo: “A função racial da propriedade” e “Quem escreveu?”, ambos
em maio de 2007.

28
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contra a “monocultura do eucalipto”, contra a “monocultura


da cana-de-açúcar”, contra o “agronegócio” em geral, contra
as empresas de reflorestamento, papel e celulose. Logo, esses
movimentos possuem um projeto específico, que é o de destruir
a moderna empresa rural e o de criar condições para uma tran-
sição ao socialismo. Observa-se, inclusive, a transferência de
boa parte dessas ações para os centros urbanos, com a invasão
de conjuntos habitacionais em construção.
A questão dos índices de produtividade para efeitos de
desapropriação de terras se insere também nesse questionamento
da propriedade privada e de seus ganhos, como se os empresários
devessem ser penalizados pelo fruto de seu trabalho, por sua
capacidade de inovação, por seu empreendedorismo. Só um
país possuído por um imaginário anticapitalista, antieconomia
de mercado, anti propriedade privada, poderia suscitar a ideia
de que os ganhos de produtividade feitos pela iniciativa priva-
da deveriam ser penalizados e transferidos a outrem. Subjaz
a essa posição a ideia de que o lucro foi indevido, de que cabe
ao Estado se apropriar daquilo que ele estima exorbitante. De
onde pode bem surgir essa ideia de que o Estado pode atentar
tão claramente contra a propriedade privada, senão de uma
mentalidade burocrática e distributivista, inspirada em velhas CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

ideias socialistas?
Na situação atual, segundo os índices de produtividade
em vigor, não há mais terras improdutivas no Sul, Sudeste e
Centro-Oeste do país. O que há nas regiões Sudeste e Centro-
-Oeste é toda uma discussão relativa a terras griladas, devolu-
tas, que são, no entanto, produtivas. O problema aqui reside
no pagamento dessas terras e em contenciosos jurídicos sobre a
propriedade efetiva delas. Nada disto deveria ser da alçada do
MST ou de organizações afins, mas dos governos de Estado e

29
ELSEVIER

dos Tribunais. Logo, pode-se questionar a pertinência do Incra


no preenchimento dessas funções nessas regiões. Eis por que o
próprio Incra e o Ministério do Desenvolvimento Agrário pro-
puseram, em acordo com o MST e a CPT, uma revisão desses
índices, aproximando-os dos índices efetivos de exploração
atual das propriedades. Eles consideram a moderna proprie-
dade privada um privilégio que deve ser suprimido.
Caso venha a ser aprovada, tal revisão precipitará um
questionamento ainda maior da propriedade privada, acom-
panhado por uma onda generalizada de invasões, chamando
o Incra para as novas tarefas de desapropriação. Cabe ressal-
tarmos que essa revisão depende apenas da publicação de
uma portaria presidencial, logo de um ato administrativo que
independe de sua aprovação pelo Congresso Nacional. Ou seja,
o Poder Executivo possui uma prerrogativa administrativa que
tem a capacidade de alterar as relações de propriedade. Neste
sentido, podemos dizer que se trata de um ato legal segundo
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

as leis vigentes e, no entanto, arbitrário. A arbitrariedade re-


sulta numa transferência da propriedade privada por um ato
exclusivo do Presidente da República. A chancela das instâncias
parlamentares nem entra em linha de consideração. As orga-
nizações “revolucionárias”, por sua vez, teriam em mãos um
poderoso instrumento de ação política, aparentemente balizado
por uma decisão legal. A instabilidade social, na verdade a “luta
de classes” como dizem, poderia se desenvolver sem nenhum
tipo de obstáculo jurídico.
Em sua luta contra a economia de mercado, a propriedade
privada e as empresas da cadeia do agronegócio, o MST e as
organizações congêneres estão abandonando a luta contra o
“latifúndio improdutivo” (por este ter se tornado escasso!) e o
substituindo pela luta contra o “latifúndio em geral” ou a média
e a grande empresa agrícolas. O alvo é muito mais explicitamen-

30
ELSEVIER

te a moderna propriedade capitalista, que passa a ser criticada


por se dedicar à monocultura ou por supostamente produzir
danos ambientais. O discurso é de nítido caráter anticapitalista
como se a economia devesse estar totalmente orientada para
a produção de valores de uso, para alimentos, segundo um
planejamento estatal. Criação de empregos, salário, renda,
lucro e propriedade são considerados nomes feios que devem
ser execrados. O problema para eles não é o do desenvolvi-
mento de uma região, dos empregos criados, do progresso da
ciência e da tecnologia, das novas oportunidades de trabalho
e do aumento de investimentos, mas o de uma economia de
subsistência. É como se salário e renda não pudessem comprar
alimentos. O modelo perseguido pelo MST e pela CPT é o de
um suposto comunismo primitivo ou o da ideia do bom selva-
gem de Rousseau. Mais contemporaneamente, a propriedade
coletiva da terra, dita social.
O projeto de lei do Estatuto da Igualdade Racial, aprova-
do no Senado e tramitando na Câmara dos Deputados, procura
estabelecer a função racial da propriedade. Sob o manto de
resolver um problema histórico do Brasil, termina por gerar
novos conflitos que o país poderia muito bem se poupar. O par-
ticularmente grave nessa questão é que o MST, a CPT e outras CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

organizações teriam um poderoso instrumento à disposição


para declarar qualquer propriedade, no meio rural ou urba-
no, desapropriável. Legalmente, a ordem jurídica poderia ser
sistematicamente subvertida por razões políticas, vestidas de
uma suposta roupagem racial. O Estatuto cria uma reserva de
terras para remanescentes ou descendentes dos quilombos, que
se autodefiniriam enquanto tais. O arbítrio seria introduzido
no ato mesmo da autodesignação e na indicação de um terreno
urbano ou de uma terra agrícola. A medição e a delimitação
das terras e terrenos, no campo ou na cidade, seriam feitas

31
ELSEVIER

pelos próprios interessados, sendo-lhes facultado apresentar


as peças técnicas para a instrução procedimental. Por simples
manifestação oral ou escrita ao Incra, passando pela Fundação
Palmares, se daria início ao processo administrativo. A proprie-
dade privada existente seria claramente violada.
Caberia, então, ao Incra, dar continuidade ao reque-
rimento, procedendo a todos os trâmites de identificação,
delimitação, reconhecimento e desapropriação das terras ou
de regularização se já houver pessoas lá vivendo. O processo
seria simples se os descendentes dos quilombos lá estivessem
efetivamente, porque seria um mero ato de regularização
fundiária, de acordo com a Constituição. O caso muda de
figura se os auto intitulados remanescentes puderem exercer
um “direito” a terras contra proprietários já estabelecidos em
virtude de um mero ato de auto atribuição, equivalente à auto-
classificação da cor. A participação direta dos interessados em
todas as fases do processo, inclusive indicando representantes
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

e assistentes técnicos, mostra que o julgamento final estaria de


certa maneira garantido. Invasões de terras e terrenos teriam
agora novas justificativas e amparo legal, como se o estado de
direito não mais existisse.

6. A democracia participativa
O uso adjetivo da palavra participação para qualificar
a democracia exibe um emprego ideológico, cujo propósito
consiste em desmerecer, senão em minar, as bases mesmas
da democracia representativa. Dá-se como pressuposto que
a democracia representativa apresenta “falhas”, “defeitos”,
que podem ser corrigidos por sua complementação ou mesmo
substituição pela “democracia participativa”. Uma forma de
democracia seria “imperfeita”, “incompleta”, necessitando

32
ELSEVIER

da outra para galgar os níveis almejados de “perfeição” e


“completude”. Na verdade, os que se colocam nesta posição
estão imbuídos da convicção de que eles sabem o que é a
“verdadeira” democracia, na medida em que são, geralmente,
os que defendem posições direta ou indiretamente marxistas,
considerando a democracia como “formal”, o que é uma outra
maneira de dizê-la “burguesa”. Seriam eles que confeririam a
esse aspecto “formal” o seu “conteúdo” faltante.
O preenchimento do conteúdo seria dado pela “participa-
ção”, que apresentaria uma forma de atividade política concre-
ta, veiculando propostas de outro tipo. Desta maneira, intervém
um processo de enfraquecimento progressivo das instituições
representativas, tornando-se alvo de uma ação política, que
visa, precisamente, a debilitá-la. Sob esta ótica, a representa-
ção política poderia ser não somente “completada”, como em
seu lugar poderia surgir uma nova forma de democracia, um
arremedo do que seria a democracia “direta”. Estabelece-se,
assim, uma constelação de ideias cujo traço principal consiste
na confusão de conceitos. Quanto mais as pessoas desconside-
rarem a democracia, mais suscetíveis se tornarão de assimilar
outras propostas políticas, que têm como finalidade instaurar CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

formas de democracia totalitária. Significativo, neste sentido,


é o fato de os defensores da democracia, dita “participativa”,
serem partidários da “democracia totalitária”, tal como se es-
boça na Venezuela e na Bolívia.
A primeira das confusões reside em equiparar a demo-
cracia “participativa” à democracia “direta”.25 O ar da Grécia
clássica estaria a fornecer uma aura de justificativa filosófica,
como se os seus artífices estivessem se colocando em diapasão

25
Cf. Rosenfield, Denis, A democracia ameaçada, Cap. 1.

33
ELSEVIER

com uma das grandes tradições do Ocidente. A fraude é aqui


total, pois, na Atenas clássica, o “Agora”, a praça pública, reu-
nia efetivamente o conjunto dos que eram considerados como
cidadãos, que dispunham de fato do poder de participação
política. Isto seria equivalente a dizer que todos os eleitores de
uma cidade determinada deveriam participar de uma arena,
cujo espaço físico seria, inclusive, capaz de reunir o conjunto
dos cidadãos numa relação cara a cara, direta, enquanto con-
dição de formação de uma opinião comum.
Socialmente, a forma de regramento dos conflitos políticos
apresentada por Atenas estava baseada na exclusão dos escravos
(trabalhadores) e das mulheres desse processo participativo.
O escopo dos participantes se mostrava restrito, particular, via-
bilizando, deste modo, uma maior homogeneidade do ponto de
vista decisório. Demograficamente, um Estado desse tipo só podia
funcionar tendo como base uma pequena unidade territorial, isto
é, uma sociedade constituída por um número bastante reduzido de
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

habitantes. A “polis” se torna inviável por completo em Estados de


grandes contingentes populacionais. Geograficamente, a sua base
só poderia ser uma pequena unidade territorial, capaz de aproxi-
mar os cidadãos, de maneira que se conhecessem pessoalmente.
Eleitoralmente, não havia votação na escolha dos dirigentes, mas
essa era feita através de sorteio, porque o acaso era considerado
uma forma neutra e imparcial de decisão sobre quem seriam
os governantes. Culturalmente, havia uma homogeneidade no
que dizia respeito à língua, ao exercício da filosofia, aos valores
comuns, à religião, de modo que todos se referiam a uma lin-
guagem, a um mesmo exercício da razão, compartilhado por
todos. Tal forma de democracia só podia vigorar numa época
completamente distinta da nossa.
No entanto, temos visto uma recrudescência do uso da
palavra participação, presente, inclusive, em discussões sobre a

34
ELSEVIER

reforma política. A proposta de uso de referendos, plebiscitos,


recalls e outros institutos entrou na pauta política. Estabelece-se,
assim, uma segunda forma de confusão, pois esses mecanismos,
que podem ou não, dependendo do seu uso, ser complemen-
tares à democracia representativa, são também denominados
formas de democracia direta e/ou participativa. Mais especifi-
camente, a questão da democracia participativa foi introduzida
no país a partir das administrações petistas em municípios e
estados, tendo como modelo e inspiração o Orçamento Parti-
cipativo, implantado na cidade de Porto Alegre. O Orçamento
Participativo (OP) é apresentado como uma forma de gestão
político-administrativa, baseada na participação dos cidadãos,
quando, na verdade, serviu para que o PT manipulasse essas
reuniões, fazendo passar os seus resultados por frutos da de-
mocracia “direta”. Vejamos um exemplo.
As assembleias do Orçamento Participativo (OP), e me
refiro aqui às mais bem-sucedidas, reuniam, nesta cidade, em
torno de 600 pessoas, que acorrem a esse encontro segundo
seus interesses mais imediatos. Constitui-se, assim, um espaço
de discussão, controlado pelo governo municipal, com forte
presença do partido hegemônico. Observemos que os partici-
pantes dessas reuniões não possuem nenhum mandato, pois CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

o OP não faz parte das instâncias do estado. Logo, cria-se a


seguinte situação: um número inexpressivo de pessoas decide
por todo um grande setor da cidade. Por exemplo, em 2001,
numa assembleia em Belém Novo, zona sul de Porto Alegre,
650 pessoas decidiram pelo orçamento destinado a uma re-
gião constituída por aproximadamente 200 mil habitantes. Se
descontarmos em torno de 100 autoridades governamentais e
militantes partidários, chegaremos a uma situação paradoxal:
0,0025% dos moradores da região decidiu por toda ela, sem

35
ELSEVIER

nenhum tipo de delegação! Se a democracia fosse direta 200


mil decidiriam por 200 mil,26 descontadas as crianças e os que
não podem votar.
É manifesto, nessas reuniões, o parti pris político. Com
efeito, os cidadãos presentes são instruídos de que essa forma
de participação é tida por ser a melhor, a que é capaz de atender
aos seus interesses mais imediatos. Por sua vez, a democracia
representativa, a que paradoxalmente elegeu esses mesmos
dirigentes e vereadores, é considerada como “formal”, “liberal”,
e, para os mais revolucionariamente afoitos, “burguesa”. Os
membros do OP são, assim, levados a identificar a satisfação
de suas demandas à “democracia participativa”, enquanto o
não atendimento anterior é atribuído ao caráter formal da de-
mocracia, logo também identificada ao “neoliberalismo”. Não
é difícil, nem foneticamente, passar da crítica ao neoliberalismo
para a democracia liberal. O artifício é claro. Trata-se de criar
condições para a substituição da democracia representativa
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

pela participativa, ou seja, das formas republicanas de repre-


sentação pelas de controle partidário, em particular, do partido
hegemônico.27
Ora, a presença maciça de militantes, dirigentes partidá-
rios e governantes monta toda uma cena de instrumentalização,
que faz com que os participantes dessas reuniões se tornem
massa de manobra política e de uso ideológico. Eles não con-
trolam, nem têm condições de controlar, uma montagem desse
tipo, que conta com duas máquinas atuantes – a partidária
e a municipal-governamental. A ideologia que termina por
prevalecer é a da “incompletude” da democracia “formal”,
da “imperfeição” da democracia “liberal”, como se estivesse

26
Ibid., Cap. 1.
27
Ibid., Cap. 1.

36
ELSEVIER

em gestação uma outra forma de democracia, fundada nes-


sa forma de “participação”. Germina aqui um dos aspectos
da democracia totalitária, o referente à indistinção entre o
partido e o Estado. Um fala através do outro numa forma de
indiscriminação, onde surge uma palavra única como a pala-
vra oficial, sem que se saiba, ao certo, quem fala em nome de
quem. O cidadão comum-participante, por sua vez, não sabe
se o seu interlocutor é o governo municipal ou o partido. Na
medida em que esse processo se consolida, é essa palavra da
indistinção que ganha um outro componente, a saber, o das
vozes dos participantes dessas reuniões que, em uníssono,
dizem falar uma linguagem comum. A palavra participação
ganha, então, uma nova atualização, porque comparece em
propostas de partidos políticos, movimentos ditos sociais e
associações profissionais, que partem, segundo vários matizes,
das imperfeições da democracia representativa, numa espécie
de degradê que termina, inclusive, na sua própria supressão.
Os que se mantêm claramente nos domínios da demo-
cracia representativa são os que se apóiam nas instituições re-
publicanas, no estado de direito e no domínio da economia de
mercado. As liberdades em suas várias acepções, da econômica
à política, passando pela civil, são preservadas. Tais posições CAPÍTULO I Democracia e democracia totalitária

reiteram o primado da representação política sobre todas as


outras formas de participação. Exemplos históricos poderiam
ser elencados, como o uso de referendos e plebiscitos na Suíça
e na França. Observemos, no entanto, que se trata de países de
sólida tradição republicana, de tal maneira que suas instituições
primam por formas “diretas”, que teriam sua matriz em “de-
mocracias totalitárias”. Ou seja, a participação em referendos
e plebiscitos não substitui, nem pode fazê-lo, as instituições
republicanas, que não entram em questão.

37
ELSEVIER

Os que se colocam fora da democracia representativa,


embora se utilizem de seus instrumentos para eliminá-la, são
os que visam, por essa “participação”, a suprimir as próprias
instituições republicanas. Os plebiscitos, referendos, iniciati-
vas populares e recalls são pensados como instrumentos que
podem ser utilizados, sistematicamente, com o propósito de
curto-circuitar a democracia representativa. Na verdade, são
os que lançam essa proposta tendo como finalidade a substi-
tuição progressiva das formas representativas. Exemplo disto
já aparece na proposta segundo a qual referendos e plebiscitos
não precisariam passar pelo Poder Legislativo, podendo ser
convocados diretamente pelo presidente da República. Caso
vingue uma proposta desse tipo, teríamos um presidente que
poderia governar “diretamente” em sua relação com os cida-
dãos, não necessitando ter sua iniciativa aprovada pelo Con-
gresso. A instância da representação política seria claramente
desconsiderada, sendo facultado ao presidente legislar em
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

contato com as massas. Logo, teríamos formas plebiscitárias


ou bonapartistas de governo, que deveriam ser mais apro-
priadamente denominadas formas democrático-totalitárias.
Extrair um instituto, como plebiscitos, referendos e iniciativas
populares, do seu conjunto, a constituição republicana, como
se pudesse valer por si mesmo, significa um meio de perver-
são da democracia. Isola-se um instrumento, diz-se que ele é
democrático, e faz-se um uso deformado dele.

38
Capítulo II

Propriedade e privilégio

A questão da propriedade, durante a Revolução Francesa,


foi central, pois ela permitia diferenciar a propriedade priva-
da, no sentido moderno do termo, dos privilégios, forma de
propriedade típica do Antigo Regime. Na verdade, tratava-se
de duas formas bastante distintas de propriedade, embora o
linguajar marxista, posteriormente, terminou por identificar e
confundir ambas. A primeira foi considerada como sagrada e
inviolável segundo a Declaração dos Direitos do Homem e do Ci-
dadão, sendo a grande conquista da nova época. Graças a ela,
a humanidade, doravante livre, entrava em possessão de si
mesma. A segunda foi tida por uma deformação da proprieda-
de, na medida em que estava voltada somente para interesses
particulares, excludentes em relação aos demais. A propriedade
privada correspondia à ideia de homem livre, enquanto os
privilégios eram a expressão de uma sociedade hierárquica,
que sufocava a liberdade.
Sieyès, dos revolucionários, é certamente um dos mais
modernos. Crítico acerbo dos privilégios, defensor ardoroso da
propriedade privada. Ele distingue com precisão a proprie-
dade no sentido “político” da propriedade no sentido “social”,
a primeira significando uma forma de privilégio e a segunda

39
ELSEVIER

sendo a garantia da liberdade propriamente dita. A distinção


assim formulada é a que, depois, será retomada por Douglas
North entre a propriedade privada no sentido completo e
incompleto do termo, entre a propriedade capitalista e a
inadequadamente capitalista, sendo a mercantilista uma de
suas formas.
Segundo o Dicionário Houaiss, privilégio significa: “direi-
to, vantagem, prerrogativa, válidos apenas para um indivíduo
ou um grupo, em detrimento da maioria; apanágio, regalia”. A
sua etimologia vem do “lat. privilegìum,ìi ‘lei excepcional con-
cernente a um particular ou a poucas pessoas; privilégio, favor,
graça’; ver privilegi-; f.hist. sXIII privilegio, sXIV priuylegyos, sXV
preuilegio”. O seu elemento de composição é: antepositivo, do
lat. privilegìum,ìi ‘lei excepcional em favor de um particular;
privilégio’, formado de prívus,a,um ‘tomado isoladamente,
singular, próprio’ + lex,legis ‘lei, obrigação civil escrita e pro-
mulgada’ + -ium, neutro de -ius; ver priv.”. Privilegiados são,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

portanto, aqueles que gozam de um direito exclusivo, usu-


fruindo legalmente de vantagens em detrimento dos outros.
Privilégio é uma lei, cuja validade é apenas particular, dirigida
a um grupo social, a um estamento, a um conjunto determi-
nado de indivíduos por razões corporativas, sociais, sexuais,
raciais, profissionais, econômicas ou outras. Trata-se de uma
“lei excepcional”, direcionada exclusivamente para um grupo
de pessoas. Hayek assinala que o contraste entre um reino de
status, de estamentos sociais, e um de leis abstratamente válidas
para qualquer um está presente na própria etimologia latina da
palavra privilégio: “...do reino das leges no significado original
da palavra latina leis (laws) – leges, ou seja, enquanto oposta a
privi-légios (privi-leges)”.1

1
Hayek, op. cit., p. 154.

40
ELSEVIER

Na etimologia de Cícero, os gregos derivariam a “lei”


(nomos) da “partilha”, da “equidade”, da “divisão equitati-
va”, enquanto os romanos situariam a origem da “lei” (lex)
na escolha. Ele mesmo acrescenta que ambos significados
encontram-se presentes no próprio conceito de lei.2 Podería-
mos, então, dizer que a lei seria a escolha pela equidade, pela
justiça e pela imparcialidade, que se mostraria no exercício
de uma razão livre de preconceitos, não estando presa a
costumes e tradições, que obstaculizariam a sua averigua-
ção e avaliação. Na verdade, a sua preocupação consiste em
manter juntos os significados da livre escolha e da equidade,
sem se curvar ao que é comumente admitido enquanto tal,
como quando uma religião e um Estado simplesmente im-
põem arbitrariamente um conjunto de normas. No dizer de
Paine, por sua vez, a lei estaria baseada no consentimento
dado pela geração atual ao trabalho das gerações anterio-
res. No entanto, esse trabalho das gerações anteriores deve
ser constantemente referendado, racionalmente verificado,
para que não seja somente uma forma de transmissão de
privilégios tidos, assim, por imutáveis.
Segundo Cícero, na própria definição do termo “lei”, “é
inerente a ideia e princípio de escolher o que é justo e verda-
deiro”.3 O ato de legislar, de fazer leis, seria um ato de escolha,
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

uma opção feita pela justiça, pelo bem. A lei não teria, portanto,
a acepção originária de algo imposto pela tradição, pelo Esta-
do, pela “civitas”, pela “polis”, mas de algo decorrente de uma
ação livre, que institui regras estimadas pela sociedade como
sendo as melhores e as mais justas. Pode evidentemente ocorrer
que haja uma percepção ou avaliação equivocada, dada pelas

2
Cícero. De Legibus. London, Loeb Classical Library, 1977, V. 17-VI. 19.
3
Ibid., Laws II. V. 11-13.

41
ELSEVIER

circunstâncias, do que seja o bem ou a justiça. Seria igualmente


possível radicalizar essa oposição dizendo, inclusive, que o bem,
seguindo Hobbes, seria apenas aquilo que aparece enquanto tal
para o indivíduo que se move, procurando a realização do seu
desejo, do seu esforço, de sua pulsão, de seu “conatus”. Have-
ria, porém, segundo Cícero, uma noção incontroversa do bem,
incondicionalmente considerado, que seria o ato de escolha
enquanto “supremo bem”. Se a lei é o bem supremo, é porque
a liberdade de escolha o é.
Uma lei simplesmente imposta por um poder absoluto
não pode ser dita, no sentido estrito, lei, pois lhe falta o prin-
cípio de livre escolha que se encontra no fundamento de
toda norma jurídica, legal e legitimamente reconhecida. Se a
liberdade de escolha não preside o processo de formação e
de validade da lei, estamos diante de uma regra meramente
imposta, pela força implícita ou, no Estado moderno, por
formas mais sub-reptícias, como as que se fazem pelo uso
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

abusivo de medidas administrativas, que têm sua fonte no


Poder Executivo. Regras impostas, que não nascem da livre
escolha numa república, são, por Cícero, assimiladas a regras
que regulam as relações entre ladrões, que não podem ser
chamadas propriamente de leis.
Podemos ter também presente as formas teológicas de
justificação de leis, como se seguir um código religioso equi-
valesse a seguir um código bom e justo. Prescrições religiosas
baseadas num Livro Sagrado, que deveria orientar a ação hu-
mana, seriam expressões de uma concepção segundo a qual o
homem é incapaz de escolher por si mesmo, necessitando uma
espécie de bengala moral, que lhe forneceria uma bússola para
sua orientação no mundo. Se o ser humano tem como signo
diferencial em relação aos outros animais a racionalidade, é

42
ELSEVIER

porque ele tem como propriedade essencial a livre escolha


sobre o uso dessa racionalidade, que não estaria limitada ou
circunscrita por regras religiosas, que se apresentam, indevi-
damente, como se leis fossem.
Uma sociedade que, em nome do “bem”, chamado “bem
coletivo”, “interesse dos excluídos” ou “sociedade perfeita”,
viesse a eliminar a liberdade de escolha, por ser essa “bur-
guesa” ou resultado da “sociedade capitalista”, não somente
contraporia duas noções de bem, mas viria a suprimir a própria
noção de bem em geral. Na medida em que não haveria mais
a capacidade de escolha entre duas noções “aparentes” de
bem, o bem, senão demagogicamente, deixaria de ser possível,
tornando-se somente uma palavra utilizada pelos detentores
totalitários do poder. Falar do bem, contrapor significações e
discutir as diferentes acepções do que cada um considera como
“bom” ou “justo” pressupõem que esse debate possa ocorrer,
que ideias circulem livremente e que cada um, em seu foro
íntimo, possa, em sua ação, escolher uma delas para guiar a
sua conduta. Se desaparecesse essa possibilidade de escolha,
com ela seriam eliminados o espaço público, a discussão e a
noção básica de indivíduo.

1. A noção de república
Cícero, por meio do diálogo de seus personagens, estima
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

necessário definir com precisão aquilo sobre o qual está falando,


sob pena de cair em confusões inextricáveis ou errar o alvo da
compreensão perseguida. É o caso, para ele, da palavra “repú-
blica”. Em sua primeira definição, ele assinala que “a república
é a propriedade do povo”, ou ainda, “a coisa pública é a coisa do
povo”,4 equiparando a república à coisa do povo. Isto significa

4
Cícero. De Republica. Londres: Loeb Classical Library, 1977, I. XXV 39- XXVI 41.

43
ELSEVIER

que a comunidade política deve assentar-se num tipo de rela-


ção humana fundada na universalidade, isto é, em regras que
sejam válidas para todos. Regras que sejam igualmente válidas
para todos são regras que estabelecem que as pessoas possuem
uma livre disposição de si mesmas, aí incluindo as suas posses
subjetiva e objetiva, relativas ao corpo, à livre escolha de cada
um e aos bens, móveis e imóveis, voluntariamente utilizados.
Neste sentido, uma república não deveria ser uma comunidade
baseada na escravidão, que infringiria, precisamente, esta livre
disposição humana de si.
O problema consiste, então, em precisar qual tipo de
agrupamento humano é uma república. Não é qualquer arranjo
entre os homens, porém uma forma de vinculação que deve
obedecer a determinadas condições, como as de que os seus
membros compartilhem noções de justiça e de bem comum.
Cícero chega a dizer que a liberdade só tem sua morada pró-
pria numa república,5 porque essa não pode estar dividida
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

em diferenças de estamentos, mas deve estar fundada numa


mesma liberdade usufruída por todos. Se a “coisa pública” é
a “coisa do povo”, ela o é porque todos compartilham igual-
mente da “coisa livre”, de atos voluntários que são igualmente
concedidos a todos, ou melhor, que todos se autoatribuem se-
gundo regras válidas coletivamente. Se a liberdade é atribuída
seletivamente a alguns, ela não é digna de seu nome, podendo
vir a ser uma espécie de licenciosidade usufruída por poucos,
que se apoderaram da coisa pública, tornando-a coisa “priva-
da” de alguns. Daí se segue que as leis que regem a república
sejam tais que não concedam privilégios, como os decorrentes
das distinções de nascimento ou de riqueza. Nela, o jogo das

5
Ibid., XXXI 47-XXXII, 48.

44
ELSEVIER

instituições deve ser tal que todos possam, segundo os seus


respectivos méritos, usufruir das mesmas condições do bem
comum. Uma comunidade política está baseada em “leis”, que
oferecem as mesmas condições de livre escolha para cada um,
na voluntária disposição de suas propriedades.
Embora nos tempos de Cícero Roma fosse uma repú-
blica já com sérios problemas, o uso do termo está fortemente
centrado no modo de tratamento da coisa pública, daquilo que
é de todos, de modo que, dessa forma de tratamento, se possa
gradativamente remontar a um regime político dito república.
A sua ênfase é colocada, precisamente, nas regras, instituições
e leis que constituem esse regime, para além de outros, alguns
deformados, também indevidamente chamados de republica-
nos. O que importa é o modo de organização da coisa pública,
a forma mediante a qual os indivíduos se apropriam do que é
comum, a saber, as suas regras e instituições.
Uma vez isto definido, a discussão reside em determinar
qual é o regime político mais apropriado para a realização da
coisa pública, ele podendo ser definido tanto pelo governo de
um, de alguns ou da maioria. Cada um deles pode, por sua
vez, perverter-se numa forma de tirania, a tirania de um, de
alguns ou da maioria. A tirania não pode ser considerada ape-
nas individualmente, como se o tirano fosse exclusivamente o
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

governo estabelecido por uma única pessoa. A tirania pode ser


também dita de alguns ou da multidão, que não permite que
os indivíduos façam as suas livres escolhas. O poder tirânico
da multidão não é menos pernicioso do que a tirania de uma
só pessoa. Na verdade, poder-se-ia mesmo dizer que ele é pior,
na medida em que se exerce em nome de todos, não podendo
existir algo de mais horrível do que um monstro que assume

45
ELSEVIER

falsamente o nome e a aparência do povo.6 Um povo, para ser


propriamente povo, constituinte de uma república, deve partir
do respeito aos indivíduos.
Logo, república é um conceito que deve ser distinguido
do conceito das formas de governo. A definição de tirania ofere-
cida por Cícero se adapta perfeitamente à nossa própria época.
Com efeito, numa tirania, nada pertence ao povo, enquanto este
pertence, no caso do governo individual, a um único homem,
o tirano.7 Ou seja, o povo não é proprietário de nada, pois os
seus bens não lhe pertencem propriamente dito, mas estão
suspensos a uma vontade alheia que tudo pode, inclusive in-
vadir o domínio privado e se apropriar dos bens dos cidadãos.
O tirano, por sua vez, tudo possui ou pode tudo virtualmente
possuir, pois não há travas ou limites legais à sua ação. Ele se
institui enquanto vontade soberana. Isto seria o equivalente
a dizer que não se tem uma má forma de república, mas que
a república, enquanto tal, nesta situação, inexiste. Sob esta
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

ótica, uma revolta do povo, uma revolta popular, seria uma


revolta pela recuperação dos seus bens, de sua propriedade
sobre si mesmo no seu mais amplo sentido, porque nada mais
lhe pertenceria. A sublevação consiste numa recuperação da
propriedade, o povo fazendo-se proprietário.8
A república se assenta em leis que são igualmente válidas
para todos, independentemente de condição social, nascimento,
tradição ou outras, o que constituiria privilégios que deveriam
ser abolidos. Diante da lei, todos exercem direitos iguais. Aque-
les que se distinguem pelo serviço prestado à pátria, em razão
de seus méritos, devem ser honrados pela glória que os seus

6
Ibid., III. XXXIII, 45-XXXIV, p. 46.
7
Ibid., III. XXX, 42-XXXII, p. 44.
8
Ibid., III. XXXII, 44-XXXIII, p. 45.

46
ELSEVIER

feitos produziram, e não por privilégios que criariam distinções


inaceitáveis entre cidadãos iguais. Se uma república se apresta a
conceder privilégios que logo se multiplicarão, ela se aproxima
de sua ruína pela infração mesma que comete contra os seus
próprios princípios. Isto seria equivalente a não obedecer às
leis, que não podem ser identificadas a privilégios.9
A distinção entre lei e privilégio se torna ainda mais
nítida quando Rousseau se insurge contra concessões feitas
aos ricos e poderosos de “empregos lucrativos”,10 outorga-
dos, como privilégios, pelo rei ou, de uma forma mais geral,
pelo governo. O mesmo vale para exceções a eles conferidas
em termos fiscais ou em termos de uso privilegiado da força
pública. Ele defende, no Discurso sobre a economia política, a
igualdade de todos perante as leis, dentro de um Estado que
não privilegia um grupo em detrimento de outro, constituin-
do, propriamente, um governo republicano. Segundo Paine,
monopólios, tanto do ponto de vista político de ocupação de
postos e cargos no Estado, quanto econômicos no domínio
de certos setores industriais e comerciais, são considerados
como privilégios que devem ser abolidos. Numa sociedade
livre, não pode haver tal ingerência do Estado, que diferencia
desta maneira indivíduos e grupos sociais. Se alguns gozam
de privilégios não acessíveis aos demais, é porque outros se
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

encontram excluídos dessa mesma condição, que deveria


igualar oportunidades.11

9
Rousseau, Jean-Jacques. “Discours sur l’économie politique”. In Écris politiques.
Paris, Gallimard, 1964, p. 249.
10
Ibid., p. 271.
11
Paine, Direitos humanos, p. 63. “O que é o governo senão a administração dos
negócios de uma nação? Ele não é, e por sua natureza não pode ser, propriedade
de algum homem ou família em particular, mas de toda a comunidade, a cujas
custas ele é sustentado”, p. 120.

47
ELSEVIER

A propriedade no sentido de privilégio corresponde à


apropriação privada do Estado por estamentos sociais, cujos
exemplos se faziam pela apropriação de funções e cargos
estatais pela nobreza, como se tivesse, por nascimento, um
direito inerente a eles. À nobreza estavam destinadas certas
funções, às quais os outros membros do Estado, por lei, não
tinham acesso. Criava-se, assim, um reduto, um espaço estatal
completamente dissociado do público, entendido como consti-
tuído pelo conjunto dos cidadãos. Transpondo essa significação
à situação brasileira, no aparelhamento de funções estatais por
certas corporações, podemos pensar na corrupção, no desvio de
recursos públicos por parte daqueles que têm acesso a deter-
minados cargos públicos. Quando certos grupos econômicos,
sociais, sindicais, profissionais e políticos têm acesso privile-
giado a cargos e funções estatais, extraindo deles benefícios
econômicos, observamos uma situação equivalente àquela que
Sieyès considerava como sendo um privilégio, favorecendo
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

certos grupos à exclusão de todos os demais. Ou seja, o tesouro


público é apropriado privadamente.
A propriedade no sentido humano, completo, aquele que
foi posteriormente consubstanciado na Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, corresponde à livre disposição que
toda pessoa tem de si mesmo, de sua subjetividade, de seus
bens, de suas posses, de suas propriedades, segundo a livre
escolha que preside à sua decisão. Não caberia, neste sentido,
ao Estado imiscuir-se neste território que é aquele em que a
liberdade se concretiza, fornecendo-lhe as bases de seu próprio
florescimento. O sentido mais amplo, e preciso, da propriedade
consiste na livre disposição interior da pessoa, na escolha de sua
profissão, de suas atividades, de sua locomoção, da aplicação
de seus talentos, sem nenhuma trava estatal que a destine, de

48
ELSEVIER

cima, a qualquer profissão, cargo e função determinados, como


se coubesse a uma instância superior ditar a cada um o seu
destino. A propriedade significa também, objetivamente, que
qualquer pessoa, independentemente de sua condição social,
seu nascimento, sexo ou cor, possa dispor dos frutos do seu
trabalho, do emprego de seu tempo, de seus bens materiais, que
podem ser alienados ou não segundo o livre-arbítrio individual.
“Todos os privilégios, sem distinção, têm certamente por
objeto dispensar a lei ou dar um direito exclusivo a algo que
não é proibido pela lei”.12 Privilegiados são aqueles para os
quais a lei geral e abstrata não vale, que podem se dispensar
dela para a conquista de benefícios privados, identificados a
benefícios indevidos. Pense-se no uso que certas corporações
e partidos políticos fazem do aparelho estatal apenas visando
aos seus interesses específicos, sem nenhuma consideração
para com o bem geral. Quando uma corporação consegue um
aumento salarial – ou frequentemente travestido de um novo
plano de carreira que procura mascarar, para a opinião públi-
ca, o que está acontecendo – não extensível a todos os outros
cidadãos, presenciamos uma situação de privilégio, como se
a lei fosse dirigida somente a contemplar certos setores da
população. Situações de direito exclusivo, mencionadas por
Sieyès, correspondem àquelas, onde, por exemplo, certos se-
tores do funcionalismo possuem acesso a aposentadorias que
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

são proibidas – ou não tornadas disponíveis – aos empregados


de empresas privadas. Ou seja, alguns setores têm direito a
aposentadorias integrais, enquanto outros não usufruem dos
mesmos benefícios. Se um direito exclusivo aqui impera, há
manifestamente não um direito, mas um privilégio. No Antigo
Regime, assim como no Brasil atual, os direitos exclusivos

12
Sieyès, Ensaio sobre os privilégios, p. 1.

49
ELSEVIER

eram também assegurados constitucionalmente, sem deixarem


de ser, por isso mesmo, injustos e, consequentemente, objetos
da ação política.
Do ponto de vista fiscal, a “chave para compreender a
estrutura dos direitos de propriedade no Antigo Regime consiste
em compreender que o poder régio de taxação era absoluto e
uma vasta burocracia dependia do favor régio”,13 aí incluindo
a venda de cargos, prebendas e privilégios. Os privilégios se
sustentavam por uma espécie de âncora fiscal que os financiava.
Logo, a estrutura estatal francesa estava baseada num regime
fiscal fundado em um tipo de poder que controlava, pelo
monopólio da força, toda a população. Mais concretamente, o
Estado francês tinha como pilar uma espécie de propriedade
privada defectiva. Isto é, uma forma de propriedade privada
defectiva impedia o desenvolvimento da propriedade privada
no sentido completo do termo.
Segundo Sieyès, tratava-se da oposição entre a proprie-
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

dade privada e os privilégios, a propriedade defectiva, entre


os revolucionários e os membros do Antigo Regime. Os defen-
sores da verdadeira propriedade privada contra os defensores
da propriedade defectiva. É como se ele escrevesse contra o
patrimonialismo, tão corrente no Brasil de hoje, onde funções
públicas são aparelhadas como se fossem a propriedade priva-
da de alguns. Pense-se, também, no loteamento do Estado entre
partidos políticos, que aproveitam as suas respectivas posições
para a concessão de privilégios aos seus, frequentemente es-
cusos. “Certamente, é ter uma singular ideia da propriedade
confundi-la com as funções públicas.”14 O Estado brasileiro

13
North, Douglass C. & Robert Paul Thomas. The Rise of the Western World. A new
economic history. Cambridge: University Press, 1996, p. 122.
14
Sieyès, op. cit., p. 42.

50
ELSEVIER

aparece, assim, como se fosse um Estado de Antigo Regime,


embora se apresente como de esquerda.
Uma outra forma moderna de privilégio consiste em
um regime tributário que concede determinadas isenções ou
benefícios fiscais que respondem, apenas, aos interesses de
um certo setor econômico, e não a todos. Um Estado que se
caracteriza por uma colcha de retalhos no que diz respeito às
formas de tributação e a benefícios fiscais sempre particulares
é um Estado baseado no privilégio e no poder que o ato de pri-
vilegiar caracteriza. Uma redução uniforme de impostos para
todos os setores da economia e para todos os contribuintes,
por exemplo, consistiria numa ação que teria como finalidade
abolir os privilégios, os “direitos exclusivos”.
Observe-se, igualmente, que Estados ancorados numa
extensa lista de “direitos exclusivos” são Estados mais pro-
pensos à corrupção e a tendências autoritárias. À corrupção,
porque dispensar privilégios corresponde a atitudes que po-
dem ser “compradas” pelos setores favorecidos, que, então, se
apropriam, em benefício próprio, para si exclusivamente, de
uma parte dos recursos públicos, que deveriam estar voltados
para todos. Às tendências autoritárias, porque os responsáveis
governamentais se habituam à ideia de que tudo sabem, de que
conhecem o que é melhor para a sociedade em seu conjunto. A
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

inclinação para a onisciência vem acompanhada da inclinação


para a onipotência. A seguinte afirmação de Sieyès se aplica
a tal situação: “Conceder um privilégio exclusivo a alguém
sobre o que pertence a todo o mundo seria prejudicar a todos,
para alguns.”15
Com a nova doutrina do direito natural, a qual é com-
partilhada por Paine e Sieyès, que acompanha as grandes

15
Ibid., p. 3.

51
ELSEVIER

transformações históricas ocorridas então nos domínios social,


econômico, político e cultural, surgiram novos princípios que
deveriam, doravante, nortear as relações humanas. Richard
Schlaer16 emprega uma imagem muito boa para caracterizar
esse período de transformações, utilizando-se da distinção
entre propriedade e privilégio. Os novos proprietários, que
amealharam riquezas graças ao seu trabalho, mérito e esforço
estavam inseridos num jogo cujas regras lhes eram desfavo-
ráveis, porque conferiam privilégios a alguns jogadores em
detrimento de outros. Apesar desses privilégios, conseguiram
ganhar o jogo, mas se defrontaram com o resultado de que
o prêmio continuava a ser dado aos mesmos privilegiados,
por razões de nascimento e tradição, fundamentadas nas leis
vigentes. Partiram, portanto, para um tipo de ação política
que tinha como meta uma mudança das próprias regras e
princípios que presidiam esse jogo, de modo que se tornassem
igualmente válidos para todos. Doravante, o jogo se faria em
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

igualdade de condições, sem privilégios. O desfecho seria


a afirmação da propriedade privada e o fruto desigual dos
esforços e trabalhos de cada um, sem nenhum privilégio no
ponto de partida, começo do jogo.

2. Propriedade e lei
O objeto da lei “consiste, sem dúvida, em impedir que
não seja ferida a liberdade ou a propriedade de qualquer
um”.17 Primeiro, cabe ressaltarmos que a lei, no sentido ver-
dadeiro do termo, reside em proteger a liberdade e a proprie-
dade. Logo, não é qualquer lei nem qualquer Constituição

16
Schlaer, Richard. Private Property. The History of an Idea. New Jersey: Rutgers
University Press, 1951, p. 126.
17
Sieyès, op. cit., p. 2.

52
ELSEVIER

que correspondem a essa definição. Há leis, por exemplo, que


permitem atentados à propriedade, como aquela que os movi-
mentos ditos sociais se utilizam para suas ações políticas, sob
o manto do cumprimento da “função social da propriedade”.
Se esse dispositivo constitucional serve para acobertar ações
revolucionárias ou decisões judiciais que se voltam contra a
propriedade privada e a economia de mercado, trata-se de
uma lei que perdeu o seu objeto próprio. Segundo, notemos
o nexo essencial que Sieyès estabelece entre a liberdade e a
propriedade. Um atentado cometido contra a propriedade
privada equivale a um atentado contra a liberdade. Se uma
sociedade, como a brasileira, vítima de ações sistemáticas
contra a propriedade privada no campo e também na cidade
por parte do MST, do MLST, da CPT e de organizações con-
gêneres, não consegue assegurar a propriedade, ela se torna
refém de atos que procuram, na verdade, destruir a própria
liberdade, embora aparentemente se apresentem sob o man-
to da justiça social. Essa cobertura significa somente que os
objetivos velados da violência revolucionária permanecem es-
condidos, no caso a implementação do socialismo autoritário.
Para Sieyès, a igualdade significa igualdade perante a
lei e não igualdade social, que se mediria, por exemplo, por
uma igualdade de salários ou de rendimentos para todos. Ele
se distancia de toda a tendência igualitarista social, oriunda
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

também da Revolução Francesa. A verdadeira cidadania, para


ele, é aquela que se obtém quando todos são iguais perante a
lei, sem os privilégios obtidos por intermédio do nascimento
ou dos costumes. Uma sociedade de privilegiados, que usu-
fruem de direitos exclusivos, é uma sociedade onde nem todos
são iguais perante a lei. Isto significa também a impessoalidade
dessa relação civil, pois não está baseada em relações pessoais

53
ELSEVIER

que privilegiariam uns em detrimento dos outros. Uma socie-


dade em que a observação da lei depende de relações pessoais,
é uma sociedade privilegiada no pior sentido sieyessiano do
termo, porque diferencia os cidadãos, fazendo a lei valer para
alguns e não para todos.
Insistamos no ponto segundo o qual a igualdade civil
se caracteriza por ser impessoal, não dependendo de favores
pessoais. A burocracia brasileira, por sua vez, é um exem-
plo de como a igualdade civil não vigora plenamente, na
medida em que as relações pessoais terminam imperando,
em detrimento do reino impessoal da lei. Não é um favor
que uma determinada regra seja cumprida, mas um direito
do cidadão. Os direitos civis são efetivamente exercidos lá
onde uma mesma lei, uma lei comum, geral e abstrata, é
válida para todos. Se um Estado é esquartejado em sua le-
gislação, oferecendo privilégios e direitos exclusivos a uns,
e os subtraindo dos demais, ele faz com que a coisa pública
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

venha a ser apropriada por uma minoria. Se há um povo à


parte dentro do Estado, temos uma situação de iniquidade,
imperium in imperio.18
Sieyès distingue pertinentemente o mérito do privilé-
gio. Uma pessoa que se destaca por seu mérito tem um lugar
especial na sociedade, que não pode ser identificado a um
privilégio. Aquilo que uma pessoa conquista por si mesma
é um valor seu que, enquanto tal, é reconhecido por todos,
podendo se traduzir pelo reconhecimento social, por bens e
propriedades. Ele concede toda a sua importância a uma so-
ciedade que se diferencia pelo mérito de seus membros, que
conquistam, assim, posições próprias. A sociedade, tal como
ele a concebe, é diferenciada pelo valor das pessoas, não sen-

18
Ibid., p. 31.

54
ELSEVIER

do uma sociedade indiferenciada pela igualdade de salários,


onde, independentemente do esforço, do valor e do mérito
de cada um, todos receberiam os mesmos rendimentos. A
indiferenciação social produz uma sociedade de preguiçosos,
que desprezam o mérito e o valor individual, imperando a
mediocridade do coletivo. Os talentos se desenvolvem numa
sociedade de livre concorrência.
Cabe à lei salvaguardar a propriedade e não distribuí-la.
A lei, segundo Sieyès, não está baseada na justiça distributiva,
mas na justiça comutativa, fundada no respeito aos direitos
de propriedade de cada um. Não é função da lei tirar de uns
para dar aos outros, salvo, evidentemente, em casos de penúria
extrema. A lei garante o comércio de todos. É na observância
dos contratos que uma sociedade se desenvolve. O respeito aos
contratos é a condição mesma do crescimento econômico e do
desenvolvimento social. O ponto central consiste em que não
cabe à lei, isto é, ao Estado, impedir ou obstaculizar que cada
um segundo suas capacidades naturais, seus talentos, seus
esforços e seu conhecimento amealhe uma quantidade maior
de bens, de tal maneira que seja mais próspero do ponto de
vista de suas propriedades. Não é função do Estado equalizar
essa desigualdade, que é fruto da liberdade.
“Não se sabe que toda obra da qual se afasta a livre con-
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

corrência será feita de uma forma mais cara e mal feita?”19 Só a


livre concorrência pode fazer florescer uma sociedade baseada
na livre iniciativa e, como diríamos hoje, no empreendedo-
rismo de cada um. Sieyès se insurge contra todas as formas
de monopólio, embora, em sua época, este fosse identificado
principalmente a uma forma de monopólio político-estatal,

19
Ibid., p. 28.

55
ELSEVIER

baseado no poder daqueles que dispensavam os privilégios.


Seu ponto merece ser particularmente destacado na medida
em que permite ver que se trata, para ele, de trazer a livre
escolha para a sociedade, não ficando ela circunscrita ao que
é determinado pelo Estado, que estipula o lugar de cada um.
Uma sociedade controlada pelo Estado é uma sociedade inibida
em sua capacidade de se distinguir pelo mérito, pelo livre jogo
de suas iniciativas.
Se há um direito indissociavelmente vinculado ao da
propriedade é o direito de querer, o direito que cada um tem
de dispor de si mesmo em todos os níveis subjetivos e objeti-
vos, fazendo com que a liberdade de escolha seja o princípio
mesmo da ação individual. Eis por que nas democracias totali-
tárias, a abolição da propriedade privada é a condição mesma
através da qual o querer dos indivíduos, dos súditos, vem a
ser controlado e moldado pelo Estado. No momento em que
os indivíduos são, por assim dizer, suspensos à vontade do
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Estado, eles não têm mais direitos a ser exercidos, mas tão só
obrigações apresentadas como deveres coletivos. A estatização
dos meios de produção, da propriedade privada, visa a alienar
o indivíduo de si mesmo, de forma que ele venha a perder a
propriedade de si. Ele se torna propriedade do Estado. Há,
portanto, um significado propriamente subjetivo da proprie-
dade, uma propriedade inalienável do cidadão: o direito de
querer, a livre escolha.
Daí não se segue, porém, uma sociedade idílica, pois
inocente não é o homem. “Seria bem desconhecer os homens li-
gar o destino das sociedades a esforços de virtude.”20 Palavras
sábias de um homem envolvido na tormenta revolucionária,
ciente de que os vícios estão tão ou mais presentes que as

20
Ibid., p. 86.

56
ELSEVIER

virtudes. Sua preocupação consiste nos pilares da sociedade


e no jogo dos mecanismos institucionais enquanto condições
mesmas da vida humana politicamente organizada. Ou seja,
a questão não reside na existência de homens virtuosos, mas
no jogo das instituições, no estabelecimento de leis comuns,
que derivem de todos e sejam por todos obedecidas. Apostar
na virtude significaria desconhecer a natureza humana, em
sua propensão natural para a cobiça do bem alheio, em sua
tendência incessante para a produção de conflitos, na busca
frequentemente desenfreada dos interesses particulares.
Sieyès lembra aqui Kant quando este utiliza a expressão:
“essa má raça humana”.21 A moralidade e as instituições nas-
cem, precisamente, de uma compreensão não embelezada da
natureza humana.
“As desigualdades de propriedade e de indústria são
como as desigualdades de idade, de sexo, de tamanho etc. Elas
não desnaturalizam a igualdade do civismo.”22 As desigual-
dades sociais próprias do exercício do direito de propriedade
não contradizem a igualdade propriamente civil, que encontra
sua base nessas diferenciações naturais. Chama particular-
mente atenção o fato de Sieyès identificar as desigualdades de
propriedade e de indústria a desigualdades naturais como a
idade, o sexo e o tamanho. A sociedade humana é fundamen-
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

talmente diferenciada, pois os indivíduos, sob várias relações,


são desiguais. A igualdade é um termo relacional que exige um
critério de comparação. Indivíduos que têm uma propriedade
comum que os torna iguais são, porém, diferentes sob uma
série de outros aspectos. Seguindo o exemplo de Sieyès, se a

21
Kant, I. “Anthropologie in pragmatischer Insicht”. In Schrien zur Anthropologie,
Geschichtsphilosophie, Politik und Pädagogik 2. Frankfurt am Main, 1977.
22
Sieyès, op. cit., p. 88.

57
ELSEVIER

idade é o critério, todos os indivíduos, sob esse aspecto, são


iguais se têm a mesma idade. Em relação aos de idade diferen-
tes são desiguais. A igualdade é vista sempre a partir de um
determinado aspecto, o que faz com que, sob outros aspectos,
a desigualdade seja preponderante.
Ora, a igualdade civil é uma forma de igualdade sob o
aspecto da igualdade de todos perante as leis, na medida em
que, sob esta ótica, os indivíduos são dotados dos mesmos
direitos. Daí não se segue, entretanto, que todos tenham o
mesmo número de bens ou o mesmo valor no que diz respeito
a propriedades. Isto é, todos devem ter o mesmo direito à pro-
priedade, embora a condição seja que a propriedade de cada
um se diferencie da dos demais. Tenderia a dizer que Sieyès
estabelece o princípio de uma República de proprietários, que,
enquanto tal, graças ao exercício do direito de propriedade,
faz com que cada um utilize o seu direito de querer, a sua livre
escolha, o desdobramento dos seus talentos e o esforço de seu
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

trabalho em busca dos bens que lhe derem maior satisfação. A


desigualdade das propriedades nasce do exercício mesmo do
direito de propriedade. Uma República de proprietários é uma
república de iguais do ponto de vista dos direitos civis e de
desiguais do ponto de vista social.

3. Livre escolha e marcos institucionais


A propriedade privada floresce onde os marcos institu-
cionais possibilitam o seu fortalecimento. Isto significa que as
sociedades que cresceram economicamente e se desenvolveram
socialmente são aquelas que asseguraram a proteção das inven-
ções, a aquisição dos bens e a validade dos contratos, confiando
na livre iniciativa. O argumento central de Douglass North e
Robert Thomas consiste na relação por eles estabelecida entre
a iniciativa individual e os marcos legais e institucionais que a

58
ELSEVIER

garantam e legitimem. Nesta perspectiva, não há possibilidade


de que o empreendedorismo se desenvolva se os direitos de
propriedade não são garantidos, criando uma insegurança
jurídica que termina coibindo as iniciativas individuais. A
questão não reside apenas, por assim dizer, numa opção pela
livre escolha, mas numa opção pela livre escolha a partir de
marcos institucionais que a viabilizem e perenizem.
Douglass North e Robert Thomas trabalham com os
conceitos de taxa privada e taxa social de retorno.23 A taxa
privada é a soma dos rendimentos que a unidade econômica
recebe por realizar uma atividade. A taxa social, por sua vez,
consiste no total dos rendimentos líquidos que a sociedade ex-
trai da mesma atividade. A taxa social leva, portanto, em conta
os ganhos coletivos da atividade individual, o impacto dos
rendimentos desta sobre o social. No caso de uma taxa privada
e social de retornos positivas, a sociedade está favorecendo
a iniciativa individual, assegurando o seu desenvolvimento
e produzindo rendimentos que beneficiem a coletividade no
seu conjunto. Pode ocorrer, como frequentemente ocorre,
que uma sociedade não perceba o ganho de ter assegurado
os direitos de propriedade e os mentores e agentes políticos
de ideias antipropriedade terminem por obstaculizar a inicia-
tiva individual. Eles inviabilizam, assim, que a coletividade
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

possa usufruir de uma taxa social de retorno, com os seus


rendimentos correspondentes.
As organizações socioeconômicas eficientes são aquelas
baseadas no “estabelecimento de arranjos institucionais e di-
reitos de propriedade que criam um incentivo para canalizar
o esforço econômico individual para atividades que trazem a

23
Douglass North e Robert Thomas, op. cit., p. 1.

59
ELSEVIER

taxa de retorno individual próxima à taxa social”.24 Forma-se,


então, um tripé entre a iniciativa individual, os arranjos insti-
tucionais baseados no direito de propriedade e os rendimentos
sociais. Isto pressupõe que tal forma de sociedade, identificada
a uma economia de mercado onde vigora o estado de direito,
funcione plenamente segundo os marcos legais que ela se dá. E
esses marcos legais são os fundados no direito de propriedade a
partir de uma noção de homem enquanto indivíduo, cujo livre
esforço tem todo o direito a desenvolver-se.
Sob esta ótica, estados autoritários seriam considerados
como organizações ineficientes ou deficientes, por não darem
espaço à liberdade individual de escolha, não reconhecerem
ou eliminarem o direito de propriedade e por terem, por via
de consequência, rendimentos sociais menores àqueles que
teriam se a liberdade de escolha estivesse assegurada. Aliás,
esse tipo de regime, como o comunista, terminou produzindo
uma sociedade na qual havia uma completa disparidade entre
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

a taxa individual e a social de retorno. Lá, graças à atuação do


Estado, a sociedade foi reduzida à uniformização própria de
uma militarização do campo humano, com parcos rendimentos
sociais.
Os custos e os benefícios sociais afetam a toda a socie-
dade. Se, por exemplo, o direito de propriedade não é asse-
gurado na construção de moradias, reinando a insegurança
jurídica, menos moradias serão construídas e menores serão
os rendimentos coletivos, assim como os benefícios sociais daí
decorrentes. Uma discrepância entre os benefícios (ou custos)
privados e sociais pode produzir uma situação em que, numa
relação econômica, uma terceira pessoa, ou parte, possa, sem o

24
Ibid., p. 1.

60
ELSEVIER

consentimento das outras, beneficiar-se dos ganhos de terceiros


sem arcar com os seus custos. Se os direitos de propriedade não
são claramente definidos, pode acontecer que a sua usurpação
beneficie a partidos ou grupos sociais que não teriam direitos
a tais ganhos.
No caso de uma desapropriação de terras, como acontece
no Brasil, ou de empresas, como na Bolívia, tal discrepância
entre a taxa de retorno individual e a social faz com que a so-
ciedade entre numa fase tendencial de menores rendimentos.
Indivíduos e empresas começam a se retirar de áreas eco-
nômicas (ou de países) de risco. O mesmo vale para a carga
tributária que, por seu tamanho, elevada aparentemente para
melhor suprir as demandas dos mais desfavorecidos, termina
por desfavorecê-los ainda mais pela diminuição da oferta de
empregos e por menor crescimento econômico. Neste caso,
é uma terceira parte que usufrui dos ganhos individuais e
sociais: o Estado e a sua burocracia, quando não a corrupção
e o desperdício.
Douglass North e Robert Thomas dão frequentemente o
exemplo de invenções, que remetem aos problemas hoje muito
debatidos do direito de propriedade intelectual, relativos a
patentes e, de modo mais geral, aos direitos de propriedade
decorrentes da ciência, da tecnologia, isto é, do conhecimento.
Uma sociedade incapaz de assegurar o direito de proprieda-
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

de intelectual não dá nenhum incentivo a que pesquisadores


e empresas se dediquem à resolução de problemas, que são
importantes para a sociedade em seu conjunto. Se uma pessoa
ou empresa não tem assegurado o retorno de seu esforço, de
seu trabalho, ela se sente desestimulada em perseguí-lo, com
o resultado de que a taxa social de tal atividade, por não ter
podido realizar-se ou por ter se realizado precariamente, será
nula ou muito pequena.

61
ELSEVIER

No Brasil, há uma grande discussão sobre quebra de


patentes na área farmacêutica que suscita ampla adesão po-
lítica, embora, a longo prazo, seus efeitos sejam perversos.
Imediatamente, patentes de remédio quebradas terão como
contrapartida medicamentos mais baratos. A médio prazo, no
entanto, se essa for a política adotada, menos empresas se dedi-
carão à pesquisa e menores serão, no futuro, os medicamentos
produzidos para doenças que não podem hoje ser tratadas. A
demagogia joga com uma aparente taxa social de retorno para
uma atividade resultante da quebra de patentes, quando, na
verdade, por ferir o direito de propriedade, inviabiliza, para o
futuro, uma taxa social de retorno condizente com atividades
individuais e empresariais livres e legalmente asseguradas. Se
uma lei garante o direito de propriedade para inovações, essas
serão estimuladas e a sociedade beneficiada.
Para que tenhamos propriedade privada no sentido
estrito, é necessário, entre outras condições, que haja o direito
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

de usufruto dessa propriedade e o direito de aliená-la. Se essas


condições não são preenchidas, teremos uma propriedade
imperfeita, incompleta, defeituosa. Se há a posse de um de-
terminado bem imóvel numa favela, sem a possibilidade de
aliená-lo livremente segundo regras legalmente estipuladas,
essa forma de propriedade é defeituosa e os seus benefícios
sociais e econômicos incompletos, pois o seu usufruto é
restrito.
Monopólios, políticos ou econômicos, formas de mercan-
tilismo e império da burocracia são, nesta perspectiva, formas
defectivas e incompletas de propriedade, não podendo ser
relacionadas à propriedade privada estrito senso. O conceito
de monopólio utilizado por Douglass North e Robert Thomas
não se refere apenas ao conceito corrente de monopólio de

62
ELSEVIER

mercado econômico, mas tem um significado mais amplo, pois


pode se referir também ao monopólio profissional, político ou
de segurança. Foi o caso, analisado por eles, do monopólio da
proteção, da segurança, conquistado pelos reis franceses, que
passaram, de posse deste bem, a explorar mais diretamente os
setores que lhes financiavam o sustento através de impostos.
O seu exemplo corresponde à França da década de 1430, sob
o reinado de Charles VII. Sob o seu controle, ele conseguiu
criar um exército poderoso, capaz de defender os bens e a
integridade dos seus súditos. Foi graças a esse monopólio que
se inaugurou uma nova forma do Estado francês, porque foi
lá que se desenvolveu o controle régio sobre o fisco, sobre a
capacidade e o direito de arrecadação.
Seguiu-se daí que a monarquia francesa25 passou a
estipular e regular pormenorizadamente, durante o mercan-
tilismo, a produção e o comércio de mercadorias, impedindo o
desenvolvimento de um efetivo mercado nacional. A economia
de mercado se encontrava, desta maneira, impedida. O Estado
concedia “direitos”, de fato formas defectivas de direito de
propriedade, a monopólios e guildas, em troca dos impostos
que podia extrair desses setores, altamente fiscalizados. Pode-
se, portanto, falar de direitos de propriedade mercantilistas,
direitos incompletos de propriedade. Mutatis mutandis, po-
demos igualmente observar que os Estados atuais fortemente
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

centralizados, com uma burocracia que estipula e determina


as formas de produção, de comércio e de serviços, favorecem
alguns setores em detrimento de outros, obstaculizando o
funcionamento impessoal do mercado. Assim fazendo, eles
estabelecem uma espécie de reserva de mercado para determi-
nados setores, concedendo fortes subsídios a estes, recorrendo

25
Ibid., p. 126.

63
ELSEVIER

a direitos de propriedade mercantilistas, que, frequentemente,


impedem o pleno desenvolvimento de relações de mercado.
O resultado se dá no apoio a empresas ineficientes, que vivem
de privilégios, sendo incapazes de enfrentar uma verdadeira
competição.
Relações de direito deveriam ser relações impessoais,
de tal maneira que todos os diferendos não dependessem de
relações pessoalizadas ou de mudanças de leis que favoreces-
sem a determinados setores, obtidas graças a contatos pessoais.
Douglass North e Robert Thomas relatam que, a propósito da
Inglaterra dos anos 1630, políticos capitaneados por Coke26
tentaram e conseguiram subtrair os direitos de propriedade do
domínio régio, transferindo-os para o corpo de leis impessoais
garantido pelos tribunais (Courts). Os autores sublinham, desta
maneira, o papel de leis impessoais, que contribuem fortemente
para o desenvolvimento de uma economia de mercado, que,
por definição, está ancorada no direito de propriedade privada.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Podemos ainda dizer, nesta linha argumentativa, que a impes-


soalidade é um traço tanto da economia de mercado, quanto
do estado de direito, sendo uma comum condição de ambos.
Quando leis são pessoalizadas, beneficiando explicitamente
alguns setores em detrimento de outros, a economia de merca-
do entra em processo de disfunção. Se o estado de direito, por
sua vez, não é obedecido, a economia de mercado e os direitos
civis estão ameaçados.
Em sua longa diatribe contra a monarquia inglesa, ad-
vogando pela república, e em sua luta pela independência,
Thomas Paine defendia a propriedade dos americanos, que
estaria em perigo pelas medidas tomadas pelos ingleses.27

26
Ibid., p. 148.
27
Paine, Common Sense, p. 102.

64
ELSEVIER

Ou seja, ele se colocava como defensor da propriedade e não


contra ela, como uma apressada leitura de tipo socialista pode-
ria deduzir de sua afirmação relativa à igualdade natural dos
homens. Paine se insurge precisamente contra a precariedade
da propriedade, que pode se revelar através de aumentos
intempestivos de impostos. São inúmeras as manifestações
contidas neste opúsculo concernentes à preservação da proprie-
dade, dos bens, que não podem ser destruídos. Se a propriedade
não é garantida, o governo não dá conta de sua tarefa básica
consistente em assegurar a paz pública.28 Se a paz pública não
é assegurada, se a segurança não é preservada, coloca-se a
questão: para o que serve o dinheiro dos impostos? Exações e
arbítrios tributários são considerados por Paine como atentados
contra a propriedade.
Em seu escrito posterior sobre Os direitos do homem, ele
retoma essa questão, seguindo a mesma linha argumentativa,
desta feita reforçada pelos eventos revolucionários franceses.
Num governo representativo, relacionado ao governo repu-
blicano, todos os indivíduos têm uma propensão natural à
política, à vida pública, pois dela depende a preservação de sua
propriedade.29 Se se descuidarem, o governo pode extrair uma
parte maior dos seus bens por intermédio de um aumento dos
impostos. No entanto, esse cuidado para com a coisa pública é
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

feito desde uma perspectiva individual, baseada nos assuntos


privados do cidadão, que tem todo direito ao usufruto de seu
trabalho e de sua propriedade. A relação é clara entre a livre
escolha pessoal, a propriedade, a segurança e uma pequena
arrecadação de impostos. “Todo homem deseja seguir sua
profissão e gozar os frutos do seu trabalho e o produto de sua

28
Ibid., p. 116.
29
Paine, Direitos humanos, p. 159.

65
ELSEVIER

propriedade em paz e segurança e com o mínimo possível de


gastos.”30
Um ponto central do argumento de Douglass North
e Robert Thomas consiste na relação por eles estabelecida
entre instituições e propriedade privada. Naqueles países
em que as instituições protegem a propriedade privada
completa – não a defectiva –, as empresas capitalistas se
desenvolvem através de um mercado em expansão, interna e
externamente. Na ausência dessas instituições, observamos,
ao contrário, vários entraves que se sustentam graças ao
apoio dado aos direitos de propriedade defectivos, fazendo
com que o mercado não se expanda, enquanto os privilégios
e os favorecimentos se fortalecem. Estados baseados em
direitos exclusivos, frequentemente ditos “direitos adquiri-
dos”, reatam, neste sentido, com políticas que poderiam ser
ditas “mercantilistas”, embora possam se apresentar como
avançadas socialmente. Em nome da justiça social, voltam,
na verdade, para o passado da injustiça.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

4. Propriedade e pessoa
No caso da posse, forma incompleta da propriedade, há
uma apropriação de fato, geralmente reconhecida pela comu-
nidade, que assegura que um bem físico determinado pertença
a uma certa pessoa. A posse tem essa conotação propriamente
física de relação a um determinado bem, enquanto a proprie-
dade tem não apenas o reconhecimento da autoridade pública,
mas vale também para bens incorpóreos e, no sentido clássico,
para toda a pessoa, aí incluindo a sua subjetividade. O proble-
ma, contudo, reside na dissociação entre posse e propriedade,
enquanto fontes concorrentes de disputa por um mesmo bem,

30
Ibid., p. 171.

66
ELSEVIER

quando o que está em questão é o próprio direito de proprieda-


de e o seu reconhecimento pelos litigantes. O viés ideológico é
introduzido quando entra em linha de consideração a noção da
posse como “direito autônomo”,31 pois aí estamos no terreno
propriamente político, onde intervêm as organizações políticas
autointituladas movimentos sociais. Ou seja, quando a disputa
entre posse e propriedade ganha a conotação de uma suposta
aplicação da “função social da propriedade”, por intermédio
da ação direta do MST, MAB (Movimento dos Atingidos pelas
Barragens), Sem-Teto e organizações congêneres, o terreno pró-
prio da lei é abandonado em proveito do da justificação de suas
transgressões. A questão é ainda da maior importância, pois o
novo Código Civil, no art. 1.228, §§ 4o e 5o e o próprio Estatuto
da Cidade podem, segundo a interpretação judicial, dar gua-
rida a essa forma de relativização do direito de propriedade.
Sob esta ótica, devemos evitar a identificação corrente
entre a crítica da propriedade privada e a crítica a certos valores
que alguns autores deduzem como pertencendo necessaria-
mente a essa forma de valorização da pessoa. Refiro-me, aqui,
a uma certa confusão em meios católicos no que diz respeito a
uma contraposição entre catolicismo e capitalismo, como se o
catolicismo tivesse uma doutrina social e econômica que fosse
radicalmente excludente em relação a uma economia de merca-
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

do, com a plena realização da propriedade privada. O que há é


sim uma discussão entre certos valores cristãos e certos valores
decorrentes de uma economia de mercado,32 com a ressalva de

31
Agradeço ao Dr. João Paulo R. Paschoal esse e outros comentários sobre a
questão da posse e da propriedade.
32
Para uma defesa da propriedade privada e sua compatibilidade com os valores
cristãos, cf. o livro de Adolpho Lindenberg. Os católicos e a economia de mercado.
São Paulo: LTr, 2002, pp. 108-9.

67
ELSEVIER

se entender a economia de mercado sob uma forma plena ou


obstaculizada como ocorre nos ditos Estados emergentes. Ri-
chard Pipes cita um filósofo russo, Vladimir Soloviev, segundo
o qual, “os cristãos exortam seus seguidores a distribuírem suas
próprias riquezas, enquanto os socialistas pregam o confisco e
a distribuição da riqueza dos outros”.33
Alexander Gray,34 por sua vez, assinala justamente que
os Evangelhos não se insurgem contra a propriedade privada,
mas somente contra aqueles que fazem um mau uso dela, não
exercendo a caridade, que é um valor cristão. O problema não
reside na riqueza e na propriedade, mas no uso que delas é
feito, nas paixões egoístas, que também podem acompanhá-las.
Exemplo: o vinho não é uma má coisa, pelo contrário, embora
o seu uso excessivo o seja na embriaguez. Seguir preceitos
cristãos significa seguir a caridade, a abnegação, o dar de
si aos outros, o que supõe, evidentemente, que aquele que
dá deva ter o que dar, deva ser proprietário de algo. Se não
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

houvesse propriedade privada e o Estado tudo provesse, não


haveria, estrito senso, valores cristãos, pois a livre escolha
seria suprimida. Os valores cristãos supõem a livre escolha,
baseada na propriedade privada, dos que agem moralmente,
religiosamente.
Há uma identificação, indevida, entre individualismo
e egoísmo, ou ainda, entre o “amor de si” e o “egoísmo”, que
termina sendo o cavalo de batalha dos marxistas contra as
liberdades e o capitalismo. Boa parte da crítica cristã aos
valores da sociedade moderna está, também, imbuída desta
identificação. Pode-se dizer que o “amor de si” faz parte da

33
Pipes, Richard. Propriedade e liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 37.
34
Gray, Alexander. The Socialist Tradition. London, Longmans, Green and Co.,
1948, pp. 39-40.

68
ELSEVIER

natureza humana, faz parte do processo mediante o qual se


estrutura a personalidade individual. Se um indivíduo não se
ama, sua personalidade ficará desestruturada, abrindo caminho
para os mais diferentes comportamentos desviantes. Querer
fazer com que um indivíduo não se ame é típico de atitudes
totalitárias, que procuram controlar o processo de estruturação
do indivíduo, de modo que este perca suas balizas e se torne
presa fácil de um Estado que tudo controla. Evidentemente,
pode igualmente ocorrer que o egoísmo se desenvolva a partir
do amor de si, sendo, diria, um prolongamento natural deste,
não diretamente afeito à sociedade capitalista enquanto tal,
que pode potencializá-lo ou não. De qualquer maneira, o seu
desenraizamento conduziria a extirpar do homem a sua própria
humanidade.
A generosidade e a liberalidade que cada um utiliza em
relação às suas próprias coisas é, também, uma decorrência
do amor de si, que se traduz pelo amor ao próximo, pelo uso
que faz de seus próprios bens e propriedades. Não haveria
moralidade se não houvesse o processo de livre escolha en-
tre o egoísmo e a generosidade, entre a satisfação do desejo
individual e a consideração do desejo do outro. O amor entre
duas pessoas nasce precisamente desse equilíbrio, sem o qual
haveria meramente a imposição violenta de uma das partes. Se
o Estado viesse a regular completamente a “generosidade”, por
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

razões sociais baseadas na extinção da propriedade privada,


ele tornaria tudo obrigatório, eliminando o espaço da escolha
moral e tornando o indivíduo um mero instrumento de seus
desígnios superiores, sociais e coletivos. A crítica do individu-
alismo contemporâneo, em boa medida, repousa sobre a ideia
da eliminação mesma do indivíduo, constituindo a sua etapa
preparatória.

69
ELSEVIER

Marx e Engels, com a retórica que lhes é característica,


vinculam a sua concepção da burguesia à degradação moral,
como se os valores éticos fossem simplesmente redutíveis às
formas mais cruas de monetarização das relações humanas. Re-
tomando um leitmotiv da crítica dos aristocratas ao capitalismo,
incorporada igualmente por correntes cristãs que se colocam na
esteira do marxismo, eles atribuem à predominância dessa for-
ma de relação socioeconômica a vigência do “cálculo egoísta”
na sociabilidade humana. Vão mesmo além, atribuindo, num
evidente contrassenso histórico, à burguesia o primado sem
escrúpulos da liberdade econômica, como se não fosse ela que
realizou as liberdades civis e políticas, tornando o indivíduo o
centro do processo de livre escolha.
Quero dizer com isto que oposições excludentes se fazem
entre uma economia de mercado, baseada na propriedade pri-
vada, no estado de direito e na democracia representativa, e
uma economia estatal, que exclui precisamente a propriedade
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

privada, o estado de direito e a democracia representativa. Po-


deríamos ainda incluir antagonismos maiores ou menores entre
economias mais dirigidas e as menos dirigidas. Não se trata,
porém, de questões relativas a valores morais no sentido estrito,
mas de formas de organização das relações socioeconômicas e
políticas. É falso colocar um antagonismo entre cristianismo e
capitalismo se por isso entendermos, por exemplo, a abolição
da propriedade privada e a sua substituição por uma economia
“cristã”. A questão já se coloca de uma outra maneira se o ca-
tolicismo exigir a supressão da propriedade privada, em cujo
caso ele se colocará do lado do marxismo enquanto solução para
os problemas sociais, com todas as consequências daí decor-
rentes, dentre as quais a eliminação do próprio catolicismo em
um Estado centralizado e avesso às religiões. Opor-se a certos

70
ELSEVIER

valores morais decorrentes de uma economia de mercado não


significa substituir uma economia de mercado por uma estatal.
Segundo Locke, a propriedade possui um sentido amplo,
referente tanto a bens físicos quanto espirituais, que dizem
respeito à capacidade humana subjetiva de livre escolha. Cada
indivíduo tem direito à sua própria pessoa,35 ou seja, à inte-
gridade do seu corpo, dos seus movimentos voluntários e à
sua interioridade. Enfatizemos que o conceito de propriedade
aqui envolvido concerne tanto aos bens materiais quanto aos
imateriais da pessoa. Nesta última acepção, a propriedade
significa o completo controle de cada um sobre o seu próprio
processo de escolha de si mesmo. A propriedade diz respeito
à decisão sobre os atos voluntários, aquilo que chamamos de
liberdade de escolha. Isto significa que acordos, obtidos por
coerção, que reduziriam uma pessoa à escravidão ou à ser-
vidão, seriam considerados, desde sempre, como inválidos.
Hegel,36 por sua vez, retoma essa formulação sob a forma de
uma distinção entre propriedades alienáveis e não alienáveis.
Alienáveis são bens materiais como a terra, uma casa, um
carro. Bens inalienáveis são a subjetividade da pessoa e a sua
própria liberdade.
No que diz respeito aos bens físicos, Locke estabelece um
nexo essencial entre propriedade e trabalho. Uma coisa traba-
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

lhada, sobretudo no que concerne às coisas dadas pela terra, se


torna propriedade daquele que a labora.37 A transformação das

35
Locke, John. Two Treatises of Government. Chicago, New American Library, 1965.
Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1999, § 27. Cf.
também Roberto Fendt. “Sobre a liberdade individual e a propriedade privada”,
a ser publicado pelo IEE, Porto Alegre.
36
Hegel, F. Linhas fundamentais da filosofia do direito. Frankfurt am Main: Suhrkamp
Verlag, 1977, capítulo I.
37
Locke, § 27.

71
ELSEVIER

coisas que se apresentam objetivamente na natureza é a raiz da


propriedade, que agrega ao dado natural o humano, o esforço
e a energia do corpo que alteram o que se apresentava como
indeterminado. A atividade de extrair as coisas do seu estado
comum, aí incluindo a terra neste seu caráter indeterminado,
fixa um direito de propriedade.38 Os bens, genericamente con-
siderados, se situam em propriedades urbanas e rurais, que de-
vem ser preservados pela própria república, pela coisa pública,
porque “nenhuma sociedade política pode ser nem subsistir sem
ter em si o poder de preservar a propriedade”.39 Consequente-
mente, a própria existência da sociedade está condicionada à
preservação da propriedade. Sociedades que atentam contra o
direito de propriedade, na verdade, atentam contra a sua pró-
pria condição de possibilidade. Eis um problema com o qual
o Brasil se defronta, pondo em questão a condição mesma de
existência de uma sociedade livre.
A propriedade não pode ser reduzida apenas à posse
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

legalizada de um bem determinado, mas abarca a vida de cada


um, a sua segurança física e jurídica, a liberdade de mover-se e
satisfazer-se. Trata-se da livre disposição de seus movimentos
voluntários e dos seus bens, que são o patrimônio adquirido
e conservado por cada pessoa, aquilo que é o resultado de
suas atividades. Todos os homens têm igualmente direito ao
movimento voluntário. A igualdade tem aqui a significação de
uma igualdade de direitos em busca da satisfação particular,
ao pleno uso da razão na capacidade individual de livre esco-
lha. Pode-se ainda dizer que a igualdade assim compreendida
significa o mesmo direito à propriedade, válido para todos
que vivem sob uma sociedade política, sob uma república

38
Ibid., § 28.
39
Ibid., § 87.

72
ELSEVIER

(Commonwealth). Todo homem tem o direito e o poder de


preservar a sua propriedade, que é definida, por Locke, como
o direito de conservar “a sua vida, a sua liberdade e os seus
bens”.40 A propriedade consiste na “mútua preservação” dos
homens de “suas vidas, liberdades e bens”,41 unindo-se numa
república (Commonwealth), numa comunidade política.
“Por isso, o fim principal e capital da união dos homens
em repúblicas (Commonwealths) e de se colocarem sob go-
vernos é a preservação de sua propriedade.”42 Observemos que
Locke sublinha que a finalidade principal de uma comunidade
política consiste na “preservação da propriedade”, da qual de-
rivam todas as suas outras funções. E devemos entender que a
preservação da propriedade significa a preservação da “vida,
das liberdades e dos bens”, de onde derivarão as seguranças
física e jurídica, concernentes tanto aos bens físicos quanto
aos imateriais, tanto à vida quanto à liberdade. Se é dito que a
finalidade principal do Estado consiste em garantir a segurança,
deve-se compreender essa finalidade como a da conservação
da propriedade neste sentido amplo.
Assinale-se que a república (Commonwealth) significa
uma forma de tratamento da coisa pública, de tal maneira que
os membros dessa comunidade política tenham os seus direitos
individuais plenamente assegurados, em condições legais de
CAPÍTULO II Propriedade e privilégio

se defender do arbítrio do Poder Público. Este caracteriza-se,


frequentemente, por suas tentativas de apoderar-se da coisa
pública, em proveito daqueles que detêm o poder, seja um rei,
uma casta, um estamento, um partido ou um grupo social e
econômico. A república (Commonwealth) assim compreendida

40
Ibid., § 87.
41
Ibid., § 123.
42
Ibid., § 124.

73
ELSEVIER

está presente tanto nos romanos, como vimos no exemplo de


Cícero, quanto nos medievais.43 Não se trata, portanto, de um
regime de governo, como se a república fosse contraposta à
monarquia. Há monarquias republicanas e repúblicas não re-
publicanas. A monarquia constitucional inglesa, por exemplo,
é republicana, enquanto a república brasileira é claramente
defectiva em relação ao seu nome.
O governo arbitrário, por sua vez, é aquele que tira a
propriedade de seus membros, sem o seu consentimento. Im-
postos e contribuições são formas de extração da propriedade,
mexendo diretamente com os bens de cada um. Aumentos de
impostos e contribuições, que não sejam referendados pelos
contribuintes, são formas arbitrárias de transferência de pro-
priedades. Fica em aberto a questão de até que ponto este con-
sentimento seria verdadeiramente concedido na medida em que
passa pelo Poder Legislativo, que, assim, o autorizaria. Pode
ocorrer que esse poder atue fisiologicamente, afastando-se dos
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

cidadãos que seriam os únicos penalizados. Atos administrati-


vos de aumento de alíquotas, que não passem pelas instâncias
legislativas ou atos sumários internos à Receita Federal, que não
pressuponham um amplo direito de defesa dos contribuintes,
cairiam, nesta perspectiva, sob a denominação de arbitrários.
Nos governos municipais, surge constantemente esse arbítrio,
quando, por exemplo, há uma revisão dos valores dos imóveis
para fins fiscais de transferência de propriedades, onerando
quem comercia por um mero ato administrativo.

43
Cf. Kantorowicz, Ernst. The King’s Two Bodies. Princeton University Press, 1981,
em sua magnífica reconstrução da teologia política medieval.

74
Capítulo III

República de proprietários

Em países como o Brasil, sobretudo em suas áreas fa-


velizadas, por serem mais visíveis e expostas à mídia, porém
não apenas nelas, encontramos casas construídas em terrenos
cujos direitos de propriedade não estão adequadamente re-
gistrados. Verificamos, também, a existência de empresas sem
constituição legal e sem obrigações definidas, de indústrias e
negócios diversos que não são reconhecidos nem podem eles
ser financiados pelo sistema legal1. Isto significa que o capital aí
existente não é propriamente existente do ponto de vista de sua
capitalização possível, constituindo-se numa espécie de capital
morto, um capital que não pode ser devidamente multiplicado
por permanecer fora do sistema legal de propriedade. Posses
defectivas são ativos que não podem ser adequadamente va-
lorizados por entraves burocráticos e jurídicos, funcionando,
se assim se pode dizer, à margem da sociedade, porém sendo
dela dependentes e tributários.
A propriedade privada aí encontra dificuldades para
realizar-se concretamente. A sociedade convive com todo um
setor seu que não pode desenvolver-se por obstáculos admi-

1
Hernando de Soto. O mistério do capital. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001,
p. 20.

75
ELSEVIER

nistrativos e legais, que o confinam a uma posição subalterna


e socialmente carente. Cria-se um aparente paradoxo, pois esse
setor, potencialmente “rico”, não pode sair da “pobreza” por
um tipo de organização sociopolítica voltado para o favoreci-
mento de uma minoria, que goza de “privilégios”, proprieda-
des incompletas que não são universalizadas – e não podem
sê-lo – em virtude de seu caráter excludente. A pobreza não
seria efeito do “capital”, mas de sua inadequada valorização.
A exclusão não seria o resultado da propriedade privada, mas
de sua carência, de sua incompletude.
Ele funcionaria fora do Estado, não pagando impostos,
não tendo, ademais, adequada segurança. De fato, suas posses
não são regularizadas, porém tornam-se objeto de fiscalizações
e de toda sorte de empecilhos burocráticos. A insegurança im-
pera tanto nas atuações intermitentes dos agentes do Estado,
quanto na precariedade do seu modo de fazer negócios, sem
falar dos problemas da criminalidade e do crime organizado,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

que, frequentemente, ocupam o lugar vazio decorrente da falta


de policiais e de agentes da Justiça. A situação é a de um “Esta-
do não Estado” dentro do próprio Estado, ambos interagindo,
espreitando-se mutuamente e, dependendo da conjuntura
política, tentando funcionar uniformemente, como quando
há projetos concretos de introdução desse setor na sociedade
propriamente organizada. Em outras palavras, coloca-se a
questão do estatuto das regras que regem esse tipo de relação
não estatal, pois os incompletamente cidadãos agem de acordo
com normas que têm para eles validade, embora não sejam
propriamente reconhecidas pelo sistema legal em vigor para
o conjunto do Estado.
Seguindo a tradição filosófica moderna, poder-se-ia
recolocar essa questão em termos “contratualistas”, a partir
de uma indagação centrada na validade dessas regras e em

76
ELSEVIER

sua importância para o próprio processo de instituição do


Estado. O direito natural moderno tem como princípio a ideia
de que indivíduos livres, na ausência de um poder a eles
superior, que lhes assegure a preservação dos seus bens e de
suas vidas, tendem a se organizar segundo normas que sejam
igualmente válidas para todos, constituindo, graças a esse pro-
cesso, um poder de natureza coercitiva, que tem como função
assegurar a cada um o gozo do seu trabalho e do seu próprio
esforço. Recolocando o problema em função dessa situação
brasileira – e latino-americana –, observamos uma condição
humana singular. De um lado, não há uma anomia completa
na medida em que o poder estatal continua vigorando, e os
que se encontram à margem se definem pelos que estão in-
cluídos na proteção legal e, de outro lado, eles são obrigados
a se constituírem autonomamente, dando-se um conjunto de
regras que termina tendo uma validade contratual. Surgirá aí
um sistema de espelhos entre “privilegiados” e “excluídos”,
“capitalistas” e “deserdados”, com todos os preconceitos hoje
vigentes contra a propriedade privada, como se dela derivasse
toda essa condição humana.
O “contrato social” formal gera capital por seu sistema
jurídico de propriedade, enquanto o “contrato social informal”
não gera capital, pelas condições de insegurança em que vigora.
CAPÍTULO III República de proprietários

O problema consistiria em que há duas formas de “contrato


social” aqui presentes: uma, na tradição do direito natural mo-
derno, seria o Estado propriamente dito de acordo com o pacto
sobre o qual se assenta, com todo o direito de propriedade daí
decorrente, com seu sistema legal e burocrático correspondente;
a outra, sendo uma outra forma de contrato social, implícito
ou explícito, em todo caso não integrado ao sistema estatal de
propriedade, que funcionaria conforme as regras que regem

77
ELSEVIER

esse sistema informal de posse, uma espécie de contrato social


sustentado por seus próprios agentes e atores. Esses o teriam
inventado para dar um mínimo de garantia às suas transações
e de segurança às suas “propriedades” defectivas.
Neste sentido, a existência de um sistema ilegal de “pro-
priedade”, apesar de ser um conjunto de normas que regem
as relações dos indivíduos que vivem e trabalham sob essas
regras, poderia constituir um contrato social implícito ou um
outro tipo de contrato social. O problema, no entanto, reside no
uso dessa ideia de “contrato social”, porque os indivíduos aqui
envolvidos não se encontram em um “estado de natureza”, em
uma condição de total ilegalidade ou de ausência de Estado,
mas suas ações e regras se definem por um sistema legal de
propriedade e, sobretudo, por um Estado que permanece, com
suas imperfeições, atuante. O ilegal se define pelo legal. O uso
da noção de contrato social, para ser apropriada, deveria re-
meter a uma condição de completa ausência do Estado, o que
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

não é, manifestamente, o caso. Ora, o Estado continua presente


pela participação política mesma desses cidadãos que votam e
elegem os seus representantes; essas pessoas são atendidas pelo
SUS e boa parte delas tem direito a aposentadorias, embora não
sejam contribuintes; as escolas às quais enviam seus filhos são
escolas públicas. Ou seja, o Estado continua presente e implí-
cito neste sistema defectivo de propriedade, determinando-o.
A questão reside principalmente no sistema defectivo de
propriedade e na ausência de segurança pública. Nos termos
em que esta situação é colocada no Brasil, ela significa que a
ausência do Estado nessas áreas se traduz pelo surgimento de
dois tipos de chefes, que impedem, para além das deficiências
estatais, que essa passagem ao sistema legal possa ocorrer
espontaneamente. Um tipo de chefe, cuja ação se alimenta

78
ELSEVIER

da existência desse sistema ilegal e dele tira dividendos, é o


que se traduz pelo comando do crime organizado. Seus líderes
são os xerifes desses lugares, surgindo, travestidos, como uma
forma de poder “estatal”, poder evidentemente perverso, que
obstaculiza a consolidação de um sistema legal de propriedade.
O segundo tipo de chefe surge nas áreas rurais, com os líderes
revolucionários, tipo MST e CPT, que apregoam a destruição
da economia de mercado e do estado de direito, em nome de
uma sociedade socialista, baseada na supressão da propriedade
privada e de seu sistema legal, considerado burguês. Enquanto
o governo pactuar com e/ou apoiar essas formas proibitivas de
acesso ao direito de propriedade, não haverá a possibilidade
de incorporação da população informal à formal. O nó consiste
no direito à propriedade privada, seja na sua forma criminosa
pura, seja na sua forma criminosa revolucionária.
Seria importante fazer a distinção entre um contrato
social no sentido do direito natural, instituído, grosso modo, por
indivíduos livres que se associariam por questões de unidade,
equidade e segurança, dos contratos que regem as relações
humanas em suas vidas privada e pública. Os contratos, no
primeiro sentido, envolvem toda uma discussão sobre o es-
tatuto de sua justificação, como se fosse necessário recorrer a
CAPÍTULO III República de proprietários

uma representação, ficcional ou real, relativa ao estado do ho-


mem pré-sociedade ou pré-Estado, em que se faria, sobretudo,
presente a liberdade inerente a cada um. Podemos prescindir
dessa estratégia argumentativa, considerando o Estado uma
forma de coletividade política, que, de certa maneira, preexiste
aos atos individuais contratuais. Por exemplo, pense-se que
todo indivíduo quando negocia, trabalha, casa e estabelece
as mais diferentes formas de relações contratuais supõe o Es-

79
ELSEVIER

tado como já existente, a partir de leis, poderes coercitivos e


formas de implementação de decisões individuais tomadas.
O Estado, por assim dizer, já comparece em qualquer relação
contratual. Logo, a estratégia argumentativa correta consistiria
em partir de relações contratuais baseadas na livre escolha
para remontar às suas condições de efetivação e implementa-
ção, em cujo caso se colocam as questões relativas ao cumpri-
mento dessas condições, tarefa que incumbe ao Estado. Um
Estado defectivo não conseguiria cumprir com essas funções,
fazendo com que as relações contratuais sejam imperfeitas,
obstaculizando o desenvolvimento da propriedade privada
ou, mesmo, o impedindo.

1. República e propriedade
O direito de propriedade é uma representação legal de
bens que podem ser livremente negociados, propiciando, desta
maneira, a sua valorização em capital. O direito de propriedade
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

não é apenas uma relação direta de uma pessoa com um bem


determinado, ou a relação do trabalhador com o produto do
seu trabalho, mas um sistema legal de reconhecimento. Isto
faz com que esse bem possa passar livremente das mãos de
uma pessoa à outra, segundo regras perfeitamente assentadas.
Trata-se de um sistema de conversão de bens em capital, um
sistema de reconhecimento recíproco entre proprietários, que
será tanto mais ágil quanto mais desburocratizado for. Pode-se
igualmente dizer que esse sistema contratual de propriedade
constitui o fundamento a partir do qual se ergue o sistema da
representação política: as instituições republicanas e a democra-
cia representativa.
Historicamente, o direito de propriedade é precariamen-
te assegurado entre nós. Isto vale tanto para as favelas – que

80
ELSEVIER

constituem, num certo sentido, um mundo à parte, regido


por normas que não se adequam totalmente ao sistema legal
de propriedade –, quanto nas invasões de terras no campo,
passando pelo desrespeito aos contratos. É como se os contra-
tos entre os particulares só devesse ser respeitado sob certas
condições que nem as partes sabem exatamente quais são. Em
outras ocasiões, eles podem ser cabalmente menosprezados
por ações coletivas que procuram enfraquecer a propriedade
privada com o intuito de eliminá-la. Pense-se, ainda, no se-
questro da poupança privada no governo Collor, quando essa
forma de propriedade foi flagrantemente afrontada. Atual-
mente, observamos uma desconsideração com as Agências
Reguladoras, o que implica também num desrespeito aos
contratos assinados, afugentando novos investidores pela
insegurança produzida.
Um país constituído de proprietários no sentido amplo
do termo, um país que valorize a propriedade, um país que
assegure aos seus o usufruto de seus bens, é um país em que
vigora o estado de direito e onde a sociedade se desenvolve
socialmente com crescimento econômico. E digo bem aqui que
a valorização da propriedade privada e não a sua consideração
como algo nocivo que deveria ser eliminado. Neste sentido, se
enfocarmos o problema a partir das favelas brasileiras, a tarefa
CAPÍTULO III República de proprietários

estatal deveria consistir em fazer valer o direito de propriedade


em seu sentido pleno nesses lugares em que as normas pro-
priamente estatais não regem. O país deveria ter como meta
tornar os seus cidadãos proprietários, pois a cidadania só pode
se desenvolver plenamente quando cada um tiver atendido às
suas necessidades de moradia, ao direito de usufruto de seus
bens. Cidadãos proprietários defendem melhor os seus direitos
e os da coletividade como um todo. Cidadãos proprietários não

81
ELSEVIER

estão propensos a apoiar ações de desrespeito à propriedade.


O direito à propriedade em todos os campos da atividade
humana assegura o crescimento econômico e o respeito aos
contratos. Mais especificamente ainda, com o direito à proprie-
dade assegurado, tendo se tornado um direito social, vindo a
fazer parte do imaginário de uma sociedade, os atentados à
liberdade ficariam muito circunscritos.
Num país como o Brasil, onde milhões de pessoas vi-
vem em situações precárias em relação à posse de moradia,
onde esse tipo defectivo de propriedade não é reconhecido
pelo sistema legal da sociedade, tornar essas posses precárias
propriedades no sentido estrito da palavra seria uma política
de ampla repercussão econômica, social e política. Econômica,
pois esses indivíduos poderiam empregar a sua energia e a
sua capacidade de empreendedorismo em um instrumento
de capitalização dos seus bens, ingressando, como cidadãos e
não como cidadãos de segunda categoria, no mercado. Social-
mente, pois esses indivíduos, pela valorização dos seus ativos,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

poderiam melhorar a vida dos seus familiares, vindo a gozar de


uma melhor condição social. Politicamente, pois se tornariam
menos submissos a políticas clientelistas e, mesmo, poderiam
se libertar, com ajuda do aparelho estatal, do crime organiza-
do. Também uma política habitacional, com juros acessíveis e
prestações fixas, propiciaria a aquisição de moradia própria
para os que ainda não a possuem. Haveria tanto a satisfação de
uma necessidade básica quanto o desenvolvimento do mercado
imobiliário, com mais empregos, renda e salários. Indivíduos
proprietários são menos propensos ao clientelismo político, que
termina se desenvolvendo pela ausência mesma de direitos.
As favelas constituem um terreno particularmente
favorável para uma política de regularização fundiária, que

82
ELSEVIER

possibilitaria a substituição da precariedade da posse pela pro-


priedade privada. A outorga de um título de propriedade faz
com que o cidadão venha a ser senhor dos seus bens, podendo,
segundo a sua livre escolha, dispor deles. A livre escolha dos
seus bens passa a ser um valor incorporado pelos beneficiados,
que passariam a agir conformemente a essa nova ideia. Não
estariam inclinados a acatar ações que atentem contra a livre
escolha exercida a partir do seu direito adquirido à proprieda-
de. A urbanização adequada dessas áreas, empreendida pelo
Estado, apareceria como uma política correspondente a essa
valorização da propriedade privada e do exercício do direito
nesta área, antes interditada para os que viviam sob essas con-
dições. Os seus habitantes ganhariam títulos de propriedade,
pagariam impostos e teriam, assim, a dignidade de cidadãos.
A autoestima de um proprietário se sobreporia à indignidade
de ser um favelado.
A informalidade faz com que as pessoas que vivem em
condições sociais precárias, como nas favelas brasileiras, não
consigam tornar os seus ativos instrumentos de seu próprio
desenvolvimento, enfrentando toda sorte de dificuldades e
prejudicando o próprio crescimento nacional. “Possuem” bens,
mas não podem deles dispor, ficando enredadas em regras
não reconhecidas pelo próprio Estado. Elas sobrevivem da
CAPÍTULO III República de proprietários

sociedade formal, mediante trabalho e venda de produtos, mas


numa espécie de gueto, numa sociedade fechada, submetida a
“normas” que não são as do sistema legal vigente. É como se
vivessem sob uma “legalidade” à parte, submetidas a pode-
res locais que suprem os de um Estado defectivo que não os
alcança plenamente.
Do ponto de vista político, essas pessoas gozam de di-
reitos, votando em eleições e elegendo os seus representantes
parlamentares nos diferentes níveis da Federação, assim como

83
ELSEVIER

os seus prefeitos, governadores e Presidente da República.


Aqui, é como se pertencessem ao Estado, escolhendo represen-
tantes que podem ou não defender os seus interesses. Optam
por pessoas que percebem, por sua aparência, como sendo
as mais aptas para a sua interlocução social e política. Desta
maneira, estão semeadas as condições do clientelismo político
e do populismo. Do ponto de vista social, no entanto, estão
segregadas, pois não gozam dos direitos próprios a relações
de trabalho contratuais, que asseguram benefícios de saúde,
aposentadoria e outros. Contribuem precariamente para o bem
comum, mas dele recolhem um benefício não proporcional a
suas atividades, por usufruírem de um tipo de propriedade
defectivo, que contamina o conjunto de suas relações. Do ponto
de vista econômico, essa contaminação é ainda realçada pelo
fato de não conseguirem usufruir plenamente de suas relações
de trabalho, de suas atividades e de seu empreendedorismo. O
fruto de seu trabalho é inadequadamente apropriado. A taxa
de retorno de sua atividade privada é inferior à taxa social de
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

retorno, fazendo com que muitos terminem por se abrigar no


bolsa-família ou no crime organizado, por oferecem um retorno
pessoal, imediato, maior. Se o Estado soubesse intervir nessas
esferas, assegurando o gozo pleno da propriedade privada, o
seu retorno seria maior, assim como o dos indivíduos vivendo
sob essas condições sociais, que poderiam melhor se dedicar
às suas atividades próprias.
Quando medidas estatais desse tipo não são tomadas,
observa-se uma deterioração das relações formais de trabalho,
com uma tendência de queda dos empregados com carteira
assinada e de aumento dos trabalhadores informais. O jogo dos
benefícios imediatos ofusca, para os próprios agentes e para o
governo que vive desse jogo, os interesses a longo prazo tanto
desses mesmos indivíduos quanto do Estado. Se a propriedade

84
ELSEVIER

privada fosse assegurada plenamente nesses guetos, a infor-


malidade tenderia a diminuir, porque não valeria mais a pena
exercê-la para os que estão aí envolvidos. Poder-se-ia dizer que
a informalidade, nas condições do gueto, foi aquela que melhor
se adequava ao ato de livre escolha. Se as condições mudam,
o ato de livre escolha vislumbra outras possibilidades, que
podem propiciar uma maior coincidência entre os benefícios
individuais e os coletivos. Se essas pessoas passam a atuar no
mercado formal, se as condições de saírem da informalidade se
apresentam pelo exercício da propriedade privada, o mercado
de trabalho se desenvolve, as relações contratuais se consoli-
dam, aumentam as contribuições previdenciárias e a economia
cresce. O problema, sob esta ótica, pode ser visto como eminen-
temente político ao tratar de uma questão de cidadania, relativa
à incorporação à legalidade e ao mercado propriamente dito
de indivíduos que dele vivem inadequadamente, à margem.
Uma situação particularmente grave no campo brasi-
leiro consiste na intermediação feita pelo MST junto à União
para a obtenção de terras para a suposta reforma agrária bem
como para financiamentos públicos, passando pelo bolsa-família
como forma de manutenção dos assentados e acampados. Esse
movimento se torna uma espécie de corretor entre duas partes
contratantes: os candidatos a terra e o Estado. Mais ainda,
CAPÍTULO III República de proprietários

trata-se de um corretor sui generis, pois não tem interesse no


acordo das partes, mas somente em sua própria consolidação
autônoma, como se as partes dele dependessem para sempre.
O problema reside em que o interlocutor é uma organização
política, cujo alvo é o de destruir uma sociedade baseada nas
liberdades, na economia de mercado, no estado de direito e
na propriedade privada. Essa organização canaliza politica-
mente para si os ganhos sociais e financeiros de suas ações,
impedindo que os “sem-terra” envolvidos se tornem cidadãos,

85
ELSEVIER

se tornem proprietários, se tornem indivíduos capazes de


decidir por si mesmos.
Trata-se, para essa organização, de fazer com que esses
indivíduos sigam sendo uma massa de manobra, subordinada
a uma liderança política. Eles se tornam, na verdade, súditos
de um projeto socialista-autoritário. O viés anticapitalista, pró-
socialista/comunista, faz com que as pessoas envolvidas nas
invasões permaneçam numa situação cativa de subordinação.
O resultado mais visível reside em que eles se tornam uma
clientela política, jogada ao sabor das circunstâncias, incapaz de
decidir por ela mesma. Neste sentido, não é a reforma agrária
que avança, mas o MST como organização política, que se vê
fortalecida, podendo desenvolver o seu próprio projeto político,
utilizando a dita reforma agrária somente como instrumento de
seus próprios fins. Uma forma de contornar esse problema seria
conferir aos assentados imediatamente o direito de propriedade
como indivíduos autônomos, que poderiam dispor livremente
dos seus bens. As terras que já foram objeto da reforma agrária
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

e as que venham a sê-lo deveriam se tornar propriedades dos


que as exploram, vindo a ser objeto de comercialização, de
acordo com a livre escolha de seus proprietários.
Se há um ponto sobre o qual os mais diferentes teóricos
do Estado estão de acordo concerne à segurança pública, à paz
pública, como tarefa primeira e central do Estado. Tal posição,
podemos encontrar tanto em Hobbes, quanto em Wilhelm
von Humboldt, passando por Locke. A convergência sobre
essa questão permite vislumbrar a importância atribuída à
conservação da vida, dos bens, e à validade dos contratos.
Onde a insegurança prima, a sociedade se desorganiza. Não
se pode pensar a organização estatal sem a estabilidade de
relações institucionais entre pessoas que visam a conservar a

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ELSEVIER

integridade do seu corpo, dos seus entes, dos seus bens e de


sua propriedade. O seu propósito consiste igualmente em sua
liberdade de pensar, circular, se expressar e fazer o que melhor
lhes parece do ponto de vista de sua escolha. Um Estado que
abdica da segurança abdica de si mesmo.
Relegar a segurança a uma posição subalterna, sob o
pretexto de causas sociais, de que as condições dos mais des-
favorecidos devam ser resolvidas com anterioridade, equivale
a não criar precisamente as condições para que as questões
sociais sejam verdadeiramente equacionadas. Se a segurança
não existe ou é precariamente garantida, a vida econômica fica
seriamente prejudicada e, com ela, a possibilidade das pessoas
melhorarem as suas condições sociais. Se os contratos não são
assegurados, se as pessoas são impedidas de entrar em relações
legais contratuais, como acontece com os moradores de fave-
las, se essa segurança básica não é garantida, a precariedade
social tende a permanecer, apesar dos discursos políticos dos
que dizem buscar a realização da “justiça social”. Na verdade,
em suas ações, se voltam contra essa mesma justiça social e,
em seus discursos, com sua demagogia específica, impedem
que condições políticas se criem para uma melhoria geral da
vida social.
O problema político da passagem destes indivíduos “in-
CAPÍTULO III República de proprietários

formais” a uma situação de plena cidadania, da passagem do


usufruto de uma propriedade defectiva, sob o modo da posse
urbana não legalmente reconhecida, a uma de pleno uso da pro-
priedade, com as suas formas adequadas de troca, financiamento
e reconhecimento, implica também uma questão de ordem
administrativa, correspondente ao modo de funcionamento da
burocracia estatal. De Soto oferece vários exemplos de como,
em alguns países ditos emergentes, um trâmite que deveria ser
básico de regularização de uma propriedade precária a uma

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ELSEVIER

efetiva demora meses, senão vários anos. Da mesma maneira,


a criação ou a dissolução de uma empresa dura meses ou anos,
quando poderia ser resolvida em poucos dias, favorecendo o
empreendedorismo e a iniciativa de cada um.
Ora, um Estado burocraticamente pesado, com excesso
de regras e funcionários apenas zelosos de sua própria posição,
torna-se um empecilho para o desenvolvimento da sociedade.
Desburocratizar significa essencialmente diminuir o número de
regras e confiar nos cidadãos na tomada de decisões próprias.
Estados, como o brasileiro e outros, desconfiam dos seus mem-
bros, conferindo o poder a uma burocracia, que termina viven-
do da própria degenerescência das funções estatais. O favor,
a relação pessoal e a corrupção são, neste sentido, resultados
de um Estado atrofiado, apropriado por grupos e corporações.
Os que dele estão fora padecem dessa situação. Uma socieda-
de pujante depende da agilidade de suas decisões. A energia
de cada um não pode – nem deveria – ser desperdiçada em
trâmites burocráticos, que entravam a vida nacional. Acelerar
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

a abertura de uma empresa deveria ser o interesse principal


do Estado, propiciando maior renda e salário para todos. Não
deveria ser um calvário burocrático.
Um signo particularmente gritante da ausência de cida-
dania reside nas filas dos hospitais públicos ou conveniados
com o SUS. Isto igualmente vale para o longo tempo entre
um primeiro contato hospitalar e a consulta muito posterior.
Há aqui envolvido todo um significado social relativo a um
bem básico do cidadão, à sua própria saúde. O atendimento
da saúde e dos benefícios previdenciários não deveria ser um
sacrifício para os mais necessitados, mas um dever mesmo
do Estado, cuja função consiste em tratar essas pessoas como
cidadãos propriamente ditos, e não como súditos que devem

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fazer longas filas para terem os seus direitos satisfeitos. Longas


filas são amostras de uma cidadania capenga, o outro lado de
uma propriedade privada defectiva.
Na situação atual, observamos que o cidadão está preso
a um emaranhado de obstáculos burocráticos, como se uma
rede o capturasse. Cada vez mais, as pessoas desse país são
reféns de um conjunto de documentos, exigências e papéis
que dificultam o cotidiano de cada um. Com o dinheiro gasto
em impostos, o cidadão paga a sua própria captura, numa
sutil servidão voluntária. Simplificar a vida deveria ser um
direito básico da sociedade a ser satisfeito pelo Estado. Di-
minuir o peso da burocracia estatal e reduzir as regras que
regem a vida do cidadão são ações que ampliam a esfera de
atuação das pessoas, que podem, assim, se dedicar mais aos
seus assuntos privados. E por dedicar-se aos assuntos priva-
dos, podemos entender atividades que, todas, incrementem
a esfera de liberdade de escolha de cada um. É um tempo
maior dedicado ao lazer, é um maior cuidado com a família, é
o aumento de atividades que podem redundar numa melhor
educação e cultura do indivíduo. São também atividades
em que estes podem se consagrar à valorização dos seus
bens, à vida econômica, à sua livre iniciativa, realizando-se
profissionalmente. O conjunto dessas atividades resultantes
CAPÍTULO III República de proprietários

da desburocratização poderia ser denominado político exis-


tencial. Político, por estar orientado para a desburocratização
da vida. Existencial, por vir acompanhado do aumento do
espaço vital de cada um, da satisfação dos seus desejos e
interesses. Como diria Humboldt: para o desenvolvimento
da livre energia individual2.

2
Humboldt, Wilhelm von. Os limites da ação do Estado. Rio de Janeiro: Topbooks,
2004.

89
ELSEVIER

2. A casa, a escritura e o conceito


De Soto enfatiza, na esteira da economia política clás-
sica, incluindo o próprio Marx, que o capital é basicamente o
seu processo de valorização, não podendo ser simplesmente
relacionado a um conjunto físico de bens. O capital teria uma
natureza metafísica3, não substancial, não imediatamente
perceptível, senão por suas condições e efeitos. Sob esta ótica,
o ativo denominado morto daqueles setores das sociedades
emergentes, que não conseguem, senão imperfeitamente, entrar
no circuito da valorização, não é propriamente dito capital. É
como se as energias do capital devessem ser liberadas, e elas
somente o serão se a propriedade privada e suas formas con-
tratuais forem plenamente reconhecidas. E elas passam pela
integração à formalidade da economia informal, extralegal, a dos
que estão excluídos de uma economia de mercado, que funcione
adequadamente para todos. Mais especificamente, o sistema
legal não é somente um sistema de proteção da propriedade,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

mas de liberação do processo que transforma um bem precário


em capital propriamente dito, submetido a um processo de
valorização. Um sistema legal de propriedade libera a energia
da sociedade, fazendo com que os seus ativos possam se valo-
rizar. Quando esse processo de conversão não ocorre, quando
a propriedade defectiva impera, obstaculizando a valorização
dos bens, pode-se observar o surgimento do que poderíamos
chamar de “processos perversos de valorização”, como os que
se concretizam no crime organizado.
A propriedade, ao contrário da posse física, se situa
no domínio representativo, conceitual, acatado por todos e
implementado coercitivamente pelo Estado. Trata-se de uma

3
De Soto, op. cit., p. 55.

90
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representação real, que opera de modo próprio. “...Uma re-


presentação formal de propriedade tal como uma escritura
não é uma reprodução da casa, como uma fotografia, mas uma
representação de nossos conceitos sobre a casa.”4 A escritura,
logo, o sistema legal de propriedade, é como a alma que move
o corpo físico casa, sem que essa propriamente dita se mova.
Move-se o seu título, que passa de uma para outra mão, de
tal maneira que a mão que recebe um papel determinado
tem a certeza e a garantia de que se torna proprietária de um
imóvel particular. Se esse circuito é interrompido pela inse-
gurança jurídica, a casa permanece um imóvel não suscetível
de valorização, ficando fora dessa movimentação, que é a
alma mesma do capital. A representação se dissocia da ideia
e deixa o bem físico sem movimento. É como se sua alma se
dissociasse do corpo.
“A propriedade não é realmente parte do mundo físico:
seu hábitat natural é legal e econômico. A propriedade trata
de coisas invisíveis, ao passo que mapas são semelhanças das
coisas físicas no solo.”5 Dado esse seu caráter invisível, a pro-
priedade se incorpora a um processo legal que a valoriza, que
a faz pertencer a um circuito propriamente econômico, não
podendo ser reduzida à posse de um objeto, mesmo que um
bem imóvel. Não se trata somente de que os novos proprietários
CAPÍTULO III República de proprietários

passarão a pagar impostos, mas que extrairão benefícios, via o


exercício de direitos, dessa sua integração a um sistema legal
de propriedade. Enfatizem-se os benefícios desse processo de
integração, que pode ser identificado a um de cidadania plena,
de saída de um processo ilegal e/ou assistencialista, como o do
bolsa-família.

4
Ibid., p. 64.
5
Ibid., p. 236.

91
ELSEVIER

Contudo, para que esse processo não seja defectivo, em


que a posse precária não se torna escritura, é também necessário
que os conceitos sobre um bem imóvel sejam admitidos pela
sociedade em seu conjunto, façam parte do imaginário social. A
alma deve ser resgatada. Trata-se da concepção de um bem, do
seu processo de valorização, de sua dimensão social e econômi-
ca, que vem a orientar a ação humana em geral e a do Estado
em particular. Uma sociedade se molda pelo conceito que faz
das coisas, pela representação do que devem ser as relações
humanas. Isto significa que certas concepções favorecem o
crescimento econômico, o desenvolvimento social e o exercício
da cidadania. Outras os obstaculizam, senão os inviabilizam.
Se a propriedade privada é vista como um mal, a propriedade
defectiva encontrará um campo propício para a sua expansão.
No universo da representação, onde impera um sistema
formal de propriedade, uma empresa deixa de ser uma unidade
fisicamente indivisível para tornar-se uma unidade metafisi-
camente divisível, como quando uma mesma empresa pode
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

ter vários acionistas, que vendem e compram ações, retirando


ganhos e dividendos com isto, sem interferirem no bem físico
empresa. Ocorre uma espécie de abstração de uma realidade
material. O universo representativo formado por ações não é o
mesmo da propriedade não aberta de uma fábrica, detida por
um único (ou poucos) indivíduo(s). Antes do sistema formal
de propriedade ou em suas formas defectivas, a representa-
ção de um bem era outra, fazendo parte de um universo mais
fechado em que a liberdade encontrava dificuldades para
desenvolver-se.
A propriedade privada, quando completa, consiste em
um sistema de informações que permite a sua transação, pois os
indivíduos intervenientes têm à sua disposição todos os dados

92
ELSEVIER

necessários para os seus negócios. A propriedade é o seu títu-


lo, em que está armazenado um conjunto de informações que
passa por cartórios, registros de imóveis, tribunais, municípios,
cada um fornecendo um tipo de informação, vital para que as
relações econômicas se façam sob o modo da confiabilidade,
da seriedade e da agilidade. Graças a essa mediação própria
da informação, uma economia de mercado consegue alçar os
seus membros a uma posição de empreendedorismo, de livre
iniciativa e de responsabilidade. Aquele que procura fraudar
esse sistema de informação é julgado e condenado por isto, de
modo que o funcionamento da sociedade não seja impedido
pela ação dos que procuram em benefício próprio fraudar o
próximo e, desta maneira, burlar e subverter o sistema legal
de propriedade. Na propriedade defectiva, o sistema de infor-
mação armazenado na propriedade é incompleto, dificultando
as transações comerciais e impedindo o desenvolvimento da
sociedade. Se o sistema de informação não é confiável, a própria
propriedade não é adequadamente reconhecida.
O Registro de Imóveis é um caso particularmente im-
portante que permite caracterizar o direito de propriedade
enquanto absoluto, na medida em que um sistema armazenado
de informações, público, serve de baliza para qualquer tipo de
transição imobiliária, creditícia e outras envolvendo esse tipo
CAPÍTULO III República de proprietários

de bem. A condição de realização dessas transações comerciais


reside em um instrumento de registro, que é o fundamento
da legalidade dos contratos. Se contratos não estão baseados
em um instrumento de validade incondicionada, as disputas,
por exemplo, poderiam se fazer somente por medidas auto-
declaratórias, com embates intermináveis. No entanto, ações
de posse arbitrária contra direitos de propriedade, registrados
em cartório, estão em curso no Brasil graças a um Decreto pre-

93
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sidencial, no 4.887, que confere validade a apropriações desse


tipo em nome de supostos remanescentes de comunidades
quilombolas. Um ato administrativo desorganiza as relações
de propriedade, interferindo externamente em seu próprio
conjunto de informações. É como se uma outra informação,
muito mais relevante, anulasse todas as demais. O registro
termina sendo posto em questão.
Ora, se não há um registro de imóveis confiável ou, se
existente, este é simplesmente desconsiderado, cria-se um am-
biente de insegurança jurídica, em que os contratos perdem a
sua validade. As disputas se avolumam entre particulares, entre
particulares de tipos diferentes, na medida em que um tem um
privilégio concedido pelo Estado, ou ainda, entre particulares e
órgãos do Estado. Desta maneira, a vida econômica perde um
dos seus pilares de sustentação. As fraudes se multiplicam, os
créditos se tornam mais caros, os juros sobem e os investimentos
diminuem. As operações se tornam mais onerosas por riscos
maiores, a confiabilidade das instituições diminui e os agentes
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

econômicos ficam mais cautelosos, senão reticentes, em seus


investimentos.
Nicolás Nogueroles e Humberto de Soto6 dão vários
exemplos de como registros ineficientes ou inexistentes preju-
dicam investimentos e, inclusive, causam prejuízos aos mais
carentes. No primeiro caso, situam-se casos como a tentativa de
compra de um imóvel em Moscou para o Instituto Cervantes
da Espanha, que foi em muito onerada pela inexistência de
um sistema registral confiável. O mesmo ocorre com empresas

6
Nogueroles, Nicolás. “Registro, guardião do direito de propriedade”. In Bole-
tim eletrônico, IRIB. BE 2869, ano VII. São Paulo, 13 de março de 2007 e De Soto,
Humberto. “Sistema registral”. In Boletim eletrônico, IRIB. BE 2401, ano VI. São
Paulo, 24 de abril de 2006. Agradeço ao Dr. João Paulo R. Paschoal a indicação
desses dois artigos.

94
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hoteleiras na América Latina que são, muitas vezes, obrigadas


a pagar a diferentes “proprietários” o mesmo imóvel, por
alegação de “títulos de propriedade” contraditórios entre si.
No segundo caso, temos a diferença para os respectivos paí-
ses e para os seus cidadãos no tratamento de dois fenômenos
naturais, o furação Katrina, nos Estados Unidos, e o Tsunami
de dezembro de 2004, que atingiu as praias da Indonésia, Tai-
lândia, Sri Lanka e Maldivas.
Nos Estados Unidos, graças a um sistema registral que
foi salvo das águas, a recuperação foi muito rápida, com títulos
de propriedade estabelecidos, pagamentos de seguros, ajudas
governamentais dirigidas, viabilizando todo um sistema de cré-
ditos. Um sistema legal reconhecido, público, oferece todas as
garantias legais para a reativação da vida econômica mediante
ação de banqueiros, seguradoras, corretores de imóveis e em-
presas de água e energia, em consonância com cidadãos que
exercem os seus direitos. No Sudeste Asiático, onde inexistia
um sistema registral, os que foram varridos pelas águas não
tinham instrumentos legais para reivindicarem as suas posses,
propriedades imperfeitas. Na Tailândia, um empresário ines-
crupuloso reivindicou para si terrenos valiosos, que não lhe
pertenciam, na primeira quadra da praia. Os que vivem fora
do mundo legal são os mais prejudicados. A cobertura dessas
CAPÍTULO III República de proprietários

pessoas é inexistente.
De Soto7 utiliza uma expressão muito boa para caracteri-
zar a sua pesquisa e a sua preocupação propriamente política,
a saber, a de como podem as pessoas ter acesso ao direito de
propriedade: qual é o seu direito ao direito de propriedade. É
aqui que se coloca diretamente a questão política, na medida
em que boa parte da população dos países emergentes vive fora

7
De Soto, O mistério do capital, p. 126.

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do sistema legal de propriedade, e gostaria dele participar, sem


ter, porém, condições para isto. A ação política, neste sentido,
poderia ser entendida como tendo o propósito de fazer valer
o direito ao direito de propriedade. Evidentemente, há outras
formas de ação que procuram destruir o direito de proprieda-
de, como a que se ampara nas ideias socialistas, em cujo caso a
questão do direito é, na verdade, obliterada. Isto porque o seu
clamor genérico em fórmulas como “propriedade socialista” ou
“propriedade coletiva” é nada mais do que a caracterização de
tentativas de eliminação da propriedade privada e, com ela, de
supressão de toda legalidade e liberdade. Seriam ações de não
direito ao direito de propriedade, pois o próprio conceito de
propriedade privada estaria aqui em questão. Para que direito
à propriedade se esta é vista como um mal?
A lei não expressa somente um reconhecimento indivi-
dual da propriedade, mas um processo mediante o qual ela
entra em um circuito que a valoriza, que a torna capital. Ou
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

seja, a propriedade privada no sentido moderno da palavra


é aquela legalmente reconhecida do ponto de vista de sua in-
tegração a um processo de valorização, também denominado
capital. Não é suficiente a posse precária de um ativo, a pro-
priedade no seu sentido defectivo, embora possa cumprir uma
função social, como a de moradia nas favelas. É necessário
que ela se torne propriedade plena, integrável a um processo
legal de compra e venda, a partir da livre escolha de cada um.
O capital, neste sentido, depende de um apropriado sistema
legal. “O direito à propriedade também engendra o respeito
à lei.”8 Os que usufruem do direito à propriedade são os que
respeitam a lei, porque sabem que a preservação do seu pa-
trimônio e a sua prosperidade dependem da existência de um

8
Ibid., p. 227.

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conjunto jurídico que os reconheça como proprietários. Não


basta a legalidade da propriedade, mas o direito ao direito
de propriedade.
A vigência do marxismo nas sociedades latino-ameri-
canas se deve em boa medida ao fato de que os reformadores
econômicos e sociais não conseguiram fazer avançar a sua
proposta de modernização dessas sociedades mediante uma
transformação do direito extralegal de propriedade em um
legal, levando em consideração a situação dos que vivem par-
cialmente fora do sistema propriamente capitalista. Criou-se,
assim, uma estranha afinidade eletiva entre os que querem a
conservação desse status quo, pois usufruem dos privilégios
da sociedade legal, e os que querem a destruição dessa mes-
ma sociedade legal, ambos compartilhando a ideia de que
as massas excluídas continuarão, de uma ou outra maneira,
excluídas. A superioridade política do marxismo consistiria
apenas em que os seus porta-vozes prometem a redenção da
exclusão, quando, na verdade, a perpetuam por atribuírem
todos os problemas sociais à propriedade privada, e não à
sua falta. Como a propriedade privada no sentido moderno
é identificada à fonte de todos os males, uma sociedade assim
capturada não terá condições de avançar, de modificar a sua
situação.
CAPÍTULO III República de proprietários

Libertar-se dessa captura passa por abandonar as formas


defectivas de propriedade em proveito de suas formas plenas,
ou seja, realizar a verdadeira transformação capitalista. No
entanto, o conceito de luta de classes ainda possui um apelo
popular, na medida em que consegue dar conta da aparência
dos conflitos sociais ao opor os ricos aos pobres, os que usu-
fruem os benefícios do capital aos que deles estão excluídos.
Vela-se, então, o problema central consistente em tornar a todos

97
ELSEVIER

membros de um mesmo processo de capitalização, de gozo dos


mesmos direitos de propriedade. O instrumento conceitual
marxista termina sendo acessível, enquanto seu contraponto,
o de defesa da propriedade e das liberdades, parece lidar com
coisas abstratas. E esse déficit se deve também às elites diri-
gentes dos países latino-americanos, substancialmente voltadas
para defender somente os interesses dos que se situam numa
situação legal, mantendo com os outros apenas uma relação
de tipo assistencialista. O assistencialismo perpetua o status
quo em vez de transformá-lo, favorecendo tanto os adversários
ferrenhos da propriedade privada quanto os defensores de suas
formas defectivas.

3. A função social urbana da propriedade


O modo mediante o qual a “função social da propriedade”
é utilizada politicamente em nosso país vai na contramão desse
resgate social através da valorização do direito de propriedade.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Sua apropriação ideológica a situa seja explicitamente num pro-


longamento do marxismo que não ousa dizer o seu nome, embora
alguns o assumam, seja numa forma vagamente salvacionista de
justificação de tudo o que é feito contra a propriedade privada e
os seus princípios. Em vez de viabilizar o direito ao direito de
propriedade, o uso político e ideológico de sua função social
impede que esse processo ocorra.
O conceito de função social da propriedade, estipulado
na Constituição de 1988, art. 182, em sua utilização específica à
zona urbana, mediante sua concretização no Plano Diretor de
cada município com população superior a 20.000 habitantes,
é gravado de tal grau de generalidade, que só pode se prestar
aos muitos equívocos gerados pelas lutas partidárias e por seus
empregos ideológicos. Quando se coloca, por exemplo, que a

98
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propriedade urbana deve seguir as necessidades da coletivi-


dade, tal formulação, neste seu grau de generalidade, pode
ter a aquiescência de todos. O caso muda, porém, de figura no
momento de estabelecer o que se entende por “necessidade
coletiva”, pois aí os interlocutores procuram avançar as suas
opiniões, perspectivas e interesses próprios. Por exemplo,
não é a mesma coisa a criação e/ou conservação de uma praça
pública que obedece aos interesses da coletividade e a invasão
de propriedades privadas por grupos organizados partidaria-
mente, embora a expressão “necessidade da coletividade” seja
aparentemente usada da mesma forma.
O problema reside na atribuição à propriedade privada
de uma “finalidade” social. Primeiro, a propriedade privada
não necessitaria dessa atribuição de finalidade, pois ela se
determina pelo livre uso que dela é feito por aqueles que, por
seu esforço, diligência, trabalho e empreendedorismo a adqui-
riram. O seu sentido é o de um bem que cabe à iniciativa e aos
movimentos de cada um, segundo a livre escolha que preside
esses atos. Segundo, uma vez que uma “finalidade social” lhe
é atribuída, voltamos a um tipo de causalidade aristotélica se-
gundo a qual a natureza de uma coisa é definida por seu fim ou
causa final. Diz-se a “natureza” ou “essência” de algo quando
se determina a sua finalidade. Sob esta ótica, a propriedade
CAPÍTULO III República de proprietários

privada ganharia uma outra “natureza”, a decorrente dessa


sua finalidade social, que suplantaria a todas as demais, que
viriam a ser consideradas acidentais, secundárias. Terceiro, essa
nova atribuição de finalidade não seria feita por observadores
imparciais da natureza, que descreveriam um fenômeno natu-
ral via utilização do conceito de causa final, mas por agentes
políticos que a empregariam segundo o seu propósito político
específico. Quarto, os que teriam o monopólio dessa atribuição

99
ELSEVIER

se tornariam, em consequência, aqueles que diriam manejar,


utilizar, a verdadeira teoria social, pois estariam de posse
de um instrumento incontestável. Os outros deveriam a eles
simplesmente se curvar.
Mais especificamente, na órbita urbana, a questão reside
na definição mesma da função social da propriedade através do
Plano Diretor, na medida em que ele fica na mão de gestores
municipais e políticos que podem tomar decisões seguindo
meramente uma cartilha ideológica repleta da vulgata marxista.
O problema consiste em quem define, segundo quais critérios e
conforme quais ideias. Falar genericamente em “função social
da propriedade” em nada ajuda, senão sob a forma ideológica
do encobrimento. A definição, por exemplo, seria feita por esses
agentes que diriam, desde sua perspectiva, aquilo que seria fun-
ção social, independentemente do fato de tal definição precisar
passar pela Câmara Municipal. A própria definição do Plano
Diretor das propriedades urbanas segundo essa “função social”
confere um poder exorbitante a tais interventores políticos.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Por se situarem na origem do processo, eles ditam, por assim


dizer, os passos a serem seguidos, inclusive com o recurso a
conselhos ditos populares que seguem a mesma orientação
política. Ou seja, a definição proposta passaria a equacionar
os termos mesmos da questão, circunscrevendo e delimitando
o espaço mesmo da interlocução. O debate já se faria enviesa-
do por seguir conceitos e ideias, que, por definição, seguem
parâmetros radicalmente contrários à economia de mercado e
aos seus empreendedores. Nunca é demais insistir no fato de
que respostas são dadas em função das perguntas feitas. Se as
perguntas e questões seguem uma orientação predeterminada,
elas condicionam os termos mesmos da discussão e, inclusive,
das propostas sugeridas.

100
ELSEVIER

Um exemplo de como posições ideológicas, que seguem


os parâmetros do marxismo vulgar, são utilizadas na discussão
sobre a função social da propriedade urbana, encontra-se no
artigo de Nadia Somekh, numa publicação tão importante para
o estado de São Paulo, como a do Estatuto da Cidade. Seguindo
a vulgata marxista, como se fizesse ciência, a autora declara:
“O Estado representa as classes dominantes em seus mais di-
versos interesses, embora possa assumir compromissos, desde
que pressionado para isso, com segmentos que representem a
maioria da população”.9 O que se pode esperar de tal formula-
ção senão um suposto equacionamento dos problemas urbanos
conforme uma ótica marxista que tem como objetivo a própria
destruição da propriedade privada? Ora, dada essa concep-
ção, nada seria mais “natural” do que os agentes se dizerem
revolucionários, voltando-se contra a iniciativa privada com
o propósito de obstaculizá-la, porque o seu objetivo consiste,
na verdade, na abolição da própria economia de mercado. Se
pessoas dotadas de tais concepções chegam ao poder municipal,
não seria de estranhar que todas as suas iniciativas se voltem
contra “as classes dominantes”, que deveriam ter suas ações
circunscritas por esse novo tipo de poder.
O problema da definição da função social da propriedade
CAPÍTULO III República de proprietários

aparece, também, no amálgama entre “regras de convivência” e


considerações de ordem sociopolítica, como quando se procura
abrigar ambas sob um mesmo nome. Ela cobriria tanto a “reten-
ção especulativa de imóveis vagos ou subutilizados” quanto a
preservação do “patrimônio cultural ou ambiental”.10 Ora, o que

9
Nadia Somekh. “Função social da propriedade”. In Estatuto da cidade, coordenado
por Mariana Moreira. São Paulo: Sebrae/Cepam, 2001, p. 86.
10
Antônio Cláudio M. L. Moreira. In Estatuto da cidade, coordenado por Mariana
Moreira. São Paulo: Sebrae/Cepam, 2001, p. 147.

101
ELSEVIER

supostamente valeria para um não valeria necessariamente para


outro. A preservação do patrimônio cultural ou ambiental não
decorre de nenhuma finalidade social, mas tão simplesmente
das conservações culturais e ambientais próprias de uma vida
civilizada, atenta à memória, à história e às próximas gerações.
Se fosse para usar uma denominação, muito mais apropriado
seria falar de função “cultural” ou “ambiental” da propriedade,
sem os equívocos de seu uso político-social.
O Brasil, anteriormente à Constituição de 1988, e outros
países no mundo estabeleceram regras de convivência, que
preenchem as necessidades sociais dos seus habitantes. Nem
por isso eles recorreram ou recorrem a mecanismos jurídico-
políticos, que aparecem sob a forma da “função social de pro-
priedade”. Regras de convivência são também ditas sociais,
embora num sentido diferente. Interesses difusos, regras de
vizinhança, tombamento de prédios por valor cultural, uso
adequado do meio ambiente e utilização de logradouros
públicos, para não listar senão alguns itens, fazem parte de
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

qualquer cidade civilizada, sem a introdução de posições ideo-


lógicas que terminam por falsificar os dados da questão. O
uso de expressões tais como “comum”, “coletividade”, “bem
comum” e outras induz muitas vezes à confusão, encobrindo
coisas diferentes sob uma mesma denominação.
Ocorre frequentemente que grupos organizados par-
tidariamente, dotados de uma ideologia antimercado, me-
nosprezando o estado de direito, usam de tais prerrogativas
ditas “função social da propriedade” para justificarem as suas
ações. Cria-se, portanto, uma situação em que os que sofrem
socialmente tornam-se massa de manobra dos que procuram
avançar em suas posições de poder. A luta política adota, en-
tão, a forma de uma suposta luta pela justiça social, que tem

102
ELSEVIER

como contrapartida o fortalecimento do poder do Estado, no


caso municipal, e de suas formas de regulamentação. O re-
sultado consiste num acréscimo de dificuldades para os que
empreendem, tendo como consequência uma diminuição, para-
doxal, dos benefícios sociais que poderiam advir de iniciativas
sociais de parceiros privados, baseados nos princípios de uma
economia de mercado.
Paulo Germanos observa justamente a distorção que
pode ocorrer com o excesso de regulamentações ordenando o
mercado, afastando os empreendedores de determinadas ini-
ciativas econômicas, com a subsequente tolerância em relação
a todo um setor da população que, por razões “sociais”, não
necessita seguir essas mesmas regras. A lei vale estritamente
para uns e no mucho para outros,11 como se não fosse a mesma
lei, embora aparentemente vivamos legalmente no mesmo
mundo. O problema não reside, porém, em que não se deva
ajudar “socialmente” aos mais necessitados, mas em fazê-lo
de modo que deixem de ser necessitados, sem interferir numa
vida econômica que recompensa, sob a forma do lucro, aqueles
que investem e são empreendedores. Quando o Poder Público
atenta apenas para os rigores da lei, visando àqueles que fazem
parte do setor formal da economia, ele sofre o risco de sua buro-
cratização e crescente estatização, inviabilizando, pelo mesmo
CAPÍTULO III República de proprietários

movimento, a justiça social que diz perseguir. O que muitas


vezes acontece é que um viés antipropriedade privada se faz
sentir através de tais intervenções, como se o desenvolvimento
da economia de mercado fosse prejudicial para a sociedade
em seu conjunto. O (falso) antagonismo criado é propriedade

11
Paulo André Jorge Germanos. “Novos papéis do Judiciário e do Ministério
Público no trato das parcerias entre setor público e setor privado”. In Estatuto da
cidade, coordenado por Mariana Moreira. São Paulo: Sebrae/Cepam, 2001, p. 123.

103
ELSEVIER

privada versus função social da propriedade, como se devesse


sempre imperar uma desconfiança em relação à primeira.
O viés antipropriedade privada se manifesta, sobretudo,
em ações que procuram penalizá-la através de regulamentações
que inibem a sua livre disposição. As regras relativas à utiliza-
ção do solo, aos índices de aproveitamento, à subutilização e
outras são frequentemente de tal maneira feitas que procuram
impedir a utilização da propriedade para fins de valorização,
como se essa fosse uma espécie de mal que deveria ser expiado.
Coibir excessos e utilizar indevidamente o solo não podem
significar aversão à livre iniciativa. Paulo Germanos defende
a ideia de parcerias entre o setor privado e o público, voltadas
para contemplar as necessidades da população de baixa ren-
da. Tanto é mais notória a necessidade de tais parcerias que
os vários níveis do Estado, federal, estadual e municipal, não
possuem condições financeiras suficientes para empreender
políticas sociais de moradia popular. E se as possuem, as têm
em níveis muitos inferiores ao necessário. Logo, um tratamento
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

racional da questão deveria favorecer tal tipo de iniciativa que,


atendendo às especificidades de cada um dos parceiros, poderia
conduzir a um equacionamento da questão social.
Se isto não for feito, teremos um discurso demagógico
repleto de expressões como “justiça social”, “função social da
propriedade”, sem nenhum resultado concreto para aqueles
que reclamam, com justiça, por melhores condições sociais.
Discursos demagógicos relegam os necessitados para maiores
necessidades, não os resgatando desta situação. Alguns chegam
mesmo a propor que as exigências da Constituição Federal de
1988 devem no meio urbano seguir, por analogia, as determina-
ções relativas à função social da propriedade rural. Abrir-se-ia
o caminho para iniciativas de invasão de propriedades urbanas,

104
ELSEVIER

nos moldes do MST, o que, de certa maneira, já começa a ocor-


rer com o Movimento dos Sem-Teto. Como um dos defensores
dessa ideia reconhece, o alvo é o mesmo, a saber, a propriedade
privada, independentemente de ser urbana ou rural.12
Eis por que é tão necessária a formação da opinião públi-
ca, porque ela termina sendo o esteio das ações do Ministério
Público e da Justiça, voltadas para os benefícios da coletividade,
que não são conflitantes com os princípios de uma economia de
mercado e de uma vontade empreendedora. Se esses mesmos
agentes públicos são capturados por posições ideológicas que se
contrapõem à livre iniciativa, a perda maior é para a sociedade,
no seu conjunto, e para os mais desfavorecidos, em particular.
E essa captura ocorre muitas vezes por intermédio de decisões
que suscitam uma grande insegurança jurídica, inibindo a ação
dos agentes econômicos. Uma ação que aparentemente pode
ter uma boa repercussão imediata na mídia, por supostamente
atender às ditas funções sociais da propriedade, termina por
produzir resultados mediatos perniciosos para os mesmos in-
teresses sociais que diz defender. Entre outras consequências,
esses mesmos empreendedores se retiram dessas atividades,
que teriam importantes efeitos sociais, para outras não subme-
tidas a tal grau de insegurança. CAPÍTULO III República de proprietários

12
Antônio Cláudio M. L. Moreira. In Estatuto da cidade, coordenado por Mariana
Moreira. São Paulo: Sebrae/Cepam, 2001, p. 153.

105
Capítulo IV

Liberdade e igualdade

Cícero considerava que a república não é resultado do


gênio ou do projeto de um indivíduo excepcionalmente bem
dotado, porém é fruto do tempo, do acúmulo de experiên-
cias, do trabalho disperso de muitos. Ela não corresponde ao
ideal de um grande reformador social, mas à ação coletiva
que, progressivamente, cria instituições que são igualmente
válidas para todos. E quando se diz progressivamente, deve-se
considerar todo o trabalho do tempo, por acúmulo, que inclui
várias gerações e séculos.1 Do ponto de vista político, a ação
deveria partir da realidade tal como ela é, considerá-la em
seu processo evolutivo e encaminhá-la para o fortalecimento
das instituições, das leis, de cunho efetivamente universal. O
começo da ação é a individualidade das coisas, o reconheci-
mento do que elas são, para, por etapas, o avanço poder ser
feito em relação a formas mais aperfeiçoadas de convivência
humana.2 Trata-se da posição inversa daquela que consistiria
em partir de uma universalidade preconcebida, com o intuito

1
Cícero. República II. I. 2-II. 4 e II. XV. 29-XVII. 31.
2
Cf. Werlang, Sérgio. A descoberta da liberdade. Rio de Janeiro: FGV, 2004,
pp. 84-5.

107
ELSEVIER

de impô-la, pela força, a uma realidade necessariamente


refratária a ela. A sabedoria consiste em não aceitar o aço-
damento dos reformadores sociais, que desprezam o empí-
rico, a experiência, em proveito de um suposto projeto de
perfeição social e política.
O ato essencialmente livre é aquele que parte dessa
consideração da realidade, não se deixando envolver por
ideias segundo as quais seria possível uma transformação
radical do existente. Se assim fosse considerado, esse tipo de
ação seria refém de sua própria fantasia, caindo no delírio de
uma ruptura total, como se a tábula rasa de tudo aquilo que
se apresenta como real fosse um alvo factível. Sob esta ótica,
Hayek sublinha que quanto mais a humanidade conhece, mais
a ciência se desenvolve, maiores são os campos de ignorância
que se descortinam para o homem. Procurar fazer crer que um
grupo de revolucionários sabe perfeitamente como construir
uma nova sociedade corresponderia a uma postura de que a
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

ignorância e o acaso estariam doravante banidos do espectro


da ação humana. O conhecimento teria atingido um nível
acabado de perfeição, tudo se tornando um mero problema
instrumental, burocrático.
Ora, tal formulação tornaria o conhecimento apenas um
meio para ser utilizado partidariamente, o que seria uma outra
forma de dizer que uma “causa” com pretensões absolutas
passaria a presidir a ação humana. Leo Strauss, numa bela fór-
mula, retoma a mesma ideia: “não há progresso, mas simples
deslocamento das terrae incognitae”.3 O avanço do conhecimento
descobre novos âmbitos até então desconhecidos, que exigirão,
por sua vez, novos conhecimentos e pesquisas. O processo de

3
Strauss, Leo, op. cit., p. 35.

108
ELSEVIER

conhecimento, o processo científico-filosófico, se torna cada vez


mais impessoal e dependente de um trabalho conjunto que se
desenvolve à escala planetária. Veja-se, no campo da ciência,
a profusão de universidades, institutos de pesquisa, revistas,
publicações impressas e on-line, que exibem uma interconexão
jamais vista na história. A humanidade, hoje, sabe muito mais
de si mesma e, no entanto, a sua ignorância também cresceu.
No entanto, o campo da política, da ação humana em geral,
continua preso a concepções segundo as quais um planejamen-
to total da sociedade seria possível, bastando, para isto, um
Estado “corretamente” orientado. É como se o conhecimento
já estivesse saturado.
O “progresso por sua própria natureza não pode ser
planejado”.4 As sociedades humanas se desenvolveram graças a
um processo gradativo de sedimentação, não tendo obedecido
a nenhum plano. Aquilo que tendemos a ver como grandes
conquistas da humanidade nada mais são do que o resultado
do conhecimento então disponível, atualizado por um grande
personagem. Quando se considera que tudo pode ser previsto,
que a história alcançou um patamar tal que conseguirá prever
e causar tudo o que irá acontecer, cai-se numa espécie laica de
retorno da concepção religiosa, segundo a qual a providência
organizaria o conjunto da obra humana, na verdade, obra di-
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

vina. Logo, a proposta socialista de transformar a sociedade e


de operar o Estado conforme um planejamento previamente
estabelecido contrariaria toda uma experiência que, entre outras
virtudes, mostrou a inviabilidade de tais tipos de projetos. A
ideia de criar um novo mundo de acordo com um plano corres-
ponde à ideia de um Deus criador que, do nada, faz nascer algo

4
Hayek, op. cit., p. 41.

109
ELSEVIER

totalmente novo. A sua tradução socialista consiste em destruir


o existente e edificar, segundo a sabedoria e onipotência dos
revolucionários, um outro mundo que corresponderia aos seus
desígnios. A ideia de um Estado planejador deriva também
dessa concepção.
A questão reside na complexidade dessas relações impes-
soais de conhecimento, que são do mesmo tipo das impessoais
relações sociais e econômicas, baseadas em mecanismos de
mercado que organizam e estruturam as escolhas individuais.
Nada, portanto, mais avesso à ideia socialista segundo a qual
seria possível reconstruir a sociedade a partir de um plano
preestabelecido, um plano concebido por mentes privilegia-
das, que teriam um estatuto quase divino. No momento em
que se concebe que a perfeição é realizável na Terra, tendo os
indivíduos acesso a essa ideia política da perfeição, comete-se
um erro lógico consistente em pessoalizar um conhecimento
acumulativo e impessoal. Condições são assim criadas, graças a
essa identidade entre o pessoal e o impessoal no nível do conhe-
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

cimento, para que um grupo de iluminados pense ser possível


refazer a sociedade desde os seus fundamentos. O abandono
da ideia de um ser onisciente e onipotente não se traduziu pelo
abandono dos atributos da onisciência e da onipotência, agora
transferidos a uma noção de partido político ou de Estado, que
teria a função de realizá-los no domínio da finitude, da huma-
nidade, da imperfeição. Um partido de vanguarda, detentor
do absoluto, tornou-se o sujeito desses atributos.
Resquícios dessa formulação encontramos também
em concepções do Estado segundo as quais os problemas
sociais poderiam ser magicamente resolvidos mediante a sua
intervenção. As funções distributivas do Estado se encontram
entre elas, como se a elas coubesse enquadrar a sociedade,

110
ELSEVIER

determinando em cada uma de suas esferas aquilo que deve


ser feito. Um Estado fortemente centralizado, com pretensões
de tudo saber, de controlar as relações sociais, é um Estado
que pode ser considerado monopolista do ponto de vista de
sua organização, dispensador de privilégios. Eis por que ele
outorgará aos cidadãos formas defectivas de propriedade,
derivadas dessa sua forma de organização, de sua onipotência
e de sua onisciência.

1. Ação e liberdade
A ideia de reconstrução da sociedade segundo um projeto
baseado exclusivamente na razão termina, no momento mesmo
em que se diz livre das concepções religiosas, reintroduzindo
o absoluto na esfera das relações sociais e políticas. É como
se todo pilar social pudesse ser levantado no ar, sem apoio,
desconsiderando o próprio chão das instituições humanas,
resultado de um longo e penoso desenvolvimento. Ora, a
ação verdadeiramente racional seria aquela que reconheceria
a sua própria finitude, a sua imperfeição constitutiva, partindo
necessariamente dos valores, das tradições e das instituições
dadas. O ato livre vive do confronto e da elaboração desses
valores, tradições e instituições, sem o que a sua eficácia se
identificaria à explosão revolucionária do existente, como se o
ser-dado fosse, desde sempre, ser-condenado.
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

O problema consiste, então, em como encarar as ins-


tituições existentes, em como entender a autoridade estatal.
Está em jogo a resistência que toda realidade necessariamente
exerce sobre as tentativas de transformá-la, sobretudo radi-
calmente, e, mais especificamente, a coerção exercida pelo
Estado. Nesta perspectiva, a questão reside no significado
mesmo da coerção, na medida em que nasce da autoridade

111
ELSEVIER

pública, equivalendo a uma ação que se identifica à condição


mesma da liberdade. A autoridade exercida em nome da
proteção física dos cidadãos ou de sua segurança jurídica é
aquela que permite, precisamente, a realização da liberdade.
A concepção de liberdade, em que toda coerção deveria ser
eliminada, conduz ao caos, à destruição dos laços humanos,
à eliminação mesma da autoridade, que é condição da exis-
tência humana livre. Tal concepção da liberdade, tomando-se
por racional, leva, na verdade, ao irracionalismo das paixões
políticas, à desmedida, ao império do caos, a Behemoth, para
utilizar uma imagem bíblica e hobbesiana.5
O grande problema de concepções da ação revolucio-
nária reside na inobservância da regra, como se esta pudesse
ser simplesmente descartada por um ato que a declara inútil.
Uma forma de justificação desse tipo de ação consiste em
declarar as regras existentes como subservientes às classes
dominantes ou às ditas elites. Criam-se, assim, condições
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

para a sua abolição. É como se o ato de fala da declaração,


performativamente, criasse uma nova realidade cuja vali-
dade proviria desse mesmo discurso. Ideias conformariam
totalmente a realidade por seu mero ato discursivo. A falta
de respeito para com o estado de direito é uma outra maneira
de dizer a mesma coisa, porque o conjunto do ordenamento
institucional é relegado a segundo plano, em proveito de
uma ação que se apresenta como instituinte, instituinte da
desmedida. Uma sociedade que compactua com esse tipo de
ação, implicitamente, começa a renunciar às regras mesmas
de sua sociabilidade.

5
Cf. Rosenfield, Denis. Filosofia política e natureza humana. Porto Alegre: L&PM,
1990, pp. 35-48.

112
ELSEVIER

A liberdade implica que se dê o seu devido lugar


ao imprevisível,6 ao acaso, pois ela se situa nas antípodas
do pensamento completo, do totalmente previsível, do que
pode ser planejado. Só a pretensão de economias totalmen-
te planejadas faria com que a liberdade desaparecesse do
domínio da vida econômica e, com ele, de todos os seus
outros domínios, como o civil e o político, a exemplo da
experiência comunista. A liberdade econômica deveria ser
mais propriamente denominada liberdade de ação na sua
acepção mais ampla. Evitar-se-iam, assim, considerações
políticas de acordo com as quais seria possível eliminar a
liberdade econômica, mantendo-se outras formas de liber-
dade, quando, com ela, desaparece a própria liberdade de
ação. A liberdade de ser proprietário se situa, precisamente,
na liberdade de ação, e o seu cerceamento ou relativização
significa o seu próprio cerceamento. Ou seja, o problema
consiste nesta mesma pretensão de um saber estatal que, no
lugar do divino, poderia dizer para toda a sociedade o que é
melhor para ela, eliminando o acaso, o acidental e, desta ma-
neira, suprimindo a escolha individual, a livre iniciativa e o
reconhecimento de que relações humanas são, por definição,
necessariamente imperfeitas. Foi a tradição socialista que
introduziu uma outra ideia, a de que a imperfeição poderia
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

ser corrigida por um Estado corretamente orientado por um


partido que encarnasse, de uma forma absoluta, a verdade.
A liberdade do indivíduo, a liberdade de ação e a liber-
dade de escolha constituem um princípio que não pode ser
relativizado, sob pena de enfraquecimento dos próprios laços
morais, jurídicos e políticos. Aceitar tal princípio equivale a lhe
atribuir um valor moral incondicionado, base a partir da qual

6
Hayek, op. cit., p. 29.

113
ELSEVIER

outras regras de comportamento e institucionais podem ser


derivadas. Significa, então, reconhecer que toda ação possui
efeitos desconhecidos, alguns imprevisíveis, que não podem ser
antecipados nem planejados pelo Estado. Significa reconhecer
que o homem não é um ser coletivo que deveria ser moldado
de acordo com uma forma estatal. Significa reconhecer que as
regras são condições mesmas da ação, que se faz no interior
delas e conforme os seus valores e instituições. Para uma socie-
dade ser livre, é, portanto, necessário que a liberdade individual
seja um princípio fundador dessas mesmas regras.
Ora, a propriedade privada é o lugar em que se realizam
a liberdade do indivíduo, a liberdade de ação e a liberdade de
escolha. Ela é a sua forma mesma de concretização. Nela se
abriga também a esfera privada, aquilo que é o mais próprio de
cada um, aquilo que faz com que as pessoas fiquem ao abrigo
do público e se mantenham fora da esfera de atuação estatal. É
bem verdade que a tendência dominante em vários países de-
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

senvolvidos e emergentes consiste em uma maior interferência


do Estado na vida privada, vindo a jurisdicizá-la. No Brasil, por
exemplo, o Estado já possui leis para declarar uma união estável
entre indivíduos, independentemente de que estes declarem
explicitamente a sua vontade. Leis entram também cada vez
mais no domínio familiar, disciplinando e regulamentando as
relações entre pais e filhos. Essas interferências, no entanto, não
invalidam o princípio da liberdade, mas reforçam a ideia de
que ele deveria ser mais defendido, não sucumbindo a regras
jurídicas cada vez mais avassaladoras.
Os direitos do indivíduo, da liberdade de escolha, são
derivados de uma esfera que se subtrai ao olhar das autori-
dades governamentais e, mesmo, da jurisdição. Duas ordens

114
ELSEVIER

de problemas se apresentam aqui: a) no momento em que a


esfera da propriedade privada é atingida, com ela é alcançada
a esfera da família, dos bens individuais, do patrimônio fami-
liar, da educação que lá se faz e dos laços de solidariedade
que se tecem. Governos que se voltam contra a propriedade
privada se voltam, portanto, contra a esfera da vida privada.
Uma família que não tenha meios materiais de resistência,
conferidos pela propriedade privada dos seus bens, se encon-
tra indefesa; b) a esfera privada tem sido progressivamente
sujeita a regulamentações, como se, por exemplo, a família
fosse declarada incapaz de decidir aquilo que é melhor para
os seus. Leis começam a legislar cada vez mais sobre as
relações familiares, as relações amorosas, as relações entre
pais e filhos, como se coubesse a um juiz ou promotor saber
o que é melhor para os indivíduos. Sob a forma da exceção,
começam a legislar sobre as relações normais. Da mesma ma-
neira, começa-se a pedir também ao legislador – isto quando
ele próprio não se arroga essa posição – que crie novas leis
para dar conta de assuntos que deveriam ser resolvidos na
esfera privada, segundo as escolhas de cada um e conforme
os padrões morais de comportamento.
Da liberdade decorre a responsabilidade. Não haveria
responsabilidade moral se os indivíduos fossem declarados
incapazes de decidir por si mesmos, seres menores que jamais
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

alcançariam a maioridade. Uma concepção que integra total-


mente o indivíduo à coletividade faz com que ele seja um mero
membro desta, ao qual não seria dada a faculdade da ação autô-
noma. Se o Estado atua cada vez mais no lugar dos indivíduos,
ele, na verdade, termina por desresponsabilizá-los. A liberdade
implica o ato individual da responsabilização, na medida em
que o ser humano é concebido como um ser indeterminado ou

115
ELSEVIER

não totalmente determinado por fatores naturais ou sociais.


Neste sentido, não há como transferir essa responsabilidade
ancorada na livre escolha. Ora, o que a ação revolucionária
pressupõe é que o indivíduo seja totalmente determinado por
condições sociais, cabendo a um grupo que, paradoxalmente,
conseguiu escapar dessas limitações, reorientar o coletivo de
acordo com os desígnios por ele fixados.
No Brasil, uma outra expressão dessa mesma posição se
encontra na maneira de se transferir ao Estado toda e qualquer
responsabilidade do que acontece socialmente, como se ele de-
vesse equacionar qualquer problema de ordem social. Atente-se
às demandas que exigem do Estado o atendimento de toda e
qualquer exigência, algumas em manifesto confronto com a
propriedade alheia, clamando, como se fosse um direito, por
uma fatia cada vez maior dos recursos públicos – dos impostos
e contribuições. Trata-se, na verdade, de uma transferência de
responsabilidades, baseada na ideia de que os revolucioná-
rios ou reformadores sabem o que é melhor para a sociedade.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Convém aqui insistir na ideia de responsabilização do Estado


a partir de demandas feitas por organizações políticas, que
buscam, na verdade, colocar o mesmo Estado a serviço dos
seus projetos específicos.
Sob esta ótica, uma forma de igualdade compatível com
a liberdade seria a igualdade perante a lei. Isto significa que
a liberdade produz necessariamente a desigualdade social
pelo caráter próprio da ação humana que, ao escolher algo,
se torna beneficiária de sua escolha, admitindo que os outros
igualmente o sejam na comum observância de uma mesma lei
válida para todos. A lei é igualmente válida para todos em sua
generalidade e abstração, cabendo a cada um individualmente
considerado colher o fruto desigual do seu esforço, talento,

116
ELSEVIER

trabalho, capacidade e mérito. Não haveria por que o Estado


interferir nesse processo, pois, ao fazê-lo, ele introduz a desi-
gualdade na comum observância da lei, favorecendo alguns
em detrimento dos demais. Em nome da igualdade, o Estado
agiria desigualmente. Logo, não deveria haver privilégios na
lei, porque o seu escopo é efetivamente universal, voltado para
o futuro e não procurando favorecer grupos particulares no
presente. “A igualdade diante da lei que a liberdade requer
conduz à desigualdade material.”7
Segundo Cícero,8 o conceito de igualdade consiste na
igualdade civil, na igualdade perante leis cuja universalidade
as torna válidas para todos que a compartilham, sendo dela
beneficiários. O cimento que une a comunidade política é a
lei, viabilizando que todos os membros de um Estado, de uma
civitas, possam se manter juntos. Se diferenças legais segregam
uns em relação a outros, ocorre precisamente uma corrosão da
comunidade política, que ficaria entregue ao poder de alguns
que gozam exclusivamente de privilégios. Por outro lado, se
houvesse uma igualdade de riquezas, a liberdade seria suprimi-
da, sendo outorgado ao Estado o poder de tudo decidir, segun-
do critérios determinados por uma minoria, que estabeleceria
uma outra forma de tirania. Da mesma maneira, partir de uma
suposta igualdade do ponto de vista das habilidades seria um
contrassenso em relação à natureza, que não está constituída
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

deste modo. Somente a igualdade civil, que parte das mesmas


condições dadas aos atos voluntários, preenche a condição de
liberdade de escolha e de obediência à lei. Se assim não fosse,
os indivíduos seriam nada mais do que reféns do Estado.
Ao tratar da igualdade natural entre todos os homens,
Locke ressalta que ela não inclui, em sua acepção, a igualdade
7
Ibid., p. 87.
8
República, XXXII 48-9.

117
ELSEVIER

em todos os aspectos. Idade e virtudes diferenciam os homens


entre si, estabelecendo relações de desigualdade. O mesmo
acontece em relação ao mérito, que coloca alguns acima do
nível comum. O sentido da igualdade por ele formulado
consiste na igualdade perante a lei, isto é, na liberdade em
relação à jurisdição e ao domínio dos outros ou de um senhor
determinado, como era o caso na época. Trata-se do “igual
direito que todo mundo tem à sua liberdade natural”,9 não sendo
submetido à vontade ou à autoridade alheia. Cada um tem
o direito de ser senhor dos seus atos voluntários. A noção de
igualdade assim concebida guarda um nexo essencial com
a liberdade, na medida em que incide sobre o igual direito
humano à liberdade de escolha. Ela pressupõe, por sua vez,
outras formas de desigualdade, em outros aspectos. E desta
liberdade nascem as desigualdades materiais, fruto que são
de diferentes esforços, aptidões, aplicação, dedicação e outras
propriedades individuais.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Rousseau, em seu Discurso sobre a economia política, faz


uma ampla defesa da lei como condição mesma do exercício
da liberdade10. A liberdade sem a lei se tornaria mera licen-
ciosidade ou arbítrio individual, em desconsideração para
com a coletividade. Ele chega mesmo a afirmar que o mais
urgente interesse do governante consiste em fazer observar
as leis. Sua autoridade reside precisamente nessa sua função
de respeitar e fazer respeitar as leis.11 Não temos aqui nada
do rompante revolucionário, característico de um outro
discurso seu, sobre a Origem da desigualdade entre os homens.

9
Locke, op.cit., § 54.
10
Rousseau, Jean-Jacques. “Discours sur l’économie politique”. In Écris politiques.
Paris: Gallimard, 1964, p. 248.
11
Ibid., p. 249.

118
ELSEVIER

Cícero poderia perfeitamente subscrever essa sua posição


relativa à liberdade, à lei e à autoridade pública. Com efeito,
ele distingue minuciosamente liberdade de licenciosidade,12
porque os atos voluntários são aqueles que correspondem
a leis autodadas, a regras instituídas por eles mesmos e aos
quais devem obediência. Um homem livre é aquele que segue
as leis instituídas por ele mesmo, ou seja, a liberdade está
baseada na obediência a leis de caráter universal. Se as leis
deixam de ser seguidas, se a liberdade se faz sem limites,
ocorre uma metamorfose, da qual surge a licenciosidade,
que se caracteriza por aquelas ações que não seguem regras,
como se valesse somente o desejo de cada um, o ilimitado
arbítrio individual. A liberdade se converte em servidão. Uma
república sem leis não é, propriamente dita, uma república.
Não caberia ao governo conceder a todos os indivíduos
os mesmos padrões de vida, como se essa forma de realização
da igualdade material estivesse entre suas funções ou, mesmo,
ao seu alcance. A experiência de tais formas históricas de pla-
nejamento redundou no “socialismo real” e em sua falência
econômica, social, política e moral. No entanto, estabeleceu-se
uma forma de imaginário, que termina funcionando coercitiva-
mente sobre a opinião pública e os partidos, em que o governo
deveria se voltar para a tarefa de equalização das condições
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

materiais, e não para a de equalização de oportunidades, con-


forme as escolhas e expectativas individuais.
Na medida em que se criam tais expectativas, o Estado se
sente autorizado a aumentar os impostos e contribuições como
condição mesma de suas medidas. Ao fazer isto, na verdade,
ele termina desequalizando a sociedade ao tirar de alguns para
dar aos outros, como se ele soubesse o que é melhor para cada
12
República, XLIV 68-XLV 69.

119
ELSEVIER

um. Ele não trata os indivíduos enquanto iguais perante a lei,


mas enquanto desiguais ao desapropriar de alguns uma parte
de suas propriedades. Por outro lado, ele diz agir pela igual-
dade material ao infringir a igualdade perante a lei. Enquanto
essa ideia de igualdade material predominar, sob a forma de
uma igualdade material socialmente uniforme, a sociedade
permanecerá refém de um Estado que se sente autorizado a
tudo tentar, embora a sua tentativa se conclua, principalmente,
pelo seu fortalecimento, com a consolidação da burocracia, das
atividades-meios. O Estado se solidifica no mesmo momento
em que diz estar operando pela justiça social.
A demanda pela equalização dos padrões sociais nas-
ce, frequentemente, entre os setores de classe média, em
particular intelectualizados, e não nos setores propriamente
desvalidos, mais voltados para as demandas relativas às
condições de vida e às regras que poderiam viabilizar a sua
realização. Na verdade, é a paixão da inveja que preside as
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

ações e exigências desses setores médios, também incrustados


no Estado, sob a forma de funcionários públicos. Não esque-
çamos que, no caso do Brasil, a força da CUT, por exemplo,
decorre dos sindicatos de funcionários públicos e de empre-
sas estatais, que gozam, em relação aos seus congêneres da
empresa privada, de condições bastante favoráveis, como as
relativas à previdência pública e a melhores salários para os
menos qualificados, que não obteriam a mesma remuneração
no setor privado. A paixão da inveja é apresentada como se
fosse uma demanda por justiça social.13

13
Hayek, op. cit., p. 93. Cf. Héctor Ricardo Leis. “Jekyll ou Hyde? Utopia e
igualdade no pensamento de esquerda”. In Democracia e política. Filosofia política
Série III – no 6. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 24-39.

120
ELSEVIER

2. Estado de direito
Contratos obrigam as partes, não somente no que diz
respeito a bens físicos, como imóveis e terras, mas também
a bens “metafísicos”, intangíveis, nascidos de operações de
créditos ou de investimentos em geral. Sociedades capitalis-
tas modernas são sociedades que lidam, cada vez mais, com
abstrações reais, com papéis dotados de força obrigatória,
que substituem ou são postos no lugar de coisas físicas. Se
para um pensador do século XVII, como Locke, a propriedade
tinha um significado preciso, relativo à terra principalmente, a
propriedade neste início do século XXI envolve um conjunto
de operações financeiras que põe em cena um conceito muito
mais abrangente de propriedade. É como se o cidadão moder-
no operasse cada vez mais com abstrações que determinam,
porém, concretamente, a sua vida cotidiana. Eis por que, neste
tipo de sociedade, o respeito aos contratos deveria ter, ainda,
maior força coercitiva, fazendo com que o Estado honrasse não
apenas os acordos entre indivíduos privados, mas também os
seus próprios acordos. Uma sociedade e um Estado modernos
não podem operar convenientemente se os seus contratos são
imperfeitamente reconhecidos, seja pela lentidão da Justiça,
seja por uma máquina estatal que não exerce adequadamente
a sua autoridade. Se a propriedade fica sob risco, a própria
liberdade periclita.
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

A observação de relações contratuais, baseadas na pro-


priedade privada, é uma condição do crescimento econômico,
do desenvolvimento social e do pleno gozo das liberdades
civis e políticas. Se os contratos não são observados, as relações
econômicas ficam trucadas, o desenvolvimento social é obs-
taculizado e as liberdades são feridas. Contratos são relações
de troca entre indivíduos baseadas no reconhecimento mútuo

121
ELSEVIER

e no poder coercitivo de sua implementação. Se pessoas não


obedecem a contratos e não houver nenhuma punição, a con-
vivência humana entra na anarquia. Isto supõe que o Estado
esteja organizado de tal forma que forneça à sociedade os
meios de implementação dos seus acordos, via, por exemplo,
uma polícia séria e competente e um Judiciário ágil e equita-
tivo. Logo, o próprio Estado deve honrar os compromissos e
contratos por ele mesmo assumidos. Ora, se o próprio Estado
oferece justificativas para que propriedades sejam invadidas,
abre ele uma brecha no estado de direito que se torna propícia
para movimentos e partidos políticos, que procuram, precisa-
mente, abolir o próprio estado de direito que fingem respeitar.
Neste sentido, observar o estado de direito tanto na zona urbana
quanto na rural é da maior importância para que a propriedade
privada seja respeitada e, com ela, as liberdades que lhe vêem
associadas. Um Estado sem lei é aquele que não confere a seus
membros a menor garantia no que diz respeito à paz pública.
Não qualquer legalidade, porém, constitui um estado
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

de direito. Formalmente, o Estado nazista e o stalinista man-


tinham um arcabouço jurídico que formava a sua legalidade.
Não se pode, no entanto, dizer que, neles, o estado de direito
fosse respeitado. O estado de direito envolve não apenas a
legalidade, mas um conjunto de critérios que conforma as leis
existentes a princípios que as testam em sua universalidade,
generalidade e impessoalidade. Consequentemente, o estado
de direito inclui, por assim dizer, a lei e o seu dever-ser. Não se
trata simplesmente de adequar uma ação governamental a um
conjunto positivo de leis, em cujo caso teríamos a legalidade
desta ação, mas a sua adequação a um conjunto de critérios,
que permita determinar se a ação governamental se faz se-
gundo aquilo que ela deve ser. Somente neste caso teríamos

122
ELSEVIER

a conformidade da ação governamental ao estado de direito.


Se um governo age arbitrariamente e esse arbítrio segue as
leis existentes, isto não significa que a ação daí resultante seja
conforme ao estado de direito, embora seja legal. Ela segue
sendo arbitrária. O que ocorre hoje na Venezuela, por exemplo,
diz respeito a uma situação de legalidade dos atos de Chávez
que são, no entanto, contrários ao estado de direito.
O estado de direito engloba regras e metarregras jurídi-
cas, a norma e o princípio, o ser e o dever-ser. Ele fornece, assim,
aos operadores jurídicos, aos políticos e à ação política em geral
um parâmetro para se julgar as leis vigentes e as decisões toma-
das por juízes, abrindo todo um espaço de discussão, de debate
e de elaboração de novas leis. Considerando também que o
conceito de estado de direito envolve a regra e a metarregra, o
ser e o dever-ser, ele comporta o aspecto da regra existente, do
ser. Neste sentido, pode-se dizer que o estado de direito existe
como legalidade positiva, como conjunto de regras que impede
atos arbitrários dos indivíduos entre si e, principalmente, do
Estado contra a sociedade. Em sua origem, o conceito de estado
de direito é uma reação ao arbítrio régio, ao arbítrio dos que
detém o poder. A lei tem precisamente esse estatuto, digamos,
inibidor da arbitrariedade governamental, o estatuto de regrar
possíveis arbitrariedades, embora em toda legislação vigente
exista sempre o conflito entre a regra e a metarregra.
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

Hayek ressalta que the rule of law (o estado de direito) é


um conceito que diz respeito ao que a lei deve ser, sendo uma
“doutrina metalegal”.14 Entre os critérios que o constituem,
merecem ser destacados os seguintes: a) alcance de longo pra-
zo das leis, voltadas para o futuro (ao contrário do que acon-
tece no Brasil, com leis voltadas para favorecer, no presente,

14
Ibid., p. 206.

123
ELSEVIER

determinados grupos sociais e econômicos); b) a lei refere-se


a casos desconhecidos, não favorecendo particulares grupos
sociais, econômicos, religiosos, raciais, sexuais e políticos (ao
contrário do que acontece no Brasil, com a função social da
propriedade, o projeto de lei sobre o Estatuto racial ou o sis-
tema de cotas nas universidades); c) as leis são prospectivas
e não retroativas; d) as leis devem ser conhecidas e certas (ao
contrário do que acontece no Brasil, com a insegurança jurídica);
e) a justiça provém do caráter abstrato, igualitário e universal
de suas leis e não do seu conteúdo concreto, que privilegiaria
determinados setores ou grupos (ao contrário do que acontece
no Brasil, com benefícios a setores sociais, raciais ou étnicos).
Consequentemente, pode-se fazer a distinção entre “boas” e
“más” leis, as primeiras correspondendo ao estado de direito
e, as segundas, o contrariando. As “más” leis não passariam
pelo teste dos critérios do estado de direito.
Caberia aqui a indagação de até que ponto as leis tribu-
tárias no Brasil passariam pelo teste dos critérios do estado
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

de direito, na medida em que constituem um emaranhado de


normas feito para favorecer grupos e setores em detrimento de
outros. Ou seja, boa parte dessas normas peca pelo seu caráter
pessoal, concreto e particular, ao contrário das necessárias im-
pessoalidade, abstração e universalidade. A lei não deveria ser
feita para beneficiar determinados indivíduos ou grupos, mas
por ser igualmente aplicável a qualquer um. Se, por exemplo,
a tributação é feita desigualmente, favorecendo determinados
setores da vida econômica em detrimento de outros, ou con-
cedendo créditos subsidiados a certos grupos econômicos em
detrimento de outros ou dos cidadãos comuns, estamos diante
de infrações daquilo que deveria ser propriamente dito uma
lei. Leis ou regras feitas ad hoc, como as de isenção de impostos

124
ELSEVIER

a determinados grupos e não a todas as empresas e a todos os


contribuintes é uma lei que perde a impessoalidade que deveria
lhe caracterizar. O projeto de lei do estatuto da igualdade racial
ou a do sistema de cotas raciais e/ou sociais nas universidades
cai sob a mesma rubrica.
Um outro instituto jurídico brasileiro coloca o mesmo
problema em relação à sua conformidade ao estado de direito,
embora seja legal e aceito entre os magistrados e promotores.
Refiro-me ao instituto segundo o qual cabe ao juiz decidir
conforme a sua própria consciência e não necessariamente de
acordo com a lei, pois a consciência individual, em sua subjeti-
vidade, é, frequentemente, o lugar do arbitrário, das inclinações
pessoais e dos interesses meramente particulares. Não me refiro
aqui ao problema da interpretação da lei, necessária em virtude
de sua generalidade, quando aplicada aos casos particulares.
Refiro-me a casos em que sentenças e denúncias não seguem
simplesmente a lei. O direito alternativo seria um exemplo entre
outros que poderia ser arrolado. Trata-se, neste sentido, de um
instituto que confere ao juiz um poder discricionário, oriundo
de sua própria interioridade, formada por determinados valo-
res que constituíram, no bom e no mau sentido, a sua educação.
Um juiz formado de acordo com certos valores ideológicos ou
partidários, se aplicar esse instituto, estará julgando segundo o
seu próprio arbítrio, segundo valores pessoais, e não segundo
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

a impessoalidade que deveria ser própria da lei. Se um juiz é


formado conforme valores que consideram a propriedade pri-
vada um roubo, ele tenderá a dar sentenças que contrariam a
própria propriedade privada assegurada pelas leis brasileiras.
Atos administrativos emanados do Poder Executivo pos-
suem igualmente esta característica de não se conformarem,
muitas vezes, ao estado de direito. Trata-se de atos corriqueiros,

125
ELSEVIER

mas que afetam profundamente a vida dos cidadãos, contra os


quais encontram-se sem meios diretos de resistência. A portaria
que altera os índices de produtividade das propriedades rurais
para efeito de desapropriação é um desses casos, pois depende
só do Presidente da República, mediante ato administrativo,
a alteração do regime de propriedade no campo brasileiro.
Em caso de sua publicação, as relações de propriedade serão
muito alteradas. Na verdade, dado o seu alcance, esse ato
deveria obedecer a um trâmite parlamentar, ao qual caberia
recurso ao Judiciário. Poder-se-ia dizer que uma portaria de
tais repercussões atenta contra o estado de direito, embora siga
as leis vigentes. A questão consiste em toda uma legislação en-
volvendo o direito à propriedade que, na verdade, fere vários
dos princípios básicos do estado de direito (the rule of law).
Segundo Cícero, a “lei governa o magistrado, logo o
magistrado governa o povo e pode ser verdadeiramente dito
que o magistrado é a lei falante”.15 O juiz e, num sentido mais
amplo, o governante não constituem uma voz arbitrária, mas
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

uma voz – e uma decisão – regrada por um conjunto de leis do


qual são, no sentido estrito, porta-vozes. A concepção republi-
cana surge aqui como a mais conforme ao estado de direito, o
que, na linguagem de Cícero, corresponde à sua adequação à
“lei natural”, de tal maneira que, nela, impera o governo das
leis, ao qual se subordinam os magistrados. A questão, sob
uma ótica política, consiste em eliminar a arbitrariedade dos
governantes, mantendo o caráter regrado e institucional do
Estado. Em seus diálogos, Cícero insiste sobre o ponto de que
pode haver maus governantes que, não por isto, desmerecem
a república que deveriam expressar. Ou seja, não é pelo fato
de existirem maus republicanos que a república deveria ser

15
Cícero. De Legisbus, Laws III. I. 2-II. 5

126
ELSEVIER

menosprezada. Sua ênfase reside na norma que sobrevive aos


magistrados em geral.
Desde uma perspectiva jurídico-institucional, coloca-se,
então, o problema relativo ao caráter da lei, à lei que rege os
atos dos magistrados e à qual estes devem obediência. Dito de
outra maneira, a questão reside em determinar a conformidade
ou não da lei com a “coisa pública”, na sua adequação à “lei
natural” que tudo governa. O acordo deve se fazer por meio
de uma correspondência da “lei civil” à “lei natural”, sem que
tenhamos necessariamente de recorrer à doutrina do direito
natural, em cujo caso poderíamos ser levados a considerações
sobre o estatuto “natural” da lei, que foge ao escopo do pre-
sente trabalho. É, no entanto, suficiente assinalar para o nosso
propósito atual que a “lei civil” adequada à “lei natural” é
aquela que segue os critérios de universalidade, impessoali-
dade e neutralidade, baseada que está na ideia de cidadania.
Inversamente, a lei civil que não seguir esses critérios poderá
ser dita uma lei sem justificação, isto é, uma “má lei”, que res-
ponderia a interesses meramente particulares, estabelecendo
privilégios para alguns.
Consequentemente, se os magistrados seguem uma “lei
civil” que não corresponde à “lei natural”, que não corresponde
à universalidade, à impessoalidade e à neutralidade que são
suas determinações constitutivas, eles estão corroendo a repú-
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

blica e enveredando para um governo despótico, não importa


ser ele considerado da maioria. Um governo despótico seria,
portanto, um governo que, apesar de seguir uma certa legali-
dade, a saber, uma legalidade duvidosa, injustificada, abusa
de sua “autoridade administrativa”16, não sendo contido por
nenhum limite. Podemos ter casos em que um governo dito

16
Ibid.

127
ELSEVIER

popular segue leis administrativas estabelecidas, leis civis nesse


sentido, que, em desacordo com a “lei natural”, vêm instituir
uma nova forma de tirania, abandonando, precisamente, a
república. A república, a “coisa pública”, está fundada na
universalidade da lei.
E tomando a palavra magistrado no seu sentido mais
amplo de governante, Cícero acrescenta17 que aquele que
governa deve ter antes obedecido e o que obedece pode ser,
amanhã, aquele que governa. Isto significa que a impessoali-
dade, a universalidade e a neutralidade são constitutivas da
lei, são suas propriedades essenciais, não importando, para
sua validade, os abusos daqueles que exercem provisoria-
mente o poder. O que deve ser resguardado acima de tudo
é esta determinação central da lei, à qual incumbe servir de
fundamento ao agir dos governantes e magistrados, que se
adequam progressivamente a ela. Aquele que hoje governa
não pode esquecer que, em pouco tempo, terá de obedecer,
entrando na categoria dos governados; da mesma maneira,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

aquele que, agora, obedece pode ser aquele que, no futuro,


fará os outros obedecerem. O que deve ser de qualquer modo
observado é o governo das leis, sem o qual os privilégios
podem se estabelecer. A questão reside na rotatividade do
poder segundo leis que regem equitativamente a vida de
todos os cidadãos. Ou ainda, no dizer de Paine: “O governo
de um país livre, propriamente falando, não está nas pessoas,
mas nas leis.”18

3. Propriedade e agentes livres


Façamos um breve excurso às posições de Locke, pois
elas permitem melhor colocar as relações entre a propriedade
17
Ibid., Laws III. II. 5-III.6
18
Paine, Direitos do homem, p. 159.

128
ELSEVIER

e o movimento voluntário dos agentes livres. Para ele, o poder


político não é um poder arbitrário, justificado por direito di-
vino ou por qualquer outra razão, mas um poder que emana
de leis, cujo objetivo principal consiste na “regulamentação e
na preservação da propriedade”.19 Os indivíduos se instituem
como membros de um Estado pela preservação que buscam
na satisfação de seus impulsos vitais e na conservação dos
seus efeitos e resultados. Ou seja, o próprio poder político é
considerado um “direito de fazer leis”,20 indo inclusive até
a pena de morte, envolvendo a maior de todas as punições,
também chamada de pena máxima. As leis devem, então, se
conformar à defesa intransigente da liberdade, utilizando
todos os recursos à sua disposição, pois se assim não fosse
ela seria um instrumento da servidão. Todo o sistema legal
daí derivado estará, portanto, ancorado no conceito de pro-
priedade privada, sem o qual o próprio arcabouço jurídico
desmoronaria.
A sua estratégia argumentativa, para compreender a
gênese do poder político, consiste em recorrer ao conceito
de estado natural do homem21, estado este que ele considera
o do próprio homem na condição atual, desarmado de todos
os preconceitos e apetrechos que se acumularam durante a
história da humanidade. Isto significa que ao dizer que os
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

homens são naturalmente livres, ele os considera livres, em-


bora possam se apresentar como encadeados por um poder
despótico, baseado, por exemplo, numa doutrina religiosa.

19
Locke, John. Two Treatises of Government. Chicago: New American Library, 1965.
Segundo Tratado sobre o Governo Civil e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1999. § 3.
Tradução modificada por mim.
20
Ibid., § 3.
21
Ibid., § 4.

129
ELSEVIER

O seu argumento consiste em que, na sociedade, os homens


são livres quando deixados a si mesmos, sem a interferência
de um poder despótico que procura tudo ordenar, fiscalizar e
determinar. Prova disto reside em sua concepção da liberdade
como uma espécie de agir voluntário. É como se ele dissesse
que todos os homens são seres voluntários que procuram
proteger a si mesmos, aos seus bens, à sua integridade física
e moral, ou seja, tudo o que lhes pertence subjetivamente e
objetivamente: a sua propriedade.
Uma consequência importante é a de que os pactos feitos
naturalmente entre os homens continuam válidos, salvo aquele
instituinte do poder político. Os acordos comerciais entre as
pessoas, promessas de compra e venda, são considerados
pré-políticos e guardam toda a sua validade, sendo, neste
sentido, “naturais”. Em consequência, os acordos nascidos
de pactos propriamente políticos não têm o direito de cance-
lar esses acordos naturais, que são primeiros em relação aos
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

segundos, os políticos. Ou seja, não deve ser tarefa do Estado


imiscuir-se, senão para garantir a sua execução, nos contratos
nascidos das relações sociais desses seres voluntários, deno-
minados homens. É como se estes permanecessem, enquanto
cidadãos e membros do Estado, seres naturais que contraem
acordos, fazem promessas, empenham a sua palavra e con-
tratam obrigações22.
Sob esta ótica, uma acepção primeira da liberdade
consiste na liberdade da sujeição e da dominação23, pois é
ela que assegura a conservação dos movimentos voluntários
e as relações de troca entre os indivíduos baseadas em sua
palavra, suas promessas e suas expectativas. A liberdade civil

22
Ibid., § 14.
23
Ibid., § 4.

130
ELSEVIER

daí decorrente consiste na garantia assegurada a todos de que


terão pleno direito na expansão de seu movimento livre, sem
uma coerção arbitrária que impediria a sua realização. Isto
não significa, porém, que cada um teria o direito de fazer o
que melhor lhe aprouver, numa absoluta desconsideração das
regra. Ao contrário, a regra é a condição de possibilidade de
conservação desses atos voluntários. Atos voluntários são os
que se fazem segundo regras livremente consentidas, elabora-
das e promulgadas por um Poder Legislativo24. Leis que sejam
comuns a todos e que não privilegiem alguns em detrimento
de outros. A liberdade consiste na obediência ao estado de
direito e não num suposto direito arbitrário de tudo fazer, em
cujo caso haveria, isto sim, despotismo.
A liberdade reside em um movimento do homem que age
independentemente da coerção violenta que um outro poderia
exercer sobre si. Neste sentido, a lei se torna a condição mesma
da liberdade, enquanto ausência de coerção externa, sobre-
tudo violenta de parte de um outro agente. Entretanto, isto
não significa a ausência total de coerção, pois aí não haveria
lei e a violência estaria instaurada. Deriva dessa formulação
uma outra acepção da liberdade, a decorrente deste movimen-
to da vontade que, conformemente à lei, segue em direção à
satisfação dos interesses dos agentes, ou seja, uma significação
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

positiva da liberdade como autosatisfação, autorrealização, do


homem na busca dos objetos, bens e pessoas que se inserem
neste movimento. Só um ser que age voluntariamente pode
procurar esse tipo de satisfação. Em contrapartida, Locke am-
plia o escopo mesmo da lei, a sua finalidade, na medida em
que ela não seria apenas coercitiva, mas deveria igualmente

24
Ibid., § 22.

131
ELSEVIER

estar voltada para “preservar e ampliar a liberdade”.25 Chama


particularmente atenção a ênfase dada à ampliação da liberdade
e não aos obstáculos à sua realização.
Quando um Estado, através de sua burocracia, põe uma
série de obstáculos à atividade empresarial, como se essa fosse
potencialmente ruinosa, ele torna a lei um empecilho à liber-
dade e não ao seu favorecimento. Da mesma maneira, quando,
na utilização do solo urbano, via leis estabelecidas pelo Plano
Diretor dos municípios em aparente conformidade com a
Constituição Federal, relativa à “função social da proprieda-
de”, o Poder Público estabelece um conjunto de restrições à
plena utilização da propriedade, ele termina limitando aquilo
que deveria favorecer. Tanto mais perigosa fica essa situação
quando se confere a alguns poucos a definição do que é a “fun-
ção social da propriedade”, como se essa fosse auto-evidente.
Abre-se aqui todo um espaço para posições de tipo ideológico
que visam a cercear a capacidade de livre escolha, a partir de
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

uma consideração do Estado como promotor do crescimento


econômico, quando sua função deveria consistir na criação de
condições para esse mesmo crescimento.
A liberdade não pode ser dissociada da livre disposi-
ção da propriedade. Trata-se, sobretudo, da “liberdade, para
cada um, de dispor e ordenar da sua própria pessoa, ações,
possessões e sua total propriedade (whole property), dentro da
permissão das leis às quais está submetida, e, por isso, não
estar sujeito à vontade arbitrária de outra pessoa, mas seguir
livremente a sua própria vontade”.26 Observe-se a ênfase con-
cedida por Locke àquilo que constitui a própria pessoa tanto do
ponto de vista de sua subjetividade como de suas posses, bens

25
Ibid., § 57.
26
Ibid., § 57.

132
ELSEVIER

e propriedades em geral. A liberdade da pessoa se inicia em


seu movimento voluntário, independente, de disposição de si,
naquilo que a torna livre e não submetida a outrem. Continua
em sua ação, em seu processo de saída de si, em sua exteriori-
zação, prosseguindo em suas posses e bens, na materialização
desse seu processo de exteriorização. Ela se conclui em sua
“total propriedade”, reconhecida por todos como aquilo que é
seu, fruto de seu próprio esforço e trabalho, na livre disposição
de si e dos seus bens.
Em sua época, a questão da propriedade privada se
colocava primordialmente em relação à propriedade de ter-
ras. Para ele, a desigualdade nasce de atos voluntários dos
homens que, por seu trabalho, produzem bens, alguns para
serem consumidos, outros para serem trocados por prata e
ouro. Enquanto os bens não pudessem ser trocados, sendo
perecíveis, eles poderiam dar lugar ao direito de um terceiro
apropriá-los. Em todo caso, eles seriam naturalmente destruí-
dos, sendo, este desperdício, inaceitável na perspectiva de um
outro que deles careceria. O desperdício não poderia estar
incluído no conceito de propriedade. No entanto, na medida
em que os bens agrícolas podem ser trocados por outros bens
não perecíveis, como o ouro e a prata, abre-se todo um espaço
de ampliação do direito de propriedade, baseado que está
CAPÍTULO IV Liberdade e igualdade

na postergação da satisfação dos carecimentos. Assim, a vin-


culação entre o trabalho e a propriedade estaria preservada,
fazendo com que seja natural a desproporção e a desigualdade
do que os homens possuem.27
O consentimento humano já está presente na própria
escolha do dinheiro como meio de troca, evitando, desta ma-
neira, o desperdício e viabilizando que mais pessoas possam

27
Ibid., § 50.

133
ELSEVIER

usufruir do trabalho realizado pelos demais. O comércio seria,


neste sentido, uma extensão da propriedade e uma forma de
realização da liberdade. Ampliando essa formulação, Paine
sustenta que o comércio é o melhor substituto para as guer-
ras, introduzindo relações civilizadas nas disputas por bens.
Enquanto as guerras favorecem os governos, o comércio é
benéfico para a sociedade e os cidadãos em geral. “Em todas
as minhas publicações, sempre que posso defendo o comércio,
porque gosto dos seus efeitos. É um sistema pacífico que leva
a humanidade a ser cordial tornando as nações, bem como os
indivíduos, úteis uns aos outros”.28
Por último, poder-se-ia acrescentar, na esteira de Locke
e de Paine, que o Estado existe em função dos serviços que
rende à sociedade, e não ao contrário. Na verdade, uma so-
ciedade bem regulada em suas relações sociais e econômicas,
baseadas na propriedade privada e nos contratos, prescinde de
uma grande instância estatal, pois é capaz de desenvolver-se
por si mesma. A situação muda quando o Estado concede os
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

mais diferentes tipos de privilégios, porque, desta maneira,


ele consegue alterar a posição da sociedade, imiscuindo-se,
diretamente, em seus negócios e assuntos. Uma sociedade
baseada em leis de princípio universal é menos propensa a
intervenções burocráticas, enquanto uma sociedade caracteri-
zada por privilégios possui uma necessidade imprescindível
de todo um setor administrativo, que diferencia os indivíduos
e grupos sociais entre si, distorcendo a universalidade da lei.
Ou ainda, se a sociedade prevalece, os impostos serão menores.
Se o predomínio cabe ao Estado, os impostos serão elevados.

28
Paine, op.cit., p. 182.

134
Capítulo V

O Estado burocrático-
distributivo

A luta de ideias é um componente essencial do modo de


estruturação do Estado, de seu funcionamento e de suas ins-
tâncias. Poderíamos ir inclusive além, dizendo que concepções
conferem a ele sua natureza própria. Dependendo das ideias
predominantes, teremos tipos de Estado diferentes, com al-
teração substancial de suas atribuições. Com efeito, ele não é
uma simples máquina que funcionaria mecanicamente, mas é
orientado por ideias que lhe imprimem a sua feição própria. Se
as ideias mudam, pode também mudar a sua própria natureza.
Do confronto de ideias e concepções nasce um determinado
imaginário social, que passa a orientar o comportamento dos
homens e a ação política. Salvo nas sociedades totalitárias,
esse imaginário não é homogêneo, visto ser ele constituído por
ideias as mais distintas, de cuja correlação de forças surgirá as
que se imporão como dominantes.
Digamos que, nesse primeiro – e central – nível, ocorre
uma luta de ideias, que se trava no domínio público, onde
intervêm como atores os meios de comunicação em geral, a
imprensa, as escolas, as universidades e a própria estruturação

135
ELSEVIER

da família e dos seus valores. Nesse nível, forma-se aquilo que


é estimado, prezado, e o que é condenado, desprezado. Os juí-
zos de valor e os preconceitos se fazem segundo as ideias que
encontram à mão, depurando-as ou não, tudo dependendo do
livre exercício da razão. Chamamos normalmente aquilo que é
socialmente prezado os valores de uma sociedade, reservando
para aquelas ideias menosprezadas o seu sentido negativo, o
de não valores. A adesão privada e pública aos valores de uma
determinada sociedade, o que ela considera mais estimável, é
a condição mesma de coesão dessa sociedade e, mais precisa-
mente, do que ela procura conservar. Nasce daí a sua conside-
ração das instituições e regras que ela considera legítimas, pois
valorizadas desde a perspectiva da coesão social e dos valores
que são tidos como dignos de serem preservados. Instituições
e regras ditas ilegítimas serão, assim, as que se tornarão objeto
de transformação.
Aqui intervém o segundo momento, o do Estado como
instância que se atribui o fortalecimento ou não desses valores
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

e, mais concretamente, colocando-os em prática através de po-


líticas públicas. Dito de outra maneira, os governantes tomam
decisões segundo as ideias que lhes são colocadas como tendo
maior apelo popular, público, as que são, por exemplo, dispu-
tadas numa eleição. A conservação do poder depende em boa
medida do controle desse imaginário social. Eis por que os go-
vernantes de sociedades democráticas midiáticas gastam verbas
vultuosas em publicidade e tentam, inclusive, dominar os meios
de comunicação. O seu objetivo reside no controle do processo
de formação das ideias, da opinião pública. Se a relativização
da propriedade privada, mediante as suas funções social, racial
e indígena, aparece enquanto predominante ou aceitável para a
sociedade no seu conjunto, as ações governamentais tenderão a

136
ELSEVIER

seguir esse caminho. O resultado será a insegurança dos contra-


tos, os altos custos das transações econômicas e a instabilidade
social, senão institucional. O crescimento econômico pagará o
seu preço. Se a propriedade privada for considerada um valor
primeiro, incondicional, as ações governamentais seguirão
um outro caminho, viabilizando o crescimento econômico e o
desenvolvimento social.

1. A “realidade” do Estado
Apesar de considerarmos a realidade algo dado, sim-
plesmente familiar, tal como estamos acostumados a lidar
com as coisas de nosso dia a dia, nada é, contudo, tão evi-
dente. A nossa própria percepção da realidade, daquilo que,
na verdade, consideramos “realidade”, já vem conformada
por um conjunto de valores, de ideias, que nos foi inculcado
pela família, pela educação recebida, pela religião, pela es-
cola, pelas vivências sociais, pelas leituras e pelos meios de
comunicação. Até a nossa própria língua materna é tribu-
tária desse processo que se constitui como a forma mesma
de cultura de um Estado determinado. Logo, cabe falar de
recortes do mundo, de retratos que dele fazemos, segundo
esses valores e ideias que configuram a nossa própria per- CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo

cepção e concepção das coisas do mundo. As instituições,


as regras de sociabilidade, a moral, os costumes e as leis são
tributários dessa conformação cultural à qual damos o nome
de realidade. A própria noção do justo e do injusto depen-
de dessa nossa concepção do mundo, a partir da qual uma
sociedade procura preservar ou transformar as instituições,
regras e normas existentes.
A existência do Estado, suas modalidades e formas de
funcionamento dependem do que é considerado a realidade e,

137
ELSEVIER

por intermédio desta, objeto de transformação possível ou não,


conforme ideias correspondentes de justiça ou de injustiça. Con-
sequentemente, a sua conservação depende de sua capacidade
em superar entraves que são colocados do ponto de vista po-
lítico, jurídico, institucional e moral, resultantes precisamente
do embate de ideias. Economicamente, isto se traduz por
questões atinentes aos custos de aquisição de informações,
às incertezas relativas aos contratos e aos custos das transa-
ções econômicas. Ou seja, o modo mesmo de funcionamento do
Estado depende do imaginário vigente, de suas ideias estrutu-
rantes e dos seus modos de confronto com outras concepções,
de suas instituições, que não beneficiem somente alguns, mas
que se caracterizem por sua impessoalidade, e por suas leis,
que não favoreçam privilegiados, porém sejam efetivamente
válidas para todos.
Cabe ao Estado, por assim dizer, assegurar as regras do
jogo, de modo que sejam imparciais e universalmente válidas.
Se uma das partes do jogo quiser fraudá-lo, não obedecendo
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

ou ilidindo essas regras, compete a ele intervir com o uso


da força, se necessário for, pois dela tem ele o monopólio. O
respeito que tenha dos jogadores depende do seu poder de
coerção, que pode ser a qualquer momento mobilizado. Isto
significa que as regras não podem conter privilégios que sejam
concedidos a uma das partes apenas, pois elas mesmas, nesse
caso, seriam subvertidas, perdendo a sua validade. Regras que
perdem a sua impessoalidade e a sua universalidade começam
a ser objeto de desprezo e de condenação. Os participantes,
no caso os cidadãos, passam a agir baseados na transgressão
dessas regras, segundo a força de cada um dos participantes,
extraindo o maior número de benefícios particulares, que não
podem, por tratar-se de privilégios, ser concedidos aos demais.

138
ELSEVIER

O econômico se imbrica com o político, o filosófico, o


cultural no seu sentido mais amplo. Para que os custos das tran-
sações econômicas não sejam onerados pela insegurança dos
contratos, torna-se necessário que os direitos de propriedade
sejam plenamente reconhecidos. Se esse reconhecimento não
se produz, o efeito é certamente o inverso, isto é, o aumento
desses custos. Ora, a questão da defesa da propriedade não
é uma questão apenas econômica, nem somente jurídica no
sentido do cidadão que comparece diante dos tribunais para
reivindicar um direito seu, mas concerne ao próprio Estado, à
sua natureza. Compete a ele assegurar o cumprimento das leis
e a sua eficácia,1 o respeito generalizado aos contratos, e não
aceitar, nem muito menos acatar, a relativização da propriedade
privada. Mais concretamente deve ele assegurar a liberdade de
escolha, desde o domínio econômico, até o político, passando
pelo civil, de tal maneira que o cidadão tenha plena liberdade
de expressão, negociação, circulação e participação na vida
pública. Eis por que a teoria da propriedade privada remete
a uma teoria do Estado. “Uma teoria do Estado é essencial
porque é o Estado que especifica a estrutura dos direitos de
propriedade.”2 CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo
O Estado trata basicamente dos bens públicos, dos que
revertem para toda a população, procurando recursos para
preencher essas funções. Tais recursos são assegurados por
impostos e contribuições pagos pelo conjunto dos cidadãos,
com a correta expectativa de que os serviços públicos estarão

1
A ideia de que a justiça precisava ser não apenas justa, mas também expedita, se
encontra na polis grega. Cf. Jay, Peter. A riqueza do homem. Rio de Janeiro: Record,
2002, p. 69.
2
North, Douglass. Structure and Change in Economic History. New York: W. W.
Norton & Company, Inc., 1981, p. 17.

139
ELSEVIER

assegurados. Cidadãos não pagam impostos simplesmente


para que a máquina estatal se perpetue em proveito próprio,
não preenchendo as funções para as quais está destinada. Sob
essa ótica, dentre essas, se inscrevem a proteção das pessoas
e a segurança jurídica. A proteção é o que assegura a sobre-
vivência dos cidadãos, a sua conservação física, através dos
meios e dos bens que a garantam. Deve, portanto, o Estado
assegurar os bens físicos e intangíveis das pessoas, de modo
que possam conservar suas vidas, gozando do usufruto do seu
trabalho e prosperando na aquisição de seus bens, de suas pro-
priedades. A segurança jurídica significa a proteção dos bens e
da propriedade. Não lhe compete, como ocorre com a Justiça
Trabalhista no Brasil, exercer nenhuma função distributiva,
como se ao Estado incumbisse uma nova partilha dos bens. A
Justiça é entendida basicamente como proteção dos contratos,
como defesa dos direitos de propriedade.
Ocorre também que o Estado exerça suas funções, ou o
que entende como tais, distribuindo “direitos de propriedade”,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

que não podem ser considerados propriamente direitos de


propriedade privada, completos, mas direitos de propriedade
defectivos, incompletos. Nesse caso, a sociedade estará sub-
metida a uma série de problemas, decorrentes, precisamente,
deste tipo de propriedade “privada”. Logo, o Estado torna-se a
fonte dispensadora de tais direitos de propriedade, em retorno
dos quais passa, ele, a usufruir determinadas vantagens no
que diz respeito à taxação e à imposição, daí extraídas. Trata-
se, por exemplo, de monopólios assegurados pelo Estado que
impedem a livre concorrência. É a imposição de determinadas
formas de tributação, que favorecem certos setores em detri-
mento de outros. São ainda, segundo os casos, impostos de
importação ou de exportação que beneficiam determinados
grupos. Pense-se, por exemplo, na antiga lei da informática,

140
ELSEVIER

no Brasil, visando a favorecer determinados grupos econômi-


cos, tendo como resultado não somente que tais grupos não
se desenvolveram a contendo, como prejudicaram que outros
setores da economia crescessem, tendo como base essa nova
tecnologia.
Douglass North e Robert Thomas utilizam, como vimos,
o conceito de “direitos de propriedade ineficientes”3 para signi-
ficar esses direitos de propriedade defectivos. Na esteira de
Sieyès, pudemos falar de privilégios que, para ele, constituíam
direitos de propriedade, com usufruto exclusivo pela nobreza
das funções e cargos do Estado. Devemos distinguir entre a pro-
priedade privada no sentido estrito e a propriedade no sentido
defectivo, a primeira sendo a condição de desenvolvimento da
sociedade, a segunda de suas travas e estagnação. Da mesma
maneira, podemos dizer que quando um grupo de funcionários
do Estado goza de privilégios que não estão disponíveis para o
conjunto dos cidadãos, é por que eles estão no gozo de direitos
de propriedade defectivos, também chamados privilégios. No
Brasil, ocorre frequentemente que essa forma defectiva de pro-
priedade aparece como sendo “direitos adquiridos”. A ironia
consiste em que ela surge como uma forma de direito defendida
pela esquerda como se fosse contra a propriedade privada, CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo

quando é, na verdade, uma forma de propriedade defectiva.


Em nome da luta social pelos direitos adquiridos, ressentidos
pelos demais cidadãos como privilégios, a “propriedade pri-
vada” é defendida de uma maneira que obstaculiza que os
frutos da verdadeira propriedade privada possam surgir. O
que é, aqui, chamado de justiça social torna-se uma forma de
circunscrição do gozo da “propriedade privada” por parte de
alguns à exclusão dos demais.

3
Douglass North e Robert Thomas, The Rise of the Western World, p. 98.

141
ELSEVIER

De acordo com as formulações de Douglass North e


Robert Thomas, o Estado seria aquela organização encar-
regada de estabelecer e defender o direito de propriedade,
pois, assim, os esforços individuais seriam recompensados
individualmente e os benefícios sociais assegurados para a
sociedade em seu conjunto, aproximando, segundo a sua
terminologia, a taxa individual de retorno da social. Se os
cidadãos pagam impostos é para terem assegurada essa
proteção, de tal maneira que os ganhos e lucros de suas ati-
vidades sejam reconhecidos. Na medida em que o Estado não
protege o direito de propriedade, ele estará também ausente
daquelas áreas em que não vigora, como nas favelas, o siste-
ma legal de propriedade. Consequentemente, nessas áreas, o
crime organizado toma o lugar do aparelho estatal e se volta
para a defesa da posse precária, da propriedade defectiva.
O crime organizado e as formas esquerdistas de uso da vio-
lência prosperam onde as formas de propriedade defectiva
organizam as relações humanas. Nesta perspectiva, não faria
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

tampouco sentido que os cidadãos pagassem impostos que,


depois, seriam canalizados, por exemplo, via Ministério do
Desenvolvimento Agrário para atividades de grupos polí-
ticos tais como o MST e a CPT, que se dedicam a destruir e
a inviabilizar a propriedade privada no campo. No caso, os
impostos seriam utilizados perversamente.

2. Mercantilismo?
De Soto, na esteira de Douglass North e Robert Thomas,
considera que a sociedade peruana, e por extensão outras socie-
dades latino-americanas, corresponderia a um sistema de tipo
mercantilista, e não democrático-capitalista, na medida em que
o mercantilismo pode ser definido “como a oferta e a demanda
por direitos de monopólio mediante leis, regulamentos, sub-

142
ELSEVIER

sídios, taxas e licenças”.4 Ou seja, os mecanismos de mercado


estariam entravados por privilégios legalmente instituídos,
que terminariam produzindo uma economia cartorializada e
compartimentada por subsídios e regulamentos. A definição
de mercantilista, no caso, é adequada, embora ela coloque o
problema de que essa forma de atuação do Estado corresponde,
historicamente, a uma etapa anterior ao pleno florescimento da
propriedade privada. O mercantilismo, neste sentido, seria pré-
capitalista, enquanto hoje ele convive e se alimenta das formas
capitalistas existentes, sendo, ao mesmo tempo, um obstáculo
ao surgimento de uma verdadeira economia de mercado. Isto
é, ele se alimenta do capitalismo e não é somente uma forma
de oposição a ele.
Reinaria nesses Estados ditos mercantilistas não a com-
petição, baseada num sistema legal de propriedade, mas a
“habilidade em ganhar privilégios e usar a lei em vantagem
própria”5, utilizando para isto as regulamentações estatais. Isto
significa que os que não têm força para entrar nessa disputa
corporativa se encontram excluídos ou imperfeitamente incor-
porados, sejam eles grupos empresariais, a classe média, traba-
lhadores não sindicalizados ou os excluídos do sistema legal de
CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo
propriedade. A luta pelos privilégios vem, assim, a caracterizar
a ação política, seu resultado sendo um Estado centralizado
e altamente burocrático, com as distorções inerentes a uma
oligarquia, que domina toda a sociedade, as chamadas elites.
Os privilégios tomam a forma de propriedades “adquiridas”
pelos que detêm posições de poder. Não é, pois, de estranhar
que, nesses Estados, grasse a corrupção, as negociatas e as
barganhas dos mais diferentes tipos, pois estas podem elas

4
De Soto, Hernando. The Other Path. New York, Basic Books, 1989, p. XX.
5
Ibid., p. 209.

143
ELSEVIER

florescer livremente. Trata-se de um terreno particularmente


fértil para o seu desenvolvimento.
Defrontamo-nos aqui novamente com o problema das
“boas” e “más” leis. As “boas” são as que possibilitam que os
informais ingressem no mercado formal, enquanto as “más”
são aquelas que tendem a conservar o status quo, baseado na
exclusão de uma boa parte da população dos benefícios de
um sistema legal de propriedade. E isto vale não apenas para
as propriedades tais como terras, carros, terrenos e imóveis,
mas também para empréstimos, investimentos, aluguéis,
contratos de trabalho e outros. “Boas” leis são as que propi-
ciam e correspondem a um conceito pleno de propriedade
privada; as “más”, ao seu sistema defectivo. Um resultado de
“más” leis consiste, num Estado como o brasileiro, em que o
governo está sempre aumentando as suas despesas para dar
conta do sistema de propriedade defectivo. Torna-se, assim,
necessário, para financiá-lo, aumentar incessantemente os
impostos, sobrecarregando ainda mais o setor formal da
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

economia. Consequentemente, este, cada vez mais sobrecar-


regado, resvala para a informalidade, fazendo com que este
setor cresça, forçando, por sua vez, o Estado, com despesas
crescentes, a aumentar, num círculo vicioso, a tributação do
setor formal e assim continuamente.6
Está em questão a existência, entre nós, de toda uma tra-
dição de legisladores e governantes latino-americanos, voltados
para a redistribuição da riqueza e não para a sua produção.
Segundo essa tradição distributivista, cria-se um conjunto de
leis, as “más leis”, com o intuito de conceder benefícios aos
trabalhadores formais da economia, em detrimento dos infor-
mais, de favorecer certos setores da econômica em detrimento

6
Ibid., p. 175.

144
ELSEVIER

de outros, através de subsídios ou de reduções tributárias.


Engendra-se todo um sistema burocrático que transforma o
Estado em provedor de benefícios e concessões, como se tivesse
o poder e a sabedoria para exercer tais funções. Ou seja, o poder
ele o detém pelo uso virtual da força; a sabedoria não, pelas
distorções e disfuncionamentos que causa. Esse tipo de socie-
dade se torna cada vez mais burocratizado e menos propenso
ao desenvolvimento do empreendedorismo e da liberdade de
escolha. A economia de mercado fica truncada.
O lado particularmente perverso da tradição distributi-
va consiste em que cria uma teia de privilégios que enreda o
conjunto dos cidadãos. Isto é, os privilégios são formas de pro-
priedade defectiva, que se tornam o objeto de ações políticas e
administrativas. A tradição populista é rica dessas distorções.
O Estado dita as regras do jogo e distribui ele mesmo as cartas,
fazendo com que a disputa pelos privilégios se converta em
alvo de sindicatos, grupos empresariais e corporações privadas
ou públicas. Os mais fortes estão particularmente bem posicio-
nados ao excluírem os demais desse processo de disputa pela
apropriação dessa fatia dos privilégios. A política se vê, assim,
reduzida a uma disputa por cargos (que dão acesso aos privi-
légios) e aos privilégios propriamente ditos (formas defectivas CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo

de propriedade). A essa perversidade se acrescenta ainda uma


outra, a de que alguns participantes desse jogo se apresentam
como representantes da justiça social e dos direitos adquiri-
dos, como se representassem pretensões universais, quando,
na verdade, nada mais fazem do que conservar e conquistar
posições particulares, privilegiadas.

3. Direitos sociais
A questão reside em como se entende a natureza do
Estado e quais direitos e propriedades tem ele a função de

145
ELSEVIER

assegurar. Hoje, fala-se corriqueiramente que uma das fi-


nalidades do Estado consistiria em desenvolver e proteger
os direitos sociais, considerados direitos de certa forma
superiores aos direitos individuais. De lá, tiraria ele a sua
legitimidade, a partir da qual estariam justificados os mais
diferentes tipos de impostos e contribuições. À nova noção de
direito corresponderia uma administração estatal forte que
se sobreporia ao conjunto dos cidadãos. No entanto, em até
que ponto os direitos sociais são propriamente direitos? Não
se trataria de uma expressão equivocada vindo a assinalar
a necessidade de uma melhoria das condições sociais para
os que se encontram na penúria? Não seriam os “direitos
sociais” a expressão de formas defectivas de propriedade,
que se instalaram como condição mesma de lutas políticas?
A partir do surgimento do dito Welfare State, as políticas
sociais evoluíram no sentido de prevenir problemas da socieda-
de no seu conjunto, como se o Estado devesse estruturalmente
se ocupar dessas questões. Pode-se, num certo sentido, dizer
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

que isto se devia a certas políticas de esquerda ou de um imagi-


nário social, que atribuía ao capitalismo deficiências estruturais,
que só poderiam ser equacionadas por um Estado atuante,
voltado para evitar o nascimento desses problemas. Observe-
se que ditas políticas não estavam pontualmente ligadas a
infortúnios individuais, que poderiam e mesmo deveriam ser
atendidos pelo Estado. Pessoas necessitadas podem ser aten-
didas pelo Estado ou por instituições privadas ou religiosas,
sem que daí se siga a noção de que teriam este direito.
A noção de direito está historicamente associada às de-
mandas de indivíduos e grupos sociais que reclamavam direitos
como os de exercer o seu pensamento, circular, exercer a sua
religião, escrever, ter acesso ao mercado de trabalho e outros.
Nesse sentido, os direitos dizem respeito à liberdade de escolha

146
ELSEVIER

do indivíduo, que, assim, se coloca como proprietário privado,


capaz de possuir bens reconhecidos pelos outros, sejam bens
físicos, sejam fungíveis ou imateriais. Toda uma sociedade é
construída a partir de contratos feitos por tais indivíduos e
assegurados pelo Estado. Os impostos pagos custeiam a máqui-
na estatal para que exerça essa função, sendo, desta maneira,
consentidos por aqueles que aceitam transferir para um ente
coletivo uma parte de sua propriedade. Impostos e tributos são
transferências de propriedade, as quais são autorizadas pelos
cidadãos em função dos ganhos daí extraídos, principalmente
os concernentes à vida, à propriedade e à liberdade, ou seja, a
segurança em geral e a segurança jurídica em particular.
O caso muda de figura quando passamos para os direitos
sociais, porque aí as transferências de propriedade não são fei-
tas para assegurar os direitos individuais, frutos do trabalho e
do esforço de cada um, mas para outros indivíduos ou grupos
sociais e raciais. Na verdade, os que usufruem de direitos sociais
têm acesso à propriedade alheia, por intermédio do Estado que
fica com uma parte desses recursos transferidos, usados para
manter a sua própria máquina e para os funcionários, que se
ocupam da efetivação desses direitos sociais. Cria-se, assim,
uma situação em que essa transferência de propriedade me- CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo

diante impostos e tributos é ocultada, como se o Estado fosse


o verdadeiro proprietário desses recursos, podendo dispor
deles a seu bel-prazer. Esse processo de ocultamento é de tal
maneira feito que os cidadãos já não mais percebem que são
contribuintes, transferindo uma parte dos seus recursos para
uma entidade coletiva, que se apresenta e afirma indispensável
em sua tarefa distributiva.
As funções distributivas do Estado não são propriamente
funções estatais, senão num sentido recente e lato do termo.

147
ELSEVIER

Basicamente, elas datam do Welfare State a partir de uma pos-


tura segundo a qual os cidadãos não seriam completamente
responsáveis do que fazem, visto que o capitalismo, como re-
gime socioeconômico, seria incapaz de viabilizar prosperidade
social para todos. Não esqueçamos que, depois da revolução
bolchevique, surgiu um certo senso comum de que o socialismo/
comunismo seria um regime superior, por estar baseado no
planejamento de uma entidade estatal sapiente das necessi-
dades sociais em seu conjunto. Enquanto o regime soviético
e o socialismo em geral soçobravam, vítimas precisamente do
planejamento, eles foram, não obstante, vitoriosos ideologica-
mente, na ideia de que o socialismo, de que a economia plane-
jada, seria superior. Perderam, mas de certa forma venceram.
Permaneceu, então, a ideia de que as relações pessoais,
político-administrativas, seriam a solução de todos os males
sociais, como se as relações impessoais do mercado não
pudessem preencher muito melhor essa função. Foi e con-
tinua sendo em alguns países o caso do estabelecimento
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

de controle de preços, de determinação governamental da


margem de lucro das empresas ou das entidades empresa-
riais-estatais, da centralização administrativa e de outras
medidas. Surgiram, assim, formas de controle do mercado
que se traduzem por iniciativas do tipo seguro-desemprego,
bolsa-família, cestas básicas, tendo como contrapartida o au-
mento correspondente dos impostos, transferindo os ganhos
de uns para outros. Logo, a liberdade de escolha é cada vez
mais cerceada. Em vez do Estado conceder aos indivíduos
a possibilidade de se tornarem responsáveis, auxiliando-os
em uma situação de necessidade, fazendo-os de fato livres,
os governos se orientaram cada vez mais para uma política
indiscriminada de bem-estar social, tornando esses cidadãos

148
ELSEVIER

pessoas que passaram a viver à custa dos outros, não preci-


sando, na verdade, sair de sua situação de penúria. Com a
bandeira dos direitos sociais, esse tipo de postura foi ainda
fortalecido, porque, agora, não importa o que fizerem, pois
estarão exercendo um direito contemplado pelo Estado,
chancelado por eleições democráticas.
Nesse processo, o peso do Estado não poderia cessar de
crescer para atender a essa demanda crescente. Ele é também
movido por suas necessidades burocráticas, aumentando a
sua ineficiência e criando, por sua vez, novos “direitos”, num
processo incessante, que pesa cada vez mais sobre aqueles que
contribuem, com impostos e tributos, para a sua conservação.
Por exemplo, indivíduos contemplados pelo bolsa-família não
têm nenhum estímulo para sair de sua condição de não traba-
lho, podendo, ademais, conservar essa situação através do voto
que elege governantes, que dizem representar direitos sociais.
Estado e destinatários desse tipo de bolsa vivem da contribuição
alheia, mas agem como se dela fossem legítimos donos. Não se
trata, evidentemente, de negar ajuda aos necessitados, mas de
fazê-lo de forma a que deixem de ser necessitados, prestando
assim conta dos recursos privados que foram a eles destinados.
No caso dos direitos individuais, encontra-se em sua de- CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo

terminação principal a defesa da propriedade privada, da vida


e das liberdades. O indivíduo, como tal, é o centro nervoso da
questão dos direitos. No caso dos direitos sociais, ocorre um
deslocamento importante, porque o cerne da questão é o do
uso da propriedade alheia, por intermédio de um Estado que
se arroga essa função. Para cumpri-la, porém, ele deve se dotar
de ideias que justifiquem a sua ação e possam ser politicamente
disputadas na sociedade. E essas ideias terminam constituin-
do toda uma concepção organizada em torno do conceito de

149
ELSEVIER

direitos sociais. Na esteira desses direitos cria-se uma coorte


de “direitos”, que são propiciados pelo Estado, senão por ele
incentivados, a partir da participação organizada de certos
partidos e grupos sociais.
O que chama particular atenção é o fato de todos compar-
tilharem a ideia de que o Estado deve progressivamente se ocu-
par das relações humanas, das relações individuais, indicando
o bom caminho e a boa conduta, como se pessoas responsáveis
fossem incapazes de pensar ou de escolher por si mesmas. E
esses “direitos” são financiados pelos contribuintes que pagam
para que o Estado passe a exercer mais essas funções. É como
se não houvesse limites para a ação do Estado, podendo este
sempre exaurir mais a sociedade com o aumento da receita de
impostos, taxas e contribuições. A sociedade é progressivamen-
te onerada em nome da função social estatal, de sua concepção
distributiva, ancorada, por sua vez, em ideias e partidos que
as veiculam, velando a sua própria fonte de financiamento: o
cidadão contribuinte.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Tomemos a questão do direito à moradia. Por que um


indivíduo que não trabalha vai ter “direito” à moradia, en-
quanto um trabalhador terá de trabalhar para conquistar a
sua moradia? Um bem imóvel é fruto de um ato de compra,
decorrente de uma poupança e/ou crédito de uma pessoa que
perseguiu esse objetivo, tendo feito esforços para consegui-lo.
A compra de um imóvel é fruto da liberdade de escolha numa
sociedade que honra os seus contratos. A responsabilidade
pessoal está aí firmemente engajada. Ela não é resultado de um
dom do Estado, mas do esforço de cada um. Mesmo no caso
de um crédito público, trata-se de um empréstimo a ser pago,
logo não onerando a propriedade alheia. A noção de direito
à moradia seria um uso impróprio, porque a única noção de

150
ELSEVIER

direito cabível seria a do direito individual de aquisição de um


bem imóvel, segundo os termos de respeito aos contratos e de
exercício da liberdade de escolha.
O caso das legislações trabalhista e sindical se insere
nesta dimensão de direitos sociais, que seriam assegurados
burocraticamente pelo Estado. Hayek assinala como um caso
particularmente grave de atentado ao estado de direito o mo-
nopólio que organizações sindicais passam a exercer sobre o
mercado de trabalho. No caso brasileiro, teríamos: a) o imposto
sindical que obriga os empregadores e empregados a contri-
buírem para os seus sindicatos, frisando, aqui, o caráter da
obrigatoriedade e não o de ato voluntário; b) uma legislação que
favorece direitos adquiridos de uma parte dos trabalhadores,
abandonando uma outra parte, sem direito algum, ao mercado
informal, na medida em que altos impostos e obrigações traba-
lhistas impedem a sua formalização; c) a representação sindical
por setores com sindicatos únicos, impedindo a competição
entre essas organizações; d) o direito indiscriminado de greve
no setor público, afetando setores essenciais, sem nenhum tipo
de penalidade.
Em nome de ditos “direitos sociais”, o Estado pode se
arrogar o direito de ditar medidas referentes aos aluguéis. CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo

Hayek dá o exemplo do controle de aluguéis, muito em voga


na Europa entre guerras e, mesmo, depois como um caso de
expropriação da propriedade privada, embora os que advo-
guem por essa política evitem o uso desse termo e o substituam
pelo de justiça social ou de ajuda aos desfavorecidos. Apesar
do controle de aluguéis não existir atualmente no país, ele já
foi vigente em épocas recentes, tendo se traduzido por efeitos
perniciosos na economia, com a diminuição de unidades ha-
bitacionais para locação, queda de ritmo na construção civil e
desestímulo a investimentos. Esse exemplo mostra também

151
ELSEVIER

como esse tipo de medida emergencial, ao se perpetuar, termina


produzindo o problema que procura sanar. Ademais, cria-se o
problema suplementar do cidadão dessassistido, que recorre
ao Estado para resolver uma questão de cunho individual. Os
governantes, por sua vez, se sentem ainda mais autorizados
para usarem o seu poder de uma forma discricionária, inter-
vindo na esfera das relações econômicas entre os cidadãos. Um
contrato baseado em um controle de aluguel desse tipo está, na
verdade, baseado numa “má” lei. Do mesmo modo, pode-se
dizer, em relação a questões relativas ao planejamento urbano,
que o problema não consiste em ser pró ou contra ele, mas em
saber se ele contribuirá para o desenvolvimento do mercado
ou para obstaculizá-lo.
O aumento da esfera de atuação do Estado se faz inclu-
sive presente na postulação de como as relações ditas raciais
devem ser do ponto de vista da propriedade, do emprego e
do estudo, como se, assim, a justiça social fosse restabelecida.
Põe-se em prática a ideia de que um outro tipo de discrimina-
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

ção poderia resolver a injustiça de uma discriminação anterior,


diferenciando ainda mais os indivíduos entre si. Novamente,
encontra-se em jogo a ideia de que cabe ao Estado fazer justi-
ça, de que sua função distributiva é essencial, como se a sua
determinação principal não fosse a segurança dos cidadãos, a
defesa da propriedade e das liberdades, o que implica o respeito
aos contratos, a livre iniciativa e a responsabilidade moral. O
Estado termina se arrogando uma posição onisciente, ditando e
impondo aos indivíduos como o seu comportamento deve ser.
Os atributos pessoais e o mérito individual desaparecem
em proveito de uma propriedade física, como se essa fosse
central do ponto de vista da qualificação da pessoa. Pior ainda,
estabelece-se um novo problema resultante da autonomeação,

152
ELSEVIER

da autodesignação segundo um critério racial. De fato, a própria


pessoa irá se identificar como preta ou parda. Numa sociedade
extremamente miscigenada, as questões daí decorrentes são
praticamente inextricáveis. Quem determinará a dosagem de
sangue negro em uma pessoa que a qualificaria racialmente?
Vinte ou trinta por cento seriam suficientes? Ou cinquenta ou
sessenta por cento? Quem decide? Uma comissão nomeada
pelo Estado que se arrogaria essa função, operando como um
dispensador de critérios raciais? Quem garante que, amanhã,
esses mesmos critérios não serão utilizados com outra finali-
dade, para incriminar essas mesmas pessoas?
O Estado é mesmo tentado a agir a partir de medidas de
cunho administrativo, que já não necessitam ser avaliadas ou
julgadas por uma instância jurídica, salvo no caso de malver-
sação de recursos. Um exemplo disto é o decreto presidencial
(Decreto Federal no 4.887, de 20 de novembro de 2003), ad-
ministrativo, que viabiliza a desapropriação de terras ditas
quilombolas por mera designação dos interessados, embora
nenhuma comunidade quilombola exista nas terras em questão.
A questão reside em que o Estado aumenta a esfera de atuação
de seu arbítrio, porque suas políticas são conduzidas ao seu
bel-prazer, necessitando, apenas, a sua legitimação junto à CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo

opinião pública, particularmente sensível a manipulações. Os


perigos de tal política numa sociedade altamente miscigenada
como a brasileira se situam para além do palavreado moral-
demagógico e remetem a políticas racistas, que podem criar
problemas onde eles não existem, pelo menos até então.
Há aqui envolvido todo um conjunto de questões rela-
tivas ao mérito, à responsabilidade pessoal e à livre iniciativa,
que é central do ponto de vista da afirmação de uma sociedade
que se vê obrigada a repensar as funções de um Estado, que se

153
ELSEVIER

faz, progressivamente, protagonista social. Mais concretamente,


o problema se refere à proeminência ou não do indivíduo ou
da comunidade, isto é, da liberdade ou de imposições coleti-
vas. Se a pessoa deixa de ser considerada e julgada enquanto
indivíduo e passa a ser vista sob o prisma de sua inserção
comunitária, as noções de responsabilidade moral e de livre
iniciativa desaparecem em proveito de outras determinações,
que podem ser as de raça, de religião, de sexo ou de condição
social. “O programa de ‘liquidação’ de Stalin, i.e., o assassinato
de ‘kulaks’, por exemplo, e o genocídio de judeus e de ciganos
por Hitler foram justificados pela ideia de que as pessoas devem
ser julgadas e tratadas com base não no seu comportamento
pessoal, mas no fato de pertencerem a um determinado grupo,
seja ele social, étnico ou racial.”7

4. Estado de direito e justiça distributiva


Políticas de justiça distributiva terminam, em diferentes
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

aspectos, atentando contra o estado de direito, na medida em


que suspendem vários de seus princípios. A justiça distributiva
está baseada em um Estado centralizado, cuja preocupação
central não consiste no fortalecimento e na observância do es-
tado de direito, mas em políticas discricionárias que ele estima
socialmente justas. Ora, é essa ideia do socialmente justo que
começa a se apoderar do imaginário social, tornando o Estado
justificado e justificável em suas medidas. Se o imaginário
social não estivesse persuadido do caráter moralmente justo
dessas medidas, ficaria muito mais difícil para o Estado atuar.
Em todo caso, ele deveria primeiramente fortalecer essas ideias
junto à opinião pública para poder se sentir autorizado, para
infringir certos princípios do estado de direito. Ademais, uma

7
Pipes, op. cit., p. 339.

154
ELSEVIER

vez autorizado, ele passa a centralizar recursos para levar a


cabo essas políticas redistributivas, o que passa pelo aumento
da arrecadação de impostos, taxas e contribuições, sem o qual
sua política seria letra morta. Ou seja, o Estado passa a operar
segundo medidas de cunho administrativo, que já não neces-
sitam ser avalizadas ou julgadas por uma instância jurídica,
salvo no caso de malversação de recursos. A questão reside em
que o Estado aumenta a esfera de atuação do arbítrio, porque
suas políticas são conduzidas aleatoriamente, necessitando,
somente, a sua legitimação junto à cena pública.
“A justiça distributiva requer a alocação de todos os recur-
sos pela autoridade central; ela requer que ao povo seja dito o
que fazer e a quais fins servir.”8 Duas políticas governamentais
são pensadas conjuntamente, a da centralização dos recursos
pela autoridade estatal e a da formação da opinião pública por
intermédio de dizer ao povo o que fazer e a quais propósitos
deve servir. Isto é, o governo se atribui o saber de quais políticas
distributivas devem ser implementadas, tirando de alguns para
distribuir para outros, segundo critérios que ele estima como
verdadeiros ou moralmente justificados. Abre-se, assim, todo
um espaço para que o governo e os partidos no poder evoluam
CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo
no sentido de um fortalecimento de seus atos administrativos,
progressivamente mais independentes da sociedade. O seu
resultado consiste no crescimento da máquina burocrática, na
ampliação das funções do Estado em relação à sociedade e no
aumento dos impostos, às expensas dos contribuintes. A sua
contrapartida reside em que os setores favorecidos passam a vo-
tar nos que optaram politicamente por esses atos ditos de justiça
distributiva, perpetuando o círculo vicioso assim estabelecido.

8
Hayek, op. cit., p. 232.

155
ELSEVIER

O bolsa-família é um exemplo particularmente eloquente desse


tipo de clientelismo político.
O próprio conceito de Estado de bem-estar é altamente
indefinido9 por ser constituído de elementos antagônicos
entre si, alguns apontando para o estado de direito e a eco-
nomia de mercado, outros sinalizando para uma legalidade
de tipo meramente administrativo e arbitrário, controlando
cada vez mais as atividades mercantis. Assim, o aumento
dos impostos, a centralização administrativa e a justiça dis-
tributiva terminam preponderando sobre as instituições e
as regras que favoreceriam igualmente a todos, afirmando
o primado do estado de direito, a segurança dos contratos
e submetendo o próprio Estado ao controle das leis. O Es-
tado de bem-estar material vem a viabilizar um governo de
homens e partidos e não um governo de leis, na medida em
que estas são cada vez mais moldadas pela vontade dos go-
vernantes, que procuram, discricionariamente, implementar
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

políticas específicas.
O Estado vive às expensas da sociedade, apesar de ter a
pretensão de se apresentar como se dela não dependesse. Ele
ganha tal autonomia não apenas administrativamente, mas
também no nível das ideias, como se fosse um juiz que não
deveria dar conta dos recursos que recebe. Forja-se, inclusi-
ve, um imaginário em que ele é o responsável por tudo que
de bom acontece e, se mais não faz, é porque carece de mais
recursos ou porque interesses escusos impedem que ele siga
adiante. “Embora o governo evite reconhecer os erros que
comete e os males que ocasiona, não deixa de atribuir a si
tudo o que tem aspecto de prosperidade.”10 Eis a artimanha

9
Ibid., p. 259.
10
Paine, Direitos humanos, p. 138.

156
ELSEVIER

principal do Estado, consistente em vender essa ideia, sob a


qual abriga o aumento dos impostos. Todos os meios são bons
para cumprir esse seu objetivo de fortalecimento. As despesas
são aumentadas e, depois, é exigido à sociedade que supra
esse déficit. “A invenção é continuamente exercida para for-
necer novos pretextos para receita e criação de impostos.”11
Ora, o governo deveria ser sempre controlado e fiscalizado
por ter uma tendência inerente ao aumento de suas despesas
e a dispensar privilégios aos seus membros e aos que dele
estão próximos.
Essa questão termina remetendo àquela outra de como
determinar o caráter de Estados latino-americanos ou de
países ditos emergentes – mas que valeria também para os
Estados que procuram implementar prioritariamente a justiça
distributiva. A proposta de considerar ditos Estados mercan-
tilistas por acentuarem as distorções fiscais, os privilégios
dos setores organizados da sociedade e o uso do aparelho do
Estado com propósitos de tipo patrimonialista, guarda um
caráter impreciso, como assinalado, por remeter a um Estado
que vigorou antes do florescimento do Estado propriamente
capitalista. Uma forma de conceitualizá-lo seria considerá-lo
CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo
um Estado burocrático-distributivo. Burocrático, pois cresce sem
cessar para atender às necessidades de uma máquina sempre
mais forte. Distributivo, pois se apodera de uma bandeira
social, moral, como se sua função fosse a mera distribuição
de riquezas e não a criação de condições para que a riqueza
seja produzida.
Uma outra questão igualmente relevante consiste em
que esse Estado burocrático-distributivo está se tornando, na
América Latina em particular, uma espécie de substituto do

11
Ibid., p. 136.

157
ELSEVIER

Estado socialista, como se os militantes de esquerda estives-


sem, agora, se convertendo a essa nova concepção, embora
essa conversão não seja nem muito clara para eles mesmos. O
caso brasileiro, neste sentido, é particularmente interessante,
porque seja no governo Fernando Henrique, seja no governo
Lula, o Estado tem desenvolvido essas características, aliás
também presentes nos governos populistas. Lula terminou
fortalecendo essa tendência, aumentando ainda mais a esfera
de interferência do Estado, o que se traduziu pelos seguintes
aumentos: a) impostos e contribuições; b) políticas sociais as-
sistencialistas como o bolsa-família; c) políticas discricionárias
como as leis de discriminação racial, presentes no sistema de
cotas e no decreto referente às quilombolas.
Por outro lado, o PT continua dividido em relação a
esse ponto, na medida em que várias de suas tendências mais
à esquerda, como a Democracia Socialista e a Articulação de Es-
querda, continuam propugnando pelo modelo socialista. De
uma ou outra maneira, elas consideram o governo Lula de
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

transição ao socialismo ou podendo virtualmente exercer essa


função. Lula, por sua vez, vem dando cada vez mais sinali-
zações de que não avançará nesta linha, privilegiando uma
política econômica ortodoxa, liberal nesse sentido, e fazendo
coligações com partidos que, majoritariamente fisiológicos,
não têm nenhuma propensão para uma experiência socialista.
Podem, no entanto, porque isto lhes favorece, seguir políticas
distributivas e, também, de corrupção, centradas num Estado
burocrático-distributivo. Neste contexto, fica muito difícil para o
atual governo levar a cabo uma reforma tributária, no sentido
da desoneração das empresas e dos contribuintes em geral, e
uma reforma trabalhista, que flexibilize a legislação, porque
ambas medidas iriam contra o Estado burocrático-distributivo,

158
ELSEVIER

sinalizando para um Estado baseado na defesa intransigente da


economia de mercado, do estado de direito e da livre escolha
dos cidadãos.
Por fora dessas posições, mas fazendo igualmente parte
delas, corre o MST, a CPT e organizações congêneres, que conti-
nuam apostando no Estado socialista-autoritário, propugnando
pela eliminação do estado de direito, da propriedade privada
e da representação política. Seu alvo consiste num Estado oni-
presente, onisciente e onipotente dirigido por um grupo de
iluminados. Utiliza-se, porém, para cumprir com os seus objeti-
vos, do Estado burocrático-distributivo, mediante o bolsa-família,
cestas básicas, lonas e uso de recursos públicos via organizações
de fachada. Ou seja, drenam os recursos dos contribuintes para
os seus propósitos de eliminar as fontes de recursos desses
mesmos contribuintes. No aparelho estatal, estão fortemente
representados no Ministério do Desenvolvimento Agrário e
em seus órgãos como o Incra e a Ouvidoria Agrária Nacional,
no Ministério do Meio Ambiente e, em particular, no Ibama, e
no Ministério do Desenvolvimento Social, com os benefícios
do bolsa-família. No PT, ocupam igualmente posições de for-
ça, porque todas as tendências se dizem favoráveis à reforma
agrária e aos movimentos sociais, embora algumas comecem CAPÍTULO V O Estado burocrático-distributivo

a discordar dos métodos violentos que são utilizados.


Mais precisamente, esses nostálgicos do socialismo
decidiram jogar por fora do campo democrático, por fora das
regras institucionais, atentando claramente contra o estado de
direito. Não lhes faltou o beneplácito do PT. Ainda no final de
abril de 2007, o presidente deste partido fez questão de frisar o
seu apoio ao “abril vermelho”. A esquizofrenia é total, porque
o partido apóia o governo, inclusive naquelas políticas que
terminam também favorecendo o mercado financeiro, apesar

159
ELSEVIER

de fazer uma encenação crítica. Igualmente deve ser aqui


salientado que um outro setor dos nostálgicos do socialismo
está se acomodando a este Estado burocrático-distributivo. Isto
porque o seu lado distributivo lhes permite dizer que estão
seguindo princípios socialistas e o burocrático é o que lhes
possibilita obter empregos na máquina estatal. Esta acomo-
dação está, porém, se fazendo com um alto preço, na medida
em que se traduz pela corrupção inerente a essa apropriação
privado-partidária do Estado. E esta corrupção tanto serve para
benefícios privados e partidários quanto para o financiamento
das organizações políticas, ditas movimentos sociais, que pro-
curam destruir a economia de mercado, o estado de direito e a
democracia representativa.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

160
Capítulo VI

A tradição socialista

Enquanto a utopia continuava a ser um mero objeto do


pensamento, fora deste mundo, a não ser realizado neste,
mas um destino possível em um outro mundo, ela perma-
necia um objeto de especulação, um dado teórico da razão
confrontada com suas próprias ideias, entre as quais a de
perfeição. Descartes, por exemplo, em uma de suas provas
da existência de Deus1, deduzia a existência de Deus da ideia
de perfeição, num exercício de pensar da razão consigo mes-
ma. Não se seguia, porém, nenhuma proposição relativa a
como o mundo deveria ser, nem muito menos de como seria
possível realizar a ideia de perfeição no mundo prático dos
homens, em um mundo caracterizado essencialmente pela
finitude e pela imperfeição.
A utopia socialista, comunista, mudou os dados da ques-
tão. Doravante, o absoluto se tornou suscetível de ser realizado
na terra, mediante uma transformação radical da sociedade. A
finitude e a imperfeição deixaram de ser essencialmente cons-
titutivas do humano, vindo a significar algo suscetível de ser
corrigido, um mero obstáculo a ser levantado. Assim colocado,

1
Rosenfield, Denis. Descartes e as peripécias da razão. São Paulo: Iluminuras, 1996.

161
ELSEVIER

o problema não consiste mais nas características próprias do


humano, mas num tipo de relação socioeconômica e política que
pode ser completamente remodelado. Causas são apontadas,
entre as quais a que mais se destaca é a propriedade privada
enquanto origem de todos os males, como se a sua erradicação
fosse capaz de redimir a humanidade, como se essa pudesse
entrar na rota da perfeição. Em seu longo império sobre a
humanidade, ela teria deformado completamente a natureza
humana, de tal maneira que esta teria perdido a ocasião e, mes-
mo, a possibilidade de alcançar a perfeição absoluta. Trata-se,
portanto, de resgatar essa humanidade perdida, uma espécie
de paraíso primeiro, estado de natureza idílico, que se torna,
doravante, objeto dessa ação política de resgate, de restauração
de uma condição humana primeira.
“Utopias tendem a tornar-se não apenas uma crítica de
nosso sistema de governo e de nossas instituições sociais, mas
uma crítica da natureza humana.”2 Elas não servem somente
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

como parâmetro, digamos moral, para expor uma situação


de injustiça, mas se instituem, se autoinstituem, como porta-
vozes de um novo mundo, o mundo verdadeiro, que só será
realizado se os seus preceitos forem seguidos. Consoante com
essa posição, elas se voltam diretamente para uma reforma
radical da natureza humana, colocando-se num patamar
decisivamente absoluto, não estando preocupadas com os
melhoramentos pontuais do mundo, a reforma de algumas
das instituições existentes. Elas se inscrevem no absoluto e
prescrevem, autoritariamente, aquilo que deve ser feito a
partir de um Estado que tudo determina.

2
Gray, Alexander. The Socialist Tradition. London: Longmans, Green and Co.,
1948, p. 75.

162
ELSEVIER

O moral se imbrica, assim, com o político, pois a ação


humana está direcionada para uma regeneração completa das
almas, empreendida por um Estado onipotente e onipresente,
que estipula autoritariamente o que deve ser a vida privada,
familiar, econômica, social e política. A liberdade passa a ser
identificada à licenciosidade daqueles que se recusam a viver
num tal tipo de sociedade-Estado. “A regeneração política
e moral não são dois problemas, mas um só.”3 Eis aqui os
fundamentos dos campos de reeducação depois criados pelas
democracias totalitárias, em seu comum desígnio de refundar
a natureza humana. O objetivo desses campos consistia em
refazer o homem, determinando-o completamente. Aí desem-
bocou a utopia.
Locke, em sua Carta sobre a tolerância, coloca as relações
entre religião e política em termos de concretização da liberdade
em um mundo necessariamente imperfeito, que deve separar
nitidamente o que provém do absoluto, não pertencendo a este
mundo, e o que é tributário do relativo, do incessantemente
mutável. Uma vez que tal distinção é apagada, surgem as
ideologias de tipo totalitário, que visam ao controle total da
formação subjetiva das pessoas, de tal maneira que essas per-
cam o controle de si. O indivíduo desaparece da cena moral e
política. Caberia somente ao Estado exercer o controle das ações
externas dos indivíduos, regrando-as segundo o bem comum,
CAPÍTULO VI A tradição socialista

evitando, assim, o arbítrio da licenciosidade. Não lhe compete


formar a subjetividade dos homens: “...o cuidado das almas não
pertence ao magistrado civil, porque seu poder consiste apenas
na força externa...”.4 Não é função do poder civil imiscuir-se
na subjetividade das pessoas, na formação de sua alma, que
deve permanecer fora da esfera de atuação do Estado. “Quem
3
Ibid., p. 75.
4
Locke, Carta sobre a tolerância, p. 244.

163
ELSEVIER

mistura o céu e a terra, coisas tão remotas e opostas, confunde


estas duas sociedades, que são em sua origem, finalidades,
obrigações e em tudo perfeitamente distintas e infinitamente
diferentes uma da outra.”5
Filósofos como Mably e Rousseau, assim como os revo-
lucionários totalitários do século XX (e seus esbirros do XXI),
estavam persuadidos de que a natureza humana é extremamente
plástica, tudo dependendo da vontade política para a sua ade-
quada transformação. Não haveria propriamente limites para
a ação. Enquanto a concepção cristã ainda era predominante, o
homem permanecia marcado por uma falta originária, não po-
dendo esta ser superada. Restava o caminho da retidão pessoal,
tendo como objetivo a superação individual, a ser completamente
resgatada em um outro mundo. A partir do momento em que
essa imperfeição originária não mais “existe”, sendo tida por
resultado de uma equivocada compreensão da natureza huma-
na, abre-se caminho para que o homem seja apenas fruto das
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

circunstâncias sociais.
Se as circunstâncias sociais são as da propriedade pri-
vada, do individualismo e do lucro, o homem daí resultante
será necessariamente “mau”, deformado por suas condições de
vida. A miséria e a degradação humana seriam expressões dessa
maléfica condição social. Se, pelo contrário, as circunstâncias
sociais são outras, se a propriedade privada, raiz de todos os
males, for suprimida, com ela iriam embora o individualismo,
o egoísmo e a falta de solidariedade com o outro. O homem
seria, então, um ser completamente maleável,6 cuja forma po-
deria ser moldada segundo o molde utilizado. E esse molde

5
Ibid., p. 254.
6
Talmon, op. cit., p. 46.

164
ELSEVIER

segue determinados parâmetros educacionais e institucionais,


forçando, inclusive, um ser circunstancialmente depravado a
tornar-se um ser coletivo, perfeito, obediente aos ditames da
comunidade.

1. Rousseau e as acepções da propriedade


Rousseau é um personagem complexo, quase esquizo-
frênico do ponto de vista de suas posições. Tanto pode ele ser
um crítico feroz da propriedade privada como seu defensor
inconteste. No primeiro caso, deveria ser seguido seu Discurso
sobre a origem da desigualdade humana, no segundo, o seu Discurso
sobre a economia política, escrito três anos depois. Historicamente,
terminou primando o igualitarista radical, antecedente direto
de Proudhon, Marx e Engels, e não o liberal, discípulo de Locke.
Pode também ser visto, do ponto de vista da moralidade, um
precursor de Kant, quanto, do ponto de vista político, da de-
mocracia totalitária.7
No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens,8 Rousseau atribui dois sentidos à desigualdade:
o que é estabelecido pela natureza e o que nasce da convenção
humana. Segundo o primeiro, estão contidas as diferenças físi-
cas, dentre as quais a idade, a saúde, a força do corpo e as qualida-
des do espírito e da alma. Trata-se aqui do reconhecimento de que
os homens são iguais, ao nascerem, e, depois, se distinguem uns
CAPÍTULO VI A tradição socialista

dos outros pelas mais diversas características físicas. Conforme


o segundo, estão compreendidas as propriedades oriundas

7
Para um Rousseau visto na perspectiva kantiana, cf. Cassirer, E. Le problème Jean-
Jacques Rousseau. Paris: Hachee, 1987. Para um Rousseau visto na perspectiva
da democracia totalitária, cf. Talmon.
8
Rousseau, Jean-Jacques. “Discours sur l’origine et les fondemens de l’inégalité
parmi les hommes”. In Écrits politiques. Paris: Pléiade, 1964.

165
ELSEVIER

das convenções humanas, dos contratos, não sendo, então,


“naturais”. Dentre elas se situam as que favorecem alguns
em detrimento de outros, como a riqueza, a honra e o poder
político. Logo, são desigualdades inventadas, criadas, pelos
homens nos mais diferentes períodos da história.
Os “privilégios”9 vigentes na sociedade de Antigo Regime
estão compreendidos entre essas diferenças “convencionais”,
fruto das relações sociais. Os “privilégios” são, neste escrito,
identificados à propriedade privada, como se tivessem a mesma
significação no transcurso da história. Neste sentido, pode-se
acrescentar que os privilégios, de acordo com as leis e costumes
da época, produzem desigualdades de riqueza, de honra e de
poder. E esses privilégios se originam nas convenções humanas
que os estabeleceram em proveito exclusivo de alguns. Consi-
derando que o termo de igualdade é um termo relacional, ele
exige um critério, um parâmetro, a partir do qual ele possa ser
medido, estabelecido. Dizer-se, por exemplo, que alguém é a
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

favor da igualdade não significa absolutamente nada, pois falta-


lhe determinar de que tipo de igualdade se trata. Igualdade de
condições? Igualdade de sexos? Igualdade de oportunidades?
Igualdade de renda? Igualdade de salários? Em cada uma
dessas indagações, introduz-se um critério específico a partir
do qual se possa dizer que duas pessoas ou grupos sociais são
considerados iguais.
Na acepção natural, o critério é dado pela natureza, de
acordo com a propriedade escolhida. Pode ela ser a idade, a
força, a cor, o sexo, a saúde ou qualquer outra. Em todo caso,
aqui, o significado escolhido não teria maior influência social,
salvo se ele fosse determinado para separar um grupo social

9
Ibid., p. 131.

166
ELSEVIER

de outro, como ocorre no racismo. Neste domínio, assinala


Rousseau, não cabe falar de igualdade, na medida em que o
natural é a desigualdade. Na segunda acepção, o critério é dado
pela convenção, pela arbitrariedade da lei humana, entrando
em linha de consideração os privilégios, que desigualizam os
homens segundo a riqueza, a honra e o poder, sendo, portanto,
passíveis de supressão, mediante o estabelecimento político
de uma “boa” lei humana. Rousseau chega mesmo a enfatizar
que a desigualdade natural se acentua e se desenvolve na
desigualdade de instituição,10 a que nasce das convenções hu-
manas. O que seria uma condição natural, própria de relações
de piedade e solidariedade, como as vigentes no estado de
natureza, ganha, porém, um outro estatuto, quando acentuadas
e desenvolvidas pelas instituições humanas, as decorrentes da
cultura e da civilização.
O conceito rousseauniano de estado de natureza tem
a pretensão de ser elaborado a partir de uma observação
empírica do homem, graças a uma extração de todas as suas
propriedades adquiridas, não naturais. Seria o homem atual
despido de todas as suas determinações culturais e civiliza-
tórias. A partir de tal procedimento, pretende ele remontar
a um estado primeiro da humanidade, estado não decaído,
originário e não deformado pelas convenções. Caberia,
evidentemente, a Rousseau tal prodígio de intelecção. Em
CAPÍTULO VI A tradição socialista

sua crítica aos diferentes teóricos do estado de natureza, ele


assinala que praticamente todos terminaram atribuindo ao
homem valores (criticáveis), que são, na verdade, oriundos
do estado propriamente civil. Ou seja, a perversidade do
homem civil terminou sendo identificada aos valores “nor-
mais” do homem natural. Assim fazendo, esses pensadores

10
Ibid., p. 161.

167
ELSEVIER

tornaram o fruto de uma civilização de privilégios proprie-


dades inerentes à natureza humana. Dentre elas, Rousseau
vai salientar os carecimentos, a avidez, a cobiça, a opressão,
os desejos e o orgulho. É como se essas propriedades hu-
manas pudessem ser radicalmente transformadas por um
poder político voltado para restabelecer valores naturais,
comunitários, dos quais esses valores civilizados seriam
meras deformações, perversões.
Convém ressaltar que Rousseau dá ainda um outro passo,
o de atribuir esses valores perversos à propriedade privada
enquanto tal, sem fazer a distinção entre propriedade privada
no sentido moderno, que tentava se afirmar na época, e os
privilégios próprios de uma sociedade de Antigo Regime. O
contraste se faz entre o estado de natureza, em que não vigorava
a propriedade privada, e o estado social ou civilizatório, em
que ela termina por preponderar. O estado de natureza vem,
assim, a ser identificado a um estado de felicidade, em que os
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

indivíduos guardavam entre si relações solidárias. O estado


social ou civilizatório é o da propriedade, que, neste texto, é
tida, principalmente, por propriedade fundiária, não vigente
entre os selvagens.
“O primeiro que tendo cercado um terreno, teve a ideia
de dizer isto é meu, e encontrou pessoas bastante simples para
nele acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.”11
Essa fórmula, que teve enorme influência histórica, é colocada
no início da segunda parte do Discurso sobre a desigualdade,
situada como ato que teria ocorrido, conforme a cronologia
histórica rousseauniana, no final do estado de natureza, quando
este já estava bastante degradado e corrompido pelas luzes e
pela indústria humana. Estamos, na verdade, diante de um

11
Ibid., p. 164.

168
ELSEVIER

estágio avançado de um fictício estado de natureza, propício


a indivíduos inescrupulosos assinalarem, por um ato discur-
sivo, a posse/propriedade de um pedaço de terra. Trata-se de
um ato de fala que, escutado, termina cumprindo o seu efeito
performativo, o de produzir consequências no mundo. E essas
consequências só ocorrem por serem acolhidas por indivíduos
crédulos. O espaço de interlocução torna possível que uma nova
realidade se produza. Sob esta ótica, a propriedade privada seria
a propriedade fundiária, fruto de uma cerca posta em torno de
um pedaço de terra, a qual acompanha um ato discursivo de
legitimação. Se não houvesse reconhecimento, a propriedade
não teria, por assim dizer, surgido.
Assinale-se que a “descrição” proposta por Rousseau tem
por objetivo mostrar o caráter possessivo, individualista, logo
maldoso desse ato de posse, de tal maneira que todos os males
daí decorrentes sejam estreitamente vinculados a esse conceito
de propriedade. Não haveria reforma moral possível do gênero
humano, extirpando o egoísmo e a cobiça, que não passasse pela
eliminação necessária da propriedade, na medida em que ela
é a fonte de toda deformação humana. A vinculação entre mal
e propriedade terá, desta maneira, um longo desdobramento
histórico, vindo a marcar boa parte do pensamento político
posterior, com ecos até hoje presentes. Ressurge, então, a ideia
de que a terra é de todos, não podendo ser compartilhada, toda
divisão sendo um ato por definição egoísta e excludente. Uma
CAPÍTULO VI A tradição socialista

de suas consequências políticas será o conceito de propriedade


coletiva, identificado, no século XX, ao de propriedade estatal.
Todos os privilégios nasceriam da desigualdade oriunda
da propriedade privada da terra, como se essa fosse a fonte de
onde resultam todos os outros privilégios, que distinguem,
diferenciam e desigualam os homens entre si. Ora, se essa é a

169
ELSEVIER

origem de todos os “privilégios”, a lei que protege a proprie-


dade privada seria, por sua vez, a da defesa e legitimação da
desigualdade. A lei e, por via de consequência, o Estado seriam
nada mais do que a legalização e a legitimação desse estado de
desigualdade e de injustiça. Eles referendariam e justificariam
a injustiça. Gray assinala justamente que, segundo Rousse-
au, “a lei (e com ela o Estado) é um instrumento das classes
governantes”.12 Segue-se daí a posição de Marx, conforme a
qual a supraestrutura jurídica encobre e legitima as relações
econômicas de exploração social.
Todos os males humanos seriam decorrentes da evolução
da sociedade, que foi progressivamente relegando, esquecendo
e deformando os valores primeiros. Progresso, se houve, foi
em direção à barbárie, identificada à cultura, à propriedade
e à civilização. Uma vez que essa ideia ganha carta de cida-
dania, ela passa a ser uma baliza a orientar a ação humana.
Uma vez aceita a “deformação”, nada mais natural para esses
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

teóricos e os seus agentes políticos do que orientar os projetos


de transformação social. Uma ficção, projetada numa suposta
comunidade natural de selvagens que viveria segundo valores
simples, uniformes e solidários, torna-se um parâmetro de uma
outra forma de fazer política. Nesta perspectiva, a educação
e os costumes depravariam a natureza humana originária, a
boa, a que foi objeto dessa deformação histórica.13 Tudo aquilo
que consideramos enquanto cultura e civilização é atribuído
a um processo de perversão do homem, ensejando, portanto,
a sua própria destruição em nome desses valores originários.
Isto equivale a dizer que os filósofos e líderes políticos que
se reclamam portadores e descobridores desses valores, que

12
Ibid., p. 85.
13
Ibid., p. 133.

170
ELSEVIER

correspondem à verdadeira natureza humana, possuem um


direito originário à violência, voltado para essa restauração.
Concomitantemente a essa ideia surge uma outra, a de que
esses mesmos representantes do originário possuiriam um
outro direito, o direito de educação, o de remodelar o homem
segundo esses mesmos valores puros.
Rousseau lista como uma propriedade essencial que dis-
tingue os homens dos animais a faculdade de aperfeiçoamento.
Para ele, no entanto, essa faculdade vem a ser considerada algo
daninho, porque o homem dela se utiliza para se deformar, se
depravar, abandonando todos os seus valores de simplicidade
e solidariedade, próprios do verdadeiro estado de natureza.
Aquilo que normalmente consideramos progresso, enquan-
to aperfeiçoamento do homem, é tido, na verdade, por uma
ida inexorável ao abismo. Se não houver um freio, que seria
introduzido pela vigência de novas ideias, a catástrofe seria
inevitável. O interessante a observar é que as democracias
totalitárias fizeram vigorar a ideia de um aperfeiçoamento
do homem por meio de um processo educativo, baseado na
regeneração da humanidade. Neste sentido, caberia ao Estado
“fazer a cabeça” das pessoas por meio da “educação”. Em seu
afã por fazer com que os cidadãos respeitem as leis, Rousseau
apregoa a sua interiorização nas consciências, não funcionando
somente sob o modo da punição e da exterioridade. Reside
CAPÍTULO VI A tradição socialista

aqui um dos maiores problemas de sua filosofia política, na


medida em que ela dá vazão ao que será, depois, a democracia
totalitária. Ou seja, a autoridade deveria entrar na subjetividade
dos cidadãos a ponto de tornar-se “absoluta”, penetrando na
interioridade do homem.14

14
Ibid, p. 251.

171
ELSEVIER

Filosoficamente, duas leituras de Rousseau se tornam


igualmente possíveis: uma enfatiza a moralidade, a outra, a
política, com consequências entre si contraditórias. Num caso,
teríamos a interiorização interior, formal, do respeito à lei,
numa perspectiva de tipo kantiano. No outro, a interiorização
da vontade dos governantes que sabem aquilo que é melhor
para os cidadãos, de tal maneira que ingressamos, aqui, no
terreno político da maleabilidade da natureza humana, que
pode arbitrariamente adotar qualquer forma, inclusive as
mais aterradoras. Sob essa ótica, entra em linha de conside-
ração toda uma legislação sobre os costumes, as leis suntuá-
rias, relativas ao luxo e às riquezas. O problema consiste,
portanto, em que incumbiria ao Estado ensinar aos cidadãos
serem bons, como se essa fosse a função de uma autoridade
pública, que sabe por si mesma o que é melhor para todos:
“não é suficiente dizer aos cidadãos, sejam bons; é necessário
ensiná-los a sê-lo”.15
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Cassirer assinala que a tarefa fundamental do Estado é a


de ser educador.16 Em sua tentativa de dar sistematicidade ao
pensamento de Rousseau e de aproximá-lo ao de Kant, como
se o pensador de Genebra fosse um libertário que se adequa-
ria a leis universais, ele confere um valor positivo a algo que
é essencialmente perigoso, a saber, atribuir ao Estado a mis-
são educadora. Isto equivale a conferir ao Estado a tarefa de
moldar as pessoas, de formar as suas mentes, como se tornou
dominante, depois, no Estado totalitário. Em particular, o
Estado comunista foi aquele que mais apostou nessa tarefa,
com o objetivo de criar um conjunto de cidadãos passivos, obe-
dientes. A sua destinação não era a liberdade, mas a servidão.

15
Ibid., p. 254.
16
Cf. Cassirer, op. cit, p. 41.

172
ELSEVIER

É extremamente perigoso que caiba ao Estado impor valores


que deveriam ser seguidos por toda a sociedade.
O que está em jogo é a asfixia da moralidade em nome
dessa mesma moralidade. Rousseau defende a ideia de que
o Estado não seria apenas a expressão da “vontade geral”,
mas da “vontade ética geral”, introduzindo a orientação
política na educação moral dos cidadãos. Não se trata de
assegurar a felicidade dos indivíduos, mas de fazê-los agir
segundo uma ideia preconcebida do dever-ser, imposta por
um Estado que conheceria, então, essa sua destinação moral.
Tal formulação, no entanto, não teria podido surgir se não
tivesse como pressuposto uma outra elaboração, a de que o
homem é uma criatura extremamente maleável, podendo ser
esculpida segundo uma escultura ética do Estado. O homem
é um ser “plástico”.17
A finalidade da ação política consistiria em criar uma
nova totalidade na qual o indivíduo se incorporaria enquanto
membro, membro do Estado, segundo os seus valores de cole-
tividade. Não se perseguiria uma volta a um estado originário
de natureza, mas uma comunidade estatal que recuperaria os
seus valores essenciais. O Estado vem a ser, então, uma forma
superior de entidade política, na medida em que consiga impor
os valores coletivos sobre os de uma individualidade egoísta. O
modelo seguido é o de Esparta, onde os valores comunitários
CAPÍTULO VI A tradição socialista

primavam completamente sobre os individuais. Nasce, daí,


a ideia de que incumbiria ao Estado educar todas as crianças
desde a mais tenra idade, de tal maneira que os seus valores
fossem definitivamente inculcados.18
Contudo, há também o Rousseau “liberal”, mais especi-
ficamente “social-democrata”, embora este não tenha se imposto
17
Ibid., p. 44.
18
Rousseau, op. cit., pp. 260-1.

173
ELSEVIER

historicamente. O tom do Discurso sobre a economia política é mani-


festamente diferente do do Discurso sobre a origem da desigualdade
entre os homens. Se, neste, o igualitarismo predominava, naquele,
ele não é mais preponderante. Em vez de uma igualdade material,
social, Rousseau advoga por uma redução das desigualdades
materiais, partindo do pressuposto de que elas não podem ser
extintas. A função do Estado consistiria em prevenir a “extrema de-
sigualdade de fortunas”.19 A desigualdade que deve ser eliminada
é aquela que diferencia os cidadãos diante das leis, a desigualdade
dos privilégios, e não a diferença de riquezas, salvo na sua forma
extrema, que prejudicaria a unidade social. Não se trata, assinala
ele, de retirar a riqueza dos seus proprietários.
A linha fronteiriça não é, porém, claramente estabelecida
entre a legítima e a ilegítima atuação do Estado ao interferir
nos casos extremos de redução das desigualdades no que
diz respeito ao direito de propriedade. Governantes podem,
perfeitamente, se arrogar a posição de declarar que a desi-
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

gualdade ficou insuportável, segundo critérios que são, por


definição, relativos. O bem-estar de um trabalhador num dos
países europeus avançados, hoje, é muito maior ao de Luís
XIV no que diz respeito a quesitos essenciais como saúde,
aquecimento e outros. Pense-se no atendimento odontoló-
gico. Ou seja, o arbítrio do governante ao decidir o que é ou
não tolerável se torna a verdadeira regra, para além do fato,
também existente, de que há indivíduos laboriosos, empre-
endedores, que tudo fazem para aumentar a sua fortuna, e
indivíduos preguiçosos, que detestam o trabalho e não ces-
sam de procriar. Há também os indivíduos que se dedicam à
causa da revolução, cujo objetivo central consiste em tirar a

19
Rousseau, Economia política, p. 258.

174
ELSEVIER

propriedade de uns para outros, na verdade para eles mesmos,


na medida em que passariam a administrar o Estado e teriam
o poder último de decisão.
Entretanto, para o leitor do Discurso sobre a origem da
desigualdade entre os homens, a surpresa não poderia ser maior
quando confrontado ao problema do direito à propriedade,
tal como colocado no Discurso sobre a economia política. Com
efeito, se no primeiro a propriedade é o pior de todos os ma-
les, no segundo, ela é algo sagrado, o verdadeiro fundamento
da sociedade civil. Suas palavras são claras: “...o direito de
propriedade é o mais sagrado de todos os direitos dos cida-
dãos, e mais importante em vários aspectos do que a própria
liberdade”; “...a propriedade é o verdadeiro fundamento da
sociedade civil, e a verdadeira garantia dos engajamentos
dos cidadãos”.20 Os arroubos revolucionários não estão aqui
minimamente presentes, quase como se fosse outra pessoa
que tivesse escrito um desses Discursos. Em vez deles, temos
a defesa da propriedade enquanto pilar mesmo da sociedade
civil, sem o qual esta entraria em processo de desagregação.
Rousseau reata com as formulações de Hobbes e de Locke ao
sustentar que o direito à propriedade é a condição mesma de
uma sociedade livre, chegando a afirmar que o direito dos
cidadãos se funda nesse direito à propriedade. A propriedade
privada se torna a condição mesma da cidadania. Inversamente,
CAPÍTULO VI A tradição socialista

não há cidadania sem propriedade privada.


A propósito da questão dos impostos, que são formas
de imposição estatal, Rousseau coloca o problema, central,

20
Ibid., p. 263. Outra formulação: “...o fundamento do pacto social é a proprieda-
de, e sua primeira condição, segundo a qual cada um seja mantido no agradável
gozo do que lhe pertence”, pp. 269-70. Observe-se que o gozo da vida privada
pertence ao próprio direito de propriedade.

175
ELSEVIER

da forma mediante a qual os impostos são coletados, isto é,


o modo através do qual eles são ou não impostos. Coloca-se,
portanto, o problema da contribuição voluntária, da anuência
dos cidadãos em função da paz pública e da defesa coletiva,
dos mecanismos legislativos dessa anuência e das maneiras de
tributação. Nesse sentido, haveria uma violação do “direito sa-
grado de propriedade” se a imposição estatal se fizesse apenas
em proveito próprio para sustentar uma máquina que vive de
sua própria reprodução. Uma máquina pública corrupta, que
desvia os impostos, que entra na propriedade privada alheia,
seria um fardo a ser eliminado pela sociedade. Neste caso,
ele chega inclusive a empregar a expressão “ataque ao direito
sagrado de propriedade”,21 partindo, evidentemente, do pres-
suposto de que impostos são transferências de propriedade.

2. A propriedade e o roubo
A obra de Proudhon, O que é a propriedade?, é publicada
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

em 1840. Sua influência é enorme, reatando com as correntes


igualitaristas da Revolução Francesa que tinham no Rousseau
do Discurso sobre a origem da desigualdade o seu ponto de refe-
rência. Neste sentido, a Revolução estaria, desde um ponto de
vista teórico, se encaminhando para dar forma a um novo tipo
de ação política. A tradição rousseauniana estaria galgando
um novo patamar, anunciador de uma nova sociedade por
vir. Jovens exilados alemães na França, como Marx, acolheram
essa ideia como uma grande novidade, supostamente por estar
ela agora fundamentada na filosofia de Hegel e na economia
política. Entrava em linha de consideração um suposto em-
basamento filosófico-científico dessa crítica da propriedade
privada e da proposta de uma nova sociedade. Embora Marx

21
Ibid., p. 264.

176
ELSEVIER

vá, anos depois, escrever um livro contra Proudhon, A miséria


da filosofia, não convém subestimar a influência anterior que
esse mesmo pensador exerceu sobre ele.
Na esteira de Rousseau, Proudhon afirma: “O direito de
propriedade foi o princípio do mal sobre a terra, o primeiro
degrau da larga cadeia de crimes e de misérias que o gênero
humano arrasta desde o seu nascimento.”22 A propriedade é
identificada ao mal, ao mal social que pode ser remediado,
ao contrário do que ocorre com o mal da queda no sentido
religioso, que, este, acompanha e acompanhará sempre a
humanidade. No sentido religioso da queda originária, não
haveria nada a fazer para superá-lo, pois ele é estruturante
da natureza humana. Só em outro mundo, no reino de Deus,
poderia ser ele objeto de transformação. Ora, uma vez que o
mal é atribuído à ação humana, o que os clássicos considera-
vam o “mal moral”,23 ele pode ser objeto de uma erradicação
possível, atacando os seus fundamentos. O resgate consistiria
na abolição da propriedade.
De Proudhon provém a célebre fórmula: “a propriedade
é um roubo”.24 Observe-se, a respeito, que ela é dita sob a for-
ma de uma exclamação, tendo como objeto um efeito retórico,
aliás, plenamente alcançado. Como sucede com este pensador,
ele procede sob a forma de afirmações reiteradas que, senão
raramente, adotam uma forma propriamente argumentativa.
CAPÍTULO VI A tradição socialista

O seu estilo é grandiloquente. Um exame mais detalhado do


texto mostra, no entanto, que Proudhon defende também a

22
Proudhon, citado segundo a tradução espanhola. Buenos Aires: Proyección,
1973, p. 89.
23
Rosenfield, Denis. Do Mal. Porto Alegre: L&PM, 1990 e Retratos do Mal. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
24
Proudhon, op. cit., p. 19.

177
ELSEVIER

igualdade de condições enquanto igualdade de direitos25,


numa forma que o aproximaria de Sieyès, o qual é objeto
do maior elogio26. Neste sentido, a propriedade poderia ser
considerada um privilégio, tal como aparece na sociedade
do Antigo Regime, que continuaria persistente no novo. Os
privilégios ressurgiriam, agora, sob as formas financeiras da
propriedade que se apresentam na usura, nos empréstimos
a juros e no viver de rendas.
Curioso o destino das ideias. Umas vingam, outras não,
sem que se saiba ao certo a lógica do que aparece, muitas ve-
zes, como ilógico. Proudhon veio a ser historicamente conhe-
cido como um detrator, feroz, da propriedade privada. Pouco
se fala, porém, de outras afirmações suas em que se colocou
como ardoroso defensor da pequena propriedade privada
e, mesmo, do direito de herança. Ele defende a propriedade
privada enquanto núcleo de conservação da família, o que
implica reconhecer o direito de não tributação da herança,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

porque o pai tem pleno direito de deixar aos seus as suas


propriedades, sem que o Estado interfira nesse processo. A
tributação da herança seria uma interferência indevida do
Estado, que transferiria para si uma parte dos bens familia-
res, como se herdeiro fosse. “Nós não queremos o imposto
sobre as heranças porque este imposto não é também senão
uma retirada da propriedade, e que, sendo a propriedade um
direito constitucional reconhecido por toda a gente, é preciso
nela respeitar o direito da maioria.”27 Ora, o mesmo autor que

25
Ibid., p. 23.
26
Ibid., pp. 35-6. Ele se refere ao livro de Sieyès, O que é o terceiro estado, como uma
revelação pelo papel que atribuiu ao povo, o de ser tudo numa nação.
27
Proudhon. Textos escolhidos. Seleção e notas de Daniel Guérin. Porto Alegre:
L&PM, 1983, p. 55.

178
ELSEVIER

se tornou célebre por condenar genericamente a propriedade


privada é o mesmo que a defende como um direito do homem
livre, direito esse assegurado constitucionalmente. Uma outra
fórmula sua poderia ter tido um melhor destino público, um
maior reconhecimento: “Por que, após haver encorajado a
propriedade, nós puniríamos de seu gozo os proprietários?
Nós somos socialistas, nós não somos invejosos.”28
É interessante ressaltar que a crítica de Proudhon à
propriedade, em vários aspectos, pode ser considerada uma
crítica aos privilégios do Antigo Regime que teriam sido
conservados, só que sob uma nova roupagem. Por exemplo,
o acesso a cargos do Estado para os amigos, em nome de
recompensas financeiras, permanecia uma prática usual. A
diferença consistia, porém, em que não se tratava mais da
nobreza ou do clero, mas de novos atores sociais e políticos,
que mantinham o monopólio de concessão deste tipo de
propriedade. Segundo a “voz do povo”, a propriedade, no
sentido pleno, deveria ser a plena disponibilidade dos bens,
do trabalho e da indústria e não mais os privilégios antigos
da servidão pessoal, das exclusões de emprego e das formas
de vinculação pessoal à terra, consideradas por Proudhon
“formas odiosas de propriedade”. Acontece que a Revolução
não teria cumprido o prometido, tendo conservado, sob outros
nomes, os privilégios.
CAPÍTULO VI A tradição socialista

Eis por que o discurso contra a propriedade se funda na


crítica aos privilégios. A sua abolição é compreendida como
a abolição de todos os privilégios. Em seus exemplos, ele dá
destaque aos problemas decorrentes da propriedade privada da
terra, sobretudo quando a pessoa que nela trabalha não é, ela

28
Ibid., p. 55.

179
ELSEVIER

mesma, dela proprietária, devendo pagar uma renda. Entram


também em linha de consideração os problemas hipotecários
da propriedade fundiária, onde um pequeno proprietário, ele
mesmo trabalhador, pode perdê-la pelo não pagamento de um
empréstimo bancário. Este foi o caso do próprio pai de Prou-
dhon, num fato que afetou profundamente o seu destino e o
seu pensamento. Neste sentido, pode-se dizer que, nesta obra,
ele ancora o verdadeiro direito de propriedade nos pequenos
proprietários, considerando privilégios as formas capitalistas
de propriedade, oriundas do sistema financeiro. A proprie-
dade da terra não deveria ser utilizada do ponto de vista do
arrendamento, do lucro e dos juros29, que seriam, por sua vez,
extintos. O seu modelo social é o de uma sociedade de pequenos
proprietários de marca profundamente rural, voltados para a
sobrevivência e a troca de excedentes.
Sua aversão à usura é a que norteia o seu pensamento,
transferindo-a a todas as formas de finanças. “A produtividade
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

do capital, aquela que o cristianismo condenou sob o nome


de usura, tal é a verdadeira causa da miséria, a verdadeira
origem do proletariado, o eterno obstáculo ao estabelecimento
da República.”30 O anarquismo resgataria essa ideia socio-
econômica do cristianismo, procurando estabelecê-la, não
sobre uma base moral, mas “científica”, política na verdade.
Logo, torna-se necessário precisar que, depois de seu arroubo
juvenil, Proudhon introduziu nuances importantes em seu
pensamento, criticando a propriedade privada apenas na
perspectiva da usura e, diríamos hoje, do capital financeiro.
Ou seja, os indivíduos que produzem devem ter a garantia
de seus ganhos assegurados por contratos que os expressem

29
O que é a propriedade?, p. 77.
30
Textos escolhidos, p. 51.

180
ELSEVIER

e validem mediante a defesa e a conservação dos bens, posses


e propriedades de cada um. Transparece aqui uma defesa do
capital produtivo, contra o financeiro e, sobretudo, contra o
Estado que tudo procura usurpar para si. “Nós queremos a
propriedade, mas colocada em seus justos limites, quer dizer,
à livre disposição dos frutos do trabalho, a propriedade menos
a usura!.”31
O foco de Proudhon consiste, portanto, nas formas
capitalistas de propriedade, que se apresentam sob as mo-
dalidades do arrendamento da terra, do aluguel de casas e
móveis, dos juros e do lucro32. O empréstimo, particularmente,
é considerado como um roubo. Suas investidas contra a usura
se situam desde essa mesma perspectiva, retomando, na ver-
dade, uma tradição medieval de condenação desta forma de
atividade econômica. Tais formas de propriedade são, assim,
consideradas como se fossem privilégios. Sua posição relativa
à igualdade o situa, em seu livro O que é a propriedade?, contra
a tradição dos saintsimonianos e dos fourrieristas, que reco-
nheciam o mérito e as capacidades de cada um como dando
origem a uma diferença de rendimentos, por eles considerada
natural. Para ele, ao contrário, o critério da igualdade seria o
dos salários, de tal maneira que todos recebessem o mesmo
montante de recursos.
Entretanto, essa mesma posição será posteriormente
CAPÍTULO VI A tradição socialista

reelaborada através do resgate das posições de Saint-Simon


e, sobretudo, do mérito, pois é forçoso reconhecer que os
indivíduos não têm vontades iguais, uns sendo esforçados
e outros preguiçosos, não cabendo ao Estado equalizá-los,
sob pena de cometer uma grave injustiça. Seria este um dos

31
Ibid., p. 58.
32
O que é a propriedade?, p. 137.

181
ELSEVIER

grandes problemas do comunismo, que terminaria inevitavel-


mente sufocando a consciência e as liberdades individuais.
“Assim, a comunidade [Proudhon entende por comunidade
o “sistema comunista”] viola a autonomia da consciência e
a igualdade; a primeira, comprimindo a espontaneidade do
espírito e do coração, o livre-arbítrio na ação e no pensamento;
a segunda, recompensando com uma igualdade de bem-estar
o trabalho e a preguiça, o talento e a asneira, o próprio vício e
a virtude.”33 Observe-se que tal preponderância da “comuni-
dade” atinge a própria consciência do indivíduo, que passa a
não pensar por si mesmo, transferindo para a coletividade a
sua decisão pessoal. O “sistema comunista” sufocaria, então,
totalmente o indivíduo, retirando-lhe qualquer iniciativa sua
e a própria recompensa dos seus atos. O discurso da justiça
social, ancorado em tal subordinação do indivíduo, só pode
se traduzir por uma opressão que elimina o livre-arbítrio, a
capacidade de escolha pessoal. Tal sistema viola a igualdade
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

que diz defender, pois recompensa igualmente o indivíduo


trabalhador e o preguiçoso, o esforçado e o que vive de ex-
pedientes alheios, o talentoso e o que só comete asneiras, o
virtuoso e o que vive do vício. Que igualdade material seria
essa? A da injustiça.
Proudhon não cessa tampouco de criticar os privilégios
do Antigo Regime34 como se se tratasse do mesmo tipo de pro-
priedade presente, por exemplo, num empréstimo que rende
juros àquele que empresta. Ele chega, inclusive, a vincular a
propriedade às desigualdades civil e política, confundindo,
desta maneira, o privilégio com a noção moderna de proprieda-
de. Ora, é precisamente a noção moderna de propriedade que

33
Textos escolhidos, p. 21.
34
O que é a propriedade?, p. 181.

182
ELSEVIER

se tornará a condição de desenvolvimento dos direitos civis e


políticos, impossíveis sob o regime dos privilégios do Antigo
Regime. Para Proudhon, a supressão da liberdade econômica,
em proveito da igualdade dos bens, em particular dos salários
em sua versão primeira, seria a condição das liberdades civis e
políticas em uma espécie de sociedade sem Estado. A anarquia,
tal como ele a define, é a ausência de senhor, de soberano, ao
contrário do que é sustentado pelos comunistas, que sonham
com ditadura35.
A questão da propriedade e, para ele, do Estado, dis-
tinguia a posição anarquista da comunista. Enquanto essa
defendia o Estado, com a subordinação do indivíduo à comu-
nidade, aquela não podia aceitar tal colocação por eliminar
precisamente aquilo que era objeto do maior apreço por parte
de Proudhon: a liberdade individual. “A comunidade (o sistema
comunista) é opressão e servidão.”36 Se o indivíduo se subor-
dina à comunidade, o que ele entendia como subordinação
ao comunismo, a própria propriedade privada terminaria por
desaparecer por representar algo que deveria ser relativizado
e circunscrito pelo que é estipulado pelos representantes da
dita coletividade. Os comunistas ao submeterem tudo à dita
soberania do povo, ao direito da coletividade, tudo submetem,
na verdade, a si mesmos, reproduzindo, no seu “novo” Estado,
o esquema dos antigos senhores. A noção de poder é a mes-
CAPÍTULO VI A tradição socialista

ma.37 A crítica da usura é, sob esta ótica, análoga à crítica da


comunidade/comunismo, na medida em que, para ele, ambas
formas de existência econômica, social e política residem na
negação da liberdade individual e da propriedade privada. A

35
Ibid., p. 240.
36
Textos escolhidos, p. 21.
37
Ibid., p. 112.

183
ELSEVIER

crítica da usura seria uma outra face da crítica da comunidade/


comunismo e do Estado.
Numa sociedade sem senhores, não há tampouco
espaço para a autoridade religiosa, que termina legislando
sobre a mente e a posse dos seus súditos. Fazendo uma re-
construção da figura histórica de Jesus Cristo em sua prega-
ção social, Proudhon assinala o destaque dado por este aos
costumes severos e ao desprezo pela riqueza, como se esses
valores morais fossem os apregoados pelos reformadores
sociais, sem que daí se siga a partilha dos dogmas religiosos,
considerados absurdos.38 Tais formulações se encontram no
fundamento de posições que, posteriormente, procurarão
aproximar as concepções cristãs às marxistas, embora uma
diferença importante consista na consideração da proprie-
dade. Dar a riqueza, dar generosamente bens, não significa
a obrigatoriedade de fazê-lo, em cujo caso desapareceria
a atitude moral e ficaria, somente, a política da obrigação,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

da coerção exercida pelo Estado. Ou seja, o dar riquezas


pressupõe a propriedade privada enquanto condição da
generosidade moral.
A leitura do texto de Proudhon coloca particularmente
a nu como opera um reformador social, diríamos um revolu-
cionário, que tudo sabe, tornando-se capaz de reconstruir toda
a sociedade a partir dos seus fundamentos. É como se essa
reconstrução a partir dos fundamentos fosse uma reconstru-
ção “científica”, verdadeira, até então oculta para o comum
dos mortais. Os revolucionários são considerados os repre-
sentantes dessa nova verdade ou verdade antiga, porém
desconhecida. O ponto consiste em sua pretensão de estar

38
O que é a propriedade?, p. 34.

184
ELSEVIER

oferecendo uma demonstração cabalmente científica, à qual


não caberia refutação. Na medida em que uma demonstração
científica “obriga”, seria “obrigatório” seguir as formulações
de Proudhon e, por via de extensão, os revolucionários. Nasce
igualmente daí a ideia de exercer a coerção sobre aqueles que
se recusam a acatar essa nova verdade. Os reformadores sociais
são, assim, aqueles que se representam como os inspiradores
e, mesmo, os agentes de uma transformação radical do gênero
humano, veiculando e transmitindo a “boa-nova”. A mensagem
consiste na realização próxima da redenção da humanidade
se os seus destinatários souberem agir de acordo com ela.
Apesar de sua aparência “religiosa”, eles são apresentados
como despidos dessa roupagem, porque são exibidos como
“racionais”, “científicos”, enquanto capazes de construir uma
legislação que se alimenta dessas ideias e, em particular, da de
justiça distributiva.
Ora, é precisamente essa ideia que será seguida logo
depois por Marx e Engels, vindo a orientar os artífices da Re-
volução Russa como Lenin, Trotsky e Stalin. Suas coincidências
não se esgotam, apesar das diferenças, às vezes profundas, entre
anarquistas e comunistas. Há uma máxima de Proudhon que
é, neste sentido, particularmente interessante por aproximá-lo
– e afastá-lo – de Marx. A máxima é a seguinte: “Proletários: a
todos nós nos é tirada a propriedade.”39 Salta aos olhos uma
CAPÍTULO VI A tradição socialista

fórmula que será retomada no Manifesto sob a forma de um


chamamento aos proletários de todo o mundo. No entanto,
há uma diferença de peso, pois, se a propriedade foi retirada
dos proletários, é porque estes, de certa maneira, a possuíam,
como se tivessem um certo direito natural à propriedade, que

39
Ibid., p. 86.

185
ELSEVIER

deveria ser restituído. Logo, o chamamento de Proudhon não


o conduz ao conceito de uma propriedade coletiva, mas ao de
propriedades individuais, privadas, que, por seu tamanho, não
poriam em risco a sociedade.
Por último, o Estado para subsistir precisa de impostos.
Quanto maiores forem estes, mais ampla será a sua capaci-
dade de intervenção. Ora, para um anarquista como Prou-
dhon, que prega a diminuição senão a abolição do Estado,
tal forma de arrecadação supõe uma transferência indevida
da propriedade individual para a estatal, sem que haja, para
isto, nenhuma justificativa, salvo a da perpetuação do Estado
enquanto instância supra-individual, que ganharia contornos
ainda mais fortes no sistema comunista. Em suas palavras, os
“capitais” que o Estado necessita, “é preciso que ele os exija
à propriedade, pela via do imposto”.40 Ou ainda, Proudhon
é ferrenhamente contra o imposto progressivo, porque essa
transferência de propriedade apenas aumentaria o poder do
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Estado que se trata de eliminar. Impostos seriam uma espécie


de “confisco da propriedade”.41 Quanto menor for a tributa-
ção, menor será a capacidade de intervenção do Estado e mais
livre será a sociedade. Logo, pode-se dizer que sua crítica do
comunismo se fundava em que essa proposta tinha como
objetivo a destruição da propriedade privada enquanto tal.
Sua concepção do anarquismo, por sua vez, residia numa co-
munidade espontânea de indivíduos, livre, baseada na união
de pequenos proprietários. O ponto fundamental consiste na
diferença entre um regime baseado na pequena propriedade
privada e um que a elimina.

40
Textos escolhidos, p. 54.
41
Ibid., p. 54.

186
ELSEVIER

3. Marx e a abolição da propriedade


O jovem Marx se coloca na esteira do Proudhon do O
que é a propriedade?. Em seu escrito Introdução à Crítica da Filo-
sofia do Direito de Hegel, publicado nos Anais Franco-Alemães,
em Paris, no ano de 1844, ele retoma a identificação entre
privilégio e propriedade privada. É como se a eliminação
de um levasse necessariamente à eliminação da outra por
estarem confundidos. Ou seja, ele identifica indevidamente a
propriedade privada no sentido capitalista e pleno do termo
às formas defectivas de propriedade, próprias de um Estado
de corte mercantilista, que distribui privilégios, impede a
competição, trunca a economia de mercado e fortalece os
monopólios.
Vejamos: “Enquanto na França e na Inglaterra o problema
é colocado em termos de economia política ou senhorio da socieda-
de sobre a riqueza, na Alemanha os termos são outros: economia
nacional ou senhorio da propriedade privada sobre a nacionalidade.”42
Para ser preciso, se não sucumbisse a uma apressada confusão
em seu afã de eliminar a economia de mercado, Marx deveria ter
escrito “senhorio da propriedade defectiva sobre a nacionalidade” ou
“senhorio dos privilégios sobre a nacionalidade”. Se na França e na
Inglaterra o problema surge em termos de política econômica – e
não nacional –, é porque nesses países a questão é colocada em
termos de propriedade privada, de competição e de mercado.
CAPÍTULO VI A tradição socialista

Na Alemanha, pelo contrário, como a questão é colocada em


termos de privilégios ou de propriedades defectivas, o seu re-
sultado é a “soberania do monopólio rumo ao interior”,43 a na-

42
Marx, Karl. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Publicado nos
“Anais Franco-Alemães”. Paris, 1844. Karl Marx/Friedrich Engels. Werke. Dietz
Verlag, Berlin. Band 1. Berlin/DDR. 1976, p. 382.
43
Ibid., p. 382.

187
ELSEVIER

ção, e não em termos de uma economia concorrencial, baseada


na propriedade privada. Nela, prima a relação dos privilégios
concedidos internamente, nacionalmente, pelo Estado.
Em sua formulação, é como se a propriedade privada
fosse a mesma, de um lado, na França e na Inglaterra, e, de
outro lado, na Alemanha, quando são fundamentalmente
distintas. Sucumbindo à contradição, por não distinguir es-
sas duas acepções da propriedade, a defectiva e a plena, ele
diz claramente, que “na França e na Inglaterra, trata-se de
abolir o monopólio, que chegou às últimas consequências;
na Alemanha, trata-se de levar o monopólio a suas últimas
consequências”.44 No caso anglo-francês, trata-se da proprie-
dade privada, da competição, logo, da abolição do monopólio;
no caso alemão, trata-se dos privilégios, da propriedade de-
fectiva e da realização do monopólio. A Alemanha, acrescenta
ele, vive “sob as normas protetoras, de sistema proibitivo,
da economia nacional”.45 Ou seja, a propriedade defectiva
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

se funda em monopólios, em privilégios, na desconfiança da


economia de mercado, no uso de leis para fortalecer esses
privilégios, voltando-se para o que ela entende ser a nação; a
propriedade privada, por sua vez, se funda na concorrência,
na ausência de privilégios, pois as relações de mercado são
impessoais, baseadas na confiança em suas instituições e num
uso econômico de leis, visando a favorecer a competição e não
a onerar demais aos contribuintes.
A frase inaugural do Manifesto, “A história de toda a so-
ciedade até hoje é a história da luta de classes”,46 é uma outra

44
Ibid., p. 382.
45
Ibid., p. 382.
46
Marx, Karl e Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes,
1990.

188
ELSEVIER

expressão dessa identificação entre propriedade e privilégio,


o que leva Marx e Engels a igualar “classe” (Klasse) a “estado,
estamento, ordem” (Stand). A “classe” se constitui pela introdu-
ção da moderna acepção de propriedade, enquanto o “estado,
estamento, ordem” deriva de uma sociedade organizada em
torno de privilégios. A classe, segundo a própria formulação
marxista, significa a posição que os grupos sociais ocupam
em relação aos meios de produção, em particular em relação
a serem ou não proprietários desses. O processo se faz auto-
maticamente segundo relações de mercado, que independem
do antigo status jurídico dos estados, estamentos e ordens. As
respectivas posições são o resultado mesmo das forças que se
chocam nesse processo, estabelecendo formas de venda da força
de trabalho através do salário. O conceito de classe nasce de
acordo com a forma de desenvolvimento do que Marx chama
de propriedade privada burguesa.
O estado, o estamento e a ordem não são produtos dos
mecanismos de mercado, mas de privilégios jurídicos acor-
dados pelo poder político a determinados grupos de pessoas
por razões de nascimento, tradição, costumes e outros. Eles
são, mais particularmente, formas de organização social pró-
prias do Antigo Regime, estruturado em torno dos privilégios
concedidos pelo Poder Régio. A rigor, não há aqui luta, senão
em momentos de agudização dos conflitos, quando ocorre a
CAPÍTULO VI A tradição socialista

desagregação das regras que o sustentam. Normalmente, vigora


a colaboração e a articulação entre os estados, segundo a forma
de Estado existente. Na verdade, Marx e Engels generalizaram
uma forma específica do capitalismo de seu tempo, ou melhor,
de sua forma de compreensão deste, para toda a história. Pegou
o efeito retórico baseado num erro conceitual.
Convém ressaltar que, no Manifesto, Marx e Engels uti-
lizam, às vezes no mesmo parágrafo, os conceitos de classe e

189
ELSEVIER

de estado, como se fossem diferentes, vindo, imediatamente,


a identificá-los.47 A não distinção entre esses conceitos, amal-
gamados numa mesma luta entre “opressores e oprimidos”,
é correlata de uma outra não distinção entre propriedade
privada e privilégio, como se os ganhos da competição em
uma sociedade livre pudessem ser identificados aos “ganhos”
oriundos das concessões jurídicas do Poder régio. Num caso,
temos a expansão da liberdade que ganha distintos níveis da
existência humana, entre os quais o da liberdade econômica,
numa sociedade que assegura a validade dos contratos das
relações econômicas voluntariamente acordadas. No outro,
temos os entraves à liberdade colocados por um poder político
central, que “ganha” com os privilégios assim outorgados. No
momento em que amalgamam os dois, Marx e Engels criam
uma ficção teórica, que produzirá efeitos retóricos duradouros
na esfera política: a luta contra a propriedade privada, que
abarca literalmente todas as formas de propriedade, salvo a
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

coletiva.
Numa nota de Engels à edição inglesa, de 1888, do Mani-
festo, o sentido específico da propriedade burguesa é precisado.
“Por burguesia, entende-se a classe dos capitalistas modernos,
que são proprietários dos meios de produção social e empregam
trabalho assalariado. Por proletariado, a classe dos trabalhado-
res assalariados modernos, que, não tendo meios de produção
próprios, são obrigados a vender sua força de trabalho para
sobreviver.”48

47
Ibid., p. 67. Nesta página, Marx e Engels listam vários estados (Stände) como
patrícios, guerreiros, plebeus, escravos, senhores feudais, vassalos, mestres,
companheiros, aprendizes, servos, para vir logo a tratá-los como “todas essas
classes (Klassen)”.
48
Ibid., p. 66.

190
ELSEVIER

Observe-se que: a) o conceito de classe possui uma sig-


nificação que em tudo o distingue da de um estado, porque
essa conotação não provém de um privilégio concedido pelo
Estado, segundo uma estruturação cultural enraizada em tra-
dições e costumes, mas de uma forma de disposição do capital
de pessoas empreendedoras, que valorizam os seus ativos me-
diante a propriedade que adquirem dos meios de produção;
b) da mesma maneira, os que são chamados de proletários,
enquanto classe, são os que vendem a sua força de trabalho
sob a forma de salários, ou seja, possuem a livre disposição
de si, o que os distingue claramente dos estados anteriores, na
medida em que, nestes, não havia a livre disposição da pessoa;
c) o conceito de propriedade privada aqui utilizado remete a
uma forma que Marx e Engels entendem como burguesa, a
saber, a propriedade dos meios de produção, das máquinas
e instrumentos que viabilizam o trabalho industrial. Note-se,
ainda, o caráter especificamente restritivo dessa formulação, na
medida em que ela seria apenas válida para o capital industrial,
que ganha particularmente essa significação na formulação
marxista; d) o conceito de privilégio não se aplica a essa forma
de propriedade, porque não há uma vantagem exclusiva, um
direito que só vale para alguns, concedido a um determinado
grupo de indivíduos. Todos podem, por seu próprio trabalho
e esforço, adquirir essa posição, não sendo esta um privilégio
CAPÍTULO VI A tradição socialista

dado apenas a alguns. Um pequeno proprietário pode tornar-se


um médio ou um grande proprietário industrial. Do mesmo
modo, um trabalhador pode fazer o mesmo percurso, uma
vez que o que está em questão é a posição do indivíduo livre
enquanto tal e não o pertencimento a um grupo social deter-
minado por razões jurídicas, políticas ou de tradição; e) Marx e
Engels procuram substituir o indivíduo em sua livre capacidade

191
ELSEVIER

de escolha e iniciativa, dentro de uma economia de mercado


que segue regras válidas para todos, no exercício dos direitos
civis e políticos, por uma categoria coletiva, a “classe”, que os
determinaria completamente. O coletivo enquanto agente social
e político toma o lugar dos indivíduos em seu agir voluntário.
Marx e Engels, ao analisarem a propriedade, a consi-
deram sempre do ponto de vista da opressão de classe, seja
no que denominam “relações feudais de propriedade”, seja
nas “relações burguesas de propriedade”.49 O seu ponto con-
siste em que se trata de uma espécie de trava que impediria,
segundo o estágio histórico, o desenvolvimento das forças
produtivas. Ou seja, a propriedade em todas as suas formas
é sempre considerada algo negativo a impedir a evolução
histórica. Mais propriamente, toda forma de propriedade
seria tida por defectiva, não existindo nenhuma forma plena,
que favoreceria a sociedade em seu conjunto. A única forma
“perfeita” aos seus olhos seria a forma coletiva, na verdade,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

a forma estatal, que deveria liberar as forças produtivas.


Ora, a história ensina que as sociedades que estatizaram os
meios de produção foram precisamente aquelas que não se
desenvolveram, ficando enredadas na burocracia, no plane-
jamento e no extermínio, inclusive por fome, de uma parte
de sua população.
Marx e Engels sustentam que o comunismo tem como sua
característica teórica central a abolição da propriedade privada:
“...os comunistas podem resumir sua teoria nessa única expres-
são: supressão (Auebung) da propriedade privada”.50 Neste
sentido, eles se colocam diretamente enquanto herdeiros de
Rousseau, embora, para esse, a propriedade fosse principalmente

49
Ibid., p. 71.
50
Ibid., p. 80.

192
ELSEVIER

entendida como propriedade fundiária. Convém ainda ressaltar


que a posição de Engels, relativa à origem da propriedade, é
também de forte conotação rousseauniana. Embora nos escritos
de Marx essa questão não se coloque com tal grau de clareza,
seu amigo e colaborador esboça uma concepção da história da
propriedade, segundo a qual teria existido uma sociedade tribal
primitiva que teria se caracterizado pela posse em comum de
terras51, forma essa de propriedade que teria sido dissolvida pela
introdução da propriedade privada. Tal colocação vai se traduzir
pela teoria do comunismo primitivo, que tem o mesmo estatuto
teórico do estado de natureza segundo Rousseau. Engels, por
exemplo, utiliza a expressão “sociedade comunista primitiva” na
nota à edição inglesa de 1888 do Manifesto. O empreendimento
revolucionário consistiria numa restauração de algo existente
que teria sido perdido.
Rousseau e Engels, em suas respectivas teorias sobre a
origem da propriedade privada e a corrupção do homem, reto-
mam, numa acepção dita “materialista”, a doutrina cristã e de
alguns filósofos, conforme aos quais teria existido uma originá-
ria Idade de Ouro, um Jardim do Éden, que teria antecedido ao
estado em que todos os homem lutam entre si para satisfazer
as suas respectivas necessidades. A queda seria o resultado da
perda desse estado imaginário primeiro. O esquema formal
residiria numa ideia fictícia de igualdade, a qual, pela escolha,
CAPÍTULO VI A tradição socialista

sucede a humanidade tal como a conhecemos hoje, qualificada


de depravada e corrupta. Logo, a propriedade coletiva equi-
valeria ao estado originário, enquanto a propriedade privada
seria a do corrupto, do depravado, do homem, baseado na livre
escolha. Seguem-se, portanto, todas as tentativas “teóricas” e

51
Prefácio à edição inglesa de 1888. Ibid., p. 50. Cf. também L’origine de la famille,
de la propriété privée et de l’État. Paris, Editions Sociales, 1975, pp. 47, 149, 171.

193
ELSEVIER

“práticas” de restauração desse estado de igualdade primeiro,


denominado, dependendo das doutrinas, “Idade de Ouro”,
“Jardim do Éden”, “estado de natureza bom” ou “comunismo
primitivo”.
A modificação reside em que, agora, a propriedade é com-
preendida em termos de propriedade dos meios de produção,
abarcando, sobretudo, o modo de valorização do capital pela
atividade industrial, a única produtora de mais-valia, aquela
parte do tempo de trabalho que o trabalhador entrega ao capi-
talista sem remuneração. Mais concretamente, Marx e Engels
entendem a “moderna propriedade privada burguesa” como
“a última e mais perfeita expressão da fabricação e apropria-
ção de produtos que se baseia em antagonismos de classes, na
exploração de uns por outros”.52 Ela se apresenta, então, como
a síntese de todas as outras formas de propriedade, na medida
em que todas, segundo eles, são expressões de antagonismos de
classes, apesar, como observado, de os autores não distinguirem
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

“classe” de “estado, ordem ou estamento”, com suas respecti-


vas formas de propriedade-privilégio. Num passe de mágica,
todas as formas anteriores de propriedade se condensam numa
só, que as compreenderia em si. Num hegelianismo de dar dó,
eles procuram “sintetizar” o processo histórico. Graças a essa
síntese, o caminho se abre para que o Estado se apodere, via
propriedade dos meios de produção, da própria vida dos indi-
víduos, pois seus bens não seriam propriamente seus, mas da
entidade estatal, aquela que controla a sociedade. Ou seja, via
estatização dos meios de produção, criam-se condições para a
estatização mesma dos indivíduos, doravante privados de seu
poder de livre escolha.

52
Ibid., p. 80.

194
ELSEVIER

Confrontado ao problema dos bens de pequenos proprie-


tários, fabris e agrícolas, assim como dos bens dos operários,
Marx e Engels só têm como resposta uma exclamação retórica,
como se o desenvolvimento da indústria tivesse abolido a pe-
quena propriedade em todos os sentidos. Eles simplesmente
proclamam que o capitalismo já teria abolido o mérito, o esforço
pessoal e a propriedade em geral, salvo a burguesa, ao arrepio
de qualquer consideração histórica, que mostrou, precisamente,
o fortalecimento da propriedade privada, sobretudo naqueles
países em que se desenvolveu plenamente, sem entraves. Ao
contrário do prognosticado, não houve o desaparecimento das
classes médias e o nível de vida do proletariado aumentou
sensivelmente.
O processo de apropriação “proletária” do capital se
traduz pela centralização administrativa, na medida em que o
Estado vem a ser o novo proprietário de tudo, embora Marx e
Engels mascarem esse fato denominando o Estado de “prole-
tariado organizado como classe dominante”.53 O eufemismo
vela o fato de que essa transferência de propriedade, feita em
nome dos “proletários”, se faz realmente em proveito daqueles
que conquistam o poder, no caso, os comunistas, os marxis-
tas. Tal processo só se pode, contudo, realizar mediante uma
interferência direta nas relações de propriedade existentes, o
que implica, também, uma interferência nas liberdades daí
CAPÍTULO VI A tradição socialista

decorrentes, começando pela econômica e remontando, por


exemplo, à de consciência e à religiosa, equiparadas por eles
à “expressão do domínio da livre concorrência no campo do
saber (no campo da consciência, segundo a edição de 1848)”.54
Graças a essa “intervenção despótica no direito de propriedade

53
Ibid., p. 86.
54
Ibid., p. 85.

195
ELSEVIER

e nas relações burguesas de produção”,55 o caminho se abre para


o despotismo pretensamente esclarecido, o do partido, que se
apodera de toda a sociedade, tornando-a sua propriedade. O
despotismo nasce da destruição do direito de propriedade.
Uma vez a “propriedade burguesa” condicionando
todas as esferas da existência humana, introduzindo, in-
clusive, a competição dentro da consciência, ela não pode
deixar de determinar aquilo que a garante: as leis, a moral
e a religião. “As leis, a moral, a religião, são para ele [prole-
tário] meros preconceitos burgueses, por detrás dos quais
se ocultam outros tantos interesses burgueses.”56 Elas, en-
quanto preconceitos, são reduzidas a uma mera forma de
expressão de interesses burgueses, que, assim, surgem como
encobrimento de relações de exploração. Sua função consiste
em ocultar a opressão introduzida pela burguesia. Elas são
nada mais do que formas burguesas, revestidas de uma certa
universalidade, preenchendo, aparentemente, necessidades
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

existenciais do homem.
Ora, se elas são “burguesas”, se elas “velam” a opressão,
a tarefa dos revolucionários consistirá no seu desvelamento,
no mostrar o seu caráter de classe, como missão preliminar de
sua destruição. A partir de tal forma de justificação, a violência
estará, por sua vez, legitimada, pois os revolucionários estarão
convictos de que parir uma sociedade passa pelo banho de san-
gue do existente. Mais concretamente ainda, Marx e Engels vêm
a considerar a liberdade, a cultura e o direito, derivados dessa
concepção da propriedade privada, eminentemente burgueses,
marcados por um caráter de classe, que lhes retira qualquer
forma de validade universal. Logo, o direito seria nada mais

55
Ibid., p. 86.
56
Ibid., p. 76.

196
ELSEVIER

do que a “vontade da classe dominante erigida em lei”.57 O


desprezo pelas regras que regulam os contratos se expressa
diretamente no modo mesmo mediante o qual eles concebem
o Estado enquanto mero agente de dominação da burguesia,
como se a ele não incumbisse qualquer relação e/ou comprome-
timento com a coisa pública, com a universalidade. O Estado se
vê reduzido a um mero instrumento de classe, levando consigo
as regras republicanas, a democracia representativa e os valo-
res morais. “O poder político do Estado moderno nada mais
é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios
comuns de toda a classe burguesa.”58

4. Desdobramentos
Onde não há propriedade privada, todo o conjunto de
direitos civis e políticos se encontra igualmente ausente. A
propósito da Rússia, que fará a primeira revolução marxista
no século XX, Richard Pipes assinala que, nesse país, a histó-
ria oferece “um excelente exemplo do papel que a proprie-
dade desempenha no desenvolvimento dos direitos civis e
políticos, demonstrando como a sua ausência torna possível
a manutenção de um governo arbitrário e despótico”.59 Com
efeito, o Czar, enquanto soberano, até o final do século XVII,
possuía a posse da terra, posse que se estendia à nobreza
e aos camponeses, ambos considerados, então, súditos. As
CAPÍTULO VI A tradição socialista

liberdades, neste caso, não podiam se desenvolver, sendo


consideradas privilégios concedidos a alguns por um poder
arbitrário.

57
Ibid., p. 83.
58
Ibid., p. 68.
59
Pipes, op. cit., p. 195.

197
ELSEVIER

Não tendo estabelecido essa relação entre ausência


de propriedade privada e ausência de liberdades, ou ainda,
tendo confundido propriedade privada com privilégio, Marx
e Engels, ao se defrontarem com essa questão colocada pela
história russa, a compreenderam apenas em termos da intro-
dução possível, revolucionária, da propriedade comunista. No
prefácio à edição russa do Manifesto de 1882, eles se perguntam
pela viabilidade da passagem da Obchtchina russa (proprie-
dade comum camponesa) ao que eles consideram a “mais alta
forma comunista de propriedade fundiária”.60 Diante da tarefa
política colocada por esse país, eles se confrontaram com o
problema de como efetuar a transição de uma forma de regime
à outra, na medida em que a Rússia já teria uma forma rural
de propriedade coletiva.
A questão consistia em se seria possível passar direta-
mente de uma forma de propriedade coletiva à outra, saltando
a etapa “burguesa”, que Marx e Engels consideravam tão
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

importante e vital, para a formação do proletariado moderno.


Em outros termos, a propriedade comum russa estava, por
sua vez, baseada em determinados tipos de privilégios, que
seriam, deste modo, metamorfoseados em “privilégios esta-
tais”, apesar de eles considerarem que, dada a universalidade
comunista atingida, a propriedade burguesa, síntese de todas
as demais, as levaria consigo em sua morte. Neste sentido, a
tarefa do partido bolchevique teria sido enormemente facilita-
da, pois eles puderam apregoar que a sua luta se fazia contra
a propriedade burguesa, visando a fortalecer uma forma co-
munal, que corria o risco de desaparecimento. Uniram, desta
maneira, tanto os trabalhadores urbanos quanto os rurais, que
se opunham, por motivos diversos, à propriedade “burguesa”.

60
Marx, Karl e Friedrich Engels, op. cit., p. 44.

198
ELSEVIER

O discurso político de apoio à propriedade comunal russa,


evidentemente, não foi mantido após a conquista do poder.
Pipes relata como a propriedade privada foi abolida
por Lenin desde 1917, a partir de uma série de medidas que
afetou a propriedade de terras, passando pela propriedade
comunal dos camponeses, pelas fábricas e comércios, pelos
bancos, até os bens imóveis de cada um, tornando o Estado
o grande Senhor de todos os russos, tornados meros súditos
sem direitos. Cabe ressaltar que as ações dos bolcheviques
foram unicamente orientadas por leituras dos utópicos e, em
particular, pelos escritos de Marx e Engels. Mais especifica-
mente, os revolucionários se guiaram pela análise marxista
da Comuna de Paris. Temos aqui um caso particularmente
elucidativo de como ideias orientam ações, instruindo medi-
das de um partido dito de vanguarda, representante de uma
verdade de tipo absoluta. Não era, num regime ditatorial,
necessário formar a opinião pública, porque essas ideias fo-
ram impostas pela força das armas, pela guerra civil e pelos
enforcamentos de camponeses em praças públicas61. A partir
do momento em que a propriedade privada foi estatizada
em todos os setores econômicos, sociais e familiares, desa-
pareceram com ela os direitos pessoais, os direitos civis e
os direitos políticos. Servos do Estado-partido passaram a
ser os homens “liberados” pela revolução bolchevique, ou
CAPÍTULO VI A tradição socialista

seja, “liberados” dos direitos, da livre disponibilidade de


suas próprias vidas: “liberados” da liberdade. Os descon-
tentes com essa “liberação” eram enviados para os campos
de trabalho forçados.
Por sua vez, as políticas econômicas de Mussolini e Hitler
assemelhavam-se ao “socialismo estatal” de Lenin, em seu início,

61
Pipes, op. cit., p. 252-3.

199
ELSEVIER

ao procurarem subordinar a propriedade privada às determi-


nações do governo, como se empresas devessem seguir o de-
terminado pelo Estado. A propriedade privada era, por assim
dizer, um privilégio concedido pelo Estado, privilégio esse que
poderia ser suspenso a qualquer momento. Lenin terminou por
seguir uma via mais radical, passando, num segundo momento,
a estatizar todas as propriedades privadas, isto é, eliminando-
as completamente. Mussolini e Hitler mantiveram, pelo seu
lado, a propriedade privada sob uma forma condicional, o seu
condicionamento sendo dado pelas orientações do Estado e
de seus planos. Mussolini, Hitler e Lenin compartilhavam, na
verdade, a mesma posição contrária à economia de mercado,
à propriedade privada, ao estado de direito e à democracia
representativa.
Hitler, em um mês de controle governamental, sus-
pendeu as garantias constitucionais de inviolabilidade da
propriedade privada. Eis o texto de um teórico nazista: “Pro-
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

priedade era...não mais um assunto particular, mas um tipo de


concessão do Estado, limitada pela condição de ser utilizada
‘corretamente’.”62 Ou ainda a mesma questão colocada pelo
próprio Führer, numa conversa confidencial com um editor de
jornal: “Quero que todos mantenham a propriedade que ad-
quiriram para si conforme o seguinte princípio: o bem comum
vem antes do interesse próprio. Mas o Estado deve manter o
controle e cada proprietário deve se considerar um agente do
Estado...O Terceiro Reich sempre terá o direito de controlar os
donos de propriedade.”63 Ou ainda outra: o Estado tem a au-
toridade de “limitar ou expropriar propriedades à vontade
onde essa limitação ou expropriação estiver consoante com

62
Ibid., p. 263.
63
Ibid., p. 263.

200
ELSEVIER

os ‘deveres da comunidade’”.64 Chávez, o MST e setores do


PT estariam totalmente de acordo. Os últimos ministros do
Desenvolvimento Agrário, da Democracia Socialista, também!
O que horroriza é o nome de Hitler e não as suas propostas.
O Estado nazista seguia os ideais corporativistas de Mus-
solini, intervindo “em todos os níveis da atividade econômica,
regulando preços, salários, dividendos e investimentos, limitan-
do a competição e estabelecendo disputas trabalhistas”65. Ora,
um processo desse tipo já ocorre na Venezuela de Chávez e na
Bolívia de Morales, com adeptos no Brasil e em outros países
latino-americanos. Trata-se de um processo de “transição ao
socialismo”, que segue, segundo o gosto, as orientações leni-
nistas, fascistas ou nazistas. Ressaltemos novamente que Lenin
compartilhava dessa mesma ideia no começo da Revolução,
tendo, depois, radicalizado essa via mediante a estatização
completa da propriedade privada.
Convém, por último, observar que tanto no discurso
dos nazistas quanto no dos comunistas aparece uma mesma
crítica dos valores “capitalistas”, dentre eles o do egoísmo, que
regularia as relações individuais em detrimento dos valores
da comunidade, do coletivo. A crítica ao individualismo, ao
individualismo possessivo e ao egoísmo é constante nessas
formulações, sempre ditas e representadas como se fossem uma
verdade exercida em nome da comunidade. Neste sentido, ela
CAPÍTULO VI A tradição socialista

termina sendo uma condição para a posterior eliminação do


indivíduo, da liberdade de escolha, da economia de mercado
e dos direitos das pessoas em geral. Sob o manto da crítica ao
egoísmo, o alvo a ser atingido é a liberdade econômica e, através
dela, a liberdade enquanto tal.

64
Ibid., p. 263.
65
Ibid., p. 264.

201
À guisa de conclusão

Os homens agem cotidianamente em função das ideias


recebidas de bem. A noção mesma de bem varia enormemente
em função dos indivíduos, pois, cada um, estima como lhe
sendo mais favorável o que lhe causa mais prazer ou contenta-
mento em geral. O mesmo ocorre com a noção de mal, muitas
vezes associada à dor que um determinado ato ou objeto causa.
Mas mesmo aqui as variações são enormes, na medida em que
o prazer (ou o desprazer) de um não é necessariamente o de
outro. Disputas frequentemente surgem sobre essas noções,
criando um relativismo que só tende a se acentuar, visto que
os objetos de satisfação em uma sociedade de consumo mudam
incessantemente. O bem vem a ser associado ao “bem para x”,
conferindo-lhe um significado relacional. As sociedades mais
desenvolvidas terminaram criando um tal variegado das noções
de bem que um acordo parece ser impossível. O relativismo
parece ser o destino moral, como se nenhuma moralidade
pudesse se afirmar.
Esse fenômeno tende ainda mais a se acentuar pelo for-
talecimento no pensamento do relativismo cultural, como se
algumas sociedades mais desenvolvidas, como as europeias,
estivessem expiando, assim, pecados passados. Nesta perspecti-
va, todas as culturas teriam igual valor, sendo apenas diferentes
modos de viver, sem que fosse possível um juízo universal,

203
ELSEVIER

um juízo de caráter moral, que permitisse estabelecer limites


de até onde ir na ação humana, nas máximas e princípios que
a dirigem. Chegamos inclusive a situações em que ocorre uma
renúncia da faculdade de julgar, na verdade uma renúncia
do pensamento, que se curva diante de fatos sedimentados
em costumes. Sob a aparência de uma aceitação da diferença
cultural, de uma aceitação do outro, foi-se introduzindo um tal
relativismo que abdica daquilo que é próprio da condição hu-
mana: o pensamento em busca da verdade, do bem e da justiça.
Culturas não são equivalentes, não são dotadas do mes-
mo valor, embora a moda do politicamente correto muitas
vezes impeça que essa própria questão possa ser colocada.
Comunidades que mutilam os corpos de seus membros por
serem mulheres, por exemplo, não podem nem devem ter o
mesmo valor daquelas sociedades baseadas na integridade
física dos seus membros. Comunidades que obrigam os
seus membros a seguirem preceitos teológicos, políticos ou
político teológicos, sob pena de prisões, encarceramentos,
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

mutilações físicas ou mesmo a morte, não possuem o mesmo


valor daquelas sociedades que facultam aos seus membros
o livre exercício do pensamento e da escolha. Ocorre, en-
tretanto, que as sociedades hoje livres, por suas arbitrarie-
dades passadas ou presentes, encontram dificuldades em
afirmarem dos seus valores aqueles que são efetivamente
universais. Todo ato, todo pensamento, toda regra, todo
valor e toda instituição comportam sempre uma pergunta
sobre a sua universalidade, ou melhor, por sua universali-
zação possível. Se a resposta for que tal ação, por exemplo,
só é válida para um grupo determinado e não para o homem
universalmente considerado, é porque ela não conseguiu
passar pelo seu teste de moralidade.

204
ELSEVIER

Poderíamos, ainda, aplicar esse teste à propriedade. Se


a propriedade é válida apenas para alguns e não para todos, é
porque condições não são dadas para o seu acesso universal.
Se uma sociedade obstaculiza que alguns de seus membros
tenham acesso a ela, é porque esses não possuem condições
de se afirmarem como indivíduos livres, ficando a reboque
dos que lhes negam esse direito. O problema é aqui de monta,
porque uma propriedade defectiva introduz o controle de
determinadas particularidades, de certos detentores do poder,
que procuram apenas perpetuar um status quo que lhes favo-
rece especificamente. Se a propriedade é um bem apenas para
alguns, a noção de bem aqui envolvida será tributaria de um
valor necessariamente relativo, não conseguindo se afirmar
para toda a coletividade. Quando noções como “propriedade
social” ou “propriedade coletiva” são introduzidas, como se
pudessem preencher essa condição de universalidade, é porque
os seus agentes políticos se deram conta do caráter defectivo e
particular da forma de propriedade vigente. Eles velam, con-
tudo, que por intermédio dessa “socialização” ou dessa “cole-
tivização”, o seu objetivo, por outra via, consiste em impedir
que a propriedade privada se torne efetivamente universal. O
seu objetivo reside em eliminar a possibilidade de uma Repú-
blica de proprietários em proveito de formas estatais ou ditas
sociais de propriedade, com as consequências de servidão daí
advindas. Uma forma de propriedade ainda mais defectiva se
afirmaria politicamente em detrimento da propriedade privada.
Dentre as noções controversas de bem, cabe sempre a
pergunta de qual delas é capaz de preencher as condições de
À guisa de conclusão

universalidade presentes na própria noção de moralidade. Ob-


servamos em nossa vida cotidiana uma exigência constante de
incondicionalidade em nossas ações e em nossos valores morais.

205
ELSEVIER

É como se a exigência do absoluto aqui sempre habitasse. A


defesa dos valores, de uma ou outra maneira, introduz sempre
essa exigência de não condicionalidade, de não relatividade,
apesar de alguns cansarem desse esforço e de abdicarem de
toda moralidade. Eles se abandonam, por exemplo, ao mero
desejo de tudo fazer, como se não houvesse nenhum limite,
salvo aquele oriundo da coerção exterior, que pode ser tanto
da lei quando de um outro corpo, que resiste a uma demanda
qualquer que não corresponda ao seu próprio desejo. Comu-
nidades de tipo religioso ou teológico-político resolvem essa
questão impondo, simplesmente, uma determinada noção
particular de bem à exclusão de todas as demais, atribuindo-lhe
um valor absoluto, oriundo de uma verdade absoluta, religiosa
ou política. Religiosa, obrigando os seus membros a seguirem
determinados preceitos, sob pena de severas punições. Políti-
ca, obrigando os seus membros a pensarem uniformemente,
seguindo determinados padrões impostos por aqueles que
detêm o poder.
Reflexões sobre o Direito à Propriedade | Denis Lerrer Rosenfield

Ora, as sociedades modernas, as que procuram, apesar


dos seus percalços, se orientar por uma noção não relativa de
bem, aquelas que aprenderam a tudo questionar, aquelas que
enfrentaram o seu próprio relativismo, são as que conseguiram
se defrontar com esse problema radical da condição humana,
sem caírem na tentação do absoluto, nem do extremo ceticismo.
São aquelas que aceitaram que as distintas acepções do bem
são condições do livre exercício de pensar e da própria livre
escolha. Viram que a livre escolha, orientada por um pensa-
mento crítico, aberto à revisão dos seus pressupostos, ao se
debruçar sobre vários objetos, várias formas de satisfação do
desejo, várias possibilidades que lhe são oferecidas, não pode
abdicar de si mesma. A própria pergunta sobre o relativismo
dos valores pressupõe que valores possam ser livremente

206
ELSEVIER

relativizados, sob a condição de uma pergunta séria, a de sua


validade efetivamente universal. Se tudo pode ser relativizado,
há um princípio que não pode, a saber, o que torna a livre
pergunta possível. Ou seja, a livre escolha não é um bem entre
outros, mas um que pode resistir a toda pergunta que procure
invalidá-lo. As sociedades e os pensamentos que procuraram
eliminá-la em nome de um outro princípio ou de um valor
maior foram aquelas que aboliram todo pensamento e toda
opção por um mundo melhor. Se há um bem que deve ser
afirmado como valendo incondicionalmente, é bem o da livre
escolha, ancorado no conceito de indivíduo.
Perguntas orientam as respostas, delimitando, inclusive,
aquilo que pode ou não ser dito. Normalmente, pensamos
pensar livremente sem mesmo nos dar conta de que estamos
sendo guiados pelas ideias vigentes e pelo modo que elas cir-
cunscrevem nossas interpelações da realidade. Se perguntas
não descortinam novos horizontes, novas soluções não podem
mesmo surgir. Há questões que não são sequer formuladas,
pois seu silenciamento é posto por um determinado universo
cultural, que impede o aparecimento de novas concepções. Se
a propriedade é considerada um mal, algo que deve ser cons-
tantemente relativizado, fica obstaculizada a pergunta sobre a
relação intrínseca que ela guarda com a liberdade. Os discursos
sobre a liberdade tornam-se, então, demagógicos por parte
daqueles que, advogando pela relativização da propriedade
privada ou por sua supressão, almejam a servidão humana.
A liberdade não pode ser sufocada, sob pena de o homem ser
escravizado.
À guisa de conclusão

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