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Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título


PHILOSOPHICAL RUDIMENTS CONCERNING GOVERNMENT Sumário
AND SOCIETY. Copyright @ Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, 1992, para a presente edição.

2" edição
janeiro de 1998

Tradução, apresentação e notas


RENATO JANINE RIBEIRO

A edição desta obra foi coordenada por


Roberto Leal Ferreira.

Apresentação............................................................................. XXI
Revisão gráfica
Ana Luiza França Produção Cronologia ......................................................................... XXXVII
gráfica Epístola dedicatória ....................................................................... 3
Geraldo Alves Paginação/Fotolitos Studio Prefácio do autor ao leitor............................................................. 9
3 Desenvolvimento Editorial Capa Katia
Harumi Terasaka

Parte I
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) LIBERDADE
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hobbes, Thomas, 1588-1679. I - DA CONDIÇÃO HUMANA FORA DA SOCIEDADE


Do cidadão 1 Thomas Hobbes ; [tradução, apresentação
e notas Renato Janine Ribeiro; coordenação Roberto Leal CIVIL .............................................................................. . 25
Ferreira]. - 2' ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998. (Clássicos)
1. Introdução.- 2. Que o começo da sociedade civil provém do
Título original: Philosophical rudiments conceming medo recíproco. - 3. Que por natureza todos os homens são iguais.
govemment and society. - 4. De onde provém a vontade de causar dano a outrem. - 5. A
ISBN 85-336-0755-5
discórdia nasce da comparação das vontades. - 6. E do apetite que
1. Autoridade 2. Direito natural 3. Política I. Ribeiro, muitos têm pela mesma coisa. 7. Definição de direito. - 8. O direito
Renato Janine. 11. Ferreira, Roberto Leal. m. Título. IV.
Série. ao fim confere direito aos meios necessários para aquele fim. - 9.
CDD-320 Pelo direito de natureza, todo homem é juiz dos meios que tendem
97-4137
a sua própria conservação. - 10. Todos têm, por natureza, igual
Índices para catálogo sistemático: 1.
Ciência política 320
direito a todas as coisas. - 11. Mas esse direito de todos a tudo é
inútil. - 12. O estado dos homens fora da sociedade civil é um
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Martins Fonks EdiJ.ora lida. Rua Conselheiro Ramalho,
simples estado de guerra: definição de guerra e
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de paz. - 13. A guerra é adversa à conservação do homem. - 14. É juramento deve ser vazado na mesma fórmula que costuma
legal qualquer homem, pelo direito natural, compelir outro, a quem empregar quem o presta. - 22. Um juramento nada acrescenta à
ele tomou em seu poder, a dar-lhe garantias de que lhe prestará obrigação já instituída pelo pacto. - 23. Não se deve exigir
obediência no futuro. - 15. A natureza dita a busca da paz. juramento, exceto quando a violação dos pactos possa ficar oculta,
ou só possa ser punida por Deus mesmo.

III - DAS OUTRAS LEIS DE NATUREZA ....................... 53


11 - DA LEI DE NATIJREZA ACERCA DOS 37
CONTRATOS
1. A lei de natureza não é um consenso dos homens, porém o 1. A segunda lei de natureza manda cumprir os contratos. - 2.
ditame da razão. - 2. A lei fundamental de natureza consiste em Devemos respeitar a palavra dada ("trust") a quem quer que seja,
procurar a paz, onde ela possa ser alcançada, e quando isso não for sem exceção. - 3. O que é injúria. - 4. A ninguém se faz injúria,
possível, em nos defendermos. - 3. A primeira lei especial de exceto àqueles com quem contratamos. - 5. A distinção entre
natureza é que não devemos conservar nosso direito a todas as justiça das pessoas e das ações. - 6. A distinção entre justiça
coisas. - 4. O que é renunciar a seu direito; o que é transferi-lo. - 5. comutativa e justiça distributiva. - 7. Não se comete injúria contra
Para transferir o nosso direito, é requisito necessário a aceitação de aquele que a quer receber. - 8. A terceira lei de natureza, a respeito
quem o recebe. da ingratidão. - 9. Quarta lei de natureza: que todo homem se torne
- 6. Somente palavras no tempo presente transferem um direito. - 7. útil aos demais. - 10. A quinta lei: misericórdia. - 11. A sexta lei,
Se houver outros sinais que expressem a vonta para que os castigos considerem
de, as palavras no futuro são validadas para transferir o direito. - 8. apenas o futuro. - 12. A sétima lei, que proíbe insultos.
Na doação gratuita, não transferimos nosso direito mediante 13. A oitava lei, contra a arrogância. - 14. A nona lei, que ordena a
palavras no futuro. - 9. Definição de contrato e de pacto humildade. - 15. A décima, que determina a eqüidade, e condena
C"compact"). - 10. Nos pactos, transferimos o direito mediante fazer acepção de pessoas. - 16. A décima primeira, sobre as coisas
palavras que se referem ao futuro. - 11. a serem havidas em comum. - 17. A décima segunda, sobre as
Os pactos de fé recíproca são nulos e inúteis no estado de coisas a serem divididas por sorteio. - 18. A décima terceira, sobre
natureza, mas não dentro do estado civil. - 12. Ninguém pode firmar o direito de nascença e a primeira posse dos bens. - 19. A
pacto com animais, nem, se não houver uma revelação, com Deus. - décima quarta, sobre a salvaguarda daqueles que sejam mediadores
13. Nem tampouco fazer um voto a de paz. - 20. A décima quinta, sobre a constituição de um árbitro. -
Deus. - 14. Os pactos não obrigam além de nosso máximo 21. A décima sexta: que ninguém seja juiz em causa própria. - 22.
esforço. - 15. Por que meios nos liberamos dos pactos por nós A décima sétima: que os árbitros não tenham nenhuma expectativa
firmados. - 16. São válidas, no estado de natureza, as promessas de receber
extorquidas por medo de morte. - 17. Não tem validade o pacto recompensas por parte daqueles cuja causa vão julgar. 23. A décima
posterior que contradiga um anterior. - 18. Não tem validade um oitava, sobre as testemunhas. - 24. A décima nona: que não se façam
pacto de não resistir a quem venha prejudicar o meu corpo. -19. É contratos com o árbitro. - 25. A
inválido um pacto para acusar~se a si próprio. - 20. Definição de
juramento. - 21. O
vigésima, contra a gula ("gluttony"), e todas aquelas coisas que
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tro. - 17. E também da décima sétima lei, que proíbe os árbitros de
impedem o uso da razão. - 26. A regra pela qual podemos receberem paga pelas suas sentenças. - 18. E
prontamente conhecer se o que fazemos segue, ou infringe, a lei de também da décima oitava lei, que requer testemunhas.
natureza. - 27. As leis de natureza obrigam apenas no tribunal de 19. E também da vigésima lei, contra a embriaguez. - 20. E
consciência. - 28. As leis de natureza às vezes são violadas por também quanto a ser eterna, como dissemos, a lei de natureza. -
ações cometidas dentro da lei. - 29. As leis de natureza são 21. E também que as leis de natureza competem à consciência. -
imutáveis. - 30. É justo todo aquele que se esforça por seguir as leis 22. E, ainda, que as leis de natureza são fáceis de observar. - 23.
de natureza. - 31. A lei natural e a lei moral são uma só. - 32. Por Finalmente, uma regra para saber imediatamente se o que se vai
que o que dissemos das leis de natureza não coincide praticar está conforme ou não à lei de natureza. - 24. A lei de
com o que os filósofos afirmaram a propósito das virtudes. - 33. A Cristo é a lei da natureza.
lei de natureza não é propriamente lei, salvo na medida em que é
expressa nas Sagradas Escrituras.

Parte II
DOMÍNIO
IV - QUE A LEI DE NATUREZA É LEI DIVINA .................... 75

1. A lei natural e moral é divina. - 2. O que é confirmado pela V - DAS CAUSAS E DA ORIGEM PRIMEIRA DO GO
Escritura de modo geral. - 3. E em especial no tocante à lei VERNO CIVIL.......................................................... 91
fundamental de natureza que manda buscar a paz. - 4. E também 1. As leis de natureza não bastam para preservar a paz. - 2. As leis
quanto à primeira lei de natureza, ao pôr fim à posse em comum de de natureza, no estado de natureza, silenciam. - 3.
todas as coisas. - 5. E também quanto à segunda lei de natureza, Para se ter certeza de viver conforme as leis de natureza,
que manda manter a fé depende-se da concórdia de muitas pessoas. - 4. A concórdia de
que foi dada. - 6. E quanto à terceira lei, da gratidão. - 7. muitas pessoas não é constante o suficiente para assegurar uma
E também sobre a quarta lei, que nos manda sermos úteis aos paz duradoura. - 5. Por que razão o governo de certas criaturas
outros. - 8. E ainda, no tocante à quinta lei, da misericórdia. - 9. E animais está suficientemente fundado na mera concórdia, e por que
também, quanto à sexta lei, que manda nos castigos considerar-se isso não basta para o governo dos homens. - 6. Não basta o
apenas o futuro. - 10. E o mesmo consentimento, é preciso
quanto à sétima lei, acerca da difamação. - 11. E igual também a união, para estabelecer a paz entre os homens.
mente quanto à oitava lei, que proíbe a arrogância. - 12. E também 7. O que é a união. - 8. Na união, o direito de todos os homens é
sobre a nona lei, da eqüidade. - 13. E também sobre a décima lei, transferido a um só. - 9. O que é a sociedade civil. - 10. O que é
contra a acepção de pessoas. - 14. E também da undécima lei, que uma pessoa civil. - 11. O que é ter o poder supremo, e o que é ser
manda ter em comum aquelas coisas que não podem ser divididas. súdito. - 12. Duas espécies de cidade, natural e por instituição.
- 15. E também da décima segunda lei, sobre as coisas que devem
ser divididas mediante sorteio. - 16. E da escolha de um árbi
I
VI - DO DIREITO DE QUEM DETÉM O PODER SU- VII - DOS TRÊs TIPOS DE GOVERNO: DEMOCRA
PREMO NA CIDADE, SEJA UM CONSELHO, CIA, ARISTOCRACIA E MONARQUIA ......................119
SEJA UM ÚNICO HOMEM ............................................101
1. Há três formas de governo apenas: democracia, aristocracia e
1. A uma multidão fora da sociedade civil não se pode atribuir monarquia. - 2. A oligarquia não é uma forma de governo distinta
direito algum, nem qualquer ação a que cada um não tenha da aristocracia, e a anarquia não é forma alguma de governo. - 3. A
especificamente consentido. - 2. A fundação de uma cidade começa tirania não é uma forma de governo que se distinga da monarquia.
no direito de um grande número de pessoas - 4. Não pode haver uma forma mista de governo ("a mixed state"),
que consentem. - 3. Todo homem detém um direito de se composta dessas várias espécies. - 5. A democracia se dissolve, se
proteger a si mesmo em consonância com seu próprio livre-arbítrio não forem previamente fixados locais e datas para reunir-se a
("free will"), enquanto não se der considera assembléia. - 6. Na democracia os intervalos entre as datas de
ção suficiente à sua segurança. - 4. Um poder coercitivo é reunião devem ser curtos, ou então se deve confiar a al
requisito para dar-nos segurança. - 5. Em que consiste o guém a administração do governo durante tais recessos.
gládio da justiça. - 6. O gládio da justiça pertence a quem 7. Na democracia, indivíduos contratam com indivíduos que todos
possui o mando supremo. - 7. A ele também pertence o obedeçam ao povo; e o povo não tem obrigação para com
gládio da guerra. - S. Toda a judicatura é também só dele. ninguém. - S. Através de que atos se constitui a aristocracia. - 9.
- 9. Igualmente é dele o poder de legislar. - 10. Compete a ele a Na aristocracia os nobres não firmam pacto algum, nem se
nomeação dos magistrados e de outros altos funcionários da obrigam para com nenhum cidadão nem para com o povo inteiro. -
cidade. - 11. E também o exame das doutrinas. -12. O que quer que 10. É preciso que os nobres tenham fixado previamente as datas e
ele faça não é passível de punição. - 13. locais de suas reu
Que o poder que seus cidadãos lhe concederam é absolu niões. - 11. Através de que atos se constitui a monarquia.
to, e qual medida de obediência eles lhe devem. - 14. As 12. Nenhum pacto obriga a monarquia em relação a ninguém pela
leis da cidade não obrigam o governante. - 15. Ninguém autoridade que ela recebeu. - 13. A monarquia é sempre o governo
pode alegar ser proprietário de algo contra a vontade do mais prontamente capacitado a exercer todos aqueles atos que são
governante supremo. - 16. Somente pelas leis da cidade é que requisito para o bom governo. - 14. Que gênero de pecado se
conhecemos o que são o roubo, o homicídio, o adul comete, e quem é culpado por ele, quando a cidade não cumpre
tério e a injúria. - 17. A opinião dos que desejariam constituir uma seu ofício ante os cidadãos, ou os cidadãos ante a cidade. -15. Um
cidade em que ninguém tivesse o poder supremo. - 1S. As marcas monarca escolhido sem limitação de tempo tem o poder de esco-
da autoridade suprema. - 19. Se compararmos uma cidade a um lher seu sucessor. - 16. Sobre os monarcas limitados. - 17. É
homem, quem tem o poder supremo inconcebível que um monarca, sem renunciar a seu direito ao
estará para a cidade como a alma humana está para o ho governo, possa fazer a promessa de abandonar o seu direito aos
mem. - 20. O poder supremo não pode ser legalmente ("by meios necessários para o exercício de sua autoridade. - 1S. Como
right") dissolvido pela mera vontade ("consents") dos que um cidadão é libertado de sua sujeição.
inicialmente contrataram a sua constituição.
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I

VIII - DOS DIREITOS DOS SENHORES SOBRE SEUS questão do direito de sucessão cabe apenas na monarquia. - 12. Um
SERVOS ........................................................................ 135 monarca pode dispor da autoridade suprema por testamento... -13.
... ou dá-Ia, ou vendê-Ia. -14. Um monarca que faleça sem
1. o que significam senhor e servo. - 2. A distinção entre os servos testamento supõe-se que desejasse ser sucedido por outro
que gozam de sua liberdade natural, por terem a confiança de seus monarca... - 15. ... e que este fosse um de seus filhos... - 16. ... e
senhores, e aqueles, ou escravos, que servem acorrentados ou por um varão antes de uma mulher... - 17. ... e pelo mais velho
presos. - 3. A obrigação do servo decorre da liberdade corpórea a antes do mais novo... - 18. ... e, se não tiver filhos, por seu irmão
ele conferida por seu senhor. - 4. O servo que esteja a ferros não antes de quaisquer outras pessoas. - 19. Da mesma forma que se
está preso por nenhum pacto ao seu senhor. - 5. Perante o senhor, o sucede ao poder, também se sucede ao direito de sucessão.
servo não é proprietário de seus bens. - 6. O senhor pode vender ou
testar o seu servo. - 7. Não é possível o senhor cometer injúria
contra seu servo. - 8. O senhor do senhor é igualmente senhor dos x - COMPARAÇÃO ENTRE AS TRÊS ESPÉCIES DE
servos deste. - 9. Por que meios se liberta o servo. - 10. O domínio GOVERNO, CONFORME OS INCONVENIENTES
sobre os animais decorre do direito de natureza. DE CADA UMA ................................................................155

1. Comparação do estado de natureza com o civil. - 2. As


vantagens e inconveniências são as mesmas para o governante e os
IX - DO DIREITO DOS PAIS SOBRE OS FILHOS E DO governados. - 3. Elogio da monarquia. - 4. Não se pode dizer que o
GOVERNO HEREDITÁRIO ............................................143 governo de um seja menos razoável
1. O domínio paterno não decorre da geração. - 2. O domínio sobre porque nele um tenha mais poder que todos os demais.
as crianças pertence àquele ou àquela que primeiro as teve em seu 5. Refutação da tese dos que dizem que a soma de um senhor com
poder. - 3. O domínio sobre a criança é, originalmente, da mãe. - 4. seus servos não basta para formar uma cidade. - 6. As exaçoes são
A criança abandonada é da pessoa de quem ela recebe a mais intoleráveis num Estado popular do que numa monarquia. - 7.
preservação. - 5. Se alguém éfilho de um casal dos quais um é Os súditos inocentes estão menos expostos a ser penalizados na
súdito e outro soberano, a criança pertence àquele (seja homem ou monarquia do que quando o povo governa. - 8. A liberdade dos
mulher) que possui a autoridade suprema. - 6. Numa união sexual súditos individuais não é menor sob um monarca do que quando
em que nenhum tenha autoridade sobre o outro, os filhos são da governa o povo. - 9. Não constitui uma desvantagem, para os
mãe, a não ser que um pacto ou a lei civil determinem de outro súditos, o fato de não serem admitidos todos eles à deliberação
modo. - 7. Os filhos não estão menos sujeitos a seus pais do que os pública. - 10. É infeliz confiar as deliberações políticas às grandes
servos aos senhores e os súditos aos prínci assembléias, devido à inexperiência da maior parte dos homens... -
pes. - 8. Da honra devida aos pais e aos senhores. - 9. Em 11. ... e devido à eloqüência... - 12. '" e devido ao facciosismo... -
que consiste a liberdade, e qual a diferença entre os súditos e os 13. ... e devido à instabilidade das leis... - 14. ... e devido a não se
servos. -10. Um governo hereditário tem o mesmo direito sobre guardar sigilo. - 15. Esses inconvenientes são intrínsecos à
seus súditos que um governo instituído. - 11. A democracia, na me
T
dida em que os homens naturalmente sentem prazer quando é bem - 7. É sediciosa a opinião segundo a qual cada súdito tem
avaliado o seu espírito. - 16. Os inconvenientes num Estado que tem propriedade ou domínio absoluto de seus bens. - 8. Desconhecer a
por rei uma criança. - 17. O poder dos generais é um sinal evidente diferença entre povo e multidão já predispõe àsedição. - 9. Uma
da excelência da monarquia. - 18. A melhor condição para um taxação muito grande, por mais justa e necessária que seja,
Estado é quando os súditos constituem a herança do governante. - predispõe à sedição. - 10. A ambição nos dispõe para a sedição. -
19. Quanto mais a aristocracia tender para a monarquia, melhor 11. E o mesmo faz a esperança de sucesso. - 12. A eloqüência,
será; e pior quanto mais se afastar dela. desprovida de sabedo
ria, é a única faculdade necessária para causar sedições. 13. Como a
loucura do vulgo e a eloquência dos ambiciosos concorrem para a
XI - PASSAGENS E EXEMPLOS DAS ESCRITURAS EM destruição da república.
QUE SE CONFIRMA O QUE ANTES SE DISSE
SOBRE OS DIREITOS DO GOVERNO ......................... 173
XIII - DOS DEVERES DE QUEM GOVERNA .......................197
1. Sobre a origem do governo instituído, com base no con-
sentimento do povo. - 2. A judicatura e as guerras dependem da 1. O direito à autoridade suprema distingue-se de seu exercício. -
vontade dos comandantes supremos. - 3. Que não 2. A segurança do povo é a suprema lei. - 3. Cabe aos príncipes
podem ser justamente punidos aqueles que têm a autorida considerar o benefício comum de muitos, não o interesse particular
de suprema. - 4. Que, sem um poder supremo, não há governo, só de tal ou qual homem. - 4. Por segurança se entende toda a
anarquia. - 5. Que servos e filhos devem, a seus senhores e pais, espécie de conforto. - 5. Uma difícil questão: se é dever dos
uma obediência simples. - 6. As passagens príncipes cuidar da salvação das almas de seus súditos, conforme
mais evidentes, do Novo e do Antigo Testamento, provam a julgarem melhor segundo a sua consciência. - 6. Em que consiste a
autoridade absoluta. segurança do povo. - 7. Espias são necessários à segurança do
povo. - 8. Também é necessário, para a defesa do povo, dispor de
XII - DAS CAUSAS INTERNAS QUE TENDEM À DIS soldados, de armas, guarnições e dinheiro já em tempo de paz. - 9.
SOLUÇÃO DO GOVERNO............................................181 Uma correta instrução dos súditos quanto às doutrinas
1. É sediciosa a opinião segundo a qual o julgamento do políticas é mais um requisito para a conservação da paz. - 10. Uma
igual repartição dos encargos públicos contribui, e muito, para a
bem e do mal pertence aos particulares. - 2. É sediciosa a preservação da paz. - 11. Manda a eqüidade natural que os
opinião segundo a qual os súditos pecam obedecendo a impostos sejam cobrados segun
do o que cada um gasta, não segundo o que ele possui.
seus príncipes. - 3. É sediciosa a opinião segundo a qual o 12. Reprimir os ambiciosos contribui para se conservar a paz... -
tiranicídio é legal. - 4. É sediciosa a opinião segundo a qual 13. ... e também dissolver as facções. - 14. Leis que incentivem o
estão sujeitos às leis os que possuem o poder supremo. - 5. trabalho dos artesãos e moderem gastos
É sediciosa a opinião segundo a qual o poder supremo pode ser ostentatórios contribuem para os súditos enriquecerem. 15. As leis não
dividido. - 6. É sediciosa a opinião segundo a qual a fé e a devem determinar mais do que for exigido
santidade não se adquirem através do estudo e da razão, mas são
infundidas e inspiradas sobrenaturalmente.
.
pelo bem do príncipe e de seus súditos. - 16. Não se deve infligir Parte III
castigo maior do que o previsto na lei. - 17. Os súditos devem RELIGIÃO
receber satisfação do governante contra os juízes que se mostrarem
corruptos. xv - DO REINO DE DEUS POR NATUREZA ........................ 239
1. Exposição do que se segue. - 2. Sobre quem se diz que Deus
XIV - DAS LEIS E DOS CRIMES ........................................... 215
reina naturalmente. - 3. As três vias pelas quais se apresenta a
1. A diferença entre lei e conselho. - 2. Entre lei e pacto. palavra de Deus: pela razâo, revelação e profe
3. Entre lei e direito. - 4. A divisão das leis, em divinas e humanas; cia. - 4. O reino de Deus é duplo: natural e profético. - 5.
das divinas, em naturais e positivas; e das naturais, em leis privadas O direito pelo qual Deus reina está fundado em sua onipotência. -
e das gentes. - 5. A divisão das leis humanas, isto é, civis, em 6. A Escritura o confirma. - 7. A obrigação de prestar obediência a
sagradas e seculares. - 6. Em distributivas e punitivas. - 7. Deus procede da fraqueza humana. - 8. As leis de Deus, em seu
Distributiva e punitiva não constituem diferentes espécies de lei, reino natural, são as que enunciamos acima, nos capítulos 11 e m. -
mas partes da mesma lei. - 8. A toda lei, supõe-se, está anexa uma 9. O que é honrar e cultuar. - 10. O culto consiste em atributos ou
penalidade. - 9. Os preceitos do Decálogo, como o que manda ações. - 11. E há um culto natural, e outro arbitrário. - 12. Um
honrar pai e mãe, ou os que proíbem o assassínio, o adultério, o culto ordenado,
roubo e o falso testemunho, constituem leis civis. - 10. É outro voluntário. - 13. Qual é o fim ou escopo do culto.
14. Quais são as leis naturais a respeito dos atributos de Deus. -
impossível a
lei civil ordenar o que quer que seja contrário à lei denatu
15. Quais são as ações pelas quais prestamos um culto
natural. -16. No reino natural de Deus, a cidade pode determinar o
reza. - 11. Para haver lei, é essencial que sejam conhecidos tanto o
culto que quiser a Deus. - 17. Quando Deus reina apenas por
seu conteúdo quanto o seu legislador. - 12. Como se fica sabendo
natureza, a cidade - isto é, o homem ou assembléia que abaixo de
quem é o legislador. - 13. Para que se conheça a lei, é preciso
Deus tem a autoridade suprema da cidade - é intérprete de todas as
publicá-Ia e interpretá-Ia. - 14. A distinção da lei civil em escrita e leis. - 18. A solução para algumas dúvidas. - 19. O que no reino
não escrita. - 15. As leis naturais não são leis escritas; e os natural de Deus é pecado, e o que é traição à Majestade Divina.
pareceres dos juristas e o costume não constituem leis
automaticamente, mas apenas
graças ao consentimento do poder supremo. - 16. O que significa a
XVI - DO REINO DE DEUS SOB O ANTIGO PACTO... 261
palavra "pecado", em sua acepção mais ampla.
17. Definição de pecado. - 18. Diferença entre um pecado cometido por 1. Com a superstição possuindo as nações estrangeiras,
fraqueza e por maldade. - 19. Em que espécie de pecado consiste o Deus instituiu a verdadeira religião por meio de Abraão.
ateísmo. - 20. O que é traição. 2. Pelo pacto entre Deus e Adão, proíbe-se toda discussão sobre as
21. Pela traição não se rompem as leis civis, mas as naturais. - 22. ordens dos superiores. - 3. A fórmula do pacto entre Deus e "
E portanto ela deve ser punida, não pelo direito de domínio, mas Abraão. - 4. Nesse pacto nâo está contido o mero reconhecimento
pelo de guerra. - 23. Não é correto distinguir a obediência em ativa de Deus, mas sim o dele tal como apareceu a Abraão. - 5. As leis às
e passiva. quais Abraão estava obri
.
dade civil definir o que é o pecado de injustiça. - 11. Cabe à
gado eram apenas as leis de natureza e a da circuncisão. - 6. Junto a
autoridade civil definir o que tende à paz e defesa da cidade. - 12.
seus dependentes, Abraão era o intérprete da palavra de Deus, e de
Cabe também à autoridade civil julgar, quando preciso for, que
todas as leis. - 7. Os súditos de Abraão não pecariam ao lhe
definições e que deduções são verdadeiras. - 13. O ofício de Cristo
obedecerem. - 8. O pacto de Deus com os hebreus no monte Sinai. -
consiste em ensinar a moral não como teoremas, mas enquanto lei;
9. Desde então o governo de Deus chamou-se o seu reino. - 10. Que
e em perdoar pecados, e ensinar todas as coisas que não sejam
leis foram dadas por Deus aos judeus. - 11. O que é a palavra de
objeto de ciência propriamente dita. - 14. Distinção entre coisas
Deus, e como pode ser conhecida. - 12. O que se considerava a
temporais e espirituais. - 15. Em quantos sentidos a palavra de Deus
palavra escrita de Deus, entre os judeus. - 13. O poder de interpretar
se pode entender. - 16. Nem tudo o que está contido na Sagrada
a palavra de Deus e o poder supremo político estiveram unidos em
Escritura pertence ao cânone da fé cristã'. - 17. A palavra do
Moisés enquanto ele viveu.
intérprete legal das Sagradas Escrituras é palavra de Deus. - 18. A
- 14. Também estiveram unidos no sumo pontífice, durante a vida
autoridade para interpretar as Escrituras é a mesma que determina
de Josué. - 15. Estiveram também unidos no sumo
as controvérsias na fé. - 19. Diversas significações da palavra
pontífice até o tempo do rei Saul. - 16. Também estiveram unidos
"Igreja". - 20. O que é uma Igreja, a que atribuímos direitos, ações e
nos reis até o cativeiro. - 17. Voltaram a estar unidos no sumo
as demais capacidades que caracterizam uma pessoa. - 21. Uma
pontífice, após o cativeiro. - 18. Entre os judeus, as únicas formas
cidade cristã é o mesmo que uma Igreja cristã. - 22. Estados separa-
de traição a Deus consistiam na negação da Divina Providência e na
dos não constituem uma Igreja. - 23. Quem são os eclesiás-
idolatria; em tudo o mais, eles deviam obedecer a seus príncipes.
ticos. - 24. A eleição dos eclesiásticos compete à Igreja, e a sua
consagração aos pastores. - 25. O poder de perdoar os pecados dos
penitentes, e de reter os dos impenitentes compete aos pastores;
mas o de julgar a penitência é da Igreja. - 26. O que é a
XVII - DO REINO DE DEUS SEGUNDO A NOVA excomunhão, e a quem não se aplica. - 27. A interpretação das
ALIANÇA .................................................................... 283 Escrituras depende da autoridade política. - 28. Uma cidade cristã
deve interpretar as Escrituras por meio de pastores.
1. As profecias sobre a dignidade de Cristo. - 2. As profecias sobre
sua humilhação e paixão. - 3. Jesus era o Cristo. - 4. O reino de
Deus pela nova aliança não era o reino de Cristo enquanto Cristo,
mas enquanto Deus. - 5. O reino
pela nova aliança é celestial, e começará no Dia do Juízo.
6. O governo de Cristo neste mundo não foi soberano, mas um XVIII - DAS COISAS NECESSÁRIAS PARA ENTRAR
conselho: um governo por meio da doutrinação e da persuasão. - 7. MOS NO REINO DOS CÉUS ............................. ".. 329
O que são as promessas da nova aliança, nas duas partes que a 1. A objeção de que haveria contradição entre obedecer a Deus e
firmam. - 8. Cristo não fez leis novas, a não ser as que instituem os aos homens será refutada distinguindo-se os pontos necessários e
sacramentos. - 9. Arrependeivos, Batizai-vos, Obedecei aos desnecessários à salvação. - 2. Todas as coisas que são
mandamentos, e outros preceitos semelhantes não constituem leis. - necessárias à salvação estão contidas na fé
10. Cabe à autori
.
e na obediência. - 3. Que espécie de obediência se requer de nós. -
4. O que é a fé, e como se distingue da profissão, da ciência e da
opinião. - 5. O que é acreditar em Cristo. - 6. O propósito dos
evangelistas prova que para a salvação é necessário apenas crer num Apresentação
só artigo - que Jesus é Cristo... - 7. ... o que também provam as
pregações dos apóstolos... - 8. ... a facilidade da religião cristã... - 9.
... o fato de ser este artigo o fundamento da fé... - 10. ... bem como
as palavras mais evidentes de Cristo e de seus apóstolos. - 11. Nesse
artigo está contida a fé do Velho Testamento. - 12. Como a fé e a
obediência concorrem para a salvação. - 13. Numa cidade cristã, não
há contradição entre as ordens de Deus e as da cidade. - 14. As
doutrinas I
que hoje provocam controvérsia no campo da religião é
porque na verdade se referem, em sua maior parte, ao direito de Sabemos pouco da vida de Hobbes: os fatos principais, sim,
domínio. porém quase nada de sua intimidade e mesmo de como ele trabalhava'.
Mas um dos momentos principais de sua vida foi imortalizado por
John Aubrey, que, nas Brief Lives, narra o que poderíamos chamar a
Notas ................................................................................. 349 cena primitiva do filósofo, o momento em que ele desperta, já tarde
(porque tinha quarenta anos), para a filosofia.

Ele completou seus quarenta anos antes de se debruçar sobre a


geometria - o que aconteceu por acidente. Estando na biblioteca de
um fidalgo, viu abertos os Elementos de
Euclides, no teorema 47 do Livro I. Leu a proposição. Por D..., disse
ele (que de vez em quando praguejava, para dar ênfase ao que dizia),
isto é impossível! Então lê a demonstração do teorema, que o remete a
uma proposição anterior, que ele também lê. Esta o remete a outra
anterior, que ele também lê. Et sic deinceps2, de tal modo que afinal
ele se sentiu convencido, pela demonstração, daquela verdade. Isto o
fez apaixonar-se pela geometria.

É, portanto, a história de uma paixão ("This made him in love


with Geometry"), de um enamoramento à primeira leitura. Nos
anos que se seguem, Hobbes, que ganhava a

XXI
~

Do Cidadão Apresentação

vida como preceptor dos condes de Devonshire, e até então tivera Mas não só; este amor tem igualmente por objeto o método
basicamente a formação e atuação de um scholar geométrico. Nisto, é claro, Hobbes não constituiu exceção em seu
humanista - tanto que por essa época terminava uma tradução da século. O importante em sua obra, porém foi trazer o método dito
História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides -, vai voltar sua galilaico - que consistia em resolver o objeto dado em seus
atenção para as questões da nova ciência, da física em especial. elementos constituintes, para depois compô-Io novamente em sua
Passando no continente vários anos da década de 1630 (e depois o complexidade - para a consideração da política. Pretendeu, com isso,
decênio quase inteiro de 1640), visita Galileu - é pena que não tornar a política uma ciência (dirá, mais tarde, que a "ciência
tenhamos um relato no pormenor de seu encontro - e priva com política" não é mais antiga que seu livro Do Cidadão), e sobretudo
Mersenne. Escreve, a Descartes, as notáveis Terceiras Objeções, fazê-Ia irrefutável. Daí a importância desta descoberta que nos
que tanto irritam o autor das Meditações Metafísicas, porque relata Aubrey: Hobbes primeiro resiste à proposição que lê; só
mostram o radical estranhamento entre duas filosofias, uma já com a demonstração é que se rende a ela. Não será possível, então,
constituída, outra em vias de sê-Io. conseguir igual efeito na filosofia política? Fazer com que os
Este enamoramento de Hobbes tem, contudo, dois aspectos. homens, que resistem às verdades que lhes trariam a paz, sejam
Por um lado, é uma paixão pela ciência dos corpos. Em várias convencidos pelo modo geométrico? O próprio Hobbes não
passagens, Hobbes se diz interessado, an acredita muito nessa possibilidade, porque, como repetirá várias
tes de mais nada, pela física. Concluindo em 1651 o Le vezes em suas obras, vê uma grande diferença entre as verdades da
viatã - que é a terceira, e última versão de sua filosofia política -, ciência física, que não contradizem nossos apetites, e as da política
congratula-se ele por poder agora voltar à sua "interrompida ou de nossa psicologia, que se chocam diretamente com nossas
especulação sobre os corpos naturais"3. No prefácio ao Do paixões; por isso é quase vão pregar aos homens; mas, ainda
Cidadão, dirá ele que precisou deixar os estudos de física para assim, ele geometriza a política, melhor dizendo, procura submetê-
tratar da política mais cedo do que esperava, devido aos conflitos Ia a uma demonstração dedutiva, na qual o elemento simples a que
que se precipitavam em seu país. Com efeito, Hobbes planejara chega é o contrato.
escrever sua obra em três etapas. A primeira se voltaria para o Será, certamente, um paradoxo que um filósofo que pretendia
exame dos corpos; seria sua física. Na segunda, consideraria, dentre ser conhecido como físico tenha ficado para a história do
os corpos, em particular os dos homens - o que em linguagem de pensamento como um dos mais originais estudiosos da política,
hoje chamaríamos sua psicologia. Na terceira, finalmente, estudaria enquanto se esquecia a ciência que fez.
os homens enquanto cidadãos: a política4. Mas parece, pelo fato de Assim, quando é fundada, em 1673, a Royal Society - a
que nos primeiros cinco ou dez anos de seus estudos propriamente grande associação científica inglesa -, ele nem sequer é convidado
filosóficos Hobbes se interessou sobretudo pela física, e de que para integrá-Ia (et pour cause: entre seus líderes estão inimigos
depois de 1651 entendeu concluídos seus trabalhos, pelo menos os seus), e nos últimos anos de vida Hobbes escreve libelos contra
principais, de política, que sua paixão mesmo era pelo estudo dos esses adversários, acusando-os de maus cientistas e de súditos
corpos. desleais, ao mesmo tempo que invoca em seu favor o testemunho
positivo que Mersenne e ou

XXII XXIII
..
Do Cidadão Apresentação

trosderam de seus estudos. Não importa: o que dele ficou foi, que parecem ter sido uma família especialmente mal talhada para o
sobretudo, a política. governo. Mas as finanças do reino estavam más (o que Isabel
Esta, Hobbes escreve em três tratados sucessivos, cada um dos cuidadosamente ocultara) e o rei, que vinha
quais pretende ser uma retomada mais completa do anterior. O de um país paupérrimo, queria gastar; ficou a imagem de
primeiro é o De Corpore Politico, que redige nos anos 30 e faz um príncipe perdulário, com tendências homossexuais, rodeado de
circular em manuscrito no final daquela década. É este o momento favoritos inteiramente desinteressados do bem público. Além
em que Hobbes retorna à Inglaterra de suas viagens pelo continente, disso, Jaime fez a paz com a Espanha, praticamente instalando o
e em que o rei Carlos I assiste ao fracasso de sua política despótica. embaixador desse país em seu ministério; e, quando começou a
Uma rápida exposição histórica, aqui, é necessária. Guerra dos Trinta Anos, o grande conflito entre católicos e
protestantes que dividiu a Europa, manteve-se omisso - embora o
pivô da guerra fosse o fato de sua própria filha e de seu genro
terem sido convidados, protestantes que eram, a assumir o trono da
II Boêmia, que pertencia ao Imperador, católico. O resultado foi que
a Câmara dos Comuns, que temera a ira de Isabel, teve coragem
para opor-se a Jaime, negando-lhe os recursos que pedia, a menos
A ascensão ao trono em 1603 de uma nova dinastia - a
que aceitasse adotar uma política externa protestante. Esta
Stuart, com Jaime I, que já era rei da Escócia - representa um
significaria: que fizesse a guerra à Espanha e ao Imperador, pondo-
marco divisor na história inglesa. Ele sucede a Isabel, a última
se do lado das potências protestantes; que pusesse fim aos
Tudor, que consolidara a Reforma protestante em seu país,
monopólios comerciais que entravavam, internamente, a livre
efetuando um eficaz meio-termo entre o quase catolicismo de seu
concorrência; que favorecesse a navegação inglesa, quer a
pai, Henrique VIII, e o protestantismo radical de seu irmão,
mercante, quer a de corso.
Eduardo VI, que faleceu ainda adolescente. A rainha, além disso,
Carlos, que sucede ao pai em 1625, é ainda mais infeliz que
conseguiu produzir uma identificação decisiva e alternativa entre o
ele em suas políticas. Afinal, Jaime, autor de várias obras de
protestantismo e a causa nacional, graças, sobretudo, à ameaça
filosofia política e de demonologia, sempre se dispunha a expor
católica que vinha da Espanha, que ela derrotou em 1588, ao repelir
suas idéias, e mais de uma vez se dirigiu aos Comuns, tratando-os
a Invencível Armada. Um dos melhores estudos sobre a ideologia
como filhos 4 quem queria instruir; Carlos, porém, não tem
isabelina encontramos em Astraea, de Frances Yates, que mostra
paciência ante o que considera ofensivo a seu trono e à missão do
como a rainha conseguiu fazer de sua virgindade, e portanto do fato
rei. Passados apenas três ou quatro anos de governo, decide
de que não teria herdeiros de seu corpo (algo bastante negativo
governar sem parlamento. Ora, a situação constitucional inglesa
numa monarquia), o penhor
era, e continuaria sendo até o fim do século, com a Revolução
de um casamento com seu povos. Seu reinado foi assim ex-
Gloriosa de 1688 e os atos constitucionais que a ela se seguiram,
tremamente popular. Mas deixou crises econômicas prontas para
bastante imprecisa. O país não tinha constituição escrita6, nada
explodir.
exigindo do rei que convocasse parlamentos, a não
Esse legado quem recolheu foi Jaime I. Não é preciso nos
alongarmos sobre a inépcia dele e dos Stuart em geral,

xxv
XXIV
..
Do Cidadão Apresentação

ser o fato de que só a reunião dos Comuns e dos Lordes podia O rei e o arcebispo de Cantuária, William Laud, tentam impor
conceder-lhe impostos; e estes eram entendidos como à Igreja da Escócia, que é presbiteriana, a organização da Igreja
excepcionais. Um bom rei deveria viver of bis own, assim repetem Anglicana - isto é, procuram substituir uma ordem na qual os
os juristas, de Fortescue, no século :XV, a Coke, já no XVII: de próprios fiéis elegem seus pastores por outra na qual estes seriam
seus bens, explorando sabiamente o domínio real, ou cobrando tutelados por bispos; disso resulta uma Liga e Pacto Solenes, pelos
taxas pelos serviços que garantisse, como o uso das estradas reais quais os escoceses, desde a nobreza até a plebe, firmam uma
ou dos portos. Ora, dado que era impossível governar só com esse convenção com Deus, para defender sua Igrejas. Carlos I, sem
dinheiro, os reis convocavam um parlamento (não se usava o artigo dinheiro para defender-se do exército rebelde, tem então de
definido porque não se tratava de uma instituição permanente) convocar um parlamento. Se uma primeira tentativa o leva, irritado,
sempre que necessário, a cada ano ou poucos anos. Logo que se a dissolver a casa (o Curto Parlamento, que dura três semanas), as
reuniam, os parlamentares tratavam de requerer ao rei que coisas se agravam rapidamente a ponto de ele precisar convocar
atendesse a suas queixas, e uma negociação se seguia, na qual a uma nova assembléia. Não é mera coincidência que tenha sido esta -
coroa trocava as verbas de que necessitava pelas medidas que os o Longo Parlamento, que salvo um intervalo foi poder legal de 1640
Comuns lhe pediam. Assim, sem que nada estivesse formalizado, de a 1660 - a primeira assembléia para cuja eleição houve uma
pouco em pouco tempo se reunia um parlamento. Mas a chave do campanha política montada em escala nacional, com John Pym indo
sistema era que cada lado cedesse, para que não houvesse impasse. de condado a condado negociar candidaturas.
Ora, sucede que com Carlos I se chega efetivamente a um De novo a intransigência e a inabilidade do rei o levam ao
impasse. O rei se recusa a qualquer concessão. Diz, em mais de um confronto, mas desta vez a oposição sabe agir. Recusalhe recursos,
discurso, que se nega a negociar (o que considera humilhante, a não ser quando os troca por medidas substanciais: a supressão do
mesquinho); sente-se chantageado. Decide então, seguindo a episcopado, uma lei mandando reunir um parlamento pelo menos a
doutrina do direito divino dos reis cada três anos, o acordo do rei para que o parlamento atual não
que seu pai fora o primeiro a formular modernamente7, que possa ser dissolvido ou sequer posto em recesso sem seu acordo, o
lhe cabe cuidar da conservação de seus súditos como ele entender julgamento e execução do próprio ministro mais próximo de
melhor, assim se desincumbindo da missão que Deus lhe confiou. Carlos, o conde de Stafford... Hobbes foge para a França, temendo
Durante alguns anos, a administração vive de taxas e de por sua vida, porque o De Corpore Politico está circulando e ele
expedientes, alguns francamente ilegais ou pelo menos duvidosos, e receia (mera ilusão) que os Comuns o persigam. É na França que
na verdade só consegue manter-se renunciando, por um lado, a ter termina o De Cive, que publica, em latim, no ano de 1642. Neste
uma política externa ativa (isso num momento em que a Europa está livro, como no anterior e ainda no Leviatã, as referências à política
cindida pela última guerra de religião), e por outro lado inglesa são constantes, embora quase sempre implícitas.
prejudicando, com os monopólios que o rei vende, o Os anos de Hobbes na França são frutíferos: retoma o contato
desenvolvimento econômico do país. No final dos anos 30, porém, a com o círculo de Mersenne. Um amigo, Samuel Sor
situação alcança um patamar de excepcional gravidade.

XXVII
XXVI
..
Do Cidadão Apresentação

biere, traduz o De Cive em francês. Seu patrono, o conde de melhor, ele uma vez presumido (estendi-me sobre este assunto em
Devonshire, pede-lhe que discuta sobre o livre-arbítrio, o acaso e a outro lugarlO), o poder é total. Mas o resultado inevitável disso é
necessidade com outro exilado, o bispo anglicano de Derry, na que a obrigação do súdito a obedecer só perdura enquanto o
Irlanda, dr. John Brarnhall - disso nasce uma polêmica áspera e, governante o protege. Assim, qualquer indivíduo, desde que não
para nós, saborosa. Mas, em 1651, Hobbes publica o Leviatã. Sob esteja mais protegido, recupera sua plena liberdade de agir - quer
vários aspectos, este seu últi porque o governante se descuidou dele, quer porque decidiu puni-
mo tratado político retoma as mesmas idéias do Corpore Politico e Io, e neste segundo caso ainda que a culpa seja do súdito. Mais do
do Cidadão - veremos depois mais detalhadamente as diferenças. que isso, se o governante legítimo perdeu o controle de seu ter
Contudo, esta obra suscita no meio realista de Paris, que Hobbes ritório, e outro - quer um rebelde, quer um invasor - se
freqüenta, uma viva indignação, a ponto de fazê-Io fugir às pressas mostra capaz de assegurar a ordem, é ao novo poder que devemos
para a Inglaterra, temendo (dirá, mais tarde) que o matassem. Pode obediência. A própria noção de legitimidade, aliás, perde parte de
ser, mais uma vez, que exagere, mas de qualquer forma a seu sentido: desde que um governo cumpra o seu papel, ele é legal,
repercussão do livro não foi boa no milieu exilado. Parece-me que mas dizer isso é quase que uma redundância. Por sinal, Hobbes usa
tenha sido por uma novidade do Leviatã que, a rigor, representa o termo lawful, que às vezes é até preciso traduzir como legítimo,
uma diferença quase que só de ênfase em relação às obras mas que em todo caso se inscreve numa vertente contrária ao legiti-
precedentes, mas que a seus leitores deve ter soado como propria mismoll .
mente terrível. No capítulo XXI, ao tratar da liberdade dos súditos, Esta diferença assume, assim, grande importância. É de ênfase,
Hobbes afirma que, se o governante (mesmo legítimo) não tiver inegavelmente, mas basta que a comparemos com o final do
"Prefácio" ao Do Cidadão, em que Hobbes pede a seus leitores que
mais condições de garantir a paz e a ordem em seu reino, porque
corram a denunciar quem quiser subverter a ordem, para notarmos
um usurpador se apoderou do território, devem os súditos obedecer
que alguma mudança ocorreu entre os dois livros: aqui é um realista
ao novo poder - desde, é claro,
quem fala, mas no Leviatã será alguém que já se conformou à nova
que este possa assegurar-Ihes a paz etc. Hobbes é ainda mais
ordem12. Ao mesmo tempo, essa diferença permite engatar a carrei-
peremptório na "Revisão e conclusão" com que encerra o livro - e
ra de Hobbes e a recepção de seu livro, para não dizer, sim-
que, na edição latina de 1670, será suprimida9.
plesmente, sua vida e obra; e igualmente nos autoriza a desvinculá-
O curioso é que essa tese, que tanto indignou os realistas, é
Io de uma imagem ainda demasiado corrente, a do defensor da
rigorosamente conforme à filosofia de Hobbes, nada tendo
causa monárquica (basta ver como precisamos nos policiar, falando
propriamente de nova. Com efeito, Hobbes e
de Hobbes, para dizer "soberano"; a língua de quase todos
os realistas concordavam quanto ao poder absoluto que
facilmente pronuncia um "rei", figura, porém, que é apenas uma
davam ao soberano, mas com base em fundamentos os mais dentre as que podem portar a soberania)13.
distintos. Carlos I, seguindo nisso a seu pai, entendia que sua
autoridade vinha de Deus. Hobbes, contratualista,
assenta qualquer poder político no consentimento inicial do povo a
ser governado. Na prática, a diferença pode parecer pequena
porque, uma vez dado o consentimento, ou

XXVIII XXIX
..
Apresentação
Do Cidadão

um povo unido pelo contrato. Poderíamos dizer que a cada etapa de


lI! sua publicação, Hobbes foi aprimorando suas teses, e assim
dissipando as obscuridade, os pontos mal atados. É possível. Mas é
Será conveniente, dada a importância do Leviatâ e deste livro, inegável, por outro lado, que este livro é menos veemente que o
fazer uma certa comparação de ambos. Comecemos lembrando que Leviatâ na negação de qualquer socialidade prévia ao Estado. Aliás,
por muito tempo se considerou Do Cidadâo como a obra mais o mesmo se vê na moral. Aqui há mais elementos morais que no
importante de Hobbes. Sem desfazer de seus méritos, julgo porém Leviatâ, quer quando Hobbes afirma que em todo Estado o roubo, o
que em parte isso se homicídio e o adultério são crimes, variando somente a sua
deveu a ter ele sido publicado inicialmente em latim, o que definição, quer quando limita nossa obediência ao governante em
lhe conferia maior difusão; o Leviatâ sempre foi um livro mais matéria religiosa, dizendo que no caso de ele se voltar frontalmente
inglês. Hoje, a maior parte dos comentadores se concentra no contra a religião cristã não devemos mais segui-lo, e até deveríamos
Leviatâ, o que nos dá, justamente, uma boa razão ir a Cristo pelo martírio. Já o Leviatâ limita a obrigação de sacrificar
para ler Do Cidadâo. Sob vários aspectos, os dois livros se a vida pela fé àqueles que, sendo eclesiásticos, são os profissionais,
complementam, havendo passagens que se repetem, mas muitas se assim podemos dizer, da profissão de fé.
outras em que um esclarece o outro. Há, porém, diferenças de Com isto chegamos ao que constitui o maior divisor
ênfase, ou mesmo de enfoque. entre os dois livros, a questão religiosa. Se cotejamos cada capítulo
Destas, provavelmente a mais importante diz respeito à visão do Cidadâo com os que lhe correspondem no Leviatâ (d. a remissão
do homem na sociedade. O mesmo Hobbes que no Leviatâ insistirá que fazemos, nesta tradução, na primeira nota a cada capítulo),
com tanta ênfase em que "as leis de nature notamos algumas grandes ausências. Primeira e menor, que
za... são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem nenhum capítulo do Leviatâcorresponda ao capítulo IV deste livro,
tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e na verdade apenas redundante em relação ao que o precedia.
coisas semelhantes"14 e dirá que "os homens não tiram pra Segunda, e mais importante, que nada no Cidadâo corresponda aos
zer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo con capítulos do Leviatâ anteriores ao XIII - mas esta ausência é fácil
trário, um enorme desprazer); quando não existe um poder de explicar. Trata-se da primeira parte quase inteira do Leviatâ, que
capaz de manter a todos em respeito"15 aqui afirma com tem por objeto "o homem"; ora, este, no plano
mais freqüência os benefícios da companhia dos homens. É de Hobbes, seria objeto de um livro à parte; Do Cidadâo
claro que a estrutura básica permanece a mesma, de uma corresponde assim ao que no Leviatâ é basicamente a segunda
oposição entre o estado de natureza e o estado civil, entre parte16.
a desordem e a sociedade; mas há algumas indicações de uma Isso nos permite apreender melhor a diferença entre os dois
semi-socialidade já antes de haver a sociedade, o que livros. O Leviatâ é uma grande obra de resumo, que envereda por
no Leviatâ praticamente desaparece. Basta um caso a exemplificar temas que Hobbes ignorou no livro anterior, mas que já pertenciam
e a ambigüidade, o do termo multidâo. No Leviatâ esta é a sua reflexão (veja-se, em especial,

formar
i
se pre informe, precedendo o Estado, e nada mais
sendo q e a soma de vontades individuais que, em deter
minado momento, convergem, mas não chegam a

uma unidade. Aqui, o termo oscila entre este sentido e o


de XXXI
xxx
..
Do Cidadão
Apresentação

seu Human Nature, de 1640). Escrito em inglês, visa diretamente a


Esse empreendimento tem um sentido estratégico, o de limitar
um público mais localizado geograficamente (ninguém conhece
o poder eclesiástico, que prevalece indevidamente, sobre o poder
essa língua fora das Ilhas Britânicas) e menos erudito, ao passo que
político e sobre a vida privada dos cidadãos, valendo-se da
Do Cidadão, publicado em latim, atinge um público especializado e
ignorância dos leigos. Com efeito, homens que somos de outra
europeu17. É isso o que explica o estilo quase de "almanaque" que
época, temos por vezes grande dificuldade de entender contra quem
em certas passagens o Leviatã adquire - como no começo do
Hobbes constrói o seu conceito de poder absoluto. Como,
capítulo IV, tratando da linguagem, a informação sobre quem
historicamente, na era do capital triunfou uma organização política
inventou a escrita. Ao leitor inglês, que não domine o latim, Hobbes
liberal, e esta se legitimou e ainda se legitima dizendo-se oposição a
quer oferecer a um só tempo a boa filosofia, que proporciona o
uma ordem totalitária ou absolutista, tendemos a ler o Estadoleviatã
conhecimento adequado da política, e uma suma de informações
com base nessa imagem, altamente negativa, que dele ficou. Ora, tal
que o tornem culto (por exemplo, quem foi Flávio Josefo etc.).
leitura é um tanto quanto errada. Em primeiro lugar, porque Hobbes
Mais que isso, Hobbes é um dos primeiros a escrever filosofia em
não se opõe ao capital, mas apenas a seu primado político; a este
inglês, seguindo, é certo, Francis Bacon, para quem aliás trabalhara
respeito C. B. Macpherson escreveu páginas decisivasl8. Mas em
como tradutor. Por sua vez, Do Cidadão é mais acadêmico,
segundo lugar e mais importante - o que quase todos os comentado-
delineando melhor o itinerário das demonstrações - que no Leviatã
res, inclusive Macpherson, esquecem -, porque o poder absoluto se
são mais resumidas -, e por vezes mais repetitivo (quantas vezes
constitui, em Hobbes, antes de mais nada con
não retorna, em vez; de "soberano", a longa expressão "o homem
tra as pretensões do clero a influir no poder político. É o clero o
ou o conselho que tem a autoridade suprema na cidade").
grande culpado, para nosso filósofo, pela desordem, num plano
A terceira difer
político, e pela infelicidade, no âmbito pessoal: é quase impossível
ele não almejar o poder, de modo que subverter a ordem é, para o
sacerdote, quase que uma moléstia profissional; ele corrói a
ça, e certamente a mais importante, diz obediência devida ao soberano fortalecendo na religião o papel do
respeito ~o que onstituirá, no Leviatã, suas partes terceira e quarta,

;
prati amente sem correspondência no Cidadão. Com efeito, a
última parte do livro que ora apresentamos, "Religião", é menos
abrangente que os capítulos correspondentes no Leviatã. Nesta
medo, o que infelicita, em especial, os moços (culpabilizando o
desejo sexual, dirá Hobbes no Behemoth); é dessa forma que o
clero cria um Estado no Estado, mais poderoso até que o legítimo,
porque, invocando o nome de Deus, pode brandir a ameaça de
última obra, a terceira parte tem por tema "o Estado cristão", e castigos eternos.
consiste basicamente numa leitura bíblica com os procedimentos de Esse papel da Igreja fica mais evidente no Leviatãonde ocupa
rigor que em breve teriam seu maior expoente em Richard Simon, toda a quarta parte, consagrada ao "Reino das Trevas", que é a
mas que já se desenvolviam por toda a Europa. Trata-se de Igreja Romana - que no Do Cidadão, onde é pouco mencionado.
considerar o livro por excelência, a Bíblia, como um texto a Mas já na terceira parte do Leviatã Hobbes, analisando o discurso
decifrar mediante as novas técnicas de leitura, a fim de penetrar a bíblico, permite uma inter
definição de cada um de seus conceitos-chave.

XXXII
XXXIII
--,..
Do Cidadão Apresentação

pretação mais fácil da salvação. Não há diferenças significativas IV


entre os dois livros quanto ao que é necessário para ganhar o reino
dos céus, exceto a que já comentamos: o Leviatã dispensa os meros Hobbes escreveu o De Cive em latim, certamente porque,
fiéis, os simples cristãos, dos martírios, levando mais longe ainda estando exilado, queria vê-Io divulgado e discutido no continente.
que no outro livro a idéia de que a fé é assunto da vida privada, Em 1646 acrescentou o prefácio e algumas notas explicativas (para
eximindo pois a grande maioria de um compromisso público que não se confundam com as do tradutor, vão elas marcadas,
(quando este for perigoso) com a religião. Mas, na teologia nesta edição, com um Nota de Hobbes), saindo a edição assim
hobbesiana, o Leviatã tem uma inovação de monta, que é a tese da revista em Amsterdã, no ano seguinte. Em 1649, seu amigo
mortalidade da alma (vide capítulo XXXVIII). A alma, diz Hobbes - Samuel Sorbiere publicou, sempre em Amsterdã, uma tradução
que pouco a distingue do corpo -, é mortal por natureza e somente francesa - da qual temos uma edição recente, de bolso, pela
pela graça se torna imortal. Por isso, no dia do Juízo, quando todos Garnier-Flammarion. Finalmente, em 1651, no mesmo ano em que
forem ressuscitados, os maus serão condenados e sofrerão "segunda lançava o Leviatã, Hobbes
e definitiva morte", enquanto os bons receberão a vida eterna. Essa editou sua versão inglesa do Cidadão, com o nome de Philo-
doutrina, tão heterodoxa em relação ao cristianismo mais corrente - sophical Rudiments concerning Government and Society.
por Há razões para preferir quer o texto latino, quer o inglês.
que suprime o Inferno -, provavelmente está entre os pontos que Hobbes escreveu na primeira língua, e foi esse o texto que se
levaram comentadores algo apressados a ver em Hobbes um ateu, difundiu. Mas, por outro lado - o que considero um argumento
que somente se valeria da religião para um uso político. Mas é uma decisivo -, o texto inglês foi o último a que ele pôs a mão, e pode
tese erfeitamente cabível no cristianismo. Penso que Hobbes ode ser considerado como sua versão definitiva da obra. De qualquer
devê-Ia a Richard Overton, que em 1643 publicou u Mans forma, os dois textos têm poucas divergências. As diferenças mais
Mortalitie que defende tal doutrina; curiosamente tratava-se de um substanciais estão entre eles e a tradução francesa. É verdade que
level Hobbes a terá revisado, mas na época os tradutores podiam tomar
ler, isto é, de um radical, partidári de reformas que ampliariam a ampla liberdade com os originais (a indignação que hoje sentimos
franquia eleitoral, possiv~mente distribuiriam terras e ainda tanto diante dos plágios quanto das traduções infiéis decorre de
permitiriam tudo o qu~ fosse dissidência religiosa19. Este é, de nosso culto ao autor, que não é, contudo, mais antigo que o
qualquer modo, um ponto no qual novos estudos seriam bem- romantismo e o século XIX); o resultado, na pena de Sorbiere, é um
vindos. E é essa doutrina a mais estranha das que compõem a texto muito elegante, de feitio clássico, e que arredonda as frases,
teologia hobbesiana; a negação do purgatório, por exemplo, é explica-as, em alguns casos até as modifica - embora a única
rigorosamente protestante, com seu corolário de que as almas infidelidade maior a Hobbes esteja, tanto quanto pude perceber,
estarão mortas até o dia do Juízo. Mais espantosa é a negação do no capítulo VIII, quando Sorbiere traduz servus ou servant como
Inferno, mas ainda assim possível dentro da teologia corrente no
esc/ave, o que implica, contra a expressa opinião do autor, dizer que
século XVII.
o escravo firma um pacto com seu captor.

XXXIV xxxv
..
Do Cidadão

Já O latim, embora mais seco e sucinto que a versão francesa, Cronologia


permite uma tradução equilibrada, como a que Andrée Catrysse fez
para o espanhoPo. As frases são bem medidas; não há, como em
inglês, os alongamentos que Hobbes emprega em lugar de palavras
tão simples e diretas como "soberano". Mas, ainda assim, o inglês
tem um encanto que me parece superar o ótimo artesanato do latim.
Lembremos que por volta de 1647 o poeta Edmund Waller se
ofereceu a Hobbes para traduzir o De Cive para o inglês. O filósofo Hobbes e seu tempo
aceitou, e com prazer traduziu ele próprio algumas páginas para
auxiliar seu possível colaborador. Este, quando as viu, recuou;
ninguém, disse, faria a versão tão bem quanto Hobbes21. Tal
episódio mostra bastante bem que preocupação Hobbes tinha com o 1588, 5 de abril. Nasce Thomas Hobbes, em Westport, Mal
estilo, e como este era respeitado em seu meio. O resultado, numa mesbury, Inglaterra.
língua inglesa que então estava longe de firmar seu vocabulário, sua 1596. Nasce Descartes.
sintaxe, sua o~grafia, é um estilo nervoso, tortuoso, em 1597. Francis ,Bacon publica os Ensaios.
que as frases se alongam ou se encurtam mais do que hoje nos 1600. Execução de Giordano Bruno.
1603. Hobbes ingressa no Magdalen Hall, em Oxford. Mor
soaria habitual; um texto cuja beleza está no desequilíbrio, num
te de Isabel I; Jaime I, rei da Inglaterra. Shakespeare:
ritmo artterior à normatização que prevaleceu no
Hamlet.
inglês escrito. Tentei preservar, na medida do possível, esse
1605. Cervantes: publicação da 1 ~ parte de Dom Quixote. 1608.
estilo que nos paz sentir as idéias enquanto se engendram, enquanto
Concluído o bacharelado, Hobbes é nomeado pre
bustam, frementes, seu ponto de fusã022.
ceptor do filho de Lord Cavendish; primeira viagem
/ ao continente.
Sete Praias, janeiro de 1991
1610. Na França, morre Henrique IV; Luís XIII, rei.
1616. Morrem Cervantes e Shakespeare.
1617. Morre em Lisboa o Padre Francisco Suarez.
1618. Deflagrada a Guerra dos Trinta Anos: defenestração
Renato janine Ribeiro de Praga.
1619. Kepler: Harmonices Mundi.
Frei Luís de Souza: Vida do Frei Bartolomeu dos Már
tires.
1620. Francis Bacon: Novum Organum.
1621. Nasce La Fontaine.
1622. Nasce Moliere.
1623. Nasce Pascal.
Bacon: De Dignitate et Augmentis Scientiarum.

XXXVI XXXVII
......

Do Cidadão Cronologi
a
1625. Morre Jaime I da Inglaterra; Carlos I, rei. 1648. Tratado de Vestfália: fim da Guerra dos Trinta Anos. 1649.
Cristiano V da Dinamarca intervém na guerra alemã. 1626. Condenação e execução de Carlos I; proclamada a
Morre Francis Bacon. 1629. Hobbes publica uma tradução da República na Inglaterra (17/2); no poder, o Conselho de
Guerra do Pelopo Estado, com 40 membros; O. Cromwell massacra a
neso, de Tucídides. população católica da Irlanda.
Vitória católica contra Cristiano V. Tratado de Lübeck. 1650. Hobbes publica os Elementos da Lei Natural e Política.
1630. Segunda viagem de Hobbes ao continente. 1631. Hobbes Morre Descartes
redige o Pequeno Tratado sobre os Primeiros 1651. publicação do Leviathan. 1652. Hobbes é banido da corte
Princípios. inglesa no exílio e retoma
1632. Galileu: Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do à Inglaterra. 1653. Oliver Cromwell, Lord Protector da
Mundo. Inglaterra. 1655. Publicação de De Corpore, estabelecimento
Nascem John Locke e B. Spinoza. definitivo
1633. Nasce o futuro rei Jaime 11. 1634. Terceira Vi da filosofia natural de Hobbes.
gem de Hobbes ao continente, que se pro- 1656. Spinoza é excomungado pelo conselho de rabinos.
longará até 1636; nela, Hobbes se encontrará em Pisa com Pascal escreve as suas Provinciais.
Galile .

j
1637. Descartes: iscurso do Método.
Hobbes redige um resumo da Retórica de Aristóteles e
elal)ora o plano de seu sistema de filosofia; o Corpo, o
1658. Hobbes: De Homine.
Morte de Oliver Cromwell; seu filho Richard é no
meado seu sucessor.
1659. Abdicação de Richard Cromwell.
1660. Restauração da monarquia na Inglaterra: Carlos 11, rei. 1662.
Homem e o Cidadão.
1640. Circulam em manuscrito os seus Elementos de Lei Natural e Morte de Pascal.
1668. Hobbes traduz trechos da llíada e da Odisséia. 1670. Tratado
Política. Deteriora-se a situação política inglesa e Hobbes
Teológico-Político, de Spinoza.
retira-se para a França, onde permanecerá onze anos.
1675. Newton envia à Royal Society suas observações sobre
1641. Publicação das Meditações de Descartes, com as Ob
a luz.
jeções de Hobbes.
1677. Morte de Spinoza.
1642. Publicação Do Cidadão, em Paris.
1679. Morte de Hobbes.
Na Inglaterra, início da Guerra Civil: Carlos I desafia o
Parlamento em Nottingham (23/8).
Morre Galileu, nasce Newton.
1645. É nomeado preceptor do Príncipe de Gales, o futuro
rei Carlos 11 da Inglaterra. 1646. Nasce Leibniz. 1647. Na
Inglaterra, batalha de Naseby, com derrota dos
realistas; pouco depois, Carlos I é preso.

XXXVIII XXXIX
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CAPÍTULO I

Epístola Dedicatória
A SUA SENHORIA,
O CONDE WILLIAM DE DEVONSHIRE

Milorde,

Dizia o povo de Roma, a quem o nome de rei se tornara


odioso, tanto pela tirania dos Tarquínios quanto pelo gênio e as leis
daquela República, dizia, retomo eu, o povo romano, embora pela
voz de um particular - se é que Catão, o Censor, era um mero
particular -, que todos os reis deviam ser incluídos entre os animais
de rapina. Mas o próprio povo romano, que com suas águias
conquistadoras espalhou seus altivos troféus por todo o vasto e

( remoto mundo, impondo aos africanos, asiáticos, macedônios,


aqueus e a muitas outras nações conquistadas uma especiosa servi-
dão, a pretexto de fazer deles súditos romanos, não era ele uma fera
/
igualmente rapace? De modo que, se Catão era sábio no que dizia,
não menos sábio era Pôncio Telesino, que gritava para todas as
companhias de seu exército, na famosa batalha que travou com
Sila, que a própria Roma devia ser arrasada juntamente com Sila -
porque sempre haveria lobos e predadores da liberdade, a menos
que pela raiz se extirpasse a floresta que os abrigava!.
Para ser imparcial, ambos os ditos são certos - que o homem é
um deus para o homem, e que o homem é lobo do homem. O
primeiro é verdade, se comparamos os cidadãos entre si; e o
segundo, se cotejamos as cidades2. Num, há

3
Do Cidadão Epistola Dedicatória

alguma analogia e semelhança com a Divindade, através da Justiça pode, obviamente, ser fruto de uma agudeza imprevista, mas
e da Caridade, irmãs gêmeas da paz; no outro, porém, as pessoas de somente de uma razão bem equilibrada que, para resumir numa só
bem devem defender-se usando, como santuário, as duas filhas da palavra, chamamos filosofia. É por aí que um caminho se abre para
guerra, a mentira e a violência - ou seja, para falar sem rodeios, nós, no qual da contemplação das coisas particulares avançamos
recorrendo à mesma rapina das feras. Os homens têm o hábito de até inferir ou deduzir ações universais.
censurar tal conduta uns nos outros, por um costume, que lhes é Vejamos, agora, quantas espécies de coisas há, que
congênito, de mirarem suas próprias ações nas pessoas dos demais - propriamente caem no âmbito do que a razão humana pode
de modo que, como num espelho, todas as coisas que estão do lado conhecer; e tantos serão os ramos em que se divide a árvore da
esquerdo aparecem à direita, e o que estava no lado direito parece filosofia. E, da diversidade da matéria de que tratam, foi dada a
figurar à esquerda; mas o direito natural de conservação, que nos esses ramos uma comparável diversidade de nomes. Assim, o ramo
vem a todos dos incontestáveis ditames da necessidade, não admite que trata das figuras chama-se geometria; o do movimento, física;
que isso seja um vício, ainda que devamos confessar seja uma do direito natural, moral; e a reunião de todos esses forma a
infelicidade. filosofia - do mesmo modo que os mares Britânico, Atlântico e
Alguns poderão admirar-se que no próprio Catão, homem de Índico, que devem seus distintos nomes de batismo à diversidade
tão grande renome por sua sabedoria, a tal ponto prevalecesse a das terras que banham, reúnem-se, não obstante, para formar o
animosidade sobre o julgamento, e a parcialidade sobre a razão, que oceano. Quanto aos geômetras, eles se desincumbiram admiravel-
ele considerasse eqüitativa no se mente bem de seu papel: tudo o que contribuiu para melhor ajudar
a vida do homem - seja graças à observação dos céus, seja pela
Estado popular aquela mesma coisa que, na monarqui , censurava
r
como injusta. Eu, porém, tenho há muito a co vicção de que jamais
a turba insana pôde reconhecer unp prudência que fosse superior à
vulgar, ou seja, à sua - pdr
descrição da terra, ou ainda pelo registro do tempo, seja finalmente
devido às mais remotas experiências de navegaçã03 -, em suma,
todas as coisas nas quais estes tempos presentes se diferenciam da
rude simplicidade da Antigüidade, tudo isso temos de reconhecer
que devemos tão-somente à geometria.
que ela não a compreenderia ou, caso o fizesse, só a re)Sai
xaria e infamaria. Se as mais eminentes ações e os/ditos mais Se os filósofos morais tivessem cumprido seu dever com
célebres tanto dos gregos como dos romanos se tornaram objeto de igual felicidade, não sei o que nosso engenho poderia ter somado à
elogio, não foi tanto pela razão, mas sim por sua grandiosidade - e perfeição (completion) daquela felicidade que convém à vida
muitíssimas vezes por aquela usurpação que prospera (a qual humana. Pois, se a natureza das ações humanas fosse tão bem
nossas histórias tanto costumam censurar-se umas às outras) e, conhecida como, na geometria, a natureza da quantidade, então a
como uma torrente avassaladora, no curso do tempo tudo arrasta força da avareza e da ambição, que é sustentada pelas errôneas
pela frente, quer agentes públicos, quer agentes privados. A opiniões do vulgo quanto à natureza do que é certo ou errado,
sabedoria, a bem dizer, nada mais é do que o perfeito conhecimento prontamente se enlanguesceria e se esvaneceria; e o gênero
da verdade em todos os assuntos que seja. Ora, como tal conhe- humano go
cimento deriva dos registros e relações das coisas, e se dágraças ao
uso de denominações certas e definidas, não

4 5
Do Cidadão Epístola Dedicatória

zaria de paz sem fim, pois - a menos que fosse por moradia, o princípio da doutrina deve ser extraído daquela obscuridade, e
supondo-se que a Terra se tornasse muito pequena para seus depois a luz deve ser retomada a ela para dissipar todas as dúvidas
habitantes - mal restaria qualquer alegação para a guerra. que restaram. Assim, todas as vezes que um autor perde o fio da
Mas o que hoje notamos, isto é, que nem a espada nem a pena meada, por ignorância, ou que de propósito o corta, passa a nos
se vêem autorizadas a qualquer repouso; que o conhecimento da lei descrever os passos, não de seu progresso na ciência, mas de suas
natural cessa de avançar, não crescendo uma polegada além de sua extravagâncias, que dela o afastam. E foi por isso que, quando
antiga estatura; que os filósofos a tal ponto se repartem em facções dediquei minhas reflexões à investigação da justiça natural,
diversas e hostis, que a mesmíssima ação por uns é verberada, e por prontamente me vi prevenido pela própria palavra justiça (que
outros exaltada; que o mesmíssimo homem em distintos momentos significa uma firme vontade de dar a cada um o que é seu) de que
abraça distintas opiniões, e estima as ações que ele próprio comete minha primeira pergunta tinha de ser esta: a que se devia que um
de maneira muito diferente do que faria se fossem cometidas por homem pudesse chamar algo de seu, em vez de dizer que
outrem; - tudo isso, afirmo, são sinais claros e argumentos pertencesse a outro4. E quando constatei que isto se devia não à
manifestos a provar que aquilo que foi escrito, até hoje, pelos natureza, mas ao consentimento (pois aquilo que a natureza
filósofos morais em nada avançou no conhecimento da verdade. E, primeiro pôs em comum os homens depois distribuíram sob várias
se foi acolhido pelo mundo, não foi tanto por trazer alguma luz ao apropriações), fui então levado a outra pergunta, a saber: para que
entendimento, mas fim, e sob que ip}i3ttls~uando tudo era igualmente de todos em
por agradar às afeições, dado que pela bem-sucedida retoriquice de comum, os ho~ens
seu discurso eles confirmaram os homens em consideraram mais adequado que cada homem tivesse 'O~
suas opiniões apressadamente aceitas. seu bem?5 E descobri que a razão foi que, se os bens forem
Assim, esta parte da filosofia sofreu o mesmo destino que comuns a todos, necessariamente haverão de brotar controvérsias
aquelas vias públicas que são batidas por todos os viajantes, como sobre quem mais gozará de tais bens, e de tais controvérsias
estradas reais e ruas grandes: alguns as trilham por divertimento, inevitavelmente se seguirá todo tipo de calamidades, as quais, pelo
outros por negócio; por isso, devido à impertinência de alguns, e às instinto natural, todo homem é ensinado a esquivar. Assim cheguei
altercações de outros, nelas nunca há tempo de semear, e por a duas máximas da natureza humana - uma que provém de sua
conseguinte nada nunca se colhe. Ora, a única razão desta falta de parte concupiscente, que deseja apropriar-se do uso daquelas
sorte parece ser a seguinte: que entre todos os autores daquela parte coisas nas quais todos os outros têm igual participação, outra,
da filosofia nunca houve um que adotasse um princípio que seja procedendo da parte racional, que ensina todo homem a fugir de
adequado para tratá-Ia. Pois não podemos, como num círculo, uma dissolução antinatural, como sendo este o maior dano que
começar a lidar com uma ciência de qualquer ponto que nos agrade. possa ocorrer à natureza. Com base nesses princípios assim postos,
Há um certo fio da razão, cujo começo está no escuro, mas que à penso haver demonstrado neste pequeno livro de minha lavra,
medida que se desenrola vai nos levando, como pela mão, até a pelas conexões mais evidentes, primeiro a absoluta necessidade de
mais clara luz, de modo que que haja ligas e contratos, e a partir daí os rudimentos da prudência
tanto moral como civil.

6 7
Do Cidadão

Aqueles acréscimos que tratam do reino de Deus foram in-


corporados com a intenção de que os ditados de Deus Todo-
Poderoso, na lei de natureza, não pareçam repugnar à lei escrita, a
Prefácio
nós revelada em sua palavra. Também tomei a maior cautela, em
todo o meu discurso, de não me intrometer no que se refere às leis do Autor ao Leitor
civis de qualquer nação em particular - isto é, evitei aportar a
qualquer praia, estando nestes tempos todas elas tão assoladas por
tempestades e escolhos.
Não ignoro o quanto me custou, em tempo e engenho, esta
investigação sobre a verdade; mas não sei avaliar o seu resultado.
Pois, como todos somos juízes parciais de nós mesmos, somos
parciais para avaliar nossas produções. Por conseguinte, ofereço este Leitor, aqui te prometo coisas que, quando são prometidas,
livro em primeiro lugar, não ao favor de Vossa Senhoria, mas a sua parecem atrair a máxima atenção, e as deponho a teus olhos: tanto
censura. Se tiver a fortuna de agradá-Ia, ou seja, se for judicioso, se faz se consideras a dignidade ou o proveito da matéria estudada, ou
for útil, se não for vulgar, então humildemente o ofereço a Vossa Se o método correto de tratá-la, ou a honestidade de motivo e a
nhoria pedindo-lhe minha glória e proteção; mas, se em qualquer oportunidade de empreendê-la, ou finalmente, a moderação do
coisa errei, Vossa Senhoria haverá de aceitá-Io ao menos como autor. Neste livro, verás sucintamente descritos os deveres dos
penhor de minha gratidão, pois que os meios de estudo que sua homens, primeiro enquanto homens, depois enquanto súditos, e
bondade me proporcionou eu consagrei a procurar merecer o seu finalmente na qualidade de cristãos. Nesses deveres se contêm não
favor'. Que o Deus do céu coroe Vossa Senhoria com longa vida apenas os elementos das leis de natureza, e das nações, juntamente
nesta estação mortal, e, na Jerusalém celestial, com uma coroa de com a verdadeira origem e força da justiç;a, como
glória. também a certíssima essência da própria religião ctistã.--na medida
em que o permitem os limites do que me propus mostrar.
Este tipo de doutrina - com a exceção do que diz respeito
à religião cristã - os mais antigos dentre os sábios consideravam
De Vossa Senhoria o que só devia ser transmitido à posteridade se tivesse os sutis
criado muito obrigado, ornamentos da poesia, ou se revestido de alegorias, como convém
a um belíssimo e sacro mistério da autoridade régia. Isto, para que
Thomas Hobbes7 os particulares não o conspurcassem com suas altercações.
Enquanto isso, outros filósofos contemplavam as figuras e
movimentos das coisas, para proveito da humanidade, e ainda
outros, sem prejuízo da espécie humana, consideravam as
naturezas e causas

8 9
~

Do Cidadão Prefácio do Autor ao Leitor

dessas mesmas coisas. Conta-se que Sócrates, em tempos princípios verdadeiros por conexões evidentes), depois de
posteriores, foi o primeiro a amar de verdade essa ciência política! considerar os males que sofreu a humanidade devido a suas formas
que, embora ainda não fosse perfeitamente compreendida, já emitia contrafeitas e gaguejantes: pois, naquelas matérias em que
seus raios por dentre as nuvens no governo da República. E ele lhe especulamos só para exercitar nosso espírito, se algum erro nos
atribuiu tão alto valor que, abandonando por completo e escapar, é sem nenhum dano; e nada se perde, a não ser tempo;
desprezando todas as outras partes da filosofia, abraçou mas, naquelas coisas sobre as quais qualquer homem deveria
integralmente essa, julgando fosse a única digna dos esforços de sua meditar para o governo (steerage) de sua vida, necessariamente
mente. Depois dele vêm Platão, Aristóteles, Cícero e outros sucede que não só dos erros, mas até mesmo da mera ignorância
filósofos, gregos, tanto quanto latinos. E assim foi que, a longo nasçam ofensas, conflitos e até homicídios.
prazo, todos os homens de todas as nações - não apenas os filósofos, Considera agora que terrível prejuízo esses acarretam, e como
mas o próprio vulgo - vieram a tratá-Ia como coisa fácil, exposta e é grande o proveito que decorre desta doutrina da moralidade
prostituída aO engenho nativo de cada um, e que supõem - hoje exposta em verdade. Quantos reis (e quantos homens bons,
como antes - passível de se atingir sem maior esforço ou estudo. também) não foram assassinados por esse erro só, segundo o qual é
E, o que depõe em favor da dignidade da ciência política, legítimo executar um rei tirano? Quantas gargantas não cortou essa
aqueles que se gabam de tê-Ia, ou que exercem cargos para os quais falsa tese, segundo a qual um príncipe pode ser deposto por tais
seria requisito possuí-Ia, mostram enorme prazer e maravilha na homen devido a certas causas? E quanto sangue não derramou e a
suposição de que detêm esse saber. errõnea doutrina, segundo a qual os reis não são supen es
Assim, com a maior largueza aceitam eles que os praticantes de àmultidão, mas apenas seus administradores? E, finalmen e,
outras artes sejam ditos e proclamados engenhosos, eruditos, hábeis, quantas rebeliões não foram causadas apenas por aquela opinião
o que quiserdes; tudo, menos prudentes: porque esse epíteto, eles que ensina que cabe aos particulares conhecer se os mandamentos
consideram que só a eles é devi dos reis são justos ou injustos, e que antes de prestarem obediência
do, e isto devido ao conhecimento da política que pensam ter. eles não só podem, mas também devem discuti-Ios?
Portanto, se a dignidade das artes deve ser julgada pela qualidade Além disso, na filosofia moral que hoje é correntemente
das pessoas que as praticam, ou pelo número das que escreveram a acolhida há muitas outras coisas que não são menos perigosas do
seu respeito, ou ainda pelo juízo dos mais sábios - então que estas, e que ora não vem ao caso enumerar. Suponho que os
seguramente a ciência política deve ser de todas a primeira: porque antigos bem o anteviram, quando preferiram ter a ciência da justiça
ela diz respeito tão de perto aos príncipes, e a outros que têm por envolta em fábulas, a deixá-Ia exposta a discussões: porque antes
emprego o governar a humanidade; e também porque a maior parte mesmo que tais questões fossem suscitadas os príncipes não
dos homens se deleita com uma falsa imagem sua; e, ainda, porque pleiteavam, porém já exerciam o poder supremo. Conservavam a
os espíritos mais elevados dos filósofos com ela lidaram. integridade de seus impérios não por meio de argumentos, mas
Poderemos discernir melhor o benefício dessa ciência, punindo os maus e protegendo os bons. E igualmente os súditos
, quando exposta corretamente (isto é, quando é derivada de

10 11
.,....

Do Cidadão Prf!fácio do Autor ao Leitor

não mediam o que era justo segundo o que dissessem e julgassem autêntica do certo e do errado, do bem e do mal, afora aquelas que
os particulares, porém pelas leis do reino; e não eram mantidos em são lei constituída em cada reino e governo; e que a pergunta se
paz graças a debates, porém pelo poder e autoridade: e eles até alguma ação futura vai se mostrar justa ou injusta, boa ou má, não
reverenciavam o poder supremo, residisse este num homem só ou deve ser formulada a ninguém, salvo àquele a quem o soberano
num conselho, como sendo uma divindade visível; por isso não confiou a interpretação de suas leis; certamente ele nos apontará
costumavam, ao contrário dos dias de hoje, aliar-se a espíritos não só a melhor estrada (the highway) para a paz, mas também nos
ambiciosos e infernais, para provocar a mais completa ruína de seu ensinará como evitar os desvios tenebrosos, obscuros e perigosos
Estado; pois não podiam nutrir a estranhíssima fantasia de não da facção e sedição. Não conheço trabalho que possa ser mais
desejar a conservação daquilo, justamente, que lhes garante a proveitoso do que esse.
conservação. Quanto ao método que empreguei, entendi que não basta --------
Na verdade, a simplicidade daqueles tempos ainda não era utilizar um estilo claro e evidente no assunto que tenho a tratar, mas
capaz de uma peça tão erudita de loucura. Por conseguinte era a paz, que é preciso - também - principiar pelo assunto mesmo do governo
e uma idade de ouro, que só terminou depois que, sendo expulso civil, e daí remontar até sua geração, e à forma que assume, e ao
Saturno, começou-se a ensinar que era legal tomar em armas contra primeiro início da justiça; pois tudo se compreende melhor através
os reis. E afirmo que os antigos não só perceberam isso, como ainda, de suas causas constitutivas. Pois, assim como num relógio, ou em
numa de suas fábulas, parecem ter desejado habilmente ensiná-Io a outro pequeno autômato de mesma espécie, a matéria, a figura e o
nós. Pois contam eles que, quando Ixion foi convidado por júpiter a movimento das rodas não podem ser bem compreendidos, a não ser
um banquete, ele apaixonou-se e começou a cortejar a própria juno. que o desmontemos e consideremos cada parte em separado - da
Querendo enlaçá-ia, ele abraçou uma nuvem, da qual foram gerados mesma forma, para fazer uma investigação mais aprofundada sobre
os Centauros, por natureza meio homens, meio cavalos - uma os direitos dos Estados e os deveres dos súditos, faz-se necessário -
prole feroz, belicosa e não, não chego a falar em desmontá-Ios, mas, pelo menos, que
irrequieta. Mudando tão-somente os nomes, é como se os sejam considerados como se estivessem dissolvidos, ou seja: que
antigos dissessem que, sendo convidados os particulares a participar nós compreendamos corretamente o que é a qualidade da natureza
dos conselhos de Estado, desejaram eles prostituir a justiça, a única humana, e em que matérias ela é e em quais não é adequada para
irmã e esposa do soberan02, a seus próprios julgamentos e estabelecer um governo civil; e como devem dispor-se entre si os
percepções. Mas, enlaçando uma nuvem falsa e vazia em seu lugar, homens que pretendem formar um Estado sobre bons alicerces3.
eles engendraram aquelas opiniões hermafroditas dos filósofos Seguindo portanto este tipo de método, em primeiro lugar
morais, em parte corretas e belas, em outra parte brutais e coloco um princípio que por experiência é conhecido de todos os
selvagens, que são causa de tudo o que é conflito e derramamento homens, e por nenhum é negado, a saber, que as disposições dos
de sangue. Por isso, como opiniões desse tipo hoje vemos nascerem homens naturalmente são tais que, a menos que sejam restringidos
a cada dia, se algum homem agora dissipar essas nuvens, e pelas pelo temor a algum poder
razões o mais firmes demonstrar que não há doutrina

12 13
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Prefácio do Autor ao Leitor


Do Cidadão

coercitivo, todo homem sentirá desconfiança e temor de qualquer mero aos justos (righteous), no entanto, porque não temos como
outro; por direito natural ele poderá, assim como por necessidade distingui-los, temos a necessidade de suspeitar, de nos acautelar, de
deverá, fazer uso da força que possui, para preservar a si próprio. prevenir, de nos defender, necessidade esta que afeta até os mais
Objetareis, possivelmente, que há alguns que negam isto; pois honestos e de melhores condi
é verdade, sim, que muitíssimos o negam. Mas será que parecerei ções. E disso não decorre absolutamente que aqueles que
incorrer em contradição ao afirmar que os mesmos homens são maus o sejam por defeito de natureza, isto é, de seu próprio
confessam, e negam, a mesma coisa? Na verdade não me nascimento: porque, sendo criaturas meramente sensíveis, eles têm
contradigo, mas eles sim, cujas ações desmentem o que seus a disposição que ora exponho: imediatamente e quanto puderem,
discursos aprovam. Vemos todos os países, embora estejam em paz eles desejam e fazem tudo o que melhor lhes agrada, e dos perigos
com seus vizinhos, ainda , que deles se acercam eles ou fogem, por medo, ou com vigor
assim guardarem suas fronteiras com homens armados, suas tratam de repeli-los; mas isso não é razão para considerá-los maus
cidades com muros e portas, e manterem uma constante ou perversos.
vigilância. Com que propósito fazem tudo isso, se não for pelo medo Pois as afeições da mente que surgem somente das partes
inferiores da alma não são perversas em si mesmas; sóas ações que )
ao poder do vizinho? Vemos, até nos Estados bem governados, onde
há leis e castigos previstos para os delinqüentes, que mesmo assim delas provêm podem eventualmente sê-lo, como quando são
os particulares não viajam sem levar sua espada a seu lado, para se agressivas, ou ferem o dever. Se não dermos às crianças tudo o que
defenderem, nem dormem sem fecharem - não só suas portas, para elas pedem, elas serão impertinentes, e chorarão, e às vezes até
proteção de seus concidadãos - mas até seus cofres e baús, por temor baterão em seus pais, e tudo isso farão por natureza; e no entanto
aos domésticos. Poderiam dar os homens melhor testemunho da não têm culpa, e não será apropriado dizê-las más: primeiro,
desconfiança que têm cada um do outro, e todos de todos? Assim porque não podem fazer mal; segundo, porque, não tendo o uso da
agindo, tanto os países como os par razão, estão isentas de todo dever. Mas, quando elas chegam a uma
ticulares professam publicamente seu temor e desconfiança mútua. idade mais madura, e adquirem força pela qual possam causar
Contudo, ao discutirem, eles negam isso, o que significa que, por dano, é então que começam mesmo a ser más, e assim é correto
um desejo que têm de contradizer os outros, acabam contradizendo considerá-las; de modo que um homem perverso é quase a mesma
a si próprios. coisa que uma criança que cresceu e ganhou em força e se tornou
Alguns objetam que, se este princípio for admitido, ne- robusta, ou um homem de disposição infantil; e a malícia é a
cessariamente se seguirá, não apenas que todos os homens sejam mesma coisa que uma falta de razão naquela idade em que a
perversos (o que, embora talvez pareça rigoroso, devemos porém natureza deveria ser mais bem governada mediante a boa educação
reconhecer, já que é proclamado com tanta clareza pela Santa e a experiência. Portanto, a menos que dizendo que os homens são
Escritura), mas que o são por natureza (o que é ímpio enunciar). maus por natureza entendamos apenas que eles não recebem da
Mas essa proposição, de que os homens são maus por natureza, não natureza a sua educação e o uso da razão, deveremos
decorre desse prin necessariamente reconhecer que os homens possam
cípio; pois, embora os perversos fossem inferiores em nú

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Do Cidadão Prefácio do Autor ao Leitor

derivar da natureza o desejo, o medo, a ira e outras paixões, sem que detêm o poder supremo. Finalmente, explico em que consiste a
contudo imputar seus maus efeitos à natureza. natureza da lei e a do pecado, e distingo a lei do conselho, do pacto
Tendo assim deitado estes alicerces, demonstro em pri e daquilo a que chamo de direito. Tudo isso está compreendido sob
meiro lugar que a condição dos homens fora da sociedade o título de Domínio.
civil (condição esta que podemos adequadamente chamar de estado Na última parte do livro, que se intitula Religião, para que não
de natureza) nada mais é que uma simples guerra de todos contra pareça repugnante às Sagradas Escrituras aquele direito que, no
todos, na qual todos os homens têm igual direito a todas as coisas; discurso precedente, demonstrei com forte razão que os poderes
e, a seguir, que todos os homens, tão cedo chegam a compreender soberanos possuem sobre seus súditos, mostro, em primeiro lugar,
essa odiosa condição, de como ele não repugna ao direito divino, na medida em que Deus
sejam (até porque a natureza a tanto os compele) libertar-se , tutela todos os governantes por natureza, isto é, pelos ditados da
de tal miséria. Mas isso não se pode conseguir a não ser razão natural. Em segundo lugar, na medida em que Deus mesmo
que, mediante um pacto, eles abdiquem daquele direito que exercia um domínio peculiar sobre os ju.deus em virtude da sua
têm a todas as coisas. Ademais, declaro e confirmo em que consiste antiga aliança4 marcada pela circuncisão. Em terceiro, porque Deus
a natureza dos pactos, como e por que meios o direito de um pode agora governa a nós, cristãos, em virtude de nossa aliança, que
ser transferido a outro a fim de validar os pactos; e que direitos, e a passa pelo batismo; e por conseguinte a autoridade dos governantes
quem devem necessariamente ser concedidos para se estabelecer a supremos, ou do governo civil, não é absolutamente, como vemos,
paz. Quero dizer: quais contrária à religião.
são os ditados da razão, que podem com propriedade ser Em último lugar, declaro que deveres são necessariamente
denominados leis de natureza; e tudo isso está contido naquela requeridos de nós, para ingressar no reino dos céus; e disso
parte do livro que intitulo Liberdade. demonstro com clareza, e concluo por testemunhos evidentes da
Estas bases assim depostas, mostro adiante o que é o Sagrada Escritura, em conformidade com a interpretação dada por
governo civil, e nele o poder supremo e suas diversas espé todos, que a obediência que afirmei ser devida pelos particulares
cies; por que meios ele se constitui, e que direitos os parti que são súditos cristãos a seus príncipes cristãos não pode em
culares, que pretendem constituir esse governo civil, neces- absoluto repugnar, no que quer que seja, à religião cristã.
sariamente têm de transferir ao poder supremo, quer este esteja Haveis visto qual é meu método; acolhe i agora a razão que
num homem, quer numa assembléia de homens; por me moveu a escrever este livro. Estava estudando filosofia por puro
que, se não o fizerem, evidentemente se notará que não há interesse intelectual, e havia reunido o que são seus primeiros
governo civil, mas permanecerão os direitos que todos têm elementos em todas as espécies e, depois de concentrá-Ios em três
a todas as coisas, isto é, os direitos de guerra. A seguir, distingo partes conforme o seu grau, pensava escrevê-Ios da seguinte forma:
suas diversas espécies, a saber, monarquia, aristocracia, democracia de modo que na primeira trataria do corpo, e de suas propriedades
e domínio paterno, bem como o dos senhores sobre os seus servos. gerais; na segunda, do homem e de suas faculdades e afecções
Declaro como são constituídos tais governos, e comparo os especiais; na terceira, do governo civil e dos deveres dos súditos.
convenientes e inconvenientes de uns com os dos outros. Ademais,
revelo quais são as coi
sas que os destroem, e qual é o dever daquele ou daqueles

16 17
....

Do Cidadão Prefácio do Autor ao Leitor

De modo que a primeira parte conteria a filosofia primeira, e certos reis que ambiciosos derramem vosso sanglle para conquistar o seu
elementos de física; nela consideraríamos as razões de tempo, poder; que julgareis melhor desfrutar da condição atual, embora
lugar, causa, poder, relação, proporção, quantidade, figura e talvez não seja a melhor, do que, travando guerra, tentar reformá-Ia
movimento. Na segunda discutiríamos a imaginação, a memória, o em benefício de outros homens e em outra época, vós mesmos
intelecto, o raciocínio, o apetite, a vontade, o bem e o mal, o que é enquanto isso sendo mortos com violência ou sendo consumidos
honesto ou desonesto, e coisas parecidas. O que a última parte pela idade. Ademais, quanto àqueles que não quiserem se
aborda é o que acabo de vos expor. Porque, enquanto eu reflito, reconhecer sujeitos ao magistrado civil, e quiserem estar isentos de
ordeno, e pensativa e vagarosamente componho estes tópicos (pois todos os encargos públicos, e não obstante quiserem viver sob a sua
apenas raciocino, não debato), aconteceu, nesse ínterim, que meu jurisdição e ter proteção contra a violência e as injúrias de terceiros,
país, alguns anos antes que as guerras civis se desencadeassem, já não os considereis como súditos iguais a vós, mas tomai-os por
fervia com questões acerca dos direitos de dominação, e da inimigos e espias, e não aceiteis apressadamente como sendo a
obediência que os súditos devem, questões que são as verdadeiras palavra divina aquilo que eles, em particular ou em público, finjam
precursoras de uma guerra que se aproxima; e isso foi a causa para sê-Io. Digo mais claramente: se qualquer pregador, confessor ou
que (adiando todos os demais tópicos) amadurecesse e nascesse de casuísta disser apenas que é conforme ao verbo de Deus a doutrina
mim esta terceira parte. Assim sucede que aquilo que era último na segundo a qual o governante supremo, ou mesmo qualquer particu
ordem veio a lume primeiro no tempo, e isso porque vi que esta lar, pode legalmente ser posto à morte sem ordem de seu chefe, ou
parte, fundada em seus próprios princípios suficientemente que os súditos podem resistir, conspirar ou fazer pactos contra o
conhecidos pela experiência, não precisaria das partes anteriores5. poder supremo: não lhe deis crédito algum, mas imediatamente
denunciai seu nome. E quem aprovar estas razões que aqui dou
também apreciará as intenções que segui escrevendo este livro.
Finalmente, propus-me a seguir em todo este discurso a regra
seguinte: primeiro, não definir nada do que diz respeito à justiça
Mas não a escrevi por um desejo de ser elogiado (embora, se o das ações singulares, mas deixá-Ias para serem determinadas pelas
tivesse feito, pudesse defender-me com a justa desculpa de que leis. Depois, não discutir as leis de nenhum governo em especial,
pouquíssimos fazem coisas louváveis, que não sejam afetados pelo isto é, não apontar o que são as leis de um qualquer país, mas
elogio), mas para vosso bem, leitores, que - assim me persuadi - declarar o que são as leis de todos os países. Terceiro, não dar
uma vez que tiverdes corretamente apreendido e completamente ocasião a pensarem que minha opinião seja que se deve menos
compreendido esta doutrina que ora vos ofereço - antes escolhereis su- obediência a um governo aristocrático ou democrático, do que a
portar com paciência alguns inconvenientes sob um governo uma monarquia; pois, embora eu me haja empenhado pela ar
(porque os negócios humanos não podem nunca carecer de gumentação de meu capítulo décimo a fazer os homens
inconveniente), do que teimosamente perturbar a tranqüilidade do acreditarem que a monarquia é o mais cômodo dos gover
público; que, ponderando a justiça daquelas coisas que
considerardes, não pela persuasão e opinião dos particulares, mas
pelas leis do reino, não mais admiti

18 19
..
Do Cidadào
Prefácio do Autor ao Leitor

nos (única coisa neste livro inteiro que confesso não ter sido Por conseguinte, se vos depararem algumas coisas que
demonstrada, mas apenas enunciada segundo a probabilidade6), tenham mais veemência e menos certeza do que deveriam ter,
afirmo porém a todo momento, expressamente, que em qualquer como não são ditas para defender a dissidência e sim para instaurar-
tipo de governo deve haver um poder supremo e igual. Quarto, não se a paz, e por alguém cuja justa dor pelas calamidades que ora
discutir de forma alguma as teses dos teólogos, exceto aquelas que devastam seu país pode caridosamente merecer alguma liberdade,
despem os súditos de sua obediência e assim abalam os alicerces do sua única solicitação a vós, leitores, é que digneis acolhê-Ias com
governo civil. Finalmente, para que não expusesse, imprudente, igual espírito.
alguma coisa que não fosse necessária, não quis apresentar de
imediato ao público o que escrevi aqui, razão por que distribuí
umas poucas cópias do manuscrito a alguns dos meus amigos, para ~
que ã luz das opiniões alheias, se qualquer coisa se mostrasse
errônea, árdua ou obscura, eu pudesse corrigi-Ia, aliviá-Ia e explicá-
Ia.
Estas coisas eu vi sofrerem as críticas mais amargas: que dera
aos poderes civis demasiada amplidão - mas tal objeção veio
apenas de eclesiásticos; que suprimira por completo a liberdade de
consciência - objeção, porém, apenas de sectários; que elevara os
príncipes acima das leis - mas isso só me foi objetado por
advogados. Por isso não fui muito afetado pelas repreensões de tais
homens, que, ao fazê-Ias, faziam apenas os seus negócios pessoais,
exceto para atar os laços que dera com ainda mais força.
Mas, para uso daqueles que se sentiram desconcertados com
os princípios mesmos - a saber, o que digo da natureza humana,
da autoridade ou direito de natureza, da natureza dos pactos e
contratos, e da origem do governo civil -, porque ao assinalarem
falhas eles não seguiram tanto as suas paixões, mas antes o seu
senso comum, tomei então o cuidado de acrescentar em certas
passagens algumas notas pelas quais, presumi, satisfaria as suas
divergências. Tratei, finalmente, de não ofender a ninguém a não
ser aqueles cujos princípios os meus contradizem, e aqueles cujas
mentes delicadas se ofendem facilmente ante qualquer diferença de
opinião.

20 21
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CAPÍTULO I'

Da Condição Humana Fora da


Sociedade Civil2

1. Introdução

As faculdades da natureza humana podem ser reduzidas a


quatro espécies: força corporal, experiência, razão e
paixão. Partindo delas para a doutrina que se segue, expo
remos, em primeiro lugar, que modo de inclinações os homens
dotados com tais faculdades manifestam uns em relação aos outros.
Veremos pois se, e por que faculdade, eles nascem aptos para a
sociedade e para se preservarem da violência recíproca.
Mostraremos, então, que conselho foi necessário tomar para chegar
a tanto, e quais são as condições para a sociedade, ou a paz humana;
isto é - mudando apenas as palavras -, quais são as leis
fundamentais de natureza.

2. Que o começo da sociedade civil provém do


medo recíproco
A maior parte daqueles que escreveram alguma coisa a
propósito das repúblicas3 ou supõe, ou nos pede ou requer que
acreditemos que o homem é uma criatura que nasce apta4 para a
sociedade. Os gregos chamam-no zoon politikon; e sobre este
alicerce eles erigem a doutrina da sociedade civil como se, para se
preservar a paz e o governo da

25
Do Cidadão

humanidade, nada mais fosse necessário do que os homens


r Liberdade

to que tais homens não se deleitam tanto com a sociedade, mas com
concordarem em firmar certas convenções e condições em comum, sua própria vã glória.
que eles próprios chamariam, então, leis. Axioma este que, embora Assim constatamos que, o mais das vezes, nesse tipo de
acolhido pela maior parte, é contudo sem dúvida falso - um erro reunião ferimos os ausentes; sua vida inteira, todos os seus ditos e
que procede de considerarmos a natureza humana muito ações são examinados, julgados, condenados; é até mesmo muito
superficialmente. raro que algum presente não receba alguma seta antes de partir, de
Pois aqueles que perscrutarem com maior precisão as causas modo que não é má a razão daquele que procura ser sempre o
pelas quais os homens se reúnem, e se deleitam uns na companhia último a ir embora. E são bem estes os verdadeiros encantos da
dos outros, facilmente hão de notar que isto não acontece porque sociedade, para os quais somos impelidos pela natureza, isto é, por
naturalmente não poderia suceder de outro modo, mas por acidente. aquelas paixões que afetam a todas as criaturas, homens e animais,
Isso porque, se um homem devesse amar outro por natureza - isto até que, ou por uma experiência triste, ou por bons preceitos, ocorra
é, enquanto homem -, não poderíamos encontrar razão para que (o que a muitos jamais sucede) que o apetite das coisas presentes
todo homem não ame igualmente todo homem, por ser tão ho seja empanado pela memória das coisas passadas. Fora desses
mem quanto qualquer outro, ou para que freqüente mais aqueles encontros, o discurso dos homens mais eloqüentes e de verbo mais
cuja companhia lhe confere honra ou proveito. Portanto, não veloz se torna frio e fraco.
procuramos companhia naturalmente e só por si mesma, mas para Mas, se acontecer que, numa reunião, se passe o tempo
dela recebermos alguma honra ou proveito; estes nós desejamos contando histórias, e alguém comece a narrar uma que lhe diz
primariamente, aquela só secundariamente. respeito, imediatamente todos os demais, com a maior avidez
Como, e com que desígnio, os homens se congregam, melhor desejam falar de si próprios: se um conta alguma maravilha, os
se saberá observando-se aquelas coisas que fazem quando estão demais narrarão milagres, se os tiverem, se não tiverem os
reunidos. Pois, quando se reúnem para comerciar, é evidente que inventarão. Finalmente, permitam-me dizer algo daqueles que
cada um não o faz por consideração a seu próximo, porém apenas a pretendem ser mais sábios que os demais; se eles se reúnem para
seu negócio; se é para desempenhar algum ofício, uma certa falar de filosofia, sejam eles quantos forem, tantos serão os que
amizade comercial se constitui, que tem em si mais de zelo desejariam ser estimados mestres, e se não o forem não apenas não
(jealousy) que de verdadeiro amor, e por isso dela podem brotar amarão seus próximos, mas até os perseguirão com seu ódio.
facções, às Assim esclarece a experiência, a todos aqueles que tenham
vezes, mas boa vontade nunca; se for por prazer e recrea considerado com alguma precisão maior que a usual os negócios
ção da mente, cada homem está afeito a se divertir mais com humanos, que toda reunião, por mais livre que seja, deriva quer da
aquelas coisas que incitam à risada, razão por que pode miséiÜ recíproca, quer da vã glória, de modo que as partes reunidas
(conformemente à natureza daquilo que é ridículo) mais subir em se empenham em conseguir algum benefício, ou aquele mesmo
sua própria opinião quando se compara com os defeitos e eudokimeirt' que alguns estimam e honram junto àqueles com quem
deficiências5 de outrem; e embora isto por vezes se faça de modo conviveram. O mesmo também se pode concluir pela razão, a
inocente e sem ofender, é porém manifes

26 27
Do Cidadão
Liberdade

partir das definições de vontade, bem, honra e útil. Pois em


qualquer tipo de sociedade, se a associação é contratada 3. Que por natureza todos os homens são iguais
voluntariamente, nela estamos procurando o objeto da vontade, isto A causa do medo recíproco consiste, em parte, na igualdade
é, aquilo que cada um dos que se reúnem propõe-se como bem. natural dos homens, em parte na sua mútua von
Ora, tudo o que venha a parecer bom é agradável, e se refere quer
aos sentidos, quer à mente. Mas todo prazer mental ou é glória (que tade de se ferirem - do que decorre que nem podemos
consiste em ter boa opinião de si mesmo), ou termina se referindo à
esperar dos outros, nem prometer a nós mesmos, a menor
glória no final. Os demais prazeres são sensuais, ou conduzem à
segurança. Pois, se examinarmos homens já adultos, e con
sensualidade, que pode ser compreendida entre as conveniências
mundanas. siderarmos como é frágil a moldura de nosso corpo huma
Toda associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória -
no (que, perecendo, faz também perecer toda a nossa força,
isto é: não tanto para o amor de nossos próximos, quanto pelo amor de
vigor e mesmo sabedoria), e como é fácil até o mais fra
nós mesmos. Mas nenhuma associação pode ter grandeza, ou ser
duradoura, se começa da vã glória; porque essa glória é como a co dos homens matar o mais forte, não há razão para que
honra: se todos os homens a têm, nenhum a tem, pois consiste em
comparação e precedência; e a companhia dos outros não adianta qualquer homem, confiando em sua própria força, deva se
um ceitil que seja a causa de eu me glorificar em mim mesmo; pois conceber feito por natureza superior a outrem. São iguais
todo homem vale o quanto vale por si, sem a ajuda dos outros. Mas, aqueles que podem fazer coisas iguais um contra o outro;
embora os benefícios desta vida possam ser ampliados, e muito, e aqueles que podem fazer as coisas maiores (a saber: ma
graças à colaboração recíproca, contudo - como podem ser obtidos tar) podem fazer coisas iguais. Portanto, todos os homens
com mais facilidade pelo domínio, do que pela associação com 4. De
são onde provém
naturalmente a vontade
iguais entre si;deacausar dano aque
desigualdade outrem
hoje
outrem -, espero que ninguém vá duvidar de que, se fosse removido constatamos encontra sua origem na lei civil.
todo o medo, a natureza humana tenderia com muito mais avidez à No estado de natureza, todos os homens têm desejo e vontade
dominação do que a construir uma sociedade. Devemos portanto de ferir, mas que não procede da mesma causa, e
concluir que a origem de todas as grandes e duradouras sociedades
não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns por isso não deve ser condenado com um igual vigor. Pois
para com os outros, mas do medo recíproco? que uns tinham dos um, conformando-se àquela igualdade natural que vige
outros.
entre nós, permite aos outros tanto quanto ele próprio requer
para si (que é como pensa um homem temperado, e que
corretamente avalia seu poder). Outro, supondo-se su
perior aos demais, quererá ter licença para fazer tudo o que

bem entenda, e exigirá mais respeito e honra do que pensa


serem devidos aos outros (é o que exige um espírito arro-
gante). No segundo homem a vontade de ferir vem da vã
glória, e da falsa avaliação que ele efetua de sua própria
28
29
força; no outro, provém da necessidade de se defender, bem como
à sua liberdade e bens, da violência daquele.
Do Cidadão
Liberdade

5. A discórdia nasce da comparação das vontades 7. Definição de direito


Ademais, como o combate entre os espíritos8 é de todos o Assim, dentre tantos perigos com que os desejos (lusts)
mais feroz, dele necessariamente devem nascer as discórdias mais naturais dos homens diariamente os ameaçam, cuidar de si mesmo
sérias. Isso porque neste caso é odioso não sóquem nos combate, não é uma questão que deva ser considerada com tanto desdém,
mas até mesmo quem simplesmente não concorda conosco. Pois como seria se não houvesse em nós poder e vontade para agir de
não aprovar o que um homem afirma nada mais é que acusá-Io, outro modo. Pois todo homem é desejoso do que é bom para ele, e
implicitamente, de errar naquilo que está dizendo; de modo que foge do que é mau, mas acima de tudo do maior dentre os males
discordar num grande número de coisas é o mesmo que chamar de naturais, que é a morte; e isso ele faz por um certo impulso da
louco àquele de quem discordas. Isto transparece no fato de que não natureza, com tanta certeza como uma pedra cai. Não é pois absur-
há guerras que sejam travadas com tanta ferocidade quanto as que do, nem repreensível, nem contraria os ditames da verdadeira razão,
opõem seitas da mesma religião, e facções da mesma república, que alguém use de todo o seu esforço (endeavours) para preservar e
quando a contestação portanto incide quer sobre doutrinas, quer defender seu corpo e membros da morte e dos sofrimentos. Ora,
sobre a prudência política. aquilo que não contraria a reta razão é o que todos os homens
Todo o prazer e alegria (jollity) da mente consiste em reconhecem ser praticado com justiça e direito; pois, pela palavra
encontrar pessoas que, se nos comparamos a elas, nos fazem sentir direito, nada mais se significa do que aquela liberdade que todo
triunfantes e com motivo para nos gabar; por isso é impossível que homem possui para utilizar suas faculdades naturais em
os homens não venham eventualmente a manifestar algum desprezo conformidade com a razão reta. Por conseguinte, a primeira funda-
ou desdém pelo outro, seja por meio de risada, ou de palavras, ou ção do direito natural consiste em que todo homem, na medida de
de gestos, ou de um sinal qualquer. Não há maior humilhação para suas forças, se empenhe em proteger sua vida e membros.
o espírito do que esta, e possivelmente nada poderá causar maior
desejo de ferir.

8. O direito ao fim confere direito aos meios


6. E do apetite que muitos têm pela mesma coisa necessários para aquele fim

Mas a razão mais freqüente por que os homens dese Mas, como é vão alguém ter direito ao fim se lhe for negado o
jam ferir-se uns aos outros vem do fato de que muitos, ao mesmo direito aos meios que sejam necessários, decorre que, tendo todo
tempo, têm um apetite pela mesma coisa; que, contudo, com muita homem direito a se preservar, deve também ser-lhe reconhecido o
direito de utilizar todos os meios, e praticar todas as ações, sem as
freqüência eles não podem nem desfrutar em comum, nem dividir;
quais ele não possa preservar-se.
do que se segue que o mais forte há de tê-Ia, e necessariamente se
decide pela espada quem é mais forte.

30 31
Do Cidadão Liberdade

9. Pelo direito de natureza, todo homem é juiz dos meios que isso então decorre que, no estado de natureza, para todos
tendem a sua própria conservação é legal ter tudo e tudo cometer. E é este o significado da
Contudo, se os meios que ele está para usar, ou a ação que está quele dito comum, "a natureza deu tudo a todos", do qual
portanto entendemos que, no estado de natureza, a medida do
praticando, são necessários ou não à preservação de sua vida e
direito está na vantagem que for obtida.
membros - isso só ele próprio, pelo direito de natureza, pode julgar.
Pois digamos que outro homem julgue que é contrário à reta razão
que eu deva julgar do perigo em que eu mesmo incorro: então por
que, por aquela mesma razão e igualdade natural que vige entre 11. Mas esse direito de todos a tudo é inútil
nós, se ele julga o que me diz respeito, não hei também eu de julgar
Mas foi pequeno benefício para os homens assim terem um
das coisas que a ele se referem? Portanto convém com a razão reta, comum direito a todas as coisas; pois os efeitos desse direito são os
isto é, pertence ao direito de natureza, que eu julgue sua opinião a mesmos, quase, que se não houvesse
meu respeito, ou seja, que eu julgue se ela conduz ou não a minha
preservação. direito algum. Pois, embora qualquer homem possa dizer,
de qualquer coisa, "isto é meu", não poderá porém desfru
tar dela, porque seu vizinho, tendo igual direito e igual po
10. Todos têm, por natureza, igual direito a 12.der, irá pretender
O estado que é fora
dos homens dele da
essasociedade
mesma coisa.
civil é um simples
todas as coisas estado de guerra: definição de guerra e de paz
A natureza deu a cada um um direito a tudo; isso quer dizer Se agora, a essa propensão natural dos homens a se
que, num estado puramente natural9, ou seja, antes que os homens
se comprometessem por meio de convenções ou obrigações, era ferirem uns aos outros, que eles derivam de suas paixões
lícito cada um fazer o que quisesse, e contra quem julgasse cabível,
mas, acima de tudo, de uma vã estima de si mesmos, so-
e portanto possuir, usar e desfrutar tudo o que quisesse ou pudesse marmos o direito de todos a tudo, graças ao qual um com
obter. Ora, como basta um homem querer uma coisa qualquer para
que ela já lhe pareça boa, e o fato de ele a desejar já indica que ela todo o direito invade, outro, com todo o direito, resiste, e
contribui, ou pelo menos lhe parece contribuir, para sua
portanto surgem infinitos zelos e suspeitas de toda a parte; se
conservação (e ademais já o autorizamos, no parágrafo anterior, a considerarmos que tarefa árdua é nos resguardarmos de um inimigo
ser juiz da questão se ela contribui ou não, portanto consideraremos que nos ataca com a intenção de nos oprimir e arruinar, ainda que
como necessário à sua conservação tudo o que ele assim entender), ele venha com pequena tropa e escas
e pelo parágrafo sétimo se evidencia que o direito de natureza
permite que sejam feitas ou havidas aquelas coisas que so abastecimento; não haverá como negar que o estado
necessariamente conduzem à proteção da vida e dos membros - de natural dos homens, antes de ingressarem na vida social,
tudo não passava de guerra, e esta não ser uma guerra qualquer,
mas uma guerra de todos contra todos. Pois o que é a guer
ra, senão aquele tempo em que a vontade de contestar o
outro pela força está plenamente declarada, seja por pala
vras, seja por atos? O tempo restante é denominado paz.
32 33
Do Cidadão
Liberdade

13. A guerra é adversa à conservação do homem vencedor faz o vencido servi-Io ou por medo de morrer, ou
deitando-lhe grilhões; por consentimento, quando os homens
É fácil julgar como uma guerra perpétua é inadequada ingressam na vida social para se ajudarem uns aos outros, com
à conservação, quer da espécie humana, quer de cada homem ambas as partes consentindo sem qualquer coerção.
ind~vidualmente considerado. E ela é perpétua por sua própria O vencedor tem o direito de forçar o vencido, ou o forte o
natureza, porque, dada a igualdade dos que se batem, a ela não pode mais fraco (assim como um homem saudável pode forçar um
se põr termo através de uma vitória; pois nesse estado o vencedor adoentado, ou alguém de mais idade pode forçar uma criança) a dar-
está sujeito a tanto perigo que deveria considerar-se um milagre se lhe garantias de que no futuro lhe obedecerá - a menos, é claro, que
alguém, fosse mesmo o mais forte de todos, conseguisse cerrar os a pessoa que está sendo forçada prefira escolher a morte. Isso
olhos entrado nos anos e em idade provecta. Os índios da América porque, como o direito de nos protegermos segundo nossa vontade
nos dão bom exemplo disso, mesmo nos dias atuais; e outras nações resultava de estarmos em perigo, e este perigo vinha de sermos
houve, em tempos idos, que hoje de fato se tornaram civis e todos iguais, é mais conforme à razão - e mais seguro para nossa
prósperas, mas que então eram pouco povoadas, ferozes, pobres, conservação - usar, hoje, da vantagem que temos para ad
embrutecidas e de curta expectativa de vida, estando privadas de quirir garantias que nos proporcionem segurança, em vez de os
todo aquele prazer e beleza de viver que a paz e a sociedade deixarmos crescerem e se fortalecerem, e escaparem de nosso
usualmente proporcionamlO. poder, para só então nos empenharmos em recuperar, numa luta de
Por isso, quem quer que sustente que teria sido melhor resultado incerto, aquele poder que antes detínhamos. E, por outro
continuarmos naquele estado, em que todas as coisas eram lado, nada pode ser considerado mais absurdo do que soltares
permitidas a todos, estará se contradizendo. Pois todo homem, por aquele que já tens em teu poder, e está fraco, para dele fazeres, de
necessidade natural, deseja aquilo que para ele ébom; e assim uma só vez, teu inimigo, e um inimigo forte.
ninguém considera que lhe faça bem uma guerra de todos contra Disso também podemos entender que constitui um corolário
todos, que é a conseqüência necessária daquele estado. Portanto do estado natural dos homens que um poder certo e irresistível
sucede que, devido ao medo que sentimos uns dos outros, confere a quem o possui direito de dominar e
entendemos que convém nos livrarmos dessa condição, e mandar naqueles que não possam resistir; de modo que
conseguirmos alguns associados (fellows) - para que, se tivermos de essa onipotência engloba, essencial e imediatamente, o direito, que
travar guerra, ela não seja contra todos, nem nos falte algum auxílio. antes expusemos, a fazer tudo.

14. É legal qualquer homem, pelo direito natural, compelir outro, a


quem ele tomou em seu poder, a dar-lhe garantias de que lhe
prestará obediência no futuro
15. A natureza dita a busca da paz
Conseguimos ter companheiros ou pela força, ou pelo
consentimento. Pela força, quando depois do combate o Mas os homens não podem esperar uma conservação
duradoura se continuarem no estado de natureza, ou seja,

34 35
Do Cidadão

de guerra, e isso devido à igualdade de poder que entre eles há, e a CAPÍTULO II
outras faculdades com que estão dotados. Por conseguinte o ditado
da reta razão - isto é, a lei de natureza - é que procuremos a paz,
quando houver qualquer esperança de obtê-Ia, e, se não houver Da Lei de Natureza
nenhuma, que nos preparemos para a guerra. É o que mostraremos Acerca dos Contratos
no próximo capítulo.

1. A lei de natureza não é um consenso dos homens, porém o


ditame da razão
Os autores que constantemente usam em seus escritos o termo
"lei natural" nem por isso concordam a respeito de sua definição. É
que o método que nos faz começar pelas definições e pela exclusão
de todo equívoco, serve apenas àqueles que não querem deixar
espaço para mais controvérsia. Por exemplo, para explicar por que
determinado ato afronta a lei de natureza, alguém dirá que é porque
vai contra o acordo geral de todas as nações mais sábias e
cultivadas; mas com isto não esclarece quem haverá de julgar o
saber e a sabedoria de todas as nações. Outro explicará que tal ato
foi cometido contra o consenso geral de toda a humanidade definição esta
ainda mais inadmissível. Pois, se a aceitássemos, seria impossível
quem quer que seja, exceto crianças e 10ucos2, ofender uma tal lei;
pois é óbvio que, sob a noção de humanidade, têm de se incluir
todos os homens efetivamente dotados de razão. Estes, portanto, ou
nada fazem contra a razão, ou, se fazem algo, é a despeito de sua
própria
vontade, e por isso devem ser escusados; mas em verdade seria
irracional considerar as leis de natureza a partir do que
aceitam aqueles que mais as quebram do que respeitam.
Ademais, os homens condenam, na conduta alheia, as
mesmas coisas que aprovam na sua própria; sem esquecer

36 37
Do Cidadão Liberdade

que elogiam de público o que, em particular, condenam; e emitem acima, acabamos de provar que os ditados da reta razão constituem
suas opiniões mais por ouvir dizer, do que com base em sua leis naturais. E esta é a primeira lei, porque as demais dela derivam,
reflexão própria; e se põem de acordo com base mais no ódio que e dirigem nossos caminhos quer para a paz, quer para a autodefesa.
tenham a algum objeto (por medo, esperança, amor ou alguma outra
perturbação da mente), do que na verdadeira razão. E por isso
acontece que povos inteiros freqüentemente cometam, de comum
acordo e com muita convicção, aqueles mesmos atos que no 3. A primeira lei especial de natureza é que não devemos
entender de tais pensadores infringem, sem sombra de dúvida, a lei conservar nosso direito a todas as coisas
de natureza. Mas já que todos reconhecem que é conforme ao
direito aquilo que não viola a razão, devemos considerar injustas Uma das leis naturais inferidas desta primeira e fundamental é
(wrong) apenas as ações que repugnem à reta razão, ou seja, que a seguinte: que os homens não devem conservar o direito que têm,
contradigam alguma verdade segura, inferida por um correto todos, a todas as coisas, e que alguns desses direitos devem ser
raciocínio a partir de princípios verdadeiros. E a injustiça (wrong) transferidos, ou renunciados. Pois, se cada um conservasse seu
que é cometida, dizemos que é cometida contra a lei. direito a todas as coisas, necessariamente se seguiria que alguns
Portanto, a verdadeira razão é uma lei certa, que (já que faz teriam direito de invadir, e outros, pelo mesmo direito, se
defenderiam daqueles (pois todo homem, por necessidade natural,
parte da natureza humana, tanto quanto qualquer outra faculdade ou
empenha-se por defender seu corpo e as coisas que julga
afecção da mente) também é denominada natural. Por conseguinte,
necessárias para protegê-Io). E disso se seguiria a guerra. Age pois
assim defino a lei da natureza: é o ditame da reta razã03 no tocante
contra a razão da paz, isto é, contra a lei de natureza, todo aquele
àquelas coisas que, na medida de nossas capacidades, devemos
que não abre mão de seu direito a todas as coisas.
fazer, ou omitir, a fim de assegurar a conservação da vida e das
partes de nosso corpo.

4. O que é renunciar a seu direito; o que é transferi-lo


Diz-se que abre mão de seu direito quem a ele renuncia de
forma absoluta, ou o transfere a outrem. Renuncia absolutamente a
2. A lei fundamental de natureza consiste em procurar a paz, onde seu direito quem, por sinal suficiente ou símbolos adequados,
ela possa ser alcançada, e quando isso não manifesta a vontade de que deixe de ser lícito (lawful) ele fazer
for possível, em nos defendermos aquilo a que antes tinha direito. E transfere seu direito aquele que,
A lei de natureza primeira, e fundamental, é que devemos por sinal suficiente ou símbolos adequados, declara a outro que é
procurar a paz, quando possa ser encontrada; e se não for possível sua vontade que se torne ilícito ele resistir-lhe, naquilo em que
tê-Ia, que nos equipemos com os recursos da guerra. Pois antes poderia resistir.
mostramos, no último parágrafo do capítulo anterior, que este A transferência de direito consiste meramente na não-
preceito é ditado pela reta razão; e, logo resistência - isso porque, já antes de ocorrer a transferên

38 39
Do Cidadão
Liberdade

cia, seu beneficiário detinha, também ele, direito a tudo, de modo coisa amanhã assim afirma, claramente, que ainda não deu. De
que a ele não se poderia conferir nenhum direito novo. Apenas o modo que o dia inteiro de hoje ele conserva seu direito, e ainda
direito de resistência, que aquele que transferiu o direito antes amanhã, a não ser que nesse ínterim realmente
possuía, e que impedia o outro de livremente desfrutar de seus o transfira - pois o que é meu, meu se conserva até que
próprios direitos, agora é completamente abolido. Portanto, quem
dele me separe. Mas, se eu falar no tempo presente, por
quer que adquira algum direito no estado natural dos homens, tudo
exemplo Eu dou ou Dei isso e o entregarei amanhã, por
o que faz é conseguir segurança para si, e ficar livre de qualquer
estas palavras significo que já dei a coisa, e que o direito que o
justo entrave no desfrutar seu direito primitivo - como, por exem-
outro tem de recebê-Ia amanhã já lhe foi transferido por mim desde
plo, quando alguém vende ou dá uma terra4: a pessoa assim se
o dia de hoje.
priva definitivamente de todo direito que tinha a essa terra, mas
nem por isso priva outros de um eventual direito seu a ela.

7. Se houver outros sinais que expressem a vontade, as palavras


no futuro são validadas para transferir o direito

Contudo, embora as meras palavras não sejam sinais


5. Para transferir o nosso direito, é requisito necessário a
suficientes para declarar a vontade, até as palavras que es
aceitação de quem o recebe
tão no futuro podem, se lhes acrescentarmos outros sinais
Na transferência de direito, não basta a vontade apenas adequados, tornar-se tão válidas como se estivessem no presente.
daquele que transfere: também é preciso haver a daquele que Desta forma, se graças a outros sinais se evidenciar que aquele que
recebe. Se faltar uma delas, o direito permanece - pois, se eu está falando do futuro pretende que essas palavras tenham eficácia
quisesse dar algo meu a alguém, e este recusasse aceitá-Ia, nem por para a perfeita transferência de seu direito, então elas terão de ser
isso eu teria simplesmente renunciado a meu direito, ou o teria válidas. Pois a transfe
transferido a qualquer homem. Pois a razão que me levava a rência do direito não depende das palavras, mas - como já
abandoná-Ia a tal pessoa estava nela apenas, não em outras. se exemplificou no parágrafo quarto - da declaração da vontade.

6. Somente palavras no tempo presente 8. Na doação gratuita, não transferimos nosso direito
transferem um direito mediante palavras no futuro
';
E, se não houver outros símbolos de nossa vontade de Se alguém transfere parte de seu direito a outrem, e não o faz
abandonar ou transferir nosso direito, a não ser palavras, então estas por algum benefício determinado que dele tenha recebido, ou por
deverão estar no tempo presente ou passado. Porque, caso estejam algum pacto, uma transferência dessa espécie é chamada presente,
tão-somente no futuro, não transfe dádiva, doação ou dom gratuito
rem nada. Por exemplo, quem fala no futuro Eu darei tal
(gifi, ar free donation). No dom, somos obrigados apenas

40 41
Do Cidadào Liberdade

por aquelas palavras que estejam no tempo presente ou no pretérito partes imediatamente cumprem aquilo que contratam, de modo que
- porque, se estiverem no futuro, enquanto palavras não nos nenhuma precisa ter confiança (trust) na outra; ou então uma
obrigam, pela razão exposta no parágrafo anterior. Por isso, se cumpre, e confia na outra; ou ainda nenhuma cumpre. Quando
houver obrigação, ela deve necessariamente provir de algum outro ambas as partes cumprem imediatamente aquilo a que se
sinal da vontade. Ora, como tudo o que se faz voluntariamente tem comprometeram, o contrato chega a seu termo tão logo se dá o
em mira algum bem para quem comete a ação, nenhum outro sinal cumprimento. Mas, quando se dá crédito a uma ou a ambas, então
se pode fornecer da vontade de quem dá, a não ser algum benefício aquele que recebeu a confiança promete cumprir depois a sua parte;
járecebido, ou por receber. No caso, porém, supõe-se que tal e esse tipo de promessa chama-se convenção6.
benefício não foi adquirido, e que não está em vigor nenhum pacto
- senão, o dom deixaria de ser gratuito. 't
Resta, pois, que quando se faz um tal dom se espera um bem
recíproco sem pacto (a mutual good turn); só que nenhum sinal 1 O. Nos pactos, transferimos o direito mediante
podemos ter de que o homem que utilizou palavras futuras, para palavras que se referem ao futuro
com aquele que não se comprometeu, em absoluto, a retribuir-lhe
A convenção firmada pela parte que recebeu crédito, com
um benefício, desejasse que suas palavras fossem compreendidas
aquela que já cumpriu o que devia, ainda quando a promessa esteja
como obrigandoo. E não é adequado à razão supor que aqueles, que
feita em palavras futuras, transfere o direito futuro exatamente
facilmente se inclinam a agir bem para com outros, devam ficar
como se tivesse sido formulada em palavras vazadas no presente ou
obrigados por qualquer promessa que façam, e que apenas atesta no passado. Pois o cumprimento por uma das partes é sinal mais
sua boa afeição no momento presente. E por essa razão, quem que manifesto de que ela entendeu a fala da outra, em quem
assim promete deve entender-se que tenha tempo para deliberar, e o confiou, como significando que com toda a certeza cumpriria sua
poder de mudar aquela afeição, assim como aquele a quem ele fez parte no momento fixado; e pelo mesmo sinal aquela, que recebeu a
essa promessa pode alterar o seu merecê-la. Ora, quem ainda confiança, sabia que assim seria entendida, e ao não impedir tal
delibera é porque ainda está livre, e não se pode dizer que já tenha entendimento proporcionou um sinal evidente de que era sua
dado. Porém, se ele promete com freqüência, e dá pouco, merece vontade cumprir o prometido. Por
ser condenado por leviandade, e ser chamado, não um doador, mas isso, as promessas feitas por algum benefício recebido
um doson5. (que também são convenções) são sinais da vontade - isto é, assim
como foi declarado no parágrafo anterior, são sinais do último ato
na deliberação, pelo qual a liberdade de não cumprir se vê abolida;
e por conseguinte são obrigatórias. Pois, onde cessa a liberdade,
então começa a obrigação.

9. Definição de contrato e de pacto ("compact")

O ato de dois, ou mais, que mutuamente se transferem


direitos chama-se contrato. Em todo contrato, ou as duas

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~

Do Cidadão Liberdade

11. Os pactos de fé recíproca são nulos e inúteis no estado firmar convenções com Deus, ou obrigar-se para com Ele
de natureza, mas não dentro do estado civil por meio de um voto (vow), exceto na medida em que, con
forme dizem as Sagradas Escrituras, Deus pôs em seu lugar
As convenções que sejam firmadas segundo um contrato de
certos homens, que portanto têm autoridade para aceitar tais votos e
confiança recíproca - quando portanto nenhuma das partes cumpre
convenções em seu nome.
prontamente o que lhe compete -, se por acaso ocorrer a qualquer
uma delas uma justa suspeita?, são inválidas no estado de natureza.
Pois aquele que primeiro cumprir - devido à perversa disposição da
maior parte dos homens, que perscrutam sua própria vantagem sem 13. Nem tampouco fazer um voto a Deus
se importarem se os meios são corretos ou errados - expor-se-áà
vontade maldosa daquele com quem contratou. Por isso, não é Por isso quem vive no estado de natureza, onde nenhuma lei
conforme à razão que alguém cumpra primeiro sua parte, se não for civil o obriga, em vão profere votos - a não ser que tenha
provável que o outro vá depois cumprir o que prometeu; e, se isso é conhecimento, por certíssima revelação, de que é vontade de Deus
provável ou não, deve ser julgado por aquele que tenha dúvidas a aceitar o seu voto ou pacto. Pois, se o seu voto for contrário à lei de
respeito, segundo mostrei no parágrafo nono do capítulo anterior. natureza, ele não o obrigará,
Assim, digo eu, são as coisas no estado de natureza. Mas, num dado que ninguém está obrigado a cumprir um ato ilegal.
estado civil, no qual existe um poder que pode compelir ambas as
partes, aquele que combinou ser o primeiro a cumprir assim deve E, inversamente, se o voto resultar em algo que é ordenado
fazer - porque, como o outro pode ser forçado pelo poder a por alguma lei de natureza, então não é o voto, mas a própria lei,
desempenhar a sua parte, desaparece a causa que ele teria para que o obriga. E ainda, se antes de proferir o voto ele fosse livre de
agir ou não agir, sua liberdade permanece, porque para completar
temer o não-cumprimento por seu parceiro.
uma obrigação firmada em voto é necessário que o beneficiado
(obliger) confirme clara
mente sua vontade de aceitá-Ia, o que, no caso proposto,
suponho não possa Ocorrer. Esclareço que chamo de beneficiado
(obliger) aquele em relação a quem alguém se acha obrigado, e
obrigado, aquele que assim contrai um compromisso.
12. Ninguém pode firmar pacto com animais, nem, se não
houver uma revelação, com Deus
14. Os pactos não obrigam além de nosso
Desta razão - de que em todos os dons gratuitos e pactos é
máximo esforço
preciso que seja aceita a transferência de direito segue-se que ninguém
pode firmar pacto com quem não declare sua aceitação. E é por isso Somente se podem firmar convenções sobre aquelas coisas
que não podemos pactuar com os animais, nem a eles podemos dar, que estão sujeitas a nossa deliberação - pois não se pode contratar
ou deles tirar, qualquer espécie de direito - já que eles não têm fala se não for pela vOhtade de quem contrata; ora, a vontade é o último
nem entendimento. Pela mesma razão homem algum pode ato na deliberação; portanto, ela só pode se referir a coisas
possíveis e futuras. Por conse

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Liberdade
Do Cidadão

guinte, nenhum homem pode se obrigar, por pacto, a fazer 16. São válidas, no estado de natureza, as promessas
extorquidas por medo de morte
algo impossível.
Mas muitas vezes nos comprometemos a fazer coisas que Muitos perguntam se os pactos que nos foram extorquidos
parecem possíveis no momento da promessa, e que depois se pelo medo são obrigatórios ou não. Por exemplo, se para salvar
revelam impossíveis; isso quer dizer que então nos libertamos da minha vida das mãos de um ladrão eu lhe prometo pagar cem libras
obrigação anteriormente contraída? A razão a se considerar é que no dia seguinte, e também que não farei nada para prendê-Io e levá-
quem promete uma coisa futura recebe, já, um benefício, sob a Io a juízo: estou obrigadoS ou não a manter a palavra dada? Ora,
condição de que posteriormente haverá de retribuí-Io. Pois a embora uma tal promessa deva em certos casos ser considerada
vontade daquele nula e sem nenhum efeito, não será em virtude de ter sido arrancada
que confere, no presente, o benefício, espera a contrapartida de um pelo medo. Pois então se seguiria que as próprias promessas que
certo bem que ele valoriza, isto é, a coisa prometida; não porém a reduziram os homens a uma vida civil, e graças às quais foram
coisa em si mesma, mas sob a con feitas as leis, poderiam também ser consideradas nulas e de nenhum
dição de que seja possível dá-Ia. E, se vier a ocorrer que essa dação efeito - porque é devido ao medo da carnificina recíproca que um
se mostre impossível, ainda assim ele terá de fazer por ela o homem se submete ao domínio de outro. E agiria então como um
possível. Em suma, as convenções que firmamos não nos obrigam a perfeito tolo ({ool) quem confiasse no seu prisioneiro (captive), que
cumprir exatamente a coisa que foi combinada, mas sim a fazer o lhe prometeu pagar o preço do resgate.
máximo de nossos esforços por ela: pois só o nosso esforço está em É verdade universalmente acolhida que as promessas obrigam
nosso poder, as coisas não. quando há algum benefício que é recebido, e quando tanto a
promessa quanto aquilo que é prometido estão dentro da lei. E é
conforme ã lei, para resgatar minha vida, prometer, e mesmo dar,
aquilo que eu quiser dos meus bens a qualquer pessoa que seja, até
15. Por que meios nos liberamos dos pactos por mesmo a um ladrão. Por conseguinte, nossas promessas nos
nós firmados obrigam ainda quando procedam do medo, exceto quando a lei civil
as proíbe, e torna portanto ilegal o que foi prometid09.
Há duas maneiras pelas quais nos liberamos das obrigações
que contratamos (covenants): cumprindo-as, ou sendo perdoados do
seu cumprimento. Cumprindo, porque a mais do que isso não nos
obrigamos. Sendo perdoados, ou relevados, porque, se aquele a
quem nos obrigamos nos
dispensa de cumprir a obrigação, entende-se que nos de 17. Não tem validade o pacto posterior que contradiga um anterior

volve o mesmo direito que anteriormente lhe havíamos No caso de alguém combinar com uma pessoa no sentido de
transferido. Pois perdoar implica doar, o que é, já mostramos no fazer, ou deixar de fazer determinada coisa, e depois convencionar
parágrafo quarto deste capítulo, uma transferência de direito para o contrário com outra pessoa, o contra
aquele a quem a doação é feita.

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Do Cidadão
Liberdade

to que assim se mostra ilegal é o segundo, e não o primeiro. Pois me, outra, dizer: Se não a fizer, e vieres matar-me, não hei
ele já não tinha direito a fazer, ou a deixar de fazer, aquilo que por de te resistir. Todos os homens, se a necessidade os impele, fazem o
um contrato anterior já transferira a outrem. Por isso não há direito primeiro trato - e tal necessidade ocorre muitas vezes. Mas da
que ele possa transferir num contrato posterior, e o que venha a segunda maneira não se contrata, nem há necessidade de se contratar -
prometer promete sem ter direito a tanto. Por conseguinte, está porque, no puro estado de natureza, se tiveres intenção de matar
obrigado apenas ao primeiro contrato, sendo ilícito rompê-Ia. alguém, esse estado já te concede tal direito, de modo que para
matar o outro não é preciso valer-se do fato de ter, ele, rompido o
contrato.
Mas, num estado político, no qual o direito de vida e morte, e
18. Não tem validade um pacto de não resistir a quem venha de todo castigo corporal, reside no poder supremo, esse direito a
prejudicar o meu corpo matar não pode ser conferido a nenhuma pessoa privada. E o
Ninguém está obrigado, por qualquer contrato que seja, a não supremo poder não precisa contratar com alguém para que esse,
resistir a quem vier matá-Io, ou ferir ou de qualquer outro modo mansamente, se submeta ao castigo por ele determinado - basta-lhe
a promessa de que nenhum súdito vá defender outro contra o seu
machucar seu corpo. Pois em todo homem existe um certo grau,
poder.
sempre elevado, de medo, através do qual ele concebe o mal que
venha a sofrer como sendo o maior de todos. E assim, por uma Se, no estado de natureza - como o que existe entre dois reinos
distintos -, fosse firmado um contrato prevendo a morte da parte que
necessidade natural, ele o esquiva o mais possível, e supomos que
não o cumprisse, deveríamos pressu
de outro modo não possa agir. Ora, quando alguém chega a esse
grau de medo, tudo o que dele podemos esperar é que se salve pela por um outro contrato, contendo a cláusula de que não se
luta ou pela fuga. Ninguém está obrigado ao que é impossível; poderia matar o outro antes da data nele aprazada. Ora, naquele
portanto, quem se vê ameaçado pela morte, que é o maior dos males dia, se não for cumprido o trato, retoma o direito de guerra, isto é,
que possa afetar a natureza, ou por um ferimento ou ainda por o estado de hostilidade no qual todas as coisas são lícitas, e entre
danos físicos de qualquer espécie, e não é corajoso o bastante para elas também o direito de resistir.
suportá-Ios, não está obrigado a sofrê-Ios. Afinal, por um contrato de não resistir somos obrigados a
escolher, entre dois males, o que parece ser o maior - pois a morte certa
Além disso, quem está obrigado por um contrato tem a
é mal maior que a luta. Ora, dentre dois males é impossível não
confiança de seu beneficiário (pois é a fé, somente, o que nos
prende nos contratos) - mas quem é levado ao castigo, seja este o escolhermos o menor. Portanto, um pacto daquela espécie nos
suplício capital ou outro mais ameno, vai acorrentado ou sob forte prenderia ao que é impossível - o que vai contra a própria natureza
guarda, o que é um sinal certíssimo de que não parece estar dos pactoslO.
suficientemente obrigado pela sua não-resistência aos contratos que
tenha firmado antes. Uma coisa é prometer: Se eu não fazer tal
coisa no dia tal, mata
19. É inválido um pacto para acusar-se a si próprio

Da mesma forma, ninguém está obrigado, por pacto al


gum, a acusar a si mesmo, ou a qualquer outro, cuja even

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Do Cidadão Liberdade

tual condenação vá tornar-lhe a vida amarga. Por isso, um pai não que teriam de meros homens, de cujos olhos suas ações
está obrigado a depor contra o filho, nem um marido contra a podem se conservar ocultas13.
mulher, nem homem algum contra quem lhe proporciona sustento;
pois é vão todo aquele testemunho que se supõe ser contra a
natureza. Contudo, embora ninguém esteja obrigado por pacto 21. O juramento deve ser vazado na mesma fórmula que
nenhum a acusar-se, pode suceder que, num juízo público, ele seja costuma empregar quem o presta
forçado a responder mediante tortura. Tais respostas, porém, não
constituem testemunho do fato em questão, mas apenas contri- Disso decorre que um juramento deve ser formulado nos
buições para se encontrar a verdade. Tanto faz que a pessoa sob termos que costuma usar quem o profere. Pois será inútil alguém
tortura responda a verdade ou minta, ou mesmo que não diga nada - ser levado a jurar por um Deus em quem não crê, e a quem,
portanto, não teme. Isso porque, embora pela luz natural se possa
tudo o que ela fizer, ela tem o direito de fazerll.
saber que existe um Deus, contudo ninguém pensa que deva jurar
de qualquer outro modo, ou por qualquer outro nome, a não ser
aquele que está contido nos preceitos de sua própria religião, isto é,
daquela que ele imagina ser a religião verdadeira.

20. Definição de juramento

O juramento é um discurso a que se soma uma promessa, pela 22. Um juramento nada acrescenta à obrigação já
qual quem jura declara renunciar à misericórdia de Deus, caso não instituída pelo pacto
cumpra a palavra dada. Essa definição está contida nas próprias
palavras em que consiste a essência mesma do juramento - a saber, Podemos compreender, graças a essa definição de juramento,
Deus me proteja, ou algum equivalente, como, entre os romanos, que um mero contrato não obriga menos do que aquele a que se
Extermina, ó JúPiter, quem violar o que prometeu, assim como ora soma um juramento. Porque é o contrato que nos prende; o
mato esse animal. E não tem nenhuma importância se o juramento juramento refere-se ao castigo divino, que ele não poderia suscitar
consiste numa promessa, ou, como certas vezes sucede, numa caso a quebra de contrato já não fosse, por si só, ilegal; e só pode
afirmaçãol2; pois quem confirma sua afirmação mediante um ser ilegal se o contrato for suficiente para obrigar. Além disso,
juramento está prometendo falar a verdade. quem renuncia àmisericórdia divina não se obriga, só por isso, a
Quanto ao costume que vigorava em alguns lugares, de súditos nenhum castigo; pois sempre terá o direito de requerer contra o cas-
que juravam por seus reis, era um costume nascido do fato de que tigo, seja qual for a razão para este, e de suplicar o perdão de Deus e
tais reis clamavam uma honra divina. Portanto, os juramentos dele se beneficiar, se for concedido. Por conseguinte, o único efeito
surgiram para que, pela religião e em consideração ao poder divino, de um juramento consiste em levar aqueles, que naturalmente se
os homens pudessem ter um maior terror de romper a palavra dada, sentem inclinados a romper
todo tipo de promessa, a serem mais conscientes de suas palavras e
do que o medo
de seus atos.

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Do Cidadão

23. Não se deve exigir juramento, exceto quando a CAPÍTULO III


violação dos pactos possa ficar oculta, ou só possa
ser punida por Deus mesmo
Das Outras Leis de Natureza]
Exigir um juramento, quando o eventual rompimento do
contrato não tem como ser ocultado, e quando à outra parte não
faltam meios de punir a palavra assim rompida, e fazer mais do que
a autodefesa necessita, e revela uma mente menos empenhada em
beneficiar a si mesma do que em prejudicar a outrem. Pois presta-se
um juramento, como se vê pela própria forma em que é vazado, a
fim de invocar a ira de Deus, enquanto Onipotente, contra aqueles
que violarem a palavra dada, por pensarem que têm força para
escapar ao castigo que os homens lhes possam infligir; e, enquanto 1. A segunda lei de natureza manda cumprir os contratos
Onisciente, contra aqueles que costumam romper a confiança neles
Outra lei de natureza consiste em cumprir os contratos
depositada, porque contam que ninguém há de enxergá-Ias.
que firmamos, ou em respeitar a confiança que foi deposi
tada em nós. Pois já mostramos, no capítulo anterior, que a
lei de natureza manda todo homem transferir certos direitos a
outrem, como condição necessária para alcançar a paz, e que todas
as vezes que isso acontecer se terá firmado um contrato. Isto,
porém, só conduzirá à paz na medida em que nós mesmos
cumprirmos o que combinamos com os outros, quer se trate de
fazer, quer de omitir determinada coisa; pois seria inutilíssimo
firmar contratos, se não fosse para respeitá-Ias. Portanto, como
obedecer às convenções que tratamos ou cumprir a palavra dada se
mostra ne
cessário para se alcançar a paz, temos aqui, conformemente ao
parágrafo segundo do capítulo 11, um preceito da lei natural.

2. Devemos respeitar a palavra dada ("trust") a quem quer que


seja, sem exceção
Neste tópico não se pode fazer exceção segundo as pessoas
com quem tratamos, a pretexto de que elas não costumem respeitar
a palavra dada, ou afirmem que nenhum

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Do Cidadão
T
II
Liberdade

compromisso deva ser cumprido, ou sejam culpadas de qualquer ou omitir, comete uma injúria, e cai numa contradição que não é
outra espécie de vício. Pois quem contrata nega, pelo mero ato de l menor do que aquela que entre os escolásticos se chama redução ao
contratar, que esteja praticando tal ato em vão; aliá~, é contrário à absurdo. Pois, contratando alguma ação futura, ele quer que ela seja
razão um homem sensato (knowinfl) cometer uma coisa em vão; e, feita; não a fazendo, ele quer que não seja feita - portanto, ele ao
se ele pensa que não se obriga a cumprir o que promete, já por mesmo tempo quer que seja praticada e que não o seja, o que é
pensar assim ele afirma que o contrato está sendo firmado em vão. contraditório.
Por conseguinte, quem contrata com alguém que, no seu entender, Uma injúria é, portanto, uma espécie de absurdo na vida
não merece que o primeiro respeite a palavra dada, está pensando a corrente (conversation), assim como um absurdo é uma espécie de
um só tempo que um contrato é firmado em vão, e sem ser em vão - injúria cometida na discussão.
o que é absurdo. Portanto, ou devemos confiar em todos os
homens, ou não devemos negociar com eles. Isto é, ou deve haver
entre nós guerra declarada, ou paz segura e leal. 4. A ninguém se faz injúria, exceto àqueles com quem
contratamos
Destes fundamentos se segue que não se pode cometer injúria
contra ninguém3, a não ser contra aquele com quem firmamos uma
convenção, ou a quem demos algo por algum instrumento, ou a
3. O que é injúria quem prometemos alguma coisa em troca de outra. E por isso
geralmente se distinguem o dano e a injúria. Pois, se um senhor
Violar um compromisso, ou exigir de volta algo que já demos manda seu servidor, que lhe prometeu obediência, levar uma soma
é o que se chama injúricf. Consiste, sempre, numa ação ou omissão. de dinheiro ou um presente a um terceiro e caso o servidor não
E tal ação ou omissão é chamada injusta, uma vez que injúria cumpra a ordem estará causando dano a esse terceiro, mas cometerá
significa a mesma coisa que uma ação ou omissão injusta, ou a injúria apenas contra o seu senhor. Da mesma forma, num governo
quebra da confiança ou o rompimento do compromisso que foi civil, se um homem ofender outro com quem não tenha firmado
firmado. Parece que a palavra injúria veio a ser atribuída a qualquer nenhum contrato, estará realmente infligindo um dano a esse
ação ou omissão que fosse destituída de direito, isto é, quando terceiro, mas não terá injuriado ninguém, a não ser aquele a quem
aquele que agia ou deixava de agir já tinha transferido pertence o poder de governar. Pois, se quem sofreu o prejuízo se
anteriormente a outrem o seu direito nesse sentido. queixasse do prejuízo, quem o causou apenas lhe retrucaria o
E há alguma semelhança entre o que no curso comum da vida seguinte: O que és para mim?
chamamos de injúria, e aquilo que os escolásticos costumam Por que deveria eu agir pela tua vontade e não pela minha,
denominar absurdo. Pois, assim como se diz daquele que, através já que não te impeço de Jazeres o que queres, em vez de seguires a
de uma seqüência de argumentos, é induzido a negar a asserção que minha vontade? E neste discurso, quando não houver entre ambos
primeiro defendeu, que foi levado a um absurdo, da mesma forma nenhum tipo de contrato previamente
quem, por debilidade de caráter, faz ou omite o que antes contratou firmado, nada vejo que mereça repreensão.
não fazer

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Do Cidadão
Liberdade

5. A distinção entre justiça das pessoas e das ações porção geométrica. Aquela aplica-se às trocas, às operações
de compra e venda, de empréstimo, locação e arrendamento, e a
As palavras justo e injusto, assim como justiça e injustiça, são todos os demais atos que se refiram a contratos, nos quais, se houver
equívocas: porque significam uma coisa quando são atribuídas a
um retorno igual ao que foi dado, nasce
pessoas, outra quando se referem a ações. Quando são atribuídas a
dizem eles - uma justiça comutativa. Já a segunda cuida da
ações, justo significa exatamente o que é feito com direito, e injusto
dignidade e méritos dos homens, de modo que, dando-se a
o que é cometido com injúria. Por isso, quem cometeu uma ação
cada qual katà ten axían, ou seja, mais para aquele que é
justa não se diz ser uma pessoa justa, mas sem culpa; e quem
mais digno, menos para aquele que menos merece, e sempre
cometeu uma coisa injusta não dizemos que por causa disso seja
segundo uma proporção, daí surge - segundo eles dizem - uma
injusto, mas que é culpado.
justiça distributiva.
Contudo, quando estas palavras se aplicam a pessoas, ser justo
Reconheço que aqui existe uma certa distinção da igual
significa o mesmo que deleitar-se em agir com justiça, estudar como
praticar a justiça4 ou empenhar-se, em todas as coisas, por fazer dade. Pois a primeira é, simplesmente, igualdade: como quando
aquilo que é justo; e ser injusto consiste em negligenciar o trato comparamos duas coisas de igual valor, por exemplo,
correto dos outros, ou em pensar que este deva ser medido, não em uma libra de prata e doze onças da mesma prata; enquan
função do que contratei, mas de algum benefício imediato. De modo to a segunda é uma igualdade secundum quod, tal como
que a justiça ou injustiça da mente, ou da intenção, ou da pessoa, é quando mil libras têm de ser divididas por cem homens,
uma coisa, e a justiça ou injustiça da ação, ou da omissão, é outra; e indo seiscentas para os primeiros sessenta, e quatrocentas
inúmeras ações cometidas por um ho para os outros quarenta, caso em que não há igualdade en
mem justo podem ser injustas, e de um homem injusto, justas. Mas tre essas duas somas. Mas, como a mesma desigualdade que há
quem deve ser considerado justo é o que pratica entre elas também ocorre entre os homens a quem serão
coisas justas porque a lei assim as ordena, e só comete ações distribuídas, cada um destes últimos receberá uma igual
injustas por fragilidade (infirmity); e deve ser tido por injusto parcela - razão por que se diz que a distribuição é igual. E
quem age corretamente só por medo ao castigo apenso à lei, e age tal igualdade distributiva é a mesma coisa que uma propor
injustamente já devido à iniqüidade de sua mente. ção geométrica.
Mas o que tem isso tudo a ver com a justiça? Pois, se eu
vender os meus bens ao mais alto preço que por eles possa obter,
não estarei causando injúria ao comprador, que os quis e a mim
solicitou; e da mesma forma, se eu di
vidir o que é meu e der mais àquele que merece menos,
6. A distinção entre justiça comutativa e justiça distributiva
desde que dê aos demais tanto quanto havia contratado dar-
A justiça das ações costuma distinguir-se em duas espécies: Ihes, não estarei sendo injusto com nenhum deles. Ver
comutativa e distributiva. A primeira, dizem, consiste numa dade esta que é confirmada pelo verbo de Nosso Salvador,
proporção aritmética, e a segunda, em uma pro que é Deus, no Evangelho. Por conseguinte, a distinção
que aparece não é de justiça, mas de igualdade. Contudo,
talvez não se possa negar que a justiça é uma certa igual

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57
I
Do Cidadão
Liberdade

dade, desde que esta consista estritamente no que se segue: que,


como por natureza somos todos iguais, ninguém deve arrogar-se passem as coisas assim, agirá contra a razão quem fizer um
mais direito do que concede a outrem, a menos que o tenha obtido bem, sentindo que este terá sido em vão; e por conseguin
de maneira justa, através de contrato. te toda a beneficência e confiança, bem como toda espécie de
E basta isso quanto ao que devíamos dizer contra esta benevolência, desaparecerão de entre os homens. Nunca haverá
distinção de duas justiças, embora seja ela atualmente acolhida por qualquer assistência recíproca entre eles, nem qualquer empenho
quase todos, para que ninguém pense que injúria seja outra coisa por lhes conquistar a graça e favor; em conseqüência, o estado de
que a quebra da confiança ou o descumprimento de um contrato, guerra haverá de continuar, o que é contrário à lei fundamental de
assim como acima os definimos. natureza. Contudo, como o descumprimento desta lei não constitui
quebra de confiança nem infração a contrato (pois supomos que
ainda não tenham sido firmados contratos), não pode dizer-se que
constitua uma injúria; mas, como uma ação boa e a gratidão estão
sempre ligadas, é chamada de ingratidão.
7. Não se comete injúria contra aquele que a
quer receber
Segundo um antigo dito, volenti non fit injuria, não se faz
injúria contra quem quer recebê-Ia. E sua veracidade pode ser
deduzida dos princípios que expusemos. Pois conceda-se que 9. Quarta lei de natureza: que todo homem se torne útil aos
alguém queira que se faça o que ele considera ser uma injúria demais6
contra ele; portanto, aquilo que era ilegal por contrato terá sido
praticado por sua própria vontade. Ora, se ele quis que se fizesse o o quarto preceito da natureza é que todo homem se faça útil
que por contrato era ilícito, o próprio contrato (como vimos no aos demais. Para bem entendê-Io, devemos recordar que entre os
parágrafo quinze do capítulo anterior) é então revogad05. Portanto, homens são muito diversas as disposições que os levam a ingressar
volta a haver direito ao ato que foi praticado; nada se fez, pois, na vida social, devido àdiversidade de suas afecções - assim como
contra o direito; não se cometeu injúria. nas pedras, que se juntam na construção de um edifício, há
diversidade de material e configuração. Assim, uma pedra que por
suas formas angulares e ásperas tira mais espaço das outras do que
ela própria preenche, e que devido à rigidez de sua matéria não
pode ser reduzida em tamanho, nem cortada, e por isso pode fazer
8. A terceira lei de natureza, a respeito da ingratidão
que a edificação não seja tão compacta quanto precisa ser, é
O terceiro preceito da lei natural é que não permitas que descartada, por não ter serventia; da mesma forma, costuma-se dizer
alguém que, por confiar em ti, te fez um bem - antes que lhe que é um inútil, e perturbador dos demais, aquele homem que tenha
fizessem outro bem qualquer - venha a sofrer por isso; e que não uma grosseira disposição a tomar para si o que
aceites presentes se não tiveres em mente esforçar-te para que é supérfluo, a privar os outros do que é necessário, e a
aquele que os deu não tenha uma justa ocasião de se arrepender de
tê-Ios dado. Pois, não se

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Do Cidadão
Liberdade

quem seja impossível corrigir racionalmente, tão teimosas são suas 11. A sexta lei, para que os castigos considerem
afeições. apenas o futuro
Ora, como cada um tem, não apenas por direito, mas também
O sexto preceito da lei natural é este: que, procedendo à
por necessidade natural, de usar o máximo de sua força para
conseguir as coisas necessárias para sua conservação - se qualquer vingança ou impondo castigos, devemos ter em mira
outro se bater contra ele por coisas supérfluas, será por culpa deste não o mal passado, mas o bem futuro. Ou seja, não é líci
último que brotará a guerra. Isso porque não tinha necessidade de
lutar, e assim, lutando, vai contra a lei fundamental de natureza. to infligir um castigo por qualquer fim a não ser este: que
Disso concluo (como depois explicarei) que constitui um preceito o ofensor seja corrigido, ou que os outros, alertados pela
da natureza que cada qual tente conciliar-se com os outros. E quem
romper esta lei pode ser chamado de inútil e perturbador. Cícero punição, possam se tornar melhores. Isto se confirma antes
opunha os homens conciliadores aos desumanos, com base
de mais nada pelo fato de que cada um é obrigado, pela
exatamente nesta lei.
lei de natureza, a perdoar os demais, desde que estes dêem
uma caução quanto ao futuro, como mostramos no parágrafo
anterior.
10. A quinta lei: misericórdia Além disso, como a vingança - se for levado em conta apenas o
tempo passado - nada mais é que um certo triun
O quinto preceito da lei de natureza nos manda perdoar àquele fo e glorificação da mente, que não aponta para fim nenhum
que se arrepende e pede perdão pelo passado - desde que nos (pois contempla apenas o que é passado; ora, o fim
acautelemos, primeiro, quanto ao tempo futuro. Perdoar o passado,
é uma coisa ainda por vir); e como o que não está dirigido
ou relevar uma ofensa, nada mais é do que conceder paz a quem a
para fim algum é vão; conclui-se que a vingança que não
pede - a quem guerreou contra nós, e agora se tornou penitente.
considere o futuro procede da vã glória, e por conseguinte
Mas a paz que se concede a quem não se arrepende, ou seja,
não tem razão. Ora, ferir o outro sem razão dá início à
àquele que continua de mente hostil contra nós, ou que não fornece
guerra, e vai contra a lei fundamental de natureza. Portanto,
caução para o futuro - isto é, que não está procurando a paz, mas tão-só
uma oportunidade -, tal paz não é paz, mas medo, e por conseguinte é um preceito da lei de natureza que na vingança não olhe
mos para trás,
12.mas apenas
A sétima lei,para
queaproíbe
frente.insultos
Romper esta lei costuma
não é um mandamento da natureza.
ter por nome: crueldade.
Finalmente, quanto àquele que não perdoa o penitente que dá Como qualquer sinal de ódio e desdém induz a maior
caução quanto ao futuro: parece que a paz não lhe agrada; e assim
viola a lei natural. parte dos homens a brigar e lutar, a tal ponto que a maio

ria deles preferiria perder a vida (e nem digo: a paz) a so

frer um insulto, segue-se, em sétimo lugar, entre as prescri

ções da lei de natureza, que ninguém, por ações nem por


60 61 ou pelo riso, deve declarar ódio
palavras, pela figura do rosto
ou desdém por outrem. Violar esta lei se chama insul
Do Cidadão
Liberdade

tar. E, embora nada seja mais freqüente do que as zombarias e isso o oitavo preceito da lei de natureza diz que todo homem deve
sarcasmos dos poderosos contra os fracos, e especialmente dos ser estimado naturalmente igual a outrem, dando-se o nome de
juízes contra os condenados, que nada têm a ver com a ofensa arrogância à sua violação.
cometida pelo culpado, nem com o dever de julgar, é fato que esses
homens agem contra a lei de natureza, e por isso devem ser
considerados contumeliosos.
14. A nona lei, que ordena a humildade

Se foi necessário, para a conservação de cada qual, que ele


abrisse mão de parte dos seus direitos, igualmente é necessário,
13. A oitava lei, contra a arrogância para a mesma conservação, que ele guarde alguns outros direitos, a
saber: o direito à proteção de seu corpo, ao livre desfrute do ar, da
Saber qual é o mais digno, dentre dois homens, é questão que água, e de tudo o mais que é necessário para a vida. Portanto, já que
não compete ao estado natural resolver, mas apenas ao civil. Pois muitos direitos comuns continuam com aqueles que ingressam num
já mostramos acima (no capítulo I, parágrafo 3) que todos os estado pacífico, e que muitos direitos particulares são então adqui-
homens são iguais por natureza, e por isso a desigualdade que hoje ridos, disso decorre o nono ditado da lei natural, ou seja: que todos
existe, digamos de riquezas, poder e nobreza de sangue, resulta da os direitos que um homem reivindique para si, os mesmos ele
lei civil. Sei que Aristóteles, no primeiro livro de sua Política, reconheça serem devidos a todos os demais. Se assim não fizer,
afirma - como um dos primeiros fundamentos da ciência política - estará frustrando aquela igualdade que foi reconhecida no parágrafo
que alguns são feitos, por natureza, dignos de mandar, outros anterior. Pois o que é reconhecer a igualdade das pessoas na
apenas para servir: como se senhor e servo se distinguissem não constituição da vida social, senão atribuir igual direito e poder
apenas pelo consentimento dos homens, mas por uma aptidão, ou àqueles que ne
seja, por uma espécie de conhecimento ou ignorância naturais. nhuma outra razão convenceria a ingressar na sociedade? Ora,
Ora, tal fundamento não é desmentido somente pela razão atribuir direitos iguais a iguais é o mesmo que dar coisas
proporcionais a proporcionais. O respeito a essa lei
(conforme se acaba de mostrar), mas também o é pela experiência.
chama-se modéstia, sua infração pleonexia. Os latinos davam, a
Pois não há ninguém tão estúpido de entendimento, que não
quem a desrespeitasse, o nome de immodici et immodesti.
considere melhor governar a si mesmo, em vez de se entregar ao
governo de outro; e, se o poder fosse disputado entre os mais fortes
e os mais sábios, não tenho certeza de que estes conseguissem a
vitória. Portanto, quer os homens sejam iguais por natureza, caso
em que temos de reconhecer tal igualdade, quer sejam desi 15. A décima, que determina a eqüidade, e condena fazer acepção
guais, caso em que se irão bater pelo poder, é necessário para se ter a de pessoas
paz - que sejam considerados iguais. E por
A lei de natureza manda, em décimo lugar, que todo homem,
ao repartir o direito entre as pessoas, se mostre igual com todas
elas. Pela lei anterior, somos proibidos de

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Do Cidadào
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pleitear mais direito para nós, como nos sendo devido por natureza, por sorteio quem será o primeiro a utilizar-se da coisa. Pois,
do que reconhecemos aos outros. Podemos pedir menos, se assim também aqui, deve considerar-se a igualdade; e nenhuma
quisermos, porque tal atitude às vezes expressa modéstia. Mas se, a outra igualdade se pode encontrar, a não ser a conferida por sorteio.
qualquer tempo, nos couber repartir a justiça entre outras pessoas,
esta lei nos proíbe de favorecer a um em maior ou menor proporção
do que a outro. Pois quem não respeita essa igualdade natural,
favorecendo a um acima de outro, insulta aquele a quem assim 18. A décima terceira, sobre o direito de nascença e a
subestima; ora, insultar alguém é violar as leis de natureza, primeira posse dos bens
conforme anteriormente declaramos. A observância deste preceito
chama-se eqüidade; sua quebra, acepção de pessoas. Os gregos O sorteio, porém, pode ser de duas espécies: arbitrário ou
dizem, numa só palavra, prosopolepsía. natural. Arbitrário é aquele que é lançado por consentimento das
partes, e consiste no mero acaso (como dizem)7 ou fortuna. Sorteio
natural é a primogenitura (em grego kleronomía, significando o que
é concedido por sor
16 A décima primeira, sobre as coisas a serem teio) ou a posse primeira. Portanto, as coisas que não po
havidas em comum
dem ser divididas, nem usadas em comum, devem ser con-
Da lei anterior infere-se esta décima primeira: que as coisas cedidas ao primeiro possuidor; assim como aquelas coisas que
que não possam ser divididas devem ser utilizadas em comum - se pertenceram ao pai são devidas ao filho, a não ser que o próprio pai
for possível- e, sempre que a quantidade material o permitir, tendo por tenha, anteriormente, transferido a um terceiro seu direito sobre
único limite a vontade de cada um. Quando, porém, a quantidade elas. Afirmemos, então, que é esta a décima terceira lei de natureza.
não o admita, que cada um use delas dentro de limites, e
proporcionalmente ao número de usuários. Pois, se assim não for,
não haverá meios de respeitar aquela igualdade que mostramos, no 19. A décima quarta, sobre a salvaguarda daqueles que sejam
parágrafo anterior, ser ordenada pelas leis de natureza. mediadores de paz
O décimo quarto preceito da lei de natureza reza que se
garanta a segurança daqueles que forem mediadores pela causa da
paz. Pois a razão que ordena o fim ordena, igualmente, os meios
17. A décima segunda, sobre as coisas a serem
necessários para o fim. Ora, o primeiro ditado da razão é a paz; tudo
divididas por sorteio
o mais são meios para obtê-Ia, sem os quais não se pode ter paz. E
Quanto àquilo que não pode ser dividido, nem havido em nem se pode alcançar paz sem mediação, nem mediação sem
comum, manda a lei de natureza (e este pode ser o seu décimo segurança daqueles que a efetuam. Por conseguinte, é um ditado da
segundo preceito) ou que seja utilizado sucessivamente por todos, razão - ou seja, uma lei de natureza - que devemos dar toda a
ou que seja concedido a apenas um mediante sorteio. E mesmo no segurança aos mediadores de paz.
uso sucessivo deve decidir-se

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20. A décima quinta, sobre a constituição de um árbitro 22. A décima sétima: que os árbitros não tenham nenhuma
expectativa de receber recompensas por parte daqueles cuja
Contudo, embora todos devam concordar em instaurar todas causa vão julgar
essas leis de natureza e quaisquer outras, e devam empenhar-se em
respeitá-Ias, ainda assim podem surgir a cada momento dúvidas e Desta mesma razão segue-se, em décimo sétimo lugar, que
controvérsias quanto à aplicação delas a seus atos, procurando-se não deve ser juiz ninguém que, da vitória de qualquer das partes,
portanto saber se o que se fez era ou não contra a lei de natureza (o possa ter qualquer esperança de lucro ou glória: e isso pela mesma
que chamamos a questão de direito). E disso se seguirá uma luta razão aqui, que na lei precedente.
entre as partes, cada uma delas considerando-se afrontada no seu
direito. Por isso, é necessário, para preservar-se a paz - e
isso porque neste caso não se pode conceber nenhum outro remédio
23. A décima oitava, sobre as testemunhas
que seja adequado -, que ambas as partes em desacordo refiram a
questão a algum terceiro, e que se obriguem, por pactos recíprocos, E, quando a controvérsia versar sobre o fato mesmo (isto é,
a respeitar o julgamento na decisão da controvérsia. Aquele a quem estiver em questão se foi mesmo cometido o que uns dizem que foi
elas assim apelam chama-se árbitro. E dessa forma o décimo e outros que não), a lei natural exige que o árbitro dê igual crédito a
quinto preceito da lei natural manda que duas partes, em conflito ambas as partes, ou seja - dado que elas se contradizem -, que não
sobre questões de direito, submetam-se ambas à opinião e juízo de dê crédito a nenhuma. Por isso deve acreditar num terceiro, ou
um terceiro. numa terceira e numa quarta pessoas, ou ainda em mais, para que
possa ter condições de julgar do fato, sempre que por outros
indícios não puder vir a ter conhecimento dele. Por conseguinte, a
décima oitava lei de natureza manda que os árbitros e todos os que
julgam do fato, quando deste não aparecerem sinais firmes e
21. A décima sexta: que ninguém seja juiz em
seguros, baseiem sua sentença naquelas testemunhas que
causa própria
aparentemente sejam indiferentes a ambas as partes.
E deste princípio básico, segundo o qual o árbitro ou juiz é
escolhido pelas partes em desavença para determinar sua
controvérsia, concluímos que ele não pode ser uma das partes. Pois
presume-se que todo homem procure naturalmente o que é bom
para ele, e apenas acidentalmente, e a fim de ter paz, o que é justo; 24. A décima nona: que não se façam contratos com o
portanto, que não possa observar aquela igualdade ordenada pela lei árbitro
de natureza com tanta exatidão quanto faria um terceiro. Por conse-
Da definição acima proposta de árbitro podemos inferir ainda
guinte, o que está contido em décimo sexto lugar na lei de natureza
que, entre ele e as partes por quem for designado juiz, não deve
é que ninguém deve ser juiz ou árbitro em causa própria.
haver nenhum contrato ou promessa que possa induzi-lo a falar em
favor de uma delas; mais até: nem deve ter firmado com nenhuma
destas um con

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trato pelo qual se comprometa a julgar segundo a eqüidade, ou estado natural- como bem se evidencia no caso dos bêba
mesmo a pronunciar uma sentença que ele sinceramente julgue ser dos e dos glutões. Assim, o vigésimo caso em que pecamos
eqüitativa (equal). Isso porque o juiz já está obrigado, pela lei de contra a lei de natureza é por embriaguez8.
natureza enunciada no pará
grafo 15, a pronunciar a sentença que julgar eqüitativa e a essa
obrigação nada pode se somar, sequer graças a um contrato. Portanto, 26. A regra pela qual podemos prontamente conhecer se o que
firmar um tal contrato só pode ser em vão. fazemos segue, ou infringe, a lei de natureza
Pior: se no caso de pronunciar uma sentença iníqua, depois
disso ele tiver de bater (contend) para provar que nela seguiu a Talvez alguém que veja todos estes preceitos de natureza
eqüidade, então (a não ser que um tal contrato seja nulo) a deduzidos, por algum artifício, daquele único ditado da razão que
controvérsia persistirá mesmo depois de encerrado o julgamento, o nos aconselha a cuidar da preservação e salvaguarda de nós
que vai contra a instituição do árbitro, que é escolhido porque as mesmos, venha a dizer que a dedução destas leis é tão árdua que
duas partes se obrigaram a acatar a sentença que ele venha a não devemos esperar que sejam conhecidas do vulgo, e que por isso
pronunciar. Por conseguinte, a lei de natureza manda que o juiz elas não se mostrarão obrigatórias: pois as leis, se não forem
não tenha compromissos, e este é seu décimo nono preceito. conhecidas, não obrigam - mais ainda, nem sequer são leis.
A isso eu respondo que é verdade que a esperança, o medo, a
ira, a ambição, a cobiça, a vã glória e outras perturbações da mente
efetivamente nos afetam de tal modo que não podemos alcançar o
conhecimento destas leis, enquanto tais paixões prevalecerem em
nós; mas não há ninguém que não tenha, às vezes, a mente serena. E
25. A vigésima, contra a gula ("gluttony"), e todas aquelas
em tal momento nada lhe é mais fácil de conhecer, por rústico e
coisas que impedem o uso da razão
inculto que seja ele, do que esta única regra: quando não
Além disso, na medida em que as leis de natureza nada mais tiver certeza se o que faz a outrem é permitido ou não pela lei de
são que ditados da razão - de tal modo que, a não ser que alguém se natureza, que se ponha no lugar do outro. Deste modo, aquelas
empenhe em preservar a faculdade de raciocinar corretamente, não perturbações da mente que o persuadiram a agir, sendo agora
pode observar as leis de natureza -, é manifesto que todo aquele lançadas na outra balança, imediatamente o dissuadem na mesma
que, consciente ou voluntariamente, fizer qualquer coisa pela qual a proporção. E tal regra não apenas é fácil, mas já era celebrada
faculdade racional possa ser destruída ou debilitada, assim rompe, outrora, nas palavras: quod
consciente e voluntariamente, a lei de natureza. Pois não há tibi fiere non vis, a/teri ne feceris - não faças aos outros o que não
diferença alguma entre quem não cumpre o seu dever e quem quiseres que te façam.
voluntariamente comete coisas que tornem impossível cumprir, ele,
o seu dever.
E destroem e debilitam a faculdade de raciocinar os que
praticam o que perturba a mente, distraindo-a de seu

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27. As leis de natureza obrigam apenas no tribunal de


consciência 29. As leis de natureza são imutáveis
Mas - como, em sua maior parte, os homens, ainda que As leis de natureza são imutáveis e eternas: o que elas
eventualmente reconheçam tais leis, devido a seu perverso desejo
de vantagens imediatas, são totalmente inaptos para observá-Ias -, proíbem nunca pode ser lícito; o que ordenam jamais pode
se porventura alguns, mais humildes que os demais, viessem a ser ilegal. Pois a arrogância, a ingratidão, a quebra de contrato
exercer aquela eqüidade e disposição de se mostrarem úteis que a (ou seja, injúria), a desumanidade, a contumélia nunca serão lícitas,
razão ordena, certamente não estarão sendo racionais adotando uma nem as virtudes a elas contrárias jamais poderão ser ilícitas, se as
tal atitude caso os outros não se portem da mesma forma. Aliás, entendermos como disposições do espírito, isto é, assim como serão
assim não conseguirão paz para si mesmos, mas uma certíssima e consideradas no tribunal da consciência, único lugar onde obrigam,
pronta destruição, e portanto quem cumprir a lei se tornará presa e onde são leis. Mas as ações podem variar tanto em função das
fácil de quem a viola. Por conseguinte, não se deve imaginar que a circunstâncias, e da lei civil, que aquilo que numa ocasião se pratica
natureza (ou seja, a razão) obrigue os homens no estado de natureza de modo eqüitativo venha de outra feita a ser culpado de iniqüidade,
a observar todas aquelas leis, se outros não as respeitarem. e o que se ajuste à razão numa vez venha a contradizê-Ia, mudando
Enquanto isso, estamos obrigados a uma disposição mental no a ocasião. E no entanto a razão ainda é a mesma, e não muda o seu
sentido de cumpri-Ias, sempre que sua observância parecer levar ao fim, que são a paz e a defesa - nem os meios de obtê-los, a saber,
fim para o qual elas foram feitas. E disso devemos pois concluir aquelas virtudes
que a lei de natureza sempre e em toda a parte obriga em foro do espírito que acima expusemos, e que não podem ser revogadas
interno, ou na corte da consciência, mas nem sempre em foro por nenhum costume ou lei.
externo, e neste apenas quando puder ser cumprida com segurança.
30. É justo todo aquele que se esforça por seguir as leis
de natureza
Por tudo o que se disse, evidencia-se o quanto é fácil observar
as leis de natureza, porque tudo o que exigem é tão somente o
28. As leis de natureza às vezes são violadas por ações empenho (só que este tem de ser autêntico e constante); e quem o
cometidas dentro da lei demonstrar, é correto chamá10 de justo. Pois quem tenda a isso
com todo o seu poder, a fim de que suas ações se conformem aos
Essas leis que obrigam em consciência não são infringidas preceitos da natureza, mostra claramente que tem em mente
apenas por atos que lhes sejam contrários, mas também por alguns cumprir todas aquelas leis - que é tudo a que nos obriga a natureza
que se acordam com elas, se quem os praticar os fizer de outra racional. E é justo quem faz tudo aquilo a que estáobrigado.
mente. Pois nesse caso, embora o ato em si mesmo atenda às leis, a
consciência de quem o comete as contradiz.

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31. A lei natural e a lei moral são uma só 32. Por que o que dissemos das leis de natureza não
coincide com o que os filósofos afirmaram a propósito
Todos os autores concordam que a lei natural é a mesma coisa das virtudes
que a moral. Vejamos por que razões isto é verdade. Devemos
saber, portanto, que bem e mal são nomes dados às coisas para Mas, como não podemos descartar este mesmo apetite
significarem a inclinação ou aversão daqueles por quem foram irracional, que nos faz gananciosamente preferir ao bem
dados9. Ora, as inclinações dos homens são diversas e variadas,
conforme a diversidade de sua constituição, de seus costumes ou futuro um bem presente (ao qual, por conseqüência estrita,
opiniões - como podemos ver naquelas coisas que apreendemos
aderem muitos males imprevistos), sucede que, embora
pelos sentidos, como o paladar, o tato, o odor; e são muito mais di-
versas ainda naquelas coisas que dizem respeito às ações comuns da todos concordemos em elogiar as virtudes acima mencio
vida, onde o que este elogia Cisto é, chama de bom) aquele
nadas, havemos porém de discordar naquilo que se refere
menospreza, dizendo que é mau; pior, muitas vezes o mesmo
homem em diferentes ocasiões elogia e amesquinha a mesma coisa. à sua natureza, a saber, naquilo em que consiste cada uma
E, porque o fazem os homens, necessariamente surgem entre eles
delas. Pois, sempre que a boa ação de um desagradar a ou
discórdia e luta. Por isso eles estão no estado de guerra todo o
tempo em que, em razão da diversidade de seus apetites presentes, tro, ela receberá o nome de algum vício a ela próximo; e da
medem o bem e o mal por distintos padrões. Todos os homens, en-
mesma forma as más ações que agradem a alguma pessoa
quanto vivem nesse estado, facilmente o reconhecem por mau, e por
conseguinte confessam que a paz é boa. Portanto, aqueles que não \ sempre serão chamadas de alguma virtude. Disso decorre
teriam como concordar quanto a um bem presente entram em acordo que a mesma ação é elogiada por estes, e dita virtude, e
quanto a um bem futuro
[ menosprezada por aqueles, que a dizem ser um vício. E até o
o que na verdade é efeito da razão: pois as coisas presen
I presente momento não encontraram os filósofos nenhum remédio
tes são óbvias aos sentidos, e as futuras apenas à razão. Como a I para esta questão - pois, como eles não foram capazes de notar que
razão declara que a paz é uma boa coisa, se-guese, pela mesma a bondade das ações consiste em elas se subordinarem à paz, e o
razão, que todos os meios necessários para a paz igualmente o são; mal em se relacionarem à discórdia, erigiram uma filosofia moral
e, portanto, que a modéstia, a eqüidade, a confiança, a humanidade, completamente distin
a misericórdia (que demonstramos serem necessárias à paz) são ta da lei moral; e sem consistência interna. Pois eles que
boas maneiras ou hábitos bons, isto é, virtudes. Em conseqüência, a rem que a natureza das virtudes esteja numa certa medio
lei ordena também, como meios para a paz, que tenhamos bons " cridade entre dois extremos, os quais seriam os vícios - o que é,
modos, ou seja, que pratiquemos a virtude: e por isso ela é dita lei evidentemente, falso. Pois a ousadia é elogiada, e
moral. sob o nome de valentia ou coragem é considerada uma vir
tude - embora seja uma coisa extrema -, desde que se
aprove a sua causa. E da mesma forma a quantidade que se
dá de uma coisa - seja ela grande, pequena ou nem gran
de nem pequena - não é o que constitui a liberalidade, mas sim a
causa por que a damos. Tampouco se pode dizer que seja injusto eu
72 dar a alguém mais do que é meu, em vez de lhe dar menos.
Portanto as leis de natureza73
são a suma da filosofia mo
ral, da qual eu mostrei aqui apenas estes preceitos que di
~

Do Cidadão

zem respeito a nossa conservação contra aqueles perigos que CAPÍTULO IV


brotam da discórdia. Mas há outros preceitos da natureza racional,
dos quais provêm outras virtudes; pois a temperança também é um
preceito da razão, dado que a destemperança leva à doença e à Que a Lei de Natureza é Lei Divina]
morte. E da mesma forma a fortitude, ou seja, a faculdade de
resistir bravamente aos perigos que nos ameaçam, e que é mais
difícil esquivar do
que vencer, também é uma virtude que se apóia na razão porque é um
meio que tende à conservação daquele que resiste.

1. A lei natural e moral é divina


33. A lei de natureza não é propriamente lei, salvo na medida
em que é expressa nas Sagradas Escrituras A mesma lei que é natural e moral também é mereci
Contudo, o que denominamos leis de natureza, como nada damente chamada divina: tanto porque a razão, que é a lei
mais são que certas conclusões entendidas pela razão, acerca das
coisas que devem ser feitas ou omitidas - ao passo que uma lei, para de natureza, foi outorgada por Deus a cada homem como regra
falar de maneira própria e acurada, é o discurso de quem tem o de suas ações, quanto porque os preceitos de vida
direito de mandar que façam ou deixem de fazer determinadas
coisas -, a bem dizer elas não são leis, dado que procedem da que dela derivamos coincidem com aqueles que foram pro
natureza. Porém, na medida em que são outorgadas por Deus nas mulgados pela Majestade Divina como leis de seu reino ter-
Sagradas Escrituras - como veremos no capítulo seguinte - é muito reno, por intermédio de Nosso Senhor Jesus Cristo e de
apropriado chamá-Ias pelo nome de leis: pois a Sagrada Escritura é
o verbo de Deus mandando, pelo maior de todos os direitos, sobre seus santos profetas e apóstolos. Portanto, o mesmo que
todas as coisaslO. acima mostramos pelo raciocínio, quanto à lei de natureza,
trataremos agora de também confirmar, neste capítulo, pelo
recurso à Sagrada
2. O que Escritura.
é confirmado pela Escritura de modo geral

Primeiro mostraremos aqueles lugares nos quais se de


\
clara que a lei divina repousa na reta razão. Salmo 37, 30

31: A boca do justo fala a sabedoria: a sua língua fala do


juízo. A lei do seu Deus está em seu coração. Jeremias 3P,
33: Porei a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu
coração. Salmo 19, 7: A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a
alma3. Versículo 8: O mandamento do Senhor é puro, e
alumia os olhos. Deuteronômio 30, 11: Porque este manda
74 75
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mento, que hoje te ordeno, não te é encobeno, e tão pouco está


longe de ti etc. Versículo 14: Porque esta palavra está muito peno Salmo 34, 14: Apana-te do mal, e faze o bem: procura
de ti, e no teu coração, para a fazeres. Salmo 119, 34: Dá-me a paz e segue-a. Isaías 9, 6-7: Porque um menino nos nasceu,
entendimento, e guardarei a tua lei. Versículo 105: A tua palavra é um filho se nos deu, e o principado está sobre os seus
uma lâmpada para os meus pés e uma luz para o meu caminho. ombros, e o seu nome se chama Maravilhoso, Conselheiro,
Provérbios 9, 10: A ciência do Santo (é) a prudência.4 Cristo, Deusfone, Pai da eternidade, Príncipe da paz6. Isaías 52, 7:
o legislador, é chamado (João 1, 1): o Verbo. O mesmo Cristo é Quão suaves são sobre os montes os pés do que anuncia as
chamado (no versículo 9): a luz verdadeira, que alumia a todo o boas novas, o que faz ouvir a paz; do que anuncia o bem,
homem que vem ao mundo. Em todas estas passagens se descreve a que faz ouvir a salvação: do que diz a Sião: o teu Deus rei
razão reta, cujos ditados, conforme acima mostramos, constituem as na/Lucas 2, 14: Na natividade de Cristo, a voz daqueles que
leis de natureza.
exaltavam a Deus, dizendo Glória a Deus nas alturas, paz
na terra, boa vontade para com os homens. Em Isaías 53,5, o
Evangelho é chamado o castigo que nos traz a paz. Isaías
59, 8: A justiça é chamada o caminho da paz. Miquéias 5,
3. E em especial no tocante à lei fundamental de 4-5, tratando do Messias, assim diz: E ele estará em pé, e
natureza que manda buscar a paz apascentará ao povo na força do Senhor, na excelêncid do
nome do Senhor seu Deus; e eles permanecerão, porque
E aquilo que acima estabelecemos como lei fundamental de agora será engrandecido até aos fins da terra. E este será a
natureza - a saber, que se deve almejar a paz - constitui igualmente paz" etc.
a suma da lei divina, como se manifesta pelas passagens seguintes. Provérbios 3, 1-2: Filho meu, não te esqueças da minha
Romanos 3,17: Ajustiça" que é a suma da lei, é chamada o caminho lei, e o teu coração guarde os meus mandamentos.
da paz. Salmo 85, 10: A justiça e a paz se beijaram. Mateus 5, 9:
Bem-aventurados os pacificadores, porque eles são chamado filhos 4. E também quanto à primeira lei de natureza, ao pôr
de Deus. E São Paulo, depois de chamar Cristo (o legislador fim à posse em comum de todas as coisas
daquela lei de que ora tratamos), no sexto capítulo da Epístola aos
Hebreus, último versículo, de eternamente sumo sacerdote, segundo Quanto à primeira lei, que suprime a comunidade de
a ordem de Melquisedeque, acrescenta no capítulo seguinte, todas as coisas, ou introduz a distinção entre meum e tuum:
versículo 1: Esse Melquisedeque era rei de Salém, sacerdote do
Deus Altíssimo etc; versículo segundo: e primeiramente é, por percebemos, em primeiro lugar, que grande inimiga uma tal
intetpretação, rei de justiça, e depois também rei de Salém, que é comunidade é da paz, por essas palavras que Abraão
rei de paz. Disso se evidencia que Cristo, na qualidade de rei, em
seu reino mantém juntas a justiça e a paz. disse a Lot (Gênesis 13,8-9): Ora, não haja contenda entre

mim e ti e entre os meus pastores e os teus pastores, porque


irmãos varôes somos. Não está toda a terra diante de ti? Eia,
pois, apana-te de mim. E todas as passagens da Escritura pelas quais
somos proibidos de invadir a nossos vizinhos como Não matarás,
76 Não cometerás adultério, Não roubarás
77
Do Cidadão Liberdade

etc. - confirmam a lei de distinção entre o meu e o teu, pois supõem 7. E também sobre a quarta lei, que nos manda sermos
que tenha sido suprimido o direito de todos os homens a todas as úteis aos outros
coisas.
Referem-se à quarta lei, que manda nos acomodarmos uns aos
outros, os seguintes preceitos: Êxodo 23, 4 e 5: Se encontrares o
boi do teu inimigo, ou o seu jumento, desgar
5. E também quanto à segunda lei de natureza, que manda
rado, sem falta lhe reconduzirás. Se vires o jumento daque
manter a fé que foi dada
le que te aborrece deitado debaixo da sua carga, deixarás
Pois o que significa Não invadirás o bem alheio senão uma pois de ajudá-Io? Certamente o ajudarás juntamente com
formulação expressa de Não tomarás posse daquilo que por ele. E também o versículo 9: Também não oprimirás o estrangeiro.
contrato deixou de ser teu? Àquele que pergunta, no versículo 1 do Provérbios 3, 30: Não contendas contra alguém
Salmo 15, Senhor, quem habitará no teu tabernáculó?, responde-se, sem razão, se te não tem feito mal. Provérbios 15, 18: O
no versículo 49: Aquele que nem homem iracundo suscita contendas, mas o longânimo apa
faz mal ao seu próximo, nem aceita nenhum opróbrio con ziguará a luta. Provérbios 18, 24: Há amigo mais chegado
tra o seu próximo. E, nos Provérbios 6, 1-210: Filho meu, se do que um irmão. E o mesmo é confirmado em Lucas 10,
ficaste por fiador do teu companheiro, se deste a tua mão ao
pela parábola do Samaritano, que teve compaixão do judeu
estranho, enredaste-te com as palavras da tua boca: prendeste-te
que havia sido ferido por ladrões; e ainda pelo preceito de
com as palavras da tua boca.
Cristo, em Mateus 5, 39: Eu vos digo, porém, que não resis
tiu ao mal,' mas, se qualquer te bater na face direita, ofere
ce-lhe também a outra.
6. E quanto à terceira lei, da gratidão
A terceira lei, que ordena a gratidão, é provada nas seguintes
passagens. Deuteronômio 25, 4: Não atarás a boca ao boi quando 8. E ainda, no tocante à quinta lei, da misericórdia
trilhar, o que São Paulo interpreta (na primeira Epístola aos
Coríntios 9, 9) como se referindo aos homens, e não apenas a bois 11. Entre infinitas outras passagens que provam a quinta
Provérbios 17, 13: Quanto àquele que torna mal por bem, não
se apartará o mal da sua casa. E Deuteronômio 20, 10-11: lei, estão estas: Mateus 6, 14-15: Porque, se perdoardes aos
Quando te achegares homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos per
a alguma cidade a combatê-Ia, apregoar-lhe-ás a paz. E será
que, se te responder em paz, e te abrir, todo o povo que doará a vós; se, porém, não perdoardes aos homens as suas
se achar nela te será tributário e te servirá. Provérbios 3, 29: ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas
Não maquines mal contra o teu próximo, pois habita contigo
confiadamente. ofensas. Mateus 18, 21-2212: Senhor, até quantas vezes peca

rá meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei? Até sete?


Jesus lhe disse: Não te digo até sete, mas até setenta vezes sete.

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Do Cidadão
Liberdade

9. E também, quanto à sexta lei, que manda nos castigos 11. E igualmente quanto à oitava lei, que proíbe a
considerar-se apenas o futuro arrogância
Para a confirmação da sexta lei, são pertinentes todas as A oitava lei, que nos manda reconhecer que somos iguais por
passagens que nos mandam mostrar misericórdia, como natureza (ou seja, a lei de humildade), está es
Mateus 5, 7: Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles
alcançarão misericórdia. Levítico 19, 18: Não te vingarás nem tabelecida nas passagens que se seguem. Mateus 5, 3: Bem
guardarás ira contra os filhos do teu povo. Contudo, há quem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos
pense que as Escrituras não apenas não confirmam essa lei, mas até céus. Provérbios 6, 16-19: Estas seis coisas aborrecem o Senhor, e
mesmo a desaprovam explicitamente, ao fixarem um castigo eterno sete a sua alma abomina: Olhos altivos etc. Provérbios 16, 5:
aos maus para depois da morte, quando não há mais como eles se Abominação é ao Senhor todo o altivo de co
corrigirem nem servirem de exemplo. Alguns tentam responder a ração: ainda que ele junte mão a mão, não será inocente.
essa objeção dizendo que Deus, a quem nenhuma lei limita, refere Provérbios 11, 2: Vinda a soberba, virá também a afronta;
tudo a Sua glória, ao passo que o homem não deve agir assim: mas com os humildes está a sabedoria. Da mesma forma
como se Deus louvasse Sua glória na morte do pecador, isto é, esta
em Isaías 40, 3, quando anuncia a vinda do Messias, para
lhe desse prazer. É mais correto responder que o castigo eterno foi
que se prepare o advento de seu reino: Voz daquele que clama no
instituído antes do pecado, e teve como única consideração deserto: Aparelhai o caminho do Senhor: endireitai no ermo vereda
aterrorizar os homens para que no futuro não pecassem. a nosso Deusl6. Todo o vale será exa
ltado, e todo o monte e todo o outeiro serão abatidos: O que
sem a menor dúvida se dizia aos homens, e não às montanhas.

10. E o mesmo quanto à sétima lei, acerca da difamação 12. E também sobre a nona lei, da eqüidade
As palavras de Cristo provam essa sétima lei (Mateus 5,
Quanto à eqüidade, a nona lei de natureza que provamos, a
22): Eu vos digo, porém, que qualquer que, sem motivo, se
qual manda todo homem reconhecer aos outros os mesmos direitos
encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que
que gostaria de ter para si mesmo, e contém em si todas as demais
disser a seu irmão, Raca13, será réu do sinédrio; qualquer que lhe
leis, é a mesma lei que Moisés decretou (Levítico 19, 1): Amarás o
disser, louco, será réu do fogo do inferno. Provérbios 10, 18: O que
teu próximo como a ti mesmo. E nosso Salvador chama-a a suma da
produz má famd4 é um insensato.
lei moral: Mateus 22, 36-40: Mestre, qual é o grande mandamento
Provérbios 14, 21: O que despreza ao seu companheiro, peca.
na lei? EJesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
Provérbios 15, 1: A palavra de dorI5 suscita a ira. Pro
coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o
vérbios 22, 10: Lança fora ao escarnecedor, e se irá a contenda; e
primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é:
cessará o pleito e a vergonha.
Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos
depende toda a lei e os profetas.

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Do Cidadão Liberdade

Amar nosso próximo tal como a nós mesmos nada mais é do que 15. E também da décima segunda lei, sobre as coisas que devem
reconhecer-lhe o mesmo que desejaríamos ter reconhecido em ser divididas mediante sorteio
nosso favor.
Dissemos, em décimo segundo lugar, que também era lei
natural que quando as coisas não pudessem ser divididas, nem
possuídas em comum, deveriam então ser atribuídas por sorteio.
13. E também sobre a décima lei, contra a acepção Isso vemos confirmado já pelo exemplo de Moisés que, por ordem
de pessoas de Deus (Números 26, 55), repartiu mediante sorteio, entre as
Pela décima lei proíbe-se a acepção de pessoas - o que tribos, as várias partes da Terra Prometida. Ou pelo exemplo dos
confirmamos nas passagens seguintes: Mateus 5, 45: Apóstolos, que acolheram em seu número a Matias antes de Justo
Para que sejais jilhos do vosso Pai que está nos céus; porque jaz mediante sorteio, dizendo assim (Atos 1, 24): Tu, Senhor,
que o seu sol se levante sobre os maU$ e os justos etc. Colossenses conhecedor dos corações de todos, mostra qual destes dois tens
3, 11: Não há grego nem judeu, circunciso nem incircunciso, escolhido etc.2O Provérbios 16, 33: A sorte se lança no regaço,
bárbaro, cita, servo ou livre; mas Cristo é tudo em todos. Atos dos mas do
Apóstolos 10, 34: Reconheço por verdade que Deus não jaz Senhor procede toda a sua disposição. E, décima terceira lei, a
acepção de pessoas17. 2 Crônicas 19, 7: Não há no Senhor nosso sucessão de Isaac seria devida a Esaú, sendo ele seu filho
Deus iniqüidade nem aceitação de pessoas1H, nem aceitação de primogênit021 - se ele não tivesse vendido esse seu direito
presentes. Eclesiástico19 35, 12: Pois o Senhor é um juiz que não (Gênesis 25, 33), ou se o seu pai não resolvesse de outro modo.
jaz acepção de pessoas. Romanos 2, 11: Porque, para com Deus,
não há acepção de pessoas.

16. E da escolha de um árbitro

14. E também da undécima lei, que manda ter em comum Escrevendo aos Coríntios sua primeira Epístola (cap. 6), São
aquelas coisas que não podem ser divididas Paulo repreende-os por levarem a juízo pendências que tinham
entre si, perante juízes infiéis, que eram pois seus inimigos: diz
A décima primeira lei, que manda termos em comum aquelas
ainda que é uma falta não preferirem eles sofrer a injustiça e o
coisas que não podem ser divididas, eu não saberia dizer se em
dano, pois indo àqueles tribunais infringem a lei que nos manda
alguma passagem das Escrituras está expressamente formulada;
ajudarmo-nos uns aos outros. Mas, se acontecer que a controvérsia
mas sua prática aparece em toda a parte naqueles textos, quando se
trate de coisas realmente necessárias, então o que deveremos fazer?
menciona o uso em comum de fontes, ou caminhos, ou rios, ou
Nesse caso, ordena o Apóstolo (no versículo 5): Para vos envergo-
coisas sagradas etc.: pois, não fosse assim, os homens nem
nhar o digo: Não há, pois, entre vós sábios, nem mesmo um, que
poderiam viver.
possa julgar entre seus irmãos? Com essas palavras, ele confirma
portanto aquela lei de natureza que chamamos a décima quinta, a
saber, que quando não for possível evitar

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Dó Cidadão
Liberdade

as controvérsias, as partes consintam em designar como árbitro um uso da reta razão -, também é proibida, por isso mesmo,
terceiro; de modo (pela décima sexta lei) que nenhuma das partes nas Sagradas Escrituras. Provérbios 20, 1: O vinho é escarne
possa julgar em causa própria.
cedor, a bebida forte alvoroçadora; e todo aquele que neles
errar nunca será sábio. Provérbios 31, 4-5: Não é dos reis
beber vinho, para que não bebam, e se esqueçam do estatu
17. E também da décima sétima lei, que proíbe os árbitros t022, e pervertam ajuízo de todos os aflitos. E, para sabermos que o
de receberem paga pelas suas sentenças defeito desse vício não consiste, formalmente, na
O juiz ou o árbitro não deve receber pagamento por sua quantidade da bebida, porém no fato de que destrói o juízo
sentença (décima sétima lei), como transparece do Êxodo 23, 8: e a razão, basta ler o versículo seguinte: Dai bebida forte aos
Presente não tomarás: porque o presente cega os que tem vista, e que perecem, e o vinho aos amargosos de espírito: Para que
perverte as palavras dos justos. Eclesiástico 20, 29: Dádivas e bebam, e se esqueçam da sua pobreza, e do seu trabalho não
presentes cegam os olhos dos sábios. Disso se segue que o juiz não se lembrem mais23. Cristo se serviu da mesma razão para
deve estar mais obrigado para com uma parte do que para com a proibir a embriaguez (Lucas 21, 34); Olhai por vós, não acon
outra; o que também vemos confirmado no Deuteronômio 1, 17: teça que os vossos corações se carreguem de glutonaria e de
Não atentareis para embriaguez.
pessoa alguma em juízo, ouvireis assim o pequeno como o grande;
e em todas aquelas passagens, que citamos, contra a acepção de
pessoas. 20. E também quanto a ser eterna, como dissemos, a lei de
natureza
Quanto ao que dissemos no capítulo anterior, sobre ser
18. E também da décima oitava lei, que requer
testemunhas eterna a lei de natureza, também podemos prová-Io por

As Escrituras não se limitam a confirmar que para se julgar do Mateus 5, 18: Porque em verdade vos digo, que, até que o
fato tenha de haver testemunhas (décima oitava lei); elas também céu e a terra passem, nem um jota nem um só til omitirá da
exigem que haja mais do que uma. Deuteronômio 17, 6: Por boca
de duas testemunhas, ou três testemunhas, será morto o que houver lei; e pelo Salmo 119, 160: Cada um dos teus juízos dura
de morrar. O mesmo se repete no Deuteronômio 19, 15. para sempre.
21. E também que as leis de natureza competem à
consciência
Também dissemos que as leis de natureza dizem res
peito acima de tudo à consciência; isto é, que é justo aque
19. E também da vigésima lei, contra a embriaguez
le que se empenha na medida do possível para cumpri-Ias.
A embriaguez, que citamos por último em nossa enu Mas será injusto o homem que regular todas as suas ações
meração das infrações às leis de natureza - porque obsta o segundo a obediência externa, tanto quanto a lei ordena, se

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ele assim agir não por causa da lei, mas devido a algum castigo vós O meu jugo, e aprendei de mim ete. Porque o meu jugo
é suave e o meu fardo é leve2s.
anexado a esta, ou por vanglória. Estes dois pontos acham-se
~
confirmados nas Sagradas Escrituras. O primeiro está em Isaías 55,
7: O ímpio deixe o seu caminho, e o homem maligno os seus I
pensamentos, e se converta ao Senhor; e se compadecerá dele; 23. Finalmente, uma regra para saber imediatamente se o que
se vai praticar está conforme ou não à lei de natureza
como também ao nosso Deus, porque grandioso é em perdoar.
Ezequiel18, 31: Lançai de vós todas as vossas transgressões com Finalmente, a regra para saber qualquer pessoa se o que está
que transgredistes, e fazei-vos um coração novo e um espírito novo; fazendo é contrário ou não à lei - a saber, que não deves fazer a
pois por que razão morrereis, ó casa de Israel? Por estas outrem o que não quiseres que te façamfoi promulgada quase que
passagens, e outras semelhantes, compreendemos de maneira nos mesmos termos por nosso Salvador (Mateus 7, 12): Portanto,
suficiente que Deus não punirá as ações daqueles que tenham o tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também
coração reto. vós.
O segundo ponto podemos provar por Isaías 29, 13-14: O
Senhor disse: Pois que este povo se chega para mim com a sua
boca, e com os seus lábios me honra, porém o seu coração
afugenta para longe de mim, portanto eis que continuarei ete.2\ e 24. A lei de Cristo é a lei da natureza
por Mateus 5, 20: Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e
fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. Nos Assim como a lei de natureza é, toda ela, divina, também a lei
versículos que se seguem, nosso Salvador explica como os de Cristo - que está plenamente explica da nos
mandamentos de Deus são violados, não só por ações, mas também capítulos 5, 6 e 7 do Evangelho segundo São Mateus - é,
pela vontade. Pois os escribas e fariseus na ação externa toda ela, doutrina da natureza (com exceção de um único
observavam a lei da forma mais exata, mas apenas por anseio de mandamento, o que proíbe desposar aquela que foi divorciada por
glória; não fosse esta, eles prontamente infringiriam a lei. Há adultério - que Cristo citou como exemplo para explicar a lei
inúmeras passagens nas Escrituras em que se declara, da forma positiva divina, contra os judeus, que não interpretavam
mais mani-festa, que Deus aceita a vontade como valendo pelo ato, corretamente a lei mosaica). Quero dizer que nos capítulos acima
mencionados está explicada a lei inteira de Cristo, não a sua inteira
e isso tanto nas ações boas como nas más.
doutrina: porque a fé é uma
parte da doutrina cristã que não está incluída na sua lei. Isso
porque as leis são baixadas e outorgadas com respeito a ações que
dependem de nossa vontade, e não relativamente a nossas opiniões
e crenças, que, estando fora de nosso poder, não seguem a
22. E, ainda, que as leis de natureza são fáceis de vontade.
observar
Diz o próprio Cristo que a lei de natureza é fácil de cumprir
(Ma teus 11, 28-30): Vinde a mim ete. Tomai sobre

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CAPÍTULO V

Das Causas e da Origem Primeira do


Governo Civill

1. As leis de natureza não bastam para preservar a paz


É por si só manifesto que as ações dos homens proce
dem de sua vontade, e essa vontade procede da esperança e do
medo, de tal modo que, quando vêem que a violação das leis
provavelmente lhes acarretará um bem maior, ou um mal menor, do
que traria a sua observância, eles facilmente as violam. Portanto, a
esperança que cada homem tem quanto a sua segurança e auto
conservação consiste em que, pela força ou habilidade, ele possa
lograr o seu próximo, seja abertamente, seja por algum estratagema.
Disso podemos inferir que não basta um homem compreender
corretamente as leis naturais para que, só por isso, tenhamos
garantida a sua obediência a elas; e por isso, enquanto não houver
garantia contra a agressão cometida por outros homens, cada qual
conserva seu direito primitivo à autodefesa por todos os meios que
ele puder ou quiser utilizar, isto é, um direito a todas as coisas, ou
direito de guerra. E basta, para que alguém cumpra a lei natural,
que mentalmente esteja disposto a abraçar a paz quando ela se
mostrar viável.

2. As leis de natureza, no estado de natureza, silenciam


É um dito corrente que todas as leis silenciam em tem
po de guerra, e é verdade, não apenas falando das leis civis

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Do Cidadão Domínio

mas também das naturais, desde que as refiramos às ações, e não à nos atacar. Por isso é necessário, a fim de que se possa obter a
mente, dos homens - conforme mostramos no capítulo III, segurança almejada, que o número dos que cooperam em
parágrafo 27. E entendemos que uma tal guerra é de todos contra assistência mútua seja tão grande que o acréscimo de uns poucos
todos, assim como o mero estado de natureza, embora na guerra de do lado do inimigo não venha a constituir tópico suficiente para
nação a nação uma certa reserva deva ser observada. E assim em assegurar-lhe a vitória.
tempos passados havia um modo de viver, como se fosse uma
atividade econõmica, que se chamava lestrikén, viver de rapina, que 4. A concórdia de muitas pessoas não é constante o
nem ia contra a lei de natureza (do jeito que então eram as coisas), suficiente para assegurar uma paz duradoura
nem privava de glória quem o exercesse com valor e sem
crueldade. Tal costume consistia, tirando todo o resto, em poupar a Ademais, por maior que seja o número dos que se reúnem para
vida, e também em deixar o gado que se usava para arar a terra, a autodefesa, se contudo eles não concordarem entre si quanto a
bem como toda ferramenta adequada à lavoura, que tampouco algum meio excelente para promovê-Ia, mas cada um ficar usando
devia ser levada - como se fosse obrigado, quem assim agia, a de seus esforços a seu próprio modo, nada se terá conseguido;
proceder dessa forma pela lei da natureza; só que o fazia por porque, divididos em suas opiniões, cada um deles constituirá um
respeito a sua própria glória, a fim de evitar que, agindo com obstáculo para o outro. Ou, se concordarem entre si a ponto de
excessiva crueldade, se pudesse suspeitar que sentisse med02. conduzirem alguma ação por esperança de vitória, de saque ou
vingança, ainda assim, por diferença entre seus espíritos (wits) e
opiniões, ou por emulação e inveja, pelas quais os homens
naturalmente se batem, eles não demorarão a se dividir e cindir
tanto que nem mais se fornecerão auxílio recíproco nem desejarão
paz, a menos que venham a ser forçados a isso por algum medo
3. Para se ter certeza de viver conforme as leis de natureza, comum. Daí decorre que o consentimento de muitos (que consiste
depende-se da concórdia de muitas pessoas apenas em que, como definimos já no parágrafo anterior, eles
dirigem todas as suas ações para o mesmo fim e para um bem
Por conseguinte, já que o exercício da lei natural é necessário
comum), ou seja, uma associação formada apenas pelo auxílio
para se preservar a paz, e que para o exercício da lei natural a
recíproco, não confere aquela segurança que procuram os homens
segurança é igualmente necessária, deve-se considerar o que é que
que se reúnem e concordam quanto ao exercício das leis de
proporciona uma tal segurança. A esse propósito nada mais se pode
natureza supracitadas. E algo mais deve ser feito para que esses que
imaginar do que cada qual munir-se de precauções tais que tornem
consentiram, pelo bem comum, em ter paz e fornecer auxílio uns
a agressão de um a outro tão perigosa que qualquer deles venha a
aos outros, possam ser contidos pelo medo, a fim de que
preferir conter-se a intrometer-se. Mas em primeiro lugar é evidente
posteriormente não voltem a divergir quando o seu interesse
que o consentimento de dois ou três não pode tornar suficiente uma
particular lhes parecer discrepar do bem comum.
tal segurança; porque bastará somar do outro lado um único, ou
alguns poucos, para se alcançar uma garantia indubitável de vitória,
o que animará o inimigo a

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Do Cidadão
Domínio

5. Por que razão o governo de certas criaturas animais está


homens sempre há muitos que, supondo-se mais sábios que os
suficientemente fundado na mera concórdia, e por
outros, empenham-se em inovar, e diversos inovadores inovam de
que isso não basta para o governo dos homens
distintas maneiras, o que traz a dissensão interna e a guerra civil.
Aristóteles inclui, entre os animais a quem chama políticos, Quarto, essas criaturas brutas, embora possam ter uso da voz o
não apenas o homem mas diversos outros - como a formiga, a bastante para transmitir suas afecções umas às outras, carecem
abelha etc. - que, embora careçam da razão, pela qual poderiam porém daquela arte das palavras que é requisito necessário para
contratar e submeter-se ao governo, não obstante consentem: isto é, todos os movimentos da mente, pela qual o bem é representado a
perseguindo ou fugindo das mesmas coisas, dirigem de tal modo esta como sendo melhor, e o mal pior, do que realmente são. E a
seus atos para um bem comum que sua reunião não está sujeita a língua do homem é trombeta de guerra e sedição; conta-se de
nenhum tipo de sedição. Mas apesar disso tal reunião não constitui Péricles que em suas elegantes orações ele certas vezes atordoou, e
um governo civil, e portanto tais animais não podem ser ribombou, e confundiu até mesmo a inteira Grécia. Quinto, elas não
denominados políticos, porque seu governo consiste apenas no sabem distinguir injúria e dano, de modo que, enquanto tudo lhes
consentimento, ou seja, em muitas vontades concorrendo para o corre bem, não censuram suas semelhantes. Entre os homens,
mesmo objetivo, não sendo - o que é necessário no governo civil- uma porém, os que mais perturbam a república são justamente os que
vontade única. É bem verdade que em tais criaturas, que vivem têm maior lazer e ócio - pois não costumam, eles, competir pelas
apenas pela sensação e o apetite, o consentimento das mentes é tão posições públicas enquanto não tenham vencido a fome e o frio.
durável que não precisa haver nada mais para assegurá-Io, e por Finalmente, o consentimento de tais criaturas brutas é natural, o dos
conseguinte para preservar a paz entre elas, além de sua mera in- homens apenas por pacto, ou seja, artificial. Por isso não é de
clinação natural. estranhar que algo mais seja necessário aos homens, para que
Mas entre os homens a questão é diferente. Porque, primeiro, possam viver em paz. De modo
entre eles há uma disputa por honra e precedência, enquanto os que o consentimento ou o contrato de associação, sem um
poder comum pelo qual os particulares sejam governados por
animais não têm nada disso. Daí que sópara os homens haja ódio e
medo ao castigo, não basta para constituir aquela segurança que é
inveja, de que brotam sedição e guerra, e não para os animais.
requisito para o exercício da justiça natural.
Depois, o apetite natural das abelhas e criaturas semelhantes é
sempre conforme, e elas desejam todas um bem comum que não se
diferencia do bem particular. Já o homem dificilmente considera
boa qualquer coisa cujo gozo não porte alguma proeminência a
avantajá-Ia sobre aquelas coisas que os demais possuem. Terceiro,
as criaturas privadas do uso da razão não vêem defeito, ou pensam 6. Não basta o consentimento, é preciso também a união, para
não vê-Io, na administração de suas repúblicas (commonweals), ao estabelecer a paz entre os homens
passo que numa multidão de
Portanto, se a convergência de muitas vontades rumo ao
mesmo fim não basta para conservar a paz e promover uma defesa
duradoura, é preciso que, naqueles tópicos necessários que dizem
respeito à paz e autodefesa, haja tão

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somente uma vontade de todos os homens. Mas isso não se pode


fazer, a menos que cada um de tal modo submeta sua vontade a 9. O que é a sociedade civil
algum outro (seja este um só ou um conselho) que tudo o que for
A união assim feita diz-se uma cidade, ou uma sociedade civil,
vontade deste, naquelas coisas que são necessárias para a paz
ou ainda uma pessoa civil: pois, quando de todos os homens há uma
comum, seja havido como sendo vontade de todos em geral, e de
só vontade, esta deve ser considerada como uma pessoa, e pela
cada um em particular. E a reunião de muitos homens que
palavra uma deve ser conhecida e distinguir-se de todos os
deliberam sobre o que deve ser feito, ou omitido, é o que eu chamo
particulares, por ter ela seus próprios direitos e propriedades. Por
de conselho.
isso, nenhum cidadão isolado, nem todos eles reunidos (se
excetuarmos aquele cuja vontade aparece pela vontade de todos),
deve ser considerado como sendo a cidade. Uma cidade, portanto,
7. O que é a união assim como a definimos, é uma pessoa cuja vontade, pelo pacto de
muitos homens, há de ser recebida como sendo a vontade de todos
Essa submissão das vontades de todos à de um homem ou eles; de modo que ela possa utilizar todo o poder e as faculdades de
conselho se produz quando cada um deles se obriga, por contrato, cada pessoa particular, para a preservação da paz e a defesa comum.
ante cada um dos demais, a não resistir à vontade do indivíduo (ou
conselho) a quem se submeteu; isto é, a não lhe recusar o uso de sua
riqueza e força contra quaisquer outros (pois supõe-se que ainda
conserve um direito a defender-se contra a violência); e isso se
chama união. E entendemos que a vontade do conselho é a vontade 10. O que é uma pessoa civil
da maior parte dos membros do conselho.
Contudo, embora toda cidade seja uma pessoa civil, nem toda
pessoa civil é uma cidade - pois pode suceder que um grande
número de cidadãos, com permissão dela, se congregue numa
8. Na união, o direito de todos os homens é pessoa, para fazer determinadas coisas. Estas serão assim pessoas
transferido a um só civis, como as companhias de mercadores, e muitas outras
Embora a própria vontade não seja voluntária, mas apenas o confrarias; mas cidades não são, porque seus membros não se
começo das ações voluntárias (pois queremos o agir e não o querer), submeteram à vontade da companhia simplesmente e em todas as
e por isso seja de todas as coisas a que menos pode ser objeto de coisas, porém apenas naquelas coisas determinadas pela cidade, e
deliberação e pacto, contudo aquele que submete sua vontade à em termos tais que cada um deles tem o direito de entrar em juízo
vontade de outrem transfere a este último o direito sobre sua força e contra o próprio corpo da companhia - direito este que o cidadão
suas faculdades - de tal modo que, quando todos os outros tiverem não tem, absolutamente, contra a cidade. Por conseguinte,
feito o mesmo, aquele a quem se submeteram terá tanto poder que, associações desse tipo são pessoas civis subordinadas à cidade3.
pelo terror que este suscita, poderá conformar as vontades dos
particulares à unidade e à concórdia.

96 97
Do Cidadão
Domínio

11. O que é ter o poder supremo, e o que é ser súdito prias vontades, quem será senhor sobre eles, seja este um homem,
seja uma companhia de homens, que em ambos os casos terá o
Em toda cidade4, diz-se que tem o poder supremo, ou o
mando supremo. Mas falaremos, em primeiro lugar, da cidade
comando-em-chefe, ou o domínio, aquele homem ou conselho a política, ou por instituição; e, depois, da cidade natural.
cuja vontade cada particular submeteu a sua (como antes
mostramos). Esse poder e direito de comando consiste em que cada
cidadão transfira toda a sua força e poder àquele homem ou
conselho; e fazer isso - uma vez que ninguém pode transferir seu
poder de forma natural5 - nada mais é que abrir mão de seu direito
de resistência. E diz-se que todo cidadão, assim como toda pessoa
civil subordinada, é súdito daquele que detém o comando supremo.

12. Duas espécies de cidade, natural e por instituição

Pelo que foi dito acima, mostrou-se claramente de que


maneira e por que gradação um grande número de pessoas naturais,
por desejarem a própria conservação e por medo recíproco, se erige
em uma pessoa civil, a quem chamamos de cidade. Ora, quem por
medo se submete a outrem se submete ou àquele a quem teme, ou a
algum outro em cuja proteção tenha confiança. Agem do primeiro
modo os que são vencidos em guerra, para que não os
matem; e do segundo aqueles que não foram vencidos, para que não
o sejam. O primeiro modo recebe sua origem da força natural, e
pode ser chamado a origem natural de uma cidade; o segundo, do
conselho e constituição daqueles que se reúnem, o que é uma
origem por instituição. Disso decorre que aqui tenhamos dois tipos
de cidades, um natural, tal como o poder paterno e despótico, e
outro instituído, que também pode chamar-se político. No primeiro,
o senhor (torci) adquire para si os cidadãos que ele
quiser; no segundo, os cidadãos escolhem, por suas pró

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99
CAPÍTULO VI

Do Direito de Quem Detém o Poder


Supremo na Cidade, Seja um Conselho,
Seja um Único HomemI

1. A uma multidão fora da sociedade civil não se pode atribuir


direito algum, nem qualquer ação a que cada um não tenha
especificamente2 consentido
Devemos começar considerando o que é uma multidã03 que
por sua livre vontade se reúne em uma associação: ela não é um
corpo qualquer, mas se compõe de muitos homens, cada um dos
quais com sua própria vontade e seu juízo peculiar acerca de todas
as coisas que possam ter propostas. E, embora com base em
contratos privados cada indivíduo possa ser seu próprio direito e
propriedade, de modo que um possa dizer isto é meu e outro isso é
dele, não haverá porém nada de que a multidão como um todo
possa dizer justamente, e enquanto pessoa que se distingue de
qualquer indivíduo, isto é meu, e não de outrem. Nem devemos
atribuir nenhuma ação à multidão como sendo sua: se todos ou
vários concordarem em empreender algo, não se tratará de uma
ação única, mas de tantas ações quantos forem estes homens. Pois,
embora numa grande sedição se costume dizer que o povo de tal
cidade tomou em armas isso porém só é verdade para os que
tomaram em armas ou para os que concordam com eles - pois a cidade,
que é
uma pessoa, não pode tomar em armas contra si mesma. Portanto,
tudo o que a multidão faz deve-se entender que é feito por cada um
daqueles de quem ela se compõe; e

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1
Do Cidadão Domínio

quem, pertencendo à multidão, contudo não consentiu nem deu apenas o consentimento deles, mas ainda a submissão de suas
qualquer auxílio ao que ela praticou, deve ser julgado como não vontades naquelas coisas que fossem necessárias para a paz e a
tendo feito nada. Além disso, numa multidão que ainda não tenha defesa; e que a natureza de uma cidade consistia
sido reduzida a uma pessoa única, da maneira que acima nessa união e sujeição; devemos agora elucidar, aqui, que
expusemos, continua valendo aquele mesmo estado de natureza no coisas serão necessárias para a paz e defesa comum, dentre as que
qual todas as coisas pertencem a todos, e não há lugar para o meum poderão ser propostas, discutidas e decretadas numa assembléia de
e o tuum, que se chamam domínio e propriedade - isso porque indivíduos Ccujas vontades estão contidas, todas, na vontade da
ainda não existe a segurança que afirmamos, antes, ser o requisito maioria).
necessário para o cumprimento das leis naturais4. E, antes de tudo o mais, para a paz é preciso que cada um
fique tão protegido da violência dos outros que possa viver em
segurança: isto é, que ele não tenha causa justa para temer aos
outros, enquanto não lhes cometer injúria. Na verdade, é
2. A fundação de uma cidade começa no direito de um grande impossível dar aos homens uma segurança completa contra
número de pessoas que consentem quaisquer danos recíprocos, de modo que não corram o risco de ser
feridos nem mortos injuriosamente; e portanto isto não vem ao
Devemos observar, a seguir, que cada um da multidão - a fim
âmbito de uma deliberação. Mas pode-se providenciar que não haja
de que possa ter origem a cidade - precisa concordar com os demais causa justa para o med06. A segurança é o fim pelo qual nos
em que, nos assuntos que qualquer um propuser à assembléia, ele
submetemos uns aos outros, e por isso, na falta dela, supõe-se que
aceite o que for aprovado pela maior parte como constituindo a
ninguém se tenha submetido a coisa alguma, nem haja renunciado
vontade de todos. Pois, de outro modo, nunca haverá vontade de
a seu direito sobre todas as coisas, antes que se tomem precauções
uma multidão de homens, cujos votos e vontades se diferenciam de
quanto à sua segurança.
maneira tão variada. E, se algum não consentir, apesar disso os de-
mais constituirão a cidade entre si e sem ele. Disso decorre que a
cidade conserva contra quem dissente seu direito primitivoS, isto é,
o direito de guerra que ela tem contra um inimigo.
4. Um poder coercitivo é requisito para dar-nos segurança

Não é suficiente, para alcançar essa segurança, que cada um


dos que agora erigem uma cidade convencione com os demais,
3. Todo homem detém um direito de se proteger a si mesmo em oralmente ou por escrito, não roubar, não matar e observar outras
consonância com seu próprio livre-arbítrio ('free will"), enquanto leis semelhantes; pois a depravação da natureza humana é
não se der consideração suficiente à sua segurança manifesta a todos, e pela experiência se sabe muito bem, bem
demais até, em que pequena medida os homens se atêm a seus
Como dissemos no capítulo anterior, em seu sexto pa
deveres com base na só consciência de suas promessas, isto é,
rágrafo, que para a segurança dos homens se requeria não
naquilo que resta se for removida a punição. Devemos portanto
providenciar nossa seguran

102 103
Do Cidadão
Domínio

ça, não mediante pactos, mas através de castigos; e teremos tomado


providências suficientes quando houver castigos tão jam unidas. E por isso é requisito, para a conservação dos
grandes, previstos para cada injúria que se evidencie que particulares, que haja algum conselho ou homem com
sofrerá maiores males quem a cometer do que quem se abstiver de direito a armar, reunir e unir tantos cidadãos, ante qualquer
praticá-Ia. Pois todos, por necessidade natural, escolhem o que a perigo e em qualquer ocasião, quantos forem necessários para a
eles pareça constituir o mal menor. defesa comum contra o número e força certos do ini
migo - e que tenha, igualmente, o direito de firmar a paz
com eles, sempre que o considerar conveniente. Devemos portanto
entender que os cidadãos individuais transferiram
5. Em que consiste o gládio da justiça plenamente o seu direito de guerra e paz a algum homem
ou conselho, e que este direito - ao qual podemos chamar
Entende-se que alguém recebe o direito de castigar,
o gládio da guerra - pertence ao mesmo homem ou conse
quando todos contratam não socorrer aquele que há de ser lho a quem pertence o gládio da justiça. Pois ninguém tem
punido. A esse direito chamarei de gládio da justiça. E esse tipo de direito a obrigar os cidadãos a tomar em armas, e a custear
contrato os homens observam bastante bem, em sua maioria, até as despesas da guerra, se não tiver o direito de punir quem
que eles próprios ou seus amigos próximos venham a sofrer por sua não lhe obedeça. Ambos os gládios, portanto, tanto este da guerra
causa. como o da justiça, já pela constituição mesma da
cidade pertencem, essencialmente, ao chefe supremo.
6. O gládio da justiça pertence a quem possui o
mando supremo
Portanto, como é necessário, para segurança dos parti 8. Toda a judicatura é também só dele
culares - e, por conseguinte, para a paz comum -, que o direito Mas, como ter direito ao gládio nada mais é do que ter
de usar o gládio do castigo seja transferido a algum homem ou
conselho, necessariamente se entende que este direito a usar da espada a seu próprio critério, segue-se

tenha direito ao poder supremo na cidade. Pois quem tem que compete à mesma pessoa julgar de seu direito: pois, se o
poder de julgar estivesse em alguém, e o de executar em outrem,
o direito de punir à sua discrição tem direito a compelir nada se faria. Assim, em vão julgaria quem não pudesse executar
suas ordens; ou então, se as executasse
todos os homens a fazerem todas as coisas que ele próprio
~
quiser; e não se pode imaginar poder maior que este. pelo poder que pertence a outra pessoa, dir-se-ia que não
7. A ele também pertence o gládio da guerra
é ele próprio quem possui o poder do gládio, mas aquele
Mas em vão cultuam a paz em casa os que não podem
outro, de quem ele é tão-somente um ministro. Por conse-
defender-se contra os estrangeiros; e não têm como se pro guinte, todo julgamento compete, numa cidade, a quem detém os
dois gládios, isto é, a quem possui a autoridade suprema.
teger contra os estrangeiros aqueles cujas forças não este
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Do Cidadão
Domínio

9. Igualmente é dele o poder de legislar quem possui o comando principal quer na guerra, quer na
paz, e que ele os escolha.
Ademais, como impedir as rixas de nascer não é menos útil -
ao contrário, é até mais útil -, para se chegar à paz, do que apaziguá-
Ias uma vez nascidas; e como todas as controvérsias provêm do fato
11. E também o exame das doutrinas
de que as opiniões dos homens diferem quanto ao que é meum e
tuum, justo e injusto, proveitoso e nocivo, bom ou mau, honesto e Também é evidente que todas as ações voluntárias têm origem
desonesto, e outras coisas análogas, que cada qual avalia segundo o na vontade, e dela necessariamente dependem; e que a vontade de
seu próprio julgamento - então, compete ao mesmo poder principal fazer ou deixar de fazer qualquer coisa depende de nossa opinião
estabelecer algumas regras comuns para todos, e declará-Ias de sobre o bem e o mal, e sobre a recompensa ou o castigo que
público, de modo que todo indivíduo possa saber o que pode ser concebemos vir a receber pelo referido ato ou omissão. Assim as
chamado seu ou de outrem, o que justo, o que injusto, honesto, ações de todos os
desonesto, bom, mau, isto é, em resumo, o que deve ser feito e o homens são governadas pelas opiniões de cada um deles. Com base
que deve ser evitado no curso da nossa vida em comum. Estas nisso podemos compreender, por uma inferência evidente e
regras e medidas são usualmente denominadas leis civis, ou leis da necessária, que para o interesse da paz é relevante que não seja
cidade, por serem as ordens de quem possui o poder supremo na divulgada aos cidadãos nenhuma opinião ou doutrina pela qual eles
cidade. E as leis civis assim as definimos: nada mais são do que as possam imaginar que tenham o direito de desobedecer às leis da
ordens de quem tem a autoridade principal na cidade, dirigindo as cidade (isto é, às ordens do homem ou conselho a quem está
ações futuras dos cidadãos. cometido o poder supremo), ou que seja legal eles lhe resistirem, ou
ainda que
será menos castigado o desobediente do que o obediente.
Pois, se um mandar que se faça certa coisa sob pena de morte
natural, e outro a proibir sob a pena de morte eterna, e ambos
10. Compete a ele a nomeação dos magistrados e de outros tiverem direito a dar essas ordens, seguir-se-ánão apenas que os
altos funcionários da cidade cidadãos, embora inocentes, serão todos eles puníveis de direito,
Além disso, é impossível que os negócios da cidade, quer de mas ainda que a própria cida
guerra quer de paz, sejam administrados por um homem ou de estará completamente dissolvida. Pois ninguém pode servir a
conselho, se ele não dispuser de ministros e de magistrados que dois senhores; e aquele a quem acreditamos dever obedecer por
lhes estejam subordinados; e para se alcançar a paz e a defesa medo da condenação da alma não é menos poderoso (e até mais)
comum é preciso que exerçam corretamente os seus ofícios aqueles do que esse a quem obedecemos por medo à morte temporal.
a quem cabe julgar das controvérsias, vigiar o que se faz nos Conclui-se disso que a pessoa, homem ou assembléia (court), a
conselhos dos vizinhos, travar a guerra com prudência e prover com quem a cidade conferiu o poder supremo, tem também o direito de
toda a cautela ao benefício da cidade. Por isso, é conforme à razão julgar que opi
que estes magistrados e funcionários sejam subordinados a niões? e doutrinas são inimigas da paz, e o de proibir que sejam
ensinadas.

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Do Cidadão
Domínio

12. O que quer que ele faça não é passível de punição dade não querem tanto suprimi-Ia, e sim transferi-Ia a outras
pessoas - pois, se abolissem esse poder, eles suprimiriam ao mesmo
Finalmente, considerando-se que cada cidadão submeteu sua tempo a sociedade civil, e fariam retornar a confusão de todas as
vontade a quem possui o mando supremo na cidade, não podendo coisas.
então empregar sua força contra ele, segue-se, evidentemente, que O direito absolutolO do principal governante exige tanta
tudo o que este cometer está a salvo de punição. Pois, assim como obediência quanto é preciso para governar a cidade, isto é, tanta que
quem não tem força suficiente não pode puni-Io naturalmente, faça o poder supremo não ter sido concedido em vão. E chamarei
quem não tem direito suficiente não pode puni-Io legitimamente. esse tipo de obediência - embora às vezes, por algumas razões que
veremos, seja justo recusá-Ia - de "obediência simples", porque não
\,
se pode dar obediência maior que esta. A obrigação de prestar essa
13. Que o poder que seus cidadãos lhe concederam é obediência não deriva imediatamente daquele contrato mediante o
absoluto, e qual medida de obediência eles lhe devem qual transferimos todo o nosso direito à cidade, mas mediatamente",
porque sem tal obediência se frustraria o direito da cidade, e
É muito evidente, por tudo o que já dissemos, que em toda portanto não se teria constituído a cidade.
cidade perfeitaS Cisto é, naquela em que nenhum cidadão tem o Pois uma coisa é dizer: Dou-te o direito de ordenar o que
direito de utilizar suas faculdades, a seu arbítrio, para sua própria queiras; outra bem diferente: Farei o que quer que ordenes. Porque
conservação - ou seja, onde está abolido o direito ao gládio a ordem pode ser tal que eu prefira morrer a cumpri-Ia. Assim, da
privado) reside um poder supremo em alguém, o maior que os mesma forma que nenhum homem pode estar obrigado a consentir
homens tenham direito a conferir: tão grande que nenhum mortal em ser morto, menos ainda estará preso àquilo que para ele seja pior
pode ter sobre si mesmo um maior. Esse poder é o que chamamos que a morte. Portanto, se me mandam matar-me, não estou obrigado
de absolut09, o maior que homens possam transferir a um homem. a fazê10; pois, embora me recuse a fazê-Io, nem por isso se frustra
Pois se alguém submeteu sua vontade à vontade da cidade, de modo o direito de domínio, já que outros podem ser encontrados que,
que esta possa, com todo o direito e sem risco de punição, fazer recebendo ordem de matar-me, não se recusem a cumpri-Ia; e além
qualquer coisa - baixar leis, julgar controvérsias, fixar penalidades, disso não estou me recusando a fazer aquilo que contratei fazer. Da
utilizar a seu bel-prazer a força e a riqueza dos homens -, com isso mesma forma, se o governante supremo mandar que alguém o
conferiu a esta o maior domínio que se possa conceder a uma mate12, este não estáobrigado a fazê-Io, porque é inconcebível que
pessoa. O mesmo pode se confirmar pela experiência em todas as tenha firmado uma convenção nesse sentido. Nem se mandar que o
cidades que existem ou que jamais existiram; pois, embora às vezes filho mate o pai ou a mãe, pouco importando que seja inocente, ou
se possa ter dúvida sobre que homem ou conselho tem o mando culpado e condenado pela lei, porque haverá ou
supremo, contudo este poder sempre existe e é sempre exercido, tros que aceitarão cumprir tal ordem, e um filho preferirámorrer a
exceto em tempos de sedição e guerra civil, quando o comando que viver infame e odiado de todos. Há muitos outros
era único se divide em dois. Mas os sediciosos que contestam a
autoridade absoluta na ver

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Do Cidadão Domínio

casos nos quais para uns é vergonhoso obedecer à ordem, mas não assembléia, ou a daquele a quem se concedeu a autoridade
para outros, e por isso é correto que a obediência seja prestada por suprema, é a vontade da cidade: de modo que ela contém as
estes últimos, e recusada por aqueles; e isso sem prejudicar 'aquele vontades de todos os cidadãos privados. Portanto, ela não está presa
direito absoluto que se conferiu ao governante supremo. Pois em às leis civis (o que seria estar presa a si mesma) nem a nenhum de
nenhum caso se nega a ele o direito de matar aqueles que se seus cidadãos.
recusarem a obedecer-Ihe13. Mas note-se que quem assim mata
seres humanos - embora a tanto tenha um direito, que lhe foi
concedido por quem antes o detinha -, caso se sirva de tal direito de 15. Ninguém pode alegar ser proprietário de algo contra a
forma diferente daquela exigida pela reta razão, peca contra as leis vontade do governante supremo
de natureza, isto é, contra Deus.
Como antes de se constituir a cidade todas as coisas
pertenciam a todos - conforme mostramos anteriormente -, e tudo o
que alguém chamasse de seu algum outro teria idêntico direito a
igualmente dizer seu (pois, onde todas as coisas são em comum,
14. As leis da cidade não obrigam o governante nada pode ser propriedade de um), segue-se que a propriedade tem
sua origem14 lá onde as cidades também têm a sua, e a propriedade
E ninguém pode dar algo a si mesmo; pois tudo o que um de alguém nada mais é do que aquilo que ele pode conservar graças
homem possa dar a si proprio supõe-se que já seja seu. Da mesma às leis e ao poder da cidade como um todo, isto é, daquele a quem
forma ninguém pode firmar uma obrigação para consigo mesmo; está conferido o mando supremo sobre ela. Disso inferimos que à
pois, como quem se obriga e quem se beneficia da obrigação serão propriedade de cada cidadão privado nenhum de seus concidadãos
a mesma pessoa, e como o beneficiário tem o poder de desobrigar tem o menor direito, porque eles estão obrigados pelas mesmas leis;
quem com ele se obrigou, seria completamente inútil alguém estar mas essa propriedade não exclui o direito do governante supremo -
obrigado para consigo, porque ele próprio se pode dispensar de tal cujas ordens são leis, cuja vontade contém a vontade de cada qual, e
obrigação tão logo o queira; e quem pode desobrigar-se é porque já que foi constituído juiz supremo por cada pessoa
esta livre no momento presente. singular15.
Disso decorre que a cidade não está limitada Ctied) pelas leis Contudo, embora haja muitas coisas que a cidade permite a
civis; pois estas são as leis da cidade, e se estivesse presa a elas na seus cidadãos, e portanto eles possam eventualmente ir a juízo
verdade estaria presa a si mesma. Nem pode a cidade estar obrigada contra seu governante, uma tal ação não corre porém pelo direito
para com seu cidadão porque, se ele assim o quiser, pode liberá-Ia civil, mas pela eqüidade natural. E nesse caso não se discute o
de tal obrigação; ora, sucede que ele o quer todas as vezes que ela direito16 do governante supremo, mas sua vontade, e por isso é
mesma quiser (pois a vontade de cada cidadão, em todas as coisas, que ele poderá ser juiz de si mesmo, como seja (uma vez bem
está sempre englobada na vontade da cidade); por conseguinte, a entendida a eqüidade da causa) não pudesse pronunciar um
cidade estará livre assim que o quiser, portanto está já e no julgamento injusto.
momento presente livre. E a vontade de uma

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Do Cidadão Domínio

16. Somente pelas leis da cidade é que conhecemos o que são o tos não tem o direito de contratar o que quer que seja, e portanto se
roubo, o homicídio, o adultério e a injúria firmar um contrato, este não é válido, e por conseguinte não resulta
O roubo, o assassínio e todas as injúrias são proibidos em casamento.
pela lei de natureza; mas o que há de se chamar roubo, o que E não confere força a um contrato ilegal o ter ele sido firmado
mediante um juramento ou com a forma de sacramentol8; pois
assassínio, adultério ou injúria a um cidadão não se determinará
estes nada acrescentam à força de um contrato, como já foi dito
pela lei natural, porém pela civil. Pois roubar não é tirar de outra
acima, no capítulo II, parágrafo 22. Portanto, o que é o roubo, o
pessoa qualquer coisa que ela possui, mas apenas o tirar-lhe os
assassínio, o adultério, e de modo geral a injúria, deve ser dito pelas
bens; ora, o que é nosso e o que é dele compete à lei civil dizer. Da
leis civis, isto é, pelas ordens daquele que possui a autoridade
mesma forma, o assassinato não é qualquer homicídio, mas apenas
suprema.
aquele que a lei civil proíbe; nem toda união carnal com uma
mulher constitui adultério, apenas a que está proibida na lei civil.
Finalmente, toda quebra de promessa é injúria, se a promessa for
conforme à lei; mas, quando não há direito de firmar um pacto, não 17. A opinião dos que desejariam constituir uma cidade em que
pode haver transferência de tal direito, e portanto nenhuma injúria ninguém tivesse o poder supremo
pode se seguir, conforme dissemos no capítulo II, parágrafo 17. E Esse mesmo poder supremo e absoluto parece tão duro à
quanto ao que podemos ou não contratar, é assunto que depende maior parte dos homens que eles sentem ódio ao seu mero nome - o
inteiramente das leis civis. que sucede, acima de tudo, por lhes faltar o conhecimento do que
Assim, a cidade da Lacedemônia tinha todo o direito de sejam a natureza humana e as leis civisl9, e também por falha
decretar que os rapazes que conseguissem tirar determinados bens daqueles que, investidos com tão grande autoridade, abusam de seu
dos outros sem serem apanhados em flagrante deveriam ficar poder para sua própria concupiscência (lust)2°. Por isso, a fim de
impunes; pois fazer um tal decreto consistia simplesmente em evitarem essa espécie de autoridade suprema, alguns deles entende-
legislar que o que alguém adquirisse dessa forma seria sua rão que uma cidade está bem constituída se os cidadãos contratantes
propriedade; seria dele, e de ninguém mais. Também é legalmente concordarem no tocante a certas cláusulas por eles propostas, e
que em qualquer parte se mata a um homem em guerra ou por agitadas e aprovadas naquela assembléia, e ordenarem o seu
legítima defesa. Da mesma forma a população que numa cidade é cumprimento, e prescreverem penalidades para quem as infringir.
matrimônio será considerada, em outra, como adultério. E ainda Para esse propósito, e também para se repelir qualquer inimigo
dessa forma os contratos que no caso de um cidadão resultam em estrangeiro, eles concedem uma certa renda limitada, estipulando
matrimônio não têm o mesmo efeito para outro homem, ainda que que, se ela não for suficiente, poderão convocar uma nova reunião
da mesma cidade; porque aquele que é proibido pela cidade Cisto é, dos estados21.
por aquele homem ou assembléia que nela detém o poder supremo) Mas quem não vê que, numa cidade assim constituída, o poder
de firmar quaisquer contra absoluto reside na assembléia que prescreveu tais coisas? Portanto,
se a assembléia continuar reunida, ou se

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~

Domínio
Do Cidadão

Quanto às marcas (notes) do poder supremo, elas são as


de tempos em tempos tiver uma certa data e local assinados para se
seguintes: fazer e revogar leis, determinar a guerra e a paz,
reunir, seu poder será perpétuo. Mas, se ela se dissolver por
conhecer e julgar todas as controvérsias, já pessoalmente, já por
completo, ou bem a cidade com ela se dissolve, e assim tudo
juízes por ele designados; nomear todos os magistrados,
retorna ao estado de guerra, ou então deixa fixado em mãos de
ministros e conselheiros. Finalmente, se houver alguém que
alguém um poder para castigar aqueles que vierem a transgredir as
tenha direito a praticar alguma ação que não seja lícita a nenhum
leis, sejam eles quem ou quantos forem - o que não pode em
outro cidadão ou cidadãos, é ele quem possui o poder supremo.
absoluto suceder se não houver um poder absoluto. Pois quem tiver
Pois só a cidade pode praticar aquelas coisas que nenhum cidadão,
o direito a esse poder, tendo assim condições de castigar os cida-
ou grupo de cidadãos, tem direito a cometer; por conseguinte
dãos que quiser a fim de refreá-Ios, dispõe de um poder que é o
quem faz tais coisas se serve do direito da cidade, que é o poder
maior que possa ser conferido por qualquer grupo de cidadãos.
supremo.

19. Se compararmos uma cidade a um homem, quem tem o poder


supremo estará para a cidade como a alma humana está para o
18. As marcas da autoridade suprema homem
É portanto manifesto que em toda cidade há algum homem, ou Os que comparam uma cidade e seus cidadãos a um homem e
conselho, ou corte22, que terá direito a um poder tão grande sobre seus membros dizem quase todos que na cidade quem possui o
cada cidadão individual quanto cada homem tem sobre si mesmo se poder supremo mantém com o todo dela a mesma relação que a
formos considerá-l o fora do estado civil: isto é, um poder supremo cabeça tem com o homem enquanto um todo. Mas, do que antes
e absoluto, limitado tão-somente pelo vigor e forças da própria dissemos, transparece que quem é dotado de um tal poder (quer se
cidade, e por nada mais no mundo. Isso porque, se fosse limitado o trate de um homem só ou de um conselho) mantém com a cidade a
seu poder, tal limitação necessariamente haveria de proceder de relação não da cabeça, mas da alma para com o corpo. Pois épela
algum poder maior. Pois quem prescreve limites deve ter um poder alma que um homem tem vontade, isto é, pode tanto querer quanto
superior àquele de quem por eles está confinado. Já o poder que não querer; e da mesma forma é graças a quem possui o poder
confina ou é um poder ilimitado, ou sofre também as restrições de supremo, e a ninguém mais, que a cidade tem uma vontade, e que
outro poder maior que ele próprio; e assim terminaremos chegando tanto pode querer quanto não querer. Assim, o que é mais adequado
a um poder que não tenha outro limite, e seja o termi comparar à cabeça será uma cúria de conselheiros, ou aquele
nus ultimus das forças de todos os cidadãos em conjunto. E este é conselheiro de cujo aviso o governante supremo mais se serve nos
chamado de comando supremo: se for cometido a uma assembléia, tópicos de maior importância (se é que ele se serve de algum
esta é chamada de assembléia suprema, se a um homem, diz-se ser conselheiro para tal): pois o ofício da cabeça consiste em
ele o supremo senhor da cidade. aconselhar, assim como o da alma em mandar.

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Do Cidadão Domínio

20. O poder supremo não pode ser legalmente ("by right") consentimento de todos, nem será nos tumultos que isso se tornará
dissolvido pela mera vontade ("consents") dos que inicialmente verdade; pois tal procedimento deriva da instituição civil, e somente
contrataram a sua constituição então se torna verdade: quando aquele homem ou conselho que tem
Talvez alguém possa inferir, do raciocínio que exporei a o poder supremo, reunindo seus súditos, devido a serem estes em
seguir, que, se assim consentirem todos os súditos em assembléia, a grande número autoriza os que eles venham a eleger a falarem em
autoridade suprema possa ser retirada de quem a possui. O poder nome de seus eleitores, e autoriza a se considerar a maior parte das
supremo é constituído em virtude dos pactos que reciprocamente vozes, nas questões que ele lhes permitir que discutam, como tendo
cada cidadão ou súdito faz, enquanto indivíduo, com cada outro; o mesmo efeito que se fosse o tod023. Ora, não podemos imaginar
ora, cada contrato, porque recebe sua força dos contratantes, pelo. que o chefe jamais venha a reunir os seus súditos com a intenção de
seu consentimento também pode perdê-Ia e ser rompido. que estes possam contestar seu direito, a não ser que, cansado do
Mas, ainda que essa dedução fosse verdadeira, não vejo que fardo de seu cargo, ele declare em termos bem claros que renuncia a
perigos os soberanos possam legitimamente (by right) temer. Pois, seu governo e o abandona. Contudo, com024 a maior parte dos
como se supõe que cada um se obrigou para com cada um dos homens considera que o consentimento da cidade inteira reside não
outros, se qualquer um deles se recusar a obedecer, apesar disso ele só no consenso da maioria dos cidadãos, mas até mesmo no de uns
estará obrigado a tudo o que os demais concordarem em fazer. E da pouquíssimos com quem concordam, pode muito bem lhes parecer
mesma forma ninguém pode, sem me fazer injúria, praticar aquilo suficiente, para revogar legitimamente a autoridade suprema, que
que em contrato firmado comigo ele se comprometeu a não fazer. isso se decida em alguma grande assembléia de cidadãos pelo voto
Ora, não se deve imaginar que venha a acontecer que todos os da maioria. Mas, embora um governo se constitua pelos contratos
súditos em conjunto, sem a exceção de nenhum, um dia se de particulares com particulares, seu direito não depende porém
combinem contra o poder supremo; de modo que não devem os apenas de tal obrigação; existe ainda um outro vínculo a uni-l os a
soberanos recear que por algum direito venham a ser despojados de seu governante. Pois cada cidadão, ao pactuar com seu concidadão,
sua autoridade. assim lhe diz: Transfiro meu direito àquele, com a condiçào de que
Se, apesar disso, fosse concedido que o direito dos soberanos também lhe transfiras o teu; é por esse meio que o direito que cada
assenta apenas no contrato que cada homem firmou com seu homem antes tinha, a utilizar suas faculdades para sua própria
concidadão, poderia muito facilmente suceder que eles fossem vantagem, agora é completamente transferido a determinado
roubados de seu domínio sob uma pretensão de direito; pois a maior homem ou conselho, para o benefício comum. De modo que, pelos
parte pensa que, sendo convocados os homens por ordem da cidade, contratos recíprocos que cada qual firmou com cada qual, a doação
ou agrupando-se sediciosamente, os consentimentos de todos de direito que todo homem se obriga a ratificar em favor daquele
estarão contidos nos votos da parte mais numerosa; mas esse ra- que manda se sustenta em uma dupla obrigação dos cidadãos: pri
ciocínio é falso. Pois não é uma coisa natural que o consentimento
da maior parte seja acolhido como sendo o

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r
Do Cidadão

CAPÍTULO VII
meira, a que cada um deve a seus concidadãos; segunda, a que eles
devem a seu príncipe. Por isso os súditos, em qualquer número que
sejam, não têm direito algum a despojar de sua autoridade o
Dos Três Tipos de Governo: Democracia,
governante supremo, sem o seu consentimento.
Aristocracia e Monarquia

1. Há três formas de governo apenas: democracia,


aristocracia e monarquia

Já falamos de uma cidade por instituição enquanto gênero;


agora diremos algo sobre as espécies em que ela se divide. E as
cidades se diferenciam segundo a diferença das pessoas a quem é
confiado o poder supremo. Esse poder é cometido quer a um
homem, quer a um conselho ou a alguma corte composta de muitos
homens. Além disso, este conselho formado de muitos homens
pode consistir ou em todos os cidadãos (na medida em que cada um
destes tenha direito a votar, e possua um interesse na ordenação dos
negócios públicos, se assim o desejarY ou em apenas uma parte
destes.
Daqui surgem três espécies de governo: um, quando o poder
reside num conselho, no qual todo cidadão tem direito a votar, é
chamado democracia. Outro, quando o poder cabe a um conselho,
no qual não todos, mas apenas uma parte, tem direito ao sufrágio,
chamamos de aristocracia. O terceiro é quando a autoridade
suprema repousa num só; e tem o nome de monarquia. No
primeiro, quem governa é chamado demos, o povo; no segundo, os
nobres; no terceiro, o monarca.

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-..".-

Do Cidadão
Domínio

2. A oligarquia não é uma forma de governo distinta da


3. A tirania não é uma forma de governo que se distinga
aristocracia, e a anarquia não é forma alguma de governo
da monarquia
Embora alguns teóricos antigos da política tenham in-
Mas, devido a suas paixões, será dificílimo persuadir os
troduzido três outros tipos de governo em oposição a estes -
homens de que um reino e uma tirania não são distintas espécies de
opondo, assim, a anarquia ou a confusão à democracia; a
governo; até quem prefere ter a cidade sujeita a um só homem do
oligarquia, ou seja, o governo de uns poucos, à aristocracia; e a
que a muitos não acreditará que ela seja bem governada se não for
tirania à monarquia -, não se trata porém de três formas distintas de
pelo seu critério.
governo, mas de três nomes dados a este por aqueles que estão
Contudo, é pela razão, e não pela paixão, que devemos
descontentes com a forma atual de governo, ou com quem exerce o
descobrir que diferença há entre um rei e um tirano. Primeiro, a
poder. Isso porque os homens, ao atribuírem nomes, usualmente
diferença entre eles não está em que um tirano tenha poder
não significam apenas as coisas em si mesmas, mas também suas
superior, porque não pode haver poder superior ao do supremo
próprias afeições, tal como o amor, o ódio, a ira e ainda outras
governante; nem no fato de que um tenha o poder limitado, e o
mais. Disso decorre que aquilo que um chama democracia, outro
outro ilimitado: pois quem tem seu poder limitado não é rei, mas
diz ser anarquia; o que um considera como aristocracia, outro
súdito daquele cujo poder limita o seu. Finalmente, seus poderes
avalia ser oligarquia; e aquele a quem um chama de rei, outro
tampouco diferem na maneira de aquisição; pois, se num governo
nomeia como tirano.
democrático ou aristocrático algum cidadão adquirir pela força o
De modo que, como vemos, esses nomes não assinalam
poder supremo, ele se tornará um monarca legítimo caso venha a
distintas espécies de governo, mas sim as distintas opiniões dos
ganhar o consentimento de todos os cidadãos -, caso contrário, será
súditos em relação àquele que tem o poder su
um inimigo, e não um tirano.
premo. Pois, primeiro, quem não vê que a anarquia se opõe
A única diferença entre eles reside, portanto, no exercício de
igualmente a todas as formas acima nomeadas? Pois tal palavra
seu poder (command), dizendo-se que é rei aquele que governa
significa que não há governo algum, isto é, nem sequer há Estado.
bem, e tirano, aquele que não o faz. Assim chegamos ao resultado
E como pode ser que o "não-governo" esteja entre as espécies de
de que, num governo legitimamente constituído, se parecer aos
governo? Além disso, que diferença há entre uma oligarquia, que
súditos que o príncipe governa bem e de modo a agradá-l os , eles
significa o governo de uns poucos ou de uns grandes, e uma
lhe darão o nome de rei; e, se assim não lhes parecer, chamá-Io-ão
aristocracia, que é o governo dos principais ou dos primeiros, a não
de tirano. Vemos assim que reino e tirania não são formas distintas
ser o fato de que os homens se diferenciam tanto entre si que a
de governo, mas que ao mesmo monarca é conferido o nome de rei
mesma coisa não parece boa a todos eles? E disso decorre que
em sinal de honra e reverência, e o de tirano para fazer-lhe
aquelas pessoas que por alguns são vistas como sendo as melhores,
contumélia e censura. Além disso, o que com tanta freqüência se
por outros são avaliadas como sendo as piores do gênero humano.
encontra nos livros escritos contra os tiranos teve origem nos
autores gregos e romanos, cujo governo era em parte democrático e
em parte aristocrático,
~

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Do Cidadão
Domínio

de modo que eles não odiavam apenas aos tiranos, mas também aos
5. A democracia se dissolve, se não forem previamente fixados
reis.
locais e datas para reunir-se a assembléia
Vejamos agora um pouco, na constituição de cada forma de
4. Não pode haver uma forma mista de governo ("a governo, como procedem os constituintes. Aqueles que se
mixed state''), composta dessas várias espécies reuniram com a intenção de fundar uma cidade formavam, quase
no próprio ato de se reunirem, uma democracia: pois, no fato de se
Há aqueles que, embora concordem que a cidade necessita de reunirem voluntariamente, supõe-se que se obrigassem a observar
um poder supremo, receiam, caso ele esteja concentrado numa única
aquilo que fosse determinado pela sua maior parte - o que,
pessoa - pouco importando que se trate de um homem só ou de um
enquanto durar sua assembléia, ou sempre que esta suspender sua
conselho -, que como conseqüência todos os cidadãos se tornem
reunião marcando data e local para dar-lhe continuidade, claramen-
escravos (assim dizem eles). Para evitarem essa condição, imaginam
te constitui uma democracia. Isso porque tal assembléia, cuja
então que possa haver uma certa forma de governo composta
vontade e a vontade de todos os cidadãos, possui a autoridade
daquelas três espécies de que antes falamos, mas diferente de cada
suprema; e, como nessa assembléia supõe-se que cada um tenha
uma delas em particular: forma esta a que chamam de monarquia
direito a votar, segue-se que ela é uma democracia, de acordo com
mista, ou aristocracia mista, ou ainda democracia mista, conforme
a definição que demos no primeiro parágrafo deste capítulo.
qual destas três for mais eminente do que as outras. Por exemplo, se
Contudo, se eles se separarem, e puserem fim à assembléia, e
a nomeação dos magistrados e a decisão da guerra e da paz
pertencerem ao rei, a judicatura aos nobres e a decretação de não indicarem lugar ou data onde e quando venham novamente a
impostos ao povo, e o poder de fazer leis for conjunto a todos eles, se reunir, a coisa pública retoma à anarquia e à mesma condição
esse tipo em que se encontrava antes de
de Estado eles chamariam certamente de monarquia mista2, Mas, sua reunião, isto é, ao estado em que todos guerreavam contra
ainda que fosse possível haver um tal tipo de Estado, ele não traria todos. O povo, portanto, só conserva o poder supremo enquanto
vantagem alguma à liberdade do súdito. Com efeito, enquanto o rei, houver um dia e lugar certos, publicamente decididos e
os nobres e o povo concordarem3, a sujeição de cada cidadão conhecidos, ao qual a vontade de qualquer um possa recorrer. Pois,
individualmente considerado é a maior que possa haver; ao passo se tal não for sabido e determinado, ou bem eles se reunirão em
que, se eles discordarem, o Estado retoma à guerra civil e ao direito distintos lugares e datas, isto é, dividindo-se em facções, ou bem
do gládio privado, o que seguramente é muito pior do que qualquer não se reunirão de forma alguma; e então não há mais demos, o
tipo de sujeição. Mas já foi suficientemente demonstrado no povo, mas uma multidão confusa, a quem não podemos atribuir
capítulo anterior, parágrafos 6 a 12, que não pode haver uma tal nenhuma ação ou direito. Duas coisas portanto constituem uma
espécie de govern04. democracia, das quais uma - que é a convocação perpétua de as
sembléias - forma o demos ou povo, enquanto a outra
que é maiorias de votos - forma tõ krátos, ou o poder.

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Do Cidadão Domínio

6. Na democracia os intervalos entre as datas de reunião devem Em segundo lugar, quanto ao fato de que os indivíduos
ser curtos, ou então se deve confiar a alguém a administração do contratam entre si, podemos deduzi-Io do seguinte: teria sido inútil
governo6 durante tais recessos constituir a cidade, se os cidadãos não se obrigassem a fazer ou a
Além disso, para que o povo mantenha sua supremacia, não omitir aquilo que a cidade lhes mandasse fazer ou omitir. E, dado
bastará ter conhecidos alguns locais e datas de reunião: a menos que pactos dessa espécie devem ser considerados necessários para a
que o intervalo separando duas sessôes seja tão curto que entre elas constituição de uma cidade, mas não podem (como já mostramos)
nada possa acontecer, pela falta do poder, que ponha a cidade em ser firmados entre o súdito e o povo, segue-se que eles têm de ser
perigo - ou, pelo menos, que o exercício da autoridade suprema seja feitos entre cidadãos individuais, para que cada qual contrate
confiado, nesse recesso, a um homem ou conselho. Pois, se não se submeter sua vontade à vontade da maioria, sob a condição de que
tomar uma dessas providências, não haverá aquela prudente atenção os outros ajam também da mesma maneira. Como se cada um assim
e cautela que são necessárias para a defesa e a paz dos indivíduos, e dissesse: Desisto de meu
portanto não será merecido o nome de cidade, porque, por lhe faltar direito, em favor do povd, para o vosso bem, sob a condição de que
segurança, cada indivíduo recuperará seu direito de defender-se a também renuncieis a vosso direito, para meu berrt .
seu bel-prazer.

7. Na democracia, indivíduos contratam com indivíduos que todos 8. Através de que atos se constitui a aristocracia
obedeçam ao povo; e o povo não tem obrigação para com
ninguém A aristocracia, ou seja, o governo em que a autoridade
suprema está conferida aos nobres, nasce de uma democracia que
A democracia não é constituída pelo contrato de pessoas renuncie a seu direito em favor deles. Devemos entender que nesse
privadas com o povo, mas por pactos recíprocos de indivíduos entre
regime alguns homens, que se distinguem dos outros pela
si. Ora, disso decorre, em primeiro lugar, que as pessoas que
eminência de título, do sangue ou por qualquer outra característica,
contratam precisam existir já antes que firmem o contrato. Antes de
são propostos ao povo, e este os elege por maioria de votos e, uma
se constituir o governo, o povo não existia enquanto pessoa,
vez eleitos, todo o direito do povo ou da cidade lhes é transferido.
havendo apenas uma multidão de pessoas individuais; de modo que
Assim, tudo o que o povo anteriormente podia fazer, o mesmo esse
naquele tempo nenhum contrato se podia firmar entre o povo e o
conselho de nobres eleitos agora tem direito a praticar. Isto
súdito. Por outro lado, depois de constituído tal governo, será inútil
consumado, é claro que o povo, considerado enquanto uma pessoa,
o súdito firmar qualquer contrato com o povo: porque este último já
não mais existe, porque já transferiu sua autoridade suprema.
contém, em sua vontade, a vontade daquele súdito, ante o qual,
nesse caso, ele se estaria obrigando; e portanto o povo pode a seu
próprio critério se desobrigar, e se pode fazê-Io já está, no momento
presente, livre.

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9. Na aristocracia os nobres não firmam pacto algum, nem se 11. Através de que atos se constitui a monarquia
obrigam para com nenhum cidadão nem para
com o povo inteiro Tal como a aristocracia, também a monarquia se deriva do
poder do povo, que transfere o seu direito - isto é, sua autoridade -
Tal como o povo na democracia, o conselho de nobres na
a um homem. Aqui também devemos entender que se propõe
aristocracia também está livre de todo tipo de obrigação; pois, elevar acima de todos os demais um homem, pelo nome ou por
considerando que os súditos não contrataram com o povo, mas se qualquer outro sinal que o torne notável, e que por maioria
obrigaram, por pactos recíprocos entre si, a seguir tudo o que o (plurality) de votos todo o
povo fizesse, assim também se obrigaram a aceitar aquele ato do direito que o povo possuía lhe é transferido, de modo que
povo pelo qual este renunciou a seu direito de governo em favor toda e qualquer coisa que o povo pudesse praticar antes de elegê-lo
dos nobres. E esse senado, embora eleito pelo povo, não pode estar agora, uma vez eleito, ele pode fazer. Isso consumado, o povo
obrigado a coisa alguma. Pois o povo se dissolve tão logo o elege, deixa de constituir uma pessoa, tornando-se uma rude multidão,
conforme mostramos acima, e a autoridade que ele detinha en- que antes só era pessoa em virtude do poder supremo, o qual ele
quanto pessoa se desfaz por completo. Por conseguinte, a obrigação transferiu para aquele indivíduo.
que se devia à pessoa do povo também se dissolve e perece.

12. Nenhum pacto obriga a monarquia em relação a ninguém


pela autoridade que ela recebeu

10. É preciso que os nobres tenham fixado previamente as datas E portanto o monarca tampouco se obriga para com ninguém
e locais de suas reuniões em virtude do poder que recebe, pois o recebe do povo; e, como
mostramos anteriormente, o povo, assim
Valem para a aristocracia as seguintes observações, que se que lhe confere o poder, deixa de constituir uma pessoa
aplicavam já à democracia. Primeiro, que se não forem previamente e, dissolvendo-se a pessoa, dissolve-se também toda obrigação que
determinados os lugares e datas para a reunião do senado de nobres, havia para com ela. Portanto, para obrigar os súditos a obedecer ao
este deixa de constituir uma assembléia, ou pessoa, para nada mais monarca, bastam aqueles pactos pelos quais eles se obrigaram
ser que uma mJlltidão informe, sem poder supremo. Segundo, que, reciprocamente a observar tudo o que o povo lhes ordenasse, o que
sem prejuízo ao poder supremo, não pode haver intervalos longos inclui obedecer ao monarca, se o poder deste for constituído pelo
entre as datas de suas reuniões, a não ser que a administração seja povo.
confiada a algum homem. As razões para estas considerações são as
mesmas que enunciamos acima, no parágrafo 5.
13. A monarquia é sempre o governo mais prontamente capacitado
a exercer todos aqueles atos que são requisito para o bom
governo9
Mas onde a monarquia mais se distingue da aristocra
cia e da democracia é no fato de que nestas duas últimas

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Do Cidadão
Domínio

têm de estar marcados lugares e datas para a deliberação e consulta ficial; e, se não fosse assim, acabariam sendo culpados pelo decreto
dos negócios, isto é, para assegurar seu exercício efetivo em todos
até aqueles que o detestaram. Já numa monarquia, se o príncipe
os lugares e datas. Pois tanto o povo quanto os nobres, não
baixar algum decreto contra as leis de natureza, pecará ele mesmo,
constituindo pessoas naturais, necessariamente prccisam reunir-se.
porque nele a vontade civil e a natural são uma só.
O monarca, que por natureza éuno, sempre está atualmente
capacitado a executar sua autoridade.

15. Um monarca escolhido sem limitação de tempo tem o poder


de escolher seu sucessor
14. Que gênero de pecado se comete, e quem é culpado por ele,
quando a cidade não cumpre seu ofícioJO ante os cidadãos, ou os O povo que agora vai votar a instauração da monarquia pode
cidadãos ante a cidade conferir ao príncipe simplesmente a supremacia, sem limitação de
tempo, ou então por um prazo e tempo determinados.
Já mostramos acima (nos parágrafos 7, 9 e 12) que nenhum
Se a conceder da primeira forma, devemos entender que quem
pacto obriga quem recebeu o poder supremo em relação a ninguém.
a recebe detém o mesmo poder que aqueles que o conferiram. Por
Disso se segue, necessariamente, que ele não pode fazer injúria
nenhuma a seus súditos. Pois a injúria, tal como foi definida no conseguinte, pelas mesmas razões por que o povo teve o direito de
capítulo III, parágrafo 3, nada mais é do que uma quebra de fazê-lo rei, ele também pode fazer rei a outro. Isso porque o
contrato; portanto, onde não há contrato não pode haver injúria. É príncipe, a quem assim se confere o poder dessa maneira simples,
verdade que o povo, os nobres e o monarca podem transgredir as recebe um direito não apenas de posse, mas igualmente de
outras leis de natureza de diversas maneiras, por crueldade, sucessão, de modo que ele pode nomear como seu sucessor a quem
iniqüidade, contumélia e outros vícios análogos, que não caem sob ele quiserll .
essa definição precisa e estrita de "injúria". Mas se o súdito não
prestar obediência ao soberano então cometerá, propriamente
dizendo, injúria - em primeiro lugar contra seus concidadãos, porque
cada um deles contratou com cada um dos outros para que todos
obedecessem, e em segundo lugar contra o governante supremo, de 16. Sobre os monarcas limitados
quem ele retira sem o seu consentimento o direito que lhe havia
transferido. E numa democracia ou aristocracia, se algo for Contudo, se o poder for concedido por um prazo limitado,
decretado infringindo alguma lei de natureza, o pecado não é culpa deveremos examinar algo mais que a mera concessão. Primeiro, se
da cidade em si mesma (isto é, da pessoa civil), mas apenas o povo, ao transferir sua autoridade, reservou-se ou não o direito de
daqueles súditos graças a cujos votos a medida foi aprovada: pois o se reunir em determinados lugares e datas. Depois, no caso de ter
pecado resulta da vontade natural e expressa, não da vontade conservado esse direito, se o fez de modo a poder reunir-se antes de
política, que é arti expirar o mandato que conferiu a seu rei. Terceiro, se se satisfaz
em reunir-se apenas quando o quiser aquele seu rei temporário, e
em nenhuma outra ocasião.

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Do Cidadão Domínio

Suponhamos agora que o povo tenha concedido seu poder a em que se reunirá, já no curso do mandato que lhe concedeu (como
alguém apenas pelo prazo de sua vida; e, efetuada a concessão, sucedia quando o povo de Roma nomeava um ditador), este não
suponhamos agora que cada qual deixou o local da assembléia sem deve ser considerado como monarca, mas como o primeiro
nada se determinar quanto ao lugar onde (após a morte do príncipe) magistrado (prime o.fficer) do povo. E o povo, se isso lhe convier,
todos eles voltarão a se reunir para proceder a uma nova eleição.
poderá privá-Ia de seu cargo antes mesmo de terminar o mandato,
Nesse caso, é manifesto, pelo parágrafo 5 deste capítulo, que
como fez o povo romano quando conferiu a Minúcio, mestre da
naquela ocasião o povo deixará de ser uma pessoa, e se tornará uma
multidão informe, cada um de cujos membros tem um igual direito, cavalaria, um poder igual ao que antes havia outorgado, como
de natureza, a se reunir com quem quiser naquela data e local que a ditador, a Quinto Fábio Máximo. A razão disso é que é inconcebível
cada qual convenha e agrade; mais até, tem direito, se disso for que a pessoa - indivíduo ou assembléia - a quem se deu o poder de
capaz, de tomar o poder supremo em suas mãos, e de pô-Ia sobre agir imediata e prontamente tenha esse poder sem ter a capacidade
sua testa. Assim, qualquer monarca que receber o poder em tais legal para executá-Ia de fato: pois o poder nada mais é que o direito,
condições estará obrigado pela lei de natureza (estabeleci da no de mandar, sempre que a natureza o permitir.
parágrafo 8 do capítulo III, que manda não retribuir o bem pelo mal) Finalmente, se depois de designar um monarca temporário o
a providenciar com toda a prudência para que à sua morte a cidade povo deixar o local da eleição em termos tais que não lhe seja lícito
não se dissolva, o que fará quer marcando dia e local em que os reunir-se sem a ordem do monarca, devemos entender que o povo
súditos que o queiram possam reunir-se, quer diretamente imediatamente se dissolveu, e
nomeando um sucessor; e entre estas duas opções ele escolherá a que a autoridade que confiou ao rei é absoluta: porque não
que lhe parecer melhor conduzir a seu benefício comum. Portanto, está no poder do conjunto de todos os súditos dar uma nova
aquele que dessa maneira recebeu um poder apenas vitalício tem na constituição Cframe anew) à cidade, a menos que nisso consinta
verdade um poder absoluto, e pode a seu arbítrio decidir quanto à aquele que agora tem, sozinho, toda a autoridade. E não importa
sua sucessão.
que ele tenha eventualmente prometido reunir seus súditos em
Contudo, se o povo não tiver deixado o local onde elegeu seu
algumas ocasiões: porque a pessoa a quem ele fez essa promessa
rei temporário sem decretar em que data e lugar
não tem mais existência, dependendo agora plenamente dele.
tornará a reunir-se após a sua morte, então, falecendo o príncipe, a
autoridade confirma-se no povo, não por quaisquer novos atos que O que dissemos desses quatro casos em que um povo elege
sejam praticados pelos súditos, mas em virtude já do direito seu monarca temporário melhor se explicará comparando-os com
anterior. Pois todo o mando supremo (ou domínio) residia no povo, um monarca absoluto, que não tenha herdeiro manifesto13. Pois o
e no monarca temporário estava apenas o seu uso e exercício, povo é de tal modo senhor dos súditos que só pode ser herdeiro
como se ele tivesse o benefício12, mas não o direito. aquele que ele mesmo designar. Além disso, os espaços que
E ainda, se, depois de eleger seu rei temporário, o povo não separam as datas de reunião dos súditos podem ser adequadamente
deixar o local antes de fixar alguns dias e lugares comparados àquele tempo em que o monarca dorme: pois em
ambos os

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Do Cidadão Domínio

casos cessam os atos de mando, mas o poder permanece. Ademais, 17. É inconcebível que um monarca, sem renunciar a seu
dissolver a assembléia, de modo que ela não possa voltar a reunir- direito ao governo, possa fazer a promessa de abandonar o
se, acarreta a morte do povo; assim como a morte de um homem seu direito aos meios necessários para o exercício de sua
consiste em ele dormir, sem nunca mais poder acordar. Por autoridade
conseguinte, assim como um rei, que não tenha herdeiro, indo para Se o monarca prometer qualquer coisa a um súdito, ou a
o repouso de que nunca há de retomar (morrendo, portanto), se muitos deles reunidos, que acarrete prejuízo ao exercício de seu
confiar o exercício de sua autoridade régia a alguém até ele próprio poder, essa promessa ou pacto é nulo, e não faz a menor diferença
despertar, na verdade lhe está legando sua sucessão - da mesma que tenha sido feita mediante juramento. Pois todo pacto é uma
forma o povo, ao eleger um monarca temporário, se não conservar o transferência de direito que, pelo que dissemos no parágrafo 4 do
poder de se reunir, confia-lhe o domínio integral sobre o país. capítulo 11, requer sinais adequados e apropriados da vontade
Além disso, assim como um rei que vá dormir por algum naquele que efetua a transferência. Por isso, quem significa de
tempo confia a administração de seu reino a alguém, e despertando maneira suficiente ter a vontade de conservar o fim também
a retoma - também o povo, que elegeu um príncipe temporário, se declara, de modo suficiente, que não abandona seu direito aos
tiver conservado o direito de se reunir numa certa data e local, meios necessários para tal fim. Ora, aquele que prometeu renun-
naquele dia recupera sua supremacia. E assim como um rei que ciar a algo que é necessário ao poder supremo, e no entanto
tenha confiado a execução de sua autoridade a outrem, se acordar conserva esse próprio poder, dá sinais suficientes de que só fez
antes do que previa, pode retirar a concessão do poder quando bem aquela promessa na medida em que seu poder pudesse ser
o quiser - da mesma forma o povo, que no curso do mandato conservado sem aquilo que foi prometido. Portanto, a qualquer
confiado ao monarca temporário tenha o direito de reunir-se, pode momento que se constate que a promessa não pode ser cumprida
também, se assim o quiser, pri sem causar prejuízo ao poder,
var esse príncipe da autoridade que lhe foi passada. Finalmente, o rei deverá ela ser considerada como não tendo sido feita como sendo, pois,
que confia sua autoridade a outro en de nenhum efeito.
quanto dorme, se não puder despertar sem o consentimento
daquele, perde a um só tempo o poder e a vida; da mesma forma, o
povo que tenha conferido o poder supremo a um monarca
temporário, mas em tais condições que não possa se reunir sem a
18. Como um cidadão é libertado de sua sujeição
ordem deste último, vê-se completamente dissolvido, e o poder fica
com aquele que por ele foi eleito. Vimos como os súditos, pelo ditado da natureza, obri
garam-se através de pactos recíprocos a obedecer ao poder
supremo. Veremos agora por que meios sucede de serem eles
liberados de tais elos de obediência. E, primeiro de tudo, isso
acontece pelo abandono, isto é, se um homem abandonar ou
desistir de seu direito de mando, mas sem com isso transferi-Io a
outrem. Pois o que assim foi rejeitado está abertamente exposto a
todos, de igual maneira,

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Do Cidadão

para que o agarre quem o conseguir; por isso, nesse caso, pelo CAPÍTULO VIII
direito de natureza cada súdito pode cuidar da conservação de si
próprio em conformidade com seu próprio julgamento.
Em segundo lugar, se o reino cair em poder do inimigo, de DOsInreüosdOsS~hores
modo que não seja mais possível fazer oposição a este, devemos Sobre Seus Servos1
entender que aquele, que antes possuía a autoridade suprema, agora
a perdeu: pois, quando os súditos tiverem envidado todos os seus
esforços para que não caiam em mãos inimigas, terão cumprido
todos aqueles contratos de obediência que firmaram entre si, e o
que depois disso prometerem para evitar a morte terão o dever de
executar, com o mesmo vigor (endeavour) de antes.
Terceiro, numa monarquia (pois uma democracia e uma
aristocracia não podem falhar), se não houver sucessor, todos os 1. o que significam senhor e servo
súditos são descarregados de suas obrigações: porque ninguém Nos dois capítulos precedentes, tratamos de um governo
pode se considerar obrigado se não souber a quem, pois nesse caso instituído ou polític02, isto é, daquele que deve sua origem ao
lhe é impossível cumprir o que quer que seja. consentimento de muitos, que, por contrato e férecíprocos, se
E dessas três maneiras todos os súditos ao mesmo tempo são obrigaram a todos. Segue agora o que pode dizer-se a respeito de
libertados da sujeição civil em que viviam, voltando àquela um governo natural - que também pode ser denominado
liberdade'4 que todos têm perante todas as coisas, a saber, uma "adquirido", porque é aquele que se obtém por poder e força
liberdade natural e selvagem'5 (pois o estado natural está para o natural.
civil na mesma proporção que a liberdade para a sujeição, que a Para tanto devemos saber, em primeiro lugar, por que meios se
paixão para a razão, que o animal para o homem). pode alcançar direito de domínio sobre as pessoas dos homens.
Mas também há casos em que um súdito pode legalmente ser Onde um tal direito se obtém, existe uma espécie de pequeno reino;
libertado de sua sujeição pela vontade daquele que possui o poder pois ser rei nada mais é do que ter domínio sobre muitas pessoas; e
supremo. Por exemplo, se ele mudar de chão: o que pode fazer de assim uma grande família é um reino, e um pequeno reino é uma
duas maneiras, quer por permissão, se ele obtém a licença de ir família. Retomemos agora ao estado de natureza, e consideremos
residir em outro país, quer por ordem, se for banido. Em ambos os os homens como se nesse instante acabassem de brotar da terra, e
casos ele se liberta das leis de seu país anterior, porque está repentinamente (como cogumelos) alcançassem plena maturidade,
obrigado a obedecer às do outro. sem qualquer espécie de compromisso entre si. Háapenas três vias,
pelas quais alguém possa ter domínio sobre a pessoa de outro; das
quais a primeira é quando, por contrato mútuo feito entre si (com
vistas à paz e à defesa), eles se entregaram voluntariamente ao
poder e à autoridade de algum homem, ou conselho de homens; e
desta já falamos.

134 135
Do Cidadão Domínio

A segunda é quando um homem, aprisionado em guerra, ou 3. A obrigação do servo decorre da liberdade corpórea a
derrotado, ou ainda descrente de suas próprias forças (para evitar a ele conferida por seu senhor
morte), promete ao conquistador ou ao partido (pany) mais forte o
Portanto, a obrigação de um servo para com seu senhor não
seu serviço, ou seja, promete fazer qualquer coisa que aquele lhe
decorre da mera concessão de sua vida, mas
ordene. Em tal contrato, o bem que o vencido ou o inferior em
força recebe é a concessão da sua vida, da qual poderia ter sido antes - de não ser mantido em correntes ou cadeias. Pois toda
privado, pelo direito de guerra que vige no estado natural dos ho- obrigação deriva de contrato; ora, onde não há confiança (trust),
mens; e o bem que ele promete é seu serviço e obediência. não pode haver contrato, como se vê no capítulo lI, parágrafo 9,
Portanto, em virtude da sua promessa, o serviço e obediência em que definimos um pacto como a promessa de alguém em quem
devidos pelo vencido ao vencedor são tão absolutos quanto é se confia. Há portanto uma confiança e crédito que acompanha o
possível, excetuado o que repugne às leis divinas; pois quem se benefício da vida perdoada, pelo qual o senhor concede a ele sua
obriga a obedecer às ordens de outro homem antes mesmo de saber liberdade corporal; de modo que se não ocorreram obrigação nem
o que este lhe ordenará está, simplesmente e sem restrição alguma, vínculos4 de contrato, ele poderia não só escapar, como também
atado ao cumprimento de todas e quaisquer ordens. ora, quem matar seu senhor (torci), que era quem lhe conservava
assim se encontra ligado é chamado seroo; aquele a quem está a vida.
ligado, senhor. Em terceiro lugar, há um direito que se adquire, por
geração, sobre a pessoa de um homem; de tal espécie de aquisição
algo se dirá no capítulo seguinte.
4. O servo que esteja a ferros não está preso por nenhum pacto ao
seu senhor
Por isso, a espécie de servos que estão limitados por
aprisionamento ou correntes (bonds) não se acha compreendida na
2. A distinção entre os servos que gozam de sua liberdade natural,
definição anterior de servos, porque esses não servem devido ao
por terem a confiança de seus senhores, e aqueles, ou escravos,
contrato, mas com a finalidade de não sofrer. E portanto, se eles
que servem acorrentados ou presos
fogem ou matam o seu senhor, não violam as leis de natureza. Pois
Não se supõe que toda pessoa aprisionada na guerra, e que ligar um homem é um sinal óbvio, por parte de quem o acorrenta,
teve a vida poupada, tenha contratado com seu senhor; pois não se de não o supor suficientemente ligado por qualquer outra
confia a toda pessoa o suficiente de sua liberdade natural para que obrigação.
seja capaz, se assim o desejar, de fugir, ou deixar o serviço de seu
senhor, ou infligir qualquer dano a este último. E com efeito esses ~'
servem, mas dentro de prisões, ou ligados por correntes; e portanto 5. Perante o senhor, o servo não é proprietário de
não são chamados pelo nome comum de seroo apenas, mas pelo
seus bens
nome peculiar de escravo, assim como atualmente un serviteur e un
esclave têm significações diversas3. o senhor, por conseguinte, não tem menos domínio sobre
um servo que não está preso, do que sobre um que

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,..

Do Cidadão Dominio

está, pois sobre ambos ele exerce um poder supremo, e pode dizer que eles sujeitaram sua vontade à vontade do senhor. Portanto, o
do servo, tanto como de qualquer outra coisa, animada ou que quer que este faça é feito com as vontades daqueles, e
inanimada, "isto é meu". Disso decorre que tudo o que o servo nenhuma injúria pode ser cometida contra quem a quis.
tivesse antes de sua servidão torna-se, posteriormente, do senhor; e
o que quer que obtenha, foi obtido para seu senhor. Pois quem tem
direito a dispor da pessoa de um homem pode, seguramente, dispor
de todas as coisas de que tal pessoa possa dispor. Assim, não há 8. O senhor do senhor é igualmente senhor dos
nada que o servo possa reter como seu próprio, contra a vontade de servos deste
seu senhor; contudo, por concessão do senhor, ele tem propriedade
Mas, se acontecer que o senhor, seja por cativeiro, seja por
e domínio sobre seus próprios bens, na medida em que um servo
sujeição voluntária, se torne servo ou súdito de outro,
pode mantê-Ios e defendê-Ios da invasão de um seu co-servo - da
este outro não será senhor apenas dele, mas também de
mesma maneira, conforme anteriormente mostramos, que, embora
seus servos; senhor supremo destes, senhor imediato daquele. Ora,
um súdito nada tenha de propriamente seu contra a vontade da
como não apenas o servo, mas tudo o que ele tem, são de seu
autoridade suprema, tem propriedade contra seu concidadão.
senhor, por conseguinte seus servos agora pertencem a esse
homem, e não pode o senhor intermediário deles dispor de forma
diferente da que aprouver ao senhor supremo. E por isso, se
eventualmente acontece que em governos civis o senhor tenha
poder absoluto sobre seus servos, este supõe-se derivado do direito
6. O senhor pode vender ou testar o seu servo de natureza, sem ser constituído, mas tolerado, quase ignorado,
pela lei civil.
Já que tanto o próprio servo como tudo o que lhe pertence são
de seu senhor, e que por direito de natureza todo homem pode
dispor de sua propriedade da maneira que lhe convier, portanto o
senhor pode igualmente vender, dar em penhor ou transferir por
testamento o domínio que tem sobre seu servo, seguindo, nisso, sua 9. Por que meios se liberta o servo
própria vontade e prazer.
Um servo é libertado de sua servidão da mesma maneira que
se liberta um súdito, num governo instituído, de sua sujeição. Em
primeiro lugar, se seu senhor o alforria; pois o mesmo direito sobre
7. Não é possível o senhor cometer injúria contra seu si próprio que o servo transferiu a seu senhor pode o senhor
servo restituí-Io ao servo. E esta maneira de conceder liberdade é
chamada manumissão; que é exatamente como se uma cidade
Ademais, o que já foi demonstrado anteriormente acerca dos permitisse a um cidadão transferir-se para a jurisdição de alguma
súditos num governo instituído, isto é, que quem tem o poder outra cidade.
supremo é incapaz de cometer injúria alguma contra seu súdito, Em segundo lugar, se o senhor expulsa seu servo, o que numa
também é válido quanto aos servos, por cidade é banimento - o que não difere da manu

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Do Cidadão
Domínio

missão quanto ao efeito, mas apenas quanto à maneira. Pois, e destruir os demais em guerra perpétua, como perigosos e nocivos.
naquela, a liberdade é concedida como um favor, neste, como Portanto, nosso domínio sobre as bestas origina-se no direito de
punição: em ambos, renuncia-se ao domínio. natureza, não no direito divino positivo. Pois, se tal direito não
Em terceiro, se o terço é aprisionado, a antiga servidão é existisse antes de serem publicadas as Sagradas Escrituras, homem
abolida pela nova; pois, como todas as demais coisas, também se algum teria o direito de matar uma besta para comê-Ia, mas apenas
adquirem servos pela guerra, e por eqüidade o senhor deve protegê- aquele a quem a vontade divina6 fosse manifestada por
Ios se quiser que sejam seus. escritura sagrada - condição que seria muito dura para os homens,
Quarto, o servo é libertado se não se conhece o sucessor, ao esta em que as bestas poderiam devorá-Ios sem injúria, enquanto
falecer o senhor (suponhamos) sem testamento ou herdeiro. Pois eles não poderiam destruí-Ias. Portanto, assim como procede do di-
ninguém pode ser tido por obrigado, a menos que saiba a quem reito de natureza que uma besta possa matar um homem, também é
deve cumprir sua obrigação. do mesmo direito que um homem pode matar uma besta.
Finalmente, o servo que é acorrentado, ou privado por
quaisquer outros meios de sua liberdade corporal, acha-se libertado
daquela outra obrigação de contrato. Pois não pode haver contrato
onde não há confiança, nem pode quebrar-se aquela fé que não é
dada.
Mas o senhor que por sua vez serve a outro não pode libertar
dessas maneiras os seus servos, que deverão continuar sob o poder
do senhor supremo; pois, como acima se mostrou, tais servos não
são seus, porém do senhor supremo.

10. O domínio sobre os animais decorre do direito de


natureza5
Adquirimos direito sobre as criaturas irracionais da mesma
forma que sobre as pessoas dos homens, isto é, pela força natural.
Pois, se no estado de natureza é lícito a qualquer um, em virtude
daquela guerra que é de todos contra todos, sujeitar e até matar
seres humanos, tantas vezes quantas pareça conduzir ao bem de
quem sujeita e mata, muito mais lícito será assim agir contra seres
brutos - isto é, cada qual à sua discrição, reduzir à servidão aqueles
que pela arte possam ser domados e adequados ao uso, e perseguir

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CAPÍTULO IX

Do Direito dos Pais Sobre os Filhos e do Governo


Hereditário]

1. o domínio paterno não decorre da geração

"Sócrates é um homem, e portanto uma criatura viva" é um


raciocínio correto e do mais evidente, porque para reconhecer-se a
verdade da conseqüência tudo o que é necessário é entender a
palavra "homem", dado que na própria definição de homem já está
implícito que seja uma criatura viva, e assim qualquer um pode
acrescentar por sua conta a proposição que está faltando, a saber,
que "o homem é uma criatura viva". Mas a proposição "Sofronisco
é pai de Sócrates, e portanto seu senhor" pode até ser uma
inferência verdadeira, só que não é evidente, porque a palavra
"senhor" não está incluída na definição de "pai" - por isso é
necessário, para torná-Ia mais evidente, que a conexão entre pai e
senhor seja um tanto explicitada.
Os que até agora se esforçaram por provar o domínio de um
dos pais sobre seus filhos não trouxeram outro argu
mento além do da geração, como se fosse evidente de per si que o
que for gerado por mim é meu; assim como se um homem pensasse
que, porque existe um triângulo, evidenciasse sem mais discurso
que seus ângulos são iguais a dois retos. Além disso, já que o
domínio - isto é, o poder supremo - é indivisível, pois que nenhum
homem pode servir a dois senhores, e por outro lado duas pessoas,
macho e

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3
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Do Cidadào Domínio

fêmea, devem concorrer para o ato de geração, é absolutamente E o que alguns dirão - que neste caso torna-se senhor
impossível que o domínio seja adquirido apenas pela geração. Por o pai, devido a preeminência de seu sexo, e não a mãe
isso vamos, com a máxima diligência, inquirir neste lugar sobre a nada significa. Pois tanto a razão mostra o contrário, porque não é
origem do governo paterno (paternal government). tão grande a desigualdade de suas forças naturais que o homem
possa obter sem guerra domínio sobre a
mulher, como também o costume. Pois houve mulheres
as amazonas - que em tempos idos travaram guerra contra seus
adversários, e dispuseram de seus filhos tal como quiseram. E hoje
2. O domínio sobre as crianças pertence àquele ou àquela
em dia, em diversos lugares, há mulheres investidas com a
que primeiro as teve em seu poder
autoridade principal. Não são seus maridos que dispõem de seus
Devemos portanto retornar ao estado de natureza, no qual, filhos, porém elas mesmas, o que fazem, na verdade, por direito de
devido à igualdade de natureza, todos os homens de idade mais natureza, uma vez que aqueles que detêm o poder supremo não
madura devem ser tidos por iguais. Nele, por direito de natureza, o estão, absolutamente, atados - como já se mostrou - pelas leis
conquistador é senhor do conquistado. Por conseguinte, pelo direito civis.
de natureza, o domínio sobre a criança pertence em primeiro lugar Acrescente-se ainda que, no estado de natureza, não se pode
àquele que primeiro a tem em seu poder. Ora, é manifesto que o saber quem é o pai, a não ser pelo testemunho da mãe; a criança é
recém-nascido está em poder da mãe antes de quaisquer outros, na portanto daquele que a mãe quiser, e portanto é dela. Por
medida em que ela tem o direito, se assim o quiser, de nutri-Io ou conseguinte, pertence à mãe o domínio original sobre os filhos - e
de largá-Io à sua fortuna. entre os homens, como entre as demais criaturas, o nascimento
segue o ventre.

3. O domínio sobre a criança é, originalmente, da mãe 4. A criança abandonada é da pessoa de quem ela recebe a
preservação
Portanto, se a mãe nutrir o recém-nascido, dado que o estado
O domínio passa da mãe a outras pessoas, de diversas
de natureza é um estado de guerra, supõe-se que ela o está criando
maneiras. Em primeiro lugar, se ela abandona e renega seu direito
sob a seguinte condição: de que, ao se tornar adulto, não se torne ao expor o filho. Portanto, quem criar a criança assim exposta terá,
seu inimigo - isto é, de que lhe obedeça. Pois, já que, por sobre ela, o mesmo domínio que tinha a mãe. Pois aquela vida que
necessidade natural, todos nós desejamos o que nos parece bom, a mãe lhe dera (não ao tê-Ia porém ao nutri-Ia) agora lhe tira pela
não se pode entender que qualquer homem conceda vida a outrem exposição; e com essa exposição torna-se nula a obrigação que
em termos tais que este ganhe força com a idade e ao mesmo tempo decorria do benefício da vida. Ora, quem é criado tudo deve a quem
se torne seu inimigo. Ora, cada homem é inimigo de todo aquele a o cria2, o mesmo que deveria a uma mãe porque o educa, ou o que
quem não obedece nem ordena. E portanto, no estado de natureza, deve a um senhor prestando-lhe serviço. Porque, embora no estado
toda mulher que pare filhos torna-se tanto mãe como senhor (tord). de natureza, em que todos os homens têm direito a todas as coi

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-

Do Cidadão Domínio

sas, a mãe possa recuperar seu filho (pelo mesmo direito por que parágrafo 3, a não ser que pactos adicionais o determinem de outro
qualquer outra pessoa pode fazê-lo), o filho não tem, contudo, o modo. Pois a mãe pode dispor de seu direito conforme desejar,
direito de transferir-se de novo para sua mãe. mediante um pacto, como outrora faziam as amazonas, que, dos
filhos que tinham com seus vizinhos, pactuaram entregar-lhes os
varões e conservar consigo as meninas. Mas num governo civil, se
5. Se alguém é filho de um casal dos quais um é súdito e outro houver um contrato de casamento entre homem e mulher, as
soberano, a criança pertence àquele (seja homem ou mulher) que crianças serão do pai, porque em todas as cidades, sendo elas
possui a autoridade suprema constituídas por pais e não por mães a governar as famílias, o
mando doméstico pertence ao homem; e um tal contrato, se for
Em segundo lugar, se a mulher for aprisionada, seu filho é
feito em conformidade às leis civis, é chamado matrimônio. Mas,
daquele que a prendeu, porque quem tem domínio sobre a pessoa
se eles se põem de acordo apenas em deitar juntos, as crianças são
também o tem sobre tudo o que pertence à pessoa; portanto,
ou do pai ou da mãe, conforme variam as diferentes leis civis de
também sobre o filho, conforme se mostrou no capítulo anterior,
diversas cidades.
parágrafo 5. Em terceiro lugar, se a mãe for súdita de qualquer
governo que seja, quem tiver a autoridade suprema nesse governo
também terá domínio sobre quem nascer dela, porque é senhor da
mãe, que está obrigada a obedecer-lhe em todas as coisas. Em
quarto lugar, se uma mulher, por contrato de casamento (for 7. Os filhos não estão menos sujeitos a seus pais do que os
society's sake), entregar-se a um homem sob a condição de que este servos aos senhores e os súditos aos príncipes
chefiará o lar, aquele que dever a existência à contribuição de
Ora, como - pelo parágrafo 3 - a mãe é senhor original de seus
ambas as partes será do pai, devido ao mando que esse tem sobre a
filhos, e a partir dela o pai ou outra pessoa pode ser senhor por
mãe. Mas, se uma soberana tiver filhos de um súdito, as crianças
direito derivado, é manifesto que as crianças não estão menos
serão da mãe, pois, não fosse assim, ela não poderia procriar sem
sujeitas àqueles por quem são nutridas ou criadas, do que os servos
prejuízo de sua autoridade. E universalmente, se a sociedade de
macho e fêmea for uma união tal que um se submeta ao outro, as aos seus senhores, e os súditos àquele que detém a soberania
crianças pertencem àquele ou àquela que manda. suprema; e que nenhum dos pais é passível de cometer injúria
contra seu filho, enquanto estiver este sob o seu poder.
Um filho também é liberado da sujeição, da mesma maneira
que um servo ou um súdito. Pois emancipar é a mesma coisa que
manumitir, e abdicar que banir.
6. Numa união sexual em que nenhum tenha autoridade sobre o
outro, os filhos são da mãe, a não ser que um pacto ou a lei civil
determinem de outro modo
Mas, no estado de natureza, se um homem e uma mulher 8. Da honra devida aos pais e aos senhores
contratam que nenhum esteja sujeito ao mando do outro, as
O filho emancipado ou o servo libertado agora têm
crianças são da mãe, pelas razões acima dadas no
menos medo de seu senhor e pai, uma vez privado este de

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..
Do Cidadão Domini
o
seu poder natural e senhorial (lordly) sobre eles, e - se con- de, porque o vaso a impede de escoar; quebrado o vaso, ela é
siderarmos a honra verdadeira e interior - honram-no menos que libertada3. E todo homem tem maior ou menor liberdade, conforme
antes. Pois a honra, como foi dito na seção acima, nada mais é que a tenha mais espaço ou menos para si: como quem está numa ampla
estimação do poder de outrem; e portanto quem tem menos poder prisão é mais livre do que numa apertada. E um homem pode ser
tem menor honra. livre para um rumo e contudo não o ser para outro, assim como o
Mas não se deve imaginar que o emancipador tivesse intenção viajante está aprisionado deste e daquele lado por cercas vivas ou
de nivelar o emancipado a ele próprio, de modo que este não muros de pedras (para que não estrague as vinhas ou o cereal),
devesse reconhecer o benefício e fosse conduzir-se, em todas as adjacentes à estrada. E estas espécies de impedimento são externas
coisas, como se tornando inteiramente igual a quem o libertou. e absolutas. Em tal sentido, são livres todos os servos e súditos que
Deve-se portanto entender, de uma vez por todas, que quem é não se encontram agrilhoados e aprisionados.
libertado da sujeição, seja servo, filho, ou mesmo uma colônia,
promete todos os sinais externos (pelo menos) através dos quais os
superiores costumavam ser honrados por seus inferiores. Daí se
segue que o preceito de honrar nossos pais pertence à lei de natu- Há outros impedimentos que são arbitrários, que não impedem
reza, não apenas a título de gratidão mas também de acordo de maneira absoluta o movimento, mas apenas por acidente, isto é,
(agreement). por nossa própria escolha; por exemplo, quem está num navio não
se acha impedido dessa forma, porque pode jogar-se ao mar, se
assim quiser. Também aqui, quanto maior o número de vias em que
um homem possa mover-se, maior será a sua liberdade. E nisto
9. Em que consiste a liberdade, e qual a diferença entre os consiste a liberdade civil; pois homem algum, seja ele súdito, filho
súditos e os servos ou servo, é impedido a tal ponto pelos castigos designados pela
cidade, pelo pai ou senhor (por cruéis que sejam), que não possa
Qual será então, perguntará alguém, a diferença entre um filho fazer todas as coisas e utilizar todos os meios necessários à
ou um súdito, e um servo? Não conheço escritor algum que tenha conservação de sua vida e saúde.
declarado plenamente o que é liberdade, e escravidão. Quanto a mim, portanto, não posso divisar que razão tenha um
Ordinariamente, estima-se que a liberdade consiste em fazer todas mero servo para se queixar, se tudo o que tem a lamentar é apenas a
as coisas segundo nossas próprias fantasias e sem incorrer em falta de liberdade - a menos que ele considere miséria o fato de ser
castigo, ao passo que a servi impedido de fazer-se mal e de receber a vida (à qual perdera
dão (bondage), julga-se, é não ser capaz de fazê-Ias tais - o que, direit04 pela guerra, ou por infortúnio, ou por sua própria
num governo civil, e tendo em vista a paz da humanidade, não tem indolência), assim como recebe seu integral sustento e todas as
cabimento, porque não há cidade sem mando e sem restrição de coisas necessárias à conservação da saúde, tudo isso sob uma única
direitos. condição, a de ser governado. Pois quem é confinado (kept in) por
A liberdade, podemos assim a definir, nada mais é que castigos impostos perante ele, de modo a não ousar afrou
ausência dos impedimentos e obstáculos ao movimento; portanto, a
água represada num vaso não está em liberda

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Do Cidadão Domínio

xar as rédeas à sua vontade em todas as coisas, não é oprimido pela que direito podem elas ser continuadas. O direito pelo qual são
servidão, mas é governado e sustentado. continuadas é o que é chamado direito de sucessão. Ora, como
Contudo, os súditos livres e filhos de família têm um numa democracia a autoridade suprema reside no povo, enquanto
privilégio sobre os servos, isso em qualquer governo e família onde houver quaisquer súditos vivos ela permanece com a mesma pessoa
servos haja: que aqueles podem ocupar os ofícios mais honrosos da - pois o povo não tem sucessor. Da mesma maneira, na aristocracia,
cidade ou da família, e também desfrutar de maior posse de coisas morrendo um dos nobres, os restantes o substituem por outro; e
supérfluas. E aqui repousa a diferença entre um súdito livre e um assim, exceto o caso de que todos morram juntos, o que supomos
servo: é verdadeiramente livre quem serve apenas a sua cidade, nunca acontecerá, não há sucessão.
enquanto éservo aquele que também serve quem como ele é súdito. Por conseguinte, a questão do direito de sucessão só tem lugar
Toda outra liberdade é uma isenção das leis da cidade, e convém numa monarquia absoluta. Pois aqueles que exercem o poder
t
apenas àqueles que detêm o poder (bear rule). supremo apenas por um tempo não são monarcas, porém ministros
de Estado.

10. Um governo hereditário tem o mesmo direito sobre seus


súditos que um governo instituído 12. Um monarca pode dispor da autoridade suprema
... por testamento...
Chama-se uma família a um pai, com seus filhos e servos,
tornados (grown) uma pessoa civil em virtude da jurisdição paterna. Primeiro, se um monarca indicar em testamento alguém para
Essa família, se pela multiplicação de filhos e aquisição de servos lhe suceder, a pessoa indica da lhe sucederá. Pois, se ele foi
tornar-se numerosa, a ponto de não poder ser submetida exceto pelo indicado pelo povo, terá sobre a cidade todo o direito que tinha o
incerto jogo da guerra, será denominada um reino hereditário - que, povo, conforme se mostrou no capítulo VII, parágrafo 11. Ora, o
embora, por ser adquirido pela força, se diferencie da monarquia povo podia escolhê-Io; pelo mesmo direito, portanto, ele agora
instituída quanto à origem e maneira de sua constituição, contudo, \ pode escolher outro. E, num reino hereditário, vigem os mesmos
direitos que num instituído. Portanto, todo monarca pode fazer um
uma vez constituído, tem todas as mesmas propriedades. O direito
sucessor por sua vontadeS.
da autoridade é o mesmo em toda parte de modo que não é
necessário dizer nada separadamente de um e de outro.

13 .... ou dá-ta, ou vendê-Ia

11. A questão do direito de sucessão cabe apenas na monarquia Ademais, o que um homem pode transferir a outro por
testamento pelo mesmo direito também pode, ainda em vida, dar ou
Já foi dito por que direito são constituídas as autorida vender. Portanto, a quem quer que ele transfira o poder supremo,
des supremas. Devemos agora dizer-vos brevemente por seja por doação, seja por venda, isso é direito.

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Domínio
Do Cidadão

14. Um monarca que faleça sem testamento supõe-se que desejasse 16. ... e por um varão antes de uma mulher...
ser sucedido por outro monarca...
Os varões têm preeminência entre os filhos; no começo, talvez
Porém, se em vida o monarca não declarou, por testamento ou por serem na maior parte (embora não sempre) mais aptos à
de outra forma, quem ele queria ter como sucessor, é de supor, em administração dos grandes negócios, mas especialmente da guerra;
primeiro lugar, que não desejasse ter seu governo reduzido à porém, posteriormente, quando isso se tornou costume, porque esse
anarquia ou ao estado de guerra, isto é, à destruiçào de seus súditos costume não foi contraditado. E por isso a vontade do pai, a menos
- tanto porque não poderia fazê-Io sem quebrar as leis de natureza, que algum outro costume ou sinal claramente aponte em outra
pelas quais era obrigado a cumprir todas as coisas que direção, deve ser interpretada em favor dos filhos homens.
necessariamente conduzem a conservar a paz, como ainda porque,
fosse esta a sua vontade, não lhe teria sido difícil expô-Ia aberta-
mente. Além disso, como o direito se transfere conforme a vontade
do pai, devemos julgar do sucessor segundo os sinais de sua 17. ... e pelo mais velho antes do mais novo...
vontade. Entende-se, portanto, que ele preferiria ter seus súditos
sob um governo monárquico, de preferência a qualquer outro, Ainda: como os filhos são iguais e o poder não é passível de
porque ele próprio, ao governar, aprovou esse Estado por seu divisão, lhe sucederá o mais velho. Pois, havendo alguma diferença
exemplo, e posteriormente não o condenou por palavra ou ato devido à idade, supõe-se mais merecedor (worthy) o mais velho;
algum. pois, sendo juiz a natureza, o mais avançado em anos é o mais
sábio (porque usualmente assim se passa). E outro juiz não pode
haver. Além disso, se os irmãos deverem ser avaliados igualmente,
a sucessão será determinada por sorteio. Ora, a primogenitura é
15 .....e que este fosse um de seus filhos... uma loteria natural, e por ela é preferido sempre o mais velho; e
não existe quem tenha poder de julgar por qual espécie de sorteio a
Ademais, como por necessidade (necessity) natural todos os matéria deva ser decidida. E, ainda, a mesma razão que assim
homens querem melhor àqueles de quem recebem glória e honra do favorece o filho primogênito também favorece a filha que nasceu
que aos outros; e depois da morte cada homem recebe mais honra e primeiro.
glória de seus filhos do que do poder de qualquer outro homem:
concluímos disso que um pai almeja mais para seus filhos do que
para os de qualquer outra pessoa. Deve-se entender, portanto, que a
vontade do pai, falecido sem deixar testamento, seja que lhe suceda 18. ... e, se não tiver filhos, por seu irmão antes de
algum de seus filhos. Contudo, isto deve ser entendido com a quaisquer outras pessoas
cláusula de que não haja sinais mais evidentes em direção contrária: Caso o rei não tenha filhos, o mando passará a seus irmãos e
nesta espécie, após várias sucessões, podemos incluir o costume. irmãs, pela mesma razão por que lhe sucederiam os filhos que
Pois supõe-se que quem não faz menção de sua sucessão consinta eventualmente tivesse. Pois os que nos são mais próximos em
seguir os costumes de seu reino. natureza, supõe-se que também o sejam

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Do Cidadão

em benevolência; e assim os irmãos antes das irmãs, e os mais CAPÍTULO X


velhos primeiro que os novos; pela mesma razão, aqui, que antes
valia para os filhos.
Comparação Entre as Três Espécies de
Governo, Conforme os Inconvenientes de
19. Da mesma forma que se sucede ao poder, também se sucede ao
Cada Uma1
direito de sucessão
Ademais, pela mesma razão por que sucedem os homens ao
poder, também sucedem ao direito de sucessão. Assim, se o
primogênito falecer antes de seu pai, julgar-seá que transferiu a
seus filhos o seu direito de sucessão, a menos que o pai tenha
decretado outra coisa. E portanto os netos terão preferência sobre 1. Comparação do estado de natureza com o civil
seus tios, na sucessão do avô. Digo eu que todas estas coisas serão,
se o costume do lugar (no qual julga-se que o pai, rei, consentiu, se Já dissemos em que consistem a democracia, a aristo
não o contradisse) não as impedir. cracia e a monarquia; mas, se quisermos saber qual delas émais
adequada para conservar a paz entre os súditos, e para trazer-Ihes
prosperidade, teremos de compará-Ias entre si. Comecemos, então,
expondo quais são as vantagens e desvantagens de uma cidade
examinada genericamente - o que precisamos fazer para que não vá
alguém considerar preferível viver cada qual a seu arbítrio, em vez
de se constituir a sociedade civil sob qualquer de suas formas.
É fato que todo homem, fora do estado do governo civil,
possui uma liberdade a mais completa, porém estéril: porque, se
devido a essa liberdade alguém pode fazer de tudo a seu arbítrio,
deve porém, pela mesma liberdade, sofrer de tudo, devido a igual
arbítrio dos outros. Já numa cidade constituída, todo súdito
conserva tanta liberdade quanto lhe baste para viver bem e
tranqüilamente, e dos outros se tira o que é preciso para perdermos
o medo deles. Fora desse estado, todo homem tem direito a tudo,
sem
que possa .desfrutar, porém, de nada; nesse estado, cada
um pode desfrutar, em segurança, do seu direito limitado. Fora
dele, qualquer homem tem o direito de espoliar ou de matar outro;
nele, ninguém o tem, exceto um único. Fora do governo civil,
estamos protegidos por nossas próprias

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Do Cidadão Domínio

forças; nele, pelo poder de todos. Fora dele, ninguém tem governados; pois tanto um quanto outro, para que possam defender
assegurado o fruto de seus labores; nele, todos o têm garantido. a vida, utilizam simultaneamente todas as forças de seus
Finalmente: fora dele, assistimos ao domínio das paixões, da concidadãos. E se suceder a uma cidade o pior inconveniente dentre
guerra, do medo, da miséria, da imundície, da solidão, da barbárie, os possíveis, que é o massacre de súditos em meio à anarquia, serão
da ignorância, da crueldade; nele, ao domínio da razão, da paz, da afetados por igualo governante e seus governados. Ou, se o
segurança, das riquezas, da decência, da sociedade, da elegância, dirigente lançar sobre seus súditos impostos excessivos, que tornem
das ciências e da benevolência. impossível eles se manterem e a suas famílias, ou conservarem sua
força e vigor físicos, ele com isso sofrerá desvantagem tão grande
quanto os próprios súditos, porque não há estoque ou medida de
riquezas que lhe permita manter sua autoridade ou seu tesouro se
2. As vantagens e inconveniências são as mesmas para o não contar com os corpos de seus súditos. Inversamente, se ele
governante e os governados arrecadar apenas o que for suficiente à adequada administração de
seu poder, isso beneficiará na mesma medida a ele e aos súditos, na
Aristóteles, na sua Política (livro VII, capítulo 14), diz que há direção da paz e da defesa comuns. E é inconcebível que a existên-
duas espécies de governo, uma das quais existe em benefício do cia do tesouro público possa constituir um inconveniente para
governante, a outra dos súditos - como se, quando os súditos são súditos particulares, a menos que eles estejam tão exauridos que
tratados com severidade, fosse uma a forma de governo, e fosse nem mais tenham condições de adquirir, ainda que se valendo de
outra, quando a eles se trata mais brandamente. Mas é totalmente sua diligência (industry), o de que necessitem para sustentar sua
impossível endossar essa opinião, pois todas as vantagens e força em corpo e mente. Mas até nesse caso o inconveniente seria
desvantagens que provêm do governo são as mesmas, e são do soberano; e não proviria da má instituição ou ordenação do
conjuntas ao governante e aos governados. É verdade que os danos governo (porque em qualquer modo de governo podem os súditos
que afetem a alguns súditos em particular, por infortúnio, insen- ser oprimidos), porém da má administração de um governo bem
satez, negligência, indolência, ou ainda por sua própria con- estabelecido.
cupiscência, podem muito bem ser desvinculados daqueles que
afetam ao governante; mas trata-se, nesse caso, de danos que não se
referem ao governo enquanto tal, podendo ocorrer em qualquer das
espécies de governo. Somente se eles decorrerem da instituição
inicial da cidade é que será correto chamá-l os de inconvenientes do
governo; mas nesse caso serão comuns ao governante e a seus
3. Elogio da monarquia
súditos, da mesma forma que lhes serão comuns os benefícios que
venham a receber. Agora, comparando os convenientes e inconvenientes que
Contudo, o primeiro e maior de todos os benefícios, que nascem em cada uma dessas formas de governo, evidenciarei que a
consiste na paz e na defesa, serve ao governante e aos monarquia tem proeminência sobre a democracia e a aristocracia. E
para tanto não considerarei os argumentos que dizem, em seu
favor, que o universo intei

156 157
Do Cidadão Domínio

ro é governado por um só Deus; ou que os antigos preferiam o tem mais aquele a quem, voluntariamente, demos mais não se deve
estado monárquico antes dos demais, atribuindo a soberania sobre considerar como se não fosse razoável. Por conseguinte, os
os deuses a um Júpiter; que, no princípio das coisas e das nações, inconvenientes que assistem o domínio de um homem referem-se à
os decretos dos príncipes eram tidos e havidos por leis; que outros sua pessoa, e não a ser ela a de um só. Vejamos, então, o que
governos foram pactuados pelo artifício human02 por sobre as acarreta maiores agravos ao súdito, se o mando de um só, se o de
cinzas da monarquia, uma vez arruinada esta pelas sedições; e que muitos.
o povo de Deus vivia sob a jurisdição de reis: não levarei em conta
tais argumentos, repito, porque, embora considerem a monarquia
como o mais eminente dos governos, contudo o fazem com base em 5. Refutação da tese dos que dizem que a soma de um
exemplos e depoimentos, em vez de se fundarem na sólida razã03. senhor com seus servos não basta para formar uma
cidade
Primeiro, porém, devemos refutar a opinião daqueles para quem
não é uma cidade a que se formar de servos
por maior que seja o seu número - sob um senhor comum. No
4. Não se pode dizer que o governo de um seja menos razoável capítulo V, parágrafo 9, defini uma cidade como sendo uma pessoa
porque nele um tenha mais poder que todos os demais feita de muitos homens, que por seus contratos fizeram a vontade
dela ser considerada como as vontades de todos eles, de modo a
Há alguns que se sentem descontentes com o governo de um, poder, ela, utilizar-se da força e das faculdades de cada pessoa
por nenhuma outra razão além de ser, ele, um; como se não fosse individual em prol da paz e da segurança pública. E, com base no
razoável que um homem entre tantos os excedesse em poder a tal mesmo parágrafo do mesmo capítulo, existe uma pessoa quando as
ponto que pudesse dispor, a seu prazer, de todos os outros. Tais vontades de muitos estão contidas na vontade de um. Ora, a vonta-
descontentes, é certo, se pudessem até se furtariam ao domínio de de de cada servo está contida na vontade de seu senhor, como se
um Deus. Mas a exceçã04 que fazem contra um é instigada pela declarou no capítulo VIII, parágrafo 5, de tal modo que ele pode
inveja que sentem, ao verem um homem possuindo tudo o que dese- usar todas as forças e faculdades deles segun
jam. Pois, pela mesma razão, deverão considerar igualmen do sua própria vontade e prazer.
te pouco razoável que uns poucos mandem, a menos que, Segue-se portanto que necessariamente deve constituir uma
eles próprios façam parte de seu número, ou tenham a esperança de cidade aquela que se forma de um senhor e de muitos servos. E
nele se incluir. Afinal, se não for razoável que todos os homens não não há razão alguma que possa contradizê-Io sem, ao mesmo
possuam um igual direito, seguramente uma aristocracia também há tempo, negar-se também que um pai e seus filhos constituam uma
de não ser razoável. cidade. Pois, a um senhor que não tenha filhos, os servos estão na
Mas, como mostramos que o estado de igualdade é um estado condição de filhos; pois são eles tanto sua honra quanto sua
de guerra, e que por isso a desigualdade foi introduzida pelo salvaguarda; e os servos não estão mais submetidos ao senhor do
consentimento geral, essa desigualdade pela qual que

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Do Cidadão
Domínio

os filhos ao pai, conforme manifestamos acima, no capítulo VIII, mover pessoas sem mérito, ele porém o fará raras vezes; ao passo
parágrafo 5. que numa democracia todos os homens populares supõe-se que
ajam assim, porque assim é preciso - senão, os únicos que agirem
desse modo aumentarão de tal forma o seu poder que se tornarão
6. As exações são mais intoleráveis num Estado popular do que perigosos, não só para os outros, mas também para a própria
numa monarquia cidade.
Entre muitos outros agravos de que se acusa a autoridade
suprema está o de que o governante, além daqueles impostos
necessários para os encargos públicos, assim como a manutenção 7. Os súditos inocentes estão menos expostos a ser
dos ministros do Estado, a construção e defesa de castelos, a guerra penalizados na monarquia do que quando o povo governa
e a manutenção com decoro da casa real, pode ainda exigir por
Outra queixa está naquele mesmo medo perpétuo à morte que
concupiscência outros tributos, a fim de enriquecer seus filhos,
cada qual há necessariamente de sentir, quando refletir que o
parentes, favoritos e mesmo aduladores. Confesso que isso constitui
governante não tem poder apenas para escolher os castigos que
um sério inconveniente; mas noto que é um daqueles que, acompa-
quiser para as transgressões à lei, como também pode, atendendo a
nhando toda espécie de governo, é mais tolerável na monarquia que
sua ira e sensualidade, assassinar (slaughter) seus súditos
na democracia. Pois, ainda que o monarca enriqueça a todos
inocentes, e até mesmo aqueles que jamais ofenderam as leis. E em
aqueles, eles não podem ser muitos, porque rodeiam todos a um só.
verdade este é um inconveniente dos maiores, em qualquer forma
Mas numa democracia: vede quantos demagogos, isto é, quantos
de governo onde ocorra; pois então é um inconveniente porque
oradores poderosos há junto ao povo (são eles tantos, e a cada dia
ocorre, e não porque possa vir a ocorrer. Mas será culpa do gover-
crescem em número), e para cada um deles há tantos filhos,
nante, e não do governo. Assim, vemos que os atos de Nero não
parentes, amigos e bajuladores que haverão de ser recompensados.
pertenciam à essência da monarquia; até porque na monarquia é
Pois cada um deles não deseja apenas fazer sua família tão po-
mais raro os súditos serem condenados sem terem culpa, do que
derosa e ilustre em riqueza quanto for possível, mas também
quando quem governa é o povo.
reforçar sua posição conferindo favores a outros, a fim de obrigá-
Os reis se encolerizam apenas com aqueles que os perturbam
los5.
com conselhos impertinentes, ou se opõem a eles com palavras de
Um monarca pode satisfazer em boa medida a seus ministros e
censura, ou lhes controlam a vontade; mas são os reis que tornam
amigos, porque estes não são muitos, sem grande custo para seus
inofensivo aquele excesso de poder que um súdito poderia ter sobre
súditos - quero dizer, sem roubá-Ias de nenhum dos tesouros a ele
outro. Até mesmo porque, reinando Nero ou Calígula, ninguém
confiados para manter a guerra e a paz. Numa democracia, onde há
sofrerá injustamente que não seja deles conhecido, ou seja, apenas
muitos que devem ser saciados, e sempre surgem novos, isso não se
seus cortesãos e quem mais se destacar por algum cargo eminente,
pode fazer sem se oprimir aos povos. E, ainda que um rei possa pro
e mesmo assim nem todos estes, mas somente aqueles que

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Do Cidadão Domínio

possuírem aquilo que o monarca desejar para seu desfrute. Já 8. A liberdade dos súditos individuais não é menor sob um
aqueles que são ofensivos e insultuosos são castigados monarca do que quando governa o povo
merecidamente. Por conseguinte, todo aquele que numa monarquia
Assim, alguns imaginam que a monarquia seja mais in-
levar uma vida retirada estará a salvo do perigo, não importando
conveniente que a democracia, porque teria menos liberdade do
quem for o rei. Sofrerão apenas os ambiciosos; os outros estarão
que esta. Mas, se por liberdade eles querem dizer uma imunidade à
protegidos das injúrias dos mais poderosos. Mas, num Estado
submissão devida às leis, isto é, ao domínio do povo, então nem na
popular, haverá tantos Neros quantos forem os oradores que
democracia nem em nenhuma outra espécie de governo jamais há
afagarem o povo. Pois cada um deles tem tanto poder quanto o
esse tipo de liberdade. E, se supuserem que a liberdade consista em
povo, e cada qual protege o apetite de qualquer outro dentre eles
haver menos leis, menos proibições, e que seja proibido apenas o
(como se em segredo tivessem firmado um pacto: "Poupa-me hoje,
que é imprescindível à paz, então nego que haja mais liberdade na
e te pouparei amanhã"), quando is~ntam do castigo aqueles que,
democracia do que na monarquia: pois uma é tão compatível
para saciarem sua concupiscência e seu ódio particular, mataram
quanto a outra com uma tal liberdade. Pois, embora a palavra
concidadãos que não mereciam tal sorte.
liberdade possa estar escrita em letras grandes e largas sobre as
Ademais, há um certo limite no poder privado que, se for
portas de uma cidade qualquer7, não se refere à liberdade do
excedido, se mostrará pernicioso ao Estado, e por essa razão
súdito, mas à da própria cidade; e não há razão alguma para que
eventualmente se torna necessário que os monarcas cuidem de que
seja mais correto escrever tal palavra nos muros de uma cidade
o bem comum não seja por ele prejudicado. Portanto, quando tal
governada pelo povo, do que numa regida por um monarca.
poder consiste no acúmulo de riquezas, eles o reduzem cortando seu
Mas, quando os particulares ou os súditos reivindicam a
excesso: mas, se consistisse no aplauso popular, o que se costumava
liberdade, sob o seu nome eles não estão querendo a liberdade, mas
fazer era banir a parte poderosa, independentemente de ter ela
a soberania (dominion), embora por ignorância não se dêem conta
cometido algum crime. Era essa a praxe nas democracias. Assim, os
disso. Pois, se, como manda a lei de natureza, cada qual
atenienses infligiam um banimento de dez anos àqueles que se
reconhecesse a outrem a mesma liberdade que deseja para si,
fizessem poderosos, tão-somente devido a seus poderes, sem a
retornaria então aquele estado
culpa de qualquer outro crime. E em Roma aqueles que por sua
de natureza, no qual todos têm direito a tudo; coisa esta que, se
liberalidade buscassem obter o favor do povo eram executados,
eles percebessem, abominariam, porque esse estado é pior do que
porque se supunha que ambicionassem a realeza. Nisso a
qualquer sujeição civil que possa haver. E, por outro lado, se
democracia e a monarquia coincidem; mas diferenciam-se muito na
alguém desejar ter liberdade apenas para si, sem que os outros se
fama, porque a fama deriva do povo, e o que por muitos é praticado
libertem de sua obrigação, o que estará ele pedindo senão a
por muitos é elogiado. E portanto afirma-se que aquela mesma coisa
soberania? Pois quem assim está livre de toda obrigação é senhor
que quando o povo a faz é chamada de boa política6, se é o
daqueles que continuam obrigados. Portanto, num Estado popular
monarca quem a pratica diz-se que é devido a ter ele inveja das
os súditos
virtudes de quem ele bane.
não têm mais liberdade do que num monárquico; e o que

162 163
. \

Do Cidadão Domínio

os engana é o fato de terem, naquele, uma igual participação no mos preferida à nossa; ter nossa sabedoria menosprezada à nossa
governo e nos cargos públicos. Pois, quando a autoridade reside no frente; pela incerta exibição de uma mesquinha vanglória, incorrer
povo, os súditos individualmente tomados têm nela uma parte em inimizades certas (que são inevitáveis, quer vençamos, quer
enquanto constituem partes do povo governante; e participam percamos); odiar, e ser odiado, devido ao desacordo entre as
(partake) igualmente dos ofícios públicos, na medida em que têm opiniões; expor nossos conselhos e opiniões secretos a todos, sem
igual voto na escolha dos ministros e magistrados públicos. propósito algum, e sem nenhum benefício; negligenciar os
Foi também isso o que Aristóteles quis dizer, como se negócios de nossa própria família; isto são, digo eu,
costumava em seu tempo, ao erradamente chamar de liberdade ao inconvenientes. Mas não tomar parte numa exibição de espíritos
que é soberania (dominion) (Política, Livro VI, capítulo 2): "Num engenhosos, embora tais exibições sejam agradáveis aos mais
Estado popular há liberdade por definição; o que é o discurso do eloqüentes, não chega a ser um inconveniente sequer para eles, a
vulgo, como se não houvesse liberdade fora daquele Estado." não ser que consideremos que os valentes também sofram um
Disso, por sinal, podemos inferir que aqueles súditos que, numa inconveniente quando são impedidos de lutar, só porque gostam de
monarquia, pranteiam a liberdade que perderam, na verdade apenas fazê-Io.
sofrem com o fato de não estar em suas mãos o leme da República.

10. É infeliz confiar as deliberações políticas às grandes


assembléias, devido à inexperiência da maior parte dos
9. Não constitui uma desvantagem, para os súditos, o homens...
fato de não serem admitidos todos eles à deliberação Além disso, há muitas razões por que os conselhos pequenos
pública deliberam melhor que as grandes assembléias. Uma delas é que,
Mas, por essa mesma razão, talvez alguns afirmem que um para opinar adequadamente sobre todas as coisas que conduzem à
Estado popular deva ser preferido, e muito, a um mo conservação da república, não devemos entender apenas dos
nárquico: porque, quando todos podem pôr a mão nos ne assuntos domésticos, mas também dos negócios estrangeiros; dos
gócios públicos, então têm todos uma oportunidade para mostrar assuntos domésticos, precisamos saber por que bens o país é
sua sabedoria, seus conhecimentos e eloqüência, na decisão dos alimentado e defendido, e onde eles são obtidos; que lugares são
assuntos mais difíceis e relevantes; o que, para quem se destaca adequados para instalar guarnições; por que meios é melhor recru-
nessas faculdades, e que acredita nelas superar aos outros, é a mais tar e manter os soldados; que espécie de afeição os súditos sentem
prazerosa de todas as coisas, devido àquele desejo de ser elogiado por seu príncipe ou pelos governantes de seu país; e muitas outras
coisas análogas; do estrangeiro, devemos saber qual é o poder de
que é congênito à natureza humana. Já numa monarquia, essa via
cada país vizinho, e em que consiste; que vantagem ou
para a obtenção do elogio e da honra está fechada à maior parte
desvantagem podemos receber de cada um deles; quais são suas
dos súditos; e, se isto não for um inconveniente, o que o será? Eu
disposições para conosco, e
vos direi: ter a opinião daquele a quem despreza

164 165
Do Cidadão Domínio

como se sente cada um deles em relação aos demais; e que


desígnios diariamente circulam entre eles. Ora, como num~ grande 12 .... e devido ao facciosismo...
assembléia são muito poucos os que entendem dessas coisas, sendo A terceira razão pela qual é mais difícil opinar bem numa
na maior parte inexperientes (não digo incapazes) no que lhes diz grande assembléia é que dessa forma surgem facções dentro da
respeito, pergunto: com suas opiniões impertinentes, o que um tal república; e, das facções, nascem as sedições e a guerra civil. Pois,
número de conselheiros pode proporcionar para uma boa quando oradores de igual peso se batem com opiniões e discursos
deliberação, a não ser impedimentos e dificuldades? contrários, o vencido odeia o vencedor e todos os que estiveram de
seu lado, mostrando desdém por seu conselho e sabedoria, e
examina todos os meios a seu alcance para tachar a opinião de seus
adversários como prejudicial ao Estado; pois, assim, ele espera vê-
11 .....e devido à eloqüência... los privados de glória, e conquistá-Ia para si. Além disso, quando o
número de votos não é tão desigual que, pelo mero acréscimo de
Outra razão pela qual uma grande assembléia não é muito uns poucos que compartilhem sua opinião, o vencido pode ter a
adequada para uma consulta é que, ao formular sua opinião, cada esperança de numa próxima reunião obter a maioria - neste caso, os
um considera necessário fazer um discurso longo e ininterrupto; e, cabeças do partido se reúnem previamente, escolhem quem deles
para conquistar mais estima entre seus ouvintes, trata de poli-l o e falará primeiro na assembléia, determinam o que dirá cada um, e
adorná-l o com a linguagem melhor e mais agradável. Ora, a em qual ordem, para que o mesmo assunto possa ser trazido nova-
natureza da eloqüência consiste em fazer o bem e o mal, o mente à discussã08: para que assim aquilo que foi aprovado na
vantajoso e o prejudicial, o honesto e o desonesto parecerem ser reunião anterior, pelo número de seus adversários que então
mais ou menos do que efetivamente são; e ainda em fazer o que é estavam presentes, possa agora de certo modo ser anulado, se por
injusto parecer justo, conforme melhor convenha ao fim daquele negligência aqueles se ausentarem. E essa mesma espécie de
que fala. Pois isso é persuadir; e, embora eles raciocinem, contudo diligência e engenho que eles utilizam para constituir um povo é o
não partem de princípios verdadeiros, mas das opiniões aceitas pelo que usualmente se chama uma facçã09. Além disso, se uma facção
vulgo que, em sua maior parte, são errôneas. E não tentam tanto é inferior em sufrágios, mas superior ou não muito inferior em
adequar seu discurso à natureza das coisas de que falam, mas sim às força, aquilo que não consiga obter pela habilidade e a linguagem
paixões daqueles a quem falam. Disso decorre que as opiniões são ela então tenta pela força das armas, e assim chega à guerra civil.
expressas, não pela razão reta, mas por uma certa violência da Alguém poderá dizer, porém, que as coisas não ocorrem assim
mente. O que não é culpa do homem, mas da própria natureza da necessariamente, nem com muita freqüência; mas não será isso o
eloqüência, cuja finalidade, como nos ensinam os mestres da f mesmo que dizer que os cabeças dos partidos não são
retórica, não está na verdade (a não ser ocasionalmente) mas na necessariamente sequiosos de vã glória, e que é raro os maiores
vitória, e cuja propriedade não consiste em informar mas em dentre eles discordarem entre si nos grandes tópicos?
persuadir.

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Do Cidadão Domínio

13 .....e devido à instabilidade das leis... de seus amigos, pais, mulher e filhos, regozijar-se e triunfar ante o
aplauso que lhe dêem por sua hábil conduta. Assim, em tempos
Disto se segue que, quando o poder legislativo reside em antigos, o prazer que Marco Coriolano tinha em suas ações na
assembléias como estas, as leis necessariamente hão de ser guerra consistia em ver o quanto os elogios que ele recebia
inconstantes, e mudarão, não segundo a alteração das agradavam a sua mãe.
circunstâncias, não segundo a mutabilidade das mentes humanas - Mas, se numa democracia o povo conferir o poder de deliberar
mas segundo a maior parte, ora de uma, ora de outra facção, assim sobre as questões de paz e guerra a um só, ou a alguns que sejam
o entender. De modo que as leis então flutuam cá e lá, como se bem poucos, contentando-se de sua parte em nomear os
fosse sobre as águas. magistrados e ministros e públicos - isto é, satisfazendo-se com a
autoridade sem a administração - então terei de confessar que nesse
aspecto serão iguais a democracia e a monarquia.
14. ... e devido a não se guardar sigilo

Em quarto lugar, os debates nas grandes assembléias têm


outro inconveniente: embora com freqüência seja da maior
importância que eles sejam mantidos em segredo, o mais das vezes, 16. Os inconvenientes num Estado que tem por rei uma
porém, são revelados aos inimigos antes que possam resultar em criança
qualquer efeito, e o estrangeiro conhece sua força e vontade tão As conveniências e os inconvenientes que encontramos mais
cedo quanto o seu próprio povo. numa espécie de governo que em outra não se devem ao fato de
que seja melhor cometer o governo, ou a
administração de seus negócios, a um do que a muitos
15. Esses inconvenientes são intrínsecos à democracia, na
ou, inversamente, a muitos do que a um. Pois o governo éo poder,
medida em que os homens naturalmente sentem prazer quando
é bem avaliado o seu espírito a sua administração é o ato. Ora, em todos os tipos de governo o
poder é igual; somente se diferenciam os atos, quer dizer, as ações
Esses inconvenientes que encontramos nas deliberações das e os movimentos de uma república, conforme decorram das
grandes assembléias de tal modo evidenciam a superioridade da deliberações de muitos ou de poucos de homens hábeis ou
monarquia sobre a democracia que, nesse último regime, é mais imprudentes. Disso entendemos que as conveniências e
freqüente que na monarquia confiar os assuntos de maior inconvenientes de qualquer governo não tendem daquele em quem
conseqüência à discussão em comitês pequenos. Nem poderia ser reside a autoridade, mas de seus ministro; e portanto nada impede
de outro modo. Pois não há razão por que cada homem não deva que a república seja bem governada, ainda que o monarca seja uma
naturalmente dar prioridade a seus negócios particulares sobre os mulher, ou um jovem, ou uma criança, desde que os ofícios e
públicos, a não ser que veja, nestes, um meio de manifestar sua elo- cargos públicos sejam atribuídos a quem tenha capacidade para os
qüência, graças ao qual ele possa adquirir reputação por seu negócios. E o dito corrente Pobre o país cujo rei é uma criança
engenho e sabedoria, e assim, de volta a casa, ao seio não significa que a condição de uma

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Domínio
Do Cidadão

melhor é estarmos sujeitos a alguém cujo interesse dependa de


monarquia seja inferior à de um Estado popular, mas, ao contrário,
nossa segurança e bem-estar; e isso sucede quando somos a herança
que, devido àquilo que só por acidente perturba um reino (a saber,
do governante. Pois todo homem de bom grado se empenha por
que o rei seja uma criança), aconteça que por ambição e força
conservar a herança que lhe cabe. Ora, o tesouro do príncipe não se
muitos se intrometam nos conselhos públicos, e assim o governo
constitui apenas das terras e do dinheiro dos súditos, mas também
venha a ser administrado de maneira democrática, e portanto
de seus corpos e mentes audazes - o que será facilmente
sucedam todas aquelas infelicidades que em sua maior parte
reconhecido por todos aqueles que considerarem que grande valor
acompanham a soberania do povo.
se confere ao domínio sobre países pequenos, e como é mais fácil
adquirir-se dinheiro através de homens, do que com o dinheiro
adquirir homens. E não é fácil depararmos com exemplos que nos
mostrem algum súdito, sem nenhuma culpa sua, ter sido despojado
17. O poder dos generais é um sinal evidente da pelo seu príncipe da vida ou dos bens, tão-só pela licença de sua
excelência da monarquia autoridade.
E é um sinal manifesto de que a mais absoluta monarquia é o
melhor estado de governo o fato de que não só os reis, mas até
mesmo as cidades que se sujeitam ao povo ou a uma aristocracia,
concedem o comando completo da guerra a um só, e comando tão 19. Quanto mais a aristocracia tender para a
absoluto que nada o possa exceder (e a propósito devemos notar monarquia, melhor será; e pior quanto mais
que nenhum rei pode conceder a um general autoridade maior sobre se afastar dela
o seu exército do que ele próprio possa legalmente exercer sobre Até aqui comparamos um Estado monárquico a um popular;
todos os seus súditos). A monarquia, por conseguinte, é o melhor de nada falamos da aristocracia. Quanto a esta, podemos concluir,
todos os governos nos campos de batalha. Ora, o que são as pelo que foi dito daqueles dois regimes, que a aristocracia que for
repúblicas, senão tantos acampamentos que se fortalecem com hereditária e na qual for eletiva apenas a nomeação dos
armas e homens um contra o outro, cuja condição (por não sofrer a magistrados; que delegue suas deliberações a poucos, sendo estes
restrição de nenhum poder comum pelo qual possa fazer-se entre os mais capacitados; que simplesmente imite o governo dos
elas sequer uma paz incerta, tal como uma breve trégua) deve ser monarcas o mais, e o do povo o menos, que for possível: será ela
considerada como um estado de natureza, que sabemos ser o estado para os seus súditos melhor e mais duradoura que qualquer outra.
de guerra?

18. A melhor condição para um Estado é quando os súditos


constituem a herança do governante
Finalmente, já que foi necessário para nossa conserva
ção nos submetermos a um homem ou a um conselho, o

171
170
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CAPÍTULO XI

Passagens e Exemplos das Escrituras em


que se Confirma o que Antes se Disse Sobre
os Direitos do Governo1

1. Sobre a origem do governo instituído, com base no


consentimento do povo
De tal modo fizemos a origem do governo instituído ou
político decorrer do consentimento da multidão, no parágrafo 2 do
capítulo VI, que resulta que ou bem devem todos consentir, ou bem
devem ser considerados como inimigos. Esta foi a origem do
governo de Deus sobre os judeus, que Moisés instituiu (Êxodo 19,
5-8): Se diligentemente ouvirdes a minha voz ete. E vos me sereis
um reino sacerdotal ete. E veio Moisés, e chamou os anciãos do
povo etc. Então todo o povo respondeu a uma voz, e disseram:
Tudo o que o Senhor tem falado, faremos.2 Também foi assim que
principiou o poder de Moisés sob o de Deus, ou sua condição de
lugar-tenente de Deus (Êxodo 20, 18-19): E todo o
povo viu os trovões e relâmpagos, e o sonido da buzina ete. E
disseram a Moisés: Fala tu a nós, e te ouviremos3.
Foi ainda dessa mesma forma que se iniciou o reinado de Saul
C1 Samuel12, 12-13): E vendo vós que Nahas, rei dos
filhos de Amon, vinha contra vós, me dissestes: Não, mas reinará
sobre nós um rei, sendo porém o Senhor vosso Deus, o vosso Rei4.
Agora pois vedes aí o rei que elegestes e que pedisteso Mas, como
apenas a maior parte consentiu, e não todos
- pois havia certos filhos de Belial, que disseram C1 Samuel
10, 27): É este o que nos há de livrar? E o desprezaram - os

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Do Cidadão Domínio

que não consentiram foram executados como inimigos. E disse o quando cortou a orla do manto de Saul, disse (1 Samuel 24, 6): O
povo a Samuel (1 Samuelll, 12): Quem é aquele que dizia que Saul Senhor me guarde, disse ele, de que eu faça tal coisa ao meu
não reinaria sobre nós? Dai cá aqueles homens, e os mataremos. senhor, ao ungido do Senhor, estendendo eu a minha mão contra
ele. E ainda (2 Samuell, 15) mandou que fosse executado o
amalequita que, para seu bem, havia matado Saul.

2. A judicatura e as guerras dependem da vontade dos


comandantes supremos
4. Que, sem um poder supremo, não há governo, só
No mesmo capítulo VI, em seus parágrafos 6 e 7, mostrei que anarquia
tanto o julgamento quanto as guerras dependem da vontade e do
prazer5 daquele que detém a autoridade suprema - que, numa O que se afirma em ]uízes 17, 6: Naqueles dias não havia rei
monarquia, é o monarca ou rei; e isso se vê confirmado pelo em Israel: cada qual fazia o que parecia direito aos seus olhos -, o
julgamento do próprio povo. que significa que naqueles dias não havia monarquia, mas sim uma
1 Samuel 8, 20: E nós também seremos como todas as outras anarquia, ou confusão de todas as coisas -, pode ser lembrado como
nações; e o nosso rei nós julgará, e sairá adiante de nos, e um depoimento a mais para provar a excelência da monarquia sobre
fará as nossas guerras. E, quanto aos julgamentos, e a todas as todas as outras formas de governo. A menos que pela palavra rei
outras matérias sobre as quais haja qualquer controvérsia a respeito entendamos, não apenas o governo de um homem só, mas também
do bem e do mal, o mesmo se confirma pelo testemunho do rei o de um conselho - desde que resida, neste, um poder supremo.
Salomão (1 Reis 3, 9): A teu servo pois dá um coração entendido Mas, mesmo se assim o entendermos, ainda se seguirá que sem um
para julgar a teu povo, para que prudentemente possa discernir poder supremo e absoluto (como me esforcei por provar no capítulo
entre o bem e o mal. E pelo de Absalão (2 Samuel 15, 3): Não tens VI) cada homem terá a liberdade de fazer tudo o que tiver em
quem te ouça da parte do rei6. mente, ou qualquer coisa que lhe parecer direita - o que não é com-
patível com a conservação da espécie humana. E por isso, em todo
governo que seja, sempre há um poder supremo que se entende
esteja alocado em alguma parte.
3. Que não podem ser justamente punidos aqueles que têm a
autoridade suprema
O rei Davi igualmente confirma a tese de que os reis não
podem ser punidos por seus súditos, que expusemos acima, no 5. Que servos e filhos devem, a seus senhores e pais, uma
parágrafo 12 do capítulo VI: pois, embora Samuel buscasse matar obediência simples
Davi, este se absteve de matá-Io, e também proibiu Abisai de fazê-
Io, dizendo (o que está em 1 Samuel 26, 9): Nenhum dano lhe Dissemos, no capítulo VIII, parágrafos 7 e 8, que os servos
faças: porque quem estendeu a sua mão contra o ungido do Senhor, devem prestar obediência simples a seus senhores, e no capítulo
e ficou inocente? E IX, parágrafo 7, que os filhos devem a mesma

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Do Cidadão Domínio

obediência a seus pais. São Paulo afirma a mesma coisa no tocante eram ordenados por Deus, e naquele tempo todos os reis exigiam de
aos servos (Colossenses 3,22): Vós, servos, obedecei em tudo a seus súditos absoluta e completa obediência, segue-se que esse seu
vossos senhores segundo a carne, não servindo só na aparência, poder era ordenado de Deus. Ainda, 1 Pedro 2, 13-15: Sujeitai-vos,
como para agradar aos homens, mas em simplicidade de coração, pois, a toda a ordenação hu
mana por amor do Senhor: quer ao rei como superior; quer aos
temendo a Deus. E quanto aos filhos (Colossenses 3, 20): Vós,
governadores, como por ele enviados para castigo dos malfeitores,
filhos, obedecei em tudo a vossos pais; porque isto é agradável ao
e para louvor dos que fazem o bem. Porque assim é a vontade de
Senhor. Ora, como por esta obediência simples entendemos todas
Deus. E de novo São Paulo, na epístola a Tito (cap. 3, v. 1):
as coisas que não sejam contrárias às leis de Deus, da mesma forma
Admoesta-os a que se sujeitem aos principados e potestades, que
devemos entender, nas passagens citadas de São Paulo, que depois da
lhes obedeçam etc. Que principados? Não serão justamente os
expressão em tudo se subentende exceto aquelas coisas que sejam
principados daquele tempo, que exigiam obediência absoluta?
contrárias às leis de Deus.
Além disso, vamos ao exemplo do próprio Cristo, a quem o
reino dos judeus pertencia, por direito hereditário derivado de Davi;
ora, ele, enquanto viveu na condição de súdito, não só pagou tributo
a César, como também declarou que este lhe era devido: Mateus 22,
6. As passagens mais evidentes, do Novo e do Antigo 21: Dai pois a César(disse ele) o que é de César, e a Deus o que é
Testamento, provam a autoridade absoluta de Deus. Já, quando quis mostrar-se como rei, exigiu obediência
Mas, para que eu não precise ir provando os direitos dos absoluta: Mateus 21,2-3: lde(mandou ele) à aldeia que está de
príncipes assim aos pedaços, agora citarei aqueles testemunhos que fronte de vós, e logo encontrareis uma jumenta presa, e um
estabelecem, de uma vez por todas, seu poder inteiro - ou seja, que jumentinho com ela; desprendei-a, e trazei-mos. E, se alguém vos
confirmam que seus súditos lhes devem obediência absoluta e disser alguma coisa, direis que o Senhor os há de
simples. E começo pelo Novo Testamento, em Mateus 23, 2-3: Na mister. Isso ele ordenou, portanto, por seu direito enquanto senhor
cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus. Observa ou rei dos judeus. Porque tirar os bens de um súdito com base
i pois, e pratica i tudo o que vos disserem. "Observai, pois, e apenas nesse enunciado, de que o Senhor os há de mister, ou o
praticai tudo o que disserem", manda Cristo, isto é: prestai-lhe uma Senhor deles necessita, é sinal de ter um poder absoluto.
obediência simples. Por quê? Porque eles estão assentados na Quanto ao Antigo Testamento, as passagens mais evi
cadeira de Moisés- ou seja, na cadeira do magistrado civil, não na dentes são as seguintes. Deuteronômio 5, 27: Chega-te tu, e ouve
tudo o que disser o Senhor nosso Deus: e tu nos dirás tudo o que te
de Aarão, que era sacerdote.
disser o Senhor nosso Deus, e o ouviremos, e o faremos. Na palavra
Romanos 13, 1-2: Toda a alma esteja sujeita às potestades
tudo está contida a obediência absoluta. E o mesmo dizem eles a
superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as
Josué Oosué 1 16-18): Então responderam a Josué, dizendo: Tudo
potestades que há, foram ordenadas por Deus. Por isso quem
quanto nos
resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem
trarão sobre si mesmos a condenação. Assim, como os poderes que
existiam na época de São Paulo

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Do Cidadão Domínio

ordenaste faremos, e onde quer que nos enviares iremos. Como em dote do Senhor. E não se pode provar, por argumento algum, que
tudo ouvimos a Moisés, assim te ouviremos a ti: tão-somente que o esse ato do rei desagradasse ao Senhor; não lemos em parte
Senhor teu Deus esteja contigo, como com Moisés. Todo o homem alguma, nem que Salomão tenha sido reprovado por isso, nem que
que for rebelde à tua boca, e não ouvir as tuas palavras em tudo sua pessoa deixasse, um ceitil que fosse, de ser agradável a Deus.
quanto lhe mandares, morrerá.
E há também a parábola do espinheiro 0uízes 9, 1415): Então
todas as árvores disseram ao espinheiro: Vem tu,
e reina sobre nós. E disse o espinheiro às árvores: Se, na verdade,
me ungis por rei sobre vós, vinde, e confiai-vos debaixo da minha
sombra: mas, se não, saía fogo do espinheiro que consuma os
cedros do Líbano. O sentido dessa parábola é que devemos
aquiescer a tudo o que disserem aqueles a quem constituímos como
reis, dando-Ihes autoridade sobre nós - senão estaremos preferindo
ser consumidos pelo fogo da guerra civil.
Mas onde a autoridade do rei melhor está definida é
nas palavras de Deus mesmo, em 1 Samuel 8,9 ss.: Decla
ra-Ihes qual será o costume8 do rei que houver de reinar sobre eles
etc. Este será o costume do rei que houver de reinar sobre vós: ele
tomará os vossos filhos, e os empregará
para os seus carros, e para seus cavaleiros, para que corram
adiante dos seus carros etc. E tomará as vossas filhas para
perfumistas etc. E tomará o melhor das vossas vinhas, e os dará aos
seus criados etc. Um tal poder não é absoluto? E no entanto foi
Deus mesmo quem o chamou de o direito do rei. E ninguém houve
em Israel, nem sequer o sumo sacerdote, que estivesse isento de tal
obediência. Pois o próprio rei Salomão assim disse ao sacerdote
Abiatar (1 Reis 2, 2627): Para Anatote vai, para os teus campos,
porque és homem digno de morte: porém hoje te não matarei
porquanto levaste a arca do Senhor Deus diante de Davi meu pai e
porquanto foste aflito em tudo quanto meu pai foi aflito. Lançou
pois Salomão fora a Abiatar, para que não fosse sacer

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....

CAPÍTULO XII

Das Causas Internas que Tendem à


Dissolução do Governo1

1. É sediciosa a opinião segundo a qual o julgamento do bem e do


mal pertence aos particulares
Até aqui dissemos por que causas e pactos se constituem as
repúblicas, e que direitos têm os príncipes sobre seus súditos.
Agora, falaremos algo sobre as causas que as dissolvem, isto é,
sobre as razões que levam à sediçào. Ora, assim como no
movimento dos corpos naturais devem ser consideradas três coisas,
a saber, a disposição interna, que faz que o corpo seja suscetível do
movimento que irá produzir-se; o agente externo, por meio do qual
um movimento certo e determinado poderá ser produzido enquanto
ato; e a ação ela mesma; de forma análoga, numa república cujos
súditos comecem a fazer tumultos, três coisas se apresentam a
nosso olhar: primeiro, as doutrinas e paixões contrárias à paz, que
dão às mentes dos homens uma certa conformação e disposição;
depois, a qualidade e condiçào daqueles que incitam, reúnem e
dirigem os outros, assim jáconformados, a tomar em armas e a
renegar sua lealdade;
finalmente, a maneira pela qual isso é praticado, ou seja, a facção
em si mesma.
Mas a primeira e maior coisa que os dispõe à sedição é a tese
de que o conhecimento do bem e do mal compete a cada indivíduo.
Sem dúvida já reconhecemos - no capítulo I, parágrafo 9 - que isso
é verdade no estado de

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Domínio
Do Cidadão

Como se dissesse: como vieste a julgar vergonhosa aquela nudez,


natureza, onde cada homem vive tendo um igual direito, e não se
na qual me pareceu justo criar-te, se não foi arrogando-te a ciência
submeteu ao domínio de outros através de pactos recíprocos. Mas
do bem e do mal?
também mostramos que num Estado civil as leis constituíam as
regras do bem e do mal, do que é justo e injusto, honesto ou
desonesto; e que, portanto, o que o legislador ordene deve ser
2. É sediciosa a opinião segundo a qual os súditos pecam
considerado bom, e mau o que ele proíbe; e o legislador sempre é
obedecendo a seus príncipes
aquela pessoa que detém o poder supremo na república, isto é,
numa monarquia o monarca. Tudo o que alguém cometa contra sua consciência é pecado;
E confirmamos essa verdade no capítulo XI, parágrafo 2, pois quem assim age desrespeita a lei. Mas devemos fazer uma
recorrendo às palavras de Salomão. Pois, se os particulares distinção. Realmente constitui um pecado meu aquilo que, ao
puderem exaltar como bom, e denegrir como mau, o que assim lhes cometer, eu acredite ser meu pecado; mas o que eu acredite ser
parecer, de que servirá então o que ele dis pecado de outrem eu posso às vezes praticar sem com isso pecar.
se: A teu servo pois dá um coração entendido para julgar a Pois, caso me mandem fazer aquilo que constituir pecado de quem
teu povo, para que prudentemente possa discernir entre o bem e o me deu a ordem, se eu obedecer, e se quem ordenou o tiver feito na
mal? Por conseguinte, como discernir o bem do mal compete aos condição de meu senhor, não peco. Assim, se eu travar guerra por
reis, são perversos os adágios, embora correntes, segundo os quais ordem de meu príncipe, embora considere injusto declarar tal
só é rei quem age segundo a justiça, e não se deve obedecer aos guerra, não estarei agindo contra a justiça; serei injusto, isso sim, se
reis a não ser que eles nos ordenem coisas justas, e muitos outros me recusar a guerrear, arrogandome o conhecimento do que é justo
semelhantes. Antes que houvesse governo, não havia justo nem e injusto, que compete apenas a meu príncipe.
injusto, cujas naturezas sempre se referem a alguma ordem. Toda Aqueles que não observam essa distinção hão necessariamente
ação em sua própria natureza era indiferente: depende do direito do de pecar, sempre que lhes for ordenado algo que seja, ou lhes
magistrado ela se tornar justa ou injusta. Os reis legítimos assim pareça ser, ilegal: pois, se obedecerem, pecam contra sua
tornam justas as coisas que eles ordenam, só com ordená-las, e consciência, se não obedecerem, contra o que é direit03. Se
injustas as que eles proíbem, por só proibi-las. Mas os particulares, pecarem contra a consciência, declaram que não temem os
se reivindicam a ciência do bem e do mal, desejam igualar-se aos sofrimentos do mundo por vir; se pecarem contra o direito,
reis, o que não é compatível com a segurança da república. Pois o suprimem, na medida de suas capacidades, a sociedade entre os
mais anti homens e a vida civil neste mundo. Por conseguinte, a opinião
go mandamento de Deus é (Gênesis 2, 17): Da árvore da desses que ensinam que os súditos pecam quando obedecem a
ciência do bem e do mal, dela não comerás; e a mais antiga das
ordens do príncipe que lhes pareçam injustas não só é errônea como
tentações do diabo (Gênesis 3, 5) é: Sereis como Deus2, sabendo o
também deve ser incluída entre aquelas coisas que são contrárias à
bem e o mal; e a primeira censura de Deus ao
obediência civil; e depende daquele erro original que observamos
homem (no versículo 11): Quem te mostrou que estavas nu?
Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses?

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acima, no parágrafo anterior. Pois, reclamando um direito a julgar 4. É sediciosa a opinião segundo a qual estão sujeitos às leis os
do bem e do mal, damos ocasião a que nossa obediência, ou que possuem o poder supremo
desobediência, se converta em pecado em nós.
A quarta opinião inimiga da sociedade civil é a daqueles que
sustentam que também está sujeito às leis civis quem tem o poder
3. É sediciosa a opinião segundo a qual o supremo. Já provamos de maneira suficiente que isso não é
tiranicídio é legal verdade (no capítulo VI, parágrafo 14), porque uma cidade não
pode estar obrigada em relação a si mesma, nem para com nenhum
A terceira doutrina sediciosa provém da mesma raiz; segundo súdito; em relação a si mesma, porque ninguém pode se obrigar a
ela, o tiranicídio é legal. Mais que isso, em nossos dias muitos não ser para com outrem; para com nenhum súdito, porque as
teólogos consideram, e em tempos idos os filósofos todos - Platão, vontades sin
Aristóteles, Cícero, Sêneca, Plutarco e todos os demais defensores gulares dos súditos estão contidas na vontade da cidade, de
das anarquias grega e romana - consideraram que matar o tirano não tal modo que se esta se liberar de toda obrigação dessa espécie, os
era apenas legal, mas até mesmo merecedor de elogio. E, sob o súditos também se libertarão; e por conseguinte ela já está liberada
nome de tirano, eles não designavam apenas aos monarcas, mas a no momento presente. Ora, o que vale para uma cidade deve supor-
todos aqueles que exercessem o poder supremo, em qualquer se igualmente válido para aquele indivíduo ou assembléia que tiver
governo que fosse; assim, em Atenas chamaram tiranos não apenas a suprema autoridade - pois é ele, ou ela, quem constitui a cidade, a
a Pisístrato, mas também àqueles trinta que lhe sucederam, e que qual não dispõe de existência além da que lhe é conferida por seu
governaram juntos. poder supremo.
Mas aquele a quem se quer executar por tirania ou governa A incompatibilidade da opinião citada com a existência
com direito, ou sem este; se não tem direito a governar, é um mesma do governo se evidencia pelo seguinte: se ela fosse válida,
inimigo, e é correto executá-Io; mas então não devemos dizer que a ciência do bem e do mal, quer dizer, a definição do que é
está sendo morto um tirano, e sim um inimigo. Se tem direito, conforme às leis e do que as viola, retornaria a cada indivíduo em
porém, então tem cabimento o interrogatório divin04: Quem te particular. Por conseguinte, deixaria de se prestar obediência toda
mostrou que ele era tirano? Comeste tu da árvore de que te ordenei vez que uma ordem parecesse contrariar as leis civis, e com a
que não comesses? Pois então por que chamas tirano àquele que obediência desapareceria toda jurisdição coercitiva, o que
Deus fez rei, se não for porque tu, embora não passando de um acarretaria, necessariamente, a destruição da própria essência do
mero particular, usurpaste a ciência do bem e do mal? governar. E no entanto esse erro teve grandes defensores,
Podemos assim ver em que larga medida essa opinião é Aristóteles e outros mais,
perniciosa a todos os governos, e especialmente ao monárquico: que, devido à deficiência (infirmity) humana, consideram que é
devido a ela todo rei, seja ele bom ou mau, fica exposto a ser mais seguro confiar o poder supremo às leis apenas. Mas parece
condenado, e depois morto, ao arbítrio de qualquer vilão assassino. estudar muito superficialmente a natureza do governo quem
imagina ser possível deixar por completo às próprias leis o poder
coercitivo, a interpretação das leis e a

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Do Cidadão Domínio

feitura delas (que são, estes, poderes necessariamente inerentes ao respeito à paz e às vantagens desta vida, porém a transferem a
governo). outros nos assuntos referentes à salvação da alma. Ora, como de
Porque, embora possam os súditos, enquanto indivíduos, ir todas as coisas a mais necessária para a salvação e a justiça, sucede
eventualmente a juízo contra o supremo magistrado, e mesmo que se os súditos medirem a justiça não segundo as leis civis (como
contestá-Io nos tribunais, só podem fazê-Io, porém, quando não está deveriam), mas em conformidade aos preceitos e doutrinas de
em pauta o que o magistrado tem o direito de fazer, mas se ele homens que aos olhos do magistrado não passam de particulares ou
declarou, através de uma certa regra, que queria determinada coisa. mesmo de estrangeiros, então, por um mero temor supersticioso,
Assim, quando com base em alguma lei os juízes se reúnem para eles não ousarão cumprir a obediência devida a seus príncipes,
decidir a vida de um súdito, não está em questão se o magistrado, caindo assim, graças ao medo, justamente naquilo que eles mais
com base em seu direito absoluto, pode ou não condená-Io à morte; temiam. Ora, o que pode ser mais pernicioso para um Estado do
mas se a vontade do magistrado, enunciada na lei que os leva a se que ter seus membros, por receio de tormentos intermináveis,
reunirem, é que se chegue a essa sentença; e sua vontade é que ele convencidos a não obedecer ao príncipe, isto é, às leis; ou tê-Ios
deveria ser condenado, se quebrou a lei, e não, se a respeitou. impedidos de ser justos?
Portanto, o fato de que um súdito possa impetrar uma ação em Há ainda outros, que dividem a autoridade suprema re-
juízo contra o magistrado supremo não constitui argumento conhecendo o poder de fazer a guerra e a paz a um só (a quem
suficiente para provar que este último esteja subordinado às leis que chamam de rei), mas confiando o direito de arrecadar dinheiro a
ele próprio fez. Ao contrário: é evidente que ele nào está preso a outros, e não a ele. Mas, como o dinheiro são os nervos da guerra e
suas leis, porque ninguém está preso a si mesmo. As leis, portanto, da paz, aqueles que assim dividem a autoridade ou bem não a
são feitas para Tito e para Caio, não para o governante. Contudo, a dividem em absoluto, conferindo-a inteiramente àqueles em cujo
ambição dos advogados levou muitos homens inexperientes a pen- poder está o dinheiro, mas confundindo o seu nome, ou então, se
sar que as leis não dependem da autoridade do magistrado, mas da realmente dividem a autoridade, nesse caso dissolvem o governo.
prudência deles próprios. Pois nem se pode fazer guerra, em caso de necessidade, nem
preservar a paz pública, se não houver dinheiro.

5. É sediciosa a opinião segundo a qual o poder supremo pode ser 6. É sediciosa a opinião segundo a qual a fé e a santidade não se
dividido adquirem através do estudo e da razão, mas são infundidas e
inspiradas sobrenaturalmente
Em quinto lugar, segundo uma opinião quase sempre fatal para
as repúblicas, a autoridade suprema seria divisível. Mas, devido à Diz uma doutrina corrente que a fé e a santidade não se
diversidade que há entre os homens, eles a dividem de diferentes adquirem pelo estudo, nem pela razão natural, mas sempre são
maneiras. Assim, alguns a repartem de modo a garantir a infundidas e inspiradas aos homens de maneira sobrenatural. Se
supremacia do poder civil no que diz isso fosse verdade, não entendo por que nos

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mandam dar as razões de nossa fé; ou por que qualquer verdadeiro priedade se não foi pelo magistrado? E como a conseguiu o
cristão não seria, também ele, profeta; ou, finalmente, por que cada magistrado, se não foi cada homem lhe transferindo seu direito
homem não julgaria pessoalmente o que é correto ele fazer ou pessoal? E portanto tu também lhe deste o teu direito. Por
evitar, com base em sua só inspiração, em vez de se valer dos conseguinte, só há domínio e propriedade teus na medida estrita em
preceitos de seus superiores ou de sua reta razão. Assim se que ele o quiser, e durarão eles o tempo só que a ele aprouver;
retornaria à ciência privada do bem e do mal, que não pode ser mesmo numa família, todo filho tem bens que são propriedade sua,
reconhecida sem acarretar a ruína de todos os governos. Essa e assim continuam sendo, enquanto o pai o quiser.
opinião se difundiu em tão larga escala por todo o mundo cristão, Mas a maior parte daqueles que professam a prudência civil
que o número dos apóstatas da razão natural se tornou quase infi- argumenta de outro modo; somos iguais (dizem eles) por natureza;
nito. E ela nasceu de homens doentes do cérebro que, tendo não há razão para que qualquer homem tenha melhor direito a tirar
conseguido um bom estoque de dizeres sagrados de tanto lerem as meus bens de mim, do que eu a tirar-lhe os seus; sabemos que às
Escrituras, conectaram-nos de tal maneira em sua pregação usual, vezes é necessário dinheiro para a defesa e preservação da coisa
que esses seus sermões, embora não significassem estritamente pública; mas devem aqueles, que o solicitam, provar-nos que têm
nada, aos homens incultos pareciam porém quase sagrados: pois necessidade do dinheiro, que então lhe daremos com prazer. Ora,
aquele cujo non sense aparece como um discurso divino deve, quem assim fala não sabe que esse procedimento que desejaria
necessariamente, parecer inspirado dos Céus. seguir já foi adotado de início, quando se constituiu o governo, e
que portanto, falando agora da forma que se aplica a uma multidão
informe e não a um governo já constituído, ele destrói sua
constituição (frame).

7. É sediciosa a opinião segundo a qual cada súdito tem


propriedade ou domínio absoluto de seus bens
A sétima doutrina que se opõe ao governar afirma que cada
8. Desconhecer a diferença entre povo e multidão já
súdito tem um domínio absoluto sobre os bens que estão em sua
predispõe à sedição
posse, isto é, tem sobre eles uma propriedade tal que exclui não
apenas o direito de todos os seus concidadãos aos mesmos bens, Em último lugar, constitui um grande perigo para o governo
mas ainda o do próprio magistrado. Isso, contudo, não é verdade: civil, em especial o monárquico, que não se faça suficiente
pois quem está sujeito a um senhor não tem senhorio que lhe seja distinção entre o que é um povo e o que é uma multidão. O povo é
próprio, conforme provamos no capítulo VIII, parágrafo 5. Ora, o uno, tendo uma só vontade, e a ele pode atribuir-se uma ação; mas
magistrado, pela constituição do governo, é senhor de todos. Antes nada disso se pode dizer de uma multidã05. Em qualquer governo é
que se criasse o jugo do governo, ninguém tinha qualquer coisa que o povo quem governa. Pois até nas monarquias é o povo quem
lhe fosse própria: todas as coisas eram comuns a todos. Dize-me manda (porque nesse caso o povo diz sua vontade através da
então: como conseguiste essa pro vontade de um homem), ao passo que a multidão é o mesmo que

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os cidadãos, isto é, que os súditos. Numa democracia e numa poder trabalhar. Assim, no tempo de Esdras, cada um daqueles
aristocracia, os cidadãos são a multidão, mas o povo éa assembléia judeus que construía as muralhas de Jerusalém trabalhava com
governante (the court). E numa monarquia os súditos são a uma mão, e segurava a espada na outra.
multidão, e (embora isso pareça um paradoxo) o rei é o povo. O Em todo governo devemos supor que a mão que segura a
vulgo, e também aqueles que consideram superficialmente essas espada é o rei ou conselho supremo, que deve ser sustentado e
verdades, sempre falam de um grande número de homens como se nutrido pelo cuidado e diligência dos súditos com o mesmo
se tratasse do povo, isto é, da cidade; dizem que a cidade se rebelou empenho que cada um dedica à sua fortuna
contra o rei (o que é impossível), e que o povo quer, e não quer, privada; e que os impostos e tributos nada mais são que a
aquilo que súditos descontentes e queixosos gostariam que fosse paga daqueles que velam armados por nós, para que os trabalhos e
feito, ou que não o fosse, e alegando serem eles o povo incitam os esforços dos indivíduos não sejam prejudicados pela agressão de
cidadãos contra a cidade, isto é, os súditos contra o povo. inimigos; e que as queixas dos que culpam as pessoas públicas pela
E são estas quase todas as opiniões que, corrompendo os sua miséria não são mais justas do que se dissessem que caíram na
súditos, fazem que eles facilmente se revoltem. E na medida em necessidade por terem saldado as suas dívidas.
que, qualquer que seja o governo, a majestade deve ser defendida Mas a maioria dos homens nada considera disso tudo.
por aquele ou aqueles que detêm a autoridade suprema, tais Pois eles sofrem da mesma doença a que chamam de incubus: que,
opiniões aderem naturalmente ao crime de lesa-majestade. causada pela gula, os faz acreditar que estão invadidos, oprimidos
e sufocados por um peso enorme. Ora, écoisa evidente que aqueles
que se sentem esmagados pelo peso todo da república estão
predispostos à sedição, e que aqueles a quem desagrada o atual
estado de coisas têm gosto pela mudança.

9. Uma taxação muito grande, por mais justa e


necessária que seja, predispõe à sedição
Nada aflige tanto a mente do homem quanto a miséria
(poverty), ou a falta daquelas coisas que são necessárias para se 10. A ambição nos dispõe para a sedição
conservar a vida e a honra. E embora ninguém desconheça que as
Outra doença nociva da mente é a daqueles que dispõem de
riquezas se conseguem pela diligência (industry) e se conservam
um grande lazer, mas a quem faltam honra e dignidade. Todos os
pela frugalidade, ainda assim todos os pobres costumam lançar
homens naturalmente se batem pela honra e precedência - porém,
culpa6 sobre o mau governo, escusando sua própria indolência e
mais que todos os outros, aqueles que menos precisam se preocupar
concupiscência, como se tivessem perdido seus bens privados tão-
com as coisas necessárias. Pois estes são convidados, por seu ócio
somente devido às extorsões do poder público. Mas devemos lem-
(vacancy), às vezes a discutirem entre si sobre a república, às vezes
brar que quem não possui patrimônio algum precisa não
a lerem em seu conforto histórias, coisas políticas, discursos,
apenas trabalhar, a fim de viver, mas também lutar, a fim de
poemas e outros livros agradáveis. E sucede que assim eles

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se considerem suficientemente fornidos tanto de espírito (wit) com prazer concordam em obedecer - não por estarem obrigados e
quanto de conhecimento para poderem administrar os negócios da sujeitos a suas ordens (pois, neste mesmo capítulo, já supusemos
maior importância. Ora, como os homens não são o que parecem a que essa espécie de homens não compreende que possa estar
si mesmos, e ainda que o fossem (devido a seu grande número) não obrigada a nada além daquilo que a seus próprios olhos parece ser
poderiam todos ser empregados nos cargos públicos, certo ou errado), mas por alguma opinião que tenham eles de sua
necessariamente ocorre que muitos sejam preteridos. Estes, virtude, ou habilidade militar, ou semelhança de humores. Se esses
portanto, considerando-se ofendidos, nada mais hão de querer, em quatro elementos estiverem ao alcance de homens agravados pelo
parte por inveja daqueles por quem foram preteridos, em parte por presente estado de coisas, e que medem a justiça do que praticam
esperança de os vencerem, do que assistir ao fracasso dos negócios por seu próprio juízo, nada mais faltará para a sedição e confusão
públicos. E por isso não estranha que eles procurem, com apetite do reino, a não ser alguém que os açule e incite.
voraz, todas as ocasiões de inovação.

11. E o mesmo faz a esperança de sucesso 12. A eloqüência, desprovida de sabedoria, é a única
faculdade necessária para causar sedições
A esperança de vencer também deve ser incluída entre outros
motivos que inclinam à sedição. Pois, por mais numerosos que Salústio assim nos descreve Catilina (homem sem rival, em
sejam os homens infestados por opiniões avessas à paz e ao nenhuma época, na arte de promover sedições): ele tinha grande
governo civil, por mais numerosos que possam ser também os que eloqüência e parca sabedoria. Salústio distingue a sabedoria da
foram feridos e magoados pelas afrontas e calúnias dos que eloqüência, entendendo que esta última é necessária a quem nasce
governam, contudo, se não sentirem eles a esperança de terem para as perturbações e considerando a primeira como mestra da paz
consigo os melhores, ou se a esperança que tiverem não for e da serenidade.
bastante, cada qual dissimulará o que medita e preferirá suportar o Mas a eloqüência tem dois aspectos. O primeiro é o de uma
seu fardo atual a arriscar-se a sofrer um peso maior. expressão elegante e clara do que a mente concebe, e nasce em
São quatro as coisas necessárias para haver essa esperança: parte da contemplação das coisas mesmas, em parte da
número, instrumentos, confiança recíproca e comandantes. Resistir compreensão das palavras consideradas em seu significado próprio
ao magistrado público sem dispor de um grande número não é e definido. O outro é uma comoção das paixões da mente (tais
sedição, é desespero. Por instrumentos de guerra me refiro a toda como a esperança, o medo, a ira, a piedade) e deriva de um uso
espécie de armas, munição e outras provisões necessárias, sem as metafórico de palavras adequadas às paixões. O primeiro elabora
quais o número nada pode; nem podem as armas, se não houver um discurso a partir de princípios verdadeiros; o segundo parte de
confiança recíproca; nem podem todos estes somados, se não opiniões já recebidas, de qualquer natureza que sejam. A arte do
houver união sob as ordens de algum comandante, a quem todos primeiro é a lógica, do segundo a retórica; o fim daquele é a
verdade, deste a vitória. Cada qual tem seu uso, um em de

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Do Cidadão Domínio

liberações, outro em exortações; pois aquele nunca se desliga da que desejam converter em ato essa disposição põem seu total
sabedoria, este quase sempre. empenho no seguinte: primeiro, em reunir numa facção de
E que essa espécie de eloqüência poderosa, que se aparta do conspiradores todos os que estejam mal dispostos para com o
verdadeiro conhecimento das coisas, ou seja, da sabedoria, é o governo; segundo, em serem eles próprios os dirigentes de tal
verdadeiro caráter daqueles que solicitam e instigam o povo às facção. Eles formam a facção ao se fazerem relatores e intérpretes
inovações, eis o que pode ser facilmente induzido do trabalho das opiniões e ações daqueles indivíduos, e ao designarem pessoas
mesmo que eles têm de fazer. Pois eles não conseguiriam e lugares para que se reúnam e deliberem daquelas coisas pelas
envenenar o povo com aquelas opiniões absurdas contrárias à paz e quais o atual governo possa ser reformado, conforme melhor
à sociedade civil, a não ser que eles mesmos as compartilhassem, o convier a seus interesses. Assim, para que eles possam ter o poder
que certamente é uma ignorância maior do que pode atingir supremo dentro da facção, é preciso que formem uma facção no
qualquer homem sábio. Pois quem não sabe de onde as leis derivam interior da facção, isto é, que mantenham reuniões secretas com
sua força, que é das regras do justo e do injusto, do honesto e do apenas uns poucos, onde possam organizar o que posteriormente
desonesto, do bem e do mal; quem não sabe o que faz e conserva a será proposto numa reunião geral, e por quem, e sobre que tópico, e
paz entre os homens, nem o que a destrói; o que é seu, o que de em que ordem cada um deles haverá de falar, e como poderão eles
outrem; finalmente, quem não sabe o que ele próprio gostaria que trazer para o seu lado os membros mais poderosos e mais populares
lhe fizessem (para que ele possa fazer o mesmo aos outros): este, da facção. E assim, quando tiverem constituído uma facção grande
certamente, deve ser considerado apenas mediocremente sábio. Mas o bastante, na qual possam governar pela eloqüência, eles a
tornar os seus ouvintes de tolos em loucos; fazer que as coisas incitarão a conquistar a administração dos negócios.
pareçam ainda piores a quem já andava maldisposto, e a quem Dessa forma eventualmente vêm eles a oprimir a república,
quando não há outra facção que se possa opor à sua; mas o mais das
estava bem-disposto pareçam más; ampliar suas esperanças e
vezes eles a dilaceram, e dão início a uma guerra civil. Pois a
reduzir os perigos que correm, mais do que permite a razão: isso
loucura e a eloqüência concorrem ambas para subverter o governo,
tudo eles devem àquela espécie de eloqüência, não a que explica as
da mesma maneira que - narra a fábula - as filhas de Peléas, rei da
coisas como são, mas à outra, que comovendo suas mentes faz
Tessália, conspiraram com Medéia contra seu pai. Querendo
todas as coisas parecerem ser tal como suas mentes já antes
revigorar o velho decrépito e devolver-lhe a juventude, elas, a
predispostas tinham imaginado que fossem.
conselho de Medéia, cortaram-no em pedaços, que puseram a ferver
na água, esperando - em vão - que ele viesse a reviver. Da mesma
forma, o vulgo, desejando por loucura (como as filhas de Peléas)
renovar o governo já velho, e arrastado pela eloqüência de homens
13. Como a loucura do vulgo e a eloqüência dos ambiciosos, como elas o foram pelo feitiço de Medéia, divide-se
ambiciosos concorrem para a destruição da república em facções, e o resultado é que mais facilmente consome a
república em chamas do que a reforma.
Muitos, que pessoalmente se sentem bem afeiçoados à
sociedade civil, contribuem porém por ignorância para predispor as
mentes dos súditos à sedição, quando ensinam uma doutrina
conforme às opiniões acima referidas, aos moços nas escolas, e a
todos nos púlpitos. E então aqueles

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CAPÍTULO XIII

Dos Deveres de Quem GovernaI

1. o direito à autoridade suprema distingue-se de seu


exercício
Pelo que até agora dissemos, está evidente quais são os
deveres dos cidadãos e súditos em qualquer espécie de governo, e
que poder tem sobre eles o governante supremo. Mas ainda não
dissemos nada sobre os deveres dos governantes, e de que maneira
eles devem se portar para com seus súditos. Precisamos, portanto,
distinguir o direito e o exercício da autoridade suprema, porque
estes podem ser separados - como, por exemplo, quando quem tem
o direito de judicatura não puder ou não quiser estar presente no
julgamento de delitos (trespasses), ou na deliberação dos negócios.
Porque às vezes os reis, devido à sua idade, não podem cuidar de
seus negócios; outras vezes, embora possam fazê-Io, não obstante
julgam mais adequado exercer seu poder através de conselheiros e
ministros por eles escolhidos. Ora, quando o direito e o exercício
assim se encontram separados, o governo da república é como o
governo ordinário do mundo, no qual Deus, o motor de todas as
coisas, produz efeitos naturais por meio de causas secundárias.
Mas, quando aquele a quem pertence o direito de governar
está presente em todos os julgamentos, deliberações e ações
públicas, então a administração é tal como se Deus, afora o curso
ordinário da natureza, cuidasse imediatamente

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Do Cidadão Domínio

de todos os negócios. Neste capítulo, portanto, falaremos suscinta e a multidão dos súditos, ou os governados. Pois a cidade não foi
resumidamente dos deveres de quem exerce autoridade, não instituída para o bem de si mesma, mas para o dos súditos; e no
importa se por seu direito próprio ou pelo de outrem. E não é meu entanto não se exige que ela cuide em particular de tal ou qual
propósito entrar naquelas coisas que alguns príncipes podem fazer, homem. Pois o governante (enquanto tal)
e outros não - porque tal assunto se pode deixar às práticas políticas não cuida da segurança de seu povo a não ser por meio de
de cada república. suas leis, que são universais; e por conseguinte se desincumbe de
tudo o que deve caso se esforce e empenhe, por leis salutares, em
estabelecer o bem-estar (welfare) da maior parte, e em fazê-Io
tão duradouro quanto for possível - de modo que ninguém sofra
2. A segurança do povo é a suprema lei2 males, se não for por culpa própria, ou por algum acaso que não
Todos os deveres dos governantes estão contidos nesta única pudesse ser prevenido. Contudo, às vezes é necessário, para a
sentença: a segurança do povo é a lei suprema. Porque - embora os segurança da maioria, que os perversos sofram.
que obtenham o maior domínio em meio aos homens não possam
estar sujeitos às leis propriamente ditas, isto é, à vontade dos
homens, porque ser chefe e ser súdito são coisas contraditórias -
têm eles porém em todas as coisas o dever, na medida de suas 4. Por segurança se entende toda a espécie de conforto
possibilidades, de obedecer à razão reta, que é a lei natural, moral e
divina. E por segurança se deve entender não a mera preservação da
Assim, como o domínio foi constituído para proporcionar a vida em qualquer condição que seja, mas com vistas à sua
paz, e a paz foi procurada para o bem da sociedade, todo aquele felicidade. Pois os homens se reuniram livremente e instituíram um
que, numa posição de autoridade, agir contra as razões da paz - ou governo a fim de poderem, na medida em que o permitisse sua
seja, contra as leis de natureza - estará usando seu poder para condição humana, viver agradavelmente. Portanto, quem assumiu a
um fim que não é o da segurança do povo. E ainda, tal como a administração do poder nessa espécie de governo pecaria contra a
segurança do povo dita a lei através da qual os príncipes aprendem lei de natureza (porque pecaria contra a confiança dos que lhe
qual é o seu dever, também ela lhes ensina uma arte que haverá de confiaram tal poder), se não estudasse os meios, que forem viáveis
proporcionar benefícios a eles próprios; pois o poder dos cidadãos é através de boas leis, para aprovisionar em abundância os súditos
não apenas com as boas coisas relativas à vida, mas também com
o poder da cidade, isto é, daquele que tem a regra suprema na
aquelas que aumentam o seu conforto (delectation). Já os que
cidade.
adquiriram o domínio pelas armas desejam, todos, que seus súditos
sejam fortes de corpo e mente, para que melhor os possam servir.
Por isso, se não se empenharem em abastecê-l os não apenas das
3. Cabe aos príncipes considerar o benefício comum de muitos, coisas que lhes são necessárias para viver, mas também daquelas
não o interesse particular de tal ou qual homem graças às quais possam se tornar fortes e robustos, estarão agindo
contra seu próprio escopo e fim.
Por povo, nesta passagem, não entendemos uma pes
soa civil - a saber, a própria cidade ou o governante -, mas

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Do Cidadão Domínio

5. Uma difícil questão: se é dever dos príncipes cuidar da salvação


7. Espias são necessários à segurança do povo
das almas de seus súditos, conforme julgarem melhor segundo a
sua consciência Duas coisas há que são necessárias à defesa do povo: ser
prevenido e estar previamente armado. Pois as repúblicas, se
E, em primeiro lugar, acreditam os príncipes que a principal
consideradas em si mesmas, estão no estado de natureza, isto é, de
questão referente à salvação eterna consiste em que opinião se tem
hostilidade recíproca. E, mesmo que elas se abstenham de lutar,
da Divindade, e por que maneira de culto deve ela ser adorada. Isso
isso não se deve chamar paz, mas antes um tempo para respirar, no
se supondo, podemos perguntar se os governantes - seja quem qual um inimigo, observando o movimento do outro e como este se
for, um ou mais, que exerça a autoridade suprema - não pecarão porta, avalia sua segurança não em função dos pactos, mas das
contra a lei de natureza, se deixarem de ordenar que seja ensinada e forças e desígnios do adversário. E isso se faz conformemente ao
praticada a doutrina e culto que, segundo a sua fé, necessariamente direito natural, como se mostrou no capítulo 11, parágrafo 11,
conduz à salvação eterna de seus súditos (ou se permitirem que uma porque os contratos são inválidos no estado de natureza sempre
doutrina e culto contrários sejam ensinados e praticados). É que intervier qualquer medo justificado.
manifesto que nesse caso atuam contra sua própria consciência, e Portanto, é necessário, para a defesa da cidade, primeiro, que
que então querem, na medida em que isso deles depende, a perdição haja alguns que possam investigar e descobrir
eterna de seus súditos: pois, se não a desejassem, não vejo razão por todos os desígnios e atos que for possível daqueles que
que tolerariam (pois, sendo soberanos, a tanto não estão obrigados) possam causar-lhe dano. Pois aqueles que os revelam a ministros
que sejam pregadas e cometidas coisas devido às quais eles acre- de Estado são como os raios do sol para a alma humana. E na visão
ditam estar em estado de perdição. Mas deixaremos essa dificuldade política é mais correto, do que na natural, afirmar que as species3
em suspenso. sensíveis e inteligíveis das coisas externas, imperceptíveis, são
transportadas pelo ar até o chão (isto é, até aqueles que possuem a
autoridade suprema) e portanto não são menos necessárias à
preservação do Estado do que os raios de luz o são à conservação
do homem. Ou podemos compará-los a teias de aranhas, que,
estendidas para todos os lados pelos mais finos fios, as previnem
6. Em que consiste a segurança do povo
de qualquer movimento externo, enquanto elas estão escondidas
As comodidades (benefits) dos súditos a respeito somente em seus pequenos buracos. Quem exerce o poder não pode saber o
desta vida podem ser distribuídas em quatro categorias: 1. Serem que é necessário mandar para a defesa dos súditos se não tiver
defendidos contra inimigos externos. 2. Ter preservada a paz em espias, da mesma forma que sem o movimento de seus fios essas
seu país. 3. Enriquecerem-se tanto quanto for compatível com a f
aranhas (spiders) não podem saber quando devem sair, nem se
segurança pública. 4. Poderem desfrutar de uma liberdade devem consertar.
inofensiva. Isso porque os governantes supremos não podem
contribuir em nada mais para a sua felicidade civil do que,
preservando-os das guerras externas e civis, capacitá-l os a
serenamente desfrutar da riqueza que tiverem adquirido por sua
própria diligência.

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Do Cidadão Domínio

8. Também é necessário, para a defesa do povo, dispor de lei de natureza os príncipes estão obrigados a pôr seu total
soldados, de armas, guarnições e dinheiro já em tempo de empenho na consecução do bem-estar de seus súditos, segue-se que
paz não apenas é legal eles empregarem espias, manterem soldados,
construírem fortes e exigirem dinheiro para essas finalidades; mas
Além disso, outro requisito necessário para a defesa do povo é também que deixar de fazê-Io é contra a lei. A isso também se pode
que ele esteja previamente armado. Estar armado previamente é ter acrescentar o que quer que pareça conduzir, seja pela astúcia, seja
uma provisão de soldados, armas, navios, fortes e dinheiro antes pela força, à diminuição do poder dos estrangeiros de quem eles
que o perigo se torne premente; pois, depois que o golpe foi suspeitam. Pois os governantes estão obrigados, por seu poder, a
desferido, é tarde demais, senão impossível, para alistar soldados e impedir os males de que suspeitem, para evitar que porventura
tomar em armas. Da mesma forma, deixar de erguer fortes ou de venham eles a suceder devido a sua negligência.
instalar guarnições nos lugares adequados, antes que as fronteiras
sejam invadidas, é proceder como aqueles jovens rústicos (de quem
fala Demóstenes) que, tudo ignorando da arte da esgrima, com seus
escudos guardavam aquelas partes do corpo onde já haviam sentido
9. Uma correta instrução dos súditos quanto às doutrinas
o golpe do inimigo.
políticas é mais um requisito para a
E, quanto aos que pensam que quando o perigo começa a se
conservação da paz
mostrar ainda é tempo para juntar o dinheiro destinado à
manutenção dos soldados e a outras despesas de guerra, é porque Muitas coisas, porém, são necessárias para a conservação da paz
não consideram o quanto é difícil arrancar de um momento para interna, uma vez que são muitas as coisas
outro, de homens de mão tão cerrada, uma soma tão grande de como já vimos no capítulo anterior - que concorrem para
dinheiro. Pois quase todos os homens, o que eles uma vez tenham perturbá-Ia. Mostramos, assim, que há algumas coisas que
arrolado entre seus bens, desde então julgam ter-lhe um direito e predispõem as mentes à sedição, e outras que ativam e aceleram
propriedade tais que se imaginam injuriados sempre que se vejam quem já se encontra predisposto a tanto. Dentre as coisas que os
forçados a utilizar a mais ínfima parte dele para o bem público. predispõem, citamos em primeiro lugar certas doutrinas perversas.
Além disso, uma quantia suficiente de dinheiro para defender o país É portanto dever daqueles que têm a autoridade suprema extirpá-
pelas armas não será levantada rapidamente do tesouro das taxas Ias das mentes, não dando ordens, mas pelo ensino; não pelo terror
(imposts) e alfândegas4. dos castigos, mas pela perspicuidade das razões.
Devemos portanto, por temor à guerra, armazenar grandes As leis pelas quais se poderá resistir a esse mal não devem,
somas em tempo de paz, se temos em mira a segurança da pois, ser editadas contra as pessoas que errem, mas contra os
república. Por conseguinte, já que necessariamente compete aos próprios erros. Os erros que, no capítulo anterior, afirmamos serem
governantes, para segurança dos súditos, descobrir quais são os incompatíveis com a paz da república, insinuaram-se na mente dos
desígnios do inimigo, manter guarnições e ter dinheiro sempre à sua ignorantes em parte vindo do púlpito, em parte dos discursos
disposição, e já que pela diários de outros homens, que, tendo pouco o que fazer, assim
encontram lazer sufi

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ciente para estudar; e por sua vez ingressaram na mente destes retirarem, se tornará bastante pesado, e mesmo intolerável para os
homens devido aos mestres que lhes ensinaram quando, jovens, que ficarem: os homens, aliás, não tendem a se queixar tanto do
cursavam escolas públicas. Inversamente, pela mesma razão, se fardo, quanto de sua desigualdade. Com muita diligência, portanto,
alguém quiser apresentar uma doutrina sadia, deverá começar pela os homens lutam para escapar aos impostos; e neste conflito os
reforma das academias5. Nelas as fundações verdadeiras e menos felizes, por perderem, sentem inveja dos mais afortunados.
veramente demonstradas da doutrina política devem ser depostas, Para eliminar toda queixa justa, é portanto do interesse da paz
para que, delas se imbuindo os moços, eles possam depois instruir o pública, e se refere assim ao dever do magistrado, cuidar que os
vulgo tanto em público quanto em particular. E isso eles farão com encargos públicos sejam distribuídos de forma igual. Ademais,
ainda mais prazer e vigor se eles próprios estiverem intimamente como o que os súditos dão para uso público nada mais é que o
convencidos da verdade destas coisas que professarem e ensinarem. preço que eles pagam pela paz que compraram, há uma boa razão
Pois, considerando que em nossos dias muitos aceitam até mesmo para que os que têm um igual quinhão de paz tenham, também,
proposições falsas, e que não são mais inteligíveis do que se alguém partes iguais a pagar, quer contribuam com seu dinheiro, quer com
juntasse um conjunto de termos extraídos de uma urna ao acaso: seu trabalho, para a república. E manda a lei de natureza (segundo o
pela mesma razão não darão eles muito mais confiança a doutrinas capítulo III, parágrafo 15) que todo homem, ao distribuir o direito
verdadeiras, adequadas a seu entendimento e à natureza das coisas? aos outros, se considere igual a todos. Por isso, a lei natural obriga
Concebo, portanto, que é dever dos magistrados supremos fazer que os governantes a dividirem os encargos da república igualmente
os elementos verdadeiros da doutrina civil sejam postos por escrito, entre seus súditos.
e ordenar que sejam ensinados em todos os colégios de seus vários
domínios.

11. Manda a eqüidade natural que os impostos sejam


cobrados segundo o que cada um gasta, não segundo
10. Uma igual repartição dos encargos públicos o que ele possui
contribui, e muito, para a preservação da paz
Mas nesta passagem entendemos uma igualdade que
Mostramos, depois, que a necessidade (want) torna os súditos não é de dinheiro, porém de encargos: isto é, uma proporção
mentalmente predispostos à sedição - necessidade, que, embora (equality of reason) entre os encargos e os benefícios. Pois,
resultante de sua própria concupiscência e indolência, eles contudo embora toda igualdade desfrute de paz, contudo os benefícios que
atribuem a quem governa o reino, como se os súditos fossem desta provêm não são iguais para todos: pois alguns obtêm posses
exauridos e oprimidos pela concessão de favores públicos. Pode, maiores, outros menores; e, além disso, uns consomem menos,
contudo, ocorrer às vezes que essa queixa seja justa, a saber, outros mais. Pode-se portanto indagar se os súditos deveriam
quando pelos encargos do reino os súditos são desigualmente contribuir para o bem público conforme a taxa do que ganham, ou
tributados. Pois aquilo que dividido por todos é um peso leve, se do que gastam - isto é, se as pessoas devem ser tributadas de modo
muitos se a

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Do Cidadão Dominio

pagar a contribuição segundo sua riqueza, ou se devem ser dem pôr-Ih_e uma tal ordem que os homens aprendam que a via para a
tributados os próprios bens, de modo que cada qual contribui honra não está em desacatar o governo existente, nem em promover
segundo o que ele despende. Mas consideremos que, onde os facções ou cortejar a reputação Cair) popular, mas exatamente no
tributos são cobrados com base na riqueza, os que ganharam a contrário.
mesma coisa não têm posses iguais, porque, enquanto um conserva São bons os que observam os decretos, as leis e os direitos de
o que adquiriu por ser frugal, outro o dilapida por luxúria, e seus pais. Se, mantendo uma ordem constante, nós os víssemos
portanto, embora ambos se deleitem igualmente com o benefício da ornados de honras, enquanto os facciosos fossem punidos e
paz, não arcam de forma igual com os encargos da república; e desdenhados por aqueles que têm o poder, haveria mais ambição
consideremos, por outro lado, que, lá onde os bens são taxados, em obedecer do que em desobedecer. É verdade que acontece,
cada indivíduo, ao gastar, no próprio ato de consumir os bens eventualmente, assim como precisamos afagar um cavalo que não
jápaga a parte devida à república sem sequer distingui-Ia do restante foi domado, que seja preciso adular um súdito muito altivo por
que despende, e que paga não segundo o que possui, mas segundo o medo a seu poder; mas isso sucede da mesma forma ao cavaleiro e
benefício que teve graças ao reino. Não cabem mais dúvidas, então, ao governante, isto é, quando estão em perigo de cair. Falávamos
aqui, porém, daqueles cuja autoridade se conserva inteira; o dever
de que o primeiro meio de lançar impostos é contrário à eqüidade, e
deles, dizia eu, reside em tratar bem os súditos obedientes, e em
portanto contrário ao dever do governante - ao passo que o segundo
reduzir os facciosos na medida do possível. Não há outra maneira
é adequado à razão, e ao exercício da autoridade de quem governa.
de preservar o poder público, nem de conservar a paz dos súditos.

12. Reprimir os ambiciosos contribui para se 13 .....e também dissolver as facções


conservar a paz...
Mas, se é dever dos príncipes conter os facciosos, dever ainda
Afirmamos, em terceiro lugar, que aquela perturbação da muito maior é dissolver e eliminar as próprias facções. E chamo de
mente que deriva da ambição ofendia a paz pública. Pois há alguns facção a uma multidão de súditos reunidos, seja por contratos
que, parecendo a seus próprios olhos ser mais sábios do que os recíprocos firmados entre si, seja pelo poder de alguém, sem a
outros, e mais aptos para a direção dos negócios do que aqueles que autoridade daquele ou daqueles a quem cabe a autoridade suprema.
atualmente governam, quando não podem mostrar de outro modo Uma facção, portanto, é como se fosse uma cidade dentro da
como sua virtude será proveitosa à república tentam mostrá-Io cidade: pois, assim como no estado de natureza a cidade recebe a
causando-lhe mal. Mas, dado que a ambição e a avidez pelas hon- existência graças a uma uni~Q de homens, aqui, por uma nova
rarias não podem ser extirpadas das mentes humanas, não constitui união os homens, nasce uma facção. Segundo esta definição, uma
dever dos governantes tentar fazê-Io; porém, pela constante multidão de súditos que se obrigaram simplesmente a obedecer a
distribuição de recompensas e castigos, eles po qualquer príncipe ou súdito estran

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Do Cidadão Domínio

geiro, ou que fizeram quaisquer pactos ou ligas de defesa mútua o quarto fator, a saber, a guerra, era incluído em tempos
entre si contra todos os demais, sem excetuar sequer os que detêm o passados entre as artes de ganho, sob o nome de pilhagem ou
poder supremo na cidade, constitui uma facção. Igualmente o favor rapina; e a humanidade - dispersa em famílias, antes de se
junto ao vulgo porta a facção no seu seio, se for tão grande que constituírem as sociedades civis - considerava-a justa e honrosa.
permita reunir um exército, a menos que sejam dadas garantias Pois fazer rapina nada mais é que travar uma guerra com forças
públicas, como por exemplo quando se entregam reféns ou se pequenas. E grandes Estados, como Roma e Atenas, eventualmente
empenha algo equivalente. O mesmo também se pode dizer da melhoraram tanto a república, graças aos despojos de guerra, ao
riqueza privada, se for excessiva, porque todas as coisas obedecem tributo externo e aos territórios que adquiriram pela força das
ao dinheiro. Por isso, na mesma medida em que é verdade que as armas, que não apenas cessaram de exigir qualquer imposto dos
cidades mantêm entre si uma condição natural e de guerra, aqueles seus súditos mais pobres, como até mesmo repartiram terra e
príncipes que toleram facções fazem o mesmo que se recebessem dinheiro entre estes últimos. Mas uma tal espécie de enriquecimento
um inimigo dentro de suas muralhas, o que é contrário à segurança não deve ser tornada em regra e modelo. Pois a guerra, enquanto
dos súditos e, portanto, à lei de natureza. meio de lucro, é como um jogo de dados no qual muitos perdem
seus bens, porém poucos os aumentam.
Portanto, já que há apenas três coisas - os frutos da terra e da
água, o labor e a frugalidade - que são convenientes para o
enriquecimento dos súditos, o dever dos comandantes supremos
dirá respeito a elas, somente. Quanto aos frutos da terra e do mar,
14. Leis que incentivem o trabalho dos artesãos e
serão úteis as leis favorecendo as artes que aprimorem o progresso
moderem gastos ostentatórios contribuem para os súditos Cincrease) da terra e da água, como é o caso da lavoura e da pesca.
enriquecerem Quanto ao segundo fator, são proveitosas todas as leis que combate-
Há duas coisas necessárias para o enriquecimento dos súditos, rem a indolência, e que incentivarem a diligência Cindustry); a arte
o labor e a frugalidade. Há também uma terceira que ajuda, a saber, da navegação - graças à qual uma cidade recebe mercadorias do
o acréscimo natural da terra e da água. E ainda há uma quarta, a mundo inteiro, compradas quase que apenas pelo trabalho - e a
guerra (the militia), que às vezes aumenta, mas com maior mecânica - nome pelo qual compreendo as artes dos mais capazes
freqüência diminui, as posses dos súditos. Somente as duas artesãos - são tidas na estima e honra que merecem. No que diz
primeiras são necessárias. Assim uma cidade constituída numa ilha respeito ao terceiro fator, são úteis aquelas leis pelas quais se proíbe
do mar, de tamanho apenas suficiente para conter as casas de seus todo gasto desordenado, tanto em comida quanto em roupas, e de
habitantes, poderá enriquecer-se sem a lavoura nem a pesca, através modo geral em todas as coisas que se consomem com o uso. Assim,
tão-somente do comércio e de artesanato; mas não hádúvida, se ela como tais leis são benéficas para os fins acima especificados,
tivesse um território maior, que o mesmo número de habitantes também é ofício dos magistrados supremos decretá-Ias.
poderia tornar-se ainda mais rico, ou, fossem eles em maior
número, pelo menos manter a mesma riqueza.

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Do Cidadão Domínio

15. As leis não devem determinar mais do que for exigido que seja fácil recordar, e que proíbam coisas que a razão não veda,
pelo bem do príncipe e de seus súditos nem a necessidade (necessity), então eles inevitavelmente recairão,
por ignorância e sem a menor má intenção, nas sanções das leis,
A liberdade dos súditos não consiste em estarem imunes às como se estas fossem ciladas armadas contra a sua liberdade
leis da cidade, ou em haver restrições que impeçam os detentores inofensiva; e, pelas leis da natureza, os comandantes supremos
do poder supremo de fazer as leis que quiserem. Mas, como nunca estão obrigados a conservar para seus súditos essa liberdade.
os movimentos e ações dos súditos se vêem circunscritos, todos,
por leis - nem poderiam selo, devido à sua diversidade -,
forçosamente haverá um número infinito de casos que não são
ordenados, nem proibidos, mas nos quais cada um pode fazer ou
16. Não se deve infligir castigo maior do que o
deixar de fazer o que bem entender. Nestes, diz-se que cada qual
previsto na lei
goza de liberdade; e é neste sentido que se deve entender liberdade
nesta passagem, a saber, como aquela parte do direito de natureZa Constitui parte substancial dessa liberdade, que é inofensiva
que é reconhecida e deixada aos súditos pelas leis civis. Assim ao governo civil, e necessária para que cada súdito viva em
como a água, quando está cercada de todos os lados por margens, felicidade, que não haja penalidades a temer, a não ser as que ele
estagna e se corrompe, e quando não tem limites se espraia demais, possa tanto antever quanto esperar; e isso sucede, quando não há
e quanto mais passagens en castigo algum definido pelas leis, ou não se pedem maiores do que
contra mais livremente toma seu curso, também os súditos, elas estabeleceram. Quando a lei não define a punição, quem for o
se nada pudessem fazer sem a ordem da lei, se tornariam primeiro a violá-Ia aguarda um castigo indefinido ou arbitrário; e
enfadonhos e pesados, e se tudo pudessem se dispersariam; assim, esse seu temor supõe-se que seja ilimitado, porque se refere a um
quanto mais coisas não forem determinadas pelas leis, de mais mal sem limites. Ora, a lei de natureza manda aos que não estão
liberdade eles desfrutam. sujeitos a nenhuma lei civil (pelo que dissemos no capítulo III,
Ambos os extremos são defeituosos: pois as leis não foram parágrafo 11), ou seja, aos comandantes supremos, que quando
inventadas para suprimir as ações dos homens, e sim para dirigi-Ias, castigarem ou se vingarem não considerem tanto o mal passado e
assim como a natureza ordenou as margens, não para deter, mas sim o bem futuro; e comete pecado quem se vale de qualquer outra
para guiar o curso das águas. A medida desta liberdade deve ser medida, que o benefício público, ao infligir um castigo arbitrário.
retirada do bem dos súditos e da cidade. Assim, em primeiro lugar, Já onde a punição está definida, seja prescrita por uma lei,
vai contra o ofício daqueles que mandam e têm a autoridade de como quando está dito em termos os mais claros que quem fizer
legislar que haja mais leis do que sejam necessárias ao serviço e ao isso ou aquilo sofrerá assim e assim - seja pela prática, como
bem do magistrado e de seus súditos. Pois, dado que os homens quando a penalidade (que não estava prescrita em lei alguma, mas
geralmente tendem a debater o que devem fazer, ou deixar de fazer, foi arbitrária em seus primórdios) se determina a posteriori pelo
com base na razão natural mais do que no conhecimento das leis castigo infligido ao primeiro delinqüente (pois manda a eqüidade
que existem, lá onde houver mais leis do natural que iguais

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Do Cidadão Domínio

transgressores sejam igualmente punidos) -, então, impor uma pena qüência de aplicar as penas impostas pela lei, e desse modo derem
maior que essa definida pela lei vai contra a lei de natureza. Pois a aos perversos a esperança de escaparem impunes, então os súditos
finalidade do castigo não está em compelir a vontade do homem, honestos, cercados de assassinos, ladrões e patifes, não terão a
mas em modelá-Ia, e em fazêIa tal como desejaria aquele que liberdade de conviver livremente entre si, e mal terão a de viajarem
instituiu a pena. E deliberar nada mais é que pesar, como que numa para longe (abroad} sem grandes perigos; mais que isso, a própria
balança, os convenientes e inconvenientes do fato que estamos cidade estará dissolvida, e cada homem retomará seu direito a
tentando - sendo então que aquilo que pesar mais necessariamente, proteger-se segundo sua própria vontade. Por conseguinte, a lei de
por sua inclinação, em nós prevalece. Se, portanto, o legislador natureza dita esse preceito aos comandantes supremos: que não
estabelecer para um crime uma pena menor, que não chegue a fazer apenas eles mesmos façam justiça (righteousness), mas que
o medo ser mais considerável em nós que o apetite (lust), aquele também, por penalidades que fixarão, forcem os juízes por eles
'excesso do apetite sobre o medo ao castigo, graças ao qual se nomeados a agir da mesma forma - isto é, a ouvir as queixas dos
comete o pecado, deve ser atribuído ao legislador, quer dizer, ao súditos; e tantas vezes quantas se mostrar necessário eles escolham
soberano; e portanto, se ele infligir um castigo maior do que ele alguns juízes extraordinários, que possam ouvir assuntos debatidos
próprio determinou em suas leis, ele punirá em outrem o pecado relativos aos juízes ordinários.
que ele mesmo cometeu.

17. Os súditos devem receber satisfação do governante contra


os juízes que se mostrarem corruptos
Faz parte, portanto, da liberdade inofensiva e necessária dos
súditos que cada um desfrute, sem medo, dos direitos que lhe são
reconhecidos pelas leis. Pois seria em vão que as leis distinguiriam
o que é nosso do que pertence aos outros, se eles puderem
novamente ser confundidos por um julgamento errado, pelo roubo
ou pelo furto. Ora, estes podem suceder quando os juízes são
corruptos. Isso porque o medo, pelo qual se dissuade aos homens de
fazer o mal, não vem do fato de haver penalidades fixadas, mas do
fato de elas serem aplicadas. Pois avaliamos o futuro com base no
passado, raramente esperando o que raramente acontece.
Se por isso os juízes, corrompidos por presentes, pelo favor ou
até mesmo pela compaixão, deixarem com fre

212 213
..,...

CAPÍTULO XIV

Das Leis e dos Crimes1

1. A diferença entre lei e conselho


Quem não dá muita importância à força das palavras
confunde por vezes a lei com o conselho, às vezes com pacto, e
eventualmente com direito. Confunde lei e conselho quem pensa
que é dever dos monarcas não somente
ouvir os seus conselheiros, mas igualmente obedecer-Ihes como se toda
vez que pedimos um conselho tivéssemos de segui-Io.
Devemos diferenciar o conselho e a lei com base na diferença
que há entre conselho e ordem (command). Ora, o conselho é um
preceito no qual a razào para que eu o siga se deve a coisa mesma
que se aconselha - ao passo que a ordem é um preceito no qual a
causa de minha obediência reside na vontade de quem assim
ordena. De "eu quero" não se conclui "eu ordeno", a não ser que
esteja em tal vontade a razão para a obediência.
Mas, se a obediência é devida às leis, não em função do
assunto de que elas tratam, mas graças à vontade de quem as
decreta, a lei não constitui um conselho e sim uma ordem. Ela
assim se define: a lei é a ordem daquela pessoa - seja um indivíduo,
seja uma assembléia - cujo preceito contém em si a causa da
obediência. Assim é que os preceitos ditados por Deus aos homens,
pelos magistrados aos súditos, e de modo geral todos os que são
ditados por

215
~

Do Cidadão Domínio

quem tenha poder àqueles que não lhos podem resistir, podem ser indivíduos, cada um dos quais conserva livre sua vontade
adequadamente denominados suas leis. particular. Ora, se ela for uma pessoa só, o termo "consentimento
Há, portanto, várias diferenças entre a lei e o conselho. Pode comum" não tem cabimento - pois uma pessoa não tem
legislar quem tem poder sobre aqueles a quem se dirige; quem não consentimento comum. Nem é correto dizer que ela declara o que
possui tal poder apenas aconselha. Seguir o que está prescrito na lei devemos fazer, pois na verdade o que faz é ordenar. o que a cidade
constitui um dever; mas seguir o que diz o conselho depende do declara é uma ordem para seus cidadãos.
livre-arbítri02. O conselho se dirige para o fim escolhido por quem Aristóteles, assim, entendeu por cidade uma multidão de
o recebe, enquanto a lei segue o fim fixado por quem a decreta. Só homens que declaram, por consentimento comum (imagine-se que
se dáconselho a quem o quer, mas se impõe uma lei mesmo a quem se trata de um texto escrito confirmado depois pelos seus
não a deseja. Para concluir, o direito do conselheiro é anulado pela sufrágios), as formas pelas quais irão viver. Mas isso nada mais é
vontade daquele a quem ele aconselha; mas o direito do legislador do que uma série de contratos recíprocos que a ninguém obrigam -
e por conseguinte não constituem leis - enquanto não se constituir
não se revoga segundo o prazer daquele a quem se impõe a lei.
um poder supremo e dotado de força, que possa agir contra aqueles
que, não fosse ele, provavelmente não respeitariam as leis. As leis
portanto, de acordo com essa definição de Aristóteles, não passam
de contratos nus e fracos, que somente a longo prazo, quando
houver alguém com direito a exercer o poder supremo, poderão, a
2. Entre lei e pacto seu critério, tornar-se ou não leis. Quer dizer que ele confunde os
contratos com as leis, coisa que nunca deveria ter feito: pois o
Confunde lei com pacto quem imagina que as leis nada mais contrato é uma promessa, a lei uma ordem. Nos contratos dizemos
sejam do que certos omologémata, ou formas de vida determinadas eu farei isso; nas leis, fazei isso. Os contratos nos obrigam3, ao
pelo consentimento comum dos homens. Entre esses está passo que as leis nos mantêm obrigados. Um contrato obriga por si
Aristóteles, que assim define a lei: Nómos ésti lógos órisménos kath só; já a lei só conserva obrigada a parte que o firmou em virtude do
'ómologían koinen pólemos, menúon pos dei prattein ekasta: ou contrato universal de obediência. Por isso, no contrato, primeiro se
seja, a lei é um discurso, cujos termos são definidos pelo determina o que deve ser feito, antes que nos obriguemos a fazê-Io;
consentimento comum da cidade, que declara tudo o que devemos enquanto na lei estam os, já, obrigados a cumprir o que só depois é
fazer. determinado.
Mas esta definição não cobre a lei em geral, porém apenas a lei Aristóteles deveria, pois, assim definir a lei civil: como um
civil. É manifesto que as leis divinas não provêm do consentimento discurso, cujos termos são definidos pela vontade da cidade,
dos homens, nem tampouco as leis de natureza. Pois, se elas ordenando tudo o que deve ser feito. Esta é a mesma definição que
tivessem origem no consentimento dos homens, pelo mesmo demos acima, no capítulo VI, parágrafo 9, segundo a qual as leis
consentimento poderiam também ser revogadas; mas são imutáveis. civis são a ordem daquele (seja ele um
Aliás, a definição de Aristóteles não é correta nem para a lei
civil. Ela considera a cidade, ou como uma pessoa civil, dotada de
uma só vontade, ou como uma multidão de

216 217
Do Cidadão
Domínio

indivíduo ou um grupo de homens) que detém o poder supremo na I


vias pelas quais Deus deu a conhecer sua vontade aos homens.
cidade, regulando as ações futuras de seus súditos.
Natural é aquela que Deus declarou a todos os homens através de
~ sua palavra eterna, com eles nascida - ou seja, através da razão
natural; e é esta a lei que no correr de todo o presente livro me
empenhei em expor. Positiva é a lei que Deus nos revelou pela
3. Entre lei e direito palavra da profecia, através da qual ele falou aos homens como
homem. Desta espécie são as leis que ele deu aos judeus para seu
Confunde as leis com o direito quem continua a fazer o que governo e o culto divino; e podem denominar-se leis civis divinas,
era permitido pelo direito divino, quando isso já foi proibido pela porque eram peculiares ao governo civil dos judeus, seu povo
lei civil. É verdade que aquilo que a lei divina proíbe nunca poderá peculiar.
ser autorizado pela lei civil, nem a lei civil jamais poderá proibir o A lei natural, por sua vez, pode ser dividida em lei dos
que a lei de Deus manda. Contudo, se o direito divino permite homens, a única que pode chamar-se lei de natureza, e lei das
alguma coisa, ou seja, se algo pode ser feito com base no direito cidades, que também pode chamar-se lei das nações, mas que o
divino, isso em nada impede que seja proibido pelas leis civis - vulgo denomina "direito das gentes". Os preceitos de ambas são
porque leis inferiores podem restringir a liberdade concedida pelas análogos. Mas como, uma vez constituídas, as cidades assumem a
leis a elas superiores, embora jamais a possam ampliar. Ora, a condição de pessoa humana, aquela lei que chamamos de natural
liberdade natural é um direito que as leis permitem, e não um que quando falávamos do dever dos homens individuais, assim que for
elas constituem. Pois, uma vez removidas as leis, nossa liberdade é aplicada a cidades e nações enquanto tais, terá o nome de direito
absoluta. Mas ela se vê restringida, primeiro, pelas leis naturais e das gentes. E os mesmos elementos da lei e do direito naturais, de
divinas; seu resíduo depois élimitado pela lei civil; e o que ainda que até agora falamos, desde que sejam transpostos às cidades e
resta pode ainda conhecer restrições na constituição de cada nações enquanto tais, podem ser considerados como os elementos
município (town) ou sociedade particular4. Há portanto uma grande da lei e do direito das gentes.
diferença entre lei e direito - porque a lei são grilhões, enquanto o
direito é liberdade, e por isso se diferenciam como dois contrários.

5. A divisão das leis humanas, isto é, civis, em


sagradas e seculares
4. A divisão das leis, em divinas e humanas; das divinas, em
naturais e positivas; e das naturais, em leis privadas e das gentes Toda lei humana é civil. Pois o estado dos homens,
considerados fora da sociedade civil, é de guerra; e nessa condição,
As leis se dividem, conforme quem for seu autor, antes de
ninguém estando sujeito a ninguém, não há nenhuma lei além dos
mais nada em divinas e humanas. As leis divinas, por sua vez, se
ditados da razão natural, que é a lei divina. Mas no governo civil o
dividem em naturais e positivas, segundo as duas
único legislador é a cidade, isto é, aquele homem ou conselho a
quem o poder supre

218
219
Do Cidadão Domínio

mo da cidade está cometido, e por isso as leis da cidade se chamam 7. Distributiva e punitiva não constituem diferentes espécies de lei,
civis. mas partes da mesma lei
As leis civis podem dividir-se, conforme a distinção do
assunto de que tratam, em sagradas ou seculares. Sacras são as leis Mas distributiva e punitiva não são duas espécies distintas de
que se referem à religião, isto é, às cerimônias e ao culto de Deus - lei, e sim duas partes da mesma lei. Por exemplo,
a saber, que pessoas, coisas e lugares devem ser consagrados, e de se a lei disser apenas que é teu tudo o que colheres no mar
que maneira, que opiniões sobre a Divindade devem ser ensinadas com tua rede, ela será inútil. Pois, embora outro tire de ti o que
de público, e com que palavras, e com que rito devem ser feitas as colheste, isso não impede que continue a ser teu - porque no estado
súplicas, e outras coisas análogas -, na medida em que não estejam de natureza, onde todas as coisas são comuns a todos, o que é teu e
fixadas por nenhuma lei divina positiva. Pois as leis sacras civis são o que é do outro são a mesma coisa: o que a lei define como sendo
leis humanas sobre coisas sagradas (e também podem dizer-se leis teu já o era antes mesmo de existir tal lei, e uma vez promulgada tal
eclesiásticas); e costumase, geralmente, dar apenas às leis seculares lei não deixa de ser teu, ainda que esteja em posse de outra pessoa.
o nome de leis civis. Por isso, a lei nada acrescenta, a não ser que por ela se entenda que
a coisa é tua de modo que nenhum outro homem possa te impedir
de usares e gozares dela livremente a qualquer momento, segundo
teu próprio prazer e vontade. Isso é o requisito para que haja
propriedade de bens: não que alguém esteja capacitado a usá-Ios,
mas que tenha tal capacidade sozinho, o que somente sucede
6. Em distributivas e punitivas quando aos outros se proíbe perturbá-Io em tal uso.
A lei civil, por sua vez - e de acordo com os dois ofícios do Ora, é inútil impor qualquer proibição aos homens, se ao
legislador, um dos quais consiste em julgar, o outro em forçar os mesmo tempo não se induz neles um medo ao castigo. Por isso é
homens a submeter-se a seus julgamentos -, tem duas partes: uma inútil toda lei que não tiver essas duas partes de que falamos, uma
distributiva, a outra punitiva (vindicative) ou penal. É graças à parte proibindo que se cometam injúrias, e outra castigando quem as
distributiva que cada homem tem seu direito próprio - isto é, ela praticar. A primeira delas chama-se distributiva, é proibitória, e fala
estabelece as regras para todas as coisas, que nos permitam saber o a todos; a segunda, que tem por nome punitiva ou penal, é
que é propriamente nosso, o que é de outrem, de modo que nem os mandatória, e dirige-se apenas aos magistrados públicos.
outros possam impedir-nos do livre uso e gozo do que é nosso, nem
possamos nós perturbá-Ios na serena posse de seus bens; e
estabelece ainda o que cada um pode legalmente fazer ou omitir, e
o que não pode. Já punitiva é aquela que define o castigo que será
infligido àqueles que violarem a lei.
8. A toda lei, supõe-se, está anexa uma penalidade
Disso também podemos concluir que toda lei civil tenha anexa
uma penalidade, quer explícita, quer implicitamente. No segundo
caso, porque, quando o castigo não

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Do Cidadão Domínio

estiver definido nem por escrito, nem pelo exemplo de ninguém onde todas as coisas eram em comum, e por isso nenhuma
que já tenha sofrido punição por transgredir a lei, então se entende conjunção carnal infringia a lei; terceiro, onde vigorava o estado de
que a pena é arbitrária, isto é, que depende da vontade do guerra, e portanto não era ilegal matar; quarto, onde todas as coisas
legislador, ou seja, do comandante supremo. Pois é inútil toda lei eram determinadas pelo julgamento de cada pessoa, e por
que possa ser violada sem castigo. conseguinte também o respeito devido aos pais; finalmente, onde
não havia julgamentos públicos, e por isso nenhuma necessidade de
prestar testemunho, verdadeiro ou falso.
9. Os preceitos do Decálogo, como o que manda honrar pai e
mãe, ou os que proíbem o assassínio, o adultério,
o roubo e o falso testemunho, constituem leis civis
10. É impossível a lei civil ordenar o que quer que seja
Das leis civis decorre, primeiro, que todo homem tem seu
contrário à lei de natureza
direito próprio, distinto dos que cabem aos outros, segundo, que ele
está proibido de interferir nos direitos alheios. Por isso, segue-se Considerando pois que nossa obrigação de respeitar tais leis
que constituem leis civis os preceitos segundo os quais Não antecede sua própria promulgação, estando incluída já na
recusarás honrar teus pais da constituição da cidade (em virtude da lei natural que nos proíbe de
forma prescrita pelas leis; Não matarás aquele a quem as leis te romper os pactos por nós firmados), a lei de natureza manda-nos
proíbem de matar; Não tirarás os bens de outrem sem a permissão observar todas as leis civis. Pois, quando estamos obrigados a
do senhor; Não frustrarás as leis e julgamentos obedecer antes mesmo de saber o que vio nos mandar, estamos
prestando falso testemunho. As leis naturais já ()rdenam estas totalmente obrigados a obedecer em todas as coisas.
mesmas coisas, mas apenas implicitamente; pois - como dissemos Segue-se, portanto, que é impossível qualquer lei civil, que
no capítulo III, parágrafo 2 - a lei de natureza nos manda cumprir os não tenda a ofender a Divindade (em face de quem as próprias
contratos, e portanto também prestar obediência, sempre que cidades não têm direito que lhes seja próprio, e não se pode dizer
tivermos firmado um pacto nesse sentido, e ainda re\ipeitar os bens que façam leis), infringir a lei de naturezaS. Com efeito, embora a
dos outros, quando a lei civil determinar que coisa pertence a lei de natureza proíba o roubo, o adultério etc., se for porém a lei
outrem. Ora, pelo capítulo VI, parágrafo 13, no momento mesmo de civil que nos mandar invadir alguma coisa, essa invasão não
constituição do governo, todos os súditos já firmaram um pacto de constituirá roubo, adultério, etc. Assim, quando na Antigüidade os
obedecer ãs ordens de quem possui o poder supremo, ou seja, de lace demônios permitiam, por lei, a seus jovens que tirassem os
obedecer às leis - antes mesmo que fosse possível violá-las. bens de outrem, com isso mandavam que tais bens fossem proprie-
Com efeito, a lei de natureza já obrigava no estado de natureza,
dade de quem os tirasse, e não de quem os tivesse perdido - por isso
onde, primeiro - porque a natureza tudo deu a todos -, nada
tal subtração não constituía roubo. Da mesma forma, entre os
pertencia propriamente a ninguém, e por isso nada havia que fosse
pagãos a conjunção sexual era considerada como um legítimo
exclusivamente de outrem; segundo,
matrimônio.

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2
Do Cidadão Domínio

11. Para haver lei, é essencial que sejam conhecidos tanto o 13. Para que se conheça a lei, é preciso publicá-Ia e
seu conteúdo quanto o seu legislador interpretá-Ia
É essencial à lei que os súditos tenham conhecimento de duas Já conhecer as leis depende do legislador, que deve publicá-
coisas: primeiro, de que homem ou assembléia possui o poder Ias, porque a não ser assim não serão leis. A lei é a ordem do
supremo, ou seja, o direito de legislar; segundo, do que dizem as legislador, e essa ordem é a manifestação de sua vontade: não há
próprias leis. Pois quem não sabe a quem ou a que está obrigado portanto lei, a menos que se manifeste a vontade do legislador, o
não tem como obedecer, e portanto está na condição de quem não que ele faz promulgando-a. Na promulgação duas coisas devem
tem nenhuma obrigação. Não digo que seja necessário e essencial à estar presentes, das quais a primeira é que quem publique a lei deve
lei que se conheçam constantemente o legislador ou a coisa ter o direito de legislar, ou pelo menos ter para tanto uma concessão
legislada, pois basta que estes se tenham dado a conhecer uma só de quem o possui; a segunda é o significado mesmo da lei.
vez: e, se posteriormente o súdito se esquecer do direito do Quanto ao primeiro ponto, isto é, ao fato de que as leis devem
legislador, ou da própria lei, isso em nada o desobrigará da ser promulgadas pelo detentor do poder supremo, ele só pode se
obediência devida, porque ele bem se poderia lembrar de ambos, se evidenciar (para falarmos em termos precisos e filosóficos) a quem
quisesse obedecer. as tiver recebido da boca mesma do governante. Os outros nele
acreditam; mas para fazê-Io têm tantas razões que quase seria
impossível que não acreditassem. E por isso, numa cidade
democrática, onde cada um pode estar presente, se assim o quiser, à
12. Como se fica sabendo quem é o legislador assembléia que decreta as leis, quem se ausentar deve
necessariamente dar crédito aos que estiveram presentes. Nas
Saber quem é o legislador depende do próprio súdito, porque a monarquias e aristocracias, porém, como poucos têm o direito de
ninguém se poderia conferir o direito a legislar sem o seu comparecer, e de ouvir abertamente as ordens do monarca ou dos
consentimento e pacto, quer expresso, quer suposto: expresso, nobres, foi preciso conferir a estes poucos o poder de divulgá-Ias
quando desde o início os cidadãos constituem entre si uma forma de aos demais. Assim é que acreditamos que sejam editos e decretos
governo, ou quando por uma promessa se submetem ao domínio de dos príncipes o que nos é apresentado como tal, por escrito ou pela
um; ou pelo menos suposto, como quando eles se servem dos voz daqueles cujo ofício consiste em proclamá-Ios. Além disso,
benefícios concedidos pelo reino e pelas leis para sua proteção e temos outras razões para acreditar: vemos o príncipe ou o conselho
conservação contra terceiros. Porque, se para nosso bem exigimos supremo recorrer constantemente a certos conselheiros, secretários,
de nossos concidadãos que prestem obediência a um determinado arautos e ao selo oficial, e a outros instrumentos análogos, para
poder, então, por esta mera exigência, nós o reconhecemos como tornar conhecida a sua vontade; notamos que ele jamais os
legítimo. E assim nunca pode ser justa a desculpa de que ignoramos desautora; e que se pune quem, não dando crédito a essas
em quem reside o poder de decretar as leis: porque todo e qualquer proclamações, transgride a lei. Dessa forma, não apenas se
homem sabe o que ele próprio praticou.

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Do Cidadão Domínio

justifica quem lhes dá crédito e obedece aos editos e decretos dessa espécie são as leis de natureza. Pois a lei de natureza embora
promulgados por tais instrumentos, como também merece castigo se distinga da lei civil, na medida em que ela governa a vontade, é
quem, descrendo deles, não os respeita. Pois o fato de que o contudo civil na medida em que se refere a nossas ações. Por
governante permita que tais coisas se produzam constantemente é exemplo, o mandamento não cobiçarás, que se refere somente à
sinal suficiente e manifesto de sua vontade, e expressa-a de intençã06, é apenas uma lei natural; já o mandamento não roubarás
maneira evidente - desde que nada se contenha na referida lei, constitui lei tanto natural quanto civiL Considerando assim que é
edito ou decreto, que derrogue o seu poder supremo. Com efeito, é impossível prescrever tantas regras universais que possam determi-
inconcebível, enquanto ele conservar a vontade de governar, que nar todas as pendências que venham a surgir no futuro (e que
aceite podem ser em número infinito), é de entender que em todos os
seja subtraída qualquer parte de seu poder por algum de seus ministros casos não mencionados nas leis escritas devemos seguir a lei da
ou magistrados. eqüidade natural, que nos ordena distribuir igualmente entre iguais;
Quanto ao significado da lei, se alguma dúvida houver a e isso em virtude da lei civil, que também pune aqueles que de
respeito, deve ser dirimida por aqueles a quem a autoridade maneira consciente e deliberada transgridem as leis de natureza.
suprema confiou o julgamento das causas e processos: pois julgar
nada mais é que aplicar as leis, interpretando-as, aos casos
particulares. E podemos saber a que pessoas se conferiu tal ofício
da mesma maneira que sabemos a quem se concedeu autoridade
para proclamar as leis. 15. As leis naturais não são leis escritas; e os pareceres
dos juristas e o costume não constituem leis
automaticamente, mas apenas graças ao consentimento do
poder supremo
14. A distinção da lei civil em escrita e não escrita
Entendidas estas coisas, resulta, em primeiro lugar, que
Outra distinção que se pode fazer nas leis civis, agora segundo embora os livros de alguns filósofos expliquem as leis de natureza,
a maneira por que são promulgadas, é entre leis escritas e não não basta isso para denominá-Ias leis escritas; e ainda que os
escritas. Por lei escrita entendo aquela que para tornar-se lei escritos dos intérpretes das leis não constituem lei, por faltar-Ihes a
necessita da voz, ou de outro sinal bastante da vontade do autoridade suprema; nem tampauco as orações dos sábios, isto é,
legislador. Pois toda espécie de lei é por natureza tão antiga quanto dos juízes, a não ser na medida em que se convertam em costume
o gênero humano, e portanto anterior àinvenção das letras e da arte graças ao consentimento do poder supremo. E neste caso serão
da escrita. Por isso o que se requer para uma lei escrita não é um acolhidas entre as leis escritas, mas não por serem costume (que por
+I
escrito, mas uma voz: para fazê-Ia lei, a voz basta; para recordá-Ia é sua mera força não constitui lei), mas pela vontade do governante
preciso a escrita. Lemos, aliás, que, antes de haver a escrita para supremo, que se manifesta no fato de que ele tenha tolerado a
socorrer a memória, as leis eram postas em versos e cantadas. conversão em costume daquela sentença, pouco importando que
Lei não escrita é aquela que não necessita de outra seja ela eqüitativa ou iníqua7.
promulgação além da voz da natureza ou da razão natural;

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6
Do Cidadão Domínio

16. O que significa a palavra "pecado" em sua acepção mais tamente depois o avalie por mau; e, ainda, que a mesma coisa que
ampla quando ele pratica diz ser boa, afirme ser má quando é outro quem a
O pecado, na sua significação mais ampla, compreende faz. Isso porque todos nós medimos o bem e o mal segundo o prazer
todo ato, palavra e pensamento que vá contra a razão reta. e a dor que sentimos de momento, ou que esperamos vir a sentir
Todo homem, ao raciocinar, procura os meios que forem mais mais tarde.
convenientes para o fim a que se propõe. Se raciocinar direito - isto Ora, vendo como a prosperidade dos inimigos (porque por seu
é, se partindo dos princípios mais evidentes construir seu discurso meio aumentam eles suas honras, bens e poder) e a dos iguais
extraindo deles inferências continuamente necessárias -, ele seguirá (devido à disputa que entre nós existe pelas honras) nos parece
por um caminho retíssimo. Mas, se assim não for, ele se extraviará, incômoda e má, e efetivamente o é, resulta que o consentimento dos
isto é, fará, dirá ou procurará algo contrário ao seu próprio fim; isso indivíduos não constitui base para determinar que ações devem ou
feito, diremos que errou, do ponto de vista do raciocínio, mas que não ser censuradas, já que as mesmas ações não causam prazer nem
pecou, do viés da ação e da intenção (wil!). Pois o pecado segue-se desprazer iguais aos homens. Eles bem podem concordar em alguns
ao erro, assim como a vontade (wil!) se segue ao entendimento. E pontos gerais - por exemplo, que sejam pecado o roubo, o adultério
esta é a acepção mais geral do termo pecado, sob a qual se contém e outros atos análogos -; mas isso é o mesmo que dizer que todos
toda ação imprudente, quer ela vá contra a lei, como quando consideram más as coisas a que deram nomes que costumam ser
derrubamos a casa de outro homem, quer não vá, como quando tomados em mau sentido. Mas não estamos indagando se o roubo é
construímos nossa própria casa sobre a areia. um pecado, e sim o que deve se denominar roubo, e o mesmo para
todos os outros pecados. Sendo assim tão diferentes entre si os que
censuram, a igualdade que se constata na natureza humana faz que a
razão de um não seja mais adequada que a de qualquer outro, para
medir o que merece ser cen
surado com razão; e, como as únicas razões que existem são as dos
17. Definição de pecado indivíduos e a da cidade, segue-se que compete a esta última
Mas, quando falamos de leis, a palavra pecado é considera da determinar o que temos razão em censurar. Concluímos então que
num sentido mais estrito, e não significa toda coisa cometida contra constitui culpa, ou pecado, aquilo que um homem faz, omite, diz ou
a reta razão, porém apenas aquela que é censurável, e por isso é quer, contrariamente à razão da cidade, isto é, contrariamente às
chamada ma/um culpae, o mal da culpa. Além disso, não basta que leis.
algo seja censurável, é preciso - para que haja pecado ou falta - que
possa ser censurado com razão. Devemos portanto investigar em
que consiste censurar com e sem razão. ~
Tal é a natureza do homem, que cada qual chama de bom o que
deseja, e de mau aquilo de que se esquiva. E assim, dada a 18. Diferença entre um pecado cometido por fraqueza e por
diversidade de nossas afeições, sucede que um considere boa a maldade
mesma coisa que outro tem por má; e que o mesmo homem, que ora
estima algo como bom, imedia Mas a fraqueza (infirmity) humana faz que possamos
infringir as leis ainda quando as desejamos cumprir; e ape

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Do Cidadão
Domínio

sar disso há razão em censurar uma ação assim cometida, por violar imprudências; mas é absurdo inferir disso que deva ser desculpada
as leis, e em considerá-Ia pecaminosa. Há, porém, outros que
por imprudência ou ignorância.
negligenciam as leis, e a quem, toda vez que sentem alguma
O ateu, com efeito, é punido imediatamente por Deus ou então
esperança de ganho impune, nem a lembrança de terem firmado um
pelos reis que estão instituídos abaixo de Deus9; mas não como um
contrato nem o escrúpulo de terem dado sua palavra impede de
súdito é punido por seu rei, porque não lhe cumpriu as leis, e sim
violá-Ios. Nestes homens, não apenas as ações, também a mente é
como um inimigo sofre em mãos do inimigo, porque não lhe quer
contra a lei. Quem peca apenas por fraqueza é uma boa pessoa
aceitar as leis - isto é, pelo direito de guerra, assim como sucedeu
mesmo quando peca; mas estes últimos, mesmo quando não pecam,
aos gigantes em guerra contra Deus1o. Pois são inimigos aqueles
são maus (wicked). Embora tanto a ação quanto a mente repugnem
que não têm o mesmo senhor nem são súditos um do outro.
às leis, tal repugnância pode distinguir-se pela denominação. Assim
a irregularidade dos atos chamase adikema, ato injusto, e a da
mente adikía e kakía, injustiça e malícia; aquela é a fraqueza de
uma alma perturbada, esta a depravação de uma mente sóbria.
20. O que é traição

Cada súdito, por meio de pacto, se obrigou perante todos os


outros a prestar uma obediência absoluta e universal (conforme se
definiu acima, capítulo VI, parágrafo 13) a cidade, isto é, ao poder
19. Em que espécie de pecado consiste o ateísmo soberano de um homem ou de um conselho, e disso deriva uma
obrigação de observar cada uma das leis civis - de modo que
Considerando que não há pecado que não constitua violação aquele pacto contém já
de alguma lei, e que não existe lei que não seja a ordem de quem em si, imediatamente, todas as leis. E disso se segue que o súdito
detém o poder supremo, e que ninguém possui um poder supremo que renunciar ao pacto geral de obediência renuncia,
que não lhe tenha sido concedido por nosso próprio consentimento: simultaneamente, a todas as leis.
de que maneira então poderemos dizer que peca alguém que nega a Esse crime (trespass) é muito pior que qualquer outro pecado,
existência de Deus, ou que ele governe o mundo, ou que de alguma justamente porque pecar sempre é pior do que pecar uma vez. E
outra forma o condene? Esse homem dirá que jamais submeteu sua este o pecado a que se chama traição, consistindo numa palavra ou
vontade à de Deus, não acreditando sequer que ele exista; e dirá ação pela qual o cidadão ou súdito declara que não mais obedecerá
ainda que, mesmo que se equivoque a este respeito, e portanto sua àquele homem ou conselho a quem se confiou o poder supremo na
opinião constitua um pecado, não será porém mais que um pecado " cidade. O súdito pode declarar ter essa intenção (will) através de
r
de imprudência ou de ignorância, que legalmente não se pode punir. seus atos, como quando comete ou tenta cometer uma violência
Essa argumentação pode ser aceita até o ponto em que alega que, contra a pessoa do soberano, ou de quem execute suas ordens.
embora essa espécie de pecado constitua a maior e a mais danosa, Desta espécie são os traidores, os regicidas, e todos
deve porém ser considerada entre os pecados por os que tomam em armas contra a cidade, ou que no correr da guerra
se bandejam para o inimigo.

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...

Do Cidadão Dominio

o súdito também pode declarar essa intenção por meio de sa obrigação de obediência civil, que é o que confere validade a
palavras, negando diretamente que ele ou outros súditos estejam todas as leis civis, precede a lei civil, e o pecado de traição nada
obrigados à obediência. Pode, neste caso, negar a obediência por mais é que o descumprimento de tal obrigação, segue-se que pelo
completo, reservando-a plena somente para Deus, e dizendo que ao
pecado de traição se rompe a lei que precedia a lei civil, a saber, a
governante não devemos obedecer de maneira absoluta, simples e
lei de natureza, que nos proíbe de violar os pactos e a palavra dada.
universal; ou negá-Ia em parte, afirmando que o governante não tem
Por isso, se algum soberano fizesse uma lei vazada no seguinte
direito de fazer a guerra segundo seu critério, nem de firmar a paz,
teor: Nâo te rebelarás, ela nada significaria - porque, se os súditos
de alistar soldados, de impor tributos, de nomear magistrados e
já não estivessem obrigados antes disso a lhe obedecer, isto é, a não
ministros públicos, de promulgar leis, decidir controvérsias,
se rebelar, nenhuma lei teria força alguma. Ora, a obrigação que
estabelecer penas, ou de fazer qualquer outra coisa sem a qual o
obriga aquilo a que já estamos obrigados é inteiramente supérflua.
Estado não possa subsistir. Palavras como estas e outras análogas
constituem traição pela lei natural, já antes da civil.
Mas pode acontecer que alguma ação, que não constituía
traição antes de se fazer a lei civil, seja posteriormente cominada
como tal - assim, se for declarado em lei que se
considerará que renuncia à obediência pública (quer dizer: que 22. E portanto ela deve ser punida, não pelo direito de
comete traição) o homem que cunhar moeda, ou forjar o selo domínio, mas pelo de guerra
privado do rei, quem fizer tal coisa depois de publicada a lei em
Disso decorre que os rebeldes, traidores e todas as outras
questão será tão traidor quanto quem infringe as proibições antes
pessoas condenadas por traição não são punidos pelo direito civil,
citadas. E no entanto ele pecará me
mas pelo natural: isto é, não como súditos civis, porém como
nos, porque não estará rompendo todas as leis de uma sóvez,
inimigos ao governo - não pelo direito de soberania e domínio, mas
porém uma única. Com efeito, ao chamar de traição aquilo que não
pelo de guerra.
o é naturalmente, a lei impõe de fato um nome mais odioso, e
talvez um castigo mais duro, aos culpados, e tem direito de fazê-Io;
mas isso não torna o pecado em si mesmo mais detestável.
23. Não é correto distinguir a obediência em
ativa e passiva
Alguns pensam que é possível expiar os atos praticados contra a
lei, quando o castigo está fixado na própria lei
e o punido se submete voluntariamente (willingly) a ele; e
21. Pela traição não se rompem as leis civis, mas que por isso quem tenha sofrido o castigo cominado em lei não
as naturais seria culpado perante Deus, por infringir a lei natural (embora,
rompendo as leis civis, tenha violado a lei de natureza que manda
Mas o pecado que pela lei de natureza constitui traição é a respeitá-Ias) - como se a lei não proibisse propriamente a ação,
transgressão da lei natural, e não da lei civil. Como nos mas em vez disso fixasse o cas

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Do Cidadão Dominio

tigo sob forma de um preço, pelo qual se poderia comprar a licença que alguns estabelecem entre obediência ativa e passiva, como se o
de fazer o que a lei veda. Ora, pela mesma razão eles também que constitui pecado contra a lei de natureza, que é lei de Deus,
pudesse ser expiado mediante penas instituídas por decretos
poderiam deduzir que nenhuma transgressão da lei constituiria
humanosll; ou como se não pecasse, quem peca por sua conta e
pecado, posto que cada um deve gozar da liberdade que comprou
risco.
por sua conta e risco.
Devemos, porém, saber que os termos da lei podem ser
entendidos em dois sentidos (conforme já dissemos acima, no
parágrafo 7). Num deles a lei se entende en
quanto proibição absoluta, como quando diz: Não farás tal
coisa, e como punição (Quem fizer isso será punido); no outro, a
lei contém uma condição, por exemplo: Não farás tal coisa a não
ser que queiras ser castigado, e por isso não proíbe de forma
absoluta, mas apenas condicional. Se a entendermos segundo o
primeiro sentido, quem infringe a lei peca, porque comete o que a
lei proíbe de fazer; mas, no segundo sentido, não peca, porque não
se pode dizer que esteja proibido de executar aquilo cuja condição
tenha saldado. Ou seja, no primeiro sentido todos os homens estão
proibidos de cometer tal ato, e no segundo apenas os que se
resguardam do castigo. No primeiro sentido, a parte punitiva da lei
não obriga ao culpado, mas sim ao magistrado, que deve proceder
a seu castigo; no segundo, aquele mesmo que deve o castigo está
obrigado a impô-Ia - coisa a que ele não poderá ser obrigado, se a
pena for capital ou grave.
Depende da vontade do soberano, porém, saber em que
sentido se deve entender a lei. Sempre que houver qualquer dúvida
sobre o significado da lei, e como quer que depois ela venha a ser
explica da, será pecado infringi-Ia, já que pelo menos temos
certeza de que não peca quem não a viola. Pois cometer o que não
sabemos se é pecado ou não, quando temos a liberdade de evitá-Ia,
constitui desres
peito à lei, e portanto - pelo capítulo m, parágrafo 28 pecado contra a
lei de natureza. Por isso é vã a distinção

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CAPÍTULO XV

No Reino de Deus por Natureza]

1. Exposição do que se segue


Nos capítulos anteriores, provamos - com base tanto na razão
quanto na escritura sagrada - que o estado de natureza, ou de
liberdade absoluta (condição em que vivem aqueles que nem
governam nem são governados), é um estado de anarquia, ou de
guerra; que as leis de natureza são os preceitos que nos capacitam a
evitar tal estado; que não pode haver governo civil sem um
soberano; e que qualquer um que tenha obtido este poder soberano
deve ser simplesmente obedecido, isto é, deve ter nossa obediência
em todas as coisas que não repugnem aos mandamentos de Deus.
Falta então apenas uma coisa para se tornar completa a
compreensão de qualquer dever político: saber quais são os
mandamentos de Deus. Pois, se não os conhecermos, não
saberemos se as ordens do poder civil contrariam as leis de Deus,
ou não; e por isso necessariamente, ou por excessiva obediência à
autoridade civil, nos mostraremos insubordinados à Majestade
Divina; ou, por medo de pecar contra Deus, incorreremos em
desobediência ao poder civil. Para evitarmos ambos estes escolhos,
temos de conhecer as leis divinas. Ora, como o conhecimento destas
leis depende de conhecermos o reino em que elas vigem, pre-
cisamos começar falando a respeito do reino de Deus.

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2. Sobre quem se diz que Deus reina naturalmente vernantes são as leis dos governados; ora, não serão leis, se não
forem publicados claramente, de modo a suprimir toda desculpa de
O Senhor reina; regozije-se a terra, diz o salmista (Salmos 97, ignorância. Quanto aos homens, eles publicam suas leis pela palavra
1). E acrescenta o mesmo salmista (Salmos 99, 1): escrita ou através da fala, e não têm outra via de tornar conhecida de
O Senhor reina; tremam as nações; está assentado entre os todos a sua vontade. As leis de Deus, porém, são declaradas de três
querubins; comova-se a terra2: o que significa: Deus é rei sobre maneiras: primeira, pelos ditados tácitos da razão reta; depois, pela
toda a terra, pouco importando que os homens o queiram ou não, e revelação imediata, que se supõe praticar-se quer por uma voz
não deixará seu trono, ainda que alguém negue a sua existência ou sobrenatural, quer por uma visão ou sonho, quer por inspiração
providência. divina; em terceiro lugar, pela voz de alguém que Deus recomenda
Embora a força (power) de Deus o faça governar os homens de aos demais, como merecedor de seu crédito, fazendo-o operar
tal modo que ninguém possa cometer nada se Deus assim não milagres autênticos. A este, cuja voz Deus assim utiliza para
quiser, isto porém, para falar de maneira própria e acurada, não é manifestar sua vontade aos outros, chama-se profeta.
exatamente o mesmo que reinar. Pois afirmase que reina quem Estas três maneiras podem dizer-se a tripla palavra de Deus, a
governa, não por meio de atos, mas pela fala, isto é, usando de saber, a palavra racional, a palavra sensível e a palavra profética. A
preceitos e de ameaças. E por isso, no reino de Deus, não elas correspondem as três maneiras pelas quais se diz que nós
consideramos como seus súditos os corpos inanimados ou escutamos a Deus - a razão reta, os sentidos e a fé. A palavra
irracionais, embora estejam subordinados ao poder divino; e não os
sensível de Deus veio ter somente a bem poucos; e através da
contamos, porque eles não entendem o que sejam os mandamentos
revelação falou Deus apenas
e ameaças de Deus; nem tampouco os ateus, porque não acreditam
a alguns em particular, e diversamente a diversos homens;
que Deus exista; nem mesmo os que, acreditando na existência de
nenhuma lei de seu reino foi publica da desta maneira a
Deus, não crêem contudo que ele governe estas coisas inferiores;
povo algum.
pois estes últimos, embora sejam governados pelo poder de Deus,
não reconhecem (acknowledge) porém nenhum de seus man-
damentos, nem temem suas ameaças. Considera-se pertencerem ao
reino de Deus, portanto, apenas esses que confessam ser ele o
regente de todas as coisas, e acreditam que ele tenha dado
mandamentos aos homens, e fixado castigos para quem os 4. O reino de Deus é duPlo: natural e profético
descumprir. Os demais não devemos chamar súditos, mas inimigos,
de Deus. E, segundo a diferença que há entre a palavra racional e a
profética, atribuímos a Deus um reino duplo: natural, em que reina
através dos ditados da razão reta, e que é universal sobre todos os
que reconhecem seu poder divino, baseando-se este reino naquela
3. As três vias pelas quais se apresenta a palavra de Deus:pela natureza racional que é comum a todos nós; e profético, no qual
razão, revelação e profecia Deus também reina pela palavra profética, que é particular, porque
ele não deu leis positivas a todos, mas a seu povo em particular, e a
Somente governa por meio de mandamentos quem os
alguns homens a quem escolheu.
publica perante seus súditos. Pois os mandamentos dos go

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Do Cidadão Religião

5. O direito pelo qual Deus reina está fundado em sua pecado anteriormente cometido, não se segue daí que seu direito a
onipotência afligir e a matar dependa dos pecados dos homens, e não da
vontade divina.
Em seu reino natural, o direito que Deus tem a reinar, e a
pun~r os que infringem suas leis, provém exclusivamente de ser
irresistível o seu poder. Isso porque todo direito sobre o outro
provém quer da natureza, quer do contrato. Já mostramos, no 6. A Escritura o confirma
capítulo V, como o direito de governar pode nascer do contrato; e o A questão que ficou célebre de tanto que foi discutida pelos
mesmo direito se deriva da natureza na medida em que esta não o antigos - por que o mal recai sobre os bons, e o bem sobre os maus -
retira: pois, como naturalmente todos tem direito a tudo, o direito é a mesma que ora examinamos: por que direito Deus distribui o
que cada homem tem a governar todos os demais é tão antigo bem e o mal entre os homens. As dificuldades que ela suscita não
quanto a própria natureza. A razão pela qual ele foi abolido entre os abalam a fé apenas do vulgo na Providência Divina, mas também a
homens foi tão-somente o medo recíproco, conforme declaramos dos filósofos e, o que é mais grave, até mesmo a de homens santos.
acima, no capítulo 11, parágrafo 3: e a razão mandou renunciar a Salmos 73, 1-3: Verdadeiramente bom é Deus para com Israel,
esse direito com o fim de se conservar a espécie humana, dado que para com os limpos de coração. Enquanto a mim, os meus pés
a igualdade dos homens no tocante à força e a seu poder natural quase que se desviaram; pouco faltou para que escorregassem os
necessariamente acarretava a guerra, e esta a destruição da huma- meus passos. Pois eu tinha inveja dos loucos, quando via a
nidade. prosperidade dos ímpios. E com que amargura jánão se lamentou a
Ora, se um homem qualquer excedesse os outros em força a tal Deus que, embora ele fosse justo, fosse afligido de tantas
ponto que todos os outros, somando as suas forças, não tivessem calamidades?
como lhe resistir, então não haveria razão alguma para ele renunciar Deus mesmo, por sua própria voz, resolveu a dificuldade no
ao direito que a natureza lhe concedeu. O direito de domínio sobre caso de Jó, e confirmou seu direito com argu
todos os demais permaneceria, portanto, em suas mãos, devido a mentos que buscou, não no pecado de Jó, mas em seu poder
esse excedente de poder graças ao qual ele poderia preservar tanto a divino. Pois Jó e seus amigos haviam debatido mui
si mesmo quanto aos outros. Por isso aqueles a cujo poder não pode to entre si, e eles o consideravam necessariamente culpado, por o
haver resistência - e portanto o Deus Todo Poderoso - derivam seu verem punido; e ele repelia sua acusação, com argumentos que
direito de soberania de seu próprio poder3. E, embora sempre que extraía de sua inocência. Mas Deus, depois de ouvir a ambas as
Deus castiga ou mata um pecador ele o faça pelos pecados deste partes, rejeita a queixa de Jó, não o condenando por injustiça ou
último, isso não implica, porém, que fosse injusto Deus puni-Io ou algum pecado, mas simplesmente manifestando seu próprio poder
matá-Io mesmo no caso de não ter pecado. Da mesma forma, se a (jó 38, 4): Onde estavas tu (diz ele), quando eu fundava a terra?
intenção (will) de Deus ao punir pode considerar algum etc. E Deus também volta sua ira para os amigos de JÓ (jó 42, 7):
Porque não falaram dele o que era reto, como o seu servo já.

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Do Cidadão Religião

E da mesma forma se entende o que disse nosso Salvador no que reconheçam o poder e a providência divinos, que não se batam
caso do cego de nascença quando, perguntando-lhe os seus contra o aguilhão.
discípulos quem pecara para que nascesse cego, ele mesmo ou seus
pais, respondeu Cristo (João 9, 3): Nem ele pecou nem seus pais;
mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus. Pois, 8. As leis de Deus, em seu reino natural, são as que
embora esteja dito (Romanos 5, 12) que pelo pecado entrou a morte enunciamos acima, nos capítulos II e III
no mundo, não se segue disso que Deus não tivesse o direito de
sujeitar os homens às doenças e à morte mesmo no caso de eles Como a palavra de Deus, em seu reino natural, é tãosomente
nunca pecarem, da mesma forma que ele fez os outros animais a razão reta (assim, pelo menos, se supõe), e como por outro lado
estarem sujeitos à morte e à moléstia, embora não tenham como as leis dos reis apenas podem ser conhecidas pela palavra deles,
pecar. evidencia-se então que as leis de Deus, quando ele reina tão-só
naturalmente, nada mais são que as leis naturais, ou seja, aquelas
que expusemos nos
capítulos II e m, e que deduzimos dos ditames da razão
a humildade, a eqüidade, a justiça, a misericórdia, e outras virtudes
7. A obrigação de prestar obediência a Deus procede da fraqueza morais favoráveis à paz, que mandam os homens cumprirem seus
humana deveres uns para com os outros -, e ainda aquelas que a razão reta
Mas, se o direito de Deus à soberania decorre de seu poder, é acrescentar, a propósito da honra e culto devidos à Majestade
manifesto que a obrigação que os homens têm de lhe prestar Divina. Não precisamos repetir quais são essas leis naturais ou
obediência deriva da fraqueza deles (weakness)4. virtudes morais; mas devemos investigar o que a mesma razão
Pois a obrigação que decorre do contrato, e da qual falamos no natural dita no tocante às honras e ao culto divino, isto é, que leis
capítulo lI, não tem cabimento aqui, onde nenhum pacto ainda foi sacras ela determina.
firmado e portanto o direito de governar deriva apenas da natureza.
Há, porém, duas espécies de obrigação natural: numa a
liberdade é abolida por impedimentos corpóreos - e é ela que nos
faz dizer que o céu, a terra e todas as criaturas obedecem às leis 9. O que é honrar e cultuar
comuns de sua criação -; na outra se suprime a liberdade (por
esperança ou por medo), porque ao mais fraco, tendo perdido a fé A honra, propriamente dita, nada mais é que a boa opinião
em suas forças para resistir, a única alternativa que restou foi que temos do poder de alguém; honrá-Ia é a mesma coisa que tê-Ia
render-se ao mais forte. Dessa última espécie de obrigação, isto é, em alta estima; e por isso honrar não é algo que reside na pessoa
do medo, ou da consciência de nossa própria fraqueza (com honrada, e sim na que lhe mostra sua estima. Ora, três paixões
respeito ao poder divino)5, decorre que estejamos obrigados a necessariamente acompanham a honra assim considerada: o amor,
obedecer a Deus em seu reino natural: pois a razão ordena, a todos que faz ser boa a opinião; a esperança e o medo, que dizem
os respeito ao poder. E destas paixões procedem todas as ações
externas, pelas
quais aplacamos os poderosos, e requeremos seu favor, e

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Religião
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que são os efeitos (e portanto os sinais naturais) da própria honra. 11. E há um culto natural, e outro arbitrário
A palavra honra, porém, também se aplica a esses efeitos Se desejamos elogiar alguém por palavras ou atos, en-
externos da honra; e nesse sentido afirma-se que honramos as contramos algumas coisas que para todos os homens hão de
pessoas a cujo poder manifestamos, por palavra ou ato, um grande significar honra. Entre tais atributos estão os termos genéricos que
respeito; assim, honrar é o mesmo que cultuar". O culto, por sua designam virtudes ou poderes, e que não podemos entender em mau
vez, é um ato externo, sinal da honra interna; e afirma-se que sentido, assim como bom, belo,
cultuamos aqueles cuja cólera procuramos aplacar, ou cujo favor forte, justo e outros termos semelhantes; e, entre as ações,
pleiteamos. elencamos a obediência, o agradecimento, as preces e outras
análogas, pelas quais sempre se entende que reconhecemos a
virtude ou o poder alheio. Mas também há termos que significam
honra somente para uns, para outros significando o desdém ou,
10. O culto consiste em atributos ou ações mesmo, nada: entre esses atributos estão as palavras que, segundo a
diversidade das opiniões, quer designam virtudes, quer vícios, quer
Todos os sinais do espírito consistem quer em palavras, quer coisas honestas, quer desonestas. Por exemplo, que um homem
em atos - e por isso todo culto tem de consistir em palavras ou atos. matou seu inimigo, que ele fugiu, que é filósofo, ou orador, ou outra
Ora, ambos remetem a três espécies de culto: o primeiro é o elogio, coisa, que alguns têm em alta estima e outros em baixa. Dentre os
ou a declaração pública de bondade; o segundo é uma declaração atos, aqueles que dependem do costume do lugar ou das prescrições
pública do poder atual, que e o mesmo que magnificar, metálusis; o da lei civil, como descobrir-se ao cumprimentar, tirar os sapatos,
terceiro é uma declaração pública de felicidade, ou de que o poder inclinar o corpo, a forma de fazer um pedido (de pé, prostrado, de
há de perdurar pelo futuro, a que se chama makarismós. Afirmo que joelhos), ou ainda as
todas as espécies de honra se podem discernir, não só nas palavras, fórmulas cerimoniais etc. Em suma, podemos dizer natural o culto
mas também nos atos que os homens praticam. Assim, elogiamos e que todos consideram honrado em todos os tempos, e arbitrário
celebramos em palavras, quando o fazemos usando de proposições, aquele que varia conforme os lugares e os costumes.
ou dogmaticamente, isto é, quando conferimos atributos ou títulos.
A isto podemos chamar de celebração ou elogio pleno e categórico,
como quando dizemos que a pessoa a quem queremos honrar é
liberal, forte, sábia. E elogiamos por meio de atos quando o
fazemos por inferência, ou por hipótese, ou suposição, como 12. Um culto ordenado, outro voluntário
quando agradecemos, o que supõe bondade; ou obedecemos, o que
supõe um poder; ou congratulamos, o que supõe a felicidade. Ademais, o culto pode ser ordenado - se obedece à ordem
daquele a quem se honra - ou voluntário - quando segue a opinião
de quem presta o culto. Se for ordenado, as ações que o expressam
não honram por serem ações, mas por serem ordenadas: porque
significam, imediatamente, obediência, e esta significa poder;
assim, o culto que é orde

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-,

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nado consiste em obediência. Já o culto voluntário confere honra


te em adquirir por esse meio o maior número possível de homens
apenas segundo a natureza das ações: se elas significam honra aos
que, por amor ou medo, lhe sejam obedientes.
olhos de quem as pratica, trata-se, sim, de culto, se não, de escárnio.
Além disso, o culto pode ser público ou privado. O público,
porém, se considerarmos cada um dos que o tributam, pode não ser
voluntário; é voluntário, sim, no tocante à cidade. Pois, 14. Quais são as leis naturais a respeito dos
considerando-se que para algo ser voluntário tem de depender da atributos de Deus
vontade de quem o faz, teria de haver não um culto único, mas Para entendermos que espécie de culto a razão natural nos
tantos cultos quantas pessoas houvesse cultuando Deus, a menos manda prestar a Deus, comecemos pelos seus atributos. Primeiro, é
que a vontade de todos estivesse unida sob a ordem de um só. - manifesto que deve ser reconhecida sua existência; pois não
Já o culto privado pode ser voluntário, se for prestado em podemos ter a intenção de honrar aquele que, em nosso entender,
segredo; pois o que se faz em lugar aberto sempre sofre alguma não existe. Depois, dizer, como alguns filósofos, que Deus é o
restrição, quer das leis quer da modéstia, e isso contradiz a natureza mundo, ou a alma do mundo (isto é, uma parte desse mesmo
da ação voluntária. mundo), é falar dele em termos desrespeitosos: porque, assim
dizendo, eles nada lhe atribuem, e na verdade negam sua
existência. Pois pela palavra Deus entendemos a causa do mundo;
ora, dizendo então que o mundo é Deus, afirma-se que ele não tem
causa, o que é o mesmo que dizer que Deus não exis
te. O mesmo se aplica, ainda, aos que sustentam que o mundo não
13. Qual é o fim ou escopo do culto
foi criado mas é eterno - como não pode haver causa de uma coisa
Para sabermos em que consiste o escopo e o fim do culto, eterna, negando que o mundo tenha causa eles negam, também, que
precisamos considerar a causa pela qual as honras (worship) dão haja um Deus.
tanto prazer aos homens. E devemos então reconhecer o que já Também têm uma opinião indigna de Deus os que, con-
mostramos em outro lugar, a saber, que a alegria Cjoy) consiste em siderando-o indiferente, retiram-lhe o governo do mundo e da
alguém contemplar a virtude, a força, a ciência, a beleza, a amizade humanidade. Pois, embora reconheçam sua ,onipotência, pensam
ou qualquer outro poder como sendo seus, ou como se o fossem; e que ele não cuida destas coisas inferiores, ra
isso nada mais é que uma glória ou triunfo do espírito, que se zão por que caberia aqui o adágio quod supra nos, nihil ad
concebe honrado, isto é, amado e temido, isto é, tendo a seu dispor nos - o que está acima de nós não nos diz respeito. E, considerando
o serviço e a assistência dos homens. Ora, como os homens nada haver para que eles lhe tenham quer amor, quer temor, Deus
consideram poderoso aquele a quem vêem ser honrado (ou seja, em verdade será para eles como se absolutamente não existisse.
avaliado pelos outros como poderoso), sucede que a honra aumenta Além disso, dentre os atributos que se referem à grandeza ou
graças ao culto, e que a reputação de poder faz adquirir um poder ao poder, os que significam algo finito ou limitado não indicam
autêntico. O objetivo (end), portanto, de quem manda ou aceita que intenção alguma de honrar. Com efeito, não
o honrem consis

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honramos Deus de modo condigno, se lhe atribuímos menos poder


se pode entender por que alguém desejaria, esperaria ou ansiaria
ou grandeza do que poderíamos fazê-Io. Ora, toda coisa finita é
por algo, a menos que seja uma coisa que não possua e de que tenha
menor do que nossa possibilidade - pois, ao que é finito, seria
necessidade; ou, ainda, qualquer faculdade passiva, porque o
extremamente fácil atribuirmos ou designarmos algo mais. Por isso,
sofrimento caracteriza um poder limitado, e dependente de outro.
nenhuma figura deve ser atribuída a Deus, pois toda figura é finita7;
Por isso, quando atribuímos vontade a Deus, não deve ela ser
nem devemos dizer que ele seja concebido ou compreendido pela
entendida como a nossa, a que se chama de "desejo racional"; pois,
imaginação, ou por qualquer outra faculdade de nossa alma: pois
se dizemos que Deus deseja, afirmamos que ele carece de
tudo o que concebemos é finito. E, embora esta palavra infinito
determinada coisa, o que constitui um insulto a ele; mas devemos
signifique algo que é concebido pela mente, não se segue que
supor que haja algo análogo, porém que escapa à nossa
tenhamos qualquer concepção que seja de uma coisa infinitas.
compreensão. Da mesma forma, quando atribuímos a ele a visão e
Assim, quando dizemos que uma coisa é infinita, nada significamos
outros atos dos sentidos, ou o conhecimento, ou a compreensão,
na verdade, mas apenas a impotência de nosso próprio espírito,
que em nós nada são além de um tumulto da mente suscitado por
como se disséssemos que ignoramos se tal coisa é limitada ou onde
objetos externos a pressionarem nossos órgãos, não devemos supor
se encontram os seus limites.
que nenhuma coisa tal ocorra à Divindade: pois todos estes
Tampouco honram a Deus o bastante aqueles que dizem que
atributos indicam um poder que depende de outro, coisa em que não
temos, dele, uma idéia em nosso espírito: pois tal idéia é concepção
consiste a bem-aventurança.
nossa, e só podemos conceber coisas finitas. Nem o honra quem diz
Quem, portanto, não quiser dar a Deus qualquer título além
que ele tem partes, ou que ele é uma coisa inteira - porque se trata
dos que a razão ordena, deve então utilizar aqueles
de atributos de
que são negativos, como infinito, eterno, incompreensível ete., ou
coisas finitas. Nem quem diz que ele está em tal lugar: pois, para
então superlativos, como boníssimo, altíssimo, po
se dizer que algo esteja num lugar, é preciso que
derosíssimo ete., ou ainda indefinidos, como bom, justo,
tenha limites e fronteiras de sua grandeza de todos os lados. Nem
forte, criador, rei e outros análogos. E os usará não por querer dizer
que ele se movimenta ou repousa: porque cada uma destas coisas
o que Deus é - o que seria uma tentativa de circunscrevê-Io dentro
supõe um ser que esteja em determinado lugar. Nem que há mais
dos estreitos limites de nossa fantasia -, mas para confessar nossa
Deuses: porque não pode haver mais infinitos.
admiração e obediência, o que bem convém à humildade e a um
Ademais, quanto aos atributos da felicidade, são indignos de
espírito disposto a prestar toda a honra que possa a alguém. Pois a
Deus os que significam a dor (a menos que esta não se tome por
razão dita um nome apenas para significar a natureza de Deus, que
uma paixão, mas como uma metonímia de seu efeito), como por
é o que existe ou, simplesmente, o que é; e um para sua relação
exemplo o arrependimento, a ira, a piedade; ou a carência (want),
conosco, que é Deus, compreendendo em sua significação rei,
como o apetite, a esperança, a concupiscência, e aquele amor a que
senhor e pai.
também se chama luxúria, porque são, todos estes, sinais de
miséria, já que não

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Do Cidadão Religião

15. Quais são as ações pelas quais prestamos um de Deus em vão, ou usá-l o de forma temerária - pois nos dois casos
culto natural o desrespeitamos. Tampouco devemos jurar quando tal não for
preciso: pois será, também, tomá-l o em vão. Ora, não há
Uma máxima geral da razão ordena, no tocante às ações
necessidade alguma de jurar por Deus, a menos que seja na relação
externas por meio das quais se deve adorar a Deus, e aos títulos que
entre duas cidades, para evitar ou pôr fim aos conflitos que
lhe devemos dar, que tais ações e títulos atestem a disposição do
necessariamente haveriam de nascer quando não se confia nas
espírito a honrá-Io. A esse propósito temos, em primeiro lugar, as
promessas feitas, ou ainda no interior de uma cidade, para maior
preces.
certeza nos processos judiciais.
Não devemos, igualmente, pôr em discussão (dispute) a
Qui fingit sacros auro, vel marmores vultus, Non natureza divina. É de supor que, no reino natural de Deus, todas as
facit ille deos; qui roga!, ille facit9. coisas sejam investigadas apenas pela razão, isto é, pelos princípios
da ciência natural. Mas estamos tão longe de poder atingir, por
Pois as preces são sinal de esperança, e a esperança significa meio deles, o conhecimento da natureza de Deus, que não podemos
um reconhecimento do poder ou da bondade de Deus. sequer alcançar o conhecimento pleno de todas as qualidades de
Em segundo lugar, temos a ação de graças: que é sinal da nossos próprios corpos, ou dos de quaisquer outras criaturas. Por
mesma afeição, com a diferença de que as preces se fazem antes do isso nada resulta dessas discussões, a não ser uma precipitada
benefício, e os agradecimentos depois. imposição de nomes à Majestade Divina com base na limitada
Em terceiro, dádivas, isto é, oblações e sacrifícios, porque medida de nossas concepções. Segue-se ainda, quanto ao direito
constituem ações de graças. que vige no reino de Deus, que também étemerário e desrespeitoso
Em quarto lugar, não jurar por ninguém a não ser Deus. Isso o discurso daqueles que dizem que tal ou qual coisa não é
porque quando alguém presta um juramento o que faz é invocar compatível com a justiça divina. Pois até os homens consideram
contra si mesmo, para o caso de faltar à palavra dada, a ira de quem como uma afronta que seus filhos discutam o direito dos pais, ou
o conhece melhor do que ele próprio, e que pode puni-l o se meçam a justiça destes por qualquer outra regra diferente do que
infringir sua promessa, por mais poderoso que seja ele, que jura: e eles próprios ordenaram.
só pode tratar-se, pois, de Deus. Pois, se alguém houvesse de quem Em sexto lugar, tudo o que for oferecido em preces, ação de
a malícia de seus súditos não pudesse se dissimular, e a quem ne- graças e sacrifícios deve ser, na sua espécie, o que melhor simboliza
nhum poder humano pudesse resistir, a palavra dada bastaria já sem a honra; por exemplo, não se deve rezar às pressas, ou
necessidade de juramento, porque, ela rompida, tal homem poderia levianamente, ou de forma vulgar; as preces devem ser belas e bem
infligir os castigos cabíveis; e por essa mesma razão não haveria compostas. Pois, embora fosse absurdo os gentios adorarem a Deus
necessidade de juramento. numa imagem, não agiam eles contra a razão utilizando poesia e
Em quinto lugar, falar de Deus com respeito: pois este é um música em seus templos. As vítimas também devem ser belas, e as
sinal de medo, e sentir medo é reconhecer um poder. Deste preceito oferendas
se segue que não podemos tomar o nome

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Do Cidadão Religião

suntuosas, e adequadas para significar a submissão ou gratidão de linguagem o uso dos nomes e das apelações vem de uma convenção
quem as dá, ou ainda para celebrar os benefícios recebidos; pois (appointment), por uma convenção também pode ser alterado - pois
tudo isso procede de um desejo de honrar uma pessoa. o que depende da vontade dos homens, e dela extrai sua força, pode
Em sétimo lugar, Deus não deve ser adorado apenas em pela vontade desses mesmos homens ser novamente alterado ou
lugares privados, mas abertamente e em público, à vista de todos: mesmo suprimido. Por isso, os nomes que são atribuídos a Deus por
porque esse culto é muito mais aceitável, na medida em que produz uma convenção entre os homens podem, pela mesma convenção,
honra e estima nos outros (como jámostramos acima, no parágrafo ser modificados. Ora, o que depende da convenção dos homens
13). Se ninguém vê o culto que prestamos, ele perde o que possui depende da cidade. A cidade tem então o direito (quero dizer,
de mais agradável. aqueles que têm o poder na cidade) de julgar que nomes ou títulos
Finalmente, devemos pôr nosso máximo empenho em cumprir são mais, e menos, honrados para Deus, isto é, que doutrinas devem
as leis de natureza. Pois menosprezar os mandamentos de Nosso ser pregadas e professadas sobre a natureza de Deus e suas
Senhor é a maior afronta possível - assim como, inversamente, a operações.
obediência é mais bem aceita que todos os outros sacrifícios. As ações, porém, não significam apenas devido às convenções
São estas as principais leis naturais relativas ao culto de Deus; humanas, mas também naturalmente, assim como os efeitos são
as leis, quero dizer, que a razão dita a cada homem. Mas, no que se sinais de suas causas. Assim, algumas sempre constituem um sinal
refere às cidades, cada uma das quais constitui uma pessoa, a de desrespeito àqueles diante dos quais são cometidas, como por
exemplo quando descobrimos as partes sujas do corpo, ou tudo
mesma razão natural ordena ainda que o culto seja uniforme. Com
aquilo que nos envergonhamos de praticar em frente das pessoas a
efeito, as ações praticadas pelos particulares, em conformidade a
quem respeitamos. Outros atos sempre constituem sinal de honra,
suas razões privadas, não são ações da cidade, e portanto não
como por exemplo aproximar-se e falar de maneira decente e
constituem o culto da cidade; enquanto o que a cidade faz entende-
humilde, ceder a passagem a outrem ou qualquer outra deferência.
se que é feito por ordem de seu soberano, portanto também com o
Essas ações a cidade em nada pode alterar. Mas há outras, em
consentimento de todos os súditos, isto é, de maneira uniforme.
número infinito, que são indiferentes no tocante à honra ou ao
descaso; e podem, por decreto da cidade, ser convertidas em sinais
de honra; e basta esse decreto para que elas efetivamente se tornem
honrosas. Disso podemos entender que devemos obedecer à cidade
em tudo o que ela mandar que usemos como sinal para honrar a
Deus, isto é, para seu culto; desde que essa coisa possa ser instituída
16. No reino natural de Deus, a cidade pode determinar como um sinal de honra; e a razão é que será sinal de honra tudo o
o culto que quiser a Deus que por ordem da cidade assim for
As leis naturais sobre o culto divino, estabelecidas no parágrafo utilizado.
anterior, apenas nos mandam dar os sinais natu
rais de honra. Mas devemos considerar que há dois tipos de
signo1O, um natural e outro que se constitui por acordo ou
composição, quer expressa quer tácita. Ora, como em toda

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Do Cidadão
Religião

17. Quando Deus reina apenas por natureza, a cidade - isto é, culto consiste em ser, ele, sinal interno de que se honra; e não há
o homem ou assembléia que abaixo de Deus tem a sinal a não ser quando algo se torna conhecido dos
autoridade suprema da cidade - é intérprete de todas as leis outros, e portanto não há sinal de honra, a não ser o que parece
Já dissemos o que são as leis de Deus, tanto as sagradas quanto constituí-ia aos olhos dos outros.
as seculares, no seu governo apenas natural. Ora, como não existe Além disso, é um signo de verdade aquele que se torna tal por
ninguém que não se possa enganar no raciocínio, e que disso consentimento dos homens; da mesma forma, portanto, é honroso o
decorre que os homens tenham as opiniões as mais diferentes a que se torna sinal de honra por consentimento dos homens, isto é,
propósito da maior parte das ações, pode-se indagar então quem por ordem da cidade. Por isso não contradiz a vontade de Deus,
Deus escolheria como intérprete da razão reta, isto é, de suas leis. manifestada apenas pela via da razão, tributar-lhe os sinais de
Quanto às leis seculares, por elas entendendo as que dizem respeito honra que a cidade ordenar. Nada impede, portanto, os súditos de
à justiça e à conduta dos homens uns em relação aos outros, penso transferirem a quem tenha o poder soberano o seu direito de julgar
haver demonstrado já, pelo que disse sobre a constituição da de que maneira devem cultuar a Deus. Mais que isso, eles têm o
dever de transferir esse direito - pois, de outro modo, toda espécie
cidade, que é conforme à razão que toda a judicatura pertença a
de opiniões absurdas sobre a natureza divina, e as cerimônias mais
cidade; e, como a judicatura nada mais é que a interpretação das
ridículas que já tenham sido usadas em qualquer nação que seja,
leis, por toda a parte as cidades, isto é, os detentores do poder
circularão todas a um só tempo na mesma cidade. Disso decorre,
soberano, são os intérpretes das leis.
então, que cada um acreditará que todos os demais ofendem a
Deus; por isso não se poderá dizer, de ninguém, que cultue a Deus;
pois só lhe presta culto, isto é, só o honra externamente, quem aos
outros parece fazê-lo.
Quanto às leis sagradas, devemos considerar o que acima
Podemos assim concluir que a interpretação de todas as leis,
demonstramos no capítulo V, parágrafo 13: que cada súdito
tanto sacras quanto seculares - no reino natural de Deus -, depende
transferiu ao detentor da autoridade suprema tanto direito quanto
da autoridade da cidade, isto é, do homem ou conselho a quem
pôde. Ora, como ele podia transferir seu direito a julgar de que
cabe o poder soberano; e tudo o que Deus manda, manda por sua
maneira Deus deve ser honrado, necessariamente o transferiu. Que
voz. Por outro lado, tudo o que ele mandar, tanto sobre o culto de
ele pudesse transferi-lo é o que constatamos do fato de que, antes
Deus quanto em negócios seculares, é mandado por Deus mesmo.
de se constituir a cidade, a maneira de honrar a Deus decorria da
razão particular de cada homem. E cada indivíduo pode submeter
sua razão particular à razão da cidade como um todo.
Ademais, se cada qual seguisse sua própria razão no culto de
Deus, sendo tão numerosos os que prestam culto, necessariamente
um julgaria a maneira do outro inadequada ou mesmo ímpia; aos
olhos de um, o outro não pareceria honrar a Deus. Mesmo aquilo 18. A solução para algumas dúvidas
que fosse o mais adequado à razão não constituiria um culto,
porque a natureza do Contra o que dissemos, alguém pode objetar, primeiro, se
disso não se segue que devemos obedecer à cidade até quando ela
nos mandar afrontar diretamente a Deus, ou

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Do Cidadão Religião

quando nos proibir de adorá-lo? Afirmo que isso não se segue, e que tos e ações pelos quais se deve prestar culto a Deus, a questão será
em tal caso não devemos obediência. Pois ninguém poderá entender se devemos obedecer. Há muitas coisas que podem ser atribuídas,
que fazer uma afronta, ou não prestar culto algum, possa constituir correntemente, tanto a Deus quanto aos homens; pois mesmo os
uma maneira de culto. Além disso, nenhum dos que confessam que homens podem ser elogiados e magnificados. E há muitas ações
Deus reina tinha, antes da constituição da cidade, o direito de negar pelas quais Deus e os homens receberam honra. Mas a única coisa
a ele a honra que lhe é devida; portanto, não poderia transferir à que aqui devemos considerar é o que significam tais atributos e
cidade o direito de ordenar tais coisas. ações. Por isso, os atributos que manifestem a crença de que um
Depois, se nos perguntarem se devemos obedecer à cidade certo homem dispõe de uma soberania independente de Deus, ou
caso ela mande dizer ou fazer algo que não constitua diretamente de que é imortal, ou tem um poder infinito, e outros análogos,
uma ofensa (disgrace) a Deus, mas de que seja possível inferir, pelo devem ser evitados por nós, ainda quando os próprios príncipes
raciocínio, conseqüências ofensivas: como, por exemplo, se nos nos mandem utilizá-Ias. Assim como devemos abster-nos das
mandarem adorar Deus numa imagem, à frente de pessoas que ações que tenham o mesmo significado, como rezar aos ausentes;
consideram tal prática honrosa; direi, então, que devemos pedir as coisas que sóDeus pode dar, tal como a chuva ou o bom
obedecerl1. Pois o culto é instituído em sinal de honra; e honrá-lo tempo; oferecer-lhe o que só Deus pode aceitar, como vítimas e
desta forma é um sinal de honra, e amplia a honra de Deus junto holocaustos; ou prestar-lhe o maior culto que se pode tributar, isto
àqueles que consideram tal gesto honroso. Ou, se nos mandarem é, o que consiste em sacrifícios. Pois essas coisas parecem tender a
chamar Deus por um nome cujo significado ignoramos, ou do qual afirmar que Deus não reina, ao contrário do que supúnhamos desde
não sabemos como se pode conciliar com a palavra Deus - também o princípio. Mas a genuflexão, a prostração ou qualquer outro
aqui devemos obedecer. Pois o que fazemos para honrar (sem movimento do corpo podem ser legalmente utilizados mesmo no
entender que tenha outra finalidade), se for tomado por sinal de culto civil - pois podem significar, meramente, que reconhecemos
honra, é sinal de o poder civil como tal. Com efeito, o culto divino não se distingue
honra; e por isso, se nos recusamos a agir dessa forma, estamos nos do civil pelo movimento, postura, hábito ou gestos do corpo, e sim
recusando a ampliar a honra de Deus. pela expressão (declaration) de nossa opinião sobre aquele a quem
O mesmo juízo devemos emitir sobre todos os atributos e honramos. Assim, se nos lançamos aos pés de um homem, com a
ações acerca do culto apenas racional de Deus, que possam dar intenção de declarar por esse sinal que o consideramos como Deus,
ensejo a controvérsias e disputas. Pois, embora essa espécie de isto é culto divino; mas, se fizermos a mesma coisa enquanto sinal
atributos possa eventualmente contradizer a razão reta, e portanto de nosso reconhecimento de seu poder civil, este gesto consiste em
possa constituir pecado em quem os manda proclamar, ainda assim culto civil. O culto divino tampouco se distingue do civil por qual
não vão contra a razão reta, nem constituem pecado entre os quer ação usualmente compreendida nas palavras latreía e douleía, das
súditos, para quem a razão reta nas questões controversas consiste quais a primeira marca o dever dos servos, a segunda, a sua condição,
em se submeterem à razão da cidade. mas definem ambas a mesma coisa.
Finalmente, se o homem ou conselho que detém o poder
supremo nos mandar adorá-lo com os mesmos atribu

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Do Cidadão

19. O que no reino natural de Deus é pecado, e o que é traição CAPÍTULO XVI
à Majestade Divina
Do que afirmamos se pode concluir que, quando Deus reina Do Reino de Deus Sob
apenas pela via da razão natural, seus súditos pecam, em primeiro o Antigo Pacto1
lugar, se violam as leis morais, que nós desenvolvemos nos
capítulos II e III. Em segundo lugar, se faltam com as leis ou ordens
da cidade nas coisas atinentes à justiça. Terceiro, se não adoram a
Deus katà tà nómika. Quarto, se não confessam perante os homens,
por palavras e atos, que existe um único Deus, boníssimo, altíssimo,
beatíssimo, rei supremo do mundo e de todos os reis deste mundo:
isto é, se não adoram a Deus. Este quarto pecado, no reino natural
1. Com a superstição possuindo as nações estrangeiras, Deus
de Deus, é - pelo que já dissemos no parágrafo 2 do capítulo
instituiu a verdadeira religião por meio de Abraão
anterior - o pecado de traição contra a Majestade Divina. Pois
consiste em negar o poder divino, ou seja, é o pecado de ateísmo. Com o gênero humano, por ter consciência de sua própria
Com efeito, aqui os pecados procedem exatamente como num reino fraqueza e por sentir admiração ante os acontecimentos naturais,
do qual suponhamos que o soberano se tenha ausentado, reinando sucede o seguinte: a maior parte dos homens acredita que seja Deus
enquanto isso por intermédio de um vice-rei. Certamente quem não o invisível artífice de todas as coisas invisíveis, a quem portanto
obedecer ao vice-rei em todas as coisas estará pecando contra o rei, temem, porque imaginam não serem capazes de se protegerem a si
a menos que o substituto usurpe o trono para si mesmo, ou o dê a próprios de maneira suficiente. Contudo, o uso imperfeito de sua
outra pessoa; mas quem obedecer de forma tão absoluta ao vice-rei, razão e a violência de suas paixões a tal ponto os cegaram que eles
a ponto de segui-Io até nessas exceções, será réu de traição. não puderam cultuá-Io da forma correta. Ora, o medo das coisas
invisíveis, quando amputado da reta razão, constitui superstição.
Assim, era quase impossível que os homens, sem uma assistência
especial de Deus, conseguissem evitar os escolhos tanto do ateísmo
quanto da superstição. Pois esta procede do medo, a que falta a
razão reta; e aquele resulta de uma opinião da razão reta, quando
lhe falta o medo.
A idolatria por isso facilmente se apoderou da maior parte dos
homens, e quase todas as nações cultuaram a Deus em imagens e
. símiles de coisas finitas; e adoraram espíritos ou visões vãs, talvez
temendo chamá-Ios de "demônios". Mas aprouve à Majestade
Divina, como podemos ler na história sacra, de todo o gênero
humano escolher a Abraão, por meio do qual ela poderia trazer os
homens a cultuá-Ia

I.

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Do Cidadão
Religião

corretamente; e por isso revelou-se sobrenaturalmente a ele, e a tua semente depois de ti em suas gerações, por pacto perpétuo,
firmou com ele e sua semente aquele famosíssimo pacto, que é para te ser a ti por Deus, e a tua semente depois de ti. E te darei a ti,
chamado o antigo pacto ou testamento. Abraão é, portanto, a e a tua semente depois de ti, a terra de tuas peregrinações4, toda a
cabeça da verdadeira religião; foi ele o primeiro que depois do terra de Canaã em perpétua possessão, e ser-lhes-ei Deus. Foi então
dilúvio ensinou que havia um Deus, o Criador do universo. E nele preciso instituir algum sinal, que permitisse a Abraão e a sua
se origina o reino de Deus pela aliança2. Flávio ]osefo, semente conservarem a memória do pacto - razão por que se
Antiguidadesjudaicas, Livro I, capítulo 7. acrescentou, ao pacto, a circuncisão, mas como um sinal e nada
mais (vv. 10-11): Este é o meu pacto, que guardareis entre mim e
vós, e a tua semente depois de ti: Que todo o macho vos será cir-
2. Pelo pacto entre Deus e Adão, proíbe-se toda discussão sobre cuncidado. E circuncidareis a carne do vosso prepúcio; e isto será
as ordens dos superiores por sinal do pacto entre mim e vós. Pactuou-se portanto que Abraão
No começo do mundo, Deus reinou de fato, não apenas reconheceria a Deus como seu Deus e Deus de sua semente, isto é,
naturalmente, mas também por meio de pacto, sobre Adão e Eva. que se submeteria para que ele o governe; e que Deus daria a
De modo que parece que, além da obediência ditada pela razão Abraão a herança daquela terra em que vivia, este, apenas como
natural, ele não queria que os homens lhe prestassem nenhuma peregrino; e que Abraão, como sinal perpétuo de seu pacto, tomaria
outra, a não ser a devida por pacto, isto é, a que se originasse no as providências para que ele e seus descendentes varões fossem
consentimento dos próprios homens. Mas, como esse pacto logo circuncidados.
perdeu a validade, para nunca mais ser renovado, a origem do reino
de Deus (que é só dele que aqui tratamos) não se deve buscar neste
local. Mas deve-se notar, pelo menos de passagem, que pelo
preceito de não se comer da árvore do conhecimento do bem e do
mal (quer estivesse proibido julgar do bem e do mal quer comer o 4. Nesse pacto não está contido o mero reconhecimento de
fruto de determinada árvore) Deus exigia uma obediência Deus, mas sim o dele tal como apareceu a Abraão
simplicíssima a seus mandamentos, não cabendo sequer disputar se
era bom ou mau o que assim mandava. Pois os frutos da árvore, se Mas, considerando que Abraão reconheceu a Deus como
não houver um mandamento, nada têm em sua natureza que torne o Criador e Rei do mundo já antes do pacto (pois ele jamais pôs em
comêlos moralmente mau, isto é, pecaminoso. dúvida a existência ou a providência de Deus), como entender que
não fosse supérfluo Deus comprar a um preço e mediante contrato
uma obediência que já naturalmente lhe era devida? Esse preço
.. consistiu na terra de Canaã, dada a Abraão sob a condição de que
ele o aceitasse por seu Deus - quando, pelo direito de natureza, ele
já era isso. Por conseguinte, por essas palavras: para te ser a ti por
3. A fórmula do pacto entre Deus e Abraão Deus, e à tua semente depois de ti, não entendemos que Abraão
cumpriu sua parte no pacto apenas reconhe
O pacto entre Deus e Abraão foi assim formulado (Gê
nesis 17, 7-8): E estabelecerei o meu pacto3 entre mim e ti e

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Do Cidadão Religi
ão
cendo a Deus indefinidamente, coisa que compete à razão natural; 6.Junto a seus dependentes, Abraão era o intérprete da palavra
mas que ele devia reconhecer definidamente a quem lhe disse: Sai- de Deus, e de todas as leis
te da tua terra etc.5 (Gênesis 12, 1-2); Levanta agora os teus Assim Abraão era intérprete de todas as leis, tanto sagradas
0lhosetc.6 (Gênesis 13,14); que apareceu à sua frente (Gênesis 18, quanto seculares, perante aqueles que a ele pertenciam; e o era não
1-2), na forma de três homens celestiais, e em visão (Gênesis 15, apenas naturalmente, em virtude das leis de natureza, mas também
1), e ainda num sonho, que é assunto de fé (versículo 13). Sob que graças ao próprio pacto, no qual Abraão promete a obediência não
forma Deus apareceu a Abraào, por que espécie de som ele lhe só de si próprio, mas também de sua semente - o que seria ocioso e
falou, não se sabe. Mas é claro que Abraão acreditava que aquela vão, se seus filhos não estivessem obrigados a obedecer a suas
voz fosse a de Deus e consistisse numa revelação verdadeira, e ordens. E como se poderia entender que Deus diga (Gênesis 18, 18
queria que todos os seus adorassem àquele, que assim lhe falou, 19): Nelé serão benditas todas as nações da terra. Porque eu o
como Deus Criador do universo; e que sua fé se fundava não em tenho conhecido, que ele há de ordenar a seus filhos e a sua casa
que ele acreditasse na existência de Deus, ou que este fosse veraz depois dele, para que guardem o caminho ao senhor, para cobrar
em suas promessas, coisas em que todos acreditam, mas no fato de com justiça e juízo, se não fosse pela suposição de que seus filhos e
que não duvidava que fosse Deus aquele cuja voz e promessas ele sua casa estavam obrigados a prestar obediência ao que ele lhes
tinha ouvido, e que o Deus de Abraão não significava apenas Deus, ordenasse?
mas aquele Deus que a ele apareceu - assim como o culto, que
nessa concepção Abraão devia a Deus, não era o culto da razão mas
o da religião e fé, e que Deus, e não a razão, lhe tinha revelado pela
via sobrenatural.
7. Os súditos de Abraão não pecariam ao lhe obedecerem
Disso decorre que os súditos de Abraão não podiam pecar ao
lhe obedecerem, desde que Abraão não lhes mandasse negar a
existência ou a providência divinas, ou fazer algo expressamente
5. As leis às quais Abraão estava obrigado eram apenas as leis contrário à honra de Deus. Em todas as outras coisas, a palavra de
de natureza e a da circuncisão Deus deveria ser colhida tãosomente de seus lábios, sendo ele o
intérprete de todas as leis e palavras de Deus. Pois somente Abraão
Mas não lemos que Deus tenha dado leis a Abraão, ou que poderia ensinar-lhes quem era o Deus de Abraão, e de que maneira
Abraão as tenha dado a sua família, nessa época ou mesmo depois, ele deveria ser cultuado. E aqueles que depois da morte de Abraão
fossem elas seculares ou sagradas; com uma única exceção, a do estiveram sujeitos à soberania de Isaac ou de Jacó pela mesma
mandamento da circuncisão, que está contido no próprio pacto. Por razão obedeceram a eles em todas as coisas sem com isso pecarem,
isso se evidencia que Abraão não estava obrigado a nenhuma lei ou enquanto confessaram e professaram ter por Deus o Deus de
culto, a não ser às leis da natureza, do culto racional e da Abraão. Pois eles se submeteram simplesmente a Deus, antes de se
circuncisão. submeterem a Abraão, e a Abraão antes de se sujeitarem ao Deus
de Abraão; e da

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...

Do Cidadão Religião

mesma forma ao Deus de Abraão, antes de se submeterem a Isaac.


9. Desde então o governo de Deus chamou-se o seu reino
Por conseguinte, nos súditos de Abraão, o único crime de lesa-
majestade divina consistia em negar a Deus; mas, em sua Nesse pacto, entre outras coisas, devemos considerar com
posteridade, esse crime também incluía negar o Deus de Abraão, ou atenção a palavra reino, que não fora usada antes. Pois, embora
seja, adorar Deus por outro culto que o instituído por Abraão, por Deus fosse seu rei, tanto naturalmente quanto pelo pacto firmado
exemplo, em imagens feitas com as mãos8, como fizeram outras com Abraão, contudo eles lhe deviam uma obediência e culto
nações, que por isso foram chamadas de idólatras. E desde então apenas naturais, na qualidade de súditos seus; e uma obediência e
puderam os súditos facilmente discernir o que deviam observar, e o
culto religiosos, como o que foi instituído por Abraão, enquanto
que evitar, nas ordens que lhes dessem seus príncipes.
súditos de Abraão, Isaac e Jacó, seus príncipes naturais. Pois eles
não haviam recebido palavra alguma de Deus além da palavra
natural que consiste na razão reta; nem haviam celebrado nenhum
pacto com Deus, exceto na medida em que suas vontades estavam
8. O pacto de Deus com os hebreus no monte Sinai englobadas na vontade de Abraão, na medida em que este era seu
príncipe. Mas agora, pelo pacto firmado no monte Sinai, uma vez
Prosseguindo, segundo a orientação das Sagradas Escrituras, o
concedido o consentimento de cada homem, passou a haver um
mesmo pacto foi renovado com Isaac (Gênesis 26, 3-4), e depois
reino instituído de Deus sobre eles. O reino de Deus, tão renomado
com Jacó (Gênesis 28, 13-14), quando Deus não se intitula apenas
nas Escrituras e nos tratados dos teólogos, originou-se nesse tempo;
Deus, como a natureza diz que ele é, mas distintamente o Deus de
e refere-se a ele o que Deus disse a Samuel, quando os israelitas
Abraão e Isaac. E mais tarde, quando está a ponto de renovar o
mesmo pacto, por intermédio de Moisés, com todo o povo de Israel, pediram um rei (1 Samuel 8, 7): Eles (o povo) não te têm
ele diz rejeitado a ti, antes a mim me têm rejeitado para eu não reinar
sobre eles; bem como o que falou Samuel aos israelitas (1 Samuel
(Êxodo 3, 6): Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o 12, 12): Vós me dissestes: Não, mas reinarásobre nós um rei: sendo
Deus de Isaac, e o Deus de Jacó. Ainda mais tarde, quando porém o Senhor vosso Deus, o vosso Rei; e ainda o que está dito em
aquele povo, que não era apenas o mais livre dentre todos, mas Jeremias C31, 31): Farei um pacto novo etc., ainda que me desposei
também de todos o mais avesso à sujeição humana, porque tinha com eles1\ e a doutrina, ainda, de Judas Galileu, que Flávio Josefo
recente a memória do seu cativeiro no Egito, acampou no deserto menciona no Livro XVIII, capítulo 2, das Antiguidades Judaicas,
próximo ao monte Sinai, o antigo pacto lhes foi proposto para ser nos
renovado da seguinte maneira (Êxodo 19, 5-6): Agora pois, se seguintes termos: Ora, foi Judas Galileu o primeiro autor dessa
diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes o meu pacto (a quarta via dos que estudavam a sabedoria. Concordam estes
saber, o pacto que ele celebrara com Abraão, Isaac e Jacó), então quanto a todo o resto com os fariseus, exceto em que ardem com um
sereis a minha proPriedade9 peculiar dentre todos os povos: perpétuo desejo de liberdade, acreditando que Deus apenas deve
porque toda a terra é minha. E vós me sereis um reino sacerdotallO ser considerado seu senhor e princípe; e preferirão suportar as
e o povo santo. Então (v. 8) todo o povo respondeu a uma voz, e mais estranhas qualida
disseram: Tudo o que o Senhor tem falado, faremos.

266 267
....

Do Cidadi/io Religião

des de tormentos, junto com seus parentes e seus amigos mais Da segunda espécie é o primeiro mandamento do decálogo,
queridos, antes que chamar a qualquer mortal de seu senhor. que não tenham outros Deuses; pois nele consiste a essência do
pacto firmado com Abraão, pelo qual Deus nada mais exige, do que
ser ele o seu Deus, e Deus de sua semente. Igualmente o preceito de
santificar o dia de sábado; pois o respeito do sétimo dia é instituído
10. Que leis foram dadas por Deus aos judeus em memória da criação dos seis dias, como transparece desta
passagem (Êxodo 31, 16-17): Entre mim e os filhos de Israel será
Assim estando constituído o direito do reino pela via do pacto, um sinal para sempre (a celebração do sábado, que é também um
vejamos a seguir que leis Deus propôs a eles. Ora, estas são pacto perpétuo): porque em seis dias
conhecidas de todos: o decálogo, mais aquelas leis, judiciais e fez o Senhor os céus e a terra, e ao sétimo dia descansou, e
cerimoniais que encontramos do vigésimo capítulo do Êxodo até o restaurou-se.
fim do Deuteronômio e a morte de Moisés. Destas leis, publica das Da terceira espécie são as leis políticas, judiciais e ceri-
de modo geral por Moisés, algumas há que obrigam naturalmente, moniais, que pertenciam somente aos judeus. As leis da primeira e
tendo sido baixadas por Deus na qualidade de Deus da natureza, e segunda espécie foram escritas em tábuas de pedra, formando o
que tinham força já antes do tempo de Abraão. Há outras, porém, decálogo, que era conservado dentro da própria Arca. As outras,
que obrigam em virtude do pacto feito por Abraão, no qual Deus escritas no volume inteiro da Lei, foram depositadas ao lado da
: Arca (Deuteronômio 31, 26). Isso porque estas, que conservavam a
tomou parte enquanto Deus de Abraão, e que estava em vigor antes 1
mesmo da época de Moisés, devido ao pacto anteriormente fé de Abraão, podiam ser modificadas; mas aquelas, não.
celebrado. Mas ainda há outras leis, que obrigam em virtude
daquele pacto somente, que então foi firmado com o próprio povo; e
que Deus celebrou com este, na qualidade de rei peculiar dos
israelitas.
São da primeira espécie todos os preceitos do decálogo que se 11. O que é a palavra de Deus, e como pode ser
referem a costumes, tais como Honrarás pai e mãe; Não matarás; conhecida
Não cometerás adultério; Não roubarás; Não prestarás falso
testemunho; Não cobiçarás; pois se trata das leis de natureza. Da Todas as leis de Deus são verbo divino; mas nem tudo o que é
mesma forma o preceito de não tomar o nome de Deus em vão, pois palavra de Deus é lei dele. Eu sou o Senhor teu Deus que te trouxe
também faz parte do culto natural, conforme já declaramos no da terra do Egito é palavra de Deus; mas não é sua lei. Nem se
capítulo anterior (parágrafo 15). O mesmo se pode dizer do segundo deve considerar imediatamente como palavra de Deus aquilo que,
mandamento, que manda não prestar culto por meio de qualquer para melhor declarar o verbo divino, é pronunciado ou escrito a seu
imagem feita pelos próprios homens; porque também isso pertence lado. Por isso, Assim diz o Senhor não é voz de Deus, mas do
à religião natural, como mostramos no mesmo parágrafo já citado. pregador ou profeta. É palavra de Deus tudo aquilo, e somente
aquilo, que um verdadeiro profeta afirmou que Deus disse. Por isso,
os escritos dos profetas, que compreendem tanto as coisas que

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Do Cidadão
Religiã
o
Deus disse quanto as que afirmou o próprio profeta, são assim é palavra de Deus o que for publicado por um profeta verdadeiro; e
chamados de palavra divina, porque contêm o verbo de Deus. que era considerado pelos jud~us como um verdadeiro profeta
Ora, como a palavra de Deus é tudo aquilo, e somente aquilo, aquele cuja fé fosse autêntica, e a cujas previsões os
que nos é recomendado por um tal profeta verdadeiro, não acontecimentos se conformavam. Mas há muita controvérsia sobre
poderemos saber em que consiste a palavra divina antes de saber o que significa seguir outros deuses, bem como para saber se os
quem é o verdadeiro profeta - nem poderemos acreditar na palavra
acontecimentos previstos para confirmarem suas previsões se
de Deus, antes de acreditar no profeta. O povo de Israel deu crédito
ajustam ou não a estas - especialmente nas previsões que anunciam
a Moisés por duas coisas, seus milagres e sua fé. Pois, por maiorés
o que vai suceder de maneira obscura e enigmática, como são as
e mais evidentes que fossem os seus milagres, os judeus ainda
predições de quase todos os profetas, que não tenham enxergado o
assim não acreditariam nele, ou pelo menos ele não mereceria seu
próprio Deus, como Moisés, mas apenas em discursos obscuros, e
crédito, se os tivesse chamado a sair do Egito para qualquer outro
por jiguras(Números 12, 8). Mas destes não podemos julgar, a não
culto que não fosse o do Deus de Abraão, Isaac e Jacó, seus pais;
ser pela via da razão natural, porque tal julgamento depende da
pois isso teria sido contrário ao pacto por eles firmado com Deus.
interpretação da profecia, e da relação que ela mantenha com o
Dessa maneira há duas coisas, a saber, a predição sobrenatural
acontecimento.
das coisas futuras, que é um grande milagre, e
a fé no Deus de Abraão, que os libertou do Egito, que Deus propôs
a todos os judeus como marcas para distinguir o verdadeiro
profeta. Quem não tiver uma delas não é profeta, nem deve ser
recebido como palavra de Deus o que ele insinuar como tal. Se 12. O que se considerava a palavra escrita de Deus, entre
faltar a fé, ele deve ser rejeitado nesses termos (Deuteronômio 13, os judeus
1-5): Quando profeta ou sonhador de sonhos se levantar no meio
de ti e te der um sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou Os judeus consideravam o livro de toda a lei, que se chamou
prodígio, de que te houver falado, dizendo: Vamos após outros Deuteronômio, como a palavra escrita de Deus; e isso apenas
deuses etc., aquele (tanto quanto podemos inferir da história sacra) até o cativeiro. Pois
profeta ou sonhador de sonhos morrerá12. E, se faltar a predição esse livro foi confiado pelo próprio Moisés aos sacerdotes, para ser
de acontecimentos futuros, ele será condenado com base nas conservado e depositado ao lado da arca do pacto, e para ser
palavras seguintes (Deuteronômio 18, 21-22): E, se disseres no teu copiado apenas pelos reis; e estes, muito tempo depois, pela
coração: Como conheceremos a palavra que o Senhor não falou? autoridade do rei Josias (2 Reis 23, 2), o reconheceram novamente
Quando o tal profeta falar em nome do Senhor, e tal palavra se como palavra de Deus. Mas não está evidente quando foi que se re-
não cumprir, nem suceder assim; esta é palavra que o Senhor não cebeu pela primeira vez ao resto dos livros do Velho Testamento
falou: com soberba a falou o tal profeta. Ora, está acima de como parte do cânone. No que se refere aos profetas, a Isaías e aos
qualquer controvérsia que demais, já que eles nada previram além do que viria a suceder, quer
durante quer após o cativeiro, seus escritos não poderiam ser
considerados naquela época

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Do Cidadão Religiã
o

como sendo proféticos, e isso devido à lei que acima citamos, pela mo para subir ao Senhor, para que se não lance sobre eles. Então
qual se mandava aos israelitas que nào reconhecessem a ninguém Moisés desceu ao povo, e disse-Ihes isto. Além disso é manifesta e
como um verdadeiro profeta, salvo aquele cujas profecias fossem expressamente declarado, por ocasião da revolta de Coré, Data e
confirmadas pelos acontecimentos. E talvez seja por isso que os Abiram, e mais os duzentos e cinqüenta príncipes da assembléia,
que nem os homens privados nem a congregação deveriam
judeus depois vieram a considerar como proféticos, isto é, como
pretender que Deus falasse por meio deles, e por conseguinte que
sendo a palavra de Deus os escritos de alguns, a quem haviam
tivessem eles o direito de interpretar a palavra divina. Pois eles,
matado no tempo em que profetizavam.
pretendendo que Deus falava por seu meio tanto quanto através de
Moisés, assim argumentam (Números 16, 3): Baste-vos, pois, toda
esta congregação, pois que toda a congregação é santa,
todos eles são santos, e o Senhor está no meio deles: por que pois
13. O poder de interpretar a palavra de Deus e o poder vos elevais sobre a congregação do Senhor? Mas facilmente se vê
supremo político estiveram unidos em Moisés enquanto ele como Deus pôs termo a essa controvérsia, pelos versículos 33 e 35
viveu do mesmo capítulo, onde Coré, Data e Abiram desceram vivos ao
Sabendo-se que leis havia sob o antigo pacto, e qual foi a sepulcro etc. Então saiu fogo do Senhor, e consumiu os duzentos e
palavra de Deus recebida desde o início, devemos agora considerar cinqüenta homens que
a quem cabia a autoridade de julgar se os escritos dos profetas que ofereciam o incenso.
depois surgissem deveriam ser recebidos como constituindo a Segundo, que o sumo sacerdote Aarão não tinha tal autoridade
palavra de Deus - isto é, se os acontecimentos respondiam ou não a se evidencia por uma controvérsia análoga entre ele (mais sua irmã
suas predições; e igualmente em quem residia a autoridade para Miriam) e Moisés. Estava em questão se Deus falava através de
interpretar as leis já recebidas, e a palavra escrita de Deus. Isto se Moisés apenas, ou também por meio deles - ou seja, se somente
deve fazer percorrendo todas as épocas e as várias mudanças que Moisés, ou também eles, eram intérpretes da palavra de Deus.
ocorreram na república de Israel. Assim foi que disseram (Nú
É manifesto que, em vida de Moisés, esse poder esteve meros 12, 2): Porventura falou o Senhor somente por Moisés? Não
inteiramente em suas mãos. Pois, não fosse ele o intérprete das leis falou também por nós? Mas Deus os censurou, e fez uma distinção
e da palavra, tal ofício deveria pertencer seja a qualquer pessoa entre Moisés e os outros profetas, dizendo (vv. 6, 7, 8): Se entre vós
particular, ou a uma congregação ou sinagoga de muitos, ou ao houver profeta, Eu, o Senhor, em visão a ele me farei conhecer, ou
sumo sacerdote ou a outros profetas. Ora, primeiro, que tal ofício em sonhos falarei com ele. Não é assim com o meu servo Moisés
não pertencia a pessoas privadas, ou a qualquer congregação delas etc.!3 Boca a boca falo com ele, e de vista, e não por figuras!4,-
composta, resulta do fato de que elas não eram admitidas a ouvir pois ele vê a se
Deus falar, e até mesmo eram proibidas disso ante as mais terríveis melhança do Senhor: por que pois não tivestes temor de falar
ameaças, se não fosse por meio de Moisés. Pois está escrito (Êxodo contra o meu servo, contra Moisés?
19, 24-25): Os sacerdotes, porém, e o povo não trespassem o ter Finalmente, da passagem que acabamos de citar, sobre a
proeminência de Moisés sobre todos os demais profetas,

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inferimos que enquanto ele viveu a interpretação da palavra de zir, em primeiro lugar, do próprio pacto, no qual a república de
Deus não pertenceu a nenhum outro profeta que fosse; e concluímos Israel é chamada um "reino sacerdotal" ou, como se diz na
o mesmo pela razão natural, uma vez que ao mesmo profeta que Primeira Epístola de São Pedro (cap. 2, v. 9), um "sacerdócio real".
traz os mandamentos de Deus compete igualmente expô-Ios; ora, Ora, isso não se poderia dizer de forma alguma, a não ser se
naquela época não havia outra palavra de Deus além da que era entendendo que, pela instituição e pacto do povo, o poder régio foi
declarada por Moisés. E se infere igualmente do fato de que não confiado ao sumo sacerdote. E isso não contradiz o que antes
havia outro profeta naquele tempo, que profetizasse para o povo, afirmamos, quanto a ser Moisés, e não Aarão, quem tinha o reinado
exceto os Setenta anciãos, que profetizavam pelo espírito de abaixo de Deus. Isso porque, quando um homem institui a forma
Moisés. E lembremos ainda que Josué, que na época era servidor de de uma futura república, ele deverá governar durante toda a sua
Moisés e depois foi seu sucessor, acreditou haver sofrido uma
vida o reino que assim instituiu (pouco importando que a forma
injúria, até que soube que fora com o consentimento de Moisés -
escolhida seja a da monarquia, aristocracia ou democracia), e terá
coisa que fica evidente num texto da Escritura (Números 11, 25):
no presente todo o poder que a outros confere pelo futuro.
Então o Senhor desceu na nuvem etc., e tirando do espírito, que
Quanto ao fato de que ao sacerdote Eleazar não per
estava sobre Moisés, o
tencia apenas o sacerdócio, mas também a soberania, está
pôs sobre aqueles setenta anciãos. Ora, depois de saber que eles
. expressamente estabelecido na forma pela qual Josué foi chamado a
profetizavam, disse Josué a Moisés: Senhor meu, Moisés, proíbe-
administrar os negócios. Pois assim está escrito (Números 27, 18-
lho. Mas Moisés respondeu: Tens tu ciúmes por
21): Toma para ti ajosué16, filho de Nun,
mim?15 Vendo então que Moisés apenas era mensageiro da
homem em quem há o espírito, e põe a tua mão sobre ele. E
palavra de Deus, e que a autoridade de interpretá-Ia não pertencia
apresenta-o perante Eleazar, o sacerdote, e perante toda a
nem a homens privados, nem à sinagoga, nem ao sumo sacerdote,
nem a outros profetas, resta que Moisés apenas era intérprete da congregação, e dá-lhe mandamentos aos olhos deles. E põe sobre
palavra de Deus, que igualmente detinha o poder supremo nos ele da tua glória, para que obedeça toda a congregação dos filhos
assuntos civis; e que as convenções de Coré com seus outros de Israel. E se porá perante Eleazar, o sacerdote, o qual por ele
cúmplices contra Moisés e Aarão, e de Aarão com sua irmã contra consultará, segundo o juízo de Urim, perante o Senhor: conforme
Moisés, não nasceram a fim de salvar suas almas, mas devido a sua ao seu dito sairão, e conforme ao seu dito entrarão, ele e todos os
ambição e desejo de dominar o povo. filhos de Israel com ele, e toda a congregação. Nessa passagem,
consultar perante ao Senhor a respeito de tudo o que deva ser
feito, ou seja, interpretar a palavra de Deus e dar ordens, em nome
de Deus, em todos os tópicos, compete a Eleazar; e sair e entrar
con
forme ao seu dito, ou seja, obedecer, incumbe a Josué e ao povo
14. Também estiveram unidos no sumo pontífice, durante a vida de
inteiro. Também se deve observar que esse dizer, parte da tua
Josué
glória, indica claramente que Josué não tinha um poder igual ao de
No tempo de Josué, a interpretação das leis e da palavra de Moisés. De qualquer forma, assim se evi
Deus competia a Eleazar, o sumo pontífice - que era também, sob
Deus, o seu rei absoluto. Isso podemos dedu

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dencia que mesmo no tempo de Josué o poder supremo e a tado, sempre um ou mais excitavam a multidão contra ele, alegando
autoridade para interpretar a palavra de Deus residiam numa só autoridade divina, e clamando que Assim diz o Senhor.
pessoa. Mas isso era compatível com a natureza do reino peculiar de
Deus. Pois Deus na verdade reina lá onde suas leis são obedecidas
não por medo aos homens, mas por medo a ele. E em verdade, se os
15. Estiveram também unidos no sumo pontífice até o tempo homens fossem assim como deveriam ser, seria este um excelente
do rei Saul estado do governo civil; mas, sendo os homens como são, um poder
coercitivo (no qual incluo tanto o direito quanto o poder) é
Depois da morte de Josué se seguem os tempos dos Juízes, até
necessário para governá-los. E por isso também Deus, desde o
se chegar ao rei Saul; nesse período, é manifesto que o direito ao
começo, através de Moisés prescreveu leis para os reis futuros
reino instituído por Deus continuava pertencendo ao sumo
(Deuteronômio 17, 14-20). Aliás, Moisés previu isso em suas
sacerdote. Pois o reino era, segundo o pacto, sacerdotal, o que
últimas palavras ao povo, assim dizendo (Deuteronô
significa um governo de Deus por intermédio dos sacerdotes. E
mio 31, 29): Eu sei que depois da minha morte certamente
assim deveria ele persistir, até que essa forma, com o consentimento
vos corrompereis, e vos desviareis do caminho que vos ordenei etc.
de Deus, fosse alterada pelo próprio povo - o que apenas sucedeu
E; depois, em conformidade a essa predição, outra geração surgiu
quando, pedindo eles um rei, Deus acedeu a seu requerimento, e
(Juízes 2, 10-11), que não conhecia ao Senhor, nem tampouco a
disse a Samuel (1 Samuel 8, 7): Ouve a voz do povo em tudo quanto
obra, que fizera a Israel. Então fizeram os filhos de Israel o que
te disserem, pois não te têm rejeitado
parecia mal aos olhos do Senhor, ou seja, eles descartaram o
a ti, antes a mim me têm rejeitado para eu não reinar
governo de Deus, isto é, o do sacerdote por meio do qual Deus
sobre eles. O poder civil supremo pertencia portanto, já pela
reinava; e mais tarde, quando se viram vencidos por seus inimigos e
instituição de Deus, de direito ao sumo sacerdote; mas de fato tal
reduzidos à servidão, procuraram saber qual a vontade de Deus, não
poder residia nos profetas, a quem os israelitas, povo extremamente
mais através do sacerdote, mas pela via dos profetas. E portanto
ávido por profecias, submetiam-se para serem protegidos e julgados,
esses julgaram de fato em Israel, mas de direito a obediência se
tão logo algum deles era suscitado por Deus de maneira
devia ao sumo sacerdote. Assim, embora o reino sacerdotal, depois
extraordinária, pela grande estima que tinham eles pelas profecias.
da morte de Moisés e de Josué, não dispusesse de poder, tinha
A razão para isso era que, embora houvesse penas estabelecidas e
porém consigo o direito.
juízes nomeados no reino sacerdotal instituído por Deus, ainda
Quanto ao fato de que a interpretação da palavra de Deus
assim o direito de infligir o castigo dependia por completo do
pertencia ao mesmo sumo sacerdote, isto se evidencia pelo
julgamento privado; e assim competia a uma multidão informe e a
seguinte: Deus, depois que o tabernáculo e a arca da aliança foram
cada pessoa individualmente o direito de punir
consagrados, não falou mais no monte Sinai, mas no tabernáculo da
ou não punir, conforme o seu zelo particular lhes ditasse. E assim
aliança, e do propiciatório que
foi que Moisés ordenou que não se punisse a ninguém com a
morte; mas, quando alguém devia ser execu

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estava entre os querubins, onde ninguém, exceto o sumo sacerdote, Deus, além da lei de Moisés, a autoridade de interpretar a palavra de
tinha o direito de entrar. Deus também pertencia aos reis. E mesmo, dado que a palavra de
Portanto, se considerarmos o direito do reino, o poder civil Deus deve ser considerada como lei, se houvesse outra palavra
supremo e a autoridade de interpretar a palavra de Deus estavam escrita além da lei mosaica, como a interpretação das leis competia
reunidos no sumo sacerdote. Se considerarmos o aos reis, a interpretação dela também teria de pertencer a eles.
fato, estavam ambos unidos nos profetas que julgavam Israel. Pois, Quando se recuperou o livro do Deuteronômio, no qual se
como juízes, eles detinham a autoridade suprema, e, como profetas, continha toda a lei mosaica, e que tinha estado perdido por um
interpretavam o verbo divino. E assim, de qualquer maneira que os longo número de anos, os sacerdotes foram pedir conselho a Deus
estudemos, esses dois poderes continuavam inseparáveis. sobre aquele livro não com base em sua própria autoridade, mas a
mando de ]osias; e não o fizeram sem mediação, mas por
intermédio da profetisa Holda. Disso se evidencia que a autoridade
para reconhecer livros como constituindo a palavra de Deus não
pertencia ao sacerdote. Mas disso não se segue que tal autoridade
16. Também estiveram unidos nos reis até o cativeiro fosse da profetisa; porque eram outros que julgavam se deviam, os
profetas, ser considerados ou não como autênticos. Pois para que
Uma vez constituídos os reis, não há dúvida de que a fim Deus deu sinais e marcas a todo o seu povo, capacitando-o a
autoridade suprema a eles pertencia. Pois o reino de Deus pelo
distinguir os verdadeiros profetas dos falsos (dois sinais, a saber, o
sacerdócio chegara ao fim, com Deus assentindo ao que lhe
cumprimento das predições e a conformidade do que pregassem
pediram os israelitas; o que Hierom também assinala, falando dos
com a religião estabelecida por Moisés), se não fosse para que tais
livros de Samuel. Samuel, diz ele, uma vez morto Eli e assassinado
marcas e sinais fossem usados? Por conseguinte, a autoridade para
Saul, declara abolida a velha lei. Além disso, os novos juramentos
reconhecer os livros que constituíssem a palavra de Deus pertencia
de sacerdócio e soberania prestados respectivamente por Zadok e ao rei; e assim foi que aquele livro da lei foi aprovado, e novamente
por Davi atestam que o direito pelo qual os reis governavam estava
recebido, por autoridade do rei ]osias, o que se evidencia no
fundado na concessão mesma do povo. O sacerdote tinha direito a segundo livro dos Reis, capítulos 22 e 23, onde se relata que ele
fazer tudo o que qualquer homem tinha pessoalmente o direito de reuniu todos os graus
fazer; pois os israelitas lhe concederam um direito a julgar de todas
(degrees) de seu reino, os anciãos) os sacerdotes, os profetas, e
as coisas, e a fazer a guerra por todos os homens; nesses dois
todo o povo; e leu aos ouvidos deles todas as palavras do livro do
direitos está contido todo o direito que possa ser concebido entre
pacto. Isso quer dizer que ele fez que aquele pacto fosse
um homem e outro. O nosso rei nos julgará, disseram eles (1
reconhecido como constituindo a aliança mosaica, ou seja, como
Samuel 8, 20), e sairá adiante de nós, e nos fará as nossas guerras.
sendo a palavra de Deus, e assim fez, também, que tornasse a ser
A judicatura pertencia, portanto, aos reis. Ora, julgar nada mais édo
recebido e fosse confirmado pelos israelitas.
que, interpretando, aplicar as leis aos fatos. Pertencia a eles,
portanto, a interpretação também das leis. E, como até o cativeiro
não se reconhecia nenhuma palavra escrita de

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o
o poder civil portanto, e o poder para distinguir a palavra de que rezaram por seu povo; que abençoaram o seu povo; que
Deus das palavras dos homens, e de interpretar a palavra de Deus consagraram o templo; que deram ordens aos sacerdotes, que
nos dias dos reis, pertencia inteiramente a estes. Os profetas não removeram a estes de seu ofício e instituíram outros em seu lugar.
eram enviados com autoridade própria, mas na forma de É verdade que não ofereceram sacrifí
pregadores, e com o direito que a estes cabe, e do qual competia a cios, pois isso constituía uma incumbência hereditária de
seus ouvintes julgar. E, se eventualmente alguns ouvintes fossem Aarão e seus filhos. Mas é evidente que tanto durante a vida de
punidos por não lhes darem ouvidos, quando os profetas ensinavam Moisés quanto em todas as épocas, do rei Saul até o cativeiro da
coisas fáceis e simples, disso não se segue, porém, que os reis Babilônia, o sacerdócio não era um magistério (maistry), mas um
estivessem obrigados a seguir todas as coisas que aqueles profetas mistério.
declarassem, em nome de Deus, que devessem ser seguidas. Pois,
embora o bom rei Josias de Judá fosse morto porque não obedecera
à palavra do Senhor, que lhe viera pela boca de Neco, rei do Egito - 17. Voltaram a estar unidos no sumo pontífice, após o
isto é, porque recusara um bom conselho, ainda que parecesse vir cativeiro
de um inimigo -, penso que ninguém dirá que ]osias estivesse
Depois que os israelitas retomaram do cativeiro na Babilônia,
obrigado, por qualquer lei divina ou humana, a acreditar no faraó
o pacto foi renovado e firmado uma segunda vez, e o reino
Neco, rei do Egito, só porque este disse que Deus lhe havia falado.
sacerdotal se viu restaurado da mesma forma que existira da morte
Alguém pode objetar aos reis que lhes falta erudição, e por
de Josué até o início dos reis; com uma só exceção: não está
isso raramente têm eles capacidade para interpretar esses livros
expressamente enunciado que os judeus que retomavam do
antigos nos quais está contida a palavra de Deus, e portanto não é
cativeiro entregassem o direito de soberania quer a Esdras, sob cuja
razoável que esse ofício de intérprete dependa de sua autoridade.
direção organizavam seu Estado, quer a qualquer outro além de
Mas o mesmo poderia ser objetado aos sacerdotes e a todos os
Deus mesmo. Por isso tal reforma parece não consistir em nada
mortais: pois podem, todos, errar. E, embora os sacerdotes sejam
mais do que na mera promessa e voto de que cada homem
mais instruídos na natureza e nas artes do que os outros homens, os
observaria as
reis são contudo suficientemente capazes para designar os in-
coisas que estavam escritas no livro da lei. Não obstante, e
térpretes que a eles estarão subordinados. Assim, embora os reis
talvez a despeito da intenção do povo, devido àquele pacto que eles
não interpretassem pessoalmente a palavra de Deus, o ofício de
então renovavam, e que era o mesmo pacto que a aliança firmada
interpretá-Ia bem pode depender de sua autoridade. E por isso os
no monte Sinai, esse Estado restaurado era um reino sacerdotal: o
que se recusam a reconhecer-Ihes essa autoridade, alegando que
que significa que a autoridade civil suprema e a sagrada estavam
eles não podem praticar tal ofício em pessoa, é como se dissessem
unidas nos sacerdotes. Assim, embora por causa da ambição
que a autoridade para ensinar a geometria não pode depender dos
daqueles que disputaram o
reis, a não ser que estes mesmos sejam geômetras. Lemos que
sacerdócio, e também devido à intromissão de príncipes es-
houve reis
trangeiros, sofresse inúmeras perturbações até o advento
de Nosso Salvador Jesus Cristo que pelas histórias desses tempos
não se possa saber em quem residia a autoridade,

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Do Cidadão

é contudo claro que naqueles tempos o poder para interpretar a CAPÍTULO XVII
palavra de Deus não estava separado do poder civil supremo.

Do Reino de Deus Segundo a


Nova Aliançal
18. Entre os judeus, as únicas formas de traição a Deus
consistiam na negação da Divina Providência e na idolatria; em
tudo o mais, eles deviam obedecer a seus príncipes
De tudo isso, podemos facilmente saber como os judeus, em
todos os tempos que vão de Abraão até Cristo, deveriam portar-se
em face do que lhes mandassem os seus príncipes. Pois, assim
como nos reinos simplesmente humanos devem os homens 1. As profecias sobre a dignidade de Cristo
obedecer em todas as coisas a um magistrado inferior, exceto
quando suas ordens contiverem alguma traição, da mesma forma no No Antigo Testamento há inúmeras e claras profecias sobre
reino de Deus os judeus estavam obrigados a obedecer a seus Nosso Salvador Jesus Cristo, que viria restaurar o reino de Deus
príncipes, Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, ao sacerdote, ao rei, a cada através de um novo pacto; parte delas antevê sua dignidade régia,
um destes em todas as coisas enquanto governasse, exceto quando parte a sua humilhação e paixão. Dentre muitas que se referem à sua
suas ordens contivessem alguma traição contra a Majestade Divina. dignidade, cito as seguintes. Deus, abençoando Abraão, faz-lhe uma
E a traição contra a Majestade Divina consistia, em primeiro lugar, promessa por seu filho Isaac, acrescentando (Gênesis 17, 16): E reis
em negar a divina providência; pois isso seria o mesmo que negar sairão de ti. Jacó abençoa seu filho Judá, dizendo-lhe (Gênesis 49,
que Deus fosse rei por natureza; em segundo lugar, na idolatria, ou 10): O cetro não se arredará dejudá. Deus diz a Moisés
seja, no fato de adorar não outro Deus (porque há apenas um Deus), (Deuteronômio 18, 18): Eis lhe suscitarei um pro
mas deuses estranhos - ou seja, prestar culto, ainda que a um só feta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas
Deus, mas sob títulos, atributos e ritos que não fossem os palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe
estabelecidos por Abraão e Moisés. Porque isso significava negar ordenar2. E será que qualquer que não ouvir as minhas palavras,
que o Deus de Abraão fosse seu rei, pelo pacto firmado com que ele falar em meu nome, eu o requererei dele. Isaías (Isaías 7,
Abraão e com eles mesmos. Em todas as outras coisas eles deviam 14): O mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a virgem
obedecer aos príncipes. E, se um rei ou sacerdote, tendo a conceberá, e parirá um filho, e chamará o seu nome Emanuel. O
autoridade suprema, mandasse fazer algo que fosse contra a lei, mesmo profeta (Isaías 9, 6): Porque um menino nos nasceu, um
seria isso o pecado dele, e não o de seus súditos - cujo dever não filho se nos deu, e o principad03 está sobre os seus ombros, e o seu
está em discutir, mas em obedecer as ordens de seus superiores. nome se chama Maravilhoso, Conselheiro, Deus forte, Pai da
eternidade, Princípe da paz. E ainda ele (Isaías 11, 1-5): Porque
saíra uma vara
do tronco de jessé, e um .renovo crescerá das suas raízes. E
repousará sobre ele o espírito do Senhor etc. 4 E não julgará

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Do Cidadão
Religião

segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá segundo o


2. As profecias sobre sua humilhação e paixão
. ouvir dos seus ouvidos. Mas julgará com justiça aos pobres ete.5
Ferirá a terra com a vara de sua boca, e com o assopro dos seus Já quanto às profecias da humilhação e paixão de Cristo, são,
lábios matará o ímpid'. entre outras, as seguintes: em Isaías 53, 4: Ele tomou sobre si as
Além disso, no mesmo Isaías (cap. 51 a 627) quase nada mais nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o
lemos que a descrição do advento e das obras de Cristo. Jeremias reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido; e em outras
(Jeremias 31, 31): Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei um passagens (7): Ele foi oprimido, porém não abriu a sua bocaj como
novo pacto com a casa de Israel e com a casa deJudá. E Baruc um cordeiro foi levado ao matadouro, e como a ovelha muda
(Baruc 3,35-37): É eleito nosso Deus ete. Depois disso ele apareceu perante os seus tosquiadores, assim não abriu a sua boca etc. E
sobre a terra e o meio dos homens conviveu8. Ezequiel (Ezequiel ainda (8): Foi cortado da terra dos viventesj pela transgressão do
34, 23-25): E levantarei sobre elas um só pastor, e ele as meu povo a
apascentará: meu servo Davi9. E farei com eles um pacto de paz praga estava sobre ele etc.1\ e, no 12: Pelo que lhe darei a parte de
etc.1o Daniel (Daniel 7, 13-14): Eu estava vendo nas minhas visões muitos, e com os poderosos repartirá ele o despojoj
da noite, e eis que era vindo nas nuvens do céu um como o filho do porque derramou a sua alma na morte, e foi contado com
homem: e chegou até ao ancião dos dias, e o fizeram chegar os transgressoresj e levou sobre si o pecado de muitos, e in-
perante ele. E fOi-lhe dado o domínio e a honra e o reino, e que tercede pelos transgressores. E ainda diz Zacarias (Zacarias 9, 9).
todos os povos, nações e línguas o servissem: o seu domínio é um Ele é pobre1S, montado sobre um jumento, sobre um asninho, filho
domínio eterno etc.l! Ageu (Ageu 2, 6-7): de jumenta.
Ainda uma vez daqui a pouco, e farei tremer o céu e a terra, e o
mar, e a terra seca; e farei tremer a todas as nações, e virão ao
Desejado de todas as nações. 3. Jesus era o Cristo
Zacarias, na visão do sumo sacerdote Josué, assim diz
(Zacarias 3, 8): Eis que eu farei vir o meu servo, o Renovo ete. E o No reinado de Tibério César, começou a pregar Jesus nosso
mesmo (Zacarias 6, 12): Eis aqui o homem cujo nome é o salvador, galileu, que supunham ser filho de José. Declarou ele ao
Renovo!2. E ainda ele (Zacarias 9, 9): Alegra-te muito, ó filha de povo judeu que era chegado o reino de Deus que eles esperavam, e
Sido; exulta, ó filha de Jerusalém: eis que o teu rei virá a ti, justo e que ele próprio era o rei, isto é, o Cristo. Expôs a lei, escolheu doze
salvador. Os judeus, por estas profecias e outras mais, esperavam apóstolos e setenta discípulos - seguindo o número das tribos e o
que Deus lhes enviasse o Cristo, seu rei, que deveria redimi-los e dos setenta anciãos que, segundo a regra de Moisés, se dedicaram
além disso dominar a todas as nações. Mais ainda, tal profecia se ao ministério. Ensinou a via da salvação através deles e de si
difundira por todo o império romano - o que também Vespasiano, em- próprio. Saneou o templo, fez grandes sinais e cumpriu todas
bora equivocadamente, interpretou em favor de suas próprias aquelas coisas que os profetas haviam predito quanto ao advento de
empresas: viria da Judéia aquele que tudo haveria de governar13 . Cristo. Esse homem, odiado pelos fariseus, cuja falsa doutrina e
hipócrita santidade ele censurou, e que o acusaram perante o povo
de buscar por meios ilegais a coroa, o que fez que fosse
crucificado, era o verdadeiro

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Cristo e rei prometido por Deus e que seu Pai enviou para renovar 5): Porque bem sabeis isto: que nenhum fornicário ete.18 tem
o novo pacto 16 entre os homens e Deus: os quatro evangelistas herança no reino de Cristo e de Deus; e em outra parte (2
mostram isso, descrevendo sua genealogia, natividade, vida, Timóteo 4, 1): Conjuro-te, pois, diante de Deus, e do Senhor Jesus
doutrina, morte e ressurreição, e comparando as coisas que ele fez Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, na sua vinda, e no seu
com as profecias a seu respeito, e todos os cristãos consentem reino ete.; e, no 18: E o Senhor me livrará de toda a má obra, e
nisso. guardar-me-á para o seu reino celes
tial. Mas não devemos estranhar que o mesmo reino seja atribuído a
ambos, já que tanto o Pai quanto o Filho são o mesmo Deus, e que
4. O reino de Deus pela nova aliança não era o reino de Cristo o novo pacto acerca do reino de Deus não nos é proposto em nome
enquanto Cristo, mas enquanto Deus do Pai, mas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, como
sendo um só Deus.
Porém, do fato de que Cristo foi enviado por Deus seu Pai para
celebrar um pacto entre ele e o povo, evidencia-se que, embora
fosse Cristo igual a seu pai em natureza, era lhe contudo inferior 5. O reino pela nova aliança é celestial, e começará no Dia
quanto ao direito de reinar. Pois o seu ofício, a bem dizer, não é o do Juízo
de um rei, mas o de um vicerei - tal como era o governo de Moisés -
Contudo, o reino de Deus, para restaurar o qual Cristo foi
pois o reino não era dele, e sim de seu Pai. Isso o próprio Cristo
enviado por Deus seu Pai, não principia antes do segundo advento
indicou ao ser batizado como súdito, e além disso professou com
de Jesus - ou seja, antes do Dia do Juízo, quando ele virá em
toda a clareza quando ensinou seus discípulos a rezar: Pai nosso,
majestade, acompanhado de seu anjo. Pois está prometido aos
venha a nós o teu reino ete.; e ainda quando disse (Mateus 26, 29);
apóstolos que no reino de Deus eles haverão de julgar as doze
Desde agora, não beberei do fruto desta vide até aquele dia em que tribos de Israel (Ma teus 19, 28);
o beba de novo convosco no reino de meu Pai. E São Paulo (1 Vós, que me seguistes, quando, na regeneração, o Filho do homem
Coríntios 15, 22-24); Assim como todos morrem em Adão, assim se assentar no trono desta glória, também vos assenta reis sobre
também todos serão vivificados em Cristo. Mas cada um por sua doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel: o que não se
ordem: Cristo as primícias, depois os que são de Cristo, na sua poderá fazer antes do Dia do Juízo. Portanto, Cristo ainda não está
vinda. Depois viráo fim, quando tiver entregado o reino a Deus seu sentado em seu trono de majestade; e aquele tempo, que Cristo aqui
Pai17. passou no mundo, não deve ser chamado o seu reino, porém uma
E no entanto o mesmo reino é também chamado o reino de regeneração - isto é, uma renovação ou restauração do reino de
Cristo: porque tanto a mãe dos filhos de Zebedeu implorou a Deus, e uma convocação (calling) àqueles que depois deveriam ser
Cristo, nos seguintes termos (Mateus 20, 21): Diz que estes meus recebidos no seu reino. E, onde se diz (Mateus 25, 31-32);
dois filhos se assentem, um à tua direita e outro à tua esquerda, no Quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos
teu reino, quanto o ladrão na cruz também lhe disse (Lucas 23, 42); anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória; e todas as
Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino; e ainda nações serão reunidas diante dele, e apartará
São Paulo (Efésios 5, uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas,

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devemos evidentemente inferir que não haverá uma separação em que, finalmente, todos os homens conhecerão a Deus de tal
espacial entre os súditos e os inimigos de Deus, mas que eles modo que não precisarão de ensinamento: isto é, no segundo
viverão misturados até a segunda vinda de Cristo. Isso também se advento de Cristo, ou Dia do ]uízo. Porque, se o reino de Deus já
confirma pela comparação do reino do céu a trigo misturado com estivesse restaurado no momento presente, não se poderia saber por
joio, e a uma rede em que há toda espécie de peixes. que Cristo, tendo completado a obra para a qual foi enviado,
Mas uma multidão indistinta de inimigos e súditos não pode deveria aqui retornar; ou por que rezamos Venha a nós o teu reino.
ser propriamente denominada um reino. Além disso, o fato de que
os apóstolos perguntassem a nosso Salvador se ao ascender ao céu
ele restauraria o reino de Israel também atesta que eles mesmos
não consideravam que o reino de Deus já fosse chegado, quando 6. O governo de Cristo neste mundo não foi soberano, mas um
Cristo subisse aos céus. Ademais, as palavras de Cristo, O meu conselho: um governo por meio da doutrinação e da persuasão
reino não é deste mundd9; e Não beberei etc. até que venha o
reino dos céus; e Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que Por outro lado, embora o reino de Deus por meio de Cristo, a
condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele2°; se estabelecer pelo novo pacto, seja apenas no céu, não devemos
e Se alguém ouvir as minhas palavras, e não crer, eu não o contudo supor que quem acredita em Cristo e firma tal pacto não
julgo; porque eu vim, não para julgar o mundo, mas para salvar o deva ser governado desta forma já na Terra, a fim de que possa
mundd\ e Homem, quem me pôs a mim por juiz ou repartidor entre persistir na fé e na obediência que assim já prometeu. Pois seria
VÓS?22 e a própria denominação reino do inútil prometer o reino do céu, se não fôssemos conduzidos até ele;
céu bem corroboram isso. A mesma coisa encontramos nas' e ninguém pode ser conduzido se não tiver um guia a levá-Io.
palavras do profeta ]eremias, quando fala do reino de Deus pelo Moisés, depois de instituir o reino sacerdotal - e embora não fosse,
novo pacto (Jeremias 31, 34): E não ensinará alguém mais a seu ele próprio, sacerdote -, ainda assim dirigiu e conduziu
próximo, dizendo: Conhecei ao Senhor: porque todos me pessoalmente seu povo durante todo o tempo de sua peregrinação,
conhecerão, desde o mais pequeno deles até o maior deles, diz o até que este chegasse à Terra Prometida. Da mesma forma o ofício
Senhor: o que não se pode supor de reino algum deste mundo. de nosso Salvador (que neste aspecto Deus quis que fosse
Por conseguinte, o reino de Deus, para cuja restauração veio semelhante a Moisés), na medida em que foi enviado por seu Pai,
Cristo ao mundo, e do qual profetizaram os profetas, e acerca do consiste em governar nesta vida os futuros súditos de seu reino
qual rezamos Venha a nós o teu reino - se nele os súditos devem celestial de tal modo que eles possam alcançá-Io e nele ingressar; e
estar espacialmente separados dos inimigos, se deve ter judicatura e isso embora o reino não seja propriamente de Cristo, porém de seu
majestade, conforme foi predito, começará naquele tempo em que Pai.
Deus apartar as Mas o governo através do qual Cristo rege os fiéis nesta vida
ovelhas dos bodes, em que os apóstolos julgarão as doze tribos de não é propriamente um reino ou domínio, porém um ofício de
Israel, em que Cristo virá em majestade e glória, pastor, ou o direito de ensinar. Isto é, Deus Pai

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não lhe conferiu o poder de julgar do meum e do tuum, como Sacudi a poeira de vossos pés, e outras análogas; e também a
conferiu aos juízes da Terra; nem um poder coercitivo, nem expressão: Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que
legislativo; mas sim o poder de mostrar ao mundo, e de lhe ensinar, condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por
qual é o caminho e a ciência da salvação - isto é, de pregar-lhe e ele, e esta: Se alguém ouvir as minhas palavras, e não crer, eu não
manifestar-lhe o que se deve fazer, para poder entrar no reino dos o julgo; porque eu vim, não para julgar o mundo, mas para salvar
céus. O fato de que Cristo não tenha recebido de seu Pai poder para o mundo, mostram todas que a Cristo não fora outorgado poder para
julgar questões referentes ao meum e ao tuum entre aqueles que não condenar ou punir quem quer que
acreditam, isto é, que não tenha poder para resolver as pendências fosse. Lemos, é verdade, que O Pai a ninguém julga, mas deu ao
de direito entre os infiéis, fica bastante explícito naquelas palavras Filho todo o juízd\ mas isso pode e deve entender-se do Dia do
que acima já citamos: Homem, quem me pôs a mim por juiz ou Juízo futuro, e portanto absolutamente não contradiz o que
repartidor entre vós? anteriormente dissemos.
E o mesmo é confirmado pela razão. Pois, considerando-se que Finalmente, o fato de que ele não foi enviado para fazer novas
Cristo foi enviado para firmar um pacto entre Deus e os homens, e leis, e que portanto seu ofício e missão não foram propriamente o
que ninguém está obrigado a obedecer antes que se celebre um de legislador (como o de Moisés), mas sim o de emissário e
contrato - se Cristo julgasse das questões de direito, ninguém estaria promulgador (publisher) das leis de seu Pai (pois Deus apenas, e
obrigado a obedecer a sua sentença. E inversamente se evidencia não Moisés nem Cristo, era rei graças ao pacto), pode ser lido nas
que não se confiou a Cristo neste mundo a tarefa de conhecer do seguintes passagens: ele disse, Não cuideis que vim destruir
direito, nem no meio dos fiéis, nem entre os infiéis, pela seguinte (entenda-se: as leis que Deus antes deu a Moisés, e que Cristo agora
razão: que sem sombra de controvérsia tal direito pertence aos interpreta),
príncipes, enquanto não forem eles derrogados de sua autoridade não vim abrogar, mas cumprirZ5; e Qualquer pois que violar um
por Deus mesmo. E essa derrogação não pode ocorrer antes do Dia destes mais pequenos mandamentos, e assim ensinar aos homens,
do Juízo, como se vê nas palavras de São Paulo, quando fala de tal será chamado o menor no reino dos céus26. A Cristo, portanto, seu
dia (1 Coríntios 15, 24): Depois virá o fim, quando tiver entregado Pai não confiou neste mundo um poder real ou soberano, porém
o reino a Deus, ao Pai, e quando houver aniquilado todo o império, apenas o de aconselhar e doutrinar. E isso ele próprio dá a entender,
e toda a potestade e força. Em segundo lugar, pelas palavras de quando chama seus apóstolos de pescadores, e não caçadores, de
nosso Salvador, quando censura a Tiago e a João porque lhe homens, ou ainda quando compara o reino de Deus a um grão de
perguntaram semente de mostarda, e ao levedo escondido na farinha27.
(Lucas 9,54): Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e
os consuma?(referindo-se aos samaritanos, que haviam se recusado
a recebê-Io em sua rota para Jerusalém) - ao que ele respondeu: O
Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas
7. O que são as promessas da nova aliança, nas duas partes que a
para salvá-Ias (56). E ainda essas frases: Eis que vos envio como
firmam
ovelhas ao meio de lobos23;
Deus prometeu a Abraão, primeiro, que ele teria uma
semente numerosa, à qual caberia a posse da terra de Canaã

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e na qual todas as nações seriam abençoadas - mas sob uma próximo. Arrependei-vos, e crede no Evangelho. Da mesma forma
condição: de que ele e sua semente servissem a Deus. Prometeu, (Lucas 24, 46-47): Assim está escrito, e assim convi
também, à semente de Abraão segundo a carne, um reino nha que o Cristo padecesse, e ao terceiro dia ressuscitasse dos
sacerdotal, um governo muito livre, no qual os seus não se mortos. E em seu nome se pregasse o arrependimento e a remissão
sujeitariam a nenhum poder humano - mas sob esta condição: de que dos pecados em todas as nações, começando por
eles serviriam o Deus de Abraão segundo a maneira que Moisés Jerusalém. E ainda (Atos dos Apóstolos 3, 19): Arrependeivos, e
haveria de ensinar-Ihes. Finalmente, prometeu a eles e a todas as convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados, e
nações um reino celestial e eterno, contanto que servissem o Deus venham assim os tempos do refrigério etc. 28

de Abraão segundo a maneira que Cristo haveria de ensinar. Pois, Por vezes uma coisa é explicitamente proposta, e a outra
pelo novo pacto, isto é, pelo pacto cristão, está combinado, da parte subentendida, como aqui, em João 3, 36: Aquele que crê no Filho
dos homens, que servirão ao Deus de Abraão daquela maneira que tem a vida eterna; mas aquele que não crê no Filho não verá a
Jesus haveria de ensinar, da parte de Deus, que perdoará os seus vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece. Aqui se expressa a fé,
pecados e os trará para seu reino celestial. Já dissemos acima, no não o arrependimento; mas, na
parágrafo 5, em que consiste o reino celestial; geralmente ele é pregação de Cristo, também ouvimos (Mateus 4, 17): Arre
chamado o reino dos céus, ou o reino de glória, ou ainda a vida pendei-vos, porque é chegado o reino dos céus - onde se fala no
eterna. O que se requer dos homens, isto é, que eles sirvam a Deus arrependimento, enquanto se subentende a fé. Mas as partes do
da forma que Cristo lhos haveria de ensinar, engloba duas coisas: a novo pacto são expostas da maneira mais explícita e formal
obediência a prestar a Deus (pois nisso consiste servi-Lo); e quando um certo príncipe, como que a negociar o reino de Deus,
aféemJesus, o que significa acreditar que Jesus é aquele Cristo que pergunta a nosso Salvador (Lucas 18, 18): Bom Mestre, que hei de
foi prometido por Deus - pois apenas isso pode ser causa para que fazer para herdar a
sigamos sua doutrina, e não a de qualquer outro. vida eterna? Cristo começa expondo uma parte do preço desta, a
Nas Escrituras, muitas vezes aparece arrependimento no lugar saber, a observância dos mandamentos, ou seja, a obediência; mas,
de obediência: porque Cristo ensinou, em toda a parte, que perante quando o outro responde que já os cumpre, o Salvador acrescenta a
Deus a vontade será tomada pelo ato; e a penitência é o sinal outra parte, dizendo (22): Ainda te falta uma coisa; vende tudo
infalível de um espírito (minei) obediente. quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no céu;
Uma vez compreendidas tais coisas, ficará evidente e vem, e segue-me. Isso é exigência da fé29. O príncipe, então, não
manifesto, por muitas passagens das Sagradas Escrituras, que as dando crédito suficiente a Cristo e a seus tesouros celestiais, foi-se
condições para o pacto cristão são pois as seguintes: por parte de embora, triste.
Deus, redimir os pecados dos homens e darlhes a vida eterna; por O mesmo pacto está contido nestas palavras (Marcos 16,16):
parte dos homens, arrependerem-se e acreditarem em Jesus Cristo. Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será
Primeiro, as palavras que lemos em São Marcos (cap. 1, v. 15): O condenado: onde se exprime a fé, e se supõe o arrependimento,
reino de Deus está naqueles que forem batizados. E ainda nestas palavras (João 3, 5):
Aquele que não nascer da água
e do Espírito não pode entrar no reino do céu - onde nascer

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da água é o mesmo que a regeneração, isto é, que a conversão a termos (Deuteronômio 6, 5)3°; mas o segundo é anterior mesmo a
Cristo. E, como vemos que o batismo é exigido nas duas passagens Moisés - pois é a lei natural, que principia já com a própria natureza
que acabamos de citar, devemos entender que o mesmo que era a racional; e o conjunto dos dois constitui a suma de todas as leis.
circuncisão no antigo pacto, será o batismo no novo. Considerando Pois todas as leis do culto divino natural estão contidas nessas
então que a circuncisão não pertencia à essência do antigo pacto, palavras, Amarás a Deus; e todas as leis do culto divino exigido
mas servia somente de rememoração, como uma cerimônia ou sinal pelo antigo pacto nestas palavras, Amarás a teu Deus, em que Deus
dele (e não foi seguida durante a passagem pelo deserto), da mesma é o rei peculiar de Abraão e de sua semente; e todas as leis naturais
forma o batismo também é utilizado não como se pertencesse à e civis estão nessa fórmula, Amarás a teu próximo como a ti
essência, mas em memória e em sinal do novo pacto, que fizemos mesmo. Pois quem ama a Deus e a seu próximo tem em mente
com Deus. E, desde que a vontade não falte, o ato pode ser omitido obedecer a todas as leis, tanto as divinas quanto as humanas. E
por razão de necessidade; mas o arn;pendimento e a fé, que são Deus nada mais exige do que ter a obediência em mente.
essenciais ao pacto, serão sempre exigidos. Temos outra passagem, na qual Cristo interpreta a lei, que está
nos capítulos 5, 6 e 7, in extenso, do Evangelho de São Mateus.
Todas essas leis, porém, já estão expostas ou no Decálogo, ou na lei
moral, ou ainda estão contidas na fé de Abraão; é o caso, por
exemplo, da lei que manda não expulsar a esposa, e que está
8. Cristo não fez leis novas, a não ser as que instituem os expressa na fé de Abraão. A própria expressão Sereis ambos uma
sacramentos só carne não foi enunciada da primeira vez por Cristo, nem por
Moisés, mas por Abraão, que foi o primeiro a pregar sobre a
No reino de Deus depois desta vida não haverá leis; em parte, criação do mundo. Portanto, as leis que Cristo sintetiza numa
porque não há lugar para leis quando não há lugar para o pecado; passagem, e explica em outra, simplesmente são aquelas a que
em parte, porque se Deus nos outorgou as leis não foi a fim de nos estão obrigados todos os mortais que confessem o Deus de Abraão.
dirigir no céu, mas para o céu. Indaguemos, portanto, que leis Além delas, não conhecemos nenhuma lei promulgada por Cristo,
Cristo decretou, não por si próprio - pois ele não reivindicou afora a instituição dos sacramentos do batismo e da eucaristia.
qualquer poder de legislar, conforme já declaramos acima, no
parágrafo 6 -, mas em nome de seu Pai. Temos uma passagem nas
Escrituras, em que ele sintetiza todas as leis de Deus publicadas até
aquele tempo em apenas dois preceitos (Mateus 22, 37-40): Amarás
o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de
todo o teu pensamento; este é o primeiro e grande mandamento. E f)
o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti
mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas. 9. Arrependei-vos, Batizai-vos, Obedecei aos mandamentos, e
O primeiro deles fora enunciado por Moisés quase que nos mesmos outros preceitos semelhantes não constituem leis
O que podemos então dizer de preceitos como Arre
pendei-vos, Batizai-vos, Obedecei aos mandamentos, Acre

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ditai no Evangelho, Vinde a mim, Vende tudo quanto tens, Dá aos Disto se segue, portanto, que por estas leis - Não ma
pobres, Segue-me, e outros semelhantes? Devemos dizer que não tarás, Não cometerás adultério, Não roubarás, Honrarás pai e mãe
são leis, mas que nos chamam à fé - assim como em Isaías 55, 1: - tudo o que se ordenou foi que os súditos e cidadãos obedecessem
Vinde; comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. E, se eles absolutamente a seus príncipes em todas as questões referentes ao
não vierem, não estarão pecando contra lei alguma, mas apenas meum e ao tuum, ao que constitui direito deles e ao que é direito
contra a prudência; e não será punida a sua infidelidade, mas alheio. Pois o preceito Não matarás não proíbe toda e qualquer
somente seus pecados passados. Por isso é que São João diz A ira espécie de homicídio; porque o mesmo que disse Não matarás tam-
de Deus sobre ele permanece31, referindo-se ao descrente, e não A bém mandou (Êxodo 35, 2): Todo aquele que fizer obra no sábado
ira de Deus sobre ele virá. Da mesma forma, diz: Quem não crê será morto. Nem mesmo proibiu matar sem julga
está condenado, porquanto não crê32; não diz será condenado, mento, pois igualmente decretou: E mate cada um a seu
mas já está condenado. Não é correto entender que a remissão dos irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu próximo
pecados seja um benefício derivado da fé, a não ser que (Êxodo 32, 27); E caíram do povo aquele dia uns três mil
homens (28). Nem proibiu, sequer, que se matassem pessoas
compreendamos igualmente, por outro lado, que o castigo dos
inocentes; pois Jefté fez o seguinte voto Quízes 11, 31): Aquele
pecados é um dano que decorre da infidelidade.
que, saindo da porta etc.33 será do Senhor e eu o oferecerei em
holocaustd\ e esse voto foi aceito por Deus.
Então, o que é proibido? Apenas isso: que alguém mate a
outro, se não tiver o direito de matá-Io; isto é, manda-se que
ninguém mate, exceto aquele a quem cabe fazê-Io. Por conseguinte,
10. Cabe à autoridade civil definir o que é o pecado de a lei de Cristo sobre o homicídio (e conseqüentemente toda forma
injustiça de dano que se cause a alguém, e quaisquer penalidades que
possam ser instituídas) manda que obedeçamos tão-somente à
Nosso Salvador não prescreveu leis distributivas aos súditos
cidade. Da mesma forma, o preceito Não cometerás adultério não
dos príncipes, nem aos cidadãos das cidades; isto é, não deu regras proíbe toda forma de copulação, mas apenas a que consiste em
com base nas quais um súdito possa conhecer e discernir o que é deitar-se com a mulher de outro homem. Ora, a decisão de quem é
seu, o que é de outro; nem disse por que fórmulas, termos ou mulher de outro homem compete à cidade, e há de ser determinada
circunstâncias uma coisa deve ser dada, entregue, ocupada ou pelas regras que a cidade prescreve. Esse preceito ordena pois ao
possuída, de modo que possamos saber que ela pertence legalmente homem e à mulher que preservem plenamente aquela fé que eles
a quem a recebe, ocupa ou possui. Por tudo isso, devemos mutuamente se deram segundo as leis da cidade. Igualmente, pelo
necessariamente entender que cada súdito em particular (e não preceito Não roubarás não se proíbe toda forma de invasão ou de
apenas entre os infiéis, diante dos quais Cristo mesmo negou ser subtração secreta, mas apenas aquela que incide sobre os bens de
juiz ou repartidor, mas também em meio aos próprios cristãos) deve outro homem. Portanto, ordena-se ao súdito apenas que não invada
receber essas regras de sua cidade, isto é, daquele homem ou nem
conselho que nela tem o poder supremo.

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subtraia nada que a cidade proíbe de invadir ou de subtrair; e, de 12. Cabe também à autoridade civil julgar, quando
modo geral, que só chame de assassínio, adultério ou roubo o que preciso for, que definições e que deduções são verdadeiras
é contrário às leis civis. Além disso, todas estas coisas: construir castelos, casas,
Finalmente, considerando que Cristo nos mandou honrar pai e templos; mover, carregar, levar pesos enormes; enviar algo em
mãe, e não disse com que ritos, nomes e com que espécie de segurança pelos mares; conceber máquinas, que sirvam para toda
obediência eles devem ser honrados, supõe-se que devam sê-Io espécie de uso; ter um bom conhecimento da face do mundo inteiro,
internamente com a vontade, na qualidade de reis e senhores de do curso das estrelas, das estações do ano, da passagem do tempo e
seus filhos; mas externamente não devem ser honrados mais do que da natureza de todas as coisas; entender perfeitamente em que
o permita a cidade, a qual atribui a cada homem, além de toda sorte consistem todos os direitos naturais e civis; e toda espécie de
de outras coisas, também qual é sua honra. E, como a natureza da ciências que, compreendidas sob o nome de filosofia, são
justiça consiste em que a cada homem se dê aquilo que é seu, é necessárias em parte para viver, em parte para viver bem; afirmo
manifesto que também compete a uma cidade cristã determinar o eu, a compreensão de todas estas coisas (porque Cristo não no-Ia
que é a justiça, o que a injustiça, e ainda como se peca contra a deu) deve ser obtida pelo raciocínio - ou seja, tirando-se uma série
justiça. E o que compete à cidade deve se entender que compete de conseqüências necessárias a partir daquilo que foi inicialmente
àquele, ou àqueles, que tem ou têm o poder soberano nela. obtido através da experiência.
Mas os homens raciocinam ora de forma correta, ora incorreta,
e portanto aquela conclusão que consideram ser verdadeira pode às
vezes ser certa e outras vezes errada. Ora, os erros, mesmo quando
se referem a essas questões filosóficas, podem eventualmente
11. Cabe à autoridade civil definir o que tende à paz e defesa causar dano ao público, e ocasionar grandes sedições e injúrias. Por
da cidade conseguinte, sempre que uma controvérsia surgir nesses assuntos
que for contrária ao bem público e à paz comum, é necessário que
Ademais, como nosso Salvador não apontou aos súditos haja alguém para julgar o raciocínio, isto é, para dizer se a
nenhuma outra lei para o governo das cidades além das leis de inferência foi corretamente alcançada ou não, a fim de pôr termo à
natureza, isto é, nenhuma além do mandamento de obediência, controvérsia.
segue-se que nenhum súdito em particular pode determinar quem é Mas não há regras dadas por Cristo para este propósito - ele
amigo público, quem é inimigo, quando deve ser feita a guerra, a não veio ao mundo para ensinar lógica. Resulta, pois, que os
paz ou uma trégua, nem tampouco dizer que súditos, que juízes.de tais controvérsias serão aqueles mesmos que Deus
autoridade e a de quais homens é vantajosa ou prejudicial para a instituiu anteriormente pela natureza, a saber, os que em cada
segurança da república. Estes assuntos e todos os análogos devem cidade são constituídos pelo soberano. Ademais, se surgir uma
ser conhecidos, quando for preciso, com base no que a cidade controvérsia sobre a significação própria e acurada, isto é, sobre a
disser, isto é, no que disserem os poderes soberanos. definição daqueles nomes

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e denominações que são de uso corrente, e se a paz da cidade ou a se o direito e as leis naturais de princípios e contratos humanos; a
distribuição do direito exigir que a ela se ponha termo, tal doutrina assim transmitida está sujeita à censura pelos poderes
determinação competirá à cidade. Com efeito os homens, pelo civis. A outra maneira é como leis, por autoridade divina,
raciocínio, obtêm definições desse tipo com baiJe na observação mostrando que a vontade de Deus é tal ou
dos diversos conceitos aos quais aplicam essas denominações em qual; ensinar desta maneira pertence apenas àquele que conhece pela
distintas épocas e circunstâncias. via sobrenatural a vontade de Deus - isto é, apenas a Cristo.
Quanto a saber se um homem raciocina corretamente, essa
Em segundo lugar, fez parte do ofício de Cristo perdoar os
decisão cabe à cidade. Por exemplo, se uma mulher der à luz uma
pecados aos penitentes, porque isso era necessário para a salvação
criança de formas insólitas, e a lei proibir matar um ser humano,
daqueles que já haviam pecado. E somente ele podia fazê-Io. Pois
estará em questão se tal criança é um ser humano. Pergunta-se,
a remissão dos pecados não decorre naturalmente do
então, o que é um ser humano. Ninguém nega que a cidade deverá
arrependimento, como se fosse coisa devida; mas depende, como
decidi-Io, e isso sem levar em conta a definição de Aristóteles,
um dom gratuito, da vontade de Deus, que se deve revelar pela via
segundo a qual o homem é uma criatura racional. E essas
sobrenatural.
coisas - a saber, o direito, a política e as ciências naturais - são
Pertence, em terceiro lugar, ao ofício de Cristo ensinar todos
tópicos acerca dos quais Cristo nega que pertença a seu ofício dar
os mandamentos de Deus, a respeito do culto a lhe ser prestado, ou
quaisquer preceitos, ou ensinar qualquer coisa além do seguinte:
dos pontos de fé que não podem ser conhecidos pela razão natural,
que, em todas as controvérsias a seu respeito, todo indivíduo deva
obedecer às leis e determinações de sua cidade. Mas devemos mas somente pela revelação. Entre esses pontos, incluem-se que
lembrar que o mesmo Cristo, enquanto Deus, poderia não apenas ele era o Cristo; que seu reino não era terreno, mas celestial; que
ensinar, como também ordenar, tudo o que ele quisesse. há recompensas e punições depois desta vida; que a alma é
imortal; quais sacramentos deve haver, e quantos; e outros
análogos.

13. O ofício de Cristo consiste em ensinar a moral não 14. Distinr,;ão entre coisas temporais e espirituais
como teoremas, mas enquanto lei; e em perdoar pecados,
e ensinar todas as coisas que não sejam objeto de Partindo do que foi dito no capítulo anterior, não é difí
ciência propriamente dita cil distinguir entre as coisas espirituais e as temporais. Por
epirituais se entendem aquelas coisas que se fundamentam na
A suma do ofício de Nosso Salvador consistiu em ensinar a via e
autoridade e no ofício de Cristo e que, não as tivesse ensinado
todos os meios para a salvação e a vida eterna.
Cristo, não poderiam ser conhecidas de nós; todas as outras coisas
A justiça e a obediência civil, bem como a observância de
são temporais. Segue-se, assim, que a definição e determinação do
todas as leis naturais, constituem um dos meios para a salvação. E
eles podem ser ensinados de duas maneiras: primeira, como que é justo e injusto, a resolução de todas as controvérsias sobre os
teoremas, pela via da razão natural, derivando meios de paz e de defesa pública, e o exame das doutrinas e livros
em todas as es

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pécies de ciência racional, dependem do direito temporal. Já quanto dagar então o que é a palavra de Deus, o que é interpretáIa, o que é
aos mistérios da fé, por dependerem apenas da palavra e autoridade uma Igreja, e em que consistem a vontade e o
de Cristo, seu julgamento há de caber ao direito espiritual. mandamento da Igreja. Se deixarmos de lado o fato de que na Escritura
Contudo, é a investigação da razão que define o que é espiritual e o a palavra de Deus é tomada às vezes pelo filho de Deus, diremos que
que é temporal, e por isso cabe ao direito temporal efetuar tal ela é usada de três maneiras.
distinção - porque Nosso Salvador não a fez. Pois, embora São Primeiro, e mais propriamente, para significar o que Deus
Paulo em muitas passagens distinga entre as coisas do espírito e as disse. Portanto, tudo o que Deus disse a Abraão, aos patriarcas, a
coisas Moisés e aos profetas, e Nosso Salvador a seus discípulos ou a
da carne; e chame (Romanos 8, 5; 1 Coríntios 12, 8-10) de quaisquer outros, é palavra de Deus. Em segundo lugar, tudo o que
espirituais aquelas coisas que são do espírito, a saber, a tenha sido pronunciado por homens movidos pelo Espírito Santo
palavra da sabedoria, a palavra da ciência, a fé, os dons de curar, ou obedecendo a suas ordens; nesse sentido, reconhecemos as
a operação de maravilhas35, a profecia, a variedade de línguas, a Escrituras como constituindo a palavra de Deus.
interpretação das línguas; todas elas inspiradas pelo Espírito Santo Em terceiro lugar, é verdade que no Novo Testamento a
pela via sobrenatural, e as quais o homem da carne não entende, palavra de Deus significa, com mais freqüência, a doutrina do
mas somente aquele que conheceu a mente de Cristo (2 Corintios Evangelho, ou seja, a palavra a respeito de Deus, ou a palavra do
2,14-16); e chame de carnais aquelas coisas que se referem aos reino de Deus proferida por Cristo. Assim é que se diz (Mateus 4,
bens deste mundo ou temporais (Romanos 15, 27); e chame os ho- 23) que Cristo pregou o evangelho do reino; que se afirma que os
mens de carnais (1 Coríntios 3, 1-3), contudo ele não definiu, nem apóstolos pregavam a palavra de Deus (Atos 13, 46); que a
nos forneceu regras que nos permitam conhecer o que procede da palavra de Deus é chamada de palavra desta vida (Atos 5, 20); de
razão natural, o que da inspiração sobrenatural. palavra do Evangelho (Atos 15, 7); de palavra da fé (Romanos 10,
8); de palavra da verdade, isto é (acrescentando uma
interpretação), de evangelho da salvação (Efésios 1, 13); e que é
chamada de palavra dos apóstolos; pois São Paulo diz (2
Tessalonicenses 3, 14): Se alguém não obedecer a nossa
15. Em quantos sentidos a palavra de Deus se pode palavra etc. 36 Estas passagens não podem ser entendidas como
entender significando outra coisa do que a doutrina evangélica. Da mesma
forma, quando da palavra de Deus se diz que se plantava,
Considerando portanto como é claro que Nosso Salvador crescia e se multiplicava (Atos 12, 24; e 13, 49), é dificílimo supor
confiou aos príncipes, ou melhor, não retirou deles, ou de quem em que isso se dissesse da voz de Deus ou da de seus apóstolos; mas é
cada cidade alcançou a soberania, sua autoridade suprema para fácil conceber que se tratasse, isto sim, de
julgar e determinar toda espécie de controvérsia sobre os assuntos sua doutrina. E nessa terceira acepção palavra de Deus é toda
temporais, devemos ver portanto a quem ele deixou a mesma aquela doutrina da fé cristã, que em nossos dias é pregada dos
autoridade nos assuntos espirituais. Mas, como isto só pode ser púlpitos e aparece nos livros dos teólogos.
conhecido partindose da palavra de Deus e da tradição da Igreja,
devemos in

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Do Cidadão Religião

16. Nem tudo o que está contido na Sagrada Escritura pertence guir como regra, para essa doutrina, a opinião de uma pessoa a
ao cânone da fé cristã quem não consideramos capaz de discernir se a doutrina é
A Sagrada Escritura é inteiramente palavra de Deus na verdadeira ou não. Por conseguinte é verdade o primeiro membro
segunda acepção, sendo ela o que reconhecemos ser inspirado por da alternativa, segundo o qual a palavra de um intérprete das
Deus; e partes inúmeras dela são palavra de Deus na primeira Escrituras é a palavra de Deus.
acepção. E, considerando que a sua maior parte trata ou da previsão
do reino dos céus, ou de prefigurações à encarnação de Cristo, ou
da evangelização e explicação posteriores a ela, então a Sagrada 18. A autoridade para interpretar as Escrituras é a mesma
Escritura é também palavra de Deus no terceiro significado, isto é, que determina as controvérsias na fé
cânone e regra para toda a doutrina evangélica; assim a palavra de Mas o intérprete cuja determinação recebe a honra de ser
Deus é tomada como sendo a palavra a respeito de Deus, isto é, o considerada como constituindo a palavra de Deus não é qualquer
evangelho. Mas, como nas mesmas Escrituras lemos muitas coisas um que traduza as Escrituras, da língua hebraica ou grega, para o
políticas, históricas, morais, físicas e outras que em nada se referem latim se tiver ouvintes latinos, para o francês se os tiver franceses, e
aos mistérios de nossa fé, tais passagens, embora contenham se os tiver de outras nações para as respectivas línguas maternas:
doutrina verdadeira, e constituam o cânone de tal espécie de porque isso não é interpretar. Pois é tal a natureza do discurso em
doutrinas, não podem ser, porém, o cânone para os mistérios da geral que, embora ele mereça o principal lugar entre todos aqueles
religião cristã. signos pelos quais declaramos aos outros o que concebemos, não
pode, porém, cumprir esse serviço (oifice) sozinho e sem o auxílio
de muitas circunstâncias. Assim, a voz viva tem a presença de seus
intérpretes, a saber, o tempo, o lugar, a fisionomia, o gesto, o
17. A palavra do intérprete legal das Sagradas desígnio (counseD de quem fala, e o próprio falante a desenvolver
Escrituras é palavra de Deus o significado do que diz em outras palavras sempre que isso se fizer
E em verdade não é a voz ou letra morta da palavra de Deus necessário.
que constitui o cânone da doutrina cristã, mas uma determinação Para conseguir evocar esses auxiliares da interpretação, tão
verdadeira e genuína. Pois a mente não será governada pelas desejados nos escritos dos tempos antigos, não basta ter um
Escrituras, se ela não as compreender. Portanto é necessário um engenho (wit) ordinário, nem mesmo o mais original: é preciso
intérprete, para que torne as Escrituras em um cânone, e então dispor ainda de uma grande erudição e de muita ciência da
estamos ante a seguinte alternativa: ou a palavra do intérprete é a antiguidade. Não é suficiente, então, para interpretar as Escrituras
palavra de Deus, ou o cânone da doutrina cristã não é a palavra de que alguém entenda a língua em que ela é falada. Nem é autêntico
Deus. intérprete das Escrituras qualquer um que escreva comentários a
Destas duas a última é necessariamente falsa; pois uma seu respeito. Pois os homens podem errar; podem também vergar as
doutrina que não pode ser conhecida por nenhuma razão humana, Escrituras, para que sirvam a sua ambição pessoal; ou, se elas
porém apenas pela revelação divina, necessita ter uma regra que
seja, igualmente, divina. E não podemos se

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Do Cidadão Religião

resistirem, escravizá-Ias monopolizando-as: e disso se segue que do é impossível dizer qualquer coisa que seja à Igreja. Mas
uma sentença errônea venha a ser considerada como constituindo a Assolava a Igreja37 (Atos 8, 3) entende-se de uma Igreja não
palavra de Deus. reunida. Às vezes toma-se a Igreja por aqueles que são batizados,
Mas, ainda que isso não aconteça, tão logo esses comentadores ou pelos que professam a fé cristã, quer sejam cristãos em seu
se afastem, seus mesmos comentários passam a necessitar de íntimo quer apenas por fingimento - como quando lemos que algo
explicação; e, no correr do tempo, essas explicaçôes precisam ser foi dito ou escrito à Igreja, ou dito, decretado ou praticado pela
expostas; e essas exposições requerem novos comentários - tudo Igreja. Às vezes por ela se entendem apenas os eleitos, como
isso sem ter fim. Assim, nenhuma interpretação escrita pode quando ela é chamada santa e irrepreensível(Efésios 5,27). Mas os
constituir um cânone ou regra para a doutrina cristã que ponha eleitos, enquanto militantes, não são propriamente chamados de
termo às controvérsias da religião. Resta que tem de haver algum Igreja, pois não sabem como se reunir; são uma futura Igreja, isto
intérprete canônico, cujo ofício legítimo consiste em pôr fim às con- é, eles o serão naq\}ele dia em que, separados dos réprobos
trovérsias que surjam, explicando a palavra de Deus nos próprios (reprobate), haverão de triunfar.
julgamentos. Sua autoridade não deve ser menos E a Igreja ainda pode ser às vezes considerada como o coletivo
obedecida do que a daqueles que foram os primeiros a re- de todos os cristãos, como quando Cristo é chamado cabeça de sua
comendarmos a própria Escritura como um cânone de fé. Essa Igreja (Efésios 5, 23), e a cabeça de seu C01pO, ou seja, da Igreja
única e mesma pessoa deve ser intérprete das Escrituras, e juiz (Colossenses 1, 18). Às vezes é tomada por suas partes, como a
supremo de toda espécie de doutrinas. Igreja de Éfeso, a Igreja que está em sua casa, as sete Igrejas etc.
Finalmente, a Igreja, quando é considerada como a companhia
efetivamente reunida, significa, segundo os diversos fins que pode
ter tal reunião, às vezes aqueles que se juntam para deliberar e
julgar (sentido no qual é também chamada concílio ou sínodo), e às
19. Diversas significações da palavra "Igreja" vezes aqueles que se encontram na casa de preces para cultuar a
Deus, significado este que vemos em 1 Coríntios 14, 4, 5, 23, 28
Quanto à palavra ecclesia, ou Igreja, originalmente ela
etc.
significa a mesma coisa que concio ou congregação quer dizer em
latim. Assim, ecclesiastes ou eclesiástico significa o mesmo que
concionator ou pregador, isto é, aquele que fala à congregação. É
neste sentido que lemos, nos Atos dos Apóstolos, algo sobre uma
Igreja confusa, e sobre uma Igreja legítima (Atos 19, 32-39): a
primeira, designando pessoas que afluem a um tumulto, a segunda, 20. O que é uma Igreja, a que atribuímos direitos, ações e as
para uma assembléia demais capacidades que caracterizam uma pessoa
que foi convocada. Ademais, no texto sagrado, por Igreja de Mas a Igreja, a que se atribuem tanto direitos pessoais quanto
cristãos se entende às vezes a assembléia, e às vezes os próprios ações que lhe sejam próprias, e à qual se referem frases como Dize-
cristãos, embora não estejam efetivamente reunidos, se estiverem o à Igreja e aquele que não obedece à Igreja e outras tais, deve
autorizados a entrar na congregação e a comunicar-se com os definir-se de tal modo que por essa palavra se entenda uma
congregados. Por exemplo, Dize-o à Igreja (Mateus 18, 17) refere- multidão de homens, que firmaram
se à Igreja reunida, pois de outro mo

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um novo pact038 com Deus em Cristo, ou seja, uma multidão dos Por conseguinte, uma Igreja somente é una quando houver um
que receberam o sacramento do batismo. Alguém tem o direito de poder certo e conhecido, isto é, um poder legal, por meio do qual
convocar tal multidão de homens a um lugar determinado e, assim todo e qualquer homem possa ser obrigado a comparecer à
sendo, eles estão obrigados a comparecer pessoalmente ou através congregação, quer pessoalmente, quer através de procurador; e o
de representantes. Pois uma multidã'à, se não puder reunir-se em que torna tal Igreja una, e lhe confere as funções de pessoa, não é o
assembléia quando isto se fizer necessário, não pode dizer-se uma fato de ter uma doutrina uniforme, mas o de haver um único poder
pessoa. Assim, uma Igreja não pode falar, nem discernir ou ouvir, a legalmente capacitado a convocar sínodos e assembléias de
não ser na medida em que é uma congregação. Tudo o que seja dito cristãos. E se assim não for tudo o que teremos será uma multidão,
por indivíduos (que terão uma opinião por cabeça) e o discurso de bem como pessoas no plural, ainda que estas concordem em suas
um só homem, não o da Igreja. Além disso, se uma assembléia se opiniões.
reunir, e for ilegal, será considerada nula. Por isso, nenhum
daqueles que estejam presentes a um tumulto estará preso ao
decreto dos restantes; e, menos que todos, aqueles que discordarem
do tumulto. E por isso uma tal Igreja39 não pode promulgar decreto
algum; pois se diz que uma multidão decreta algo, quando cada qual 21. Uma cidade cristã é o mesmo que uma Igreja cristã
está obrigado pelo decreto da maioria. Devemos portanto incluir na Segue-se, necessariamente, que uma cidade de cristãos e uma
definição de Igreja, à qual atribuímos coisas que competem a uma Igreja são exatamente a mesma coisa, com os mesmos homens, a
pessoa, não apenas a possibilidade de que ela se reúna em que se dão dois nomes diferentes, por duas razões. A matéria de
assembléia, mas também a de que tal reunião seja legal. uma cidade e de uma Igreja é a mesma, a saber, constitui-se dos
Além disso, ainda que haja alguém com o direito de convocar mesmos cristãos. E a forma, que consiste num poder com o direito
os demais, se os que assim forem convocados tiverem direito a não de reuni-los, também é a mesma - pois é evidente que cada súdito
comparecer (o que bem pode suceder entre homens que não sejam está obrigado a comparecer, lá onde for convocado por sua cidade.
súditos uns dos outros), essa Igreja não é uma pessoa. Pois, se Assim, aquilo que chamamos uma cidade, porque se compõe de
alguns, convocados a se reunirem num lugar e data previamente homens, chama-se Igreja, quando se compõe de cristãos.
fixados, legalmente constituem uma Igreja, pelo mesmo direito
outros, dirigindo-se a outro lugar por eles escolhido, formam outra
Igreja. E então qualquer número de homens que tenham uma
mesma opinião constitui uma Igreja; por isso haverá tantas Igrejas
quantas forem as opiniões assim distintas: o que quer dizer que a 22. Estados separados não constituem uma Igreja
mesma multidão se mostrará ser, a um só tempo, uma e muitas
Igrejas. Também isso é muito coerente com os mesmos pontos: se
houver muitos Estados cristãos, todos estes, juntos, não formam
uma Igreja única. Podem, é verdade, por consentimento mútuo
tornar-se uma só Igreja, mas do mesmo modo que se converteriam
num Estado único. Isso porque eles só podem se reunir em lugar e
data previamente mar

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cados; ora, pessoas, lugares e datas competem ao direito civil; e guiam o ministério e o magistério (maistery). Os ministros tinham,
além disso nenhum súdito ou estrangeiro pode legalmente põr seu entre seus ofícios, os de servir à mesa, de cuidar dos bens temporais
pé em qualquer lugar que seja se não tiver a permissão da cidade, da Igreja e de distribuir, naquele tempo em que toda a propriedade
que tem senhorio sobre o lugar. As coisas, porém, que só podem das riquezas estava abolida e eles recebiam sua comida em comum,
ser legalmente praticadas com a permissão do Estado, caso tenham a porção que cabia a cada homem. Já os mestres, dependendo da
tal permissão são efetuadas pela autoridade do Estado. sua hierarquia (arder), eram uns chamados de apóstolos, outros de
bispos, outros ainda de presbíteros, quer dizer, anciãos. Esse termo
A Igreja universal é realmente um corpo místico, cuja cabeça
"presbítero" não significa, porém, uma referência à idade, e sim ao
é Cristo; mas isso da mesma maneira que todos os homens
ofício; assim foi que Timóteo foi presbítero, embora ainda jovem.
reunidos, reconhecendo Deus como governante do mundo,
Mas, como em sua maior parte os anciãos eram reconhecidos como
constituem um só reino e uma só cidade - que, apesar disso, não é
mestres, essa palavra, que indica a idade, foi utilizada para designar
uma pessoa, nem tem nenhuma ação ou determinação comum.
o ofício. Os mesmos mestres, conforme o emprego a que se
Além disso, na passagem em que se diz que Cristo é a cabeça de
destinavam, eram chamados apóstolos, ou profetas, ou evangelistas,
seu CUlpO, a Igreja, evidencia
ou pastores e professores (teachers). E o trabalho apostólico era
se que o apóstolo afirmou isso relativamente aos eleitos realmente universal; o profético consistia em declarar na Igreja as
que, enquanto estão neste mundo, constituem uma Igreja apenas in revelações alcançadas; o evangélico, em pregar ou proclamar o
potentia, a qual eles só atualizarão quando se separarem dos Evangelho entre os infiéis; o dos pastores, em ensinar, confirmar e
reprovados e se congregarem entre si, o que por sua vez somente governar a mente daqueles que já acreditavam.
ocorrerá no Dia do Juízo.
A Igreja Romana antigamente era muito grande, mas
nunca foi além dos limites de seu império, e por isso não era
universal; a menos que o fosse no sentido em que também se dizia
da cidade de Roma Orbem jam totum victor Romanus habebat4° -
embora ele ainda não tivesse sequer a vigésima parte do mundo.
Mas, depois que o Império civil se vil' dividido, os vários Estados 24. A eleição dos eclesiásticos compete à Igreja, e a sua
que dele se originaram formaram igual número de Igrejas, e aquele consagração aos pastores
poder que a Igreja de Roma tinha sobre eles bem poderia depender Na eleição dos eclesiásticos devem ser consideradas duas
inteiramente da autoridade dessas Igrejas que, tendo repelido dos coisas: a escolha das pessoas, e sua consagração ou instituição, que
imperadores, aceitavam porém ainda os doutores de Roma. também é chamada ordenação. Cristo, pessoalmente, elegeu e
ordenou os primeiros doze apóstolos. Depois da ascensão de Cristo,
Matias foi eleito para o lugar do traidor Judas. A Igreja, que
naquele tempo consistia de uma congregação com cerca de cento e
vinte homens, escolheu dois (E apresentaram dois41), José e
Matias, mas Deus mesmo elegeu, pela sorte, a Matias. E São Paulo
23. Quem são os eclesiásticos
chama a estes doze os primeiros e grandes apóstolos, ou, ain
Podem ser chamados de eclesiásticos os que exercem
um ofício público na Igreja. Mas entre os ofícios se distin

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da, os apóstolos da circuncisão. Mais tarde se somaram a eles Considerando, pois, que competia à Igreja, e não a Pedro, nem
outros dois apóstolos, Paulo e Barnabé, que foram ordenados, é portanto a homem algum, determinar que doutores eles deveriam
certo, pelos doutores e profetas da Igreja de An seguir, igualmente estava sob a autoridade da Igreja de Antioquia
tioquia (que era uma Igreja particular), por imposição de eleger seus profetas e doutores. Assim, como foi o Espírito Santo
mãos, mas que haviam sido eleitos por ordem do Espírito Santo. O quem separou, para seu serviço, os apóstolos Paulo e Barnabé pela
capítulo 13 dos Atos confirma que ambos foram apóstolos (vv. 2 e imposição de mãos dos doutores assim eleitos, fica evidente que em
3)42. E o próprio São Paulo mostra que seu apostolado se deveu a cada Igreja a imposição de mãos e a consagração dos principais
esse fato, isto é, a serem eles apartados, por ordem do Espírito, do doutores compete aos doutores da mesma Igreja.
restante dos profetas e doutores da Igreja de Antioquia, para que se Já os bispos, que também eram chamados de presbíteros -
dedicassem ao trabalho de Deus: pois ele se define, em Romanos embora nem todos os presbíteros fossem bispos -, às vezes foram
(cap. 1, v. 1), "apóstolo, separado para o evangelho de Deus". ordenados por apóstolos; assim, Paulo e Barnabé, quando pregaram
Mas, se prosseguirmos nossa investigação, e perguntarmos em Derbe, Listra e Icônio, ordenaram anciã os em cada Igreja por
por autoridade de quem se reconheceu aquilo que tais profetas e que passaram (Atos 14, 23); outras vezes, por outros bispos; pois
doutores diziam ser ordem do Espírito San Paulo deixara Tito em Creta, para que estabelecesse anciãos43 em
to, necessariamente deveremos responder: por autoridade da Igreja cada cidade (Tito 1, 5). E Timóteo foi advertidd4 (1 Timóteo 4, 14)
de Antioquia. Porque os profetas e doutores devem ser examinados para
pela Igreja, antes que sejam reconhecidos em tal qualidade. E São não desprezar o dom que há nele, o qual lhe foi dado por profecia,
João (P Epístola de São João 4, 1) assim diz: Não creiais a todo o com a imposição das mãos do presbitério. E lhe foram dadas regras
espírito, mas provai se para a escolha dos presbíteros.
os espíritos são de Deus; porque já muitos falsos profetas se tem Mas tudo isso somente se aplica à ordenação daqueles que já
levantado no mundo. Mas qual Igreja faria essa prova, se não foram eleitos pela Igreja - porque ninguém pode constituir um
aquela à qual se dirigia a epístola aqui citada? Da mesma forma, doutor na Igreja sem a permissão dela. Assim, o dever dos próprios
São Paulo (Gálatas 2, 14) reprova as Igrejas da Galáxia por se apóstolos não consistia em mandar, porém em ensinar. E, embora os
judaizarem, embora aparentemente o fizessem autorizadas por nomes recomendados pelos apóstolos ou presbíteros não fossem
Pedro. Pois, depois de dizer-lhes que ele repreendera o próprio recusados, graças à estima em que estes últimos eram havidos,
Pedro com as seguintes palavras: Se tu, sendo judeu, vives como os contudo, como vemos que os primeiros não poderiam ser eleitos
gentios, e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem sem a
como judeus?, não demora a questionar os gálatas, dizendo vontade da Igreja, supõe-se então que fossem eleitos pela
(Gálatas 3, 2} autoridade da Igreja. Da mesma forma os apóstolos ordenaram
Só quisera saber isto de vós: recebestes o Espírito pelas obras da ministros, a quem se chamava de diáconos - mas foi a Igreja quem
lei ou pela pregação da fé? Nessa passagem se evidencia que ele os elegeu. Assim, quando iam ser eleitos e ordenados os sete
repreendia os gálatas por judaísmo, pouco importando que fosse o diáconos, não foram os apóstolos que os
apóstolo Pedro quem os obrigara a judaizar-se. elegeram: pois, disseram eles (Atos 6,3,5,6), escolhei, dentre vós,
sete varões de boa reputação ete. 45, e a multidão ele

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geu Estêvão, etc.; e os apresentou ante os apóstolos. Está claro,


portanto, pelo costume que a Igreja primitiva tinha sob os disse mais que isso, a própria natureza já decreta que não devemos
apóstolos, que a ordenação ou consagração de todos os temer os que matam o corpo, e não podem matar a alma; antes
eclesiásticos, que é praticada mediante a prece e a imposição de devemos temer aquele que pode lançar no inferno tanto a alma
mãos, competia aos apóstolos e doutores; mas a eleição daqueles quanto o corpo (Mateus 10, 28). E ninguém é tão louco que, entre
que haveriam de ser consagrados era competência da Igreja. aqueles que podem perdoar ou reter seus pecados, e os reis mais
poderosos, não escolha obedecer antes aos primeiros.
Por outro lado, não se deve imaginar que a remissão dos
pecados consista apenas em ficar isento dos castigos eclesiásticos.
25. O poder de perdoar os pecados dos penitentes, e de reter os Pois que mal traz consigo a excomunhão, além dos sofrimentos
(pains) eternos que ela necessariamente acarreta? Ou que benefício
dos impenitentes compete aos pastores; mas o de julgar a
penitência é da Igreja traz o ingresso na Igreja, se houver salvação fora dela? Devemos
portanto sustentar que os
Sobre o poder de atar e desatar, isto é, o de perdoar ou reter os pastores têm um poder verdadeiro e absoluto de perdoar os pecados -
pecados, não há dúvida de que Cristo o outorgou aos futuros mas somente dos penitentes -, e de retê-Ios mas só dos
pastores da mesma forma que o concedeu aos apóstolos de seu impenitentes.
tempo. E os apóstolos receberam todo o poder de perdoar os Contudo, enquanto os homens pensarem que o arre-
pecados que Cristo então possuía. Assim como o Pai me enviou, diz pendimento consiste simplesmente em cada um condenar as ações
Cristo Qoão 20, 21), também eu vos envio a vós; e acrescenta (v. que praticou e mudar os desígnios que a ele mesmo agora parecem
22): Àqueles a quem perdoardes os pecados lhes são perdoados; e ser pecaminosos e condenáveis, haverátambém a opinião de que
àqueles a quem os retiverdes lhes sào retidos. pode haver arrependimento antes de ocorrer qualquer confissão de
Mas há alguma dificuldade sobre o que é atar e desatar, pecados a outro homem; o arrependimento então não seria efeito,
perdoar e reter os pecados. Primeiro, porque reter os pecados de mas causa da confissão. E os que a isso respondem dizendo que os
quem, tendo sido batizado para sua remissão, se mostra arrependido pecados dos penitentes já lhes são perdoados com o batismo, e os
de verdade parece ir contra o próprio pacto do Novo Testamento; e dos impenitentes não lhes podem absolutamente ser perdoados, se
portanto nem Cristo poderia agir assim, muito menos os seus defrontam com uma grande dificuldade: porque o que dizem vai
pastores. E perdoar aos impenitentes parece ir contra a vontade de contra as Escrituras, e contra as palavras de Cristo, àqueles a quem
Deus Pai, que foi quem mandou Cristo para converter o mundo e perdoardes os pecados etc.
reduzir os homens a sua obediência. Além disso, se a cada pastor Devemos portanto, para resolver a dificuldade aponta
fosse conferida uma tal autoridade para perdoar e da, começar sabendo que o arrependimento consiste num sincero
reter os pecados, ficaria completamente destruído todo o temor reconheciment046 do pecado. Pois quem sabe que pecou sabe que
(awe) que se deve aos príncipes e magistrados civis, juntamente errou; mas é impossível querer errar; portanto, quem sabe que
com toda forma de governo civil. Pois Cristo pecou tem vontade de que não o tivesse feito; e isso é arrepender-
se. Além disso, quando tivermos

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dúvidas se o que cometemos constituía pecado ou não, deveremos a retenção do pecado - incumbe ao pastor; e consiste, esta
considerar que o arrependimento não antecede a confissão dos última, no poder de atar e desatar.
pecados, mas lhe é posterior: pois só há arrependimento dos Vemos em Mateus (cap. 18, vv. 15-18) que era isto o que
pecados que reconhecemos como tais. O penitente deve portanto realmente queria Nosso Salvador Cristo, ao instituir este poder: Se
reconhecer o fato e além disso saber que se tratava de um pecado, teu irmão pecar contra ti, vai, e repreende-o entre ti e ele só. Aqui
ou seja, de algo contrário ã lei. Por conseguinte, se alguém pensar devemos observar, de passagem, que se teu irmão pecar contra ti
que aquilo que fez não infringia a lei, é impossível que venha a se significa a mesma coisa que se ele te cometer injúria; e portanto
arrepender por tal coisa. Portanto, antes do arrependimento é Cristo se referia aos tópicos que competiam ao tribunal civil. E
necessário que haja um enquadramento (application) dos fatos na acrescenta: Se ele não te ouvir (isto é, se teu irmão negar que tenha
lei. feito tal coisa, ou se, confessando-a, negar que fosse injusta), leva
Ora, além disso é impossível enquadrar os fatos na lei se não ainda contigo um ou dois47; e, se não as escutar, dize-o à Igreja.
houver um intérprete: pois a regra das ações humanas não reside nas Ora, por que dizê-Io à Igreja, se não for para que ela julgue se se
palavras da lei, porém na sentença do legislador. E seguramente o trata ou não de pecado? E, se também não escutar a Igreja, isto é,
intérprete da lei será um homem, ou um grupo de homens; pois se ele não se submeter à sentença da Igreja,
ninguém pode julgar se o que ele próprio fez constitui, ou não, um porém insistir em que não é pecado o que ela afirma ser
pecado.Portanto devemos expor o fato, que não sabemos se foi ou seja, se ele não se arrepender (pois é indubitável que ninguém
pecado ou não, perante tal homem ou grupo de homens; e nisso se arrepende de uma ação que não considere ser pecaminosa) -,
consiste a confissão. Ora, quando o intérprete da lei então não diz Cristo: Dize-o aos apóstolos, porque sabemos que a
julgar que o fato em questão constitui um pecado, se o pecador se sentença definitiva sobre a questão de se tratar ou não de um
submeter a seu julgamento e decidir dentro de si que não mais agirá pecado não compete a eles, mas à Igreja. Diz, isto sim, considera-o
dessa forma, estará se arrependendo; e como um gentio e publicano, isto é, como alguém que está fora da
assim, ou não há verdadeiro arrependimento ou, se este houver, será igreja, como alguém que não foi batizado, ou seja, como alguém
posterior, e não anterior, à confissão. cujos pecados estão retidos. Pois todos os cristãos foram batizados
Assim explica das tais coisas, não é difícil entender que a fim de terem os seus pecados remitidos. Mas, como se poderia
espécie de poder é o de atar e desatar. Pois vemos que na remissão perguntar quem teria poder tão grande que pudesse retirar o
dos pecados devem ser consideradas duas coisas. Uma delas é o benefício do batismo aos impenitentes, Cristo mostra que as
juízo, ou condenação, pelo qual o fato foi julgado pecaminoso. A mesmas pessoas a quem ele conferiu autoridade para batizar o
outra, quando a parte condenada se submete e obedece ã sentença, penitente na remissão dos pecados, e para fazer do gentio um
ou seja, se arrepende, chama-se a remissão do pecado; e, se ela cristão, igualmente têm autoridade para reter os pecados daqueles
não se arrepende, sua retenção. Ora, a primeira destas coisas - que a Igreja vier a julgar impenitentes, e portanto para fazer, de
julgar se se trata ou não de um pecado - compete ao intérprete da cristãos, gentios. E por isso ele acrescenta: Em verdade vos digo
lei, ou seja, ao juiz soberano, enquanto a segunda - a remissão ou que tudo o que

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Do Cidadão Religião

ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra veio também o costume de expulsar da sinagoga quem dissentisse
será desligado o céÚ'8. de sua doutrina.
Disso podemos entender que o poder de ligar e desligar, ou de Por analogia (resemblance) a esse costume, os que se
perdoar e reter os pecados, que em outra passagem é chamado de convertiam ao cristianismo, quer judeus quer gentios, não eram
poder das chaves, não difere em nada do poder conferido nos recebidos na Igreja se não fossem batizados; e quem dissentisse da
seguintes termos em Mateus (cap. 28, v. 19): Ide, e ensina i todas Igreja era privado de sua comunhão. Dizia-se então que eram
as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho e do Espírito "entregues a Satanás" porque tudo o que estava fora da Igreja
Santo. E assim como os pastores não se podem recusar a conferir o constituía o reino dele. A finalidade desse tipo de disciplina
batismo àquele que a Igreja julga merecê-Io, tampouco podem eles consistia em que, privando certos homens da graça e dos
reter os pecados daquele que a Igreja considera digno de ser privilégios espirituais da Igreja por um tempo, eles se fizessem
absolvido, nem perdoar os pecados a quem a Igreja sentencia como humildes para a salvação. Mas seu efeito quanto aos assuntos
desobediente. E compete à Igreja julgar do pecado, ao pastor excluir seculares foi que, estando excomungados, eles não apenas eram
ou admitir na Igreja os que foram julgados. Assim foi que disse São proibidos de fazer parte de todas as congregações e Igrejas, e de
Paulo à Igreja de Corinto C1 Coríntios 5, 12): Não julgais vós os participar dos mistérios, mas ainda, sendo considerados
que estão dentro? Mas foi ele quem pronunciou a sentença de contagiosos, deviam ser evitados por todos os demais cristãos,
excomunhão con mais até do que se fossem gentios. Pois o Apóstolo permitiu que se
tra o incestuos049. Eu na verdade, diz ele (v. 3), ainda que ausente mantivesse companhia aos gentios; mas, com o excomungado,
no corpo, mas presente no Espírito etc. disse ele, com o tal nem ainda comais C1 Coríntios 5, 10-11)5°.
Vendo-se então que é este o efeito da excomunhão,
fica evidente, em primeiro lugar, que uma cidade cristã não pode
ser excomungada. Pois uma cidade cristã é uma Igreja cristã
(conforme acima se declarou, no parágrafo 21), e da mesma
26. O que é a excomunhão, e a quem não se aplica extensão que esta - e uma Igreja não pode ser excomungada. Pois
ou ela excomunga a si mesma, o que éimpossível, ou ela teria de
O ato de reter os pecados é chamado, pela Igreja, excomunhão, ser excomungada por uma outra Igreja, que por sua vez teria de ser
e por São Paulo "entrega a Satanás". A palavra excomunhão ou universal ou particular. Mas, considerando que uma Igreja
significa o mesmo que áposunágogon poiein, ou excluir da universal não cons
sinagoga, e por isso parece originar-se na lei mosaica. Nesta, quem titui uma pessoa (como provamos no parágrafo 22), e que
o sacerdote julgasse leproso recebia a ordem (Levítico 13, 46) de se portanto ela não pode agir nem fazer coisa alguma, obviamente não
afastar do acampamento, até que o sacerdote o declarasse pode então excomungar a ninguém; e por outro lado, se uma Igreja
novamente limpo e fosse purificado através de certos ritos, entre os particular excomungar outra Igreja, esse ato também não resulta em
quais se incluía a lavagem do corpo. Disso, com o passar do tempo, nada. Pois, onde não há uma congregação comum, não pode haver
veio que se tornasse costume entre os judeus não acolher os gentios excomunhão algu
que se convertiam ao judaísmo se não se lavassem primeiro, porque
se supunha que estivessem sujos (unclean); e

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Do Cidadão
Religião

ma. E se alguma Igreja (suponhamos: a de Jerusalém) exco-


der supremo na cidade realmente pretende ter essa autoridade sobre
mungasse outra (suponhamos: a de Roma)SI, ela nada mais faria do
a própria cidade.
que excomungar a si mesma: pois quem priva a outrem de sua
Além disso, um príncipe soberano, se for cristão, tem a
comunhão igualmente se priva da comunhão com aquele outro.
seguinte vantagem: que a cidade cuja vontade está contida na sua é
Em segundo lugar, ninguém pode excomungar simul-
exatamente a mesma coisa a que chamamos de Igreja. Portanto a
taneamente todos os súditos de um governo absoluto, ou proibi-los
Igreja não excomunga ninguém, sem a autorização do príncipe. E,
de usar seus templos ou de praticar seu culto público a Deus. Isso
como o príncipe não excomunga a si próprio, seus súditos
porque eles não podem ser excomungados por uma Igreja que é
tampouco podem excomungá-lo. Pode acontecer, é claro, que uma
formada, justamente, por eles mesmos; porque, se isso fosse assembléia de cidadãos rebeldes ou de traidores pronuncie uma
possível, não apenas deixariam eles de ser uma Igreja, mas nem sentença de excomunhão contra seu príncipe; mas ela não tem o
sequer continuariam sendo uma república (commonweal), e se direito de fazê-lo.
veriam dissolvidos automaticamente; mas não é isso o que significa Menos, ainda, pode um príncipe ser excomungado por outro -
excomunhão ou interdição. Contudo, se for outra Igreja que os porque isso se revelaria ser, não uma excomunhão, mas uma
excomunga, ela deve considerá-l os como gentios. Contudo, pela afronta, uma provocação à guerra. Pois, como a Igreja que se
doutrina de Cristo, nenhuma Igreja pode proibir os gentios de se compõe de cidadãos pertencentes a duas cidades absolutas não é
reunirem e de se comunicarem entre si, assim como melhor parecer uma Igreja, por não existir poder que possa legalmente reunir os
conveniente a suas cidades; e especialmente se eles se congregarem seus membros (conforme declaramos acima, no parágrafo 22),
para cultuar a Cristo, ainda que o façam por um rito e uma maneira quem é de uma Igreja não está obrigado a obedecer à outra, e
singulares. Por isso tampouco pode uma Igreja interditar os portanto não pode ser excomungado por desobediência.
excomungados de proceder dessa forma, porque com eles deve se Quanto ao que dizem alguns (que os príncipes, sendo
lidar como com os gentios. membros da Igreja universal, podem ser excomungados pela
Em terceiro lugar, não se pode excomungar um principe que autoridade da mesma Igreja universal), de nada significa: porque,
tenha o poder soberano. Pois, pela doutrina de Cristo, nem um conforme mostramos no parágrafo 22, tal Igreja universal não
súdito nem a reunião de muitos súditos pode interditar a seu constitui uma pessoa, de quem possamos dizer que agiu, decretou,
príncipe qualquer lugar, seja público ou privado, ou negar-lhe determinou, excomungou, absolveu, e outros atributos análogos que
entrada em qualquer assembléia que haja, ou ainda proibi-lo de se referem a uma pes
fazer o que ele quiser no interior de sua jurisdição. Constitui soa; nem possui ela algum governante na terra, por ordem de quem
traiçãos2, em qualquer cidade, um ou mais súditos em conjunto se ela possa reunir-se e deliberar. Pois ser o guia da Igreja universal e
arrogarem qualquer autoridade sobre a cidade como um todo - pois ter o poder de reuni-Ia é a mesma coisa que ser governante e senhor
qualquer que alegue possuir uma tal autoridade sobre quem detém o de todos os cristãos no mundo - o que ninguém é, exceto Deus
po mesmo.

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27. A interpretação das Escrituras depende da entre eles nascem se tornarão inúmeras e indecidíveis; disso
autoridade política surgirão entre os homens, que por indinação natural consideram
toda dissensão como uma afronta, primeiro o ódio, depois rixas e
Mostramos acima, no parágrafo 18, que a autoridade para guerras; e assim toda espécie de paz e de sociedade haverá de
interpretar as Sagradas Escrituras não consiste em que o intérprete desaparecer. Podemos ainda lembrar, como exemplo, que Deus no
possa, sem ser punido, expor e explicar aos outros, por escrito ou de tempo da antiga lei exigiu que o livro da lei fosse transcrito e
viva voz, a sentença e a opinião que delas extraiu; consiste, isto sim, utilizado de público, e que servisse de cânone da doutrina divina -
em que outros não tenham o direito de fazer ou ensinar algo que vá mas mandou que as controvérsias a seu respeito não fossem
contra o que ele sentencia. resolvidas por indivíduos privados, porém apenas pelos sacerdotes.
Assim, a intetpretação de que ora tratamos é o mesmo que o Finalmente, é preceito de Nosso Salvador que, se houver qualquer
poder de definir, em todas as controvérsias a que as Sagradas tópico que leve a conflito duas pessoas privadas, estas deveriam
Escrituras possam pôr termo. Devemos, agora, mostrar que tal poder ouvir a Igreja.
pertence a cada Igreja, e depende sempre da autoridade daquele ou Portanto, é dever da Igreja decidir as controvérsias, e por isso
daqueles que têm o poder supremo, desde que ele ou eles sejam mesmo não compete aos particulares, porém a ela, interpretar as
cristãos. Pois, se isso não depender da autoridade civil, deverá Escrituras. Mas, para sabermos que a autoridade de interpretar a
depender da opinião de cada súdito particular, ou da de alguma palavra divina, isto é, de determinar todas as questões que se
autoridade estrangeira. Quanto à primeira possibilidade, além de refiram a Deus e à religião, não compete a nenhum estrangeiro,
outras razôes, os inconvenientes que necessariamente decorrem das devemos considerar, inicialmente, que peso tem um tal poder sobre
opiniões particulares não podem admitir que dependamos delas. De a mente dos cidadãos, e sobre suas ações.
tais conseqüências a principal é a seguinte: que não somente se Ninguém pode ignorar que as ações voluntárias dos homens,
abolira, contrariamente ao preceito de Cristo, toda a obediência por necessidade natural, seguem aquelas opiniões
civil, como também se dissolveria, contrariamente às leis de que eles têm sobre o bem e o mal, sobre a recompensa e o castigo.
natureza, toda a sociedade e a paz entre os homens. Pois, se cada Disso decorre que eles necessariamente preferirão obedecer àqueles
homem interpreta por si próprio as Escrituras, isto é, se cada qual se de cujo julgamento (pensam eles) depende serem eternamente
faz juiz do que agrada e desagrada a Deus, ninguém obedecerá a seu felizes ou desgraçados. Ora, os homens esperam sua eterna graça ou
príncipe antes de julgar se o que este manda se ajusta ou não à perdição do julgamento
palavra divina. E portanto ou os homens de quem decide quais doutrinas são necessárias à sua salvação;
não obedecem ou, se obedecem, é por sua opinião própria; quer portanto, é a eles que prestarão obediência em todas as coisas.
dizer, eles obedecem a si mesmos, e não ao soberano: portanto, a Assim sendo, evidencia-se que aqueles súditos que se consideram
obrigados a seguir uma autoridade estrangeira nas doutrinas que
obediência civil se perdeu.
forem necessárias à salvação não constituem per se uma cidade,
Além disso, quando cada homem segue sua própria opinião,
mas em vez disso são súditos daquele poder estrangeiro.
necessariamente sucede que as controvérsias que

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Do Cidadão Religião

Pela mesma razão, se algum príncipe soberano conceder por meus concidadãos individualmente tomados; coisa que ambos
escrito uma tal autoridade a outro príncipe, mas entendendo que negamos. - Resta, então, que em todas as Igrejas cristãs, isto é, em
conserva em suas mãos o poder civil, tal escrito não terá validade todas as cidades cristãs, a interpretação da Sagrada Escritura, ou
alguma, nem efetuará a transferência de nada que seja necessário à seja, o direito de pôr termo a todas as controvérsias, depende e
conservação ou à boa administração de seu poder. Isso porque, deriva da autoridade daquele homem ou assembléia que tem o
segundo o capítulo lI, parágrafo 4, não se considera que alguém poder soberano.
transfira seu direito, a menos que dê algum sinal adequado, pelo
qual se declara sua vontade de transferi-Io. Ora, quem abertamente
declarou sua vontade de conservar a soberania não pode ter dado 28. Uma cidade cristã deve interpretar as Escrituras por meio de
um sinal suficiente de que transfira os meios necessários à sua pastores
manutenção. Esse tipo de escrito não é portanto um sinal da
vontàde, mas sim da ignorância dos dois contratantes. Há dois tipos de controvérsias. Um deles versa sobre tópicos
Devemos além disso considerar como é absurdo uma cidade espirituais, isto é, sobre questões de fé, cuja verdade não pode ser
ou um soberano conceder o governo das consciên perscrutada pela razão natural - entre as quais se incluem as
cias de seus súditos a um inimigo; pois estão em guerra, conforme questões acerca da natureza e ofício de Cristo, das recompensas e
mostramos acima, no capítulo V, parágrafo 6, todos aqueles que castigos do mundo futuro, dos sacramentos, do culto externo, e
não se juntaram na unidade de uma pessoa. Não se refuta esta outras análogas. O outro tipo se refere às questões de conhecimento
verdade dizendo-se que eles nem sempre estão lutando - porque, (science) humano, nas quais a verdade é examinada pela razão
entre inimigos, fazem-se tréguas. Basta, para uma mente hostil, natural e por silogismos que fazemos a partir dos pactos firmados
que haja suspeita; que nas fronteiras das cidades, dos reinos, dos pelos homens e das definições, isto é, dos significados re-
impérios, guarnições reforçadas se encarem com postura e conhecidos (received) pelo uso e pelo consenso sobre as palavras.
face (countenance) combativas, ainda que nunca desfiram um Incluem-se aqui todas as questões relativas ao direito e à filosofia.
golpe. Por exemplo, quando no direito se pergunta se há ou não uma
Finalmente, veja-se como é desigual (unequal) pedir um promessa ou convenção, o que nada mais é que perguntar se certas
direito que, pelo mero fato de pedir, se confessa que é direito do palavras, proferidas de tal forma, constituem segundo o uso
outro. - Sou eu quem interpreta as Escrituras para ti, que és súdito corrente e o consenso dos súditos uma promessa ou convenção. Se
de outro Estado. - Por quê? Através de que pactos firmados entre recebem esse nome, então é verdade que um contrato foi celebrado;
nós dois? - Pela autoridade divina, respondo. - Conhecida por que se não o recolhem, então é falso; a verdade, portanto, depende dos
meios? - Pela Sagrada Escritura: toma o livro, vai lê-Io. - É inútil, a pactos e do consentimento dos homens.
menos que também eu possa interpretá-Io para mim mesmo. Tal Da mesma forma, quando na filosofia se pergunta se a mesma
interpretação pertence pois, de direito, a mim e ao resto dos coisa pode estar inteiramente em vários lugares ao mesmo tempo, a
determinação dessa pergunta depende de conhecermos qual é o
consenso dos homens sobre o

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Do Cidadão

significado da palavra inteiro. Porque se os homens, quando dizem


que uma coisa está inteiramente num certo lugar, significam, por
I Religião

tender, repugna à eqüidade ficarmos tão desarmados que seja


possível nos enganarmos em pontos necessários Uma tal
consenso, que com isso entendem que nenhuma parte dela esteja
infalibilidade nosso Salvador Cristo prometeu, nas coisas que
em outro lugar, então será falso que essa mesma coisa possa estar
forem necessárias à salvação, a seus apóstolos até o Dia do ]uízo;
em diversos lugares ao mesmo tempo. A verdade depende portanto
prometeu-a, queremos assim dizer, aos apóstolos, e aos pastores
do consentimento dos homens, e pela mesma razão, em todas as
que a estes sucedessem, e que fossem consagrados pela imposição
outras questões relativas ao direito e à filosofia. E aqueles que
de mãos. Por conseguinte, quem possui o poder soberano na cidade
julgam que qualquer coisa possa ser determinada, contrariamente a
está obrigado, enquanto cristão, sempre que houver uma questão
esse consenso dos homens no tocante às denominações das coisas,
relativa aos mistérios da fé, a interpretar as Sagradas Escrituras
recorrendo-se a passagens obscuras da Escritura, desta forma
através de eclesiásticos que tenham sido ordenados segundo a lei. E
julgam que se deve perder o uso da linguagem, e com ele toda a
assim, nas cidades cristãs, o julgamento tanto dos assuntos
associação entre os homens. Pois quem vendeu um campo inteiro espirituais quanto dos temporais compete à autoridade civil. E
dirá que na verdade queria dizer apenas uma colina, e ficará com o aquele homem ou conselho que tem o poder supremo é cabeça
resto, que, afirma, não vendeu. Mais que isso, aqueles que igualmente da cidade e da Igreja; pois uma Igreja é a mesma coisa
pensam dessa maneira eliminam também a própria razão que nada mais que uma cidade cristã.
é que uma investigação da verdade constituída (made) por um tal
consentimento.
Tais questões, portanto, não precisam ser determinadas pela
cidade mediante a interpretação das Escrituras, pois elas não
pertencem à palavra de Deus, naquele sentido em que a palavra de
Deus se considera ser a palavra relativa a Deus, ou seja, a doutrina
evangélica. E quem detém o poder soberano na Igreja não está
obrigado a empregar nenhum doutor eclesiástico para julgar esse
tipo de assunto.
Mas, para a decisão em questões de fé, isto é, naquelas que se
referem a Deus, e que transcendem a capacidade humana, temos
necessidade de uma bênção divina (para que não nos
equivoquemos, pelo menos, nos pontos necessários), que deve
provir do próprio Cristo através da imposição de mãos. Pois,
considerando que para podermos atingir a eterna salvação estamos
obrigados a uma doutrina sobrenatural, que portanto não temos
possibilidade de en

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CAPÍTULO XVIII

Das Coisas Necessárias para


Entrarmos no Reino dos Céusl

1. A objeção de que haveria contradição entre obedecer a Deus


e aos homens será refutada distinguindo-se os pontos
necessários e desnecessários à salvação
Sempre se reconheceu que toda a autoridade em assuntos
seculares derivava de quem tivesse o poder soberano, quer se
tratasse de um só homem, quer de uma assembléia de homens.
Pelas provas que acabamos de expor é manifesto que a mesma
autoridade, em assuntos espirituais, dependia da autoridade da
Igreja; e, além disso, que todas as cidades cristãs constituem Igrejas
dotadas desse tipo de autoridade. Disso até o homem de
entendimento mais lerdo pode concluir que numa cidade cristã (isto
é, numa cidade cuja soberania pertença a um príncipe ou
assembléia cristã) todo o poder, tanto espiritual quanto secular, está
unificado sob Cristo, e portanto deve ser obedecido em todas as
coisas. Mas, por outro lado, como devemos obedecer antes a Deus
que aos homens, surge uma dificuldade: como se pode prestar
obediência seguramente a estes últimos, se a qualquer tempo
podem eles mandar fazer alguma coisa que Cristo tenha proibido.
A razão desta dificuldade é que, vendo que Deus não nos fala mais
através de Cristo e de seus profetas em voz aberta, mas pelas
Sagradas Escrituras, as quais diferentes homens compreendem de
modo diferente, fica-se sabendo, sim, o que os príncipes ou uma
Igreja congregada

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Religião
Do Cidadão

porém, assim como nossa entrada no reino dos céus, constitui a


ordenam, mas não se sabe se o que eles mandam é contrário ou não recompensa da fé; e nada mais é necessário para a salvação. Pois o
à palavra de Deus. Assim, com uma obediência que oscila entre o reino dos céus não está fechado a ninguém, salvo aos pecadores,
castigo da morte temporal e o da morte espiritual, como se isto é, aos que não prestaram a obediência que é devida às leis; e
navegassem entre Sila e Caribde, eles muitas vezes acabam nem mesmo a esses, se acreditarem nos artigos necessários da fé
naufragando em ambos. cristã. Agora, se soubermos em que pontos consiste a obediência, e
Já os que distinguem corretamente entre as coisas que quais são os artigos necessários da fé cristã, evidenciar-se-á ao
são necessárias à salvação, e as que não são necessárias, não mesmo tempo quando devemos cumprir, e quando não, o que nos
podem sentir esse tipo de dúvida. Pois, se a ordem do príncipe ou ordenarem as cidades e os príncipes.
da cidade for tal que ele possa obedecer a ela sem arriscar sua
salvação eterna, é injusto desobedecer-lhe; e cabe aqui o preceito
do apóstolo (Colossenses 3, 20, 22):
Vós, filhos, obedecei em tudo a vossos pais; vós, servos, obedecei
em tudo a vossos senhores segundo a carne. E também cabe o 3. Que espécie de obediência se requer de nós
mandamento de Cristo (Mateus 23, 2-3): Na cadeira Por obediência, nesta passagem, não se significa o fato de
de Moisés estão assentados os escribas e fariseus. Observa i, obedecer, mas a vontade e o desejo com os quais nos propomos e
pois, e praticai tudo o que vos disserem. Mas, inversamente, se eles dispomos (endeavour) a obedecer o quanto for possível no futuro.
nos mandarem fazer aquelas coisas que são punidas de morte
Nesse sentido, obediência é o mesmo que arrependimento; pois a
eterna, seria loucura de nossa parte não preferir morrer de morte virtude do arrependimento não consiste na dor que acompanha a
natural, em vez de obedecer e morrer eternamente; e aqui vale o recordação do pecado, mas em nossa conversão e no firme
que diz Cristo, em Mateus (cap. 10, v. 28): E não temais os que propósito de não mais pecar. Não havendo estes, a dor a que nos
matam o corpo, e não podem matar a alma. Devemos, portanto,
referimos não é a dor do penitente, mas tão-somente a de uma pes-
considerar quais são as coisas necessárias para a salvação. soa desesperada.
Contudo, como quem ama a Deus não pode deixar de sentir o
desejo de obedecer à lei divina, e quem ama a seus próximos não
pode deixar de sentir um desejo de obedecer à lei moral, que
2. Todas as coisas que são necessárias à salvação estão consiste - conforme já mostramos acima, no capítulo III - na
contidas na fé e na obediência proibição da arrogância, da ingratidão, da contumélia, da
Todas as coisas necessárias à salvação estão incluídas em duas desumanidade, da crueldade, da injúria e de outras ofensas
virtudes, fé e obediência; esta última, se fosse perfeita, bastaria análogas, pelas quais prejudicamos ao próximo, por conseguinte
sozinha para proteger-nos da condenação; mas, como todos nós também o amor ou caridade é equivalente à obediência. E também
desde muito tempo atrás fomos culpados, em Adão, de a justiça, que consiste na vontade constante de dar a cada homem o
desobediência a Deus, e além disso nós mesmos mais recentemente que lhe é devido, lhe é equivalente.
pecamos de fato, a obediência não é suficiente se não houver a
remissão de pecados. Esta,

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Do Cidadão
Religião

Já pelo pacto do batismo se mostra que a fé e o arrependimento


4. O que é a fé, e como se distingue da profissão, da
bastam para a salvação. Pois aqueles que Pedro converteu no dia de
ciência e da opinião
Pentecostes, quando lhe perguntaram o que deveriam fazer,
obtiveram a seguinte resposta (Atos dos Apóstolos 2, 38): Para que possamos compreender em que consiste a fé cristã,
Arrependei-vos, e que cada um de vós seja batizado em nome de devemos definir a fé em geral, e distingui-Ia daqueles outros atos da
Jesus, para perdão de vossos pecados. Portanto, nada era necessário mente com os quais ela costuma ser confundida. O objeto de fé em
para se ter o batismo, isto é, para entrar no reino de Deus, a não ser sua acepção universal, "aquilo em que se crê", é sempre uma
arrepender-se e acreditar no nome de Jesus; porque o reino dos céus proposição (isto é, um discurso afirmativo ou negativo) que
é prometido pelo pacto que se faz no batismo. Temos ainda as admitimos ser verdadeira. Mas, como as proposições são admitidas
palavras de Cristo, quando responde ao advogad02 que lhe por diversas razões, sucede que as formas pelas quais nós as
perguntava o que devia fazer para herdar a vida eterna (Lucas 18, admitimos recebem diversos nomes. Às vezes admitimos a verdade
20): Sabes os mandamentos: Não matarás, não adulterarás etc... de proposições que não acolhemos, porém, em nosso espírito. E isso
que se referem à obediência, e (Marcos 10, 21): Vende tudo quanto pode ocorrer por um prazo apenas, ainda que longo, até que, pelo
tens3, e vem, exame de suas conseqüências, tenhamos bem examinado a verdade
e segue-me, o que se refere à fé. E ainda a passagem: O jus dessas proposições (o que se chama supor). Ou então as admitimos
to viverá da fé (não todo homem, porém o justo), pois a justiça pura e simplesmente, como sucede quando o fazemos por medo das
consiste na mesma disposição da vontade que encontramos no leis, o que se chama professar ou confessar por sinais externos. Ou
arrependimento e na obediência. E também as palavras de São ainda por uma anuência voluntária, que empregamos por civilidade
Marcos (cap. 1, v. 15): O tempo está cumprido, e o reino de Deus em relação aqueles a quem respeitamos, e por amor da paz em
está próximo. Arrependei-vos, e crede no Evangelho, palavras estas relação a outros, o que resulta em fazer-lhes uma concessão
que significam, sem nenhuma obscuridade, que nenhuma outra absoluta.
virtude é necessária para que ingressemos no reino de Deus, a não Quanto, porém, às proposições que acolhemos mesmo como
ser o arrependimento e a fé. verdadeiras, nós sempre as recebemos por razões nossas, e estas
Portanto, a obediência que é requisito necessário para decorrem quer da proposição mesma, quer
a salvação nada mais é que a vontade ou o apetite (endeavour) de da pessoa que a propõe. Derivam da proposição mesma,
obedecer, isto é, de agir em conformidade com as leis de Deus, ou quando trazem à mente as coisas que as palavas que compõem a
seja, as leis morais, que são as mesmas para todos os homens, e proposição usualmente significam segundo o con
com as leis civis, que são as ordens dos soberanos nos assuntos sentimento comum. Se assim ocorre, então o assentimento que
temporais, e as leis eclesiásticas, suas ordens em assuntos damos chama-se conhecimento ou ciência. Mas, se não podemos
espirituais; esses dois tipos de lei são diferentes de cidade para recordar o que se. entende de certo por essas palavras, mas ora
cidade e de Igreja para Igreja, e se tornam conhecidos por serem uma coisa, ora outra parece ser percebida por nós, então se diz que
promulgados e publicados. estamos pensandd. Tomemos, por exemplo, a proposição segundo
a qual dois mais três

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Do Cidadão Religião

fazem cinco. Se, recordando a ordem dos numerais, ordem esta que por sua própria força, mas pela de outros sinais que as acom-
se deve ao consentimento daqueles que têm a mesma língua que panham.
nós (como se fosse uma espécie de contrato, que é necessário a Em terceiro lugar, há algumas palavras que se referem a coisas
qualquer sociedade humana), al impossíveis de se conceber. Portanto, não há concepção das coisas
guém perceber que cinco será o nome de tantas unidades Lias quais elas são palavras; e por isso éinútil investigar a verdade
quantas estão contidas em dois e três somados, poderá então de tais proposições, o que se faz a partir das próprias palavras.
assentir que a proposição é verdadeira porque dois e três somados Nesses casos, enquanto consideramos as definições das palavras
são o mesmo que cinco: esse assentimento é chamado indagamos a verdade de alguma proposição, com a esperança de
conhecimento, e saber essa verdade nada mais é descobri-Ia, ora a consideramos verdadeira, ora falsa; cada uma
do que reconhecer o que nós mesmos fizemos. Pois, se fo destas atitudes, em separado, chama-se pensar5, e também
ram a nossa vontade e nossas regras de fala que fizeram o número acreditar; mas ambas, em conjunto, chamam-se duvidar.
II ser chamado dois, III chamar-se três, e IIIII cinco, também é Quando, porém, as razões para assentirmos a uma proposição
nossa vontade que torna verdadeira a proposição segundo a qual não derivam desta, mas da pessoa que a propõe, a quem
dois e três somados completam cinco. Da mesma forma, se consideramos tão versada nas matérias que não se equivoque, e
recordamos o que é chamado roubo, e o que injúria, entenderemos nem vejamos razão por que nos queira enganar, este nosso
pelas palavras mesmas se o roubo é ou não injúria. assentimento, porque não provém de confiança em nosso próprio
A verdade é o mesmo que uma proposição verdadeira; conhecimento, mas no de outro homem, recebe o nome de fé. E
e é verdadeira a proposição na qual a palavra conseqüente, que os pela confiança naqueles em quem acreditamos afirma-se que
lógicos chamam de predicado, envolve em sua acreditamos neles, ou que lhes damos crédito.
amplitude a palavra antecedente, que eles chamam de su Pelo que já foi dito, transparece a diferença, em primeiro
jeito. E conhecer a verdade é o mesmo que recordar que lugar, entre fé e profissão: porque aquela está unida a um
ela foi feita por nós pelo uso comum das palavras. Assim não foi assentimento interno, esta nem sempre. Aquela é uma persuasão
irrefletido nem desavisado que platão disse, nos tempos antigos, que interna do espírito, esta é uma obediência externa. Em segundo
todo conhecimento era memória. Mas acontece às vezes que, lugar, entre fé e opinião: pois esta depende de nossa própria razão,
embora as palavras tenham por sua constituição um significado e aquela da boa avaliação em que tenhamos a de outra pessoa.
Finalmente, entre fé e conhecimento; pois este necessariamente
certo e definido, venham elas
acolhe uma proposição partida e mastigada, enquanto aquele a
porém, porque o vulgo as utiliza quer para adorno quer
ingere inteira e de uma vez. Explicar as palavras em que consiste a
para engano, a ser tão arrancadas de suas significações pró
proposição leva ao conhecimento; mais até, a única maneira de
prias que se torne dificílimo recordar as concepções pelas
conhecer é procedendo por definição. Mas isto é prejudicial à fé;
quais foram inicialmente impostas às coisas, e somente seja pois aquelas coisas que excedem a capacidade humana, e são
capaz de tal mestria quem tiver juízo muito perspicaz e fizer propostas somente para
mostra de muita diligência. Sucede igualmente que há mui
tas palavras que não possuem significação própria, deter
minada e sempre a mesma, e que então são entendidas não

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Do Cidadão Religião

6. O propósito dos evangelistas prova que para a


que nelas acreditemos, nunca se tornam mais evidentes pela
salvação é necessário apenas crer num só artigo
explicação mas, ao contrário, vão se tornando cada vez mais
- que Jesus é Cristo...
obscuras, e difíceis de se acreditar. E a quem tente demonstrar os
mistérios da fé através da razão natural sucede o mesmo que a um Como a fé e a obediência necessariamente concorrem para a
doente, que necessariamente terá de mastigar seus comprimidos salvação, e já mostramos antes (no parágrafo 3) de que espécie de
saudáveis porém amargos, antes de poder engoli-los: ocorre que ele obediência se trata, e a quem ela é devida, resta agora examinarmos
os vomite quando, se os tivesse ingerido de uma só vez, eles pode- quais artigos de fé são exigidos para o mesmo fim. E afirmo que
riam tê-Io curado. para um cristã06 nenhum artigo adicional de fé é exigido para a
salvação, além deste único: que Jesus é o Cristo.
Mas devemos distinguir (como já fizemos acima, no parágrafo
4) entre fé e profissão. Pode ser necessária a profissão de mais
artigos, se assim se mandar; pois isso faz parte da obediência que
5. O que é acreditar em Cristo devemos às leis. Mas não estamos indagando, aqui, qual obediência,
Vimos, assim, em que consiste acreditar. Mas o que é acreditar e sim qual fé, é necessária para a salvação. E isto se prova, em
em Cristo? Ou que proposição é aquela na qual consiste o objeto de primeiro lugar, pelo objetivo que os evangelistas seguiram,
nossa fé em Cristo? Pois, quando dizemos "Cremos em Cristo", pretendendo, pela narração (description) da vida do Salvador,
tudo o que dizemos é em quem acreditamos. Ora, acreditar em estabelecer esse único artigo; e saberemos que era este o objetivo e
desígnio dos evangelistas, se nos limitarmos a observar a história.
Cristo nada mais é do que acreditar que Jesus é o Cristo, ou seja,
São Mateus (no capítulo 1), começando pela genealogia de Jesus,
aquele que, segundo as profecias de Moisés e dos profetas de Israel,
mostra que ele era da linhagem de Davi e que nasceu de uma
deveria vir a este mundo para instituir o reino de Deus. E isso
virgem; no capítulo 2, que foi adorado pelos sábios como sendo o
aparece de maneira clara e suficiente nas palavras que o próprio
rei dos judeus, e que pela mesma causa Herodes procurou matá-lo;
Cristo dirigiu a Marta (João 11, 25-27): Eu sou a ressurreição e a
nos capítulos 3 e 4, que seu reino foi pregado tanto por João Batista
vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo
quanto por ele próprio; nos capítulos 5, 6 e 7, que ele ensinou as
aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá. Crês tu isto? Disse-
leis, não como faziam os escribas, mas como alguém que tem auto-
lhe ela: Sim, Senhor,
ridade para tanto; nos capítulos 8 e 9, que ele curou doenças
creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao
milagrosamente; no capítulo 10, que enviou seus apóstolos,
mundo.
pregadores de seu reino, por todas as partes da
Nessas palavras, vemos que a pergunta Crês tu em mim? é Judéia a fim de proclamar o advento de tal reino; no capítulo 11,
explicada pela resposta Tu és o Cristo. Acreditar em Cristo, que aos mensageiros enviados por João, para verificar se era ou não
portanto, nada mais é que acreditar no próprio Jesus, quando ele diz o Cristo, ele respondeu que contassem
ser o Cristo.

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336
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o que tinham visto, ou seja, milagres que só poderiam ter sido César, dizendo que há outro rei, um Jesus. A passagem citada
realizados por Cristo; no capítulo 12, que ele provou e justificou seu imediatamente antes (Atos dos Apóstolos 17, 2-3) mostra bem qual
reino perante os fariseus e os demais por meio de argumentos, era o assunto dos sermões dos apóstolos: Ex
parábolas e sinais; nos capítulos seguintes, até o 21, que, contra os pondo e demonstrando pelas Escrituras (a saber, pelo Velho
fariseus, ele sustentou ser Cristo; no capítulo 21, que à sua entrada Testamento)9 que convinha que o Cristo padecesse e ressus
em Jerusalém foi saudado com o título de rei; nos capítulos 22, 23, citasse dos mortos. E este Jesus é o Cristo.
24 e 25, que advertiu contra os falsos Cristos, e mostrou sob forma
de parábolas como seu reino viria a ser; nos capítulos 26 e 27, que
1:1111:
foi preso e acusado por essa razão, ou seja, porque afirmara ser rei;
e que sobre a cruz foi colada a inscrição, Este é Jesus, rei dos 8. ... a facilidade da religião cristã...
judeus; finalmente, no capítulo 28, que depois de sua ressurreição Em terceiro lugar, o mesmo se prova pelas passagens nas quais
disse aos apóstolos que todo o poder lhe era conferido, no céu como se afirma como são fáceis as coisas que Cristo exige para que se
na terra. alcance a salvação. Pois, se para a salvação fosse requisito
Tudo isso tende, então, a um só fim: que acreditemos que necessário um assentimento interno da mente à verdade de toda e
Jesus era o Cristo. Este foi, então, o objetivo de São Mateus ao qualquer proposição sobre as quais hoje em dia há tanta
escrever o seu evangelho. E o mesmo foi, também, o objetivo dos controvérsia acerca da fé cristã, ou que cada Igreja define
demais evangelistas - como São João explicita no final de seu diferentemente das outras, nada seria mais difícil do que a religião
Evangelho Qoão 20, 31): Estas coisas foram escritas, diz ele, para cristã. E como poderia então ser verdade o seguinte: O meu jugo é
que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo 7. suave e o meu
fardo é leve (Mateus 11, 30), ou Estes pequeninos crêem nele
(Mateus 18, 6), ou Aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura
da provação (1 Coríntios 1, 21)? Ou como esteve suficientemente
instruído da salvação o ladrão crucificado, cuja confissão de fé se
resumia nas seguintes palavras:
7. ... o que também provam as pregações dos apóstolos... Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reindO? Ou
como poderia São Paulo, de inimigo, tão rapidamente se tornar em
Em segundo lugar, o mesmo se prova pela pregação dos
doutor dos cristãos?
apóstolos. Pois eles eram os arautos de seu reino; e Cristo não os
mandou para pregar coisa alguma, a não ser o reino de Deus (Lucas
9, 2; Atos 10, 42). E o que eles fizeram após a ascensão de Cristo
9. ... o fato de ser este artigo o fundamento da fé...
pode se compreender através da acusação que lhes foi dirigida
(Atos 17, 2-3): Eles trouxeram Jasão, conta São Lucas, e alguns Em quarto lugar, porque o artigo em questão é o fundamento
irmãos à presença dos magistrados da cidade, clamando: Estes que da fé, e não depende de nenhum outro fundamento. Mateus 24, 23-
tem alvoroçado o mundos, chegaram também aqui. Os quaisJasào 24: Se alguém vos disser: Eis que o Cristo está aqui ou ali não lhe
recolheu; e todos estes procedem contra os decretos de deis crédito; porque surgirão
falsos cristos e falsos profetas, e farão tão grandes sinais e

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Religião

prodígios etc. Disto se segue que, pela fé que temos naquele artigo, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha (que significam as
não devemos dar crédito a sinal algum e a nenhum prodígio. Gálatas doutrinas) não se edificam sobre a pessoa de Cristo; e também se
1,8: Ainda que nós mesmos, ou um anjo do céu, vos anuncie outro vê que falsas doutrinas podem edificar-se sobre essa fundação, sem
evangelho além do que já vos temos anunciado, seja anátema. Por que necessariamente sejam condenados aqueles que as ensinarem.
este artigo, portanto, não devemos acreditar nem mesmo nos
próprios apóstolos e anjos (e por isso, penso eu, nem tampouco na
Igreja), se nos ensinarem o contrário.
1 João 4, 1-2: Amados, não creiais em todo o espírito, mas
10. ... bem como as palavras mais evidentes de Cristo e de
provai se os espíritos são de Deus; porque já muitos falsos profetas
seus apóstolos
se tem levantado no mundo. Nisto conhecereis o Espírito de Deus:
todo o esPírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Finalmente, que este artigo é o único em que precisamos
Deus etc. Este artigo assim nos dá uma medida para os espíritos, acreditar internamente também se pode provar com toda a
pela qual a autoridade dos doutores deve ser aceita ou rejeitada. evidência segundo várias passagens das Escrituras santas, seja
Pois foi através dos doutores, inegavelmente, que todos os cristãos quem for que as interprete. João 5, 39: Examinai as Escrituras,
de nossos dias souberam que foi Jesus quem realizou todas as porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim
coisas graças ãs quais pôde ser reconhecido como o Cristo; mas isso testificam. Cristo, porém, referia-se apenas ao Velho Testamento
não significa que estas pessoas devam sua crença aos doutores, quando falava nas Escrituras, porque ainda não estava escrito o
porque a devem ao próprio Jesus. Isso porque tal artigo já existia Novo. Ora, o único testemunho que há sobre Cristo no Velho
antes de haver Igreja (Mateus 16, 18), ainda que todo o resto tenha Testamento é o que afirma que um rei eterno deveria vir a
vindo depois dela; e a Igreja fundou-se nele, não ele na Igreja. determinado lugar, que deveria nascer de determinados pais, que
Além disso, este artigo - Jesus é o Cristo - é tão fundamental deveria ensinar tais e tais coisas, que constituiriam sinais seguros
que tudo o mais, afirma São Paulo, se construiu so permitindo reconhecê-Io. Tudo isso portanto atesta esta coisa única
bre ele (1 Coríntios 3, 11-15): Porque ninguém pode por outro - que Jesus, que assim nasceu, e ensinou e fez coisas, era o Cristo.
fundamento, além do que já está posto, o qual é Jesus Não se exigia então mais fé do que esta para se alcançar a vida
Cristo (ou seja, que Jesus é o Cristo). E, se alguém sobre este eterna, além do artigo referido, como diz João (cap. 11, v. 26): E
fundamento formar um edifício de ouro, prata, pedras preciosas, todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá. Ora, acreditar
madeira, feno, palha, a obra de cada um se manifestaráll; Se a em Jesus, como aqui se diz, é o mesmo que acreditar que Jesus era
obra que alguém edificou nessa parte permane o Cristo. Por conseguinte, quem acreditar nisso nunca morrerá; o
cer, esse receberá galardão. Se a obra de alguém se queimar, que implica que este é o único artigo de fé necessário para a
sofrerá detrimento; mas o tal será salvo, todavia 12 . Dessa pas- salvação. João (cap. 20, v. 31): Estes foram escritos para que
sagem claramente se evidencia que por fundamento se entende o creiais que
artigo segundo o qual Jesus é o Cristo; pois ouro e Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida
em seu nome. Portanto, quem acreditar nisso terá a

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podia cometer contra a Majestade Divina no reino de Deus por


vida eterna, e por isso não precisa de nenhuma outra fé. natureza, a que se somava, no reino de Deus pelo velho pacto, a
1 João 4,2: Todo o espírito que confessa queJesus Cristo veio em idolatria, agora, no reino em que Deus governa graças a um novo
carne é de Deus. E 1 João 5, 1: Todo aquele que crê que l pacto, também se torna traição a apostasia, ou o fato de renunciar
Jesus é o Cristo é nascido de Deus. E 1 João 5, 5: Quem é que vence I ao artigo 'Jesus é o Cristo", depois de tê-lo recebido. É verdade que
o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus? Se não devemos contradizer outras doutrinas, se quem as ordenar for
portanto, para que alguém seja de Deus, nasça de Deus e vença o uma Igreja legal, pois assim incorreríamos no pecado de
mundo, não for preciso acreditar em nada mais além do que "Jesus é desobediência. Mas já explicamos o suficiente que não é preciso
o Cristo" - então este artigo de fé basta para a salvação. acreditar nelas com uma fé interna.
Atos 8, 36-37: Eis aqui água; que impede que eu seja
batizado? E disse Filipe: É lícito, se crês de todo o coração. E,
respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de
Deus13. Se, portanto, acreditar neste artigo de todo o coração (isto 12. Como a fé e a obediência concorrem para a salvação
é, com fé interna) bastava para o batismo, então também há de
bastar para a salvação. A fé e a obediência desempenham distintos papéis na salvação
Além dessas passagens, há inúmeras outras, que clara e de um cristão: pois a primeira confere a potência ou capacidade, a
expressamente afirmam a mesma coisa. Mais que isso, toda vez que segunda dá o ato; mas cada uma, a seu modo, justifica. Pois Deus
lemos que nosso Salvador elogiou a fé de alguém, ou que disse Tua não perdoa os pecados de todos, mas somente dos penitentes ou
fé te salvou, ou que curou uma pessoa devido à sua fé, a proposição obedientes, isto é, dos justos. Não falo em inocentes, mas em
em que esta acreditava sempre foi, direta ou indiretamente, "Jesus é justos, porque a justiça é uma intenção (will) de obedecer às leis, e
o Cristo". pode encontrar-se num pecador; e, junto a Cristo, a vontade de
obedecer já é obediência. Não é todo homem, mas o justo, que
viverá pela fé.
A obediência portanto justifica, porque ela faz alguém ser
justo da mesma forma que a temperança o faz ser temperado, a
11. Nesse artigo está contida a fé do Velho Testamento prudência constitui o prudente, a castidade o casto; ou seja, por sua
essência mesma; e assim ela coloca o homem num estado que o
Mas, como ninguém acredita que Jesus seja o Cristo, se, torna capaz de perdão. Cristo, mais uma vez, não prometeu redimir
sabendo que por Cristo se entende o mesmo rei que em nome de os pecados de todos os justos, mas somente daqueles que
Deus foi prometido por Moisés e pelos profetas para vir a ser rei e acreditassem ser ele o Cristo.
salvador do mundo, igualmente não acreditar em Moisés e nos A fé portanto justifica no sentido em que podemos dizer que
profetas - nem pode acreditar nestes se não acreditar que Deus um juiz justifica aquele a quem absolve, isto é, graças a uma
existe, e que governa o mundo -, é necessário, portanto, que a fé em sentença que efetivamente o salva; e nesse sentido de justificação
Deus e no Velho Testamento esteja contida na fé que se dá ao Novo (pois se trata de um termo equívoco)
Testamento. Considerando-se, portanto, que o ateísmo e a
negação da Providência Divina eram a única traição que se

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...

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o
somente a fé justifica, mas no outro sentido apenas a obediência. qualquer príncipe que não seja cristão; mas, nos .negócios do
Contudo, nem a obediência nem a fé nos podem salvar, se sozinhas espírito, isto é, naquelas coisas que se referem ao culto de Deus, ele
- ambas são necessárias. deverá seguir alguma Igreja cristã. Porque constitui uma hipótese
da fé cristã que Deus, nas coisas sobrenaturais, só fala por meio de
intérpretes cristãos das Sagradas Escrituras. Mas, então? Devemos
13. Numa cidade cristã, não há contradição entre as ordens resistir aos príncipes, quando não pudermos obedecer a eles?
de Deus e as da cidade Certamente que não, porque isso será contrário ao nosso pacto
civil. Então, o que deveremos fazer? Ir a Cristo pelo martírio. E, se
Pelo que afirmamos anteriormente, será fácil discernir em que
isso parecer muito duro a alguém, então é certíssimo que ele não
consiste o dever dos súditos cristãos para com seus soberanos que,
acredita de todo o coração que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus
enquanto professarem ser cristãos, não podem ordenar a seus
vivo (pois se acreditasse ele desejaria ser dissolvido, para estar com
súditos que reneguem ao Cristo ou de qualquer modo o ofendam;
Cristo), porque fingindo a fé cristãele bem será capaz de faltar com
porque, se dessem uma tal ordem, estariam professando não ser
a obediência que prometeu ao submeter-se à cidade14.
cristãos. Já mostramos, tanto pela razão natural quanto com base
nas Escrituras santas, que os súditos devem obedecer em tudo a
seus príncipes e governantes, excetuando apenas aqueles tópicos
que forem contrários ao mandamento de Deus. Numa cidade cristã,
os mandamentos de Deus a respeito dos negócios temporais (isto é,
aqueles que devem ser discutidos pela razão humana) são as leis e a 14. As doutrinas que hoje provocam controvérsia no
sentença da cidade, exaradas por aqueles que ela autorizou a fazer campo da religião é porque na verdade se referem, em
leis e a julgar das controvérsias. Já no que diz respeito aos negócios sua maior parte, ao direito de domínio
espirituais (ou seja, àqueles que são definidos pela Sagrada Es- Excetuando assim apenas este artigo, "Jesus é o Cristo", que é
critura), os mandamentos de Deus estão nas leis e sentenças da o único necessário para a salvação no que se refere à fé interna -
cidade, isto é, da Igreja (pois, conforme mostramos no capítulo todos os demais artigos de fé pertencem à obediência, e por isso
anterior, parágrafo 10, uma cidade cristã é o mesmo que uma podem ser executados, embora a pessoa não acredite neles
Igreja), editadas por pastores que tenham sido ordenados conforme internamente, bastando que ela deseje acreditar, e que faça uma
a lei, e que para promulgar tais medidas estejam autorizados pela profissão externa de crença em tudo o que for proposto pela Igreja.
cidade. Segue-se, então, com toda a evidência, que numa república Alguém então poderá indagar como sucede hoje que haja tantos
cristã se deve obediência ao soberano em todas as coisas, dogmas (tenets) considerados a tal ponto essenciais a nossa fé que,
espirituais e temporais. se alguém não acreditar neles intimamente, não poderá entrar no
E está fora de controvérsia que a mesma obediência é devida reino dos céus. Contudo, se ele considerar que, na maior parte das
nos assuntos temporais, até por um súdito cristão, a .controvérsias, o que está em disputa é a soberania humana; em
alguns casos, é uma questão de ganho e lucro; em outros ainda, a
glória dos espíritos enge

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Religião

nhosos (wits) - certamente, ele estranhará bem menos essas coisas. ter, os pecados, bem como o direito de excomunhão: porque todo
A discussão sobre a propriedade da Igreja é uma discussão indivíduo que não tenha perdido o juízo prestaráobediência
sobre o direito de soberania. Pois basta saber em que consiste a absoluta ao homem de cuja sentença, acredita ele, -depende sua
Igreja para se saber a quem compete o poder sobre os cristãos. salvação ou condenação. À mesma coisa também se orienta o poder
Assim, se toda cidade cristã for aque de instituir sociedades religiosasl5, que dependem daquele a quem
la Igreja à qual, por ordem do próprio Cristo, cada um de devem sua subsistêncial6, e que tem tantos súditos quantos monges
seus súditos cristãos deve ouvir, então todo súdito está obrigado a houver, ainda que viva num Estado inimigo. Ao mesmo fim igual-
obedecer (obey) a sua cidade - isto é, àquele indivíduo ou mente se dirige o poder de julgar se um matrimônio é válido ou
assembléia que possua o poder supremo -, não somente nos não: pois tal judicatura traz consigo a decisão sobre todos os casos
negócios temporais, mas também nos espirituais. Mas, se cada que se referem à herança e sucessão de todos os bens e direitos, não
cidade cristã não for uma tal Igreja, então tem de haver outra Igreja apenas dos particulares, mas também dos príncipes soberanos.
mais universal, à qual se teráde obedecer. Portanto, todos os E tende ainda ao mesmo direito de governar, sob certos
cristãos deverão obedecer a essa Igreja, exatamente como aspectos, até a vida celibatária (virgin) dos eclesiásticos: pois os
obedeceriam a Cristo se este viesse à terra. E por isso ela os solteiros são menos compatíveis com a vida civil do que os
governará, seja pela via monárquica, seja através de alguma casados. Além disso, o celibato clerical acarreta outro
assembléia. Esta questão se refere, portanto, ao direito de governar. inconveniente que não pode ser minimizado: devido a ele, os
Ao mesmo direito se refere a questão da infalibilidade: pois se príncipes necessariamente devem abrir mão ou do sacerdócio (que
a humanidade inteira acreditar, sincera e intimamente, que constitui uma forte obrigação para a obediência civil), ou do
determinada pessoa não possa errar, esta terá assegurado um principado hereditário.
domínio pleno sobre o gênero humano, nos planos tanto temporal Ao mesmo fim também se refere a canonização dos santos,
quanto espiritual, a não ser que ela própria o decline. Pois bastará que os gentios chamavam de apoteose17: pois quem pode atrair os
ela lembrar que, não podendo errar, deve ser obedecida nos súditos estrangeiros com uma recompensa tão grande facilmente
assuntos temporais, para que imediatamente lhe seja reconhecido o pode induzir quem ambicione tão elevada glória a cometer qualquer
direito ao domínio. tipo de ousadia. Pois o que almejavam os Décios e tantos romanos
A isso também tende o privilégio de interpretar as Escrituras. senão o renome junto aos pósteros, e com eles milhares de outros,
Pois aquele a quem compete interpretar as controvérsias que que arrostaram perigos incríveis?
surjam das diversas interpretações das Escrituras tem também Já as controvérsias sobre o purgatório e as indulgências se
autoridade simples e absoluta para pôr termo a toda espécie de referem ao ganho de dinheiro. As questões do livre-arbítrio, da
controvérsia. Ora, quem possui tal autoridade automaticamente tem justificação e da maneira como se recebe Cristo nos sacramentos
também o poder sobre todos aqueles que reconheçam as Escrituras são de natureza filosófica. Há ainda questões relativas a alguns ritos
como constituindo a palavra de Deus. E ao mesmo fim igualmente que não foram introduzidos pela Igreja, mas nela subsistiram como
se voltam todas as disputas sobre o poder de perdoar, ou re resquícios de um paganismo

346 347
.... I

Do Cidadão

insuficientemente expurgado. Não precisamos, porém, prosseguir.


O mundo inteiro sabe que é da natureza humana que, por
discordarem em questões referentes ao poder, ao ganho ou à NOTAS
preeminência do engenho (wit), os homens se insultem e ofendam
uns aos outros. Por isso não deve causar estranheza que, exaltando-
se eles na discussão, sempre haja alguém para considerar quase
todos os dogmas como necessários para a salvação e para nosso
ingresso no reino dos céus. E por isso quem não endosse tais
dogmas será por eles condenado não apenas por desobediência (o
que é correto, desde que a Igreja os tenha decretado) mas também
por infidelidade, o que já mostrei ser falso, citando inúmeras
passagens das Escrituras. E a estas citações acrescen
to uma de São Paulo (Romanos 14, 3, 5): O que come não
despreze o que não come, e o que não come não julgue o que come;
porque Deus o recebeu por seu. Um Jaz diferença entre dia e dia,
mas outro julga iguais todos os dias. Cada um esteja inteiramente
seguro em seu próprio ânimo18.

348
..

Apresentação

1. A despeito desta escassez de material, Miriam Reik conseguiu


fazer uma admirável biografia intelectual de Hobbes (The
Golden Lands ofThomas Hobbes, de 1977).
2. "E assim por diante."
3. Leviatã, "Revisão e conclusão", p. 414. Cito esta obra na
excelente tradução em português realizada por João Paulo Monteiro e
Maria Beatriz Nizza da Silva (ed. Abril, 1974, retomada pela ed. Nova,
recentemente).
4. R. S. Peters utilizou estes nomes no feliz título que deu a sua
utilíssima antologia de Hobbes - Body, Man, and Citizen (Nova York e
Londres, Collier e Collier-Macmillan, 1962). Em especial temos nela o
texto completo do De Cmpore, do Human Nature e do De Corpore
Político, os três em inglês.
5. O fato de ser mulher já era um elemento bastante negativo para
uma concepção de realeza em parte militar (o rei como comandante
militar), em parte mística (o rei ungido de Deus, portanto quase um
sacerdote), e, finalmente, articulada numa rede de símbolos em estreita
correspondência (rei = cabeça = varão = Deus = leão = águia etc.). Como
em meados dos anos 1550 a Inglaterra e a Escócia são governadas por
mulheres, ambas católicas (respectivamente Maria, a Sanguinária, e Maria
Stuart), o pregador presbiteriano escocês John Knox escreve uma denúncia
contra o "monstruoso governo feminino" - obra datada de 1558, e que teve
a infelicidade de só aparecer, dirigida que era contra a Sanguinária, depois
da morte desta, de modo que soou como se

351
..
Do Cidadão Nota
s
fosse escrita contra Isabel. De qualquer forma, é um testemunho da o qual Hobbes nada tinha em comum), a Igreja Anglicana manda o
dificuldade que havia para uma mulher reinar. carrasco queimar uma série de obras subversivas, em Oxford. O Leviatã
6. Continua a não ter; mas um bom número de leis, desde o final do está entre elas por defender, justamente, a submissão ao usurpador bem-
século XVII - a começar pelo Bill of Rights, de 1689 -, cumpre esse sucedido. Essa tese é condenada em termos rigorosamente legitimistas.
papel. 14. Capo XVII, p. 109.
7. Na Verdadeira Lei das Monarquias Livres, que Jaime publi 15. Capo XIII, p. 79.
cou em 1598, sem nome de autor. 16. O começo, mesmo, da filosofia seria a física, e Hobbes
8. Entende-se por aí como era atual Hobbes dizer, neste inicia por ela o Leviatã; mas lhe dedica poucas linhas.
livro, que é impossível firmar um pacto com Deus. 17. Há uma passagem saborosa, na dedicatória que Francis Bacon faz de
9. Suprimida, embora parte da Revisão seja incorporada em outras
seus Ensaios ao duque de Buckingham, dizendo que
passagens. É bom notar que Carlos 11, embora amigo e admirador do
não lhe dedica apenas a edição inglesa, mas também a latina que
filósofo, não lhe permitiu reeditar o Leviatã em inglês. A edição latina de
(cito da inglesa), espera ele, "(being in the Universal Language) may last,
1670 indica que foi impressa na Holanda.
as long as Bookes last". O leitor que recebe esse texto hoje nota que então
10. Ao Leitor sem Medo. Hobbes escrevendo contra o seu tempo. São
Paulo, Brasiliense, 1984, esp. caps. V, "O triunfo da vontade", VI, "In coincidiam os valores da permanência e da difusão universal, associados
tormento veritas", e 111, "Os homens femininos ou o direito à vida". ambos ao latim, e os da coisa efêmera, local, de intervenção política
11. Será bom lembrar que o legitimismo se distingue do absolutismo, pontual, ligados ao uso de uma língua vemácula das menos importantes, o
porque neste o govemante é, literalmente, soberano, tendo poderes inglês.
absolutos, ao passo que numa política legitimista os poderes do govemante, 18. The Political Theory of Possessive Individualism, e sua in-
embora vastos, estão limitados pela tradição - não a tradição como um trodução de 1968 à ed. Penguin do Leviathan.
valor em si, mas na medida em que manifesta a vontade de Deus. A chave 19. Hobbes tem páginas veementes contra os dissidentes, a quem
da distinção éque o govemante legítimo não pode alterar a ordem de considera subversivos, mas seria um erro ver nele um defensor da teologia
sucessão ao trono - o monarca absoluto, sim. oficial contra as menos ortodoxas. Discorda tanto da Igreja Anglicana, tal
12. A tese de que o Leviatã é uma obra representativa da posição dos como foi dirigida por Laud, quanto dos dissidentes, porque, pensa ele, dão
realistas conformados com a vitória de Cromwell, que portanto ou ficaram demasiada importância à teologia. E prepara a tolerância na medida em
na Inglaterra ou retomaram a ela - tristes, desanimados, retraindo-se da que diz serem indiferentes à salvação, bem como ao Estado e à Igreja, a
política, mas de qualquer modo dispostos a serem súditos leais da maior parte dos temas que levam os homens a discutir sobre a religião.
República -, é desenvolvida por Quentin Skinner, em seu "The Context of 20. DeI Ciudadano. Caracas, Universidade Central de Venezuela,
Hobbes's Theory of Political Obligation", in Maurice Cranston e Richard 1966. Agradeço a Luiz Roberto Monzani o conhecimento e o acesso a este
Peters (orgs.), Hobbes and Rousseau: a Collection of Critica I Essays. texto.
Garden City, Anchor Books, 1972, pp. 109-42. 21. Miriam Reik, op. cit., p. 82
13. Outro elemento histórico que separa Hobbes da causa histórica do 22. Uma palavra sobre a tradução das citações bíblicas, que
absolutismo é ainda mais espantoso do que seus leitores parisienses verem, neste livro são importantes. Hobbes utiliza a chamada Versão Autorizada,
no Leviatã, a defesa do regicídio. Depois de sua morte, em 1683, em plena que o reiJaime I encomendou, em inícios do século XVII, a uma equipe de
reação aos whigs (partido com
teólogos e de eruditos, conhecedores das línguas originais da Bíblia. FCi
este empreendimento uma maneira de evitar o uso de traduções
"subversivas" como a de Tyndale,

352 353
Do Cidadão
r Notas

que fora queimado vivo em tempos de Henrique VIII, ou a assim chamada Abril, 1974): "Tal como Aristóteles, também Cícero e outros autores
Bíblia de Genebra, traduzida por alguns protestantes ingleses exilados na baseavam sua doutrina civil nas opiniões dos romanos, que eram ensinados
cidade de Calvino sob o reinado de Maria, a Sanguinária. O texto do rei a odiar a monarquia, primeiro por aqueles que depuseram o soberano e
Jaime teve papel de destaque na consolidação de um inglês em chave passaram a partilhar entre si a soberania de Roma, e depois por seus
solene, guardando ainda hoje, quando a língua mudou por completo, uma sucessores. Através da leitura desses autores gregos e latinos, os homens
reverberação arcaizante que é extremamente eficaz quando a Igreja oficial passaram desde a infância a adquirir o hábito (sob uma falsa aparência de
quer produzir, do sagrado, uma imagem assentada na hierarquia e na dis- liberdade) de fomentar tumultos e de exercer um licencioso controle sobre
tância do homem a Deus. os atos de seus soberanos."
Pareceu-me assim que o mais adequado, como tradução para o 2. No Leviatã, Hobbes chamará o que hoje dizemos "Estados" de
português, não seria uma versão recente, como a Bíblia de Jerusalém, que Commonwealths (literalmente: repúblicas), no sentido que esse termo
obviamente se beneficia de novas descobertas de língua e de manuscritos, possuía no século XVII, comportando uma certa ambigüidade: a república
bem como efetua uma leitura do texto que não seria nem a de Jaime nem a tanto era o regime em que se elegiam os governantes quanto, mais
de Hobbes. Seria melhor utilizar uma versão, se possível, do mesmo século, geralmente, qualquer regime político assentado no direito. Neste segundo
e a cargo de um protestante. Felizmente a temos, e é uma das mais belas caso, podia-se aplicar o termo repúbli
versões da Bíblia, a de João Ferreira d'Almeida. Utilizei assim o Novo Tes- ca a uma monarquia, apenas então se introduzia a conotação de maior
tamento, na edição bilíngüe inglês-português (rei Jaime e Ferreira) dos preocupação com a coisa comum, com a res publica.
Gideões Internacionais (Rio de Janeiro, 1965); para o Velho Testamento, Neste livro, porém, o termo que designa todo e qualquer Estado é
servi-me da Bíblia Sagrada, trad. Ferreira d'Almeida, Lisboa, Depósito das cidade, nada tendo a ver com sua extensão geográfica. Quase sempre
Escrituras Sagradas, 1898. mantivemos esta tradução.
3. São estes os principais benefícios da civilização, que Hobbes
enumera como o que se perde com a guerra civil, na passagem do Leviatã
consagrada a esta (cap. XIII).
4. Devemos evitar pensar que se trate apenas do problema da
propriedade, porque na época, quando se fala no que é de alguém, ou
Epístola Dedicatória mesmo no que lhe é próprio, não se entendem apenas os seus bens,
materiais ou imateriais, mas também tudo o que ele pode fazer ou cometer.
1. A crítica aos antigos é um dos temas constantes da filosofia Por isso é que o problema da justiça se confunde com o do meum e do
política de Hobbes - deste pensador cujos primeiros estudos foram os de tuum.
um humanista, e que no começo e no fim de sua carreira intelectual 5. No original, inclosure - que literalmente é o terreno que alguém
traduziu para o inglês três obras essenciais da Antigüidade, cerca (verbo enclose.) Na forma enclosure ficou conhecido o cercamento a
respectivamente a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, em que, desde o século XV, foram submetidos os terrenos comunais das
1629, e a Odisséia e a llíada, de Homero, em 1673 e 1676. A censura que aldeias, sendo privatizados em favor dos ricos locais.
ele faz aos gregos e romanos se baseia em especial no elogio que estes 6. Hobbes passou quase toda a sua vida ativa a serviço ou como
povos faziam ã democracia e na crítica que dirigiam ã monarquia, ãs vezes protegido dos Cavendish, família aristocrática cujo chefe era conde de
por eles chamada de tirania. Devonshire. Esta passagem final é uma bela realização do topos que
Relativizar, assim, a crítica dos romanos aos reis, e mostrar que seu consiste na dedicatória, e pelo qual um autor oferece a um leitor de escol
imperialismo significava tratar os outros povos exatamente como os reis sua obra, pedindo-lhe proteção e ao
que criticavam, é entào uma constante em Hobbes. Veja-se, a respeito, o
capo XXI do Leviatã, em especial a p. 136 (ed.

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Do Cidadão Notas

mesmo tempo autorizando este último - um leigo no assunto - a fazer uma autor entende que Hobbes, em sua filosofia política, reduz a complexidade
crítica à obra de quem é especialista nesse assunto; seria interessante ao elemento que seria o indivíduo. Ora, assim como na física o elementar
estudar como se efetiva esse relativo primado social da leitura sobre a não é o corpo - mas o movimento -, na política o mais simples não é o
escrita. homem singular - mas o contrato que ele firma.
7. Esta epístola dedicatória não consta da primeira edição (Paris, em 4. No original, covenant, que geralmente - mesmo nas citações
latim, 1642), aparecendo somente na segunda, também em latim bíblicas - traduzirei por "pacto", porque é termo-chave em Hobbes; mas é
(Amsterdã, 1647), juntamente com as notas e o Prefácio ao Leitor. Nessa bom lembrar que nas traduções da Bíblia em português costuma dizer-se
versão, bem como na tradução francesa de Samuel Sorbiere (Amsterdã, "aliança" ou "concerto".
1649), revisada pelo próprio Hobbes, a epístola está datada de "Paris, 1Q 5. Esta passagem é fundamental: 1. porque mostra que a filosofia
de novembro de 1646". política de Hobbes se sustenta por si só, mesmo sem termos previamente
sua filosofia do corpo (física) ou sua filosofia do homem (que alguns
chamam de psicologia). Assim, é possível estudar Hobbes sem passar pelo
que hoje chamaríamos sua "ciência", 2. porque mostra a importância que
Prefácio do Autor ao Leitor tinha para ele sua ciência, quase certamente maior do que a própria
1. No original, civil science, sendo que civil deve ser geral filosofia política que, no entanto, foi a parte de seu pensamento que ficou
mente entendido como "social" ou "político". associada à sua memória. Não é à toa que, ao terminar o Leviatã (1651),
2. Neste livro, é raro Hobbes utilizar o termo soberano; aqui, por ele diz: "... volto para minha interrompida especulação sobre os corpos
exemplo, no original ele fala em supreme. Com muita freqüência dirá naturais... " (p. 414). Será talvez o caso de lembrar que, fundada em 1673 a
commander, e mesmo commander-in-chief, ou usará perífrases, como "o Royal Society, ele nem sequer foi convidado a participar dela; que isso, e o
homem ou o conselho que têm a autoridade suprema na cidade" etc. destaque alcançado na sociedade e na ciência pelo Dr. Wallis, seu inimigo,
Curiosamente, onde aparecerá mais vezes o termo sovereign é nas partes muito o magoou.
relativas à leitura da Bíblia ou às condições para a salvação da alma. 6. A ressalva é de monta, e ainda mais curiosa porque Hobbes é de
Isto coloca dois problemas. Um, de escrita: o filósofo que ficou simpatia monarquista e começou a estudar filosofia política para,
conhecido como o grande teórico da soberania demora a aceitar esta justamente, provar a superioridade da monarquia sobre os outros regimes
palavra quando escreve em inglês. Outro, de tradução: substituir os termos (o que era confirmado, na época, pela tradução que fazia da História da
que Hobbes usa no De Cive por "soberano", embora seja correto, faria Guerra do Peloponeso, de Tucídides). Desenvolvi análise sobre esse tema
perder este sabor de texto ã pesquisa de uma terminologia; por isso preferi no capo III de A Marca do Leviatã. São Paulo, Ática, 1978.
formas mais neutras, como "govemante" ou as próprias perífrases
hobbesianas. Evitei igualmente abusar da conotação militar de
"comandante-em-chefe".
3. Muito já se falou desse método que Hobbes usa, basicamente o que
Galileu empregou na física, e que se chama resolutivo-compositivo, porque
primeiro "resolve" os termos dados em seus elementos mais simples (o Parte I
movimento, no caso dos corpos físicos), e depois os "compõe" de novo na LIBERDADE
complexidade em que os vemos, só que agora dotada de inteligibilidade.
Penso, porém, que vale a pena corrigir um erro de J. Watkins, em seu
Capítulo I
Hobbes' System of Ideas, de resto uma obra valiosa. Esse
1. Este capítulo trata, em linhas gerais, do assunto ao qual
Hobbes retomará no capo XIII do Leviatã (1651), onde expõe a

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Do Cidadão Notas

condição natural da humanidade (e não mais, como aqui diz, "o estado de de, não podem nela ingressar; e estes, porque ignoram o benefício que ela
natureza") como sendo uma condição de guerra, e justifica sua tese. acarreta, não lhe conferem importância. Portanto émanifesto que todos os
2. No inglês, without, que na época significa "fora de". homens, porque nascem crianças (in infancy), nascem inaptos para a
3. No original, commonwealths, que é o termo que Hobbes sociedade. Muitos também (talvez a maior parte), ou por defeito de suas
utilizará no Leviatã para definir os Estados, mas aqui é raramente mentes, ou por falta de serem educados, continuam inaptos por toda a vida;
empregado. Literalmente, significaria "bem público" - por isso, a tradução e no entanto todos eles têm, crianças ou mais velhos, natureza humana; por
latina usual na época é republica. Aplicava-se aos regimes republicanos em conseguinte, o homem é tornado apto para a sociedade não pela natureza,
sentido estrito, como por exemplo o da Holanda e o que vigorou na própria mas pela educação.
Inglaterra na década de 1650, depois de executado o rei - daí, o termo que Ademais, mesmo que o homem nascesse numa condição tal que o
Hobbes usa pejorativamente no Behemoth (668), "commonwealthmen" levasse a desejar a sociedade, disto não se seguiria que já nascesse pronto
(republicanos). Mas seu uso mais freqüente é o que diz respeito a qualquer para nela ingressar: pois uma coisa é desejar, outra coisa termos capacidade
regime, mesmo monárquico, enfatizando nele o aspecto pelo qual busca o para aquilo que desejamos. E até mesmo aqueles que, por orgulho, não se
bem público. Por exemplo, se a propósito da França enfatizarmos o poder dispõem a aceitar as justas condições sem as quais não pode haver
do rei, citaremos "os Estados de Luís XIV"; mas, se quisermos falar da sociedade, apesar disso a desejam. (Nota de Hobbes)
organização política, que os parlamentos garantem, ou da lei fundamental 5. "Deficiências", no original infirmities. Essa palavra, freqüente no
não escrita, que o próprio monarca protege, falaremos na República. pensamento político inglês da época, não designa a doença, mas aquela
4. Como o que vemos hoje entre os homens é uma sociedade fraqueza que é constitutiva da natureza humana, e que se deve ao pecado
constituída, não havendo ninguém que viva fora dela, e como vemos todos original.
desejosos de se reunir e de manter uma convivência recíproca, pode parecer 6. Em grego, no original: fama.
de uma estupidez espantosa eu depor, na exata soleira desta doutrina, uma 7. A isto se objeta: é tão improvável que os homens chegas
pedra desse tamanho a barrar o caminho dos leitores, a saber: negar que o sem à sociedade civil devido ao medo que, tivessem eles medo, nem
homem nasça adequado para a sociedade. Por isso devo dizer nos termos mesmo suportariam o olhar uns dos outros. Mas quem assim pensa
mais claros que é mesmo verdade que a solidão é por natureza inimiga do presume, creio eu, que temer é exatamente o mesmo que apavorar-se.
homem, ou seja, que ela é inimiga do homem tão cedo ele nasce; pois as Compreendo porém, na palavra medo, uma certa antevisão
crianças precisam de outrem para ajudá-Ias a viver, e quem tem mais idade de um mal futuro; por isso não penso que fugir seja o único efeito do medo;
precisa de sua ajuda para viver bem - por isso não nego que os homens (até a quem sente medo também ocorre desconfiar, suspeitar, acautelar-se e até
mesmo compelidos pela natureza) desejem reunir-se. mesmo agir de modo a não mais temer. Quem vai dormir fecha as portas;
Mas as sociedades civis não são meras reuniões, porém obrigações quem parte em viagem leva uma espada - porque tem medo de ladrões. Os
(bonds), para constituir as quais são necessários fé e pactos, cuja virtude é reinos guardam suas costas e fronteiras com fortes e castelos; as cidades se
por completo ignorada das crianças e dos loucos ({ools), e cujo proveito fecham com muralhas, e tudo isso por medo dos reinos e cidades vizinhos;
também escapa totalmente àqueles mesmo os exércitos mais fortes, e mais preparados para o combate,
que ainda não sentiram as misérias que acompanham sua falta. eventualmente negociam a paz, por temerem o poder do adversário, e para
Disso decorre que aqueles, porque não sabem o que é a socieda não serem derrotados. É pelo medo que os homens se protegem, até mesmo
pela fuga, e escondendo-se pe

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......
Do Cidadão Notas

los cantos, se não têm outro jeito de escapar; mas, o mais das vezes, de natureza, porque desde que nasce está sob o poder e proteção daqueles
utilizando-se de armamentos e armas defensivos. Assim acontece que, se a quem deve sua proteção, a saber, de seu pai ou de sua mãe, ou daquele
eles têm a coragem de se mostrar, cada um vem a conhecer em que que o criou, como está demonstrado no capo IX. (Nota de Hobbes)
disposição está o outro; de modo que assim, se lutarem, a sociedade civil 10. Esta é apenas uma das passagens do De Cive em que Hobbes
nasce da vitória, e, se concordam, vem de seu acordo. (Nota de Hobbes) efetua o elogio da sociedade. Ele será muito mais seco no Leviatã a este
8. No original, wits. Costuma ser traduzido como "espírito", o que respeito, preferindo então expor os horrores do estado (ou condição) de
seria correto desde que ficasse marcado que é no sentido em que dizemos natureza a elogiar o convívio social.
de alguém que é espirituoso; por isso, a tradução mais adequada em
português, a que usaremos sempre que possível (embora não aqui), e que
remete obviamente à produção barroca, e nela à de Antônio Vieira, é
"engenho".
Capítulo II
9. Isto deve se entender assim: o que qualquer homem faça no estado
puramente de natureza a ninguém ofende. Não significa que ele não possa 1. Este capítulo corresponde de modo geral à matéria tratada no capo
ofender a Deus, ou não possa quebrar as leis de natureza; pois a injustiça XIV do Leviatã, em que Hobbes exporá os contratos e as leis de natureza
cometida contra seres humanos pressupõe leis humanas, das quais, no - com a diferença de que nessa obra, posterior ao Do Cidadão, ele
estado de natureza, não existe nenhuma. A verdade desta proposição já está porá a maior ênfase na necessidade de pôr fim ao estado de guerra, o que
suficientemente demonstrada ao leitor atento pelos parágrafos será teorizado mediante a oposição direito/lei de natureza.
imediatamente anteriores; mas, como em alguns casos a dificuldade da 2. No inglês, /0015. O /001 não é a mesma coisa que o madman: este
conclusão nos faz esquecer as premissas, resumirei minha argumentação, e último é o que enlouqueceu, alguém que teve razão e a perdeu mas pode
tornarei mais evidente, para que possa ser vista de um único olhar. recuperá-Ia, ao passo que o primeiro -literalmente o idiota, o imbecil ou,
Todo homem tem direito a proteger-se, como se vê no parágrafo como dizem os Salmos, o "néscio" nunca teve a razão. De modo geral,
sétimo. O mesmo homem portanto detém direito a se valer de todos os Hobbes usa /001 mais que madman para radicalizar a distância que vai
meios que necessariamente conduzam a esse fim, segundo o parágrafo daquele até o homem em gozo de sua razão.
oitavo. Ora, meios necessários são aqueles que ele assim julgar, afirma o 3. Por reta razão no estado da natureza humana, não entendo (como
parágrafo nono. Em conseqüência, ele tem o direito de usar e fazer tudo o querem muitos) uma faculdade infalível, porém o ato de raciocinar - isto é,
que venha a julgar requisito para sua conservação: de modo que depende só o raciocínio peculiar e verdadeiro de cada homem acerca daquelas suas
do julgamento de quem comete uma coisa que ela seja certa ou errada, e ações que possam resultar em detrimento ou benefício de seus próximos.
portanto sempre será certa. Por isso é verdade que num puro estado de Falo em "peculiar" porque, embora num governo político
natureza etc. (civilgovernment) a razão do soberano (supreme), ou seja, a lei civil, deva
Porém, se um homem fingir que determinada coisa é necessária para ser acolhida por todo súdito individual como constituindo o direito,
sua conservação - uma coisa que ele, em sua consciência, não acredita contudo, fora de tal governo (condição em que nenhum homem poderá
fazê-lo -, então viola as leis de natureza, como se explicitará no capo III distinguir a razão reta da falsa, exceto comparando-a com sua própria), a
deste livro. Alguns também objetaram: se um filho matar o pai, então não razão própria (own) de cada homem deve ser considerada não apenas
lhe comete ofensa (injury)? Respondi que um filho não pode, jamais, ser como sendo a regra de suas próprias ações, que ele comete por sua conta e
considerado no estado risco, mas ainda como fornecendo a medida da razão alheia, em todas as
coisas que a ele disserem respeito. Digo

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.,...

Do Cidadão Notas

além disso que esse raciocínio é "verdadeiro", se ele o infere a partir de nhuma diferença formal entre o medo que ele me causa, e que
princípios verdadeiros e corretamente constituídos - porque toda infração me move a abrir mão da bolsa para salvar a vida, e o medo que no mesmo
às leis de natureza consiste no falso raciocínio ou, melhor dizendo, na estado de natureza me levaria a renunciar a meu direito de fazer a guerra a
loucura daqueles homens que não enxergam aqueles deveres que, todos, com o mesmo fim, salvar a vida. Ver a nota seguinte.
necessariamente, devem cumprir em relação ao próximo, tendo em mira 10. Esta passagem trata de tema-chave em Hobbes mas, es-
sua própria conservação. tranhamente, muito pouco estudado. Este é um dos pontos mais originais
Os princípios do verdadeiro raciocínio acerca de tais deveres estão de sua filosofia, pelo qual ao mesmo tempo que ele concede ao soberano
expostos nos parágrafos 2, 3, 4, 5, 6 e 7 do capo I (Nota de Hobbes) um poder ilimitado também reconhece ao súdito um direito irrestrito aos
4. Subentende-se, nesse exemplo, que Hobbes está se referindo a meios que conservem sua vida. Hobbes
uma compra ou venda feita já no estado social, e não na condição de retoma a questão no capo XXI do Leviatâ. Cf. o capo III de meu Ao Leitor sem
natureza (na qual não há dinheiro ou negócios). Medo.
11. Nessa época há uma polêmica na Inglaterra sobre a questão de
5. A tradução francesa de Sorbiere, por Hobbes, explica esse final:
ser, ou não, lícito convocar um suspeito depor sob juramento acerca das
"... incorre na censura por leviandade, que outrora se fez àquele imperador
acusações que lhe são feitas. Este é um procedimento corrente nos
a quem se chamou Doson, porque dizia, sempre, eu daret".
tribunais da Europa continental (e católica), adotado pela Inquisição, e que
6. Hobbes usa aqui a palavra covenant, sendo que no título desta
justamente dá nome a essa corte religiosa: se a pessoa mentir, ela comete
seção empregou compact; não há diferença para ele entre as duas palavras, um crime a mais, além do que já praticou. Faz parte dessa mesma lógica o
que podemos utilizar indistintamente como "pacto" ou "convenção"; por eventual recurso à tortura, para forçar o réu à confissão. Essa tortura, ou
facilidade, porém, preferiremos a primeira solução. quaestio, não é uma arbitrariedade policial, pois é conduzida por juízes,
7. Pois, a não ser que apareça alguma causa nova de medo, quer acompanhada por escrivães e tem suas regras fixadas pela lei e a
devido a algo que tenha sido feito, quer a algum outro sinal de que a outra jurisprudência.
parte não tem vontade de cumprir o que convencionou, não se pode julgar O direito inglês, contudo, não comporta esse procedimento. E, no
que se trate de um medo justo. Isto porque a causa que não foi suficiente caso de Hobbes, como ele reconhece como direito incondicionado do
para impedi-Io de firmar o pacto não deve tampouco bastar, uma vez homem o de defender sua vida, não pode entender que seja obrigado a
firmado esse, para autorizá-Io a rompê-lo. (Nota de Hobbes) depor contra si mesmo. O soberano pode impor-lhe a tortura, mas ele não
8. No original, tied - literalmente, atado, amarrado. Hobbes também está obrigado a interiorizar a culpa ou a censura que lhe for infligida.
usa muitas vezes bound - literalmente, preso, - além da forma obliged, 12. Caso dos quacres.
aparentemente mais óbvia mas que em inglês soa preciosa. 13. Tradução de Sorbiere: "... para aumentar o temor a violar
9. Esta é uma das passagens mais delicadas de Hobbes, e a palavra dada; pois podem-se enganar os homens, e escapar ao castigo
que suscita a crítica de Locke a ele - pois, para]ohn Locke, o contrato tem deles; mas não há como esconder-se do olho clarividente da Providência,
de ser livre, o que em sua filosofia implica não resultar de coação. Em nem furtar-se à onipotência de Deus".
síntese, para Hobbes, no estado de natureza, ou seja, quando não há
Estado, nada torna ilegal um assaltante me forçar a escolher entre a
bolsa e a vida - isso porque não há ne

Capítulo l/I
1. Este capítulo aborda os temas que Hobbes mais tarde virá
a expor no capo XV do Leviatâ, destacando-se entre eles: justiça e

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...

Do Cidadão Notas

injustiça; o ateísmo (este, en passant); as leis de natureza que não foram 9. Este é um ponto que Hobbes sempre enfatiza: que os nomes dados
definidas no capítulo anterior. às coisas são conotados pela paixões, ou pelos interesses políticos, de
2. Essa tradução se vê algo comprometida pelo fato de que, hoje, em quem os atribui. Por isso, uma denominação incorreta ou malévola pode
português, "injúria" designa mais propriamente um insulto do que a ofensa levar à revolta e à sedição, e para garantir a paz é preciso que as palavras
a um direito. Na falta, porém, de palavra melhor, creio que este composto sejam atribuídas com comedimento ou pelo poder soberano.
de in + jus será o mais adequado para expressar o ataque praticado por 10. Como Hobbes insiste no tom convencionado da linguagem, cuja
alguém ao direito de outra pessoa. significação é instituída pelo governante, e como especificamente diz, aqui
3. A palavra injustiça refere-se a alguma lei. Injúria, por sua vez, diz e no fim do capo XV do Leviatã, que as leis são teoremas da razão para a
respeito a alguma pessoa, ao mesmo tempo que a uma lei. Porque o que é conduta prudente, há uma forte corrente que explica as leis de natureza
injusto é injusto contra todos, ao passo que uma injúria pode ser cometida apenas em função deste uso, digamos, instrumental da razão, e como
não contra mim, nem contra ti, mas contra uma outra pessoa; regras de prudência, não como princípios morais.
eventualmente pode afetar somente o magistrado, e nenhum particular; e às A este respeito, porém, é preciso lembrar duas coisas. Primeiro,
vezes pode ainda não ser contra o magistrado, nem contra qualquer homem quando Hobbes discute a conduta do ateu, no começo do capo XV do
privado, mas apenas contra Deus. Leviatã, ele explicitamente põe em questão o caso daquele que se dispõe a
É devido ao contrato e à transferência de direito que dizemos que uma violar as leis como se elas nada mais fossem que instrumentos,
injúria foi cometida contra tal ou qual homem. A isso se deve o que descartáveis quando fosse possível o crime perfeito, o crime arquiprudente:
constatamos em qualquer espécie de governo, isto é, que aquilo que os p. ex., quando o herdeiro do trono mata o pai. Hobbes condena essa
particulares contratam entre si, seja oralmente ou por escrito, pode ser atitude. É uma passagem obscura, mas que não é sequer considerada pelos
dispensado pela mera vontade do beneficiário da obrigação - ao passo que defensores da conduta só prudencial.
as ofensas (mischiefs) cometidas contra as leis do Estado, como o furto Segundo ponto, e mais sério. Essa última seção do capo III de Do
(theft), o homicídio e outros crimes, são punidas não pela vontade daquele Cidadão, bem como o final do capo XV do Leviatã, não comporta uma
que por elas foi prejudicado (hurt), mas segundo a vontade do magistrado, afirmação sem matizes, mas sim uma definição ambígua para o termo lei.
que nas leis estabelecidas se manifesta. (Nota de Hobbes) As leis não são leis porque são teoremas, mas são leis porque Deus assim o
4. No original, righteousness, que é a tradução inglesa do la quer. Infelizmente, os prudencialistas tendem a simplesmente omitir esta
tim justitia, e que tem mais força que a nossa palavra justiça. passagem. Sugiro aos leitores que, quando virem citações desse trecho,
5. Entenda-se: no caso estão em jogo apenas esses dois sujeitos, e a vejam se são completas. O mais das vezes só se cita, daqui, o que convém.
ilegalidade do ato em questão se deve apenas ao contrato entre ambos, não Talvez por prudência.
se supondo lei que o proíba.
6. No francês: "que se acomode e se torne social".
7. Hobbes não acredita no acaso. Se Deus criou o mundo, e
é a primeira de todas as causas, e nada existe sem ter causa, então há uma
rede extraordinariamente longa - mas totalmente predeterminada - que faz
tudo o que sucede estar já, desde sempre, predeterminado. A esse respeito,
teve uma longa disputa com o bispo anglicano Bramhall, na década de
1640. Capítulo IV
8. Essa curiosa lei de natureza desaparece da enumeração do Leviatã,
1. Este capítulo não tem correspondência exata no Leviatã.
onde há apenas dezenove leis.
2. A edição Molesworth - o empreendimento do século XIX
que serve de base ao estudo de Hobbes ainda hoje, na falta de edições
críticas - fala, erroneamente, em capo 30.

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Do Cidadão Notas

3. Na versão autorizada do rei Jaime, que é a Bíblia que entre José chamado Barsabás e Matias; "E lançando-Ihes sortes" (diz o
Hobbes utiliza, está "converte a alma". versículo 26), foi escolhido Matias.
4. Rei Jaime: "entendimento". 21. A idéia de que a primogenitura é um sorteio efetuado por Deus -
5. "Justiça" é a tradução de rigbteousness, que aparece no ver e que portanto manifesta razões de mérito, embora desconhecidas de nós -
sículo 5 desse capítulo. circula na Idade Média. Mas não é nada evidente que Hobbes considere
6. Este é o versículo 6, apenas. O versículo 7 Hobbes não chega a essa "loteria divina" como expressando uma qualidade. O mais provável é
que ele a considere como nada mais que uma atribuição lotérica, sem
transcrever: "Da grandeza deste principado e da paz não haverá fim, sobre
envolver nenhum juízo de mérito, e mesmo assim útil como um
o trono de Davi e no seu reino, para o firmar e o fortificar com juízo e com
procedimento que descarta
justiça, desde agora para sempre: o zelo do Senhor dos Exércitos fará isto. "
conflitos entre os homens.
Sorbiere corrige a refe
22. No sentido de lei.
rência de Hobbes para o versículo 5.
23. A rigor, não é apenas o versículo 6, mas também o 7.
7. No inglês, "a majestade".
Curiosamente, Ferreira d'Almeida traduz como "trabalho" o que em inglês é
8. No inglês, "e este homem será a vossa paz". 9.
misery; a Bíblia de Jerusalém fala, no caso, em "suas penas".
Versículo 3, na tradução de Ferreira d'Almeida. 10. No 24. O versículo 14 continua assim: "... a fazer uma obra maravilhosa
original, a indicação é v. 12. no meio deste povo; uma obra maravilhosa e um assombro, porque a
11. "Porque na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca sabedoria dos seus sábios perecerá, e o entendimento dos seus prudentes
ao boi que trilha o grão. Porventura, tem Deus cuidado dos bois?" E se esconderá".
responde, no versículo seguinte: "Ou não o diz certamente por nós?" 25. Esse trecho, na íntegra, é o seguinte: "Vinde a mim, todos os que
estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu
12. O versículo começa assim, o que Hobbes não transcreve: jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e
"Então Pedro, aproximando-se dele, disse:" encontrareis descanso para vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o
13. Esta palavra "Raca" ou "raqa" raramente é traduzida nas Bíblias meu fardo é leve."
vernáculas; quer dizer "cretino, cabeça vazia, desmiolado"
(segundo a Bíblia de Jerusalém).
14. He tbat utteretb a slander, o que calunia.
15. Grievous words, palavras que agravam. Parte II
16. A partir daí é o versículo 4, que por sinal termina assim: DOMfNIO
"e o torcido se endireitará, e o áspero se aplainará".
17. Quem fala é o apóstolo Pedro.
18. No sentido de "acepção de pessoas" - quer dizer, Deus Capítulo V
não distingue entre as pessoas por estatuto social ou qualquer outro critério
1. Este capítulo não tem correspondência perfeita no Leviatã; onde
análogo.
melhor se relaciona com o tratado de 1651 é no seu capo XVII, que diz
19. Este livro, que não faz parte do cânone judaico, tampouco é respeito ã vida política dos animais e ao estado de guerra.
reconhecido pelos protestantes, razão por que não consta nem do rei Jaime 2. Sorbiere é mais explicativo:' "Contudo, não cito esta cláusula (=
nem da Bíblia de Ferreira; seguimos, aqui, a tradução da Bíblia de que eles se abstinham de crueldade) como se eu considerasse que no
Jerusalém. estado de natureza os homens estejam obrigados a qualquer lei de
20. Assim prossegue o texto (versículo 25): "Para que tome parte mansidão e de humanidade; mas porque, sendo a
neste ministério e apostolado". Deus é convidado a escolher

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Do Cidadão Notas

crueldade um efeito do medo, quem a exerce apaga toda a glória que mando, mas também estar sujeita ao mando; só que em sentidos diferentes.
porventura resulte de suas mais belas ações." A qual diferença acreditei que estivesse claramente explicada no primeiro
3. É a teoria da persona ficta. parágrafo; mas, devido às objeções que vários dirigiram contra as coisas
4. Sorbiere acrescenta: "e em toda espécie de república (pois que se seguem, infiro que não é assim. Por isso me pareceu oportuno, a fim
o que afirmo de uma cidade entendo de todas as sociedades em geral; mas de proporcionar uma explicação mais completa, acrescentar estas poucas
me valho do exemplo da cidade porque elas foram 'as primeiras a se formar coisas:
quando os homens deixaram o estado de natureza)" - o que comprova a
Por multidão - sendo um termo coletivo - entendemos mais que
relativa dificuldade de usar o termo city, ou civitas, para definir toda
um, de modo que uma multidão é o mesmo que muitos homens. Mas a
sociedade política; é provavelmente algo que Hobbes deve, um tanto mau
mesma palavra, por ser de número singular, significa uma coisa única, a
grado seu, a suas leituras antigas.
saber, uma multidão. Em nenhum desses sentidos, porém, pode entender-
5. Ou seja, ninguém transfere a própria força física.
se que uma multidão tenha uma vontade a ela dada por natureza, e sim a
cada um de seus membros uma vontade distinta; e por conseguinte a ela
não se pode atribuir uma ação. De modo que uma multidão não pode
prometer, contratar, adquirir ou transferir direito, agir, ter, possuir e tudo o
Capítulo VI que se assemelhe a tanto, a não ser que cada um o faça em separado, de
homem a homem - resultando disso que haverá forçosamente tantas
1. Em linhas gerais este capítulo lida com os temas de que Hobbes promessas, pactos, direitos e ações quantos homens nela houver. Portanto,
tratará no capo XVIII do Leviatã ("Dos direitos do soberano por uma multidào nào é uma pessoa natural. Mas, se a mesma multidão
instituição"). A grande diferença deste ponto de vista éque no Leviatã contratar - cada um com cada um - no sentido de que a vontade de um
Hobbes dá mais importância do que aqui ao que poderíamos chamar o indivíduo, ou o acordo das vontades da maioria dos seus membros, será
momento, obviamente imaginário, em que ocorre a instituição do Estado recebida como sendo a vontade de todos, então ela se torna uma pessoa.
pelo contrato de cada um com cada um (final do capo XVII), ao passo que Pois nesse caso ela se vê dotada de vontade, e pode praticar ações
neste livro esse contrato sui generís, que podemos dizer que é a grande voluntárias, tais como dar ordens, fazer leis, adquirir e transferir direito
invenção de Hobbes (um pacto do qual está ausente, justamente, o seu
etc.; e com mais freqüência é chamada de povo que de multidão.
beneficiário, o soberano, e que se torna soberano exatamente por estar
Devemos então fazer a distinção seguinte. Quando dizemos que o
ausente), não recebe a mesma ênfase, sendo mencionado só no fim do ca-
povo ou a multidão quer, manda ou faz alguma coisa, entende-se que é a
pítulo.
cidade que manda, quer e age pela vontade de um, ou pelas vontades
A seqüência, porém, conserva-se em geral a mesma nos dois livros:
concordantes da maioria, sendo que estas só podem ser verificadas em
primeiro, os direitos do soberano por instituição, depois, a exposição das
assembléia. Mas sempre que dissermos que alguma coisa foi feita por uma
formas de aquisição do governo doméstico ou despótico.
multidào, grande ou pequena, sem a vontade daquele homem ou
2. No inglês, under seal, o que literalmente significa: de maneira
solene (apondo seu selo, ou assinatura). assembléia de homens, entender-se-á que ela foi praticada por um povo
3. A doutrina (Sorbiere: ciência) do poder de uma cidade sobre seus submetido, isto é, por muitos cidadãos individuais em conjunto, e não
cidadãos depende inteiramente da compreensão de que diferença há entre procede de uma vontade só, mas das várias vontades de vários homens
uma multidão de homens que governam e uma multidào de governados. (Nota de Hobbes), que são criados e súditos, porém não constituem uma
Pois é tal a natureza de uma cidade que uma multidão ou companhia de cidade.
cidadãos pode não apenas ter o

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IIIJIII
II

Do Cidadão Notas

(Sorbiere aqui se alonga, mudando já as últimas linhas de Hobbes: se obedeça a outros além daqueles a quem se confere a autoridade
"... o povo que se permitiu essa licença não é aquela pessoa pública que suprema.
tudo pode, por autoridade soberana; e não é ao corpo da cidade que se Não negarei que penso ser este o caso daquele poder que muitos,
deve atribuir sua ação, não é de uma vontade única que ela procede, mas vivendo num governo estrangeiro, atribuem ao chefe supremo da Igreja de
da conspiração e desregramento de algumas pessoas sediciosas. Daí se Roma, bem como daquele que em outras partes, fora da Igreja Romana,
pode entender a diferença que estabeleço entre essa multidão a que chamo alguns bispos exigem que lhes seja reconhecido; e, finalmente, daquela
o povo, que se governa regularmente pela autoridade do magistrado, que liberdade que a camada mais inferior dos cidadãos (Sorbiere; o terceiro
compõe uma pessoa civil, que nos representa todo o corpo do público, a estado), a pretexto de religião, reivindica para si. Pois que guerra civil
cidade ou o Estado, e a quem confiro uma vontade só; e essa outra jamais houve no mundo cristão, que não tenha nascido ou sido alimentada
multidão que não respeita ordem alguma, que é como uma hidra de cem por esta raiz? Por conseguinte, atribuo aqui à autoridade civil o papel de
cabeças, e que na república a nada mais deve aspirar do que à glória da julgar as doutrinas, para saber se elas repugnam ou não à obediência civil,
obediência.") e também, se repugnarem, o de proibir que sejam ensinadas. Pois, dado
que ninguém nega à cidade o direito de julgar aquelas coisas que se
4. Como vemos por esta seção, e pela nota de rodapé do autor, Hobbes
referem à sua paz e defesa, e que com toda a evidência as opiniões que
aqui distingue dois tipos de multidão, a informe e
citei se reportam à"sua paz, segue-se necessariamente que o exame de tais
a organizada enquanto Estado. No capo XVII do Leviatã, haverá uma
opiniões, para saber em que caso estão, deve caber à cidade, isto é, a quem
mudança de terminologia, e o autor fará a distinção entre "multidão",
detém a autoridade suprema. (Nota de Hobbes)
sempre informe e por isso facilmente ensandecida, e
8. Essa idéia de perfeição soa um tanto estranha em Hobbes - que
"povo", quando há organização e Estado.
constantemente nos adverte para o fato de que o Estado é mortal, e de que
5. Isto é, o direito de natureza.
os homens tendem, por natureza, pelo menos em sua maioria, a
6. Latim: "Mas pode-se fazer que não haja motivo justo de
desobedecer, de modo que o governante tem de impor uma perpétua
temor. " vigilância a eles. Por isso mesmo o termo é raramente usado por ele; nesse
7. Não há quase nenhum princípio nem na adoração de Deus, nem caso, ele é prontamente definido de modo a reduzir seu alcance; e mais
nas ciências humanas, de que não possam brotar dissensões, discórdias, adiante, no capo XII, teremos elementos para ver como é forte a tendência
censuras, e assim, grau a grau, a própria guerra. E isso não acontece interna do Estado à dissolução.
porque o princípio seja falso, mas devido à natureza dos homens, que, 9. O Estado popular manifesta a exigência de um domínio absoluto
parecendo sábios a seus próprios olhos, necessariamente querem assim sobre seus cidadãos, e estes não se opõem a isso. Pois eles reconhecem que
parecer a todos os outros. Mas, embora seja impossível impedir que tais a fisionomia da cidade consiste na assembléia de muitos homens; e até os
dessensões nasçam, elas podem contudo ser refreadas pelo exercício do mais ignorantes compreendem que no Estado popular os negócios são
poder supremo, de modo a não constituírem qualquer óbice à paz pública. regidos por um conselho.
Por isso, não discuti esses tipos de opinião neste lugar. No entanto, a monarquia não é menos Estado que uma democracia; e
Há, porém, certas doutrinas que corrompem os súditos, e os reis absolutos têm seus conselheiros, a quem pedem aviso, e assim
que os levam a acreditar, com toda a convicção, que possam recusar-se a aceitam que seu poder, nos tópicos de maior relevância, seja guiado,
obedecer à cidade, e que tenham o direito, e até mesmo o dever, de se embora não cancelado. Contudo, para a maior parte dos homens não fica
oporem e lutarem contra os maiores príncipes e dignidades. Estão entre claro de que modo um Estado
essas as doutrinas que, direta e abertamente, ou mais obscuramente e de
maneira indireta, exigem que

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,....--

Do Cidadão Notas

está contido na pessoa do rei, e por isso eles fazem, ao mando absoluto, as também. Pois, embora aqueles que tenham o mando supremo não façam
seguintes objeções. Primeiro, dizem que, se alguém tiver um tal direito, todas as coisas que queiram e que sabem ser úteis à cidade, a razão para
será miserável a condição dos cidadãos; pois, pensam eles, esse rei tomará isso não está em Ihes faltar direito para tanto, mas no conhecimento que
tudo, espoliará tudo, matará a todos; e todo h~mem pensará que é por têm de seus cidadãos - que, empenhados em seus interesses privados, e
mera sorte que ainda não foi espoliado ou morto. Mas por que razão desinteressados do que tendem ao público, nem sempre podem ser levados
deveria o rei agir dessa forma? Não será apenas porque tenha direito de a cumprir seus deveres sem com isso fazerem o bem público correr riscos.
fazê-Io - porque precisaria, também, querer fazê-Io. Ou então, para agradar É por isso que às vezes os príncipes deixam de exercer seu direito, e
a um ou a poucos favoritos, ele arruinará todos os demais? Ora, em pri prudentemente se abstêm de agir, mas sem abrirem mão de parte alguma do
meiro lugar, embora ele tenha o direito de agir dessa forma, e direito. (Nota de Hobbes)
assim não cometa injúria contra ninguém, isso não é porém o mesmo que 10. O emprego do termo absoluto para designar o direito do soberano
agir justamente, pois estará rompendo as leis naturais e praticando injúria fez muitos aproximarem o regime almejado por Hobbes daquele que, em
contra Deus. E por isso os juramentos que os príncipes proferem seu mesmo tempo, Luís XIV fez prevalecer na França, o absolutismo ou
comportam uma certa segurança para seus súditos. Em segundo lugar, monarquia absoluta. E com efeito há elos teóricos e históricos entre a teoria
mesmo que ele possa agir justamente daquela forma, ou que não leve seu hobbesiana e a prática francesa. Mas é preciso também marcar as
juramento em conta, ainda assim não aparece outra razão pela qual ele diferenças. Estas se resumem basicamente em duas: a monarquia francesa é
deseje fazê-Io, já que nisso nada encontrará de bom. Não se pode negar de direito divino (o que para Hobbes é, quando muito, um elemento para
que um príncipe possa ter, às vezes, a inclinação de agir perversamente; atingir melhor as consciências dos súditos, mas não um fundamento
mas então suponha que lhe tenhamos dado um poder que não seria jurídico para o poder) e é legitimista.
absoluto, porém apenas o bastante para defender-nos das injúrias dos O legitimismo significa que o rei tem um direito próprio, em última
outros - o que, se quisermos a segurança, temos que dar -; as mesmas análise proveniente de Deus, ao poder, e que este se transmite pelo sangue
coisas não seriam então de temer? Pois quem tem força suficiente para
na família real. O resultado dessa religião da realeza é que o monarca sofre
proteger a todos não carece do que é suficiente para a todos oprimir.
duas grandes limitações em sua ação: ele não pode alterar a sucessão ao
Portanto, aqui, a única dificuldade está em que os negócios humanos
trono (o que Hobbes explicitamente lhe permite), nem pode alienar o
nunca podem estar sem algum inconveniente. (Sorbie
patrimônio régio, termo um tanto vago mas que pode tanto significar uma
re: Só devemos nos queixar da infelicidade e miscelânea das coisas
proibição de dissipar o domínio real quanto de expor a perigo o reino. Para
humanas, que não permitem apreciar nenhum bem tão depu
Hobbes, tais proibições seriam vãs, porque implicariam submeter a
rado que sua doçura não tenha mesclada algo de amargo.) E essa
autoridade, que deve ser absoluta, do governante a uma tutela que a
inconveniência mesma está nos cidadãos, e não no governo. Pois, se os
enfraqueceria.
homens pudessem governar-se, cada homem dando ordens a si próprio -
É por isso que o mais correto, na leitura de Hobbes, será pensá-I o
isto é, pudessem viver em conformidade com as leis de natureza -, não
haveria necessidade alguma de cidade, nem de um poder coercitivo como um teórico da soberania - realmente ilimitada - e não do absolutismo,
comum. forma historicamente restrita daquela.
A segunda objeção que eles fazem é que no mundo cristão não há 11. A edição Molesworth traz, erradamente, immediately. 12. O latim
domínio que seja absoluto - o que, a bem dizer, não é verdade, pois todas é mais claro: "se o soberano manda alguém matá
as monarquias o são, e todos os outros Estados 10 - estou dizendo matar o soberano - ..."

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T
Do Cidadão Notas

13. Esta questão é retomada no capo XXI do Leviatã, "Da liberdade alguns teólogos. Apenas afirmo que o contrato legítimo de um homem e de
dos súditos". uma mulher no sentido de viverem juntos - legítimo porque reconhecido
14. Quanto à objeção que alguns fazem a esse respeito segundo os pela lei civil -, seguramente constitui um casamento legítimo, pouco
quais os pais de família tinham propriedade de bens antes mEsmo de se importando que este seja, ou não, um sacramento; mas aquela copulação
constituírem as cidades -, ela é de todo vã, porque, como já declarei, uma que a cidade proibiu não constitui um casamento, já que pertence à essência
família é uma pequena cidade. É verdade que os filhos de uma família têm do casamento ser um contrato legítimo.
sobre seus bens uma propriedade concedida por seu pai, de modo que ela Em muitos povos, como por exemplo entre os judeus, os gregos e os
se distingue da propriedade dos demais filhos da mesma família, porém romanos, os casamentos, mesmo legítimos, podiam ser dissolvidos.
não daquela que é de seu próprio pai. Já os pais de distintas famílias, que Quando, porém, tais contratos só podem ser firmados segundo uma lei que
não estejam sujeitos nem a um pai comum nem a um senhor, têm um os decreta indissolúveis, a razão para que o casamento não se possa romper
direito simultâneo (common) a todas as coisas. (Nota de Hobbes) está, apenas, em que a cidade assim o decretou, e não por ser o matrimônio
15. No Leviatã, há um capítulo inteiro (o XXIV, "Da nutrição e um sacramento. De modo que as cerimônias que são celebradas no templo
procriação de um Estado") sobre a questão da economia, que não é tratada quando de um casamento, a fim de abençoar ou, se assim podemos dizer,
neste livro; e nele Hobbes volta a tratar da propriedade. de consagrar o marido e a mulher pertencem, talvez, apenas ao ofício do
16. Sempre que um cidadão tem reconhecido o direito de abrir uma clérigo; mas tudo o mais, a saber, quem, quando e por que contratos se
ação em juízo contra o poder supremo, ou seja, contra a cidade, o que está podem fazer casamentos, compete às leis da cidade. (Nota de Hobbes)
em questão nisso não é se a cidade tem ou não direito a manter a posse da 19. Latim: "leis naturais", onde aqui está "leis civis".
coisa sobre a qual incide a controvérsia - mas se, pelas leis anteriormente 20. Uma das raras passagens em que Hobbes censura um
feitas, ela deve ou não conservar tal coisa; porque a lei é a declaração da governante - e que no Leviatã se tornarão ainda mais raras. Sorbiere
vontade do soberano. Assim, como a cidade pode levantar dinheiro de seus conclui assim: "para saciar suas paixões desregradas". No latim: "por culpa
cidadãos a dois títulos, quer como tributo, quer como débito, no primeiro dos soberanos absolutos que abusam de seu poder por capricho".
caso não cabe qualquer ação em juízo, porque não pode pairar dúvida de 21. No original, estates: estamentos, ou estados no sentido que tem a
que a cidade tenha o direito de lançar tributos; no segundo, porém, cabe expressão Estados-Gerais. No latim, assembléia.
ação, porque a cidade não tirará nada de seus cidadãos por fraude ou Essa proposta é basicamente a dos que defendiam o governo na
esperteza; e, se precisar de tudo Inglaterra pelo Rex in Parliamento: o poder máximo no país, segundo a
o que eles têm, ela o exigirá abertamente. Por isso, quem condena o que doutrina tradicional, que se consolidara depois da Reforma sob os reis
aqui afirmo, dizendo que esta doutrina facilita aos prín Henrique VIII e sua filha Isabel, cabia à reunião do rei, dos lordes e dos
cipes o livrarem-se de suas dívidas, fala sem cabimento. (Nota de Hobbes) comuns do reino, que se faziam presentes e/ou representados no
17. O latim usa uma fórmula mais lisonjeira para o soberano: Parlamento. Por isso, o Rei no Parlamento tudo podia (o que já constitui
"supondo-se que, uma vez conhecida a eqüidade, ele não possa julgar uma doutrina da soberania); já o Rei fora do Parlamento podia menos do
iniquamente". Sorbiere vai na mesma direção. que ele pró
18. Não é meu propósito discutir se o matrimônio é ou não um prio com os lordes e os comuns. Essa doutrina aparece, por exemplo, no
sacramento, no sentido em que essa palavra é utilizada por tratado De Republica Anglorum, de sir Thomas Smith (1565, em pleno
período isabelino), que começa seu Livro

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374
...

Do Cidadão Notas

II dizendo: "O mais alto e absoluto poder do reino da Inglaterra consiste no re em duas etapas sucessivas; numa primeira, os cidadãos elegem seus
Parlamento." E essa doutrina é praticamente consensual sob a dinastia deputados, em alguma circunscrição local, de modo que (no exemplo da
Tudor, depois que, com a Reforma promovida por Henrique VIII, esta Inglaterra) em cada burgo ou condado a variedade de votos se reduz a dois
abateu o poder dos grandes senhores feudais que pretendiam ser autônomos deputados; num segundo momento, estes representantes têm de reduzir sua
em face da coroa, e a pretensão de Roma a interferir no clero local. vontade, que também pode divergir, a uma só, a da maioria da Câmara.
A diferença entre essa teoria e a de Hobbes é que os Tudor partiam, 24. O latim aqui inclui: "por ignorância".
como ideal ou pressuposto, de uma harmonia entre essas partes de que se
compunha o poder supremo. Neste ponto, eles prolongavam um ideal
medieval do poder composto pelo entendimento das partes (embora com
uma diferença absolutamente radical: que conferissem a este uma jurisdição
Capítulo VII
bem mais ampla do que reconheciam os medievais). E Hobbes parte, até
por razões históricas (o conflito que desde 1603, com o advento de uma 1. Aqui vemos o problema que aparece com a democracia, ou pelo
nova dinastia, a Stuart, opõe o rei ao Parlamento e em especial aos menos com o que imaginaríamos ser um regime fundado em algo como o
comuns), da suposição de que as partes não se entendam. Por isso não sufrágio universal: Hobbes, na tradição antiga, fala aqui em governo de
assistimos simplesmente ao confronto da doutrina hobbesiana da soberania "muitos", e não de "todos". Portanto, o voto pode estar confiado a todos ou
e de uma teoria medieval da nãosoberania, e sim ao de uma soberania já apenas a uma parte: é democracia o regime que subordina o sufrágio a
localizada num determinado personagem (ou pessoa), contra uma soberania determinados requisitos de capacidade.
que só pôde nascer na teoria política inglesa porque reivindicou um certo Note-se que, entre parênteses, Hobbes permite restringir es
consenso nacional entre as partes. ses "todos" (da mesma forma que Montesquieu, no Espírito das Leis}
22. O latim explica corte (curia} "quer dizer, um senado". votarão os que tiverem direito a voto, que demonstrarem interesse na coisa
23. A referência óbvia é ao Parlamento inglês: Hobbes, assim pública e além disso que quiserem votar. Demonstrar um interesse foi
como os conservadores de seu tempo - partidários dos reis Jaime I e entendido usualmente como significando ter um bem, geralmente de raiz,
Carlos I no conflito com seus legislativos -, entende que o Parlamento é que desse a seu proprietário uma responsabilidade que o não-proprietário
apenas o lugar onde os súditos podem parler leur ment, falar o que têm em não teria; a propriedade seria como que uma caução ou fiança do voto,
mente, portanto um órgão consultivo e porque se seu dono votar irresponsavelmente um governo catastrófico lhe
não deliberativo. A Guerra Civil dos anos 1640 decidirá de outro modo. causará muito mais prejuízo do que a alguém que nada tem e por isso não
Mas, do ponto de vista teórico, aqui Hobbes afirma duas coisas: 1. que paga nada pelas más conseqüências de seus atos irrefletidos.
a redução da pluralidade das vontades a uma só não é coisa natural, mas 2. É o caso da Inglaterra; o que traduzi como "nobres" aparece, no
supõe uma convenção prévia, que pode, por texto inglês, como Lords. Forsooth, que traduzi como "certamente", tem
exemplo, determinar que a maior parte valha pelo todo. Esse ponto foi uma carga de ironia.
estudado, para Idade Média, por Maitland e Gaines Post, que mostraram o 3. O latim é mais preciso: "enquanto todos os poderes concordarem";
quanto foi difícil consolidar essa idéia: por que n (ainda que sejam a porque, neste capítulo, os nobres se referem apenas ãqueles que fazem
maioria) equivaleriam a todos? - 2. Essa redução da diversidade das parte da Câmara mais alta (na Inglaterra, aos membros da Câmara dos
vontades a uma só, por sua vez, ocor Lordes), e o povo ã representação deste na Câmara dos Comuns.
4. A maior parte dos homens admite que um governo não deve ser
dividido, mas gostaria que fosse moderado e cerceado

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Do Cidadão
Notas

por alguns limites. Em verdade seria muito razoável que assim fosse; mas,
se os que falam em moderação e limitação entendem dividir o governo, po: aquele poder que pode garantir o futuro é o que tem, no presente,
então fazem uma distinção muito ingênua. Na verdade, de minha parte, eu maior poder. (Talvez isto explique por que, pelo menos
bem gostaria não só que os reis, mas que todas as outras pessoas que nas línguas latinas, o substantivo poder é também um verbo que indica uma
venham a ser dotadas com a aU!toridade suprema, se moderassem (temper) capacidade que se estende pelo futuro indefinidamente: o poder não é então
de modo a não cometer nenhum erro (wroniJ e, cuidando apenas de seus um dado ou uma realidade, é uma capacidade.)
encargos, se contivessem dentro dos limites das leis naturais e divinas. Deste ponto de vista Hobbes é absolutamente fiel às tradições
Contudo, os que fazem essa distinção gostariam que o poder supremo fosse políticas com base nas quais então se pensa a monarquia. O grande
limitado e restrito por outrem; mas isso é impossível, porque quem problema para um monarca era assegurar sua sucessão: se não
estabelece limites necessariamente há de deter uma parte do poder, para entendermos isso, sempre pensaremos, por exemplo, que o
que possa limitá-Io; de modo que o governo assim não é limitado, porém, maior acontecimento da história inglesa antes da Guerra Civil - a
para falar corretamente, dividido. (Nota de Hobbes) ruptura com Roma, a Reforma anglicana - terá resultado apenas da luxúria
5. No original, plurality - que geralmente se traduz por ou da loucura de Henrique VIII, obcecado por problemas matrimoniais.
"maioria simples de votos" (diferentemente da absoluta). Mas nesse caso estaríamos ignorando que para um rei, especialmente
6. No latim: "o exercício da soberania". de dinastia nova (ele era o segundo monarca da casa Tudor), garantir um
7. No latim: "Transfiro meu direito ao povo." Hobbes distin herdeiro era fundamental; ora, sua esposa Catarina de Aragão só lhe dera
gue transferir um direito e renunciar a ele; mas, como transferir um direito uma filha, e naquela época, se era aceite que a coroa inglesa podia ser
é exatamente renunciar a ele em favor de determinada pessoa (podendo transmitida por uma mulher (fora este o argumento dos ingleses para
haver renúncia a direito que não seja em favor de ninguém, e portanto não reivindicar a coroa da França, pelo direito que a eles teria sido transmitido
constituindo uma transferência), não divergem as duas leituras. por uma princesa francesa, filha de Felipe, o Belo), não era seguro que
8. For your (my) sake, no inglês, ou "por vosso (meu) amor", em pudesse ser conferida a uma mulher. A ruptura com Roma deriva,
Sorbiere. imediatamente, da necessidade que sente o rei inglês de ter um herdeiro
9. Outra passagem em que Hobbes, neste livro, se conserva ligado a varão, o que tentará com um novo casamento; e, mais a fundo, ela
temas que terminará de renegar no Leviatã (e aos quais se prende aqui expressa a reivindicação de uma soberania plena, que se traduz na recusa
quase que apenas nominalmente). O tema do buon governo, na Idade de que o papa decida sobre a validade dos matrimônios, ou seja, sobre a
Média, era essencial, definindo um limite sério ao governante, que não legitimidade da sucessão. Enquanto esse poder coubesse a Roma, sempre
podia furtar-se a uma condução moral dos negócios públicos. Portanto, seria possível, anulando-se um casamento (e mesmo um casamento de um
dava aos súditos, através dos parlamentos ou cortes, e ao papado uma certa ou dois séculos atrás), perturbar toda a ordem de sucessão ao trono. Por
tutela sobre o Estado. conseguinte, nas palavras de Hobbes - que nesse caso exprimiriam
10. No latim, "seus deveres"; ver a nota anterior. perfeitamente o entendimento com base no qual Thomas Cromwell
11. O direito de sucessão é, na monarquia, a pedra de toque comandou a ruptura com o papado - soberano seria o papa, e não o rei.
do poder. Devemos entender que o poder busca ser ilimitado, e que a chave 12. O latim usa a feliz forma de "usufruto".
para se entender a qualidade da dominação num determinado instante está 13. No latim, "herdeiro; no inglês, heir apparent, ou seja,
em saber qual a sua qualidade no tem aquele herdeiro sobre cujo título não podem pairar dúvidas, como

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Do Cidadão Notas

o primogênito varão de um rei; na falta de filhos, se o herdeiro for o irmão, 2. No inglês, framed: literalmente, "enquadrado, constituído". 3.
sobrinho ou tio do monarca, a coisa não será tão manifesta, porque se o Hobbes faz a distinção em francês, certamente por saber
soberano vier a ter filhos aqueles perderão seu lugar na ordem de sucessão. que em inglês se está num momento em que o termo dificilmente teria um
14. No latim, "liberdade absoluta". significado claro. Note-se o "atualmente" (now at tbis day): se Hobbes
15. Nesta passagem, como em outras vezes, Sorbiere é mais constantemente critica os que fazem mau uso das palavras - e por esse
enfático: "... adquirem essa liberdade brutal, porém ainda assim natural, que meio subvertem o Estado (Leviatã, Bebemoth) -, esta é uma das raras vezes
a todos confere um igual poder sobre todas as coisas. Digo que essa em que atribui a confusão aos tempos, e não aos temperamentos
liberdade é feroz e brutal; pois, com efeito, se compararmos o estado de subversivos.
natureza ao estado político, isto é, a liberdade à sujeição, encontraremos a Aqui, porém, a tradução francesa não é feliz - embora avalizada por
mesma proporção entre elas que há entre o desregramento dos apetites e a Hobbes: Sorbiere falará, este capítulo todo, em esclave. Provavelmente é o
razão ou, se me atrevo a dizê-Io, entre os animais e os homens racionais". que está na base de um erro cometido por muitos comentadores,
especialmente franceses, de Hobbes, para os quais haveria um contrato do
escravo com seu senhor.
4. Vínculo é bond, no original, como é bound o que traduzimos por
"ligado". Hobbes joga com essa palavra, para dizer que ou se está preso
Capítulo VIII (bound) pela palavra dada, e solto fisicamente,
ou preso por correntes, e livre pois de qualquer compromisso.
1. No original, lords foi traduzido por senhores, e servants por
5. Esta passagem não tem equivalente no Leviatã.
servos. Em certos casos, como especialmente na obra de John Locke, o
6. No original, divine pleasure, literalmente "prazer divino";
Segundo Tratado sobre o Governo, escrita ao que tudo indica em começos
mas é preciso lembrar que prazer, assim como na expressão "belprazer do
da década de 1680, servant significa "servidor", dado que a relação de
rei", quer simplesmente dizer uma vontade que não precisa, em nada,
serviço já é assalariada; aqui, pelo texto se vê que é uma relação senhorial,
justificar-se.
para não dizer feuda!. (Não estamos com isso sugerindo que a diferença de
sentido dada à palavra se deva a uma questão de data: trata-se de diferentes
posturas dos dois autores.) Daí, também, que se deva chamar a atenção para
o fato de que "senhor" pode ser master(que Hobbes usará sobretudo para a Capítulo IX
relação com o escravo) ou lord, que tem um sentido político Oorde) ou
senhorial (senhor). 1. Da mesma forma que o capítulo anterior, este correspon
Este capítulo, no Leviatã, corresponde a uma parte apenas do de, no Leviatã, apenas a uma parte do capo XX.
respectivo capo XX. É uma das raras partes que diminui de tamanho - e de 2. No original, preserved e preserver, que traduzi a partir do verbo
importância - na passagem de Do Cidadão ao Leviatã. Uma explicação para criar, aproveitando a riqueza deste verbo em português, que não expressa
isso é que Hobbes vá depurando seu pensamento dos elementos que apenas a geração, mas também o cuidado tomado para fazer alguém
poderíamos dizer, na falta de palavra melhor, feudalizantes. Sua teoria crescer - daí, justamente, a palavra criança.
política será sempre do contrato, e a diferença entre uma e outra de suas três 3. Hobbes retoma a questão da liberdade no capo XXI do Leviatã.
versões estará, penso, num empenho em escoimar cada texto do que ainda 4. No original está o verbo forjeit, literalmente "perder direito a", de
lhe parece inadequado. fundamental importância no pensamento de Locke e no direito
constitucional inglês (desde a Idade Média), mas raro em Hobbes.

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Do Cidadão Notas

5. Em inglês, will, que significa tanto "vontade" como "testamento" também que o próprio conteúdo desses argumentos é bastante duvidoso:
(acima, Hobbes utilizou testament). uns remetem tão-só ã mitologia; outros entram flagrantemente em choque
com o que diz o próprio Hobbes em sua obra. Assim, por exemplo, ele
afirmou ainda há pouco que os antigos tinham preconceitos contra a
monarquia (referindo-se certamente a Roma e a Atenas); como levaria a
Capítulo X sério a tese de que os antigos preferiram o reino de um só? Outra leitura da
1. No Leviatã, este assunto é tratado no capo XIX, "Das diferentes mesma passagem (os antigos preferiram a monarquia antes, ou primeiro, e
espécies de governo por instituição, e da sucessão do poder soberano". depois aderiram aos regimes aristocrático ou democrático) também soa
Nota-se que Hobbes inverteu este tópico e o tratado nos dois capítulos estranha, depois de ouvirmos que a democracia precede (é verdade que de
anteriores, diminuindo a importância dos governos paterno e despótico. direito) qualquer outro regime.
O caso dos governos é quase irônico em Hobbes. Monarquista dos Finalmente, quanto ao povo de Deus, o argumento de Hobbes, que
mais leais, um dos primeiros (diz ele que o primeiro) a fugir para o remete ao livro de Samuel- como se verá mais adiante -, é que ele foi
continente quando viu ameaçado o poder do rei e com ele a sua própria primeiro governado por Deus mesmo, mediante juizes, e só depois teve
vida, Hobbes se interessara pela política, ao que afirma no Prefácio deste reis; e estes vieram pela via do contrato. Assim, se a monarquia é um
livro, para defender a causa do rei. Lendo Tucídides e traduzindo-o, regime melhor, não o é por sua origem, mas por
concluíra aliás pelos perigos da democracia, regime a seu ver que constituía seu desempenho. Discuti este ponto no capo "O sono do rei", de A Marca do
uma sementeira de demagogos. Ora, o curioso é que, de todas as teses que Leviatã.
afirma em sua obra política, a única para a qual reconhece não haver o rigor 4. No sentido jurídico do termo.
definitivo da dedução, mas apenas a vantagem relativa da comparação, é a 5. Oblige, como devíamos entender, literalmente, nossa ex
da superioridade da monarquia sobre a democracia, pressão obrigado, ou muito obrigado, em que uma obrigação nasce da gratidão
2. Parece que os amigos que inventaram a fábula de Prometeu por um favor.
apontavam nessa direção. Dizem eles que Prometeu, depois de roubar o 6. Literalmente, policy. No latim, "prudência política".
fogo do Sol, fez um homem de argila, e por essa razão foi torturado por 7. A cidade de Luca, na Itália, como ele explicita no Leviatã,
]úpiter, que o condenou a ter o fígado perpetuamente lacerado. Ou seja, capo XXI.
pela invenção humana (que aqui está significa da por Prometeu), as leis e a 8. Literalmente, agitation. O termo agitador é praticamente desta
justiça foram imitadas da monarquia; por tal virtude (como por um fogo época: foi usado pela primeira vez nas assembléias dos soldados em
removido de sua órbita natural), a multidão (que é a borra e as imundícies Putney, no ano de 1647 - que Christopher Hill compara aos futuros
dos homens) foi como que animada e fundida numa pessoa civil, a sovietes -, e designava militares de baixa patente que eram enviados de um
que se deu o nome de aristocracia ou democracia. Mas, tendo-se regimento a outro para animar a discussão revolucionária, ou seja, agitar.
descoberto o autor e os seus cúmplices - que poderiam ter vivido 9. Entenda-se: que usam para constituir a contrafação de um povo.
tranqüilamente e em segurança sob a jurisdição natural dos reis -, eles
sofrem agudamente pelo que cometeram: estando expostos num lugar
elevado, são atormentados por perpétuos cuidados, suspeitas e dissensões.
(Nota de Hobbes)
3. A explicação para Hobbes desconsiderar estes argumentos não é
só que eles remetem ao plano do fato, e que o filósofo deseja fundar-se na
razão, isto é, escorar-se em princípios sólidos. É Capítulo XI
1. Não há correspondente no Leviatã, embora em sua terceira parte
algumas destas citações sejam retomadas.

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.....

Do Cidadão
Notas

2. Incluindo as passagens que, por serem notórias a seus leitores, Hobbes


omitiu: "Se diligentemente ouvirdes a minha voz, e Capítulo XII
guardardes o meu concerto, então sereis a minha propriedade peculiar 1. Este capítulo corresponde, no Leviatã, ao capo XXIX, "Das
dentre todos os povos: porque toda a terra é minha. E vós me sereis um coisas que enfraquecem, ou tendem à dissolução de um Estado".
reino sacerdotal, e o povo santo. Estas são as palavras que falarás aos 2. No inglês, "sereis como deus..."
filhos de Israel" (é o que Deus diz a Moisés no monte Sinai). Continuando: 3. No inglês, right. Hobbes é menos sistemático no uso do
"E veio Moisés, e chamou os anciãos do povo, e expôs diante deles todas termo direito neste livro do que no Leviatã, onde provavelmente diria que
estas palavras, que o Senhor lhe tinha ordenado. Então todo o povo pecam contra a lei (cf. capo XIV daquele livro, começo,
respondeu a uma voz, e disseram: Tudo o que o Senhor tem falado, para a distinção dos dois termos).
faremos." 4. Sorbiere: "a pergunta que Deus fez a Adão".
3. Neste ponto traduzimos diretamente do inglês; a primeira parte é 5. Aqui Hobbes introduz uma distinção que antes, neste
semelhante à tradução de Ferreira d'Almeida ("houve trovões e relâmpagos livro, estava mais obscura, conforme comentamos.
sobre o monte, e uma espessa nuvem, e um sonido de buzina mui forte, de 6. Subentende-se: a culpa de sua miséria.
maneira que estremeceu todo o povo que estava no arraial"), mas a
segunda não consta, dizendo o versículo 19 na versão que temos usado,
apenas: "E o sonido da buzina ia esforçando-se em grande maneira: Moisés
falava, e Deus lhe respondia em voz alta." Capítulo XIII
4. Entenda-se: sendo Deus o vosso rei, apesar disso quisestes ter um 1. Este capítulo corresponde, no Leviatã, ao capo XXX, "Do cargo
rei. Quem fala é, bem entendido, Samuel, o último dos juízes. (oifice) do soberano representante". Aqui há uma grande mudança, não no
5. Talvez não seja demais insistir em que "prazer", enquanto prazer conteúdo do que Hobbes recomenda ao governante, mas na própria
do soberano, jamais indica algo de sensual; desde que a expressão latina concepção do que se pode dizer a ele. Assim, no Leviatã, e embora a idéia
quod principi placuit babet vigorem legis (o que agrada, ou dá prazer, ao antiga de "ofício" remeta a serviço, e portanto comporte uma exigência de
príncipe tem força de lei) foi retomada da Idade Média, seu sentido é de conduta por parte de quem o exerce, Hobbes pára de falar em deveres do
que basta a vontade do monar soberano. Com efeito, como lhe ditar deveres se nos foi repetido, tantas
ca, sem ele precisar escorá-Ia em nenhuma justificativa racional, para fazer vezes, que ele é absoluto?
as leis. 2. Velho adágio latino, a rigor, "a segurança do povo deve ser a lei
6. O inglês convém mais a Hobbes: Não há homem comissionado suprema". Servia, no pensamento absolutista, a justificar a suspensão pelo
pelo rei para te ouvir. Deputed, comissionado, indica bem a idéia do rei rei das vias ordinárias da política, ou seja, de seu andamento institucional,
como fonte da autoridade, que a delega a representantes. para soluções extraordinárias, quando o requeresse a salvação do Estado.
7. A César. Em certos casos convém traduzir como salvação do Estado.
8. No sentido de "direito", como, aliás, está na tradução do 3. Hobbes brinca. A óptica que ele critica, anterior a Galileu,
rei Jaime. concebia a visão por meio de species emitidas do próprio objeto; disso ele
zomba no começo do Leviatã. Aqui ele não resiste a fazer humor - o que é
raro nele, ou melhor, em sua obra (Carlos 11 se divertia vendo como ele,
seu velho professor, driblava os
wits, os espíritos mais engenhosos, de sua corte brilhante, respondendo a
cada estocada com outra).

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Do Cidadão
Notas

4. Hobbes se refere a certas taxas, como as alfandegárias, que não 4. Esta é uma das raras ocasiões em que Hobbes, que neste livro
exigiam na Inglaterra autorização legislativa específica; elas, com o nome chama o que designamos hoje como Estado por cidade (termo que, já em
de tonnage and poundage, eram concedidas pelo Parlamento no começo seu tempo, causava estranheza, tanto que Sorbiere várias vezes o altera ou
de cada reinado por toda a vida do monarca. Quando os opositores dos reis explica), usa a palavra town - que, portanto, não indica o Estado, a civitas
Stuart dizem que Jaime I e Carlos I são esbanjadores e maus gestores de ou mesmo a pólis, porém uma pequena comunidade urbana; daí que a
seus próprios recursos, pedem que os reis, salvo necessidade devidamente traduzamos por "município". Societies, que ele usa adiante, traduzimos por
cons "sociedades particulares", seguindo o latim, para não confundir com a
tatada pelo Parlamento e para fins por este aprovados, vivam of bis own, sociedade enquanto tal; outra possibilidade seria corporaçâo, pois ele está
isto é, do que é seu, que incluiria não só a renda de suas terras como se referindo às personae fictae autorizadas pelo soberano.
também taxas como as alfandegárias. É contra isso que Hobbes, aqui e em 5. Passagem que tende a contradizer o que Hobbes afirma em outros
outras passagens, fala. lugares, segundo o que qualquer pecado que eu cometa, se for ordenado
5. Ver, no Leviatâ, o capo XLVI, "Das trevas resultantes da vã pelo governante, é de sua responsabilidade: por isso não teria por que me
filosofia e das tradições fabulosas", onde o autor pormenoriza seus projetos preocupar se a cidade mandar blasfemar, ou pecar, porque não seria eu o
de reforma das universidades. pecador. Note-se que Hobbes evita desenvolver aqui o assunto; cf. o
parágrafo 5 do capítulo anterior, onde ele também desiste de discutir o
tópico da responsabilidade do soberano pelas almas dos súditos.
Capítulo XIV 6. Aqui, e em outros lugares, Hobbes usa will- corretamente - para
aquilo que costumamos chamar de intenção (como quando dizemos pecar
1. No inglês, trespasses. O latim diz "pecados"; Sorbiere, "ofensas".
por intençào, palavra ou ato). Ora, sucede
Este capítulo corresponde, no Leviatâ, aos caps. XXVI, XXVII e XVIII.
que no pensamento de Hobbes will é um termo-chave, que está sempre
2. A expressão é infeliz, porque Hobbes nega a existência do livre-
significando "vontade", e isso num sentido preciso: é, diz ele, o culminar
arbítrio. É verdade que nas obras por ele destinadas à publicação ele não
chega a ser peremptório - como é o caso deste livro e do próprio Leviatâ do processo de deliberação, quando a soma toda de apetites favoráveis à
onde, voltando à distinção entre lei e direito, dirá que este se refere a nossa idéia de praticar tal ato, e de aversões a essa mesma idéia, resulta quer na
liberdade, e enfatizará na definição desta o aspecto mecânico. Mas, na decisão de cometê-Io, quer na de renunciar a ele. É muito mais do que uma
polêmica com o bispo anglicano Bramhall, na segunda metade da década fantasia. Dando um exemplo que está no começo do capo XXVII do
de 1640, ele não deixa dúvidas sobre sua crença na necessidade absoluta. Leviatâ: o mero deleite na posse do bem ou da mulher alheia, se não for
Trata-se, é bom lembrar, de uma discussão que Hobbes deseja manter em acompanhado de nenhuma açào nesse sentido, não deve ser tomado por ato
sigilo, por lidar com questões a seu ver perigosas para as consciências da vontade - não é, pois, pecaminoso.
frágeis, e que só vem a público porque o bispo se indigna com a Assim, o que Hobbes faz é em grande parte desculpabilizar a
"impiedade" hobbesiana. intenção, se comparado com o exame de consciência rigoroso e quase
3. Alguns pensam que estar obrigado e continuar obrigado seriam a masoquista que era recomendado por boa parte dos credos protestantes,
mesma coisa, entre as quais haveria uma distinção meramente de palavras. especialmente os sectários. Essa martirização da alma, aliás, Hobbes
Direi então claramente que um homem estáobrigado por seus contratos, isto verbera no começo do Bebemotb, dizendo que foi justamente incutindo nos
é, que ele tem o dever de cumpri-Ios porque assim o prometeu; mas que a rapazes a idéia de que constitui pecado o encanto que eles sentem,
lei o mantém obrigado, isto é, que ela o compele a executar sua promessa, naturalmente, à visão de um
por temor ao castigo fixado em lei. (Nota de Hobbes).

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...

Do Cidadão Notas

belo corpo feminino, que os pregadores sectários conseguiram apoderar-se quis muito encontrá-Ia. Porém, não encontrando nenhuma, indaguei então
de suas consciências, culpabilizadas, e voltá-Ias contra o poder do rei. que nome Deus dá a homens a quem tanto detesta. Ora, assim fala Deus do
7. Esta passagem é uma crítica em regra à common law - a principal ateu: Disse o néscio (fool) no seu coração: Não há Deus. E é por isso que
tradição jurídica inglesa -, que traduzimos geralmente como direito coloco o seu pecado no mesmo gênero a que Deus o refere. E depois
consuetudinário ou costumeiro. Na common law há duas referencias básicas mostro que eles são inimigos de Deus. Ora, considero mais duro dar a
como fundamento das leis. Uma é a remissão a uma idéia de justiça que alguém o nome de inimigo que o de injusto. Finalmente, afirmo que a esse
precede o funcionamento de um poder legislativo e que, por isso mesmo, título eles podem ser justamente punidos tanto por Deus quanto pelos ma-
nega a existência de uma soberania tal como Hobbes a define. A outra é o gistrados supremos, e assim de forma alguma desculpo nem atenuo o seu
papel dado ao juiz para definir, com base em tais princípios gerais sobre a pecado.
justiça, o que é legal ou não. Esse poder, aliás, se estende do juiz Quanto a eu ter dito que pela razão natural é possível conhecer a
legalmente constituído ao intérprete, digamos, autônomo, de existência de Deus, não quis com isso afirmar que todos os homens
modo que se mesclam uma jurisprudência dos tribunais, documentada, e poderiam conhecê-Ia - a menos que se pense que, porque Arquimedes
uma tradição mais ampla de discussões e do equivalente inglês dos descobriu através da razão natural a proporção que o círculo mantém com o
jurisconsultos - Littleton, Edward Coke, em es quadrado, disso se segue que cada pessoa do vulgo poderia chegar à mesma
pecial. É assim que se deve entender a importância conferida na common conclusão. Digo, portanto, que embora pela luz da razão possam alguns
law ao costume: este não vale em si, mas porque serve de explicitação, no conhecer que há um Deus, contudo não podem conhecê-Io os homens que
tempo, de regras natural e mesmo divinamente válidas. se empenham continuamente na busca dos prazeres ou de riquezas e de
Por isso, têm os common lawyers que limitar o alcance das leis honras, ou aqueles que não estão afeitos a raciocinar direito, ou são
escritas, que na verdade (é o que está implícito neste capítulo) devem sua incapazes disso, ou não se importam com fazê-Io, bem como, em último
autoridade não a serem escritas, mas a serem assinadas, ou promulgadas, lugar, os néscios Cfools). (Nota de Hobbes).
por quem tem poder para tanto. O que Hobbes diz é que o saber técnico ou 9. Sorbiere: "ou pelos reis que Deus estabeleceu abaixo de sua
mesmo jurídico dos "sacerdotes da justiça" - como alguns destes juristas se majestade". É uma interpretação que levaria a afirmar um direito divino dos
concebiam - é reis, de modo que parece equivocada.
insuficiente para fazer leis, que só existem enquanto feitas ou, pelo menos, 10. Sorbiere deve ter estranhado essa intrusão de um episódio pagão
claramente toleradas pelo governante. na religião cristã, e por isso esclarece ("como os gigantes outrora foram
8. Muitos me criticam por ter referido o ateísmo à imprudência, e não punidos na fábula, quando quiseram subir ao céu, e atacar...") e põe a
à injustiça; alguns até chegam a dizer, por essa razão, que não me mostrei divindade no plural ("... os deuses"), de modo a que não pairem dúvidas de
um inimigo tão implacável quanto deveria que a história se passa no Olimpo.
dos ateus. Objetam, além disso, que como afirmei em outra passagem que 11. Hobbes, embora argumente bem, dentro de sua teoria, na verdade
pela razão natural se pode conhecer que Deus existe, deveria também deforma a teoria da obediência passiva. Esta representava a posição de
reconhecer que o ateísta peca pelo menos contra a lei de natureza, e por cidadãos ingleses divididos em sua lealdade ao soberano e à religião, e que
isso não seria culpado só de imprudência, porém igualmente de injustiça. temiam pecar caso obedecessem ao
Mas sou inimigo tão ferrenho dos ateus que procurei com empenho rei, mas sabiam que também pecavam e mesmo traíam a pátria se o
alguma lei pela qual os pudesse condenar por injustiça, e enfrentassem. Sua saída era, então, uma espécie de martírio: não
seguiriam, por consciência, certas coisas que o rei Ihes ordenasse fazer,
mas acatariam sem resistência a pena que Ihes fosse

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Do Cidadão
Notas

infligida. Esta posição se difundiu mais ainda com a sucessão de Jaime II


ao trono (que ocorreu em 1685, mas era debatida desde o fim dos anos 70, 2. A versão inglesa que Hobbes utiliza, por empregar construções
com Hobbes ainda vivo): sendo ele católico romano, e como rei chefe de adversativas (embora no infinito), deixa clara a oposição entre o fato de
uma Igreja protestante, a anglicana, que deviam fazer aqueles que fossem Deus reinar e a inutilidade de se impacientarem as nações e de se comover
leais súditos e fiéis protestantes? Foi isso o que levou vários, primeiro a a terra. Traduzindo literalmente: "O Senhor é rei, embora se impaciente o
defender seu acesso ao trono, e, depois, quando sua política se revelava povo; está assentado entre os querubins, embora a terra se inquiete como
desastrosa, a protestar, acatando porém o castigo (o caso dos sete bispos nunca."
que o rei mandou processar - e dos quais pelo menos um, quando ele foi 3. Uma pequena particularidade de linguagem: Hobbes, que
deposto, lealmente o acompanhou no exílio). começou a frase com um sujeito no plural, depois de mencionar Deus
O curioso é que o próprio Hobbes, neste mesmo capítulo, disse que a passa o verbo e o possessivo para o singular (o que não pude conservar na
cidade não pode ordenar o que for contra o próprio Deus. Assim, ele tradução).
mesmo dá alguma validade à posição dos obedientes passivos. Seu grande 4. Se a algum leitor esta passagem parecer muito dura, peçolhe que
argumento do Leviatã, que consiste em dizer que obedeçamos ao rei até considere discretamente (with a silente thought), no caso de haver dois
quando ele mandar algo contra Deus, porque o pecado será dele (o que Onipotentes, qual deles seria obrigado a obedecer ao outro. E penso que
justifica o grande caso histórico a propósito do qual corre essa discussão, o ele confessará que nenhum teria tal obri
dos holandeses obrigados pelo Xogum a pisar num crucifixo para manterem gação. Ora, se isso for verdade, igualmente será verdade o que
comércio em Nagasaki), já aparece no Do Cidadão mas coexiste, estranham antes afirmei: que, se os homens estão sujeitos a Deus, é por não serem
ente , com essa proposição. Fica, assim, difícil negar o direito ao livre onipotentes. E em verdade, quando nosso Salvador advertiu a Paulo -
exame e todo o resto que, ao ver de Hobbes, é justamente o que faz
que naquele tempo era inimigo da Igreja - para que não se batesse
contra o aguilhão, parecia exigir dele que obedecesse pela simples razão
esboroar-se a obediência ao soberano.
de que não tinha força bastante para resistir. (Nota de Hobbes)
Finalmente, Hobbes permite uma caricatura dos obedientes passivos
5. Esta passagem é interessante porque, imediatamente depois de pôr
ao dizer que eles convertem o castigo em preço. Essa passagem reaparece
no mesmo plano o medo e a esperança como razões (ou causas: Hobbes
no Leviatã, mas com sentido diferente e em outro contexto, quando ele diz
usa mais esta segunda palavra em inglês, e a primeira em latim) para
que, se a lei proíbe mas fixa uma multa, esta pode em certos casos ser
obedecermos ao poder, ele no que se segue suprime a esperança para ficar
entendida como "o preço do privilégio". Mas ali o contexto é mais discreto,
só com o medo, o qual ele identifica, por sua vez, com a consciência de si,
provavelmente aludindo a uma questão menor, como a daqueles que eram
isto é, a consciência que o homem tem de sua fraqueza.
multados por terem ocupado sem permissão as florestas do rei.
Mas é bom não superestimar este papel do medo em Hobbes: pois tal
paixão tem quase sempre, como acompanhante, a esperança, e seria grave
equívoco separá-Ias ou, como quase toda a literatura a respeito fez, dar ao
medo o papel de chave na constituição do Estado hobbesiano.
6. Poderíamos traduzir honour, no segundo sentido, como
"honraria"; e worship, além de "cultuar", também poderia dizer-se
Parte /lI "adorar" .
RELIGIÃO 7. Protestante, Hobbes aqui condena a "idolatria" católica, que
representa Deus figurando-o, e chegara a ponto de transformar a
Capítulo XV veneração, que os doutores da Igreja admitiam em relação

1. Este capítulo corresponde ao que no Leviatã tem o número XXXI,


"Do reino de Deus por natureza".

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391
.
Do Cidadão Notas

às imagens sagradas (porque representavam ou rememoravam o sagrado), 2 No original, covenant, que geralmente traduzimos como
em adoração ou culto, como se elas fossem sagradas em si mesmas. A pacto, mas aqui pode ser aliança. Ver também a nota seguinte.
Reforma implicou, inclusive na Inglaterra, uma forte corrente iconoclasta, 3. Na tradução de Ferreira, concerto; seguimos aqui o rei Jaime
que até destruiu lugares santos, por entendê-Ios ccmo supersticiosos e (covenant), até porque é o termo que dá título ao capítulo
mesmo sacrílegos.
em que estamos e porque tem papel essencial no pensamento de Hobbes.
8. Contra Descartes, e a idéia de que temos uma idéia inata de infinito
4. Rei Jaime: "a terra onde és estrangeiro" - ou, como se dizia,
ou de peifeição. Hobbes dirá que estes termos ou são negativos ("infinito")
peregrino.
ou superlativos, e.expressam, não nosso conhecimento, mas nossa
5. Os versículos inteiros: "Ora o Senhor disse a Abraão: Saite da tua
ignorãncia.
9. "Quem modela rostos sagrados no ouro ou no mármore / terra, e da tua parentela, e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei.
Não cria deuses; cria-os, sim, quem reza." E far-te-ei uma grande nação, e abençoarte-ei, e engrandecerei o teu nome;
10. No inglês, sign, que temos traduzido ora como sinal e tu serás uma bênção."
(quando é a forma mais correta em português), ora como signo. 6. Os versículos 14 e 15: "E disse o Senhor a Abraão, depois que
11. Afirmamos, no parágrafo 14 deste capítulo, que quem atribui Lote se apartou dele: Levanta agora os teus olhos, e olha desde o lugar
limites a Deus transgride a lei natural relativa ao culto de Deus. Ora, quem onde estás, para a banda do Norte, e do Sul, e do Oriente, e do Ocidente;
o adora numa imagem lhe atribui limites. Portanto, faz o que não deveria Porque toda esta terra que vês, te hei de
fazer; e esta passagem parece contradizer o que dissemos antes. Devemos dar a ti, e à tua semente, para sempre."
portanto considerar, primeiro, que quem recebe ordens da autoridade não 7. Em Abraão.
impõe nenhum limite a Deus - tais limites são impostos por quem o manda 8. No capo XV, parágrafo 14, mostramos que esse tipo de
assim proceder. Quem presta culto sem vontade, não obstante, presta culto culpo é irracional. Mas, se ele for praticado por ordem de uma cidade, a
de qualquer forma, só que fica de pé ou se ajoelha, conforme o que seu quem a palavra escrita de Deus não é conhecida ou pela qual não tenha
soberano legítimo mandar. sido recebida, tal culto, conforme mostramos (parágrafo 18), se mostra
Em segundo lugar, afirmo que devemos obedecer, não em todos os racional. Contudo, lá onde Deus reina pelo pacto, e onde ele
tempos e lugares, mas supondo-se que não haja outra re expressamente advertiu para não ser cultuado dessa maneira, como é o
gra para cultuar a Deus além dos ditados da razão humana; pois, nesse caso, caso do pacto que celebrou com Abraão, pouco importa se esse culto for
a vontade da cidade age como razão. Mas no reino de Deus estabelecido oferecido por ordem da
pela aliança, seja esta a nova ou a antiga, onde a idolatria está cidade ou contra ela, sempre será malfeito. (Nota de Hobbes)
expressamente proibida, ainda que a cidade nos mande adorar desta forma, 9. Rei Jaime: "o meu tesouro".
não o deveremos fazer. Considerando isto, quem tiver suspeitado que 10. Rei Jaime: "um reino de sacerdotes".
houvesse alguma repugnância entre esta passagem e o parágrafo 14
11. A passagem completa é a seguinte (e abrange o versícu
seguramente mudará de idéia. (Nota de Hobbes)
10 32): "Eis que dias vêm, diz o Senhor, em que farei um pacto novo com
a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme o pacto que fiz com
seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito;
porque eles invalidaram o meu pacto, ainda que me desposei com eles, diz
o Senhor."
Capítulo XVI 12. No sentido de: "será executado". A parte substituída em Hobbes
pelo "etc." é a seguinte: "... que não conheceste, e sirvamo-Ios; Não
1. A parte do Leviatã que melhor corresponde a esta é o capítulo XL, ouvirás as palavras daquele profeta ou sonhador de
"Dos direitos do reino de Deus em Abraão, Moisés, nos Sumos Sacerdotes
e nos Reis de Judá".

392 393
T
Notas
Do Cidadão

cia, e o deu a conhecer a Jacó, seu servo, e a Israel, seu bem-amado"


sonhos: porquanto o Senhor Deus vos prova, para saber se amais o Senhor
(Bíblia de Jerusalém, pp. 125-6).
vosso Deus com todo o vosso coração, e com toda a vossa alma. Após o
No v. 38, além disso, enquanto Hobbes dá ao verbo o sujeito ele, que
Senhor vosso Deus andareis, e a ele temereis, e os seus mandamentos
guardareis, e a sua voz ouvireis, e a ele servireis, e a ele vos achegareis..." se refere a Deus, a Bíblia de Jerusalém fala em ela, ou seja, "a ciência".
13. A parte abreviada é: "... que é fiel em toda a minha casa". 14. Rei 9. "... este as apascentará, e este lhes servirá de pastor. E eu, o
Jaime: "e não em discursos obscuros". Senhor, lhes serei por Deus, e o meu servo Davi será príncipe no meio
15. Números 11, 28-29. deles: eu, o Senhor, o falei..."
16. Deus fala a Moisés. 10. "... e farei cessar a besta ruim da terra, e habitarão no
deserto seguramente, e dormirão nos bosques."
11. "... que não passará, e o seu reino se não destruirá." A ex
~ pressão "o ancião dos dias" quer dizer "o mais antigo dos dias".
,
12. Também se traduz como "rebento"; em inglês, the
Capítulo XVII
Branch, o ramo.
1. Hobbes usa o termo covenant, que Ferreira D'Almeida traduz por 13. Vespasiano foi proclamado imperador no ano 69, quando dirigia a
"concerto" e que no uso corrente em português, a propósito da guerra da Judéia; deixou então a seu filho Tito a tarefa de concluí-Ia.
Bíblia, se costuma traduzir como "aliança". Contudo, dada a 14. Apesar do "etc.". nada falta aos versículos 7 e 8.
importância da idéia do covenant como pacto na obra de 15. Rei Jaime: lowly.
Hobbes, geralmente usaremos essa tradução. 16. Sic: renovar o novo. Latim: renovar a aliança...
2. O que se segue é o versículo 19. 17. "Deus seu Pai" (God even his Father) é a tradução que
3. Rei Jaime: "o governo". Hobbes utiliza; a de Ferreira d'Almeida diz: "a Deus, ao Pai".
4. "... o espírito de sabedoria e de inteligência, o espírito de 18. "... ou impuro, ou avarento, o qual é idólatra". No inglês:
conselho e de fortaleza, o espírito de conhecimento e de temor do "entrará no reino de Deus e de Cristo".
Senhor. E o seu deleite será no temor do Senhor..." 19. São João 18, 36. (A indicação desta, e de outras passa
5. "... e repreenderá com eqüidade aos mansos da terra, gens que não aparecem no corpo do texto inglês, é do latim.) 20. São João
porém... " 3, 17.
6. Hobbes termina no versículo 4; o 5, que ele havia indicado mas 21. São João 12, 47.
nâo cita, é o seguinte: "Porque a justiça será o cinto dos seus 22. São lucas 12, 14.
lombos, e a verdade o cinto dos seus rins." 23. São Mateus 10, 16.
7. No latim, os capítulos mencionados são 51, 52, 53, 54, 56,
24. São João 5, 22.
60, 61 e 62.
25. São Mateus 5, 17.
8. Baruc não é reconhecido como sagrado pelos judeus nem
26. São Mateus 5, 19.
pelos protestantes, figurando entre os chamados livros deuterocanônicos. A
27. São Mateus 13, 31-33.
passagem citada por Hobbes inclui, na verdade, o começo do versículo 36
28. "... pela presença do Senhor."
e o versículo 38. Os vv. 35-37 são os seguintes: "Ele (= aquele que sabe
29. É notável como esta passagem é interpretada por Hobbes
todas as coisas) as chama e elas (= as estrelas) respondem: 'Aqui
como se a linguagem fosse figurada e não literal: não se trata de
estamos', cintilando com alegria para aquele que as fez. É ele o nosso
Deus, e nenhum outro se contará ao lado dele. Foi ele quem descobriu
todo o caminho da ciên

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T
Do Cidadão Notas

acudir aos pobres e de nivelar as riquezas, mas de uma provação que Cristo 50. A passagem é na verdade do V. 11. O que diz São Paulo é: "Já
impõe aos homens para mostrarem que têm fé nele. por carta vos tenho escrito, que não vos associeis com os que se
30. "Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor." 31. São prostituem; isto não quer dizer absolutamente com os devassos deste
João 3, 36. mundo, ou com os avarentos, ou com os roubadores, ou com os idólatras;
32. São João 3, 18. porque então vos seria necessário sair do mundo. Mas agora vos escrevi
33. "... de minha casa, me sair ao encontro, voltando eu dos que não vos associeis com aquele que, dizendo-se irmão, for devasso, ou
filhos de Amon em paz... " avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com o tal
34. Como se sabe, sai da casa de Jefté, para recebê-Io contente com nem ainda comais" (vv. 9-11; grifo meu).
sua chegada e vitória, a sua única filha (v. 34), que ele, desolado, sacrifica. 51. O exemplo que Hobbes nos propõe é malicioso. O eixo de seu
35. Ou: o fazer milagres. argumento contra o poder do clero consiste em negar a pretensão universal
36. "... por esta carta, notai o tal (= o alguém), e não vos mistureis ~ de qualquer Igreja; ora, a única das Igrejas cristãs ocidelltais que tem tal
com ele, para que se envergonhe. Todavia, não o tenhais como inimigo, pretensão é a de Roma; então, ele aceita sua jurisdição em sua diocese, mas
mas admoestai-o como irmão" (vv. 14-15). não fora dela, ou em outras dioceses e reinos somente enquanto quem neles
37. O sujeito da frase é Saulo, o futuro apóstolo, São Paulo. 38. Ou, se tiver o poder civil assim o tolerar. Há, porém, argumentos em favor do
se preferir, aliança. primado da Igreja Romana; aqui, então, Hobbes insinua que a de
39. Ou seja, aquela que não se pode convocar legalmente a Jerusalém teria uma primazia sobre a de Roma, porque lá ocorreu o
uma assembléia - que não é uma persona. magistério de Cristo.
40. "O romano vitorioso possuía já o mundo inteiro." 52. Latim: "lesa-majestade".
41. Atos dos Apóstolos 1, 23.
42. O texto latino, equivocadamente, aponta o capo 14, V. 13. 43. Na
trad. Ferreira d'Almeida, presbíteros.
44. "Por Paulo", explica o texto latino.
45. "... cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais
constituamos sobre este importante negócio." Capítulo XVIII
46. No original, acknowledgment, que também se poderia 1. Corresponde ao capítulo XLIII do Leviatã, "Do que é
traduzir como "confissão". necessário para alguém entrar no reino dos céus".
47. "... para que pela boca de duas ou três testemunhas toda 2. Latim: "ao príncipe" - como, aliás, está no texto bíblico referido.
a palavra seja confirmada." "Advogado" é um curioso ato falho de Hobbes, que por isso mesmo
48. A passagem citada é Mateus 18, 18, como no texto latino. No mantivemos.
inglês, Hobbes faz, na verdade, uma síntese dessa passagem e da 3. Hobbes cita a Bíblia saltando pequenas passagens do texto, o que
anteriormente referida de João (cap. 20), de que resultaria o seguinte: Em era inteiramente aceitável em seu tempo; aqui ele omite: "e dá-o aos
verdade vos digo que àqueles a quem ligardes os pecados na terra serão pobres, e terás um tesouro no céu". É preciso lembrar, porém, que esta
também eles ligados no céu, e àqueles a quem desligardes os pecados na passagem já fora citada, e mesmo comentada (como ilustração da fé).
terra serão também desligados no céu. 4. Inglês, we think. Latim: "que opinamos". Sorbiere: "então nossa
49. Latim: "o fornicador". certeza não é mais que uma opinião e não ultrapassa os limites da
verossimilhança.
5. Latim: "opinar".

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T
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Notas

6. Embora considere que esta afirmação seja provada de maneira


reino de Deus apenas graças a ele, sem o resto - como foi o caso do ladrão
suficiente pelas razões que se seguem, ainda assim penso que vale a pena
na cruz, do eunuco batizado por Filipe, dos dois mil homens convertidos de
eu proceder a uma explicação mais ampla - porque percebo que, sendo
uma só vez por São Pedro. Mas, se desagradar a alguém que eu não
ela um tanto nova, pode eventualmente vir a desagradar a alguns teólogos.
considere condenados por toda a eternidade a todos aqueles que não deram
Primeiro, portanto, quando digo que para a salvação é necessário o
assentimento interno a cada um dos artigos definidos pela Igreja (colocando
artigo segundo o qual "Jesus é o Cristo", não quero dizer que seja
eu como condição ademais que eles não contradigam tais artigos, pois, se
necessária apenas a fé, mas também exijo a justiça, ou aquela obediência forem chamados a obedecê-Ios, devem submeter-se), não saberei mais o
que se deve às leis de Deus - isto é, a vontade de viver dentro da justiça que lhes dizer. Porque os mais evidentes testemunhos da Sagrada Escritura,
(rigbteously). que aqui se seguem, impedem-me de alterar minha opinião. (Nota de
Segundo, não nego que a profissão de outros, e muitos, artigos (desde Hobbes)
que tal profissão seja ordenada pela Igreja) também seja necessária para a 7. Pequena diferença, no inglês, da versão do rei Jaime, onde está
salvação. Mas, considerando que a fé é interna, e a profissão, externa, apenas "Filho de Deus". Mais adiante, no parágrafo 10 do mesmo capítulo,
afirmo que apenas a primeira é propriamente fé; a segunda faz parte da Hobbes dirá "Filho de Deus", o que é um interessante exemplo da liberdade
obediência. Assim, aquele artigo basta, sozinho, para a crença íntima com que então se lidava com as citações, mesmo sagradas.
Cinward), ainda que não seja suficiente para alguém se professar 8. Em inglês: tbose wbo bave turned tbe world upsíde down. Esta
externamente como cristão. expressão conheceu especial voga durante o período em que Hobbes está
Finalmente, ainda que eu tivesse afirmado que a penitência sincera e escrevendo; ao seu uso, e a seu significado, especialmente por parte
íntima pelos pecados fosse a única coisa necessária para a salvação, isso daqueles que entre 1640 e 1660 estiveram dispostos a revolucionar o
não deveria ser considerado como um paradoxo: porque supomos que a mundo, Christopher Hill dedicou seu livro O Mundo de Ponta-Cabeça
justiça, a obediência e uma reforma do espírito (mínd) estejam incluídas (trad. bras., São Paulo, Companhia das Letras, 1987).
entre todas as virtudes ali implicadas. 9. Falta, na versão do rei Jaime, "pelas Escrituras".
Assim, quando digo que a fé em um único artigo basta para a 10. S. Lucas 23, 42.
salvação, não é o caso de estranharem tanto; porque nesse artigo muitos 11. "... na verdade o dia a declarará, porque pelo fogo será
outros estão já incluídos. Pois as palavras Jesus é o Cristo significam que descoberta, e o fogo provará qual seja a obra de cada um..." 12. Falta a
Jesus era a pessoa que, segundo Deus prometera através de seus profetas, conclusão: "... como pelo fogo".
viria ao mundo para estabelecer seu reino. Querem dizer, então, que Jesus é 13. Quem pede para ser batizado é o eunuco, já menciona
o filho de Deus, o criador do céu e da terra, que ele nasceu de uma virgem, do anteriormente na nota de Hobbes no parágrafo 6.
e morreu pelos 14. Passagem em que Hobbes vai bastante longe; noutros lugares, e
pecados daqueles que nele acreditassem; que foi Cristo, isto é, rei; que no Levíatâ, só exigirá o martírio de quem efetuou uma profissão
ressuscitou (porque, senão, não poderia reinar) para julgar o mundo, e para suplementar (de fé), isto é, do sacerdote. Como todos os demais, não
recompensar a cada um segundo suas obras, porque senão não seria rei; e, pecamos no caso de obedecer ao soberano, ainda que ele mande cometer
também, que os homens ressuscitarão, porque se não for assim não haverá uma barbaridade, não há por que nos inquietarmos demais.
como julgá-Ios. 15. "Religiosas" só aparece no latim, mas está subentendido pela
Desta forma, o símbolo dos apóstolos está contido por completo neste seqüência da frase.
artigo. Apesar disso, considerei razoável resumi-Io assim, porque descobri
que muitos homens foram admitidos no

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16. Latim: "de seu fundador".


17. Hobbes já insinuou - e o dirá com mais clareza na parte
4 do Leviatã - que a Igreja romana é a sucessora do Império romano, de
modo que tem uma orientação essencialmente pagã. Aqui ele confirma
essa tese, lembrando que era costume o Senado proclamar deuses os
imperadores falecidos e, a partir de um certo momento, já em vida.
18. Este apelo final à tolerância em matéria religiosa - tolerância
condicional, como vimos, e no interior de um espaço determinado, o do
cristianismo - retoma um tema já aludido anteriormente por Hobbes, o da
polêmica, no cristianismo primitivo, entre os que judaizavam e os gentios
que se converteram a Cristo. Muitos dos primeiros pensavam que deviam
continuar respeitando os interditos alimentares e higiênicos do judaísmo.

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