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DOCUMENTO #2

Processo:
 08003338220174058200
Órgão Julgador:
3ª TURMA
Classe:
APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA
Data Julgamento:
19/08/2021
Relator:
DESEMBARGADOR FEDERAL LEONARDO AUGUSTO NUNES COUTINHO
Data Autuação:
19/01/2017
EMENTA
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PROCESSO Nº: 0800333-82.2017.4.05.8200 - APELAÇÃO / REMESSA
NECESSÁRIA APELANTE: AGENCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA -
ANVISA e outro APELADO: ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE APOIO CANNABIS
ESPERANÇA - ABRACE ADVOGADO: Yvson Cavalcanti De Vasconcelos e outro
ASSISTENTE: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO RELATOR(A):
Desembargador(a) Federal Cid Marconi Gurgel de Souza - 3ª Turma
RELATOR(A) CONVOCADO(A): Desembargador(a) Federal Leonardo Augusto
Nunes Coutinho JUIZ PROLATOR DA SENTENÇA (1° GRAU): Juíza Federal
Wanessa Figueiredo Dos Santos Lima EMENTA PROCESSUAL CIVIL.
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ABRACE. ASSOCIAÇÃO. AUTORIZAÇÃO PARA
PLANTIO E EXTRAÇÃO DE SUBSTÂNCIAS DA CANNABIS PARA FINS
MEDICINAIS. EFICÁCIA NO TRATAMENTO DE DOENÇAS REFRATÁRIAS A
MEDICAMENTOS CONVENCIONAIS. ANVISA E UNIÃO FEDERAL. OMISSÃO NA
REGULAMENTAÇÃO DA MATÉRIA. AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. PRINCÍPIO DA
SEPARAÇÃO DOS PODERES. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO. APLICAÇÃO DA
RDC 16/2014. LOCAL E PRAZOS PREDETERMINADOS PARA O PLANTIO, A
CULTURA E A COLHEITA. OMISSÕES INEXISTENTES. APLICAÇÃO DOS ATOS
NORMATIVOS SANITÁRIOS VIGENTES. OBSCURIDADE SUPRIDA. 1. Embargos
de Declaração opostos pela União Federal e pela ANVISA em face de acórdão
que negou provimento às Apelações e à Remessa Necessária. Em suas razões,
a União Federal alega ter havido omissões no acórdão quanto à apreciação dos
seguintes pontos: a) sua atribuição legal, por meio do Ministério da Saúde (e
não do Poder Judiciário), de autorizar o plantio, a cultura e a colheita de
vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas exclusivamente
para fins medicinais ou científicos (violação ao princípio da separação dos
poderes e à legislação vigente); e b) fixação do local e prazo predeterminados
para fins do plantio, da cultura e da colheita dos vegetais e produção dos
substratos da Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos.
Argumenta o Ente Federal que inexiste qualquer informação, nos autos, de que
a ABRACE tenha postulado junto ao Ministério da Saúde autorização para o
plantio, a cultura e a colheita da Cannabis para fins medicinais ou científicos.
Ainda afirma que o Poder Judiciário não dispõe de conhecimento técnico
adequado para permitir tal plantio. Por sua vez, a ANVISA alega a existência de
obscuridade e omissão no acórdão em comento, uma vez que outros
normativos sanitários vigentes, inclusive aqueles estabelecidos na RDC
327/2019, também deverão ser aplicáveis, no que couber, ao presente caso, e
não apenas a RDC 16/2014. 2. No caso dos Embargos de Declaração da União
Federal, não houve qualquer omissão, obscuridade, contradição ou mesmo erro
material no acórdão combatido. Na verdade, o que se percebe é que a parte
Embargante se mostra inconformada com a decisão deste Colegiado. 3.
Especificamente quanto ao argumento de omissão no tocante a sua atribuição
legal, por meio do Ministério da Saúde (e não do Poder Judiciário), de autorizar
o plantio, a cultura e a colheita de vegetais dos quais possam ser extraídas ou
produzidas drogas exclusivamente para fins medicinais ou científicos (violação
ao princípio da separação dos poderes e à legislação vigente), esta egrégia
Terceira Turma assim decidiu: "Da mesma forma, A ANVISA e a União teriam
que regulamentar tanto a etapa do plantio da Cannabis quanto da produção de
seus extratos para fins medicinais, mas se omitem de fazê-lo, revelando que a
política pública adotada pelos referidos entes é ineficaz e lacunosa, de forma
que a intervenção do Judiciário não se mostra ilegal e ilegítima, mas necessária
para orientar e determinar a adoção de medidas efetivas em prol dos direitos à
vida e à saúde. Sendo assim, o Judiciário, ao apreciar e decidir uma questão
como a que ora se apresenta, não está interferindo no poder regulatório da
ANVISA ou do Ministério da Saúde, mas apenas suprindo omissão que, caso
persista, continuará a prejudicar um número incalculável de pessoas cujo único
objetivo é reduzir seu sofrimento, ter uma melhor qualidade de vida e seu
direito à saúde preservado. (...). O princípio da Separação dos Poderes (art. 2º,
da CF) foi concebido para assegurar as garantias constitucionais e evitar
abusos, mas não pode servir de obstáculo à concretização de um direito social
essencial ao ser humano. Como bem ressaltou a douta sentenciante, os
documentos juntados pela ANVISA (sigilosos) demonstram que, não obstante a
instauração, no âmbito da ANVISA, em 2015, de um processo administrativo
para a formação de um grupo de trabalho com o objetivo de esclarecer os
requisitos de segurança e controle para o cultivo de plantas sujeitas a controle
especial, esse processo não evoluiu, tendo se resumido a consultas que foram
feitas a instituições que já haviam solicitado autorização para cultivar e
manipular a Cannabis com fins científicos e terapêuticos. Nessa toada, pelo
tempo já decorrido desde o início desse processo administrativo, sem qualquer
decisão a respeito do tema, tudo leva a crer que os administrados teriam que
esperar ainda vários anos para que o cultivo e a manipulação da planta
Cannabis Sativa no Brasil pudessem ser regulamentados e autorizados, mesmo
que para a finalidade medicinal legalmente admitida. Não divirjo, portanto, do
quanto decidido na sentença de que 'A competência da ANVISA e da União há
de ser exercida, seja mediante a expedição da regulamentação pertinente, seja
pela análise de pedidos concretos, formulados pelos interessados, mesmo na
ausência do regulamento específico'. Relembre-se que compete ao Poder
Judiciário apreciar toda e qualquer lesão ou ameaça a direito, consoante a
previsão constitucional do art. 5º, XXXV, da CF, mesmo que essa lesão ou
ameaça seja proveniente de outro Poder Constituído do Estado. Ainda dentro
do tema da separação dos Poderes, a ANVISA alega o princípio da deferência
administrativa como um obstáculo à atuação do Judiciário para suprir sua
omissão regulamentar, defendendo que as Cortes de Justiça devem observar
com especial deferência as considerações jurídicas da Administração Pública
nos atos por ela praticados, em razão da qualidade técnica de suas decisões
que englobam questões complexas administrativas. De fato, o princípio da
deferência estabelece que decisões proferidas por autoridades detentoras de
competência específica, mormente de ordem técnica, precisam ser respeitadas
pelos demais órgãos e entidades estatais. Acontece que, no caso em comento,
a ANVISA e o Ministério da Saúde não agiram quando deveriam fazê-lo,
regulamentando o plantio e a produção no Brasil dos derivados da Cannabis
para fins medicinais, de modo que a intervenção do Judiciário não infringe esse
princípio, já que não houve qualquer tipo de interpretação ou decisão
empreendida pelas autoridades administrativas. Há, na verdade, frise-se mais
uma vez, uma omissão da ANVISA e da União." 4. Portanto, decidiu-se que é da
competência da ANVISA e da União, cada um deles dentro das suas atribuições
legais, regular tanto a etapa do plantio da Cannabis quanto a produção e seus
extratos para fins medicinais, seja mediante a expedição da regulamentação
pertinente, seja pela análise de pedidos concretos, formulados pelos
interessados, mesmo na ausência do regulamento específico. No entanto,
tendo em vista a omissão de tais entes públicos, coube ao Judiciário apreciar e
decidir questão como a que ora se apresenta, sem que isso importe em
interferência no poder regulatório da ANVISA ou do Ministério da Saúde, não se
mostrando ilegal e ilegítima, mas necessária para orientar e determinar a
adoção de medidas efetivas em prol dos direitos constitucionais à vida e à
saúde. 5. No que tange à alegada omissão quanto à fixação do local e do prazo
para fins do plantio, da cultura e da colheita dos vegetais e produção dos
substratos da Cannabis, o acórdão embargado, ao negar provimento às
Apelações e à Remessa Necessária, confirmou a sentença que permitiu o
cultivo e a manipulação da Cannabis pela Associação Autora, com finalidade
terapêutica exclusivamente, submetendo-se ao controle estatal da atividade
nos moldes da RDC 16/2014, até que sobrevenha ato normativo específico da
ANVISA. Para tanto, necessário será a expedição de uma Autorização Especial,
nos moldes da RDC 16/2014, que, a teor do seu art. 20, terá validade de apenas
1 (um) ano, sendo necessária sua renovação periódica. Sendo assim, resta
claro que a Autorização Especial para o plantio, a cultura e a colheita da
Cannabis pela ABRACE, para fins de produção de seus substratos, visando à
finalidade medicinal, terá prazo certo e ficará sujeita à renovação. Destarte, não
houve omissão também nesse aspecto. 6. De igual modo, não cabe a alegação
de omissão quanto ao local do cultivo, da colheita e da produção dos
substratos da Cannabis. 7. O acórdão guerreado demonstrou a preocupação do
Judiciário com a necessidade de estabelecer parâmetros bem claros acerca do
controle e da fiscalização, a serem exercidos pela ANVISA e pela União Federal,
tendo em vista que o uso da Cannabis, mesmo que para fins medicinais,
merece atenção redobrada, por se tratar de planta que possui efeitos
psicotrópicos e nocivos ao ser humano e seu uso desenfreado poderá causar
um sério problema de saúde pública. Foi esclarecido que o desvio de finalidade,
na verdade, é o maior risco associado à permissão do cultivo. 8. Dentro desses
parâmetros de controle e fiscalização, o acórdão determinou que tanto a
ANVISA quanto o Ministério da Saúde, ora representado pela União Federal,
dentro das suas competências definidas em Lei, deverão "elaborar um plano de
ação fixando de forma clara, objetiva e exaustiva, os critérios de fiscalização da
Associação Autora e de controle de suas atividades, de forma a manter um
padrão regular de produção, tanto no que diz respeito à qualidade dos produtos
quanto em relação à quantidade fabricada, ao transporte das plantas entre o
seu local de cultivo e de processamento. Também deve haver um controle
rígido, a partir de fiscalizações periódicas, fazendo um cotejo entre a
capacidade de produção da Associação e o que está, de fato, sendo produzido
por ela, para evitar excessos". Ainda decidiu que "Deverão ser estabelecidos os
locais de plantio, a extensão do cultivo, a estimativa da produção, o transporte
e o local da extração. Além disso, também deverão ser indicados os
responsáveis pelo controle da qualidade da planta e pelo controle dos custos
de seu fornecimento, pelo cadastro e acompanhamento dos pacientes, pelo
gerenciamento de dados e pelo atendimento das Convenções Internacionais e
da legislação pátria". Portanto, ficou definido que os locais de plantio serão
objeto do plano de ação a ser elaborado, de forma que, também em relação a
esse ponto, não houve omissão. 9. Quanto à inexistência nos autos de
requerimento ao Ministério da Saúde, por parte da Associação, de autorização
para o plantio, a cultura e a colheita da Cannabis para fins medicinais ou
científicos, entendeu-se que a ausência desse requerimento não induziria a
falta de interesse processual, até mesmo porque eventual pedido
administrativo desse quilate restaria infrutífero, já que que os Réus
contestaram o mérito da demanda. Mais uma vez, não houve omissão no
acórdão em comento. 10. No tocante ao argumento de que o Poder Judiciário
não dispõe de conhecimento técnico adequado para permitir tal plantio, o que
se percebe é que a parte Embargante se mostra inconformada com a decisão
deste colegiado e, a pretexto de ter havido omissão no acórdão, tenta forçar o
reexame de toda a matéria sobre a qual já houve manifestação judicial
inequívoca. 11. A ANVISA, por sua vez, traz a lume uma questão interessante
em seus Embargos de Declaração, qual seja, a necessidade de se esclarecer
quais normativos sanitários vigentes deverão ser aplicados à ABRACE, além da
RDC 16/2014, tanto para fins de expedição da AE quanto para a fiscalização de
suas atividades. 12. De fato, a RDC 16/2014 tratou apenas dos requisitos e
condições para a expedição da Autorização de Funcionamento (AFE) e da
Autorização Especial (AE), não tratando de temas, tais como: a fabricação, a
dispensação, a comercialização, o monitoramento e a fiscalização dos
produtos à base de Cannabis. Sendo assim e tendo em vista a necessidade de
se ter um controle e uma fiscalização rígidos por parte das autoridades
administrativas, no fito de evitar o desvio de finalidade, outros normativos da
ANVISA deverão sim ser aplicados, no que couber, ao presente caso. Dentre
eles, tem-se a RDC 327/2019 que, apesar ter regulamentado a atividade de
fabricação de produtos à base de Cannabis para fins medicinais apenas a partir
de insumos farmacêuticos importados, não regulando, assim, essa fabricação
a partir de insumos produzidos no solo brasileiro, tratou, também, de outras
etapas importantes, após a fabricação dos substratos, tais como: o controle de
qualidade dos produtos à base de Cannabis; a rotulagem, a embalagem e o
folheto informativo desses produtos; as informações e os dispositivos para
rastreabilidade do produto de Cannabis; além da dispensação e da fiscalização
desses produtos. Nesse prisma, é cabível a sua aplicação à ABRACE naquilo
que for compatível com a situação e a atividade da Associação. 13. Além dessa
RDC, outros normativos sanitários da ANVISA, que disciplinam questões como
registro, controle e qualidade dos produtos sob controle especial, desde a sua
fabricação, até a sua dispensação, também devem ser aplicados ao presente
caso naquilo que couberem. 14. O acórdão recorrido confirmou os termos da
sentença. Nesta, a douta Magistrada autorizou a instituição Autora a efetuar o
cultivo e a manipulação da Cannabis, exclusivamente para fins medicinais e
para destinação a pacientes associados a ela ou a dependentes destes que
demonstrem a necessidade do uso do extrato, mas submeteu a Associação ao
registro e ao controle administrativo da ANVISA e da União Federal, nos moldes
da RDC 16/2014 e demais atos normativos correlatos. Portanto, já na sentença
afirmou-se que o registro e o controle administrativo da ANVISA e da União
Federal deveriam se guiar não só pela RDC 16/2014, mas também pelas
demais normas internas correspondentes. 15. Em razão de tudo o quanto foi
exposto, a insurgência da Embargante encontra guarida e merece ser suprida
nos moldes acima. 16. Embargos de Declaração da União Federal improvidos.
Embargos de Declaração da ANVISA providos para esclarecer que, além da
RDC 16/2014, os demais normativos sanitários vigentes também devem ser
aplicados à ABRACE, naquilo que couberem, enquanto não houver uma
regulamentação específica sobre o tema. ff
(PROCESSO: 08003338220174058200, APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA,
DESEMBARGADOR FEDERAL LEONARDO AUGUSTO NUNES COUTINHO, 3ª
TURMA, JULGAMENTO: 19/08/2021)

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