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MUNDO 29
Sábado 19/9/2020 Diário de Notícias Diário de Notícias Sábado 19/9/2020

Bernardo Pires de Lima. Colunista do DN e comentador na


CÉSAR AVÓ ipsis verbis no acordo do Conselho Europeu dência nas organizações e nos governos tes, mas estão pôr à prova o normal
sem precisar de lá estar escrito. Essas termi- para a criação dessas figuras e dessa reco- funcionamento das instituições. Há uma
Nas livrarias desde ontem, Portugal na
Era dos Homens Fortes: Democracia e Au- RTP e Antena1, investigador no Instituto Português de Relações nologias, como tornam o debate muito bi-
nário, é inteligente politicamente deixá-las
lha informativa para podermos decidir no
presente mais adaptados às tendências que
“A Presidência da deturpação de tudo o que é Estado de Di-
reito e separação de poderes. Mais quatro
toritarismo em Tempos de Covid seria lan-
çado na terça-feira com apresentação de
Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, aproveitou o cair, trabalhá-las com outros termos. Não
tenho problemas com o federalismo desde
vão marcar os próximos cinco a dez anos.
A chanceler alemã tem, o governo francês
República pode e anos é perigoso para os Estados Unidos e
para os países que têm laços de proximida-
Marcelo Rebelo de Sousa, mas a cerimónia confinamento para escrever um ensaio em tom otimista contra que seja inteligente, sério e uma resposta à tem. No caso da UE é muito interessante deve ter um discurso de, porque legitima forças que estão a nas-

a ameaça do autoritarismo.
foi anulada para evitar ajuntamentos. altura dos problemas, não forçado por um porque fez subir essa matéria a uma das cer nesse países e porque o futuro das insti-
Bernardo Pires de Lima e o Presidente en-
contram-se com alguma regularidade: o
qualquer fetiche ideológico. Olho para a
política com pragmatismo. Se estamos
vice-presidências, tem um orçamento
muito generoso e penso que o comissário
para além da espuma tuições que partilhamos fica em causa. Não
sei como vai ser o futuro da NATO com este
primeiro fundou o Grupo de Reflexão so- com problemas corrijam-se. As crises aju- eslovaco responsável, Maros Sefcovic, foi o dos dias. Pode presidente. Não é o único foco de tensão, há

“Mais quatro anos


bre o Futuro de Portugal para discutir com dam a moldar as decisões. primeiro a fazer um report estratégico so- também a Turquia e necessariamente a
o segundo os desafios do nosso país. É nes-
se espírito pragmático e desprovido de fa-
Faz uma série de sugestões para Portugal,
como uma Secretaria de Estado sobre a ante-
bre grandes tendências com impactos dire-
tos e indiretos na UE. Isso ajuda a balizar as
introduzir no debate Rússia. Mas é diferente ter um presidente
alinhado com os outros do que outro com-
talismo que no livro articula o posiciona- cipação de tendências [foresight], um embai- melhores políticas públicas. Há sempre im- público as questões pletamente desalinhado, que está a minar a
xador para as alterações climáticas, a aposta
fundamentais
mento de Portugal face ao mundo. Para ponderáveis, como a crise pandémica, mas organização por dentro. Para nós é absolu-

de Trump podem ser


contrariar a ascensão do trumpismo. estratégica na diplomacia e o reforço de mesmo esta podia ter instrumentos. A con- tamente estrutural, a nossa economia vive
quadros portugueses em órgãos internacio-
da próxima década.”
clusão que se tirou é que ninguém dava re- da nossa integração europeia e da sustenta-
No livro há um reiterado apelo à defesa dos nais. Destas ideias qual é a mais premente? levância à matéria e poucos estavam pre- bilidade no quadro da NATO.
valores da democracia liberal. Mas do outro Pensarmos além da agenda do presente é parados para atacá-la. Isso era uma grande Acredita que Trump e o procurador-geral
lado da barricada o apelo ao irracional, às fundamental. Não é só criarmos grandes transformação na máquina do Estado e William Barr irão procurar todos os buracos

fatais para a ordem


teorias da conspiração, ao medo e ao ódio, planos estratégicos, apesar de preferir que não tem de viver só da máquina do Estado, legais para boicotar a eleição?
têm mais apelo. O que fazer? existam. Temos de ter na cabeça do decisor pode ir buscar expertise às fundações. Completamente convicto disso. Está tudo
Não se pode responder na mesma moeda mais informação sobre o dia seguinte. Para Isso deveria refletir-se no quadro político vi- preparado para uma longa batalha judicial
fingindo ter o mesmo perfil à força. É preciso isso é preciso ir buscar trabalho em rede. Os gente. Por exemplo, no governo de Passos e política, de manifestações na rua e boico-

constitucional americana“
um misto entre razão e coração. Acho que há gabinetes ou a administração pública não Coelho só se falava em austeridade, não se te permanente à legitimidade à vitória de
espaço político e social para que as pessoas têm de criá-la de raiz, existe muita coisa fei- ouvia uma palavra sobre o futuro. Joe Biden. O sistema [eleitoral]é muito frá-
se encontrem num determinado discurso ta e pode trabalhar em rede. Há uma ten- De acordo. Há bocado usei uma palavra, as- Biden tem essa predisposição mas vai preci- gil e como cada estado tem o seu próprio
mobilizador aspiracional que não seja des- piracional, que não deve estar só conotada sar de um alinhamento com as bancadas do modelo a mobilização é fundamental por-
trutivo da ordem social. Sendo sério não tem com o elevador social. Tem a ver com uma Congresso. Diria que mais quatro anos de que o recenseamento não é obrigatório.
de ser cinzento. A prova de que é possível fa- ideia de que depois de um período difícil há Trump podem ser fatais para a ordem cons- A eleição é muito extensa em tópicos locais
zer isso é que os parlamentos no quadro da um horizonte coletivo que é possível cons- titucional americana. Ela já está em choque, e estaduais e só no último é que tem o ticket
União Europeia [UE] têm 70% a 80% dos de- truir. Esse discurso nunca vingou nesse pe- com a arbitrariedade do poder, com um pre- para a presidência, é um lençol de frente e
putados afetos aos partidos tradicionais. As ríodo. Nem todos os políticos têm o talento sidente que incita quase à violência, que verso. Esta mistura de temas não é saudá-
forças mais extremadas continuam a ser ni- de saber olhar para a frente e ter palavras de acomoda todo o tipo de anarquia, desde mi- vel, a máquina tem ene entropias estaduais
chos de mercado eleitoral e de representati- incentivo. Quem tem o poder executivo tem lícias a entrar em parlamentos estaduais e a e federais para que o voto seja uma coisa
vidade. Quer dizer que a receita histriónica, de olhar mais para a gestão quotidiana ou a fazer policiamento nas ruas, não condena natural. Isso não é uma responsabilidade
negativa e nativista não é necessariamente prazo médio. Mas por exemplo a Presidên- toda a violência, só parte. Olhamos para a de Trump. Quanto muito percebeu que o
aquela que vinga. Com o declínio dos media cia da República pode e deve ter um discurso Casa Branca como um sítio que em teoria sistema vive há muitos anos disto e vai pôr a
tradicionais e a ascensão de outras platafor- para além da espuma dos dias. Pode intro- faça um discurso de paz social e não da guer- gasolina na fogueira.
mas, têm um eco que torna tudo o que é ruí- duzir no debate público as questões funda- ra. Ele é exatamente o contrário, como Bol- Referiu a Turquia como foco de tensão.
do em discurso normalizado. Quem está do mentais da próxima década portuguesa. sonaro. Essa paz social, que não existe, mor- Emmanuel Macron é o único líder que de
lado certo da história ou vai a jogo no mes- Há um ano Greta Thunberg e a crise climáti- re de vez com mais quatro anos. Como o Par- alguma forma tem feito frente a Recep
mo ringue e perde, ou tenta mudar o perfil, ca faziam parte da agenda mediática. A pan- tido Republicano neste momento não Erdogan.
ou tenta recuperar os canais tradicionais e demia poderá ter sido uma bênção para os existe, é um culto, se vencer outra vez e ga- Erdogan foi suficientemente hábil para
corrigir o mais depressa possível os anáte- negacionistas das alterações climáticas? rantir o Senado implica uma prepotência e concentrar o poder em si através de plebis-
mas em que os partidos mergulharam. Quem não acredita na ciência continua a uma cegueira no sistema que vai inviabilizar citos, eleições e alterações constitucionais,
Essa dificuldade de comunicação não é só não acreditar em estudos sérios, seja sobre pontes com os democratas, quando elas são em parte à custa do fim do caminho de in-
portuguesa nem só nos parlamentos nacio- alterações climáticas seja sobre vírus. Há é necessárias para qualquer pacote financeiro tegração à UE. Com alguma razão, diga-se,
nais, mas talvez mais ainda a dificuldade de mais uma corrente de argumentos a invali- estancar a crise que se vive. Depois, vencen- fez das posições inflexíveis de Berlim e Paris
projetar uma imagem positiva da UE. dar essas posições cegas. Acho que foi Gu- do, tenderá a fazer uma caça às bruxas bru- um ricochete para alimentar uma outra vi-
Do ponto de vista comunicacional são terres quem disse há dias que as alterações tal, metendo o pé em cima das oposições, são da Turquia, que não ocidentalizada,
muito mais os erros do que as virtudes no climáticas eram um tema mais relevante seja os media, seja parlamentares democra- mas uma radial de interesses mais otoma-
campo institucional europeu. Um é a má- para o mundo do que a pandemia. Isto tas. Tem um fundo de autoritarismo que, se nas: Balcãs, Médio Oriente, Ásia Central.
quina ser muito pesada e responder sem- deve ser dito porque é correto, mas tam- pudesse, fazia o que outros protoditadores Como vimos na eleição [autárquica] de Is-
pre tardiamente aos vários momentos polí- bém é uma frase que para o cidadão co- fazem: dar um golpe na Constituição. Não tambul, há uma sociedade vibrante, como
ticos da história e a outra tem que ver com mum pode parecer brusca, bruta e sem estou a dizer que tem condições para isso, há na Rússia. Na Turquia há sinais de que a
as competências exclusivas, que são muito sensibilidade. Mas nos próximos anos não mas que teria vontade, que é do mesmo cali- prepotência de Erdogan chega ao ponto de
poucas. Como tem poucas competências há assunto mais importante do que as alte- bre. Isso é que é preocupante. Para nós tam- querer chegar ao centenário de Atatürk
exclusivas, muitas partilhadas e muitas de rações climáticas porque têm implicações bém há uma grande pressão nas nossas de- sendo o novo Atatürk. E para isso vai cons-
exclusividade dos estados, esta mistura não a todos os níveis, geopolíticos, de recursos mocracias, que se estão a adaptar ao novo truindo relações de paridade através da be-
permite que a comunicação seja afinada do naturais, deslocações migratórias forçadas, exercício do poder, com o mesmo tipo de ligerância, um pouco como Putin faz, para
ponto de vista das instituições, é sempre acesso a bens essenciais, inflação generali- narrativa. As tiradas de André Ventura sur- se relacionar quase de igual para igual com
partilhada. Isto gera uma cacofonia incrí- zada e súbita, é um eixo central da política gem porque há uma legitimação internacio- a administração americana, a chanceler
vel. O que nos chega são redes sociais sem internacional. Quem está do lado negacio- nal vinda do Brasil ou dos Estados Unidos Merkel, etc. É uma estratégia que está a vin-
rasgo nenhum ou então uma catadupa de nista dificilmente vai ver a luz. A seguir à para este tipo de retórica, é uma receita de gar, mas que tem um preço. Há uma crise
porta-vozes, que afugenta qualquer euro- pandemia há de vir outro, como no caso sucesso. Mas precisa ser travada porque, económica há anos, uma sociedade com-
peísta convicto. Nada disso é atrativo. Mas americano uma hipotética vitória de Joe Bi- quanto mais não fosse, a pandemia provou pletamente partida, e vive do mundo rural,
há que reconhecer que, por exemplo, em den não reconhecida, porque o discurso já que estas pessoas com este tipo de exercício um bocadinho como a Rússia. Isto é sus-
GERARDO SANTOS/GLOBAL IMAGENS

matérias de saúde pública ou de fronteiras está feito: a vitória democrata foi montada de poder são nefastas. Não é por acaso que tentável durante muito tempo? Este livro
as competências são dos estados. Podemos sob uma patranha qualquer eleitoral. os Estados Unidos e o Brasil estão no topo não é fatalista. Pelo contrário, é esperanço-
começar a ter um debate sério sobre a rea- PORTUGAL Afirma no livro que os EUA e o mundo não das infeções e das mortes. so sobre as boas moedas que existem nos
bertura dos tratados para rever as compe- NA ERA aguentam mais quatro anos de Donald Diz-se que os EUA têm um sistema de pode- vários países que estão a ser internamente
tências e meios ao dispor para na próxima DOS HOMENS Trump. Qual é o grande problema? res e contrapoderes, mas neste momento atacadas por autoridades com perfil autori-
crise as coisas correrem melhor. FORTES Os problemas das organizações internacio- não é tão claro. tário e antidemocrático. O que sinto é uma
É um europeísta convicto mas não refere 188 páginas nais são anteriores a Trump. O que ele faz de Estão todos em causa. Por isso é que eu fa- falta de partilha de esperanças. Temos de
uma única vez o federalismo. Porquê? Edições uma maneira abrupta é esvaziá-las financei- lava numa pressão enorme sobre a Consti- valorizar quem está na rua seis meses por
Para bom entendedor meia palavra basta. Tinta-da-China ra e politicamente. Para as recuperar é preci- tuição. É esta que baliza os freios e contra- uma determinada causa, seja no Montene-
É como a mutualização da dívida. Ficou 13,90 euros so reinvestir e dar-lhes capital político. Joe freios e foi feita para este tipo de presiden- gro, na Polónia ou na Hungria.

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