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OODever

Dever
Transcendental:
Transcendental:
Uma
Uma Reformulação
Reformulação
do
doArgumento
Argumento
Hoppeano
Hoppeano
João Marcos Theodoro
João Marcos Theodoro
Artigo ampliado. Julguei pertinente reali-
zar alguns aperfeiçoamentos na argumentação
de modo a tornar o artigo mais consistente e
claro. Dado que o pensamento sempre se aper-
feiçoa, nunca atingindo a perfeição, é possível
ulteriores modificações surgirem, vindo a lapi-
dar ainda mais nossa concepção acerca dessa
teoria ética tão revolucionária.

“Meu argumento não é dedutivo; é


transcendental.” – HHH

Q
uero fazer uma reconstrução infor-
mal do argumento de Hoppe. Um
amigo meu insiste em perguntar-
me: “Mas como é o processo dedutivo da ética
argumentativa para atingir o direito de propri-
edade?” Realmente, não é tão claro e simples
quanto parece. Acredito que o que há de mais
importante no argumento hoppeano é seu ca-
ráter transcendental. Hoppe não deduz um
dever a partir de um ser. Ele descobre um de-
ver intrínseco à comunidade comunicante. Ter

29 de julho de 2017. Discussão em AncapChannel. □
isso em mente é fundamental para começar a
compreender a ética da argumentação.
Sejamos ainda mais precisos: o ponto de
partida de Hoppe é a pragmática-transcenden-
tal apeliana. As proposições pragmático-trans-
cendentais, recordemos, são aquelas que não
podem ser negadas sem contradição performa-
tiva, nem ser justificadas sem petitio principii.
Elas expressam realidades que são inerentes
à mente racional, compondo o próprio pano
de fundo do pensamento e do discurso. São
proposições verdadeiras e absolutamente cer-
tas, portanto. Entre elas, há principalmente
juízos de fato, tais como “eu existo”. Isso é bas-
tante óbvio. Mas poderia existir entre elas uma
proposição de dever ser também?
Eu direi a mesma coisa que Hoppe disse,
mas de maneira um pouco diferente. O cami-
nho que eu adotei é certamente mais adequado,
uma vez que o núcleo da Ética e do Direito é
o dever, e não o direito subjetivo, que é ape-
nas um reflexo daquele. Em vez de olhar para
o reflexo, vamos nos virar e lançar os olhos
direto sobre o objeto de interesse, tomando-o
sob maior nitidez. O leitor deve ficar atento
para perceber que nós não faremos nenhuma
dedução. O que se segue é mera análise de
conceitos.
Vamos por partes. O que é propriedade? É
o controle exclusivo sobre um bem, em que o
proprietário pode excluir todas as outras pes-
soas do mundo de usar o bem e decidir fazer
com ele o que lhe aprouver. É a faculdade de
decidir sobre o uso do bem, sendo o senhor
absoluto do objeto. O que queremos provar
é a existência do direito subjetivo de possuir
propriedade. O que é um direito subjetivo?
Segundo Miguel Reale, é a “possibilidade de
exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as
normas de direito atribuem a alguém como
próprio”. Alguns definem como a “faculdade”
de exigir algo que o Direito garante. O direito
de propriedade é um direito subjetivo. Que-
remos, então, provar que todo indivíduo está
justificado para exigir o dever, imposto erga
omnes, de respeito ao exercício do seu controle
exclusivo sobre seus bens.
O conceito de propriedade aqui adotado
merece certo esclarecimento. Embora o con-
ceito de propriedade possa ser tomado por
um conceito normativo, aqui eu o tomo em
sentido meramente descritivo, econômico, sob
influência de notável escrito de Jörg Guido
Hülsmann sobre o tema1. Esse conceito deno-
mina uma espécie de relação entre o homem
e as coisas, a saber, a relação que o homem
estabelece com elas tão logo as aproprie, as
tome para si, passando elas então a pertence-
rem a ele, a fazerem parte de seu domínio. Essa
relação só existe no mundo da ação humana
(ou mundo cultural, como diria Reale), de vez
que essa relação é intrínseca a seres racionais
que agem num mundo físico com objetos físi-
cos escassos, sem exclusão do próprio corpo.
Pode ocorrer de todos os objetos apropriados
do mundo pertencerem a uma só pessoa ou a
vários grupos, mas sempre estarão sob propri-
edade de alguém ou então livres para serem
apropriados – se tal não for impossível con-
forme a natureza do objeto. A noção de per-
tencimento também parece normativa, mas
não o é no sentido aqui tomado, conquanto
possa soar normativo quando já se tem arrai-
1
HÜLSMANN, Jörg Guido. The A Priori Foudations of Austrian
Law and Economics. □
gado dentro de si o valor segundo o qual se de-
vem respeitar os pertences alheios. O sujeito,
enquanto agente, estabelece relações com as
coisas, e uma das espécies dessa relação é a
de propriedade, em que o sujeito incorpora o
objeto ao patrimônio sob seu domínio, e assim
a coisa se torna dele. Guido Hülsmann bus-
cou fazer uma análise descritiva do conceito
de propriedade e nos surgiu com o seguinte,
posto sumariamente:
As observações a seguir renderam três ca-
racterísticas gerais da propriedade no sentido
legal. Primeiro, a propriedade, nesse sentido,
é parte de pessoas humanas, sejam indivíduos,
sejam grupos, mas em qualquer caso é de hu-
manos. Segundo, a propriedade guarda uma
relação particular de “pertencimento” a uma
pessoa de quem ela é parte. Essa relação é
comumente chamada de propriedade e a res-
pectiva pessoa é chamada de proprietário. Ter-
ceiro, não se pode ser o dono de uma coisa se
não se pode controlar essa coisa.
Essas características bem gerais da propri-
edade não nos diz nada sobre como a proprie-
dade está relacionada com cada pessoa especí-
fica. Elas não determinam quem possui o quê,
mas meramente o que significa uma coisa ser
propriedade, independentemente de a quem
pertença.2
Essa análise nada nos diz sobre se a coisa
deve ser do dono, nem se existe uma obriga-
ção geral de respeitar sua propriedade, nem
até que ponto deveria ir esse respeito. Daí ser
possível o conceito de propriedade ilegítima,
em que o objeto apropriado não deveria ser do
dono atual, mas de outrem, conforme critérios
normativos.
Em outras palavras, tomo o conceito de
propriedade em seu sentido econômico, por
assim dizer, e não propriamente jurídico, em-
bora Hülsmann tenha dito que aquelas carac-
terísticas são da propriedade “no sentido le-
gal”. Dado que a análise de Hülsmann não
contém proposições de dever ser, não creio
que seja apropriado dizer que ele está lidando
com esse conceito em seu sentido legal. Valha-
nos Carl Menger para elucidar essa concepção
concreta:
2
Idem. □
Consequentemente, a Economia humana e
a propriedade têm origem econômica comum,
pois ambas encontram seu fundamento último
no fato de haver bens cuja oferta é menor do
que a respectiva demanda; por conseguinte, a
propriedade, da mesma forma que a Economia,
não é invenção arbitrária, mas simplesmente
a única solução prática possível que a própria
natureza (isto é, a defasagem entre a demanda
e a oferta de bens) nos impõe, no caso de todos
os bens denominados econômicos.
É, pois, impossível eliminar a instituição
da propriedade; isso só seria possível elimi-
nando-se a causa que necessariamente levou a
instituir-se a propriedade; em outros termos, a
instituição da propriedade só poderia ser elimi-
nada se, ao mesmo tempo, fôssemos capazes
de aumentar a quantidade de todos os bens
econômicos ao ponto de se poder atender por
completo à demanda de todos os membros da
sociedade, ou então se fôssemos capazes de di-
minuir as necessidades humanas até o ponto
em que as quantidades disponíveis desses bens
fossem suficientes para atender plenamente a
todos.3
A propriedade é uma instituição inerente
à sociedade de seres racionais agindo num
mundo de escassez. A questão de se a pro-
priedade deve ser respeitada ou de como ela
deve ser organizada é outra, pertencente à se-
ara da Ética. Propriedade não significa direito
de propriedade privada. Por isso que Menger
conclui nestes termos:
Eis porque a propriedade, no sentido visto
acima, é inseparável da economia humana em
sua dimensão social; e qualquer plano de re-
forma social só poderá empenhar-se no sen-
tido de uma adequada distribuição dos bens
econômicos, mas não poderá abolir a institui-
ção da propriedade como tal.4
Ou seja, de qualquer maneira alguém terá
de decidir sobre o uso dos bens escassos, seja
um ditador absoluto, sejam grupos eleitos, seja
cada indivíduo privadamente. O que pode va-
riar é a distribuição dos títulos de propriedade
entre os membros da sociedade, mas a institui-
ção da propriedade é inseparável da existência
3
MENGER, Carl. Princípios de Economia Política. □
4
Idem. □
de seres racionais num mundo de escassez. En-
quanto é possível conceber uma propriedade
que não deve ser (uma propriedade ilegítima),
é impossível conceber uma ordem social sem
propriedade.
Feito esse esclarecimento, provaremos pri-
meiro o direito de propriedade do indivíduo
sobre o próprio corpo. Em seguida, seu direito
sobre os bens externos por ele apropriados.
A questão de saber como um bem se torna
propriedade de alguém não será tratada aqui.
Primeiro: tem o agente propriedade sobre
seu corpo? É evidente que sim. É impossível
ele não controlar exclusivamente seu corpo.
Ele, e somente ele, pode decidir em última ins-
tância o que fazer com seu corpo. Aqui temos
uma proposição da ordem do ser. Mas tem ele
direito de exercer tal controle? Agora sim é
que buscamos uma proposição de dever ser.
Respondamos da seguinte forma: é possí-
vel justificar o contrário? Não é possível jus-
tificar a norma “eu não devo ter propriedade
sobre meu corpo”, porque isso nos renderia
uma flagrante contradição prática. Assim, te-
mos que é impossível justificar racionalmente
uma norma contrária à autopropriedade. Se eu
não posso justificar o não dever ser da proprie-
dade, só me resta o seu dever ser, uma vez que
não é possível uma terceira espécie de conduta
frente à propriedade de si e que essa afirmação
não contém nenhum tipo de contradição. Se
temos como inválida a afirmação de que não se
deve respeitar a autopropriedade, obtemos a
validade da afirmação de que se deve respeitar
a autopropriedade. Tertium non datur. O dever
ser da propriedade é o mesmo que o direito
de propriedade. Mas cuidado. Preste atenção
ao que foi dito e veja que não houve processo
de dedução a partir de premissas, mas apenas
análise de conceitos para que se pudesse com-
preender o que é o direito de autopropriedade
e por que ele é uma norma pragmático-trans-
cendental. Essa norma não pode ser deduzida
a partir de premissas anteriores porque ela
é uma condição de possibilidade da própria
comunicação. Ela vem automaticamente pres-
suposta em qualquer ato comunicativo com
significado, como a lógica. Nós não fizemos
uma demonstração, mas sim uma mostração.
Apontamos o dedo para o fato oculto.
Hans Kelsen nos explica que todo direito
é apenas o reflexo de um dever. O dever ante-
cede, do ponto de vista lógico, o direito. Por
isso eu preferi expor a ética argumentativa a
partir do dever por ela descoberto, e não do
direito subjetivo reflexo, como fez Hoppe. E as-
sim ficou para mim mais compreensível e rigo-
rosa a teoria. Mas tomemos outro ensinamento
de Kelsen. Normas não são proposições que
caibam nas categorias de verdadeiro e falso;
elas são, antes, válidas ou inválidas, e sempre
com respeito a uma norma anterior, até che-
garmos à norma fundamental (Grundnorm),
que se encontra no vértice do sistema e que
não se refere a nenhuma outra norma anterior.
No jusnaturalismo teológico, por exemplo, te-
mos como Grundnorm a norma “a vontade de
Deus deve ser obedecida”, ou algo que o va-
lha. No ordenamento jurídico constitucional,
a norma fundamental é aquela que diz que se
deve cumprir a constituição. Entretanto, essas
normas não possuem fundamentação racional.
São meros juízos de valor, cuja validade é a
mesma de quaisquer outros. Na teoria ética
libertária ocorre o mesmo? Por que se deve,
afinal, cumprir o dever de respeitar a autopro-
priedade, ainda que não possamos justificar o
contrário?
Aqui podemos nos valer de uma observa-
ção de Frank van Dun. Devemos cumprir esse
dever porque devemos agir conforme a razão.
Tal é a norma fundamental da teoria ética liber-
tária. O dever de agir conforme a razão, como
nos lembrou van Dun, é tão inegável quanto
qualquer outra proposição pragmático-trans-
cendental, uma vez que flagramos enredado
numa contradição performativa aquele que diz
“não devo ser racional” ou “devo agir injustifi-
cadamente”. Essas proposições são argumen-
tativamente injustificáveis, elas são, para usar
a terminologia de Frank van Dun, contradi-
ções dialéticas. Devemos respeitar o direito
de propriedade porque devemos respeitar os
ditames da Razão, que dessa forma nos im-
põe aquele dever. Do contrário, eu poderia
simplesmente dizer: “Por que eu deveria cum-
prir esse dever ao invés de agir de maneira
injustificada mesmo?” E a resposta é: porque,
é óbvio, eu também tenho o dever de seguir
os mandamentos da Razão e agir conforme
ela. Se é impossível justificar que eu devo agir
de maneira injustificada, eu devo então agir
justificadamente, o que me leva ao dever de
respeitar o direito de propriedade – única con-
duta não injustificável. Eu considero que essa
é que é a norma fundamental do edifício teó-
rico da ética libertária, porque ela se encon-
tra paralela ao direito de autopropriedade, no
mesmo patamar pragmático-transcendental,
e além disso abarca todas as conclusões deri-
vadas desse direito, servindo de princípio que
reúne todas as normas do Direito libertário
num todo sistemático, unitário e coeso.
A justificação filosófica do direito de pro-
priedade sobre bens externos segue o mesmo
raciocínio. É possível provar a existência do
dever de não respeitar a propriedade privada?
Absolutamente não, porque isso implicaria
uma contradição performativa. Para que se
justifique a afirmação “a propriedade deve ser
violada” é preciso exercer uma conduta (i.e.,
a argumentação) durante a qual não se estará
violando uma propriedade; estar-se-á antes
utilizando-a e respeitando-a, o que se nos afi-
gura como condição da possibilidade daquela
proposição. Então não nos resta terceira via.
Se é impossível justificar o dever de afrontar a
propriedade, assim temos estabelecido, trans-
cendentalmente, o dever oposto, o de respeitar
a propriedade. Ademais, sob o aspecto prático,
a constante e ininterrupta observância do de-
ver de violar a propriedade seria inexequível,
enquanto é perfeitamente possível viver de
acordo com o dever de respeitá-la. Como o di-
reito de propriedade, de que é titular o propri-
etário, é apenas o reflexo do dever, vinculante
erga omnes, de respeitá-la, eis absolutamente
justificado aquele direito. ■


Discussão em AncapChannel. Texto retirado de RothbardBrasil.□

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