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QUEREMOS UMA SOCIEDADE COM LEIS ESTATAIS OU COM LEIS PRIVADAS?

HANS-HERMANN HOPPE

No que diz respeito ao propósito de evitar conflitos, a instituição da propriedade privada, definitivamente, não é
uma convenção, porque nenhuma alternativa a ela existe. Apenas a propriedade privada (exclusiva) faz com que
todos aqueles conflitos que caso contrário seriam inevitáveis sejam evitados.
— Hans-Hermann Hoppe —

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Este texto é a transcrição em português de uma palestra proferida no II Seminário de Escola Austríaca, promovido pelo
IMB em abril de 2011, na cidade de Porto Alegre, RS. Daí o seu tom coloquial.

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Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer ao Helio pelo convite e agradecer a todos vocês por
terem vindo a esta conferência, por estarem ao meu lado por algum tempo na esperança de ouvir algo
interessante e, ao menos para alguns, algo novo.
Deixem-me começar falando rapidamente sobre aquilo a que me referi como sendo o problema
da ordem social.
Imaginem Robinson Crusoé sozinho em sua ilha. Robinson Crusoé pode fazer aquilo que
desejar em sua ilha. O problema da cooperação social — o problema da conduta humana ordenada —
simplesmente não surge para ele. Para que esse problema surja, é necessário que uma segunda pessoa
apareça no cenário; então Sexta-Feira aparece.
Imaginem agora que essa ilha é como o Jardim do Éden. Existe uma superabundância de bens.
Tudo está disponível de graça, assim como o ar que respiramos está normalmente disponível de graça.
Enquanto essa situação perdurar, obviamente nenhum tipo de conflito pode surgir entre Robinson
Crusoé e Sexta-Feira, porque, seja lá o que for que uma pessoa faça, ela nunca estará tirando algo da
outra; a oferta atual de bens para ela será tão grande quanto era inicialmente, e há tantos bens
disponíveis para Sexta-Feira como havia antes. Um conflito entre Crusoé e Sexta-Feira só pode surgir à
medida que os bens sejam escassos, à medida que os bens não sejam superabundantes. No Jardim do
Éden, existem apenas duas coisas que são escassas; e apenas dois tipos de conflito podem surgir. O que
é escasso, mesmo no Jardim do Éden, onde há superabundância de todo o restante, o que é escasso no
Jardim do Éden, por um lado, é o meu próprio corpo físico (eu só possuo um corpo), bem como o
local físico no qual o meu corpo se localiza. Se Robinson Crusoé deseja fazer algo com o corpo de
Sexta-Feira — ou se Sexta-Feira quiser fazer algo com o corpo de Crusoé —, se Robinson Crusoé
quiser ficar exatamente no mesmo lugar onde Sexta-Feira estiver, então surge um conflito porque existe
uma escassez de bens.
Portanto, até mesmo no Jardim do Éden também seriam necessárias regras para a cooperação
humana pacífica — regras para a cooperação humana ordenada —, de modo que se evitassem os tipos
de conflito que eu descrevi. E no mundo real, que é caracterizado pela escassez geral, onde tudo é
escasso, precisaríamos de regras que evitassem o surgimento de conflitos relacionados a todo tipo de
bens escassos.
Na história do pensamento político e social, todos os tipos de maneiras como solucionamos
esse problema de forma pacífica, vis-à-vis os bens escassos, constituem aquilo que eu chamo de problema
da ordem social. Na história do pensamento político e social, todo tipo de proposta sobre como
resolvemos esse problema da ordem social foi feito; e, já que diversas propostas foram feitas, muitas
pessoas pensam que não há uma solução única e correta para o problema da ordem social. Mas eu
quero argumentar que sim, que existe uma solução correta para o problema da ordem social. Existe,
sim, uma resposta exata e correta para esta pergunta: “Como evitamos conflitos interpessoais, dado que
existe escassez de bens?”.
Deixem-me apenas rapidamente esboçar qual é a solução correta, porque trata-se de uma
solução que é conhecida há muito tempo; ela foi refinada ao longo dos séculos, mas a solução é bem
simples, como vocês irão rapidamente perceber.
Deixem-me primeiro formular a solução para o Jardim do Éden, para o paraíso. Lá, precisamos
apenas de uma regra: “Todos podem fazer o que quiserem, podem se movimentar onde quiserem,
podem ocupar qualquer lugar que quiserem, contanto que nenhum outro corpo esteja no mesmo
lugar.” Formulando de maneira um pouco diferente: “Nós podemos movimentar e posicionar o nosso
corpo para onde quisermos, contanto que ninguém mais esteja ocupando aquele determinado local.”
Fora do Jardim do Éden — ou seja, no mundo real de escassez geral —, há quatro regras inter-
relacionadas que as pessoas devem seguir para evitar todo tipo de conflito. A primeira é: “Cada pessoa
é dona exclusiva do seu corpo.” Eu posso fazer com o meu corpo aquilo que eu quiser; ninguém tem o
direito de interferir; e, se eu quiser fazer algo com o corpo de outra pessoa, eu preciso da permissão
dela. Essa é a primeira regra.
Podemos intuitivamente observar de prontidão que não existem alternativas. Quem deveria ser
o dono do meu corpo, exceto eu? Quem deveria ser o dono do corpo de Robinson Crusoé, exceto
Robinson Crusoé? Sexta-Feira deveria ser o dono dele? Ou deveriam Sexta-Feira e Crusoé,
conjuntamente, ser donos dos seus corpos? Aí vocês imediatamente veem que isso não evita conflitos;
que isso causa conflitos, que isso torna os conflitos permanentes.
A segunda regra é: “Cada pessoa é dona exclusiva de todos os bens e recursos naturais que
constatou como sendo escassos e apropriou antes dos demais.” Também podemos enunciar essa regra
como sendo: “Aquele que usa algo que era previamente sem dono pela primeira vez torna-se o dono
dessa coisa.” Novamente, as alternativas são sobre quem deveria ser o dono. Deveria sê-lo alguém que
não foi o primeiro a fazer algo com o bem? O segundo a fazê-lo? Ou então ambos, o primeiro e o
segundo? Imediatamente, percebemos de novo que as regras alternativas não evitariam conflitos, mas
sim os tornariam permanentes.
A terceira e a quarta regras basicamente decorrem da primeira e da segunda. A terceira é: “Toda
pessoa que, utilizando o seu corpo e as coisas que previamente apropriou originalmente, produz algo
novo torna-se dona daquilo que produziu, contanto que não danifique fisicamente a propriedade de
terceiros ao produzir aquilo que produziu.” E a quarta regra é: “Uma vez que um bem tenha sido
apropriado originalmente ou tenha sido produzido, a propriedade sobre esse bem só pode ser obtida
através de uma transferência voluntária de um dono prévio para um dono posterior.” Essas são todas
as regras; e, se as seguíssemos todas, todos os conflitos poderiam ser evitados, e teríamos paz eterna,
por assim dizer. A cooperação sempre se daria de forma serena. Não é necessário aqui dar uma
justificativa mais detalhada dessas regras, eu já o fiz em diversos trabalhos, mas eu acredito que vocês
intuitivamente sentem que, em nosso cotidiano, quase sempre reconhecemos essas regras, agindo de
acordo com elas de alguma maneira.
Agora, deixem-me enfatizar uma coisa. Contrariamente à frequente alegação de que a instituição
da propriedade privada — conforme eu antes a descrevi, propriedade sobre o seu corpo, propriedade
sobre coisas previamente sem dono (e assim por diante) —, contrariamente a essa alegação
frequentemente ouvida de que a propriedade privada é apenas uma convenção, eu quero enfatizar que
isso, definitivamente, está errado. Uma convenção serve a um propósito, e ela é caracterizada pelo fato de
que existem alternativas. Por exemplo, o alfabeto latino que usamos serve ao propósito da comunicação
escrita, e existem alternativas a ele. Existe, por exemplo, o alfabeto cirílico, que pode ser usado em vez
do alfabeto latino. No entanto, qual é o propósito de normas, qual é o propósito de regras? E a
resposta é que, se não houvesse conflitos interpessoais, nós não precisaríamos de regra alguma. Nós
apenas precisamos de regras, nós apenas precisamos de normas sociais, porque existem conflitos neste
mundo. O propósito de normas ou regras é evitar conflitos inevitáveis caso contrário. Uma norma que
gere conflito, que crie conflitos é contrária ao próprio propósito de uma norma. Ou, podemos dizer, uma regra
que crie conflitos é uma perversão, pois não faz aquilo que uma regra supostamente deveria fazer, isto é,
ajudar a evitar conflitos.
No que diz respeito ao propósito de evitar conflitos, a instituição da propriedade privada,
definitivamente, não é uma convenção, porque nenhuma alternativa a ela existe. Apenas a propriedade
privada (exclusiva) faz com que todos aqueles conflitos que caso contrário seriam inevitáveis sejam
evitados. E apenas o princípio de aquisição de propriedade através de atos de apropriação original,
apropriando algo que até então não tinha dono, torna possível que conflitos sejam evitados desde o
início da humanidade, por assim dizer, até o seu final, porque o primeiro proprietário de algo não
envolveu ninguém em qualquer tipo de conflito; ele foi o primeiro, ninguém mais estava lá. Portanto, a
apropriação original de algo como propriedade privada é uma forma isenta de conflitos para
transformar algo que até então era externo em propriedade privada.
O próximo problema que eu quero discutir agora é o problema do cumprimento da ordem
social e da proteção dos direitos de propriedade. Mesmo que as pessoas reconheçam a validade das
regras que eu expliquei, mesmo que saibamos como evitar qualquer conflito, é possível que algumas
pessoas simplesmente não se importem. Você pode dizer: “Eu sei evitar conflitos, mas eu não quero
evitar conflitos, eu me beneficio deles, eu espero obter benefícios ao me envolver em conflitos com
outras pessoas.” Logo, o que qualquer sociedade também necessita é de instituições e mecanismos que
façam essas regras serem cumpridas, que lidem com transgressores, com infratores que simplesmente
não se comportam de maneira civilizada.
Como cumprimos essa tarefa? Como lidamos com assassinos, ladrões e estupradores, todos os
criminosos tradicionais com os quais estamos familiarizados? Quem certificará que essas pessoas serão
contidas? A resposta padrão que é dada para essa pergunta, a resposta que também é dada por Ludwig
von Mises para essa pergunta, é que essa é a tarefa do estado. A aplicação de lei e ordem é dever primário
do estado. No entanto, se essa resposta está certa ou não depende de como definimos “estado”. E eu
lhes darei a definição padrão de estado, não uma definição maluca que eu acabei de inventar, mas uma
definição que você pode encontrar em qualquer livro-texto.
O que é o estado? A definição é que o estado é uma agência caracterizada por dois atributos
únicos. Primeiro, o estado é uma agência que exerce um monopólio territorial de decisões finais. Em todos os
casos onde há conflito, o estado é a instituição que decide quem está certo e quem está errado. E não
há apelação além do estado. Ninguém está acima do estado — e as implicações disso ficarão claras
conforme eu prosseguir. Isso também significa que o estado é o árbitro final em qualquer conflito que
envolva o próprio estado. Se o estado ou os agentes do estado estão envolvidos em conflitos com
outras pessoas, o estado ou os agentes do estado decidem quem está certo e quem está errado até
mesmo nesses tipos de conflito. A segunda característica única do estado é que ele é um monopolista
territorial da tributação. Ele pode determinar unilateralmente a quantia que as pessoas devem lhe pagar
para que desempenhe essa função de ser o árbitro final em qualquer caso de conflito.
Agora, por mais difundida que seja essa visão sobre a necessidade da instituição do estado como
fornecedor de lei e ordem, ela claramente contradiz elementares princípios morais e leis econômicas.
Deixem-me explicar brevemente.
Entre os economistas e filósofos, há duas proposições quase que universalmente aceitas. A
primeira é a de que todo monopólio é ruim do ponto de vista dos consumidores, não do ponto de vista dos produtores.
Todo produtor adora ser um monopolista. No entanto, do ponto de vista dos consumidores,
monopólios são ruins pelas seguintes razões. Monopólios são definidos, de acordo com as definições
clássicas, como uma firma que possui privilégios exclusivos. Eu, a firma “A”, possuo o direito exclusivo
de produzir certo produto. Ninguém, exceto eu, está autorizado a produzir esse tipo de produto ou
serviço. A razão por que isso é ruim do ponto de vista dos consumidores é fácil de prever: é ruim do
ponto de vista dos consumidores porque, estando protegidos de possíveis concorrentes, os preços
pelos quais esse bem ou esse serviço será vendido ficarão acima daqueles que ocorreriam caso
contrário, e a qualidade desse bem ou desse serviço será inferior do que seria caso contrário.
A segunda proposição com a qual quase todos os filósofos e economistas concordam é a de que
a produção de lei e ordem — isto é, a aplicação das leis ou o fornecimento de segurança — é a função
primária do estado, e o estado é definido, como já expliquei, como um monopolista territorial de decisões
finais.
Obviamente, ambas as proposições são incompatíveis. Elas são contraditórias. Por um lado,
monopólios são ruins; porém, por outro lado, para a produção de segurança, precisamos de um
monopolista, precisamos do estado. A maioria dos filósofos e economistas sequer se preocupa com
essa contradição; eles sequer parecem estar cientes dela. E, quando eles são alertados sobre ela — ou
quando, de alguma forma, reconhecem que existe uma contradição entre ambas as proposições —, a
rota usual de fuga é dizer que há algo errado com a proposição de que todo monopólio é ruim, e assim
eles ficam com a proposição de que lei e ordem devem ser produzidas por um monopolista. Eles
descartam a primeira proposição, mas não a segunda.
Ao invés, eu desejo argumentar que é justamente o contrário. A proposição sobre monopólios
serem ruins é verdadeira, e a proposição sobre o estado ter de ser um monopolista para fornecer lei e
ordem é falsa. Sendo um monopolista territorial de decisões finais e aplicação de leis, o estado não é
como qualquer outro monopolista, como um monopolista de leite ou de carro, que produz leite ou
carros a preços demasiadamente altos e com qualidade demasiadamente baixa. Em nítido contraste com
os demais monopolistas, o estado não é apenas uma instituição que produz bens inferiores, bens ruins,
bens de má qualidade, mas uma instituição que na realidade produz “males”.  Ou seja, bens que na
verdade não são “bens”, mas sim “males”. De fato, o estado deve num primeiro momento produzir
“males”, especialmente sob a forma de tributação, a qual, obviamente, não é um bem — eu não estou
implorando: “Por favor, me faça algo bom e cobre impostos de mim.” Isso, obviamente, não é um
bem. Portanto, o estado, para que possa fazer qualquer coisa boa ou algo que se pareça com um bem,
deve primeiro fazer algo ruim para depois fazer algo bom.
Agora, se uma agência é o árbitro final em qualquer caso de conflito, ela também é, conforme já
indiquei, árbitro em todos os casos envolvendo a si mesma (o próprio estado). Um monopolista de
decisões finais, então, não irá apenas impedir conflitos e arbitrá-los de forma que sejam resolvidos. Se
você pode decidir quem está certo e quem está errado até mesmo nos casos envolvendo você mesmo,
então você irá provocar e causar conflitos — e assim, é claro, irá decidir esses conflitos em seu próprio
favor. Para usar um exemplo drástico: eu o acertarei na cabeça, e você reclamará, “por que você me
acertou na cabeça?”, e aí eu direi, “eu sou o juiz neste caso; eu digo que você me olhou de uma maneira
muito estranha; e eu senti que precisava acertá-lo na cabeça, e agora você precisa me pagar por isso,
porque eu soltei esse veredicto extremamente justo de que você merecia ser acertado na cabeça por
mim”.
Também deve estar claro que constituições ou supremos tribunais não mudam nada a esse
respeito. Isso porque constituições e supremos tribunais são estatais. As constituições e os julgados dos
supremos tribunais precisam ser interpretados. Mas interpretados por quem? São interpretados por


Na palestra em inglês, “bads”.
funcionários da mesma organização que causou o conflito inicial, e é claramente previsível que eles, em
grande parte, decidirão em favor do estado, uma vez que eles próprios são funcionários dessa agência.
O que também pode ser previsto é que, ao invés de reconhecer direitos de propriedade e leis que são
válidas eterna e universalmente, os estados substituirão essas leis imutáveis por uma legislação: eles irão
fabricar a lei, eles irão fazer leis dizendo “é certo eu acertá-lo na cabeça de vez em quando”.
Além disso, como árbitro final, o estado também é um monopolista da tributação, isto é, ele
pode determinar unilateralmente, sem o consentimento daqueles que são por ele afetados, quanto os
seus súditos devem pagar por esse serviço que ele supostamente fornece. Em outras palavras, o estado
é, por definição, um protetor de propriedades expropriador. Vocês podem perceber que isso é obviamente
uma contradição em termos. E então, motivado como qualquer outro pela ideia de que, “quanto mais
eu puder gastar, melhor eu estarei”, de que, “quanto menos eu precisar trabalhar, quanto menos eu
precisar batalhar por algo, melhor eu também estarei”, é previsível que a quantidade de tributos irá
continuamente crescer e que a qualidade da proteção oferecida — a proteção da vida e da propriedade
pelo estado — irá continuamente cair. Para o estado, o melhor é maximizar os gastos naquilo que se
chama de proteção da vida e da propriedade e, na realidade, minimizar a qualidade da produção de
proteção da vida e da propriedade.
Eu quero acrescentar que, além desses erros relacionados ao estatismo em geral, que consistem
na ideia de que precisamos de um estado para proteger as nossas vidas e as nossas propriedades,
existem erros adicionais quando pensamos, em particular, na ideia de um estado democrático. A forma
tradicional de estado, pré-moderna, é a forma de uma monarquia absoluta. As monarquias eram
consideradas problemáticas, principalmente na visão dos liberais clássicos, porque se baseiam em
privilégios. O rei possui privilégios quando comparado com os cidadãos comuns. Monarquias são
incompatíveis com a ideia de igualdade perante a lei. O que propunham os oponentes democráticos do
estado monárquico era que a entrada ao aparato estatal deveria estar aberta para qualquer um, e isso,
supostamente, tornaria todos iguais perante a lei — qualquer um agora poderia se tornar rei, por assim
dizer.
Todavia, essa igualdade democrática, na qual qualquer um tem o potencial de se tornar rei, é
algo completamente diferente da ideia de uma lei universal que se aplica a todos da mesma forma. O
criticado dualismo entre uma lei superior para os reis e uma lei inferior para as pessoas comuns, por
assim dizer, existe sob condições democráticas assim como antes. A única diferença é que agora os
privilégios não são mais privilégios pessoais — privilégios da nobreza ou do rei —, são privilégios
funcionais, isto é, nas democracias existe uma diferença entre aquilo que chamamos de direito “privado”,
que cobre as relações entre os cidadãos privados, e o direito “público”, que protege os funcionários do
estado e regula o que os funcionários do estado podem fazer. Há uma diferença entre o direito
“privado” e o direito “público”, com o direito “público” num patamar superior, por assim dizer. E
numa democracia, se você é um funcionário do estado, um oficial do estado, você pode fazer coisas
que não poderia fazer se fosse um cidadão privado, assim como um rei podia fazer coisas que um
cidadão comum não podia.
Como um cidadão privado, eu não posso pegar dinheiro da sua carteira, pois isso seria
considerado roubo. Entretanto, se eu o fizer como um funcionário do estado, isso é chamado de
tributação. Se, como um cidadão privado, eu roubo dinheiro de você e faço algo que beneficia outra
pessoa, dando-o para a pessoa ao meu lado, isso seria chamado de roubo e desaparecimento de bens. Se você
o fizer como um funcionário público, isso é chamado de política social. Se eu, como um cidadão privado,
sequestrar você e forçá-lo a trabalhar para mim, isso seria considerado escravidão, e eu seria punido por
isso. Por outro lado, se eu sou um funcionário público e obrigo você a servir no exército por dois anos
— ou algo do tipo —, diz-se que eu estou convocando você para prestar serviços públicos. Portanto,
podemos perceber que a diferença entre os dois tipos de leis existe sob a democracia assim como
existia sob a monarquia.
As coisas, porém, são ainda piores. Vejamos o que acontece quando substituímos reis por
chefes democráticos. O rei, por assim dizer, considera o país como sendo propriedade sua. Ele poderia
vendê-lo, poderia transferi-lo como herança para a próxima geração (e assim por diante). Numa
democracia, você substitui alguém que considerava o país como sendo a sua propriedade pessoal por
alguém que é um zelador temporário do país por um período definido. Ele não pode vender o país e
ficar com o dinheiro, mas ele pode explorar o país no período em que está no comando. Será que isso
faz diferença? Isso faz uma tremenda diferença. Imagine que eu lhe dou uma casa e digo que você é o
dono da casa. Você pode vendê-la, você pode ver o que acontece com o valor de mercado da casa se
você fizer isso e aquilo com ela, você pode transferi-la na forma de herança. Você, portanto, irá se
esforçar para preservar o valor de mercado da propriedade. Por outro lado, supondo a mesma casa, eu
lhe digo que você não pode vendê-la, que você não pode transferi-la como herança, mas que por 4 ou 8
anos você pode usá-la e tentar ganhar o máximo de dinheiro possível com ela. O que você irá fazer é
consumir capital. Mesmo que depois a casa fique em ruínas, você teve 4 ou 8 anos gloriosos no qual
conseguiu obter todo tipo de renda usando essa casa.
Portanto, a diferença entre um rei e um zelador democrático é que os reis tendem a possuir uma
perspectiva mais de longo prazo e tendem a preservar o valor da sua propriedade porque a consideram
como sua, ao passo em que governantes democráticos tentam roubar o país o mais rapidamente
possível porque sabem que depois de 4 ou 8 anos eles podem não ter mais chances de fazê-lo.
Eu chego agora ao que é uma solução para o problema da ordem social e da sua validação. Os
estados são desastres no que se refere a esse respeito, pelas razões que expliquei. A solução está naquilo
que chamei de sociedade de leis privadas.
O que é uma sociedade de leis privadas? Uma sociedade de leis privadas é uma sociedade na
qual todos os indivíduos e todas as instituições estão sujeitos às mesmas e únicas regras, as regras que
expliquei logo no começo. Não existem leis públicas que garantem privilégios a pessoa alguma e a
funções específicas desempenhadas por indivíduos. A ninguém é permitido adquirir propriedade por
meios que não sejam a apropriação original, a produção ou a troca voluntária. Ninguém possui o direito
de expropriar outra pessoa, ninguém tem o direito de tributar outra pessoa, ninguém pode impedir
outra pessoa de utilizar os seus próprios recursos em qualquer setor produtivo de bens (produtos e
serviços) em que deseje entrar. Isto é, não existem monopólios de nenhum tipo. E especificamente,
tendo em vista o problema com que estamos lidando, numa sociedade de leis privadas a produção de
segurança — ou seja, certificar que ninguém viola leis e que aquelas pessoas que o fizerem são
encontradas e punidas (e assim por diante) — também é feita por firmas voluntariamente financiadas:
por agências de polícia, por seguradoras e por agências de arbitragem de conflitos.
Seria um tanto presunçoso prever como seria o resultado exato disso tudo, mas podemos
prever algumas características fundamentais e estruturais de tal sociedade. Em primeiro lugar, numa
sociedade complexa, baseada na divisão do trabalho, a autodefesa ocupará um papel secundário — em
breve explicarei por quê. Deve ficar bem claro desde o início que, numa sociedade de leis privadas, o
direito individual de praticar autodefesa seria sacrossanto; que ninguém criticaria o direito de praticar
autodefesa. Em contraste distinto com a situação presente, com a atual situação estatista com a qual
estamos todos logicamente familiarizados, que torna as pessoas cada vez mais desarmadas e indefesas
contra agressores, numa sociedade de leis privadas nenhuma restrição existiria quanto à posse de armas
de fogo e de outros tipos de armas. O elementar direito individual de praticar autodefesa e de defender
a sua propriedade contra invasores seria sagrado, por assim dizer.
Sabemos por causa do Velho Oeste, que não era tão selvagem como descrito nos filmes de
faroeste, que o direito de portar armas é enormemente poderoso. No Velho Oeste, quase nunca
aconteciam roubos a banco, isso não era frequente. Se você tentasse roubar um banco, na maioria dos
casos você estaria morto antes de sair, porque quase todos os caixas estavam armados, sendo quase
nula a chance de escapar. Existe uma literatura abundante sobre isso, sobre quão segura é uma
sociedade na qual as pessoas podem portar armas. Existe um livro do economista americano John R.
Lott Jr. com o título Mais Armas, Menos Crime, e ele fornece uma ampla ilustração empírica a essa
proposição. Quanto mais armas estão em mãos privadas, menos crime existe. A Suíça, por exemplo, é
um país em que as pessoas estão fortemente armadas, todos os homens suíços possuem
submetralhadoras e munição, e a taxa de crimes na Suíça é menor do que em quase qualquer país que
eu saiba.
No entanto, assim como na complexa sociedade de hoje em dia nós não produzimos os nossos
próprios sapatos, telefones ou carros, mas sim contamos com a divisão do trabalho, numa sociedade de
leis privadas, na maioria das vezes, no que diz respeito à produção de segurança, nós também
contaríamos com produtores especializados; e de forma alguma contaríamos apenas com a autodefesa.
A maioria dos serviços de segurança, numa sociedade de leis privadas, será fornecida por
agências especializadas competindo por fregueses voluntários; será fornecida por diversas companhias
de polícia, por diversas seguradoras e agências de arbitragem. Se você quisesse resumir, em uma palavra,
quais seriam a diferença crucial e a vantagem enorme de uma indústria de segurança concorrencial,
quando comparada com o atual sistema estatista de fornecimento de segurança, se quiséssemos
caracterizar a diferença em uma palavra, essa palavra seria contrato.
O estado, com o qual estamos familiarizados, enquanto árbitro final, opera, como todos sabem,
num vácuo contratual. Não existe qualquer forma de contrato entre o estado e os seus cidadãos. Não é
contratualmente pré-estabelecido o que é de fato possuído por quem, assim como o que,
respectivamente, precisa ser protegido. Não são pré-estabelecidos quais serviços o estado deve
fornecer, o que acontecerá caso fiquemos insatisfeitos com aquilo que o estado faz, muito menos o
preço que devemos pagar pelos supostos serviços de proteção das nossas vidas e das nossas
propriedades. Também não é pré-estabelecido o que acontece se chegarmos a esta conclusão: “Vejam,
vocês não fizeram aquilo que iriam fazer. Como ficamos agora?”.
Imaginem neste momento o seguinte, imaginem que há uma agência privada oferecendo
serviços de proteção para alguém e que ela dissesse algo do tipo:

“Eu nada irei contratualmente lhe garantir. Eu não direi quais coisas eu irei considerar
como sendo suas para serem protegidas. Nem lhe direi o que eu me comprometo a fazer se, de
acordo com a sua opinião, eu não estiver cumprindo os meus serviços. Mas de qualquer forma
eu me reservo o direito de unilateralmente determinar o preço que você deve me pagar por tais
serviços indefinidos.”

Qualquer fornecedor de segurança imediatamente desapareceria do mercado se fizesse esse tipo


de proposta. Mas esse é exatamente o tipo de oferta que os estados fazem. Cada um dos fornecedores
de segurança voluntariamente financiados precisa oferecer um contrato aos seus clientes em potencial.
E esses contratos, para parecerem aceitáveis para os clientes, precisam conter descrições claras da
propriedade que estes desejam proteger — ou seja, daquilo que consideram como sendo seu —, esses
contratos precisam definir de forma clara serviços e obrigações mútuas; e ambas as partes do contrato,
durante a vigência do contrato, estariam comprometidas com os termos acordados no contrato,
podendo ser possível qualquer mudança no contrato apenas se ambas as partes concordarem com ela.
Em nítido contraste, como vocês podem perceber, o estado muda as “regras do jogo” com o passar do
tempo, ele cria novas leis que transformam aquilo que ontem era legal em algo ilegal amanhã — e vice-
versa. Nada disso seria possível numa relação contratual com outra pessoa. E em especial, para
parecerem aceitáveis para os compradores de segurança, esses contratos devem conter cláusulas sobre o
que será feito no caso de uma disputa entre o protetor e aqueles que estão sendo protegidos por ele.
Sabemos que podem surgir conflitos dessa natureza. Eu posso ter uma contenda com um
policial que supostamente deveria me proteger, com seguradoras que deveriam me segurar, com
agências de arbitragem que deveriam arbitrar conflitos. O que fazemos nesses casos? Obviamente, um
contrato só pareceria aceitável para clientes em potencial se houvesse ressalvas quanto ao que
aconteceria nesses casos. E para esses casos existe apenas uma solução; a seguradora, a agência de
proteção e o suposto protegido só podem concordar com algo que diga: “Nesses casos, iremos a uma
terceira agência de arbitragem independente.” Isso é muito diferente da atual situação, na qual, sempre
que tentamos apelar contra uma decisão, a próxima corte de apelação também faz parte da mesma
organização. A ênfase aqui é que esse terceiro externo deve ser independente; caso contrário, os clientes e
os fornecedores de proteção não seriam capazes de chegar a um acordo. E esses árbitros
independentes, essas agências independentes de arbitragem, por sua vez, também são caracterizados
pelo fato de serem organizações voluntariamente financiadas. Se elas não fizerem aquilo que
seguradoras e segurados delas esperam — isto é, fornecer uma solução que é considerada justa por
todas as partes —, elas não serão escolhidas no futuro como a terceira parte independente. Ou seja,
nesse mercado de terceiras partes, sobreviverão apenas aquelas capazes de fornecer soluções mutuamente
benéficas, benéficas para todos. Alguém considerado como sendo enviesado, parcial, alguém
considerado como um juiz ou arbitrador parcial, simplesmente desaparecerá do mercado de
arbitradores.
Dessa vantagem fundamental de uma sociedade de leis privadas, segue uma série de vantagens
adicionais. A vantagem fundamental é que há uma relação contratual, ao invés de um vácuo não
contratual, como ocorre atualmente. A primeira é que a concorrência entre polícias, seguradoras e
arbitradores em busca de clientes geraria uma tendência à queda contínua no preço da proteção por
valor segurado. Isso tornaria a proteção, por assim dizer, cada vez mais acessível, ao passo em que, sob
as condições monopolistas atuais, o preço da proteção sobe continuamente e a qualidade da proteção
cai continuamente.
Ademais, conforme já indiquei, proteção e segurança são bens (produtos e serviços) que
competem com todos os demais bens. Se mais recursos são alocados para proteção, menos recursos
estarão disponíveis para a compra de casas e de carros e para viagens de férias. Ou então, se eu oferecer
mais proteção para um grupo, menos proteção poderá ser oferecida para outro grupo. Havendo um
monopolista financiado por impostos ofertando proteção, todas essas decisões de como alocar recursos
para este ou aquele propósito são completamente arbitrárias. Em nítido contraste, num livre sistema de
agências de proteção concorrenciais, toda arbitrariedade da alocação de recursos — toda produção em
excesso ou toda produção escassa de segurança — desapareceria. A proteção seria concedida de acordo
com a relativa importância que possui aos olhos dos diferentes consumidores. Algumas pessoas
desejam gastar mais com ela, outras desejam gastar menos. Cada indivíduo numa sociedade de leis
privadas receberia proteção de acordo com os seus próprios desejos e com a sua disposição em pagar
por serviços específicos.
A mais importante vantagem da produção privada de lei e ordem baseada em contratos,
entretanto, é de natureza qualitativa. Primeiro, há uma luta contra o crime. O estado é notoriamente
ineficiente no que diz respeito à luta contra o crime, porque os agentes do estado cuja missão é
defender as nossas vidas e as nossas propriedades são pagos por meio de impostos. Isto é, eles são
pagos independentemente da sua produtividade. Por que alguém trabalharia se já é pago para não fazer
nada? Por que eu deveria correr atrás de criminosos se é muito mais cômodo, por assim dizer, aplicar
multas de trânsito ou tomar café em padarias? De fato, pode-se esperar que os agentes do estado
tenham interesse em manter as taxas de criminalidade moderadamente altas, porque assim eles poderão
justificar a necessidade de mais recursos em seu orçamento do que no período anterior.
E as coisas são ainda piores. Os agentes do estado não indenizam ou compensam as vítimas.
Eles supostamente deveriam nos proteger; mas, se eles falharem, o que acontece? Eles pagam algo para
aquelas pessoas que deveriam proteger, mas não protegeram? Para o estado, indenizações e
compensações para as vítimas de crimes são no máximo insignificantes. O estado não compensa, não
indeniza vítimas de crime. Muito pelo contrário: as vítimas são ainda mais insultadas ao terem de pagar
pela manutenção dos criminosos que são presos. Os pagadores de impostos têm de pagar pela TV, pelo
pingue-pongue e pelos outros entretenimentos de que os criminosos que são colocados nas prisões
desfrutam, ao invés de serem compensados pelo mal que lhes foi causado.
A situação numa sociedade de leis privadas, obviamente, é completamente diferente. Os
fornecedores de segurança — e, em particular, as seguradoras — terão de indenizar os seus clientes no
caso de danos, caso contrário não encontrariam clientes; e, por causa disso, eles devem operar de forma
eficiente. Eles devem ser eficientes na prevenção, pois, se eles não forem eficientes na prevenção, então
eles terão de pagar. Eles devem ser eficientes em encontrar os bens que foram roubados de você,
porque, se não os encontrarem, eles terão de lhe pagar, eles terão de lhe comprar uma nova TV. Os
estados não fazem nada disso.
Sempre dou o exemplo de um amigo cujo carro foi roubado na Itália. Ele foi até a polícia e
disse que o seu carro havia sido roubado. Pediram-lhe que preenchesse o boletim de ocorrência. Ele,
então, perguntou o que aconteceria, e o policial respondeu que agora o boletim seria arquivado. O
policial o colocou numa pastinha — e fim de papo. E então o amigo relatou essa ocorrência para a sua
seguradora, e depois de três dias a seguradora alemã achou o carro. Isso por uma razão óbvia: se ela
encontra o carro, ela não precisa pagar um novo. O estado não paga um carro novo; o estado arquiva
coisas. E, é claro, agências privadas de proteção também possuem incentivos para encontrar os
meliantes, porque assim elas podem forçar os meliantes a pagar compensações às vítimas, ao invés de
as vítimas terem de pagar pela punição aos criminosos. No caso anterior, eu expliquei que o pagador de
impostos, a vítima, ainda tem de pagar pelo encarceramento.
Além disso, uma indústria de segurança concorrencial, baseada em contratos, cria um efeito
geral de promoção da paz. Os estados, conforme já indiquei, são instituições naturalmente agressivas.
Eles podem causar e provocar conflitos e depois decidir em seu próprio favor — em outras palavras,
um monopolista de decisões finais financiado por impostos pode externalizar os custos do seu
comportamento agressivo sobre os pobres pagadores de impostos; e, por causa disso, eles tendem a
incorrer em comportamentos que são mais arriscados e agressivos do que aqueles em que incorreriam
caso tivessem de pagar eles próprios pelo custo de tais comportamentos.
Seguradoras, por natureza, são organizações defensivas, por assim dizer. Por um lado, devido ao
fato de cada ato de agressão representar um custo, ao incorrer em atividades agressivas, uma seguradora
teria de cobrar apólices mais altas dos seus próprios clientes, e isso implicaria perder clientes para
seguradoras que se comportam de maneira não agressiva. Seguradoras são organizações pacíficas por
outra razão — você não é capaz de se segurar contra qualquer tipo de risco. Existem certos riscos que
não são seguráveis. Você pode se segurar contra o risco de a sua casa pegar fogo, você pode se segurar
contra morte por acidentes (e assim por diante). Mas você não pode se segurar contra você mesmo
colocar fogo em sua casa ou contra você se matar amanhã numa tentativa de suicídio. A implicação
disso é que você não pode se segurar contra pessoas fazendo algo a você, agredindo você, se você provocou
o conflito. As seguradoras não irão cobrir o risco de você ser agredido por outras pessoas que você
mesmo agrediu inicialmente ou que você levou a lhe fazer algo ruim. As seguradoras apenas o
protegerão e cobrirão certos riscos se você se submeter a um código de comportamento civilizado. Se
você disser, “eu me comportarei bem, eu nunca irei provocar alguém”, apenas assim elas irão proteger
você, mas elas não o farão se você se comportar de maneira não civilizada.
E isso também implica que seguradoras frequentemente insistirão para que você não tente fazer
justiça com as próprias mãos — ou seja, para que não tente você mesmo aplicar a lei — pelo fato de
isso aumentar o risco de terceiros serem envolvidos no conflito. Então, elas tenderão a insistir que,
sempre quando surgir um conflito, você tenha de se submeter a certos procedimentos padrão, para que
possa ser descoberta a causa dos eventos, quem começou certas coisas, quem revidou, e por aí vai. A
justiça com as próprias mãos tenderá a ser proibida ou tornada quase impossível por seguradoras
insistindo que você se submeta a certos tipos de procedimentos, para que custos operacionais possam
ser reduzidos e apólices menores possam ser cobradas.
Além disso, as seguradoras, na verdade, irão encorajar as pessoas a portar armas. Percebam que
os estados sempre tentam nos desarmar. Imaginem que alguém vai a uma agência de proteção e que a
agência de proteção diga: “Veja, antes que eu comece a protegê-lo, primeiro você tem de me entregar
todas as suas armas. As facas da sua cozinha, os seus revólveres, seja lá o que for.” Qualquer pessoa
normal diria: “Que protetor estranho! Quer que eu lhe entregue qualquer coisa com a qual eu possa me
defender e diz que, apenas depois de eu tiver entregado todas essas coisas, apenas aí ele possivelmente
irá me proteger.” Você pensaria que se trata de um tipo suspeito de organização. Seguradoras que
fizessem algo do tipo iriam à falência instantaneamente. Ao invés disso, elas cobrariam apólices mais
baixas se você provasse que é capaz de manusear armas cuidadosamente para se defender, porque nesse
caso o risco de acontecer algo pelo qual elas precisem pagar é menor. Você conseguiria apólices mais
baixas caso possuísse um cofre em casa, por exemplo. Da mesma forma, saber usar armas tenderia a
reduzir as apólices.
Último e mais importante, um sistema concorrencial de agências de proteção teria um impacto
duplo sobre o desenvolvimento da lei. Por um lado, ele possibilitaria uma maior variedade de leis, ou seja,
ao invés de ser imposto um padrão uniforme sobre todos, como ocorre sob condições estatistas,
agências de proteção poderiam concorrer umas com as outras não apenas por meio de diferenciação de
preços, mas também por meio de diferenciação de produtos. Por exemplo, poderiam existir lado a lado
agências de proteção ou seguradoras católicas que aplicariam o direito canônico, agências judias que
aplicariam a lei mosaica, agências muçulmanas que aplicariam as leis islâmicas, outras agências que
aplicariam o direito secular ou qualquer outra variedade de leis, todas elas sendo sustentadas por uma
clientela voluntária. Os consumidores poderiam escolher a lei aplicada a ele e às suas propriedades,
ninguém seria obrigado a viver sob lei “estrangeira”.
Por outro lado, o mesmo sistema de produção privada de lei e ordem iria promover uma
tendência de unificação e harmonização da lei. Isso porque a lei “doméstica” — ou seja, as leis católicas, as
leis judias, o direito romano (e assim por diante) — seria aplicada apenas às pessoas (e às suas
propriedades) que as escolheram. Por exemplo, a lei canônica se aplicaria apenas a católicos praticantes
e lidaria apenas com conflitos entre católicos.
É também possível, é claro, que um católico entre em conflito com alguém afiliado a outro
código legal, por exemplo, o muçulmano. Se ambos os códigos legais chegam à mesma conclusão ou a
conclusões parecidas, nenhuma dificuldade surgiria. Entretanto, se os códigos legais concorrenciais
chegam a conclusões completamente diferentes, como aconteceria em certos casos, então, é claro, surge
um problema. A lei “doméstica”, isto é, a lei intragrupo, seria inútil nesse caso, mas, naturalmente, toda
pessoa segurada também desejaria proteção contra a contingência de conflitos intergrupo. Nessa situação,
não se pode esperar que uma seguradora e os clientes do seu código legal simplesmente se subordinem
ao julgamento de outra seguradora e ao código legal dela. Ao invés disso, para todas as partes
envolvidas, só existe uma saída crível e aceitável para esse impasse. Desde o início, todas as seguradoras
seriam obrigadas a submeter os seus clientes e a si próprias à arbitragem de terceiras partes
verdadeiramente independentes. Essa terceira parte não seria apenas uma entidade independente, mas
seria ao mesmo tempo a escolha unânime de ambos. Ela seria escolhida devido à sua grande habilidade
ou à sua reconhecida capacidade de encontrar soluções justas de acordo mútuo para os casos de
conflito intergrupo. Além disso, se um arbitrador, conforme já expliquei, falhasse nessa tarefa e chegasse
a conclusões que fossem reconhecidas como injustas ou enviesadas pelos clientes ou pelas seguradoras,
essa pessoa ou essa agência não seria escolhida novamente como arbitradora. Então, como resultado da
cooperação constante de diversas seguradoras e de diversos arbitradores, seria desencadeada uma
tendência de unificação do direito contratual e proprietário, de harmonização das regras e dos
procedimentos de produção de provas e de resolução de conflitos.
Assim, ao comprar proteção e seguro, tanto o segurador quanto o segurado se tornam
participantes de um sistema integrado de prevenção de conflitos e manutenção da ordem. Todos os
conflitos, assim como todas as alegações de danos, independentemente de onde, de quem e de contra
quem, cairiam sob a jurisdição de uma ou várias seguradoras específicas e seriam resolvidos por uma
seguradora “doméstica” e por leis “domésticas” ou então pela lei “internacional” ou “universal” e pelos
seus procedimentos e regras previamente acordados por todos.
Portanto, em uma palavra, ao invés de conflito permanente, injustiça e insegurança jurídica —
como acontece sob o atual estado de coisas —, numa sociedade de leis privadas, a paz, a justiça e a
segurança jurídica seriam a norma. O tempo acabou, e eu também. Muito obrigado!

HELIO BELTRÃO: Obrigado, senhor Hoppe. Por favor, fique à vontade para ficar aí ou se juntar
a mim para responder pequenas perguntas.
HOPPE: Talvez eu deva mencionar que amanhã a minha palestra será mais um pouco mais
rápida do que a de hoje, portanto algumas perguntas que possam aparecer hoje terão mais tempo para
ser respondidas amanhã. Como eu serei o último palestrante do dia, as restrições de tempo serão
menores. Amanhã, eu serei o último palestrante, e o meu discurso será mais rápido. Prometo! Então,
isso já fica de consolo caso eu não seja capaz de responder a todas as perguntas que possam surgir
agora.

PERGUNTA DE UM ESPECTADOR: [SOBRE O LIVRO “ANARQUIA, ESTADO E UTOPIA”, DE ROBERT


NOZICK]
HOPPE: Eu considero a resposta dele completamente insatisfatória. Por que as seguradoras
necessariamente entrariam em conflito umas com as outras? Se elas entrarem em conflito, isso
aumentará os seus custos operacionais; e elas perderiam clientes caso praticassem esse tipo de
comportamento. Em geral, sabemos que, assim como em outros setores, existem razões fundamentais
para que as seguradoras não pratiquem cartéis. Cartéis tendem a desabar, em primeiro lugar por causa
de pressões internas, por assim dizer, pois a empresa mais eficiente sairia perdendo em qualquer acordo
cartelista e as empresas menos eficientes ganhariam em qualquer acordo. Então, por que os membros
mais eficientes de um cartel incorreriam nesse tipo de comportamento? Em segundo lugar, há pressões
externas, pois, caso o cartel sobreviva e seja capaz de reduzir a oferta de serviços e aumentar preços,
novas empresas podem aparecer e competir. Assim, eu considero as objeções de Nozick
completamente superficiais e fantasiosas, sem absolutamente qualquer base na teoria econômica.

HELIO BELTRÃO: Esta é uma pergunta de um dos membros da equipe do Instituto Mises Brasil.
Eu a farei primeiro em inglês e depois em português.
HOPPE: Eu não sou um defensor das monarquias, eu não sou um monarquista. Monarquias
também são estados. Estados são organizações exploradoras em qualquer lugar. Mas, se você analisar a
situação atual [abril de 2011], é interessante observar que as monarquias que estavam sob ataque lidaram
com os problemas de forma muito mais bem-sucedida do que aqueles estados que estavam sob ataque
que eram ditatoriais, que se consideravam administrações “públicas”, republicanas. A situação no
Marrocos e na Jordânia é significativamente melhor que a situação na Líbia e no Egito, o que indica
precisamente aquilo que eu disse.
Em relação a isso — e eu devo adicionar que ditaduras são tipicamente o resultado da
democracia, da democracia passando por dificuldades —, digo que o resultado das dificuldades
enfrentadas pela democracia é o surgimento de ditaduras. Ditaduras são um fenômeno republicano, não
um fenômeno monárquico. Hitler certamente era mais democrático, por assim dizer, do que o kaiser
alemão; Stalin certamente era mais democrático do que o czar russo. O czar russo não era uma pessoa
boa, mas, comparado com quem que veio depois, ele simplesmente era uma pessoa maravilhosamente
boa. O kaiser Guilherme II não era a melhor pessoa do planeta, mas quando comparado a Hitler, é
claro, ele era um homem bom. Portanto, temos de comparar as coisas de forma ponderada; e, de novo,
a situação atual parece indicar que as monarquias tendem a ser sistemas melhores que as democracias
que se tornam ditaduras.
O Brasil também teve uma monarquia. Novamente, eu não sou um grande historiador no que
diz respeito ao Brasil, mas minha impressão foi a de que, se o Brasil tivesse mantido a monarquia,
estaria em melhores condições hoje do que está, dado que se livrou dela.

PERGUNTA DE UM ESPECTADOR: Boa tarde, professor! O meu nome é Marcel, e eu gostaria de


lhe perguntar sobre o desarmamento. Nós tivemos uma grande discussão aqui no Brasil sobre
desarmamento há alguns anos, e no final a população disse “não” ao desarmamento. Porém, há apenas
dois dias, não sei se o senhor está sabendo, nós tivemos no Rio de Janeiro um dos eventos mais tristes
da história brasileira, um ataque terrorista numa escola. Bem, os mortos ainda estão sendo contados, e
os ativistas pró-desarmamento já estão dizendo, tuitando, que o desarmamento da população civil era
necessário e que, se fôssemos desarmados, esse tipo de ataque não seria possível naquela escola.
Portanto, eu acho que todos nós aqui precisamos ser competentes para defender as nossas ideias, para
contra-argumentar sobre o desarmamento. O que o senhor teria a dizer sobre essa situação que estamos
enfrentando aqui no Brasil, porque eu tenho certeza de que, quando sairmos daqui, nós enfrentaremos
outra grande discussão no Brasil sobre desarmar as pessoas. Obrigado!
HOPPE: Novamente, eu ouvi falar sobre o incidente, não estou sabendo dos detalhes, mas pode
muito bem ser como em diversos casos nos EUA, onde esses ataques aconteceram, é claro, contra
alvos que não estavam armados. Então, eu suponho que provavelmente tenha sido assim no Brasil
também. Se essas pessoas que foram atingidas estivessem armadas, esse maluco teria sido morto bem
rápido, e a catástrofe teria sido menor do que foi. Nos EUA, a maioria dos casos envolvia locais nos
quais não era permitido portar armas, e então pessoas armadas entravam e matavam todo tipo de gente.
Se nas escolas ou universidades nas quais esses ataques aconteceram os funcionários portassem armas,
especialmente armas escondidas, os agressores poderiam ter sido eliminados muito mais rapidamente
do que aconteceu, quando foi necessário esperar a polícia chegar.
Criminosos sempre conseguem armas; quando proibimos a posse de armas, nós proibimos os
cidadãos que respeitam a lei de ter armas. Nós simplesmente não podemos aprovar uma lei dizendo:
“Olhem só, criminosos, vocês não podem mais ter armas!”, para depois os criminosos dizerem: “Ah,
sim, certo, agora eu quero respeitar a lei e não quero mais ser um criminoso; e por causa disso eu não
mais terei armas.”

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