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NASCER E CRESCER

revista do hospital de crianças maria pia


ano 2006, vol XV, n.º 1

Bioética em Reprodução
Medicamente Assistida
C. Coelho1

RESUMO controlados por ecografias, para ajustar matozóide penetre no ovócito. A fertiliza-
A Organização Mundial de Saúde as doses do tratamento. Passados apro- ção pressupõe a recolha de ovócitos da
(OMS) considera a infertilidade como ximadamente 13 dias, a mulher regressa mulher, a sua fertilização em laboratório
uma doença que atinge 15 a 20 % dos ao hospital para fazer um teste de gra- e, dois a cinco dias depois, a transferên-
casais em idade reprodutiva e declara videz, doseamento de Hormona gonado- cia para o útero de 1,2 ou 3 embriões, no
que todos os cidadãos por ela afectados trofina coriónica fracção β (βHCG) plas- máximo.
têm direito a ser devidamente tratados. mático. Se o resultado é positivo, repete 3.1. Fertilização in vitro “clássica”
O tratamento da infertilidade torna- a mesma análise após dois dias e o valor Nesta, o crescimento folicular é
se cada vez mais importante mas, à me- do βHCG deverá, no mínimo, duplicar. A conseguido por hiperestimulação contro-
dida que a ciência evolui nessa área, vão- mulher continua em vigilância ecográfica, lada dos ovários, que faz crescer vários
se levantando cada vez mais problemas geralmente semanal, até ser visualizado folículos ováricos em cada ovário por
de ordem ética e moral. Reflectir acerca o embrião com batimentos cardíacos e administração subcutânea controlada de
dos princípios bioéticos na reprodução saber se a gravidez é múltipla ou não. A hormonas (agonistas ou antagonistas do
medicamente assistida é saudável - nem partir dessa altura, pode passar para a factor libertador de gonadotrofina recom-
sempre se pensa antes de agir, muitas consulta de Obstetrícia. Se o resultado é binante (GnRH), seguido de Hormona
vezes trabalha-se mecanicamente, sem negativo ou se a mulher menstruou an- folículo estimulante recombinada (rFSH))
se questionar qualquer assunto. O objec- tes da data prevista, o casal pode querer durante 1 ou 2 semanas(1). O crescimento
tivo deste artigo é estimular a atitude de efectuar nova tentativa. dos folículos é seguido por ecografias e,
“parar antes de agir” perante casos se- quando os folículos estão maduros, in-
melhantes que se nos deparam no dia a 2.IIU – Inseminação Intra-Uterina duz-se a maturação dos ovócitos com a
dia, mantendo a mente sã. Na Inseminação Intra-Uterina (IIU), administração intramuscular de hCG, 36
Palavras-chave: Bioética; Repro- a indução da ovulação é igual à do Coito horas antes da colheita dos ovócitos(1).
dução; Infertilidade; Moral programado. Se a ecografia confirmar um Na altura da colheita dos ovócitos o médi-
máximo de 1, 2 ou 3 folículos maduros co ginecologista punciona os folículos por
Nascer e Crescer 2006; 15(1): 28-32 é administrado hormona gonadotrofina via transvaginal (sob controlo ecográfico,
coriónica (hCG) intramuscular, 36 horas com a mulher sob anestesia geral, sendo
antes da inseminação. No dia da insemi- aspirados pela enfermeira)(1) para uma
CONCEITOS nação o esperma é colhido por meio de seringa de 10 ml.
Há vários tipos de tratamentos para masturbação e os espermatozóides com No dia da punção folicular o marido
a infertilidade, que serão aqui resumi- melhor qualidade são introduzidos no úte- ou companheiro da cliente faz colheita de
dos. ro da mulher por meio de um catéter intra- esperma, o qual é preparado de forma
uterino. Após um repouso de 15 minutos semelhante que para a IIU. Seja qual for
1.Coito programado a mulher vai para casa, podendo efectuar o processo de fertilização in vitro, a evo-
Efectuado em ciclo induzido com a uma vida normal, sem fazer grandes es- lução é no sentido de se formarem um
administração de injecções subcutâne- forços e o restante tratamento é efectua- ou mais embriões. Todo este processo
as de GnRH diárias, em simultâneo com do segundo descrito no ponto 1. decorre em placas de cultura ou “poços”,
a toma de 1 comprimido de ácido fólico os quais são observados com frequência
em jejum. O momento da ovulação e o 3. Fertilização in vitro para se poder visualizar o respectivo de-
crescimento dos folículos ováricos são Hoje em dia a fertilização pode ser senvolvimento. Aproximadamente ao fim
mais complexa do que a simples junção de 24 horas pode-se visualizar o embrião
no mesmo espaço físico dos ovócitos e com duas células e ao fim de 48 horas o
__________

1
dos espermatozóides, pois é possível embrião com quatro ou mais células, fi-
Enfermeira Graduada no Hospital de S. João,
a exercer funções na Unidade de Medicina da introduzir um espermatozóide dentro do cando então a mulher em repouso até ter
Reprodução do Serviço de Ginecologia. ovócito, em vez de esperar que o esper- o recobro feito.

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3.2. Injecção intracitoplasmática genéticas hereditárias (ex.: paramiloido- utiliza o recurso a dadores, nem de sé-
de espermatozóide(2) se, hemofilia); 2-Abortamentos de repe- men, nem de ovócitos. Estamos portanto,
Este tipo de tratamento é efectuado tição (ex.: aneuploidias cromossómicas, perante uma fertilização homóloga.
quando o número de espermatozóides é trissomias 13, 18 e 21); 3-Vários trata- A fertilização homóloga não levanta
muito baixo, quando estes apresentam mentos anteriores com transferência de grandes contra-indicações ou dificulda-
motilidade diminuída, quando foi efectu- embriões de muito boa qualidade e resul- des de ordem moral, até onde se trate de
ada uma biopsia testicular para colheita tantes de insucessos (na maioria destes, ajuda terapêutica e integrativa que faça
de esperma, quando existe esperma con- após DGPI, verificam-se aneuploidias, tais com que o acto conjugal, em si completo
gelado, ou ainda quando outros factores como trissomias 13, 18 e 21). em todos os seus componentes (físicos,
o justifiquem, por exemplo, o insucesso psíquicos e espirituais), possa ter efeito
de tratamentos de Fertilização in vitro 5. Transferência de embriões procriador. No entanto, separar na pro-
(FIV) “clássica” utiliza-se uma técnica A transferência de embriões (TE) criação o componente biológico do afec-
diferente, a injecção intracitoplasmática para a cavidade uterina pode ocorrer ao tivo e espiritual equivale a produzir uma
de espermatozóide (ICSI). Esta consiste 2º dia ou ir até ao 5º dia. Compete ao casal divisão não natural na pessoa e no acto
na injecção de um único espermatozóide decidir o número de embriões a transferir, sexual, que exprime o dom conjugal, sig-
dentro do ovócito, utilizando uma agulha embora não devam ser transferidos mais nifica separar a vida do amor(2).
muito fina. A indução da ovulação e a do que três embriões. A transferência de Sob este ponto de vista, tendo como
colheita de ovócitos são idênticos tanto embriões é efectuada por introdução de base a Instrução “Donum Vitae”, só seria
para a FIV “clássica” como para a ICSI, um catéter de transferência de embriões lícita a técnica do Coito programado. O
embora nesta os ovócitos requeiram um através do canal cervical até à cavida- Magistério da Igreja Católica refere-se a
tratamento diferente, têm de ser “desnu- de uterina guiada ecograficamente, pelo um conceito fixista e biologista da lei natu-
dados”, ficando apenas a célula e a zona qual são transferidos os embriões. Esta ral, acrescentando que, sendo a tecnolo-
pelúcida. O ovócito é observado no sen- intervenção normalmente é rápida e não gia fruto do homem, o facto de se chegar
tido de avaliar a sua maturidade e só os exige anestesia, com excepção de alguns à procriação por meio da tecnologia não
ovócitos maduros são fecundáveis, pelo casos(1). Após descansar 15 minutos a seria nada de inumano. Sustenta-se, en-
que apenas estes são injectados. mulher pode regressar a casa e fica em fim, que o Criador teria dado ao homem
repouso 3 a 4 dias e nos dias seguintes a capacidade de dominar não apenas a
4. Diagnóstico genético pré-im- (aproximadamente mais 10) faz uma vida natureza exterior, mas também a própria,
plantatório diária reduzida. Este período de espera do mesmo modo como se faz com muitos
O Diagnóstico genético pré-implan- é muitas vezes a parte emocional mais processos e tecnologias médicas(2). Sob
tário (DGPI) consiste na biópsia de 1 ou difícil de todo o tratamento. Depois deste, o mesmo ponto de vista, pela Instrução
2 blastómeros, seguida do isolamento e a mulher continua a colocar, por via vagi- “Donum Vitae” a masturbação, mediante
análise do material genético desses blas- nal, os comprimidos de progesterona, de a qual normalmente se procura obter o
tómeros, por técnicas de genética molecu- 8 em 8 horas, para ajudar a sustentar o esperma, é um outro sinal dessa disso-
lar. Apenas os embriões sem doença são revestimento uterino e a tomar 1 compri- ciação; mesmo quando é praticado com
depois transferidos para a mulher ao 5º dia mido de ácido fólico em jejum. Durante vistas à procriação, o gesto continua pri-
pós ICSI. Para se fazer DGPI é obrigatório este período não se aconselha a terem vado de seu significado unitivo: falta-lhe
utilizar a técnica de ICSI para se poder ter relações sexuais. Aproximadamente 13 a relação sexual exigida na ordem moral,
a certeza de que existe fecundação, sen- dias após a transferência de embriões, a que realiza num contexto de verdadeiro
do o ideal dispor de 16 ovócitos por ciclo, a mulher regressa ao hospital para efec- amor o sentido total da doação mútua e
de modo a haver um número suficiente de tuar o teste de gravidez, doseamento de da procriação humana(2).
embriões para biopsar e depois embriões βHCG plasmático. Pondo de parte a atitude da Igreja
normais para transferir(1). Em alguns cen- O restante tratamento é efectuado Católica, não se vê grandes inconvenien-
tros não se utiliza a técnica de crio-conser- da mesma forma que para o Coito pro- tes na fertilização homóloga. O ponto
vação de embriões, pois além de ser uma gramado. No entanto, se o resultado for principal que a técnica deve ter em conta,
técnica muito dispendiosa, não apresenta negativo ou se a mulher menstruou antes é o bem do filho, o que implica respeito
grande sucesso - os embriões crio-des- da data prevista, o casal pode querer ten- pela sua vida desde o início, a preocu-
congelados apresentam uma grande taxa tar novamente, mas deverá esperar no pação pela sua saúde física e psíquica,
de deterioração. No entanto, mesmo que mínimo 3 meses, para poder “descansar” a existência de um contexto familiar que
se fizesse, os embriões excedentários os ovários. o acolha e o desenvolva adequadamen-
procedentes de DGPI não poderiam ser te(3). Levantam-se então, outros tipos de
crio-preservados porque não suportam o PRINCÍPIOS BIOÉTICOS questões bioéticas:1-O que fazer com
processo de congelação/descongelação Na maioria dos hospitais públicos os embriões excedentários? 2-Quais as
devido à micro-cirurgia(1). Pode-se utilizar só se fazem tratamentos a casais unidos implicações eugénicas associadas ao
o DGPI em várias situações:1-Doenças maritalmente e heterossexuais, não se DGPI? 3-Será lícito iniciar tratamentos

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de infertilidade a clientes com problemas congelados, comprometendo-se os be- com mais facilidade depois de desconge-
psicológicos? 4-Será lícito o bem da mu- neficiários a utilizá-los em novo processo lados? Não seria isso feito, só para des-
lher versus o bem do futuro filho? 5-Será de transferência embrionária no prazo cansar a nossa consciência moral? Após,
lícito a criação de falsas expectativas? 6- de três anos”. “Decorrido o prazo de três informação adequada comprometer o
Têm ou não as clientes direitos iguais em anos, podem os embriões ser destinados casal a utilizá-los posteriormente noutra
relação a outras? a outro casal cujas indicações médicas transferência embrionária? E se o casal
de esterilidade o aconselhem, sendo os não estiver mais junto ao fim dos três
1. O que fazer com os embriões factos determinantes objecto de registo anos que se queriam estipular? Doá-los,
excedentários? justificativo”. “O destino dos embriões estaria o casal disposto a isso? Não lhes
Para reflectir sobre isto, temos que previsto no número anterior só pode ve- traria vários conflitos de ordem psicoló-
nos debruçar sobre o estatuto do em- rificar-se mediante o consentimento dos gica e outros? Limitar a fertilização dos
brião. Há correntes que defendem que projectados beneficiários, ou do que seja ovócitos só a um máximo de cinco? Não
existe embrião a partir das 8 semanas sobrevivo, aplicando-se, com as neces- seria isso limitar uma maior probabilida-
de gravidez, feto a partir das 9 semanas sárias adaptações, o disposto do nº 1 de de gravidez? E o aspecto monetário?
de gravidez(3) e pré-embrião a partir do do artigo 11º”, ou seja “ Os beneficiários Não estaríamos a obrigar o casal a efec-
aparecimento da linha primitiva(4). O que devem prestar o seu consentimento livre, tuar mais ciclos, sem necessidade?Estas
não podemos contestar, é que estamos esclarecido, de forma expressa e por es- e muitas outras questões se colocam e
na presença de um ser vivo da espécie crito, num só documento, perante o mé- todas ficam sem resposta, pois todas di-
humana. dico responsável”(5). Por último, “Na falta ferem da consciência moral de cada um.
Dada a imprevisível variabilidade da de consentimento, ou de acordo entre
percentagem de ovócitos que são fertili- os projectados beneficiários, a decisão 2. Quais as implicações eugéni-
zados e da percentagem de embriões re- cabe ao tribunal competente em matéria cas associadas ao DGPI?
sultantes que são viáveis e se implantam de família da área da sede do estabeleci- A técnica de DGPI pressupõe a cria-
no útero, as informações médicas que a mento onde tiver sido realizada a fecun- ção de um maior número de embriões,
Comissão Nacional de Ética para as Ci- dação”(5). que nos leva a reflectir em todas as ques-
ências da Vida (CNEV) conseguiu obter Sobre a apreciação deste Decreto tões colocadas no ponto 2.1.
eram unânimes em afirmar que para o nº 415/VII, o Sr. Presidente da Assem- Uma simples definição de eugenis-
êxito da procriação, era impossível não bleia da República, Ex.mo Sr. Dr. Jorge mo poderá ser “qualquer projecto que
se ser confrontado, por vezes, com um Sampaio disse “… várias das soluções vise influenciar a transmissão dos carac-
número de embriões superior àqueles 3 nele preconizadas parecem-me dema- teres hereditários a fim de melhorar a es-
que a boa prática clínica permite transferir, siado controversas e conflituais para pécie humana”(5).
no mesmo ciclo, para o útero da mulher. permitirem a prossecução adequada, Como o explicado anteriormente, é
Considerando, assim, os embriões exce- nos termos referidos, dos objectivos de necessário manipular o embrião para se
dentários como inevitáveis, o Projecto 87 garantia e harmonização de todos os proceder ao DGPI. Mas está igualmente
limitou-se a prescrever que o número de valores, direitos e interesses dignos de em causa a sua destruição, no caso de
embriões resultantes da fertilização in vi- protecção….Assim, … decidi não pro- se tratar de um embrião portador de uma
tro deve ser estritamente limitado ao que mulgar como lei o Decreto nº 415/VII da doença grave. A aceitação desta teoria do
se entenda mais conveniente, segundo o Assembleia da República, solicitando, ponto de vista ético, passa pela obtenção
estado actual da ciência, para o êxito da pelas razões apresentadas, uma nova de um consenso social no que respeita
procriação(4). De acordo com o Decreto apreciação do diploma”(5). ao estatuto a atribuir ao embrião humano.
nº 415/VII, de 17 de Junho de 1999, que Neste Portugal sem lei, tudo é pos- Um argumento que tem sido invocado a
regulava as técnicas de procriação me- sível. Os limites da Reprodução Medica- favor da experimentação embrionária é a
dicamente assistida, artigo 21º “todos os mente Assistida (RMA) estão na cons- ausência de individualização do embrião
embriões resultantes da fecundação in vi- ciência de cada médico(6). Em muitos pré-implatatório. Segundo esta corrente
tro devem ser transferidos para o útero, hospitais públicos não se congelam em- de opinião, até ao aparecimento do sul-
não sendo permitida a sua destruição”. briões, como já foi referido anteriormente, co primitivo não existe verdadeiramente
“A transferência de todos os embriões só então o que se faz aos embriões exce- identidade biológica e, portanto, também
não será efectuada se a tal se opuserem dentários? NADA! Os embriões com con- não deve existir identidade nos planos
razões ponderosas, relacionadas com o dições de serem transferidos, no máximo ético e jurídico(4). Deve referir-se, porém,
risco de sobrevida dos mesmos ou com de três, são-o para o útero materno, os e na sequência da aceitação mais ou me-
a impraticabilidade da sua transferência outros deixam-se em cultura prolongada nos generalizada da interrupção de gra-
para o organismo materno no ciclo ová- até pararem de crescer e se deteriorarem. videz por deficiência genética do embrião
rico em que tiverem origem”. “Os embri- Será legítimo deixar morrer um ser vivo? ou do feto, que a destruição de um em-
ões que nos termos do número anterior, Não! Mas o que lhes fazer? Congelá-los, brião in vitro, portador de grave deficiên-
não tiverem sido transferidos devem ser mesmo sabendo que eles se deterioram cia, é geralmente mais bem tolerada do

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que o abortamento. Pode afirmar-se, no parte das vezes por Síndrome de Hi- 6. As clientes têm ou não direitos
entanto, que o bom senso e a prudência per estimulação Ovárica (SHO). De- iguais entre si?
têm prevalecido na comunidade científi- pendendo da gravidade do SHO, pode Deveriam ter porque a infertilidade
ca, dado existir consenso de que a inves- ter que se cancelar a transferência de é uma doença e, como tal, todos os cida-
tigação em embriões humanos deve ter embriões; prevalecendo o princípio da dãos por ela afectados têm o direito de
como objectivo principal o diagnóstico e beneficência em relação à mulher. O ser devidamente tratados. É aqui que o
a prevenção de doenças graves(4). futuro filho, neste caso é aqui passa- princípio da justiça começa a falhar. Os
Não tenho muito mais a acrescen- do para um segundo plano. O que, na casais mais desfavorecidos monetaria-
tar em relação às reflexões anteriores nossa consciência moral, não nos trás mente começam aqui a ter problemas.
a não ser o seguinte: Se tivéssemos a grandes conflitos de valores e ordem Este tipo de tratamentos mesmo a nível
infelicidade, ou felicidade (dependente moral. público são muito dispendiosos - cada
do ponto de vista, pois já me deparei Nenhum dos casais quis pôr em casal gasta aproximadamente por ci-
com casais que na dificuldade em ob- risco a vida da mulher, ao fazer uma clo 1000 €, o que não está ao alcance
ter um filho, aceitaram de bom grado escolha tão conflituosa, no entanto, nós de toda a população. A legislação devia
um filho deficiente) de ter um filho com profissionais também não podíamos começar por aqui, antes de se dedicar a
uma grave deficiência, iríamos nós re- deixar isso acontecer. No artigo 82º do outras questões do foro ético. É inadmis-
jeitá-lo? Poríamos nós fim à vida dele? Estatuto da Ordem dos Enfermeiros(7)., sível que os medicamentos para o trata-
Com certeza que não! Acho no entanto, na alínea a) diz “Atribuir à vida de qual- mento da infertilidade sejam tão pouco
lícito, a vontade de um casal evitar o quer pessoa igual valor, pelo que prote- comparticipados. Sim! Os 1000 € que
nascimento de um filho com uma grave ge e defende a vida humana em todas gastam são praticamente todo em medi-
deficiência. as circunstâncias”. Não podemos pôr camentos.
em risco a vida da mulher, para ir de Quando somos confrontados com
3. Será lícito iniciar tratamentos encontro ao princípio da não-malefici- estas situações, nós, os profissionais de
de infertilidade a doentes com ência em relação ao embrião, pois nem saúde ligados à Medicina da Reprodu-
problemas psicológicos? sequer sabemos se o embrião se vai ção, tentamos conseguir alguma medi-
O problema começa pela falta de desenvolver. cação, quer através de laboratórios, quer
apoio psicológico por um Psicólogo ou através de outras clientes que já não pre-
Psiquiatra, nalguns hospitais. O apoio é 5. A criação de falsas expectati- cisam deles, quer mesmo, através da As-
dado pelos médicos e pelas enfermeiras. vas será lícita? sistente Social. Mas, por muita boa von-
Talvez pelas clientes se sentirem mais Não! Então porque assim acon- tade que se tenha, nem sempre somos
próximas das enfermeiras, procuram tece? Talvez por não quererem desistir bem sucedidos. Segundo o Estatuto da
junto delas obter o apoio psicológico ne- facilmente ao primeiro obstáculo, tanto Ordem dos Enfermeiros(7)., no artigo 81º
cessitado, o qual nunca é negado, mas o profissional como o cliente, se deixam na alínea a) “O enfermeiro deve cuidar da
pode ser descurado, devido à quantidade levar pelas falsas esperanças. Num ca- pessoa sem qualquer discriminação eco-
trabalho existente na altura. Isto não de- sal em que o homem sofre de azoosper- nómica, social, política, ética, ideológica
via acontecer, se tivéssemos o apoio de mia secretora e que, após biopsia testi- ou religiosa”.
profissionais especializados nesta área, cular, não revela nenhum espermatozói- Aplicando o princípio da justiça, a
tendo em vista o princípio da beneficên- de (apenas espermatídeos), dificilmente partir do momento em que independen-
cia em relação à cliente. poderá contemplar uma gravidez. No temente de quem é a cliente, indepen-
Tendo em vista o mesmo princípio, entanto, já se conseguiram os primeiros dentemente daquilo que faz profissional-
não se deveriam iniciar ciclos de trata- bebés a nível mundial com espermatí- mente, todo e qualquer tratamento que
mento para a infertilidade, sem ter a apro- deos redondos (Paris, 1994), com es- a cliente necessite para promover a sua
vação de um Psicólogo ou Psiquiatra. permatídeos em alongamento (Alicante, saúde, lhe serão prestados.
Mas, iniciam-se! Prevalecendo a vontade 1997) e com espermatídeos alongados
do casal ao bem-estar da mulher, ou seja, (Porto, 1997). Esta descoberta consti-
o princípio da autonomia prevalece sobre tuiu uma nova revolução tecnológica(1). BIOETHICS IN MEDICALLY ASSISTED
o princípio da beneficência em relação à Como diz o ditado popular “A esperança REPRODUCTION
mulher. Ouvindo-se e fazendo-se juízos é a última a morrer”, o que não se justifi-
de valor sobre esta ou aquela cliente que, ca é que o casal não esteja plenamente ABSTRACT
supostamente, necessita de apoio. informado do seu caso. No artigo 84º do The World Health Organisation
Estatuto da Ordem dos Enfermeiros(7)., (WHO) considers that infertility is a dis-
4. Será lícito o bem da mulher ver- alínea b) “Respeitar, defender e promo- ease that affects 15-20% of couples of
sus o bem do futuro filho? ver o direito da pessoa ao consentimen- reproductive age, and has declared that
Muitas vezes nos deparamos com to informado”. everyone affected has the right to appro-
a saúde da mulher debilitada, a maior priate treatment. The treatment of infer-

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tility is increasingly important but as the Sousa, ao meu marido Nicolaas Coelho 4. Archer L (et al) – Novos Desafios à
science involved in this area develops e a todos, que de um modo ou de outro Bioética. Porto: Porto Editora, 2001,
so will the associated ethical and moral me apoiaram, pela simpatia, colabora- p 93-127; 142-147.
problems increase. To reflect on bioethi- ção, disponibilidade e apoio, um grande 5. Nunes R; Melo H – Genética e Repro-
cal principles in Assisted Reproduction OBRIGADO! dução Humana. Coimbra: Ed. Gráfica
Techniques is healthy, not always does de Coimbra, 2000, p 15-77, 260-272.
one think before acting, many times work Nascer e Crescer 2006; 15(1): 28-32 6. Silva PM – Sem lei tudo é possível. No-
is mechanical and does not question any tícias Magazine, (Nov. 2004), p 24-40.
subject. The objective of this article is to 7. ORDEM DOS ENFERMEIROS – Có-
stimulate the attitude “stop first, do later” BIBLIOGRAFIA digo Deontológico do Enfermeiro.
by showing cases similar to those we Lisboa: Ed. Ordem dos Enfermeiros,
may meet on a daily basis, while keeping 1. Sousa M – Apontamentos gentilmen- 2003, p. 70-106; 152-159.
a clear mind. te cedidos pelo Prof. Dr. Mário Sousa,
Key-words: Bioethics; Reproduc- responsável de Investigação em Ge-
tion; Infertility; Moral nética da Reprodução. Porto:(s.e.), CORRESPONDÊNCIA
(s.d.), p.1-24. C. Coelho
AGRADECIMENTOS 2. Sgreccia E – Manual de Bioética. 2ª R. Álvaro Moutinho das Neves, 63-1ºDto
Ao Prof. Dr. Alberto Barros, à Prof. Ed. São Paulo, Brasil: Ed. Loyola, 4475-805 Silva Escura - MAIA
Ana Paula França, ao Dr. David Steven- 2002, p. 308-434. 229489910 / 936598541
son e sua esposa Dra. Natália Teles, à 3. Elizari FJ – Questões de Bioética. dangrus@sapo.pt
Dra. Joaquina Silva, à colega e amiga Enf. Porto: Ed. Perpétuo Socorro, 1996, p
Maria José Mendes, ao Prof. Dr. Mário de 39-71.

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