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A Desvalorização da Autopsia

Com o Relatório Flexner a autopsia começou a ter uma importante parte


na decisão da acreditação hospitalar, pela seguinte razão: os bons
hospitais realizam muitas autopsias; os hospitais ruins fazem poucas.
Aumentando-se a taxa de autopsias os hospitais ruins irão
automaticamente melhorar, pois um maior número de autopsias
estimularia um maior cuidado no diagnóstico e seria uma importante
fonte de ensino.
O American Board Certification estabeleceu padrões rigorosos no
treinamento dos médicos patologistas, de modo que o nível médio de
competência dos patologistas melhorou. O treinamento centrava-se
largamente nas autopsias, apesar da Patologia Cirúrgica estar se tornando
cada vez mais importante. Por muitas razões, incluindo os padrões
rigorosos de acreditação e o aumento da consciência do público, as taxas
de autopsia nos hospitais aumentaram muito. Como consequência o
número das autopsias realizadas rotineiramente no serviço de patologia
hospitalar muito aumentou, sobrecarregando os patologistas.
Além do mais, os “exames laboratoriais” tornaram-se muito importantes
na prática médica. Eles, além do genuíno valor, foram tornando-se mais e
mais populares, reforçando-se a impressão de que a prática médica é
“científica.” Quando o seguro de assistência hospitalar pagou as contas, o
laboratório clínico tornou-se o centro financeiro do hospital, junto com o
serviço de radiologia. Desde que a direção do laboratório clínico coube ao
médico patologista, este passou a ter menos tempo para os estudos por
meio da autopsia. E como os médicos residentes em Patologia tinham que
aprender Patologia Clínica, o tempo disponível para aprenderem por meio
das autopsias foi sendo negligenciado.
Coincidentemente os fundos governamentais tornaram-se disponíveis
para a pesquisa experimental. Ora, a pesquisa demanda publicações, estas
dão reputação profissional, avanço acadêmico, aumentos de salário e mais
verbas. Devido a estes fatores o modo de encarar a Patologia, nos círculos
acadêmicos e na comunidade hospitalar, foi sofrendo uma mudança.
Logo após os meados do século XX, vozes críticas começaram a aumentar
e a autopsia tornou-se o foco de ataque. Em 1956, Isaac Starr (1895-
1989), médico cardiologista e epidemiologista clínico norte-americano,
escreveu um editorial no Journal of the American Medical
Association intitulado “Potential Values of the Autopsy Today” (JAMA 160:
1144-145,1956). Ele afirmou que a era presente é “caracterizada pelo
aumento da confiança no experimento como meio de se adquirir
conhecimento médico.” Simultaneamente o interesse na autopsia estava
declinando, começando com o professor, cujo principal interesse estava
na experimentação, e estendendo-se para o corpo clínico. Desde que a
percentagem de corpos submetidos à autopsia aumentou, o “necrotério
ficou atolado com o trabalho de rotina. O que antes era um raro privilégio
tornou-se um fardo.” Isaac Starr negava que “no presente a pesquisa
importante está vindo dos estudos feitos nas autopsiasrotineiras.” E como
corolário do afirmado, ele perguntava por que alguém aconselharia um
promissor jovem patologista a “gastar muito tempo fazendo autopsias
hoje?” Ele apontou a grande pilha de registros acumulados de autopsias,
nos quais nenhuma informação de valor foi tirada, e considerava ser
“ridículo continuar coletando informações de rotina deste tipo.”
De fato, “as autopsias, aumentando em número, passaram a ter as
proporções da pesquisa experimental, demandando em suas realizações
maiores habilidades, gastos de tempo e dinheiro.” Em defesa do valor da
autopsia muitos se levantaram, podendo-se citar os grandes avanços
médicos nos 20 anos prévios, que se deram através dos estudos em
autopsia; sendo ainda a lista de tais avanços impressionante. A autopsia,
segundo os defensores, pode ainda prover enorme quantidade de
informação e aprendizado não somente com as correlações
anatomoclínicas, mas também com a associação do exame
histopatológico com os métodos de estudo envolvendo a imuno-
histoquímica e a imunofluorescência, a genética, a hibridização in situ, a
reação em cadeia da
polimerase, e inúmeros outros estudos em biologia molecular, além da
microscopia eletrônica, contribuindo, desse modo, para o
aprofundamento dos conhecimentos em Patologia Molecular, Patologia
Celular, Histopatologia, e muitos outros correlacionados com as Ciências
Básicas, a Clínica Médica, a Imagenologia e a Cirurgia.
A dedicação dos chefes de departamento à pesquisa experimental e as
suas negligências com o ensino e o serviço assistencial médico levaram a
muitas críticas, como o pouco interesse na realização das autopsias, por
serem muito ocupados com a pesquisa e com os trabalhos administrativos
envolvendo o ensino. A dificuldade dos serviços de autopsia em adquirem
de modo rápido, as recompensas na forma de subvenções, publicações e
promoções, em contraste com a pesquisa experimental, também
contribuiu para o desinteresse nas autopsias.
Qual é o propósito primário do exame post-mortem? Um escritor insistiu
que era “primariamente” checar a acurácia diagnóstica do corpo clínico.
Outras questões surgiram: quanto tempo e esforço deveriam ser
empregados neste propósito particular? De fato, Isaac Starr tinha um
ponto meritório quando criticou a massa de detalhes inúteis acumulados
nos protocolos de autopsia. As críticas de Starr eram e são totalmente
procedentes nas autopsias malfeitas, sem padronização, incompletas na
execução, na redação do laudo macroscópico, no estudo histopatológico e
no laudo final.
Diante das críticas, Joseph Forde Anthony McManus (1911-1980), médico
patologista canadense, um dos pioneiros na histoquímica, considerou
errado tratar todas as autopsias por igual. Ele também reforçou o
desperdício quando todo caso é autopsiado detalhadamente. Ao invés, ele
pleiteava para seleção e reconhecimento duas categorias diferentes de
autopsias, cada uma com procedimentos característicos, próprios, sendo
uma de “pesquisa” e a outra de “rotina.”

John Beach Hazard (1905-1994)

Em 1965, John Beach Hazard (1905-1994), médico patologista norte-


americano, enfatizou o grande valor da autopsia, porém considerou a sua
execução em massa sem propósito, e que é de pequena importância
“meramente aumentar o número de autopsias.” Como J. F. A. McManus,
defendeu uma seleção e que as autopsias deveriam ser distinguidas como
“autopsia de pesquisa” e “autopsia de ensino,” e insistiu na íntima
colaboração entre o clínico e o médico patologista.
Na prática médica atual a melhoria e a sofisticação crescentes nos exames
laboratoriais clínicos e de imagem têm muito contribuído para a
desvalorização da autopsia mundialmente, pois a correlação entre a
Patologia Clínica e os Exames de Imagem substituiu a clássica correlação
anatomoclínica. Apesar disso, a necessidade da autopsia para checar os
diagnósticos clínicos e de imagem reais tem sido repetidamente reforçada
por vários pesquisadores, que têm demonstrado as discrepâncias entre os
achados anatomopatológicos e os diagnósticos clínicos ou por imagem
(leia em). Além disso, não se pode negar que as autópsias completas
continuam sendo uma ferramenta de pesquisa indispensável e um meio
de ensino sem igual, tanto as clínicas, quanto as médicolegais (forenses).
Uma lição da história pode ser sumarizada num editorial publicado
no Journal of the American Medical Association, onde se afirmou o óbvio:
“É um equívoco pernicioso pensar que a mera dissecação post-
mortem leva ao progresso na ciência médica …o progresso depende não
da autopsia, mas da pessoa que está examinando o material. Aqueles que
creem que mais autopsias feitas resultarão em mais progresso na ciência
médica, estão pleiteando não por mais autopsias em si, e sim por mais
pessoas que têm imaginação, originalidade, persistência, acuidade mental,
boa base educacional, a indispensável “mente preparada,” sem a qual as
observações são estéreis. É um grave desserviço confundir a execução de
autopsias com a centelha da compreensão intuitiva (insight) que a
autopsia pode desengatilhar. Nós queremos o insight; e as autopsias
sozinhas, não importa quão numerosas, não são o equivalente.” [King, L.
S. – Of autopsies (editorial). JAMA 191:1078-1079, 1965].
Todas as épocas são limitadas em seus conhecimentos. O relato da
história deve levar isto em conta, para se evitarem o anacronismo e a
injustiça com os que já faleceram, ao se avaliar o passado, segundo a
ciência do presente.
“Uma nova ideia científica não vinga porque os seus oponentes a
aceitam, mas porque
os seus oponentes morrem e uma nova geração cresce familiarizada
com ela.”

Max Karl Ernst Ludwig Planck (1858-1947) Prêmio Nobel de Física, 1918.

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