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primeiro é um mundo de aparência, ou fenômenos; o segundo, um mundo de realidade

CAPITULO 9 supersensível, a que deu o nome de númeno. Para Kant, o mundo da liberdade, não-6
dos fenômenos naturais, constitui o fundamento da moralidade. Assim, quanto à sua
A Tradição Alemã terceira revolução, Kant tornou-se o primeiro filósofo secular no Ocidente a rejeitar a
possibilidade de que os critérios para o bem tenham que ser baseados nas propriedades
naturais de criaturas viventes.
Com suas críticas da década de 1780, Kant fixou uma posição mais expressiva da
Weltanschauung da cultura religiosa alemã, a qual, em virtude de uma disposição
profundamente enraizada de pietismo e dos ensinamentos de Lutero, mantinha uma
oposição entre as coerções da natureza e a experiência de liberdade e integridade
interiores.! Enquanto que os filósofos sociais franceses rejeitavam o “atômico” mas -
conservavam o “naturalismo”, Kant foi mais além e rejeitou o naturalismo. Situou-o
bem, não na expressão de inclinações naturais mas no cumprimento do deves, que ele
definiu como a obediência às leis morais que os indivíduos racional e livremente
A TRIPLA REVOLUÇÃO DE KANT constroem para si mesmos. Definiu a virtude não como a expressão de uma sensibili-
dade natural nem como a aquisição de hábitos socialmente inculcados, mas como a
Na história da filosofia ocidental, ninguém se empenhou com mais fervorosa intensi- capacidade e o propósito deliberado de agentes livres para resistir aos adversátios
dade na busca por uma ética secular racional do que Emanuel. Kant (1726-1804); naturais da disposição moral dentro deles,
ninguém, depois de Hobbes, alterou mais profundamente o curso dessa busca. Ao

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Kant rejeitou a noção de que a moralidade podia basear-se na natureza por
transformar o campo da filosofia moral, Kant apresentou idéias e temas que inspiraram. numerosas tazões, algumas delas relacionadas às imperfeições das ciências da natu-
uma biblioteca inteira de obras seminais de ciência social alemã. reza e outras com as deficiências da natureza como princípio de moralidade. Como
A semelhança de alguns dos autores franceses que vieram a rejeitar o naturalismo Hobbes 6 Comte, Kant empenhou-se em explorar os recursos da racionalidade
atômico, Kantiniciou sua carreira sob a influência de pensadores britânicos. Fascinado moderna a fim de obter um fundamento para juízos morais que pudessem superar as
com as-descobertas realizadas por Newton, Kant dedicou seus trabalhos iniciais às contendas facciosas e as tentações maléficas. Mas Kant não poderia concordar com
ciências da natureza. Lecionou física, matemática e geografia na Universidade de Hobbes, Comte, e seus seguidores, em que a ciência natural fornecia o modelo para a
Kônigsberg e escreveu extensamente sobre cosmologia e filosofia natural. Nadécada obtenção dessa base segura. Em primeiro lugar, Kant acreditava que a ética digna de
de 1760, Kant ainda aceitava o pressuposto britânico de que a ciência newtoniana podia crédito tinha que ser absoluta'e incondicionalmente válida, e que as únicas espécies
fornecer as bases para uma ética digna-de crédito. Teceu elogios a Shaftesbury, de conhecimento aplicáveis à ação que a ciência natural pode fornecer são con-
Hutcheson e Hume por terem feito os maiores progressos até então na busca pelos dicionais. A ciência natural pode indicar os meios mais eficazes para se alcançar um.
princípios primordiais de toda moralidade. Ao chegar aos 50 anos, entretanto, Kant determinado objetivo, mas a utilidade desse conhecimento subentende um compro-
passou a mostrar-se cada vez mais preocupado com o desafio que um extremo misso com o objetivo em questão. No que se refere à determinação de objetivos; a
determinismo newtoniano representava para a ética, o que o levou a desenvolver uma ciência natural pode indicar que fins empíricos motivam as ações humanas, mas esses
nova abordagem para as questões filosóficas através da Crítica da razão pura e da | objetivos variam tanto entre diferentes pessoas e circunstâncias que o conhecimento
Crítica da razão prática. deles não pode proporcionar um padrão universal seguro.
Nessas obras, Kant viu-se produzindo uma revolução intelectual não menos impor- No decorrer da busca de um padrão moral não-condicional e universal em seu ;
tante que a de Copérnico. De fato, ele originou não apenas uma, mas três revoluções, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentos da metafísica dos costumes)
Em primeiro lugar, Kant derrubou a noção ¢.: que todos os conceitos precisavam (1785), Kant fixa-se em uma boa vontade como a única coisa concebível neste mundo
representar fenômenos naturais que podiam ser derivados mediante a simples obser- a que se pode aplicar o adjetivo““bom” sem restrições. Quando indaga o que constitui,
vação de eventos externos. Insistiu em que o nosso entendimento dos fenômenos é,
uma boa vontade, Kant propõe que agir de acordo com uma boa vontade acarreta a
pelo contrário, necessariamente condicionado: deve ser estruturado por formas de
submissão ao dever por amor ao dever. Através de impulsos de desejo e egoístas, a
ez

intuição e categorias de entendimento fornecidas por sujeitos humanos a fim de


natureza continuamente gera tentações para evitar que se atue de acordo com o dever,
representarem as coisas que observam.
E além disso, até mesmo quando a natureza incita alguém a realizar atos generosos,
Em segundo lugar, introduziu uma separação entre domínios definidos por duas isso não toma as ações morais, uma vez que não foram executadas por amor ao dever.
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perspectivas radicalmente diferentes: o mundo da natúreza e o mundo da liberdade. O Kant deprecia ainda a natureza como fundamento para a moralidade, vendo-a somente

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como a atena da causalidade determinista, ao passo que a única base segura para a receram para a razão e que assim estão condenados a satisfazer instintos imperiosos.
moralidade, uma boa vontade, requer a intervenção da liberdade humana para fornecer Os seres humanos mantêm-se eretos; têm liberdade para examinar e para escolher,
a espécie de leis que só podem ser formuladas por um ser racional e obedecidas em Embora sejam dotados de instintos como outros animais, suprimem esses instintos
atenção a elas. Além disso, a filosofia natural nunca pode demonstrar a existência
de quando amadurecem e adquirem a razão, Sua capacidade para o diálogo interior
liberdade nem documentar a existência de uma boa vontade, cuja realidade deve ser
evidencia um maravilhoso “autocriado senso interior do espírito” (1969, 141), Mesmo
admitida a fim de executar ações éticas.
quando o homem abusa de sua liberdade, continua um rei.
Em conseqiiéncia dessas considerações, Kant produziu uma ética secular radicada
Contudo, enquanto Kant se viu logicamente constrangido a representar o volunta-
na proposição de que a realização do bem exige que a natureza seja transcendida e
na rismo de sujeitos humanos separando rigorosamente o domínio da liberdade do da
pressuposição de que a necessidade dessa transcendência e os meios de alcançá-la
natureza, Herder apenas colocou a razão e a liberdade dentro do domínio da própria
derivam de propriedades específicas ao sujeito humano. De um modo ou de outro, o
natureza (tornando-se desse modo vulnerável a acusações de uma contradição entre
tema de Kant do sujeito transcendente tornou-se fundamental para ‘toda a filosofia
seu forte determinismo naturalista e sua noção de que se pode e se deve resistir aos
moral alemã subseqiiente.
impulsos e forças naturais). Aceita como uma lei da natureza que “o homem é um ser
. Ao criar uma disjunção radical entre os domínios da natureza e do valor moral, Kant
livre, pensante e criativo” (153), e cogita sobre “quanto a Natureza parece ter hesitado
introduziu ainda um novo modo de conceber a relação entre o teórico e o prático. Em
vez de considerar o entendimento teórico um modo de identificar um conjunto antes de confiar (...) os grandes dons da razão e da liberdade (...) a uma tão frágil,
de complicada e mundana criatura quanto o ser humano” ([1784] 1887, 146). Durante os
potenciais naturais humanos cuja realização formou a agenda para uma disciplina
característica de filosofia prática, como em Aristóteles, e em vez de julgar anos em que Kant esteve lançando os alicerces para uma ética intransigentemente
o co- antinaturalista da razão prática, Herder estava fazendo uma tevolução de cunho diferente.
nhecimento prático uma aplicação direta de princípios e proposições estabelecidos por
disciplinas teóricas, como no caso dos teóricos sociais britânicos e franceses, Kant localizou a capacidade para transcender o instinto animalesco no exercício
Kant das faculdades da razão. Embora Herder também apreciasse a razão humana, consi-
construiu as disciplinas da filosofia prática como totalmente independentes e separadas
das disciplinas da filosofia teórica. derou que a expressão de sentimento constitui o veículo primordial de transcendência
. A distinção radical de Kant entre os mundos da natureza e da liberdade, e sua humana. Ele descreve o sentimento humano como uma das grandes vantagens
insistência em que o bem será alcançado através de um processo em que a natureza orgânicas do homem, a fonte da invenção e da arte, e uma inspiração para as nossas
é, idéias muito maior do que suspeitamos. Entre os dons que a natureza concedeu aos
de algum modo, transcendida, deram expressão a formas de pensar tão profunda
mente seres humanos para a expressão de sentimentos, Herder assinalou em especial o dom da
enraizadas na cultura alemã que suas idéias foram adotadas e reelaboradas por
centenas canção, acessível às crianças e às pessoas mais simples. As formas livres e espontâneas
de filósofos e poetas alemães.2 Sua articulação da realidade irredutível de um sujeito
consciente e autodeterminante converteu-se no leitmotiv de autores da tradição alemã. de auto-expressão satisfazem plenamente as verdadeiras exigências da natureza humana.
Isso pode ser observado nas produções (em tudo o mais nitidamente contrastantes) Além disso, para Herder essas formas não são obra de pessoas individuais, mas as
de criações de uma comunidade integrada, Manifestam-se, sobretudo, na língua de um
um ex-aluno de Kant, Johann Gottfried von Herder.
povo—, a consubstanciação de sua experiência histórica, de todo o seu coração e alma
— como Herder foi um dos primeiros europeus a afirmar (em premiado ensaio de
A REVOLUÇÃO ROMÂNTICA DE HERDER 1770). Especificamente, expressões da criatividade humana manifestam-se também
na música e na arte de um povo, em seus mitos e formas religiosas. O conjunto dessas
Herder estudou com Kant antes deste último publicar suas memoráveis críticas, expressões culturais foi o que Herder designou como o Volksgeist, o espírito de um
Assim,
foi possível a Herder manifestar sincera devoção ao seu professor de Kônigsberg povo, .
e,
no entanto, envetedar por um caminho diferente.? É dificil imaginar duas expressõe Uma vez que toda cultura ou todo período histórico possui um caráter único, Herder
s
filosóficas mais radicalmente divergentes que as de Kant e Herder. Enquanto Kant sustentou que os esforços para analisar tais fenômenos como combinações de elemen-
entronizava a razão, Herder exaltava o sentimento. Enquanto Kant instituía padrões tos uniformes ou para subordiná-los a regras universais tendiam a obliterar precisa-
universais de moralidade e justiça, Herder adotava o relativismo cultural, Enquanto mente aquelas qualidades cruciais que os constituem, como a ciência generalizadora
Kant fazia do indivíduo a fonte de formas cognitivas e leis éticas, Herder descrevia de um Montesquieu grotescamente demonstrado É A partir dessa perspectiva, a busca
a
coletividade como uma matriz de criatividade geradora de formas, Onde a atgumen- por um padrão universal de valor deve parecer fútil, O que parecem ser excelentes
tação de Kant era precisa e lógica, o estilo de Herder era provocador e pomposo.*
realizações dignas de emulação universal ocorrem somente embutidas em uma confi-
Ainda assim, Herder celebrou, não menos do que Kant, a peculiar capacidade dos guração particular. Assim, “porque Atenas tinha refinados oradores, não se segue que
seres humanos para a liberdade e a razão. Herder compara os seres humanos com sua forma de governo seja também a melhor possível, ou porque os chineses elaboram.
outros animais, que são “escravos submissos”, possuidores de almas que não amadu- tão excelentes reflexões morais seu Estado deva ser um padrão para todos os outros
© Ge) Cada [cultura] contém em si mesma o padrão de sua perfeição, totalmente À questão sobre a fonte de disposições morais humanas, eles respondem com um
Andependente de comparações com as outras” ([1784] 1968, 100, 98). Postulado de Voluntarismo Subjetivo: as orientações morais humanas derivam de uma
Ao derrubar os compromissos do Iluminismo com o ideal do indivíduo racional de . distinta capacidade do ser humano para identificar e efetuar escolhas entre o bem e
Sontemplação de padrões universais, Herder evocou assim uma visão do bem fun- o mal. . . .
Sarmentada em um conjunto de expressões coletivas de sentimento'que manifestam - Embora Kant e Herder articulassem assim o anseio alemão por uma ética centrada
Ma Integridade estética. Os seres humanos realizam a vida boa vivendo, é certo, em nas qualidades que transcendem a natureza de indivíduos dotados de autodetermina-
nidacles naturais; mas procedem assim em sociedades que transcendem os limites da ção, seus respectivos escritos continham contradições óbvias suficientes para manter
2 itcunstancia natural ao criarem uma cultura harmoniosamente compartilhada. Fun- atarefadas sucessivas gerações de pensadores em novos desvios das filosofias deles.
aMeNtal na ética que ele propôs estava, portanto, uma injunção para respeitar e, na O primeiro filósofo importante a abordar essas contradições foi Johann Fichte, que
idade, favorecer as diferentes culturas manifestadas por diferentes povos. Isso levou procutou resgatar a filosofia de Kant do erro que acreditava ter sido cometido pelo
erdex a formular uma critica precoce do imperialismo europeu por sua repressão de mestre ao separar a metafísica da liberdade da metafísica da natureza, Abusca de Fichte
Ne ous menos civilizados. Com efeito, levou-o a criticar a repressão política em todas “por um elevado ideal secular levara-o à ética kantiana do deves, que ele traduziu por
S Suds formas. Herder tornou-se um ardoroso inimigo do absolutismo, por mais uma injungiio para se obter crescente liberdade através de uma lealdade cada vez maior
sclarscido que-fosse; de modo mais geral, expressou certo antagonismo ao Estado aos ideais espirituais de cada um. Como o esforço de um indivíduo para realizar seus
odemo, É irônico que o filósofo que tanto fez para divulgar a noção de Herder de próprios ideais requer um mundo de objetos sobre.os quais agir, uma moral primordial
Nea eist, Hegel, tenha sido o principal proponente, na moderna teoria politica,do dará existência ao mundo fenomenal como um campo necessário à auto-objetivação
como veículo histórico de transcendência. da atividade moral, Ao sustentar que o ego deve pressupor um não-ego, a natureza,
para seu campo essencial de operação, Fichte procurou completar o projeto kantiano
localizando a numênica “coisa-em-si” na atividade transcendental da mente humana.
iN KANT A HEGEL Onde Herder tinha superado a divisão natureza-liberdade fazendo da razão e da
liberdade. “dons especiais da Natureza”, Fichte supera-a tornando a natureza uma
Q PenSamento social alemão do século XIX começa -—'e termina— com uma série de exteriorização do espírito humano: assim, a história converte-se na crônica da contínua
Sforgos. para basear uma ética nas distintas propriedades criativas do indivíduo Inta dos ideais humanos contra as pressões dos instintos naturais.
umino. Tanto no período inicial quanto no final, tiveram que ser levados em conta Consideradoo principal filósofo da Alemanha no final da década de 1790, Fichte
S legados de Kant e de Herder, Apesar de todas as suas diferenças, os dois homens influenciou profundamente seu jovem colega Friedrich von Schelling, que se juntou
OmpPartilhavam um conjunto de pressupostos característicos da tradição alemã, os a ele na Universidade de lena, Aos poucos, Schelling conseguiu libertar-se do
EN ser representados em termos semelhantes aos que usei para as tradições idealismo subjetivo de Fichte, argumentando não só que o mundo da natureza é tão
Sor con e francesa. A questão sobre como os fatos da experiência humana têm que real e importante quanto o mundo do ego mas também que até mesmo a natureza gera
dos; Struídos e explicados, eles respondem com o que pode ser chamado o Postulado consciência, como Herder tinha afirmado. Mesmo assim, Schelling manteve-se fiel ao
(9 “IBuificado Subjetivo: os fenômenos humanos podem ser melhor compreendidos compromisso fichtiano com o voluntarismo, asseverando, em palavras famosas entre
entendermos os significados ‘com que os indivíduos impregnam suas ações, Isso os seus contemporâneos, que “o começo e o fim de toda filosofia é a liberdade”.
nvolve um método de compreensão que, em princípio, diverge dos-métodos usados Afilosofia de Schelling substitui, assim, O conceito de ego como princípio supremo
ara Entender fenômenos naturais. Para Kant, isso era a apreensão direta da próptia da filosofia pelo conceito de força natural. Em Idéias pera uma filosofia da natureza
tividade legislativa do eu através da Vernunft, a capacidade de razão prática, que ele (1797), Schelling defendeu a tese de que forças mecânicas, químicas, elétricas e vitais
n nitasta com Verstand, a capacidade usada para entender e explicar fenômenos eram diferentes manifestações da mesma força cósmica subjacente, uma “pura ativi-
ours. Para Herder, era um método de imaginação compreensiva, Einfithlung, que dade” que procura realizar-se continuamente. Elaborou mais tarde uma teoria de etapas
CONtrasta com os métodos de abstração e objetivação usados nas ciências naturais. “ do conhecimento: da sensação para a percepção, desta para a reflexão e para a vontade.
jd dNestão sobre como o pensamento secular pode fornecer uma base racional para Para Schelling, a vontade humana torna-se a parte visível, autoconsciente, de um
1, Morais eles respondem com um Postulado de Antodeterminação Normativa: os mundo entendido como energia criativa; antes do homem, o espírito está inativo; no
“208 normativos não serão fundados através de alguma ação externa aos agentes, homem, a. natureza ganha consciência. O real é o processo racional do mundo,
as airavés de códigos que agentes humanos livres, como indivíduos ou coletividades, desenvolvendo-se para a sua realização na expressão final e unificada da verdade
Sn. ‘fam para si mesmos. Isso acarreta uma prescrição de respeito incondicional essencial, e é possível conhecer o mundo traçando reflexivamente o processo lógico
las Swpressões livres de outros agentes humanos, o que Kant formulou como um através do. qual a natureza e a história se movimentam. A autodeterminação é a
perativo categórico e Herder como o único absoluto moral, : condição primária de toda consciência. O processo de história consiste no desenvol-
vimento da autodeterminação humana pela gradual realização da lei, culminando em pode determinar se aquela condição foi alcançada, Pior, a inspirada idéia de que a
uma soberana federação mundial de todos os Estados soberanos, na qual todas as humanidade pode alcançar uma condição mais ética no futuro se baseia em uma
pessoas serão cidadãos. concepção de história que parece sancionar atos imorais absolutamente prescritos no
Simultaneamente com Fichte, Schelling deu a seu amigo G.W.F. Hegel idéias que presente.” Isso não é outra coisa senão uma receita para o desespero.
puderam ser usadas para eliminar a distância que separava Kant de Herder, Na esteira O ensaio de Kant serviu, pode-se afirmar, como um padrão pelo qual Hegel veio a
de Kant, Hegel percebeu uma completa oposição entre os domínios da natureza e do balizar sua própria filosofia historicizante.º Em sua “Idéia para Uma História Univer-
espírito (Geist), “A Natureza”, escreve ele, “não exibe liberdade em sua existência mas sal”, Kant convidara abertamente algum sucessor filosófico a resolver o mistério
somente necessidade e contingência” (Idéias para uma filosofia da natureza, $214); o acerca do plano da história, para o qual ele estava meramente fornecendo uma pista,
espírito, em virtude de sua autoconsciência e por conter seu ser em si, é essencialmente a fazer o papel de Newton para o seu Kepler (1963, 12). Felizmente, Hegel aceitou o
livre. A natureza é cíclica e interminavelmente repetitiva, ao passo que o espírito é convite, embora acabasse imitando Kant ao referir-se à sua própria tentativa para
progressivo e sempre inovador. Embora a razão exista na natureza, ela não é autocon- discernir o grandioso plano da história como meramente kepleriano (1988, 68). Ao
sciente mas “inteligência petrificada”, diz ele citando Schelling, (Lógica §24); através abordar sua solução, Hegel incorporou numerosas noções de seus contemporâneos,
do espírito, os humanos diferem dos animais, não apenas porque pensam mas pela incluindo a concepção de Herder de Volksgeist e as idéias de Fichte e Schelling sobre
capacidade para o pensamento autoconsciente. Hegel esforçou-se o tempo todo por uma evolução histórica do Geist que culmina no domínio da lei?
descobrir um modo de ligar a natureza e a liberdade que fosse mais plausível do que, Tal como Kant, Hegel também admite que o exame do curso normal dos eventos
em sua opinião, tinha sido feito por Kant, Fez isso encarando o problema como uma humanos é desmoralizante, que a história é “uma bancada de açougue sobre a qual a
questão de desenvolvimento histórico. Ea felicidade das nações, a sabedoria dos estados e as virtudes dos indivíduos foram
Embora a busca de Kant por uma ética digna de crédito fosse empreendida através sacrificadas” (24). E ainda como Kant, Hegel vê um propósito latente na história —
da metafísica, não da análise histórica, ele preparou o terreno para o projeto de Hegel a progressiva realização das capacidades da humanidade para a razão e a liberdade —
com suas breves reflexões sobre a história em “Idéia para uma história universal desde e argumenta que os meios para se atingir esse propósito não são as intenções morais
um ponto de vista cosmopolita”, Kant publicou esse ensaio em 1784, logo depois de de indivíduos mas os interesses egoístas e os conflitos sociais. Finalmente, Hegel
ter elaborado a sua nova posição filosófica, Estarrecido pelos eventos da história - também sustenta que a culminação do drama da história apresenta-se na aquisição de
humana — um quadro de vaidade, loucura, perversidade e destrutividade — Kant liberdade universal, a qual se concretiza através não da licença sem freios mas da
pergunta-se se a natureza poderia reservar algum plano ou propósito mais grandioso obediência a leis que se impuseram por si mesmas.
para uma espécie cuja história parecia, sob múltiplos aspectos, ser um imenso reper- Ao expor esses pontos de vista, Hegel procurou eliminar as contradições que tinham
tório de estupidez, vazio de qualquer significado. Ele propõe que, embora o animal perturbado Kant e seus leitores. Assim fez, contestando em primeiro lugar a noção de
humano se distinga pela posse da razão, essa faculdade não tem possibilidade de Kant de que a natuteza humana, propensa à gratificação dos sentidos, é moralmente
desenvolvimento no curto período de vida que a natureza concede aos humanos; o suspeita e não contém forças construtivas. Hegel seguiu Herder ao proclamar que as
pleno desenvolvimento de suas capacidades racionais exigiria uma incalculável série . paixões são a principal força criadora na experiência humana. Qualificou-as como a
de gerações. Para realizar esse fim, a natureza confia no mútuo antagonismo de pessoas trama de uma vasta tapeçaria da história do mundo, a energia propulsora que possibilita
— sua “sociabilidade associal”, uma disposição para associarem-se e depois oporem- a realização da razão. Acompanhou Herder (Fichte e Schelling) ao considerar que
se umas às outras. O permanente conflito social desperta primeiro os seres humanos expressões não-racionais — como os mitos, os ícones e as religiões — fazem parte de
da indolência para que desenvolvam seus poderes; por fim, aperfeiçoa-lhes a autodis- um processo de auto-expressão por meio do qual a natureza humana se realiza.
ciplina mediante a criação de uma sociedade civil universal sob o domínio da lei. Também se distanciou de Kant, na esteira de Herder, ao considerar que os agentes da
Embora Kant ofereça essa visão do destino supremo da humanidade em um regime auto-realização humana na história não são os indivíduos, mas os povos, e usou a
de razão e liberdade como uma “consoladora visão do futuro”, ele adverte que os meios metáfora de Herder do desenvolvimento orgânico dos povos como um modo de
proporcionados pela Natureza para se alcançar esse destino são sem dúvida imorais: subordinar as considerações de moralidade e felicidade individual (embora em sua
“entretanto, todo o bem que não se baseia em uma disposição moralmente boa nada Filosofia do direito insista no direito do indivíduo à satisfação subjetiva como
mais é senão fingimento e infortúnio” (1963, 25, 21). característica assinalável da modernidade). Hegel afastou-se de Herder, entretanto, em
Assim, na busca de um caminho para salvar a liberdade humana do determinismo sua atitude em relação à nação-Estado. Enquanto que Herder tinha localizado a
naturalista, Kant considerou que uma certa e pertinaz tensão era fundamental para a transcendência humana na cultura e criticado o Estado por sua postura repressiva em
filosofia moral alemã. Somos solicitados por um imperativo categórico a atuar de relação à cultura, Hegel — apoiando-se em Fichte e Schelling — sustentou que a
modo aut6nomo— na base de leis morais derivadas de nossa própria atividade racional cultura só atinge seu apogeu quando chega ao estágio de desenvolvimento de formação
— mas, no entanto, nenhuma soma de indagação sobre os nossos atos ou os de outros de um Estado.
Com essas alterações na filosofia de Kant, Hegel tentou resolver o dilema moral gelianas, como Schelling e Schopenhauer, tornaram-se populares.! A ascensão da
apresentado pela filosofia kantiana. Ele supera o dualismo natureza-liberdade subor- ciência natural empírica acarretou um crescente repúdio à filosofia idealista da
dinando a natureza — como um modo fundamentalmente deficiente de ser que tem sua natureza de Hegel, da qual um dos.proponentes tinha caído no sidículo, ao definir o
substância fora de si mesmo — à liberdade humana, e afirmando que as paixões natu- diamante como “um quartzo que adquiriu autoconsciência” (Willey, 1978, 25). A
rais são a causa eficiente da razão e liberdade na história. Minimiza os temores acerca filosofia moral de Hegel passou a incomodar aqueles que consideraram sua entroni-
da moralidade individual ao negar que a moralidade seja a coisa mais importante no zação do político e do histórico um. inaceitável relativismo ético. Seu atrativo como
mundo, e reconhece a existência de circunstâncias em que meios formalmente imorais filósofo político dissipou-se depois de 1848, quando liberais inspirados por ideais
serviram.o grande objetivo do progresso humano, Justifica essa posição contestando o hegelianos de um Estado baseado na lei (Rechtsstaat) se decepcionaram com a
pressuposto de que a moralidade formal e a razão de Kant constituem-um padrão eter- supressão do movimento de reforma em Frankfurt e, de novo, depois de 1866, quando
namente válido para a moralidade, com base em que a existência de moralidade fora da a derrota da Áustria por Bismarck em Kôniggratz confirmou a hegemonia da aris-
história não pode ser sustentada, Em vez disso, Hegel historiciza a razão e a moralida- tocracia Junker e deflagrou um surto de chauvinismo cultural associado à ênfase de
de, Ou seja, argumenta que elas ganham forma através de um processo de desdobra- Hegel sobre o nacionalismo
mento ao longo do tempo, que a ética de uma pessoa reflete a de seu povo (Volk) em Assim, alguns intelectuais vieram a adotar Kant, em detrimento de Hegel, na
um certo estágio de desenvolvimento, e que a moralidade só está plenamente realizada esperança de usar a filosofia kantiana no duplo propósito de voltar a unit ciência e -
no Estado moderno, no qual a liberdade atinge sua completa objetividade: Ao rejeitar filosofia e de retornar a uma ética universalista. Essa ética ajudaria a superar o
tanto a moralidade universalista de Kant, que se situa em contraste com a realidade, como relativismo ético e o crescente abismo entre classes sociais e entre a Alemanha e a
a moralidade relativizada de Herder, que está vinculada a determinadas formações Europa Ocidental, A começar por figuras como o físico Hermann Helmholtz, que
culturais, Hegel fornece um terceiro caminho. Ele concebe todas as configurações morais responsabilizava o hegelianismo pelo divórcio entre ciência e filosofia e defendia um
históricas como etapas na direção de uma ética universalmente vinculatória que só se torna retorno à epistemologia de Kant, e o ativista politico Friedrich Albert Lange, que viu
válida quando se toma real — na culminação do processo histórico, em Hegel uma regressão ao escolasticismo e usou a ética de Kant para basear sua busca
Com sua concepção de espírito objetivo, Hegel conseguiu sintetizar dois dos . de liberdade política e justiça social, as idéias de Kant conheceram um renascimento
principais movimentos do meio século anterior de pensamento alemão: a idéia do . que se manteve sem solução de continuidade por todo o resto do século, A década de
Iluminismo alemão do Estado como a comunidade abrangente que realiza a morali- 1870 testemunhou uma rápida expansão de cursos acadêmicos sobre Kant em toda a
dade de seus membros, resumida na noção de Kant de ordem jurídica, e a idéia do que Alemanha, mais do que quadruplicando em várias universidades (Kéhnke, 1986, 315).
passou a ser conhecido como a Escola Histórica Alemã, com suadescoberta do espírito A essa altura, Hegel já era considerado definitivamente obsoleto, um estado descrito
(Geist) comum de uma comunidade. A síntese hegeliana dominou a filosofia alemã com colorido característico por Nietzsche; antes, havia “uma excelente e gigantesca
por um quarto de século, desde a derrota de Napoleão em 1815. Na década seguinte à safra de milho verde hegeliano crescendo ereto nos câmpos, Mas agora que a colheita,
morte de Hegel, em 1831, hegelianos de várias correntes estabeleceram diversas 'com suas desapontadas esperanças e promessas, foi- arruinada pela geada, todas as
posições em defesa ou para corrigir 6 mestre (Toews, 1980). A amplitude e a medas se esvaziaram e nada restou de aproveitável” ([1874] 1990, 224).
intensidade de seu domínio sobre os intelectuais alemães dessa época com fregiiência Mesmo assim, graças aos esforços de Wilhelm Dilthey e outros, perto do final do
têm sido comparadas aum movimento religioso. : século tanto Hegel como Herder desfrutaram de uma nova rodada de apreciação.
Tuntos, os três pensadores seminais forneceram a fonte essencial das idéias filosóficas
que orientaram a sociologia alemã quando ela surgiu como disciplina digna de crédito
. E DE VOLTA A KANT por volta de 1890, idéias estas que, de fato, inspiraram numerosas disciplinas que
ostentam'um cunho nitidamente alemão — antropologia cultural interpretativa, socio-
Em meados do século, porém, a influência de Hegel tinha começado a declinar. Estava logia fenomenológica, antropologia filosófica, psicologias introspectiva e psicanalíti-
preparado O terreno para um outro e poderoso movimento intelectual que reclamava ca, e a sociologia do conhecimento.
a união em torno da bandeira “De volta a Kant”. A bandeira foi desfraldada por úm
filósofo de 25 anos em Jena, Otto Liebmann, em um livro (Kant und die Epigonen,
1865) no qual. cada capítulo, de crítica as posições filosóficas predominantes — CONFIGURANDO A TRADIÇÃO ALEMÃ
realismo, empirismo e transcendentalismo, assim como o idealismo hegeliano eoutros
—conclufa com o refrão: “Devemos voltar a Kant,” Em seu papel de sociólogos formuladores de programas no começo deste-século,
A filosofia de Hegel ficou desacreditada por várias razões. Sua reputação como o Georg Simmel e Max Weber apresentam-se como os equivalentes alemães de Durk-
filósofo ficou manchada quando uma arrebatada dissensão eclodiu nas próprias fileiras heim. Entretanto, o papel desempenhado por Durkheim como codificador e porta-voz
de seus seguidores, nas décadas seguintes à suamorte, e figuras intensamente anti-he- de uma tradição nacional de pensamento social foi assumido na Alemanha por Dilthey.
Tal como Durkheim, Dilthey empenhou-se em recuperar e realçar a visibilidade de
anteriores participantes no diálogo transgeracional que prefigurou a modema ciência KANT
Pat $i (1724 - 1804)
social."! Saudando Kant como o herói que revolucionou o pensamento alemão, ajudou *apriorismo" | }"hermenéutica" / "voluntarismo"
a preparar uma nova edição crítica dos eseritos de Kant. Publicou uma exemplar
biografia de Schleiermacher e, mais tarde, um volume sobre Hegel — baseado em HERDER
textos antes desconhecidos — que contribuiu muito para ressuscitar os estudos (1744~ 1803)
hegelianos na Alemanha, Dilthey assinalou repetidas vezs que a tradição de idealismo SCHLEIERMACHER : a ,
@ filosofia do espírito era “o alicerce da cultura nacional alemã” (Ermarth, 1978, 38). i “
SCHELLING
Além disso, ao imprimir a certos temas da tradição alemã uma espécie de expressão
culminante, apresentou-os como manifestação de um tipo distinto de erudição que SAVIGNY
precisava ser contraposto às sociologias intelectualmente perigosas oriundas da França
e da Inglaterra — em particular as de Comte, Mill e Spencer. Assim, argumentou que
“somente da Alemanha pode vir um procedimento genuinamente empírico que subs-
titua o tendencioso empirismo dogmático [de J.S. Mill” e elogiou a “concepção
especificamente alemã de desenvolvimento histórico que mostrou a falsidade desses
sistemas sociológicos totais [os de Mill, Comte etc.]” (citado em Belke, 1971, lvi-lvii).
Isso deu o tom para o costume de descrever a ciência social alemã como a consubs-
tanciação de qualidades éticas superiores.!2 (ST-SIMON)=}
Das tradições que criaram os fundamentos filosóficos da moderna ciência social, a (RICARDO).
alemã era a mais complexa de todas, como a Figura 10 deixa claro. Através de ligações (COMTE),
transgeracionais algo separadas, a análise da subjetividade humana foi empreendida

))
ao longo de numerosos percursos diferentes, os quais, em sua maior parte, tiveram em |
Kant seu ponto de partida.!3 Assim, embora quase todos os autores na tradição alemã (MILL) -..|
(SPENCER) |” {1833
- 1511
enfatizem modos como sujeitos humanos podem e devem transcender processos
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naturais ordinários, eles o fazem interpretando o sujeito de formas diferentes. Uma
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interpretação apresenta o sujeito como criador de significados que, em contraste com
fenômenos naturais, podem ser compreendidos. Uma segunda destaca os processos
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pelos quais o conhecimento humano sobre qualquer fenômeno se organiza através do (1963-1911) fá Vá ONNI
TONN IES (HOBBES)
uso de categorias a priori.E uma terceira celebra a capacidade de sujeitos humanos
para agir intencionalmente, :
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(FRE UD)
- 1999]
11858
MAX WEBER
(1864-1920)
{1874 - 1928)
Entendendo o sujeito expressivo Influência dominante cem - receptividade crítica
Influência significativa antagonismo Intelectual
== relação professor - aluno a amizado
Dilthey concentrou sua atenção no percurso kantiano que conduziu à experiência. Com
efeito, a palavra para vivência ou experiência vivida, Erlebnis, formou a base sobre a
qual Dilthey desejou edificar uma abordagem distinta das ciências sociais — as Figura 10. Ligações na tradição alemã.
Geisteswissenschaften, ou disciplinas relacionadas com o espírito. Uma proposição
inspirou esse empreendimento: entender o significado da experiência de um agente
requer um tipo especial de cognição, o qual contrasta com o usado nas ciências dos alicerces filosóficos. Uma corrente foi a tradição hermenêutica. A disciplina da
fenômenos naturais. Dilthey chamou esse modo cognitivo de Verstehen, ou enten- hermenêutica teve por pioneiros dois notáveis filólogos, Friedrich Ast e Friedrich
dimento. A vida inteira de trabalho de Dilthey foi descrita como um esforço para dotar August Wolf. Ast procurou apreender o espírito (Geist) da Antigtiidade através de
de Verstehen a justificação filosófica (Ermarth, 1978, 243). minuciosa atenção à linguagem de suas produções literárias, e considerou o processo
Diversas correntes filosóficas provenientes de Kant, Herder e outros tinham repe- de entendimento dessa linguagem como uma reprodução do processo criativo, Wolf
definiu o objetivo da hermenêutica como o de entendimento dos pensamentos de um
tidamente mencionado a noção de Verstchen sem, pensou Dilthey, lhe conferir sólidos
* autor como ele gostaria que fossem entendidos, e considerou que um requisito para o [Einleitung in die Geisteswissenschaften] de 1883, Dilthey desenvolveu a sua meta
exercício dessa arte era possuir um talento especial para a empatia com os pensamentos
de apreender o sentimento e a vida imaginativa do ser humano como um todo. Propôs
de outros. Foram cultivadas outras formas de hermenêutica em outras disciplinas, que se tratasse “o grande problema da relação entre a ordem da natureza e a liberdade”
como a teologia, que interpreta o significado das escrituras bíblicas, e a jurisprudência,
tal como Kant o tratara: deixando para a ciência natural examinar os processos naturais
que interpreta o significado de documentos legais. Em uma famosa série de conferên-
subjacentes na vida psicofísica, e passando a ocupar-se do entendimento dos fatos da
cias em Berlim, em 1819, o teólogo Friedrich Schleiermacher procurou ir além dessas intencionalidade humana através de um conjunto independente de disciplinas prívile-
disciplinas hermenéuticas especializadas e desenvolver uma hermenêutica geral como giadas para apreender “a realidade sem distorções, [a qual] só existe para nós nos fatos
a arte genérica de Verstehen. Schleiermacher tentou elucidar o “misterioso processo” da consciência fornecidos por experiência interior” ([1883] 1976, 166, 161), Sua
através do qual um ouvinte descobre o significado de uma sequência de palavras ênfase, neste ponto, era sobre a realização de uma espécie de psicologia empática. Na
proferidas por um falante, descrevendo-o como um processo de reconversão dos segunda fase de Dilthey, marcada por uma obra em múltiplos volumes sobre o mundo
processos mentais do falante, Esse processo liga qualquer elocução, qualquer manifes- histórico em 1906, ele mudou para uma preocupação com as expressões objetivas da
tação oral, ao todo de que é apenas uma parte — através de uma ligação bidirecional experiência, Sua fórmula passou a ser tripartida: Experiência-Expressão-Entendimen-
que ele chamou de o “círculo hermenêntico” — e pressupõe um salto intuitivo de to. Também aqui Dilthey opôs o entendimento meramente naturalista dos fatos físicos
conhecimento. Após a morte de Schleiermacher, o projeto de desenvolvimento de uma da vida humana a uma convocação para entender as produções do espírito humano,
hermenêutica geral esmoreceu até ser recuperado por Dilthey, que aproveitou a agora não pelo insight psicológico mas pela assimilação de estruturas culturais criadas
concepção do seu predecessor como uma arma com que defender a experiência pelo espírito que possuem padrões e leis próprias.
humana contra as abordagens reducionistas e mecanicistas da ciência social naturalis- .Os esforços heróicos de Dilthey para consolidar a tradição alemã para além de uma
ta. Dilthey considerou que Schleiermacher era o único dos sucessores de Kant que se espécie não-naturalista de ciência social prepararam o caminho para uma boa parte da
mantivera fiel ao método analítico kantiano, oferecendo não uma metafísica, mas uma sociologia alemã do século XX. Uma outra corrente do canal hermenêutico fluiu mais
fenomenologia da consciência. diretamente de Herder através das figuras criadoras da antropologia alemã, incluindo
Dilthey deve ter sido apresentado ao contraste entre Verstehen, o método usado por Wilhelm von Humboldt, Adolf Bastian, Moritz Lazarus e Heymann Steinthal. Hum-
historiadores, e o Erkldren, o método de explicação usado em ciência natural, pelo boldt era um humanista liberal de quem Dilthey extraiu considerável inspiração. Além.
historiador Johann Droysen. Teria sido Droysen o primeiro a articular a famosa de desempenhar um papel decisivo na fundação da Universidade de Berlim, onde uma
distinção entre Verstehen e Erkldren, embora tivesse sido acostumado a apreciar o tão importante parcela da tradição hermenêutica se desenvolveu, !! Humboldt escreveu
método de Verstehen ensinado por Hegel, seu professor, e defendido pelos críticos de ensaios que destacaram o entendimento da experiência histórica como um meio crucial
"Hegel que faziam parte da que era conhecida como a Escola Histórica. A Escola para cultivar a personalidade humana. Tal como Herder, Humboldt enfatizou que o
Histórica Alemã inspirou-se essencialmente em Herder, que não só formulou o ideal verdadeiro conhecimento da humanidade conta com profundas faculdades intuitivas,
intelectual de compreensão da Gestalt característica de uma determinada cultura ou uma “faculdade divinatória” (Ahndungsvermôgen) e uma capacidade para ver cone-
período histórico, mas também descreveu o método especial necessário para tanto xões (Verkniipfungsgabe). Delineou um plano para desenvolver uma antropologia
como um processo de imaginação compreensiva. Uma sucessão de eminentes homens comparada, cuja finalidade era o estudo do caráter moral de diferentes tipos humanos;
de saber histórico — como Barthold Niebuhr, Friedrich von Savigny e Leopold von esse plano inspirou os subsegjiientes avanços na etnologia alemã, Lazarus e Steinthal
Ranke, entre outros — exerceu grande influência em Berlim ao opor-se aos hegelianos desempenharam importante papel nesse desenvolvimento, inclusive através de sua
ortodoxos e buscar expressões de Geist não em um mundo superior de idéias abstratas, revista pioneira dedicada à psicologia das culturas (Zeitschrift fir Volkerpsychologie
mas em um mundo concreto de formações históricas. O procedimento cognitivo favore- und Sprachwissenschaft), que teve seu período de apogeu nas décadas de 1860, 1870.
cido por essa escola foi descrito como o de “intuição imediata” (Etmarth, 1978, 57). Lazarus influenciou significativamente algumas-figuras de destaque que estudaram
Dilthey estudara com Ranke em Berlim, onde absorveu a paixão deste pela com ele em Berlim, como Simmel e Boas. Graças a Boas, anoção herdes/humboldtiana
apreciação estética de pormenores históricos. Mas Dilthey criticou a Escola Histórica de intuir anatureza da configuração característica de uma cultura através do cuidadoso
por ser indiferente-a questões de teoria e método, O seu próprio esforço para fomecer estudo de sua linguagem e de um processo irredutível de entendimento intuitivo
uma base filosófica ao entendimento intuitivo iniciou-se com um ensaio premiado de tornou-se central para grande parte da posterior antropologia cultural,
1860, antes de ter trocado a teologia pela filosofia, no qual saudou Schleiermacher
como “o Kant da hermenêutica”, A fórmula que Dilthey usou repetidamente a fim de
representar seu compromisso metodológico foi: “Explicamos a natureza, entendemos Reconhecendo o sujeito cognitivo:
o espírito.” Sua contínua elaboração dessa fórmula estendeu-se por duas longas fases.
Dilthey defendeu a necessidade de uma ciência da experiência humana que diferisse
No primeiro período, marcado pela monumental Introdução às ciências do espírito
fundamentalmente das ciências da natureza, dado que somente os seres humanos
podiam simbolizar significado e, assim, ser entendidos por seus semelhantes de modos tas de Goethe, Schelling abriu um novo caminho pata o voluntarismo ao ligar a noção
que os fenômenos não-humanos não podiam. Um grupo de filósofos neokantianos de vontade com os fenômenos naturais e ao estabelecer a continuidade entre a vontade
residentes na província de Baden concordou em que as ciências humanas diferiam humana e as autras espécies de energia no cosmo. .
fundamentalmente da ciência natural, mas situaram a origem dessa diferença não em Tal como Hegel, Arthur Schopenhauer também sentiu todas essas influências
seu objeto de estudo, mas no tipo de interesse cognitivo que o scholar tinha em mente. filosóficas em sua juventude. Teve Goethe como ídolo, estudou com Fichte (e com
Wilhelm Windelband é comumente associado ao enunciado central dessa posição. Schleiermacher), meditou profundamente sobre Schelling. Entretanto, reagiu a tudo
Em um famoso discurso proferido após assumir o reitorado na Universidade de isso traçando um rumo muito diferente do de Hegel, considerando até ser sua missão -
Estrasburgo em 1894, Windelband reconfigurou o modo como. a ciência natural repatar os danos causados à filosofia pela linguagem contorcida e os esquemas
deveria distinguir-se das disciplinas relacionadas com à história humana. A marca desorientadores de Hegel e seus seguidores, Na primeira obra em que apresentou seu
característica das ciências naturais, argumentou ele, é seu método e intenção — .' pensamento essencial, O mundo como vontade é representação (1818), Schopenhauer
formular leis gerais — a que chamou uma intenção nomotética. Em contrapartida, as reafirmou:a doutrina de Kant de que o verdadeiro conhecimento da natureza última
disciplinas históricas não procuram leis gerais mas realidades singulares, não-recor- do mundo externo é eternamente inacessível aos seres humanos, Depois, entretanto,
rentes, Esforçam-se por realizar o que chamou uma intenção idiográfica, a busca de - transferiu seu foco para coycentra-lo na única coisa que os seres humanos podem
fatos singulares e únicos que são importantes para o investigador porque consubs- verdadeiramente conhecer: a sua própria vontade. Embora Schopenhauer seguisse
tanciam valores significativos. Pode-se dizer que um aluno de Windelband, Heinrich Schelling na faturalizagao da vontade —. referiu-se à vontade humana como “natureza
Rickert, que lhe sucedeu em Heidelberg, construiu sua carreira dedicando-se longa- no grau superlativo dé sus altoconsciência” ([1818] 1958, 1:276) — ele, não obstante,
mente a explorar esse ponto. Rickert continuou a articular e defender os valores
considerou a vidanão como um processo de progressiva realização da vontade racional
culturais associados aos métodos da ciência e da história, respectivamente, Embora
mas como o jogo desenfreado de instintos cegos e força bruta. No cosmo de Schopen-
Windelband e Rickert aderissem com veemência à noção kantiana do livre-arbítrio,
hauer, o intelecto figura sobretudo como um veículo para ilusões estimuladas pela
seu compromisso com o voluntatismo adquiriu a forma de acentuação das repercus-
vontade inconsciente. O caminho para a transcendência exige que os seres humanos
sões de diferentes tipos de interesses axiológicos para as formas cognitivas.
se desprendam dessa interminavelmente fútil e frustradora afirmação de vontades.
Assemelhou a massa da humanidade a marionetes, manobradas pelos arames e cordéis
da natureza e do mundo-como-vontade, e só viu a possibilidade de fuga desse estado
Analisando o sujeito voluntarista
de sujeição através dos esforços de pessoas excepcionais — heróis morais que tiveram
Durante os anos em que Windelband estava trabalhando para restaurar o prestígio da o discernimento de reconhecer a ação universal da predatória e gananciosa vontade ue
filosofia e reafirmar a duradoura importância de Kant, um tipo mais estridente de viver e a coragem de libertar-se dela.
voluntarismo estava sendo promulgado por Friedrich Nietzsche. Coube a Nietzsche Aos 21 anos, Nietzsche preparava-se para iniciar uma promissora carreira como
levar a seu ponto culminante a linha de pensamento que, de Fichte a Schopenhauer, filólogo quando encontrou por acaso a obra de Schopenhauer. Desde a primeira página,
enfatizou a pura autodeterminação do sujeito. Fichte interpretara a doutrina de Kant confessou ele em um seminal ensaio nove anos depois, soube que prestaria atenção a
de que a ação moral assenta na autonomia como uma outra forma de enfatizar o caráter cada palavra contida no livro ([1876] 1990, 169). O que tanto estimulou Nietzsche a
vigorosamente voluntarista da ação moral. Para Fichte, a plácida atividade rotineira e respeito de Schopenhauer foi a intransigente probidade deste último na busca da
a estagnação contente consigo mesma constituem os arquiinimigos da moralidade. verdade. Ao ir além de Kant, seu mestre, Schopenhauer ensinou a Nietzsche como ser
Essa noção foi introduzida na ciência social posterior através de dois canais, Um deles independente.!É Por sua vez, Nietzsche foi além de seu mestre, Schopenhauer. Onde
sublinhou a qualidade moral de pessoas que se criam por meio de escolhas deliberadas este último, ecoando as filosofias védicas da Índia, considerou o mundo fenomênico
e desenvolveu assim o tema do indivíduo voluntarista, O outro desenvolveu o tema de um choque absurdo de vontades para o qual só poderia haver lenitivo através de um
formações sociais voluntaristas. Isso levou à criação de tipologias de períodos his- esforço da mente culminando na abnegação ascética, Nietzsche formula para toda a
tóricos e estados sociais que culminam em estados de avançado voluntarismo. humanidade uma doutrina de autocriação pessoal, e exalta a cultura como fonte de
O tema do indivíduo voluntarista foi apresentado em todos os escritos de Fichte, inspiração para tal transcendência, por meio de professores formativos que funcionam
tendo por base, como vimos, a ética antinaturalista kantiana. Mas também foi enfati- como genuínos libertadores, revelando “o verdadeiro significado original e a matétia
zado por aqueles que, como Goethe, encontravam na natureza uma fonte de inspiração básica [de uma pessoa] (...) algo que estava acorrentado, paralisado e de difícil acesso”
para valores humanos. Goethe defendeu o ideal de criação de pessoas dotadas de (166). Em seu personagem mítico Zaratustra, Nietzsche retrata um professor heróico
características e identidades únicas através do gênero certo de formação (Bildung) — que rejeita discípulos e os dispensa para que se esforcem por alcançar seus próprios
um ideal próximo da definição de Schleiermacher da tarefa de todo ser humano: moldar fins. Sublinha os perigos de uma interpretação convencionalmente naturalista dos
e consolidar sua própria individualidade, Identificando-se com os interesses naturalis- humanos, dizendo que a doutrina de Darwin, de que os humanos são basicamente
carne
como outros animais, é “verdadeira mas fatal”, e considerando o homem “necessário vontade social — um ponto de partida que atingiu em consegiiência do seu estudo de
a fim de redimir a natureza da maldição da existência animal” (194). O influente apelo Schopenhauer. O primeiro tipo expressa uma vontade espontânea, irrefletida, que está
de Nietzsche para a autoperfeição através de vigorosos esforços que levem a pessoa a próxima das inclinações naturais, O segundo expressa uma espécie deliberada, refle-
ser o seu próprio e verdadeiro eu constituiu o ponto culminante de um século de tida e interesseira de vontade em que o voluntarismo humano atinge um grau muito
preocupação alemã com o problema de como sujeitos humanos podem transcender as mais elevado.
determinantes comuns da vida. .
Mas a tradição alemã também abrigou idéias que envolviam uma manifestação
social ou coletiva de voluntarismo, Essa noção foi igualmente proposta por Fichte, que CRISES MORAIS E FUNDAÇÕES SOCIOLÓGICAS
descreveu a árdua luta da razão contra o instinto como tendo lugar através de uma
sucessão de épocas históricas, Fichte identificou uma seqiiéncia de cinco etapas nesse Um efeito das revoluções copernicana e newtoniana em ciência natural, como vimos,
processo. A história começou com uma época de conduta irrefletida, levando a um foi desafiar concepções éticas baseadas em filosofias teológicas e aristotélicas. Na
período de leis repressivas, o qual foi seguido porum período de desafio antiautoritário. Grã-Bretanha e na França, esse desafio foi enfrentado por uma reformulação das bases
Essa etapa rebelde deu lugar à aceitação consensual da lei racional, que foi sucedida filosóficas da ética através de posições consentâneas com os pressupostos da filosofia
por uma época culminante de plenitude espiritual humana, Fichte acreditava que a natural. Na Alemanha, porém, a ascendência da ciência natural foi percebida, em parte,
Alemanha de seu tempo estava prestes a liderar o mundo através da transição para uma como uma ameaça à natureza íntima, essencial, do ser humano, e à sua autodetermi-
época culminante de liberdade. . nação moral, levando à suposição de que a ética pós-newtoniana teria que proteger a
Endossando esse tema geral, Hegel descreveu o progressoda liberdade pela histéria liberdade do sujeito humano postulando alguma espécie de transcendência de ordem
como um processo em que a humanidade evoluiu da.completa auséncia de liberdade natural não-humana. .
para um estado em que um é livre, depois para um estado onde alguns são livres e, por As filosofias de Kant, Herder e Hegel articularam essa tensão de formas que a
fim, para um estado onde todos são livres. Uma parcela da primitiva sociologia aléma ciência social alemã subsegiiente nunca pôde esquecer. Todos os três tinham lutado
tomou forma como um esforço para traduzir a descrição filosófica abstrata de Hegel “para encontrar modos de proteger o sentimento de dignidade e liberdade humanas
desse processo paraum relato sociologicamente plausível de desenvolvimentos sociais . contra as ameaças apresentadas por crescentes ondas de explicação naturalista e
concretos, Assim; Lorenz von Stein, a quem alguns chamaram o primeiro sociólogo, determinismo natural, No decorrer de suas lutas, eles produziram três soluções
substituiu a idéia de estado de Hegel por estados históricos reais; a idéia de Hegel de: arquetípicas que se converteram em canais para o posterior pensamento social alemão.
progresso da razão universal (Weltgeist) foi substituída pela noção de crescente difusão Kant transcendeu a natureza situando a moralidade numa esfera que funcionava
de oportunidades educacionais em todos os vários setores da sociedade. independentemente do domínio da natureza. Herder transcendeu a natureza como um.
Ferdinand Tônnies saudou igualmente a façanha de Hegel ao demonstrar a neces- domínio dos instintos identificando a língua e a cultura humanas como capacidades
sidade histórica de estruturas racionais modernas: sociedade civil e o estado. Mas, ao
criativas através das quais a natureza atingiu um nível superior. Hegel descreveu o
mesmo tempo, Tônnies criticou Hegel por apresentar uma visão obscura da vida social percurso pelo qual a humanidade superou a natureza no transcorrer da história do
e por propor a idéia de um desenvolvimento unilinear para a perfeição. Procurando mundo subordinando-a ao Geist.
corrigir essas deficiências, Tônnies tentou repor pessoas em: cena e desvendar “o As universidades alemãs do século XIX forneceram uma estufa para o crescimento
verdadeiro relacionamento entre a verdade e grupos sociais”, que Hegel tinha “apaga- da ciência natural positivista, um desenvolvimento que apresentava uma ameaça
continuamente incômoda para o compromisso alemão com a interioridade e a liber-
do” ([1912] 1971, 27). Era uma característica constante da visão sociológica de
dade subjetiva, As apreensões particulares de Kant sobre o determinismo newtoniano
Tonnies, observou ele certa vez, “ver em todo o desenvolvimento histórico desde a
converteram-se em uma angústia cultural largamente compartilhada. Enquanto Mill e
Idade Média a gradual libertação do racionalismo e o seu crescente predomínio como
Spencer podiam alegremente desconsiderar a lógica dos “metafísicos do livre-arbítrio”
processo inerentemente necessário do espírito humano como vontade” ([1932] 1971,
que se opunham a uma ciência social naturalista (Mill [1843; 8%ed., 1872 ] 1987, 22-8;
6). A mais fecunda formulação produzida por Ténnies preparou o terreno para quase
Spencer, 196], 33-5), Windelband exclamaria que a liberdade da vontade era o “maior
toda a sociologia alemã subsegiente. Tomou a forma de um esquema que representou
problema de tortura mental da humanidade moderna, o que atormenta o espírito dos
uma sucessão de dois importantes tipos de sociedade. Como é de conhecimento geral,
mais excelsos pensadores” (1884, 211). Esse tormento foi parte do que deflagrou o)
esse esquema compreende o tipo denominado Gemeinschaft,.o qual baseia a organi-
enorme esforço de Dilthey para estabelecer as fundações de uma ciência não-naturalis-
zação em qualidades comuns tais como parentesco, território, língua e religião, e o
ta da humanidade; Dilthey confessou que “a grande crise das ciências ¢ da cultura
tipo chamado Gesellschaft, que organiza as pessoas na base de critérios formalizados européia por que estamos agora passando apossou-se tão profunda e totalmente do
por contratos e constituições. O, que não é tão geralmente conhecido é que Ténnies, meu espírito que o desejo de prestar alguma ajuda que permita superá-la extinguiu
na realidade, representou esses dois tipos de sociedade como produto de dois tipos de toda e qualquer ambição extrínseca e pessoal” (Ermarth, 1978, 15).
Tomados em seu conjunto, os pensadores sociais alemães acabaram identificando A rejeição do indutivismo
cinco diferentes áreas de oposição à ética e à ciência social naturalistas, (1) Na esteira
da subtradição hermenêutica, rejeitaram sua perspectiva sobre os seres humanos como ° Fundamental para as epistemologias de Simmel e Weber eta o pressuposto de que os
objetos a estudar de fora para dentro, em favor de um método que prestava atenção scholars necessariamente investigam certas categorias e certos conceitos a priori; O
aos significados subjetivos de agentes sociais, Na esteira de uma subtradição apriorís- ensaio de Simmel sobre a filosofia da história procurou refutar a doutrina de realismo
tica, eles rejeitaram (2) uma epistemologia estritamente indutivista, a favor de uma histórico — a noção de que o historiador deve representar os eventos históricos tal
que sublinhava o trabalho constitutivo-do conhecedor, e (3) a premissa de que diretrizes como realmente ocorreram. A história, para Simmel, era uma daquelas grandes
práticas podiam bassar-se exclusivamente em proposições teóricas, a favor de uma categorias formativas — como a filosofia, arte, ciência, religião e senso comum —
clara distinção entre os domínios empíricos e normativos. Na esteira da subtradição que o espirito humano deve empregar para dar sentido aos conteúdos da experiência
voluntarista, eles rejeitaram (4) uma metafísica determinista, a favor de uma que e através das quais esses conteúdos podem ser organizados para formar um “mundo”,
protegia explicitamente o espaço para a livre ação humana, e (5) a tendência para Não existe história como tal, sublinhou Simmel, somente espécies particulares de
analisar formações sociais em termos estritamente naturalistas, a favor de taxonomias história, as quais recebem seu caráter das categorias a priori específicas que qualquer
que abrem espaço para associações construídas de forma consciente. historiador utiliza; Rejeitar o realismo histórico em favor do reconhecimento dos a
Max Weber é com freqiiéncia considerado o conduto através do qual essas posições prioris da historiografia é emancipatório. Embora o homem, como algo conhecido,
filosóficas foram transmitidas à moderna ciência social. As três primeiras dessas seja feito por natureza e história — um desafortunado produto de leis e forças
posições são mais conhecidas por meio de termos que Weber tomou famosos, como, deterministas —, não obstante o homem como conhecedor faz natureza e história.
respectivamente, as doutrinas de Verstehen, de relação de valor e de neutralidade ética. Simmel dedicou seu tratado sobre a filosofia da história “ao objetivo geral de preservar
Embora todas essas doutrinas fossem articuladas antes e de um modo mais inventivo a liberdade do espírito humano — isto é, a criatividade geradora de formas”, contra o
pelo colega mais velho de Weber, Georg Simmel, ambos os homens estavam basica- realismo histórico, do mesmo modo que argumentou que Kant tinha feito o mesmo a
mente empenhados no processo comum -de adaptar os legados da filosofia moral an-* respeito do naturalismo. Em um outro ponto, Simmel examina outras opções para
tinaturalista alemã para o fim de alicerçar uma abordagem moderria da ciência social. conhecer a experiência humana — nas perspectivas do indivíduo, da sociedade, da
cultura objetiva ou da humanidade (1971, cap.3).
Embora Weber não filosofasse muito sobre a matéria, aceitou a premissa neokan-
A exigência de Verstehen tiana geral a respeito de categorias a priori como axiomática, seguindo a maioria das
vezes a orientação de Rickert. Weber formulou o conceito de interesse cognitivo pata
Quer teorizem sobre isso ou não, a maioria dos sociólogos alemães prestou conside- representar modos em que os interesses de conhecedores atuam para construir pers-
ravel atenção aos significados íntimos de agentes individuais e estratos culturais. pectivas a partir das quais possam investigar objetos, e usou o conceito rickertiano de
Simmel teorizou bastante sobre essa matéria, argumentando em Problemas de filosofia relação de valor (Wertbeziehung) para significar os modos como os valores de inves-
da história [Die Probleme der Geschichtsphilosophie] que o conhecimento histórico tigadores afetam seus interesses cognitivos.!
preserva unicamente os significados e o contexto motivacional da experiência hu-
mana. Faz isso garantindo um entendimento “imanente” da vida interior de agentes
históricos, um entendimento que, em princípio, não é diferente do modo como A separação entre fato e valor
entendemos nossas relações cotidianas. Até mesmo-agentes a alguma distância cultural
são inteligíveis através desse processo: “Não se precisa ser César para realmente entender Talvez o modo mais crucial como os pensadores da tradição alemã de teoria social se
César, nem um outro Lutero a fim de compreender Lutero” ([1907] 1978, 65; 1977, 74). opuseram às tradições britânica e francesa resida no fato de sustentarem que a ciência
Weber incorporou de modo crítico as principais linhas dos atgumentos de Simmel, naturalista não era adequada para fundamentar diretrizes éticas. Essa posição foi
declarando que, de longe, a mais desenvolvida análise lógica de uma teoria de expressa de modo muito convincente em uma das primeiras obras de Simmel,
Verstehen foi apresentada na obra de Simmel (1922, 21; Levine, 1985a; 97). Em seus Introdução à ciência da ética [Einleitung in die Moralwissenschaft], publicada em
enunciados programáticos sobre sociologia, Weber tomou o processo de Verstehen dois volumes em 1892-3, na mesma época que A divisão do trabalho social, de
fundamental para o que ele considerou ser missão da sociologia: o entendimento Durkheim. Tal como Durkheim fez na apresentação de sua monografia, Simmel
interpretativo da conduta social a que os agentes atribuíram um significado subjetivo. também afirmou a necessidade de abandonar a abordagem abstrata da ética filosófica
Embora Simmel não estenda explicitamente o princípio metodológico de Verstehen anterior, empreendendo investigações empíricas dos credos éticos à sombra dos quais
da história à sociologia, suas análises sociológicas prestam atenção, de fato, à feno- os seres humanos realmente vivem em sociedade, Entretanto, onde Durkheim afirma-
menologia da experiência dos agentes — o que se sente ao estar envolvido em relações va que tais investigações podiam fornecer uma base mais idônea para a ética racional,
de conflito, de gratidão, em sociedades secretas ou de intimidade dual. Simmel insistiu em que fatos e valores representam dois mundos profundamente
diferentes, de tal modo que uma ciência positiva da ética poderia não ter nenhum valor A análise empírica do voluntarismo
moral prático.
A formulação mais conhecida dessa opinião encontra-se no ensaio de Weber sobre A extensão em que as pessoas são livres para escolher suas próprias ações e para se
aneutralidade ética (Werifreiheit) nas ciências sociais, que contém sua franca rejeição desenvolverem de acordo com suas individualidades singulares compreende a mais
de metáforas naturalistas como fonte de critérios normativos. Também seu magistral significativa variável dependente na vasta gama de ensaios de Simmel sobre fenôme-
“Ciência como vocação” insiste em que a erudição não pode fornecer qualquer base nos sociais. Essa variável é central para as análises dos quatro tópicos principais que
para julgar diferenças entre posições de valor, posições que seus defensores devem ele tratou sistematicamente: diferenciação social, o dinheiro como meio geral de troca,
sustentar na forma de uma interminável batalha dos deuses, a dinâmica da cultura e a metrópole moderna, :
O tema domina a primeira monografia sociológica de Simmel, Sobre diferenciação
social [Uber soziale Differenzierung] (1890). Neste ponto; uma vez mais, a compara-
O postulado de autodeterminação normativa
ção com Durkheim é instrutiva. Onde Durkheim analisou a individuação socialmente
Nas mãos de Fichte, o princípio de Kant de encontrar as leis éticas em concordância produzida tendo em mira, sobretudo, as suas conseqiiéncias para a solidariedade social
com leis universais determinadas através dos nossos próprios poderes racionais viu-se e a moralidade pessoal, Simmel privilegiou o relaxamento transformativo de várias
transformado em uma simples advertência para atuar de acordo com os ideais que coerções jurídicas e consuetudinárias como um processo conducente à autodetermi-
tenham sido voluntariamente escolhidos. A elaboração desse tema atingiu seu ápice nação e plena realização individual, Isso tomou a forma, por exemplo, de substituição
na sentença de Nietzsche, “Werde, was du bist” (“Torna-te aquilo que és”) — uma da responsabilidade coletiva por crimes pela noção de responsabilidade individual, e
imposição para transcender a mera passividade animal e realizar a verdadeira huma- de substituição de padrões relativamente compulsórios de filiação em grupo baseada
nidade mediante a corajosa manifestação de nossos objetos estritamente pessoais, em acidentes de nascimento e parentesco por associações voluntárias, as quais criam
livremente escolhidos. Essa imposição estava muito presente no espírito de Simmel e constelações mais individualizadas de filiações grupais de uma pessoa.
Weber, que a reconheceram como prescrição ética e como variável empírica. Às análises de Simmel dos efeitos de uma economia monetarizada concentram-se
À aceitação por Simmel da sentença nietzschiana permaneceu latente em grande predominantemente em suas implicações para a liberdade pessoal e a individualidade.
parte de sua carreira, mas deu-lhe plena articulação filosófica em um de seus últimos O uso de dinheiro como um meio geral de troca favorece os processos emancipatórios
ensaios, “Das individuelle Gesetz”.!7 Simmel argumenta af que o imperativo categó- que Simmel tinha analisado em Sobre a diferenciação social, Ao ampliar a esfera de
rico não deve assumir a forma de uma máxima universal, porque os universais são relações sociais de uma pessoa através de um mercado 'expandido e ao permitir que
exteriores à pessoa ética e não uma expressão do ser autêntico do indivíduo. Para que essas relações sejam limitadas por uma troca precisa, específica, o dinheiro promove
a obrigação moral se baseie em princípios autodeterminados, não deve expressar a liberdade dos indivíduos de coerções sociais externas. Além disso, ao tornar mais
algum conteúdo externo mas provir das raízes da própria experiência de vida de cada fácil o engajamento em associações voluntárias organizadas em torno de determinados
pessoa. Essa ética individualizada subentende que o imperativo moral de uma pessoa interesses e ao fornecer um recurso getal inteiramente submisso à vontade de um ego,
não permanece fixo e inalterado para sempre, mas muda de acordo com a integração o dinheiro aumenta a liberdade da pessoa para expressar sua individualidade ímpar.
de decisões éticas emergentes, Por conseguinte, “a responsabilidade por toda a nossa Também aumenta sua liberdade para'ser o seu verdadeiro eu, na medida em que serve
história reside no dever decorrente de toda a ação singular” (1918, 243), como um meio de diferenciação entre o centro subjetivo e os desempenhos objetivos
Com base no seu princípio de sábia circunspecção, Weber recusou-se a articular da pessoa, _ o - a .
uma defesa racional de qualquer posição ética, Entretanto, sua prática contradisse Por outro lado, emA filosofia do dinheiro [Philosophie des Geldes], a análise de
repetidas vezes esse princípio. Profeta por temperamento, Weber jamais conseguiu Simmel toma-se mais complexae menos brilhante que em sua obra anterior, !É Ble está
abster-se de insinuar a sua defesa do que era, de fato, uma ética heróica de autocons- agora atento aos processos pelos quais o dinheiro também tem o efeito de dificultar o
ciência e autodeterminação (Levine, 1985a, cap.8). Era sua convicção que a vocação crescimento da individualidade genuína, manifestando assim sua posição mais madura
de humanistas e cientistas estava perfeitamente justificada pelas contribuições que suas de que a característica mais fundamental da ordem moderna é sua capacidade para
obras dão para o aumento da autoconsciência humana. Menosprezou a tendência diferençar e promover características opostas. Por exemplo, ele descreve modos como
humana a esconder decisões acerca de valores básicos: sob a superficie de rotinas pessoas são depreciadas por terem suas qualidades pessoais traduzidas em. termos
cotidianas, e recomendou insistentemente que “toda e qualquer decisão importante, monetários, . .
na verdade, a vida como um todo, se não quisermos que escoe como um processo Uma boa parte da análise de Simmel das ameaças à individualidade no período
meramente natural mas seja conscientemente vivida, constitua uma série de decisões moderno. relaciona-se com o que ele considera ser a natureza opressiva da “cultura
supremas por meio das quais a alma, como em Platão, escolha o seu próprio destino, objetiva”. Para Simmel, o sentido-primordial de cultura refere-se ao processo pelo qual
a acepção do que faz e do que é” (1978, 84; o grifo é meu). os poderes do indivíduo humano são aperfeiçoados mediante a assimilação de objetos.
externos deliberadamente criados. Essas coisas extemas que promovem a plena Simmel e Weber mantiveram. do começo ao fim posições que os. colocaram em
realização da personalidade individual constituem o que Simmel designa por cultura permanente oposição às tradições naturalistas desenvolvidas na Grã-Bretanha e na
objetiva, usando a expressão “cultura subjetiva” para significar a medida de desenvol- França. Apesar de todas as diferenças em seus programas sociológicos, ambos
vimento assim alcançado. Uma, importante linha da interpretação de Simmel da subscreveram os Postulados de Significado Subjétivo, Autodeterminação Normativa
modernidade diz respeito ao desequilíbrio entre essas duas dimensões culturais — o e Voluntarismo Subjetiva.?° Caberia ao gênio desses dois pensadores fornecer sínteses
fato de que os seres humanos modemos sofrem da sensação de estar cercados por uma duradouras das três subtradições procedentes de Kant que identifiquei acima. As
quantidade inumerável de elementos culturais que não podem assimilar nem ignorar. fundações filosóficas que eles supriram para as ciências sociais incluem doutrinas
Todas as linhas de interpretação acima citadas estão reunidas e interligadas no notável sobre significados subjetivos, os quais necessitam de uma distinta metodologia de
ensaio de Simmel, “A metrópole e a vida mental” ([1903] 1971), que ele apresenta entendimento empático; pressupostos sobre as categorias a priori de sujeitos cognós-
como as condições especificamente modemas que influem na luta dos indivíduos para centes; crença no caráter irredutivelmente distinto do juízo prático; e ênfases sobre a
manterem sua autonomia e individualidade em face das irresistíveis forças da organi- ação humana, como ideal normativo e como variável crucial para análises socioló-
zação social, da tecnologia e da tradição cultural.!9 gicas. A formidável defesa alemã de pressupostos orientados para o sujeito contra o
Weber também produziu uma série de análises sociológicas que focalizam o nível apoio anglo-francês a pressupostos naturalistas originou uma das persistentes linhas
de ação voluntarista como uma variável primária, Em um de seus primeiros empreen- © de fratura na ciência social moderna,
dimentos tipológicos, o ensaio de 1913 sobre categorias para uma sociologia vers-
tehende, Weber distinguiu entre formas de associação pelo maior ou menor grau em
que envolveram acordo voluntário. A sua mais famosa taxonomia, a das formas de
ação social, distingue-as explicitamente-em uma hierarquia de voluntarismo ascen- NOTAS
dente — desde a ação habitual tradicional que é de caráter semelhante à ação animal
até o tipo altamente deliberado de ação que qualificou como instrumentalmente 1, Lutero enfatizou que “o homem tem uma dupla natureza, yma espiritual e uma corpórea”, e
racional (zweckrational). Weber usou um tipo semelhante de tipologia a fim de caracterizou a pessoa interior como integra e livre. Sustentou que nenhuma coisa externa tem
classificar os vários fundamentos para defesa e sustentação da autoridade legítima. qualquer influência na produção seja de integridade ou liberdade, seja de iniqlidade ou servidão. Por
Em termos mais gerais, o leitmotiv de Weber para a análise compatativa de cultura e conseguinte, Lutero argumentou que boas obras não fazem uma boa pessoa, mas que uma “pessoa
história é a questão sobre o que favorece a construção racional de fenômenos sociais [deve] ser boa antes que possam existir quaisquer boas obras, e que as obras acompanham e procedem
da boa pessoa” (1957, 7, 24). O pietismo era uma forma de religiosidade cristã que se opunha ao
e culturais. Sua mais famosa queixa a respeito da sociedade moderna refere-se à establishment eclesiástico e ao intelectualismo ortodoxo, com ênfase sobre a experiência interior, o
restrição do voluntarismo individual pelas forças inanimadas da produção capitalista sentimento, a participação e a introspecção. Tornou-se um movimento religioso na Alemanha no
e os mecanismos animados da burocracia: ” século xvil, embora provenha de atitudes que foram atribuídas à cultura alemã medieval.
Entretanto, por trás dessas forças restritivas Weber identificou profundas e his- 2, No começo da década de 1790, Kant convertera-se em uma importante força cultural na
Alemanha. Uma década depois, cerca de três mil diferentes trabalhos sobre ele já tinham sido
tóricas inovações culturais envolvendo a progressiva incorporação da vontade racional publicados, O próprio Goethe, cuja obra apontava em uma direção diferente, acabou encontrando
humana. Ou seja, Weber representou formas objetivadas de racionalidade na organi~ afinidades com os escritos críticos de Kant. O poeta Hôlderlin chamou Kant de o Moisés da nação
zação burocrática e formas capitalistas de produção como conflitantes com as novas alemã (Sheehan, 1989, 182; Ermarth, 1978, 40).
dimensões de racionalidade e liberdade subjetivas inauguradas pela ciência e pelo 3. “Eu tive a grande sorte de conhecer um filósofo. Foi o meu professor (...) Nenhum conluio,
nenhuma seita, nenhum preconceito, nenhum desejo de tama jamais puderam tentá-lo a desviar-se,
direito modernos (Levine, 1985a, caps.7-9). Essa análise equipara-se à descrição de o mínimo que fosse, da tarefa de ampliar e iluminar a verdade. Ele incitava e gentilmente forçava os
Simmel do conflito trágico entre cultura subjetiva e objetiva, e sua crença de que a luta outros a pensarem por si mesmos; o despotismo era estranho ao seu espírito. Esse homem, cujo nome
para manter a liberdade pessoal e a individualidade em face de forças sociais e culturais cito com a maior gratidão e respeito, era Immanuel Kant” (Kant, 1963, xxviii).
supra-individuais dá origem aos “mais profundos problemas da vida moderna’ 4, O abandono por Herder da abordagem filosófica de Kant já era por demais evidente ao seu
Pode-se afirmar que a preocupação com essa tensão por perisadores como Simmel'e antigo mentor muito antes de Herder ter publicado uma “Metakritik” censurando Kant por tentar
separar a razão dos outros poderes humanos. Em um comentário crítico à primeira parte de Ideen de
Weber reflete o fato de que a oposição entre temas individualistas e-coletivistas, Herder, Kant observou que Herder deixou “uma precisão lógica na definição de conceitos ou
sustentada entre as tradições britânica e fratcesa como duas diferentes formas de cuidadosa adesão a princípios, preferindo optar por uma perspectiva fugaz. e abrangente, uma destreza
naturalismo, foi representada na Alemanha como duas diferentes formas de volunta- em descobrir analogias, na manipulação das quais revela uma audaciosa imaginação. Isso se combina
rismo. Kant exaltara o voluntarismo do sujeito individual, Herder e Hegel o do sujeito com a habilidade em solicitar simpatia para o seu sujeito+ mantido a uma cada vez maior e mais
nebulosa distância — por meio de sentimento e sensação":(Kant, 1963, 27).
coletivo. Onde Hegel, finalmente, subordinou a ação individual a um Geist coletivo
5. Isaiah. Bertin escreve: “Embora um grande abismo intelectual divida Kant e Herder, eles
em expansão, Simmel e Weber viram a interação entre essas duas manifestações da compartilham de um elemento comum: um anseio de autodeterminação espiritual contra a tendência
ação criativa humana como constituindo uma trágica luta. semiconsciente a seguir os dogmas incondicionalmente aceitos (teoldgicos e científicos), em prol da
re

170 VISÕES DATRADIGAO SOCIOLÓGICA

(..) Cada [cultura] contém em si mesma o padrão de sua perfeição, totalmente


i
independ 6 com as
ente de comparações outras ([1784] 1968,
outras” : 98).
100,dd
o a! on
Ao derrubar os compromissos do Iluminismo com O ideal do in do bem
contemplação de padrões universais, Herder evocou assim uma visão
que mi
damentada em um conjunto de expressões coletivas de sentimento
é certo
uma integridade estética. Os seres humanos realizam à vida boa vivendo,
unidades naturais, mas procedem assim em sociedades que transcendem! os limit
circunstância natural ao criarem uma cultura harmoniosamente compartilhada,
damental na ética que ele propôs estava, portanto, uma injunção para respeitar
verdade, favorecer as diferentes culturas manifestadas por diferentes povos, Isso le
Herder a formular uma crítica precoce do imperialismo europeu por sua rept o!
povos menos civilizados. Com efeito, levou-o a criticar a repressão política em tod
as suas formas. Herder tornou-se um ardoroso inimigo do absolutismo, por mi
esclarecido que fosse; de modo mais geral, expressou certo antagonismo ao
moderno. É irônico que o filósofo que tanto fez para divulgar a noção de Her
Volksgeist, Hegel, tenha sido o principal proponente, na moderna teoria polit
Estado como veículo histórico de transcendência.

DE KANTA HEGEL

O pensamento social alemão do século XIX começa — e termina — com uma sé


esforços para basear uma ética nas distintas propriedades criativas do indiv
humano. Tanto no período inicial quanto no final, tiveram que ser levados em:
os legados de Kant e de Herder. Apesar de todas as suas diferenças, os dois h
compartilhavam um conjunto de pressupostos característicos da tradição alemé
quais podem ser representados em termos semelhantes aos que usei para as tr
britânica e francesa. À questão sobre como os fatos da experiência humana.
ser construídos e explicados, eles respondem com o que pode ser chamado o P
do Significado Subjetivo: os fenômenos humanos podem ser melhor comp
se entendermos os significados com que os indivíduos impregnam
suas açõ
envolve um método de compreensão que, em princípio, diverge dos métodos
para entender fenômenos naturais. Para Kant, isso era a apreensão dire
ta
da p
atividade legislativa do eu através da Vernunft, a capacidade
de razão! prática, «
contrasta com Verstand, a capacidade usai e
naturais. Para Herder,

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