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Introdução

Imagine que alguém pergunte a um hoppeano


qualquer: O que legitima a autopropriedade?
Naturalmente, a linha argumentativa a ser adotada,
ao menos inicialmente, é apontar para o fato da
autopropriedade ser condição formal necessária para
a possibilidade da justificação (por conseguinte, da
“legitimação”) de qualquer coisa que se queira
justificar (ou legitimar), na medida em que ela se
apresenta como pressuposto a priori do único meio
possível para ingressar numa justificação (ou
legitimação): a argumentação. Assim, qualquer um
incorre em contradição performativa se se dispõe a
dar razões “contra” a autopropriedade e toda tentativa
de justificação, porquanto ocorre por meios
argumentativos, deve estar em conformidade com
essa regra. Esta seria, sem dúvidas, uma resposta
satisfatória se já fosse considerado previamente a
validade ou legitimidade da fundamentação daquilo
que é suposto ser uma regra de (auto)propriedade.
A negação de uma regressão na justificação do
conceito de autopropriedade não culminaria em outra
coisa senão numa falácia da petição de principio uma
vez que se afirma a tese que se pretende demonstrar
verdadeira em uma das premissas, partindo do
pressuposto de que essa mesma conclusão seja
verdadeira em uma delas. É o que ocorre quando se
inclui o conceito de autopropriedade supondo
precedentemente sua validade na premissa que deve
servir de justificativa para a legitimidade da mesma.
Dito de outra forma, o problema pode ser descrito
aqui por meio da distinção não muito sutil
entre provar que A é condição para B,
e afirmarsimplesmente que A é condição para B
supondo desde já que A é válido. Sendo assim, se o
caminho a ser adotado para a justificação de uma
autopropriedade parte da constatação de uma
condição transcendental e/ou de uma contradição
performativa, então esta etapa da trilha, por sua
própria insuficiência justificativa, deve imediatamente
ser abandonada em função da busca das premissas
mais basilares da Ética Libertária. Esta busca deve
seguir, neste artigo, um esquema de regressão
podendo ao final encontrar e, se possível, justificar a
(verdadeira) Fonte de Normatividade [1] da ética
hoppeana.
Pressupostos da argumentação? E quanto
aos pressupostos da autopropriedade?
O que se quer dizer quando se pergunta o que
legitima a autopropriedade? Certamente se quer
apontar para algo relativo a uma instância que,
segundo um critério, conte como autopropriedade.
Em outras palavras, o que deve ser observado em
um estado de coisas ECpara que ele possa ser
considerado o EC de uma autopropriedade? Tendo
em mente essa problemática, observe o que diz
Hoppe em uma de suas mais recentes palestras
sobre a Ética da Argumentação e autopropriedade:
“Each person must
be entitled to exclusive
control or ownership of his physical body
(the very mean that he and only he can control
directly, as will) so as to be able to act
independently of one another and come to a
conclusion on his own, i.e., autonomously” [2]
Então, para Hoppe, o que conta como o EC de
uma autopropriedade é a instância em que se
observa num sujeito o controle exclusivo (pois
somente o sujeito tem controle do recurso escasso do
corpo) interno/direto (pois é diretamente através da
vontade – algo interno ao sujeito – que ele pode
controlar exclusivamente o recurso escasso do
próprio corpo) de um corpo qualquer (ora, só existe
autopropriedade se existe um corpo para ser
propriedade). Assim, o que conta como
autopropriedade é o controle interno exclusivo do
corpo. O leitor mais atento, principalmente o versado
em lógica deôntica, pode perceber que falta nesta
definição de “autopropriedade” uma partícula que a
dê a normatividade necessária para que possamos
considera-la um direito. Essa partícula deve residir aí
não por um mero capricho, mas deve se originar de
uma justificação anterior (falaremos sobre isto mais
tarde). É muito simples provar essa necessidade
pois, se assim não fosse, seria possível justificar o
Estado apenas adicionando ao final de sua definição
mais corrente a partícula “legítimo”. Tampouco
poderíamos ignorar a normatividade da
autopropriedade e muito menos a da propriedade
comum. Em relação a este último, podemos observar
em Hoppe uma resposta categórica:
“Property is thus a normative concept: a
concept designed to make a conflict-free
interaction possible by stipulating mutually
binding rules of conduct (norms) regarding
scarce resources”[3]
Ainda que se afirme a diferença da natureza da
autopropriedade em relação à propriedade comum,
não se pode negar, sob pena de violar a Lei de Hume
[4], que ambos são conceitos normativos, visto que
tratam-se de direitos legítimos. Faz-se necessário,
portanto, normas no tocante da autopropriedade
também:
“For even under these “ideal”
circumstances, every person’s physical body
would still be a scarce resourse and thus the
need for the establishment of property rules,
i.e., rules regarding people bodies, would
exist” [5]
Dessa forma, é necessária a passagem do
empiricamente factual (o controle interno exclusivo do
corpo) para algo normativo (como o controle interno
exclusivo legítimo do corpo/ direito de controle
interno exclusivo do corpo). Essa passagem, no
entanto, não pode ocorrer de maneira arbitrária (por
estipulação ou “porque eu quero”). Ela deve
acontecer segundo um critério justificado mediante o
qual A conta como sendo de direito de B (A como
sendo propriedade de B). Se não há esta passagem,
já seria constatado sem mais delongas a violação da
Lei de Hume que determina que de proposições
empiricamente factuais (como o controle interno
exclusivo do corpo) é impossível inferir conclusões
normativas (como o controle interno exclusivo
legítimo do corpo). É o que se verificaria, por
exemplo, ao se afirmar que, no caso do corpo, posse
(ou, como frequentemente tem se utilizado, uso) e
propriedade se confundem ou mesmo “se
sobrepõem” ao se admitir a concepção de
(auto)propriedade normativa aceita por Hoppe. É
nesse sentido que essa passagem criteriosa é
necessária. Veremos em seguida se Hoppe procura
estabelecer algum critério justificado ou se é possível
ao menos pressupo-lo como “formalizador” dessa
passagem.

Autopropriedade, Propriedade e
Apropriação
Não é muito difícil aceitar que um tal critério
justificador da passagem do factual para o normativo
seja um critério de apropriação. A passagem do
controle interno exclusivo do corpo para
autopropriedade nada mais é que a passagem da
posse de X para propriedade de X (ainda que não
vejamos essa passagem como um verdadeiro “ato de
apropriação” em que o sujeito, por meio de um ato
consciente, porta-se a adquirir um objeto externo com
seu. Neste caso basta supor um critério que justifique
que a autopropriedade é o caso de um direito, não de
um fato despojado de normatividade). Isso é assim
porque se eu suponho a autopropriedade somente
em termos factuais, o que eu tenho em resultado é a
constatação de uma posse – uma mera relação física
com o corpo – não de uma propriedade. Logo, o
critério capaz de fazer esta passagem, seja qual for
sua constituição, deve ser entendido em termos de
apropriação, isto é, a única coisa capaz desse projeto
é um critério de apropriação. E é exatamente aqui
que nos deparamos com a próxima etapa de nossa
viajem pelos confins da ética libertária: a elucidação
do famigerado critério.
Hoppe, infelizmente, não deixa muitas certezas,
se não indícios (em verdade fortes), quanto a
suposição de um critério desse tipo também para o
próprio corpo. No entanto, haja vista a própria
concepção do corpo como um recurso escasso como
outro qualquer, não se torna muito dificultoso pensar
na apropriação corporal nos mesmos termos da
apropriação de um objeto externo comum. Basta nos
lembrarmos de que somos de nossos corpos
seus primeiros usuários. Não é possível negar,
ainda que se suponha a tutela dos pais na infância,
que somos os primeiros (e, por fatalidade da
natureza, únicos) a ter de nossos corpos o controle
interno e exclusivo. Sendo assim, em virtude da
necessidade de uma transposição segura nos termos
descritos preliminarmente, supor a validade do
critério de primeiro usuário também para o corpo é,
em ultima análise, uma gentileza que fazemos a
Hoppe. Isso porque nós devemos, solidariamente,
independentemente de mais nada, pressupor sua
múltipla utilidade em virtude da necessidade do
cruzamento da linha do normativo. Neste artigo em
particular essa suposição é necessária especialmente
porque nossa viajem pelas origens normativas da
Ética Hoppeana ganharia um fim prematuro se se
admitisse de antemão outra possibilidade que não a
da apropriação do corpo pelo critério do primeiro
usuário. Ainda assim, Hoppe nos deixa uma luz
bastante clara quanto a esse problema:
“Furthermore, it would be equally
impossible to sustain argumentation for any
length of time and rely on the propositional
force of one’s arguments if one were not
allowed to appropriate in addition to one’s
body other scarce means through
homesteading action (by putting them to use
before somebody else does) […]” [6]
Porquanto uma ação é apropriadora, enquanto
tal, ela deve ser orientada segundo um critério de
apropriação, i.e., um critério que determine a forma
pela qual a matéria (sujeito + objeto) deve se portar
para que aquele estado ou episódio conte como o de
uma apropriação. Se suponho a apropriação do
corpo (appropriate in addition to one’s body), devo
pressupor como seu corolário a apropriação original
que não é outra senão a do primeiro usuário. Desse
modo, só é possível que no cenário discutido no
parágrafo anterior concluamos que a passagem de
fato ocorre, e ocorre conforme um critério de
apropriação original.
Nossa viagem agora chega a um ponto
delicado. Um dos pressupostos a priori da
argumentação é a autopropriedade. Ela, por sua vez,
conta como tal segundo um critério de apropriação. É
patente nesse instante que o que de fato legitima a
autopropriedade, pelo menos nesse ponto da viajem,
fica sendo a apropriação. Isto é, qualquer um que
queira justificar, ainda que inutilmente, a propriedade
que tem do corpo, deve alegar ser do próprio corpo
seu dono legítimo em virtude do fato de ter sido dele
seu primeiro usuário. Se aqui parássemos,
estaríamos ainda sujeitos a Lei de Hume, visto que
de um acontecimento ou ato empiricamente factual
(como o fato de ser primeiro usuário de X), não
podemos inferir qualquer norma. Faz-se necessário,
portanto, algo externo objetivo que defina a
necessidade da propriedade privada e do critério de
apropriação como algo capaz de erigir normatividade.
Dito isto, é preciso retornar à passagem anterior pois
é nela que Hoppe procura estabelecer esses
fundamentos:
“Furthermore, it would be equally
impossible to sustain argumentation for any
length of time and rely on the propositional
force of one’s arguments if one were not
allowed to appropriate in addition to one’s
body other scarce means through
homesteading action (by putting them to use
before somebody else does) and if such
means and the rights of exclusive
control regarding them were not defined in
objective physical terms. For if no one had the
right to control anything at all except his own
body, then we would all cease to exist and the
problem of justifying norms simply would not
exist. Thus, by virtue of the fact of being
alive, property rights to other things must be
presupposed to be valid. No one who is alive
could argue otherwise.”
Que nós seres humanos no passado
necessitamos utilizar de recursos escassos de
maneira originária para sobreviver não é muito difícil
de estabelecer. O problema reside em afirmar que
isso implica na necessidade de direitos de
propriedade. Não pode ser o fato de termos
necessariamente colocado recursos escassos em
uso que se justifica a existência de um direito a
propriedade. Mas se é do uso primeiro de um recurso
escasso, uso este que foi para nós uma de nossas
condições materiais necessárias, que Hoppe deriva a
necessidade dos direitos de propriedade, então ele o
faz segundo o quê? Ora, neste cenário, eu só posso
admitir que os direitos de propriedade estão
pressupostos nas condições materiais da raça
humana se for entendido que o uso primeiro de um
recurso escasso já conta como propriedade. Nesse
sentido, o que hoppe quer dizer ao afirmar que os
direitos de propriedade foram necessários para a
subsitência humana é precisamente que foi preciso
se apropriar deles para consumi-los e/ou controla-
los. Assim, trocado em miúdos, é a apropriação de
bens escassos que conta como condição material
da humanidade atual. Logo, só é possível concluir
que é o critério de apropriação ou a obediência a ele
que dá à propriedade o status de propriedade: ‘it
would be equally impossible to sustain argumentation for
any length of time and rely on the propositional force of
one’s arguments if one were not allowed to appropriate
in addition to one’s body other scarce means
through homesteading’.
Essas considerações devem ter feito agora o
leitor perceber que tanto a legitimidade da
autopropriedade como da propriedade no geral se
dão pela sua conformidade com o mesmíssimo
critério: o critério de primeiro usuário. Um sujeito S
que venha a ser questionado sobre sua legitimidade
enquanto dono originário de uma propriedade X, deve
incorrer na justificação de X através da alegação que
é apropriador original de X. Veja que embora este
caso não seja a regra (pois é possível que S não seja
o dono originário de X, mas ainda seja dono pois o
obteve por meio de troca, presente ou herança), a
legitimidade de toda a rede de propriedade existente
depende da legitimidade da apropriação original dos
bens ou recursos necessários para a produção ou
derivação dos demais. Um bem não pode repousar
no vazio, ele tem de ser ao menos derivado de um
outro bem ou recurso que tenha sido originalmente
apropriado.

Imagine que os recursos minerais de uma área


X tenham sido injustamente retirados e usados para
produzir Y e que tenha posteriormente sido vendido
para um sujeito S2. Certamente, o agora possuidor
de Y não pode ser seu dono muito embora tenha
trocado Z (sua propriedade) por Y. Y não era
propriedade de quem vendeu para S2, logo esta troca
não pode ser considerada legítima. Mas suponha que
S2 tenha vendido Y para S3, e S3 para S4 e assim
até Sn. A troca continuará sem legitimidade. Y,
independentemente do conhecimento de todos os
outros possuidores (a propriedade é epistemicamente
independente pois se
estabelece objetivamente como um “link” entre dono
e bem apropriado), ainda é propriedade do dono da
área X. É nesse sentido que a legitimidade da
apropriação original de um recurso escasso é
condição necessária para a legitimidade de qualquer
propriedade dela derivada. Dessa forma, o leitor
também deve ter percebido a tamanha importância
do critério de apropriação original na Ética Hoppeana.
Portanto, tendo consciência da centralidade desse
conceito, não deveríamos agora apontar nossos
holofotes para a legitimação do critério? Afinal, não é
possível nem mesmo dizer que a propriedade privada
deve existir porque ela foi condição material
necessária para a humanidade atual sem pressupor a
legitimidade do critério de apropriação. Tampouco é
possível alegar que o controle interno exclusivo
legítimo do corpo é condição formal necessária para
a argumentação sem pressupor de antemão a
validade do mesmíssimo critério. Portanto, é ele
agora quem devemos investigar.
Apropriação, legitimação e
Circularidade: Who watches the
watchman?

Hoppe traça ao menos duas linhas de


argumentação para a legitimação do critério do
primeiro usuário. Uma delas se encontra no The
Economics and Ethics of Private Property:

“And if a person were not permitted to


acquire property in these goods and spaces by
means of an act of original appropriation, i.e., by
establishing an objective (intersubjectively
ascertainable) link between himself and a
particular good and/or space prior to anyone
else, but if instead property in such goods or
spaces were granted to late-comers, then no one
would be permitted to ever begin using any good
unless he had previously secured such late-
comers’ consent. Yet how can a late-comer
consent to the actions of an early-comer?
Moreover, every late-comer would in turn need
the consent of other still later-comers, and so on.
That is, neither we, nor our forefathers, nor our
progeny would have been or will be able to
survive if one were to follow this rule. However,
in order for any person—past, present, or
future—to argue anything it must be possible to
survive then and now, and in order to do just this
property rights cannot be conceived of as being
timeless and unspecific with respect to the
number of persons concerned. Rather, property
rights must necessarily be conceived of as
originating as a result of definite individuals
acting at definite points in time and space.
Otherwise, it would be impossible for anyone to
ever say anything at a definite point in time and
space and for someone else to be able to reply.
Simply saying that the first-user-first-owner rule
of the ethics of private property can be ignored
or is unjustified implies a performative
contradiction, for one’s being able to say so must
presuppose one’s existence as an independent
decision-making unit at a given point in time
and space.”[7]
Aqui, a estratégia do argumento material se
repete. Dessa vez atentando para apropriação
necessitar ser uma apropriação de primeiro usuário.
O que não fica muito claro é porque optar por um
critério de apropriação por declaração
necessariamente levaria a humanidade à extinção.
Hoppe, no entanto, pode simplesmente estar
atentando para a hipótese do que aconteceria se
essa regra fosse seguida por todos. Pode-se dizer
que se qualquer pessoa pudesse reinvindicar o direito
sobre um recurso e, ao fazê-lo, obrigaria todas as
outras a consultar a sua vontade na medida em que
necessita da consulta delas para usar o recurso
apropriado, então isso de fato levaria a humanidade
ao caos. Mas de que maneira poderia ser dito que
isso levaria a humanidade à extinção? Além disso,
supor que negar a opção da apropriação nos termos
libertários é admitir uma apropriação por declaração é
incorrer numa falácia da falsa alternativa uma vez
que se estabelece falsamente que só existem duas
opções para a solução de um problema quando é
evidente que podem existir outras: Se eu dissesse
que o critério é do segundo usuário? Ou que o critério
é da pessoa mais velha? Ou que o critério é do
primeiro usuário da pele branca? Perceba que não é
preciso ingressar em maiores compromissos, basta
que, segundo este argumento material, esses
critérios não causem a extinção da humanidade. Mas
então de que maneira Hoppe poderia estabelecer o
critério da apropriação original do primeiro usuário
sem depender da vista grossa sobre uma falácia da
falsa alternativa no seu argumento material? Isto é,
ao que Hoppe teria que recorrer para estabelecer
satisfatoriamente o critério? Isto acontece de forma
complementar também no The Economics and Ethics
of Private Property:

“If a person did not acquire the right of


exclusive control over other, nature-given goods
by his own work, that is, if other people, who had
not previously used such goods, had the right to
dispute the homesteader’s ownership claim, then
this would only be possible if one would acquire
property titles not through labor, i.e., by
establishing some objective link between a
particular person and a particular scarce
resource, but simply by means of verbal
declaration. This solution — apart from the
obvious fact that it would not even qualify as a
solution in a purely technical sense in that it
would not provide a basis for deciding between
rivaling declarative claims — is incompatible
with the already justified ownership of a
person over his body. For if one could indeed
appropriate property by decree, this would
imply that it would also be possible for one to
simply declare another person’s body to be one’s
own. However, as we have seen, to say that
property is acquired not through homesteading
action but through declaration involves a
practical contradiction: nobody can say and
declare anything, unless his right to use his body
is already assumed to be valid simply because of
the very fact that regardless of what he says, it is
he, and nobody else, who has homesteaded it as
his instrument of saying anything”. [8]
Embora aqui Hoppe ainda considere a
apropriação por declaração a única possível depois
da libertária, não seria injusto dizer que qualquer
outro critério que não o de primeiro usuário (incluindo
os exemplificados no parágrafo anterior) entraria em
conflito com a autopropriedade, pois seria preciso
admitir a reinvindicação do controle interno exclusivo
(legítimo) do corpo de alguém, o que não é possível
devido a constatação de uma contradição prática.
Assim, a conformidade com a autopropriedade
constitui a legitimação do critério de apropriação
original e a Fonte da Normatividade da ética
Hoppeana. Seria este o fim dessa longa viagem?
Antes de fazermos as malas e retornarmos para
casa, é preciso reconstruir, segundo o esquema da
regressão proposto no início, o caminho feito até
aqui:
P1 A autopropriedade é condição formal
necessária para a possibilidade da argumentação.

P2 A autopropriedade é o controle interno


exclusivo do corpo.

P3 O controle interno exclusivo do meu corpo é


legitimo por eu ter sido dele seu primeiro usuário (who
has homesteaded it as his instrument of saying
anything).
P4 O Critério de primeiro usuário deve ser
considerado o único válido porque não entra em
contradição com a autopropriedade,

Logo, a aupropriedade justifica o critério da


apropriação por primeiro usuário.
Dito de forma mais clara ainda, é como se a
autopropriedade fosse legitimada pela adequação
com o critério de apropriação ao mesmo tempo que
este critério é legitimado pela conformidade com a
autopropriedade.
O leitor mais atento deve ter percebido um
problema nisso, e é possível que o tenha detectado,
assim como eu, há muito tempo. Dizer que a
autopropredade e o critério de apropriação se
legitimam mutuamente não é outra coisa se não uma
falácia da circularidade. Este argumento é
falaciosamente circular na medida em que se usa
algo que depende da justificação do critério X para
justificar o critério X. Ora, é logicamente impossível
tentar justificar o critério de apropriação original do
primeiro usuário utilizando-se como corolário o
controle interno exclusivo do corpo que, em
primeiríssima instância, só pode ser
considerado direito se já se supõe anteriormente a
legitimidade do mesmíssimo critério. Seria o mesmo
que dizer que o Estado legitima a constituição
admitindo que o Estado necessita dela para ser
justificado.
Uma apropriação jamais poderia se basear na
autopropriedade pois o controle interno exclusivo do
corpo é apenas factual até que se prove a validade
do critério de apropriação que se prove apto a fazer
essa passagem. Dizer que ela é normativa é
necessário, sem dúvidas, para a consagração de um
direito, No entanto, no framework Hoppeano, essa
passagem, como trabalhada anteriormente, só é
possível através da aceitação do critério de primeiro
usuário. Aceitar essa passagem como possível é a
única forma de fugir, ao menos temporariamente, do
problema da Lei de Hume. Isto porque Hoppe durante
toda sua argumentação esteve trabalhando com a
concepção errônea, e já comentada, de que um ato
empiricamente factual pode encerrar a normatividade
necessária para o estabelecimento de um direito.
Arar a terra, moldar a argila, pegar a maçã são atos
constatados sempre de maneira empírica. Ainda que
se diga que o trabalho de S misturado a X o torna
propriedade de S através do trabalho despendido que
se mistura no objeto criando a extensão da
“personalidade” de S, seria preciso provar que a) é
possível estender a “personalidade” de S e b) essa
extensão dá legitimidade ao objeto apropriado. Se a
estratégia a ser adotada é a mesma de Hoppe, do
mesmo modo, é preciso provar que a) existe de fato
um link objetivo que liga você a um objeto e b) esse link
metafísico/sobrenatural dá legitimidade ao objeto
apropriado. Não é muito complicado perceber que
esses jargões tipicamente lockeanos só podem ser
considerados enquanto metáforas, a menos que se
queira provar a existência de um
elo sobrenatural entre sujeitos e objetos (o que já
seria contraditório com a proposta de Hoppe em
estabelecer o conceito de um link objetivo em
termos físicos).

Esclarecimentos acerca da
circularidade da Ética Hoppeana
O argumento aqui é fundado precisamente
numa reconstrução do paradigma ético hoppeano a
partir da noção de regressão anteriormente
estabelecida. A circularidade aqui se põe somente
depois que soluciona-se ou ignora-se os problemas
anteriores, i.e., este argumento só possui efeito se
nos dispomos a efetivamente sair, ao menos
conceitualmente, da condição de posse do corpo
para a de propriedade mediante um critério de
apropriação, abstraindo-se de outras antinomias.
Esse problema, como foi dito, ocorre sempre quando
supomos a validade do critério de apropriação para o
corpo e tentamos justifica-lo com a autopropriedade.
Já estabelecemos que essa passagem é obrigatória
se quisermos justificar a adição de uma partícula
normativa para o controle interno exclusivo do corpo.
Se não há outro critério capaz de sustentar a
autopropriedade que não o de primeiro usuário, e não
é possível estabelecer a normatividade dela sem o tal
critério, segue-se a impossibilidade da justificação do
critério a partir da autopropriedade, segue-se
a circularidade.
Esclareço também que, em virtude da
metodologia adotada neste artigo, tive que me abster
de críticas a uma série de outros problemas por que
passei nessa regressão (dualismo pueril, sujeito X
objeto, guilhotina de Hume, etc), i.e., não é que eu
não seja adepto dessas e outras críticas, mas sim
que tive que desconsiderar a maioria delas em nome
dos objetivos desse artigo.

Como não estabelecer uma


autopropriedade
Um detalhe importante que talvez tenha
passado despercebido no decorrer de nossa viagem
é que a justificação da autopropriedade não pode vir
da ocorrência de conflitos envolvendo corpos (como
numa briga). Não é desse fato que devemos inferir a
necessidade de uma regra de propriedade também
para eles. A causa da existência de uma regra não
pode justificar a existência da mesma sob pena de
incorrer-se no mesmo problema só que de maneira
infantil (desta vez confundindo causa e justificação).
Ora, se suponho que a função de uma regra, ao
mesmo tempo que estabelece sua causa final,
também a justifica (no sentido de torna-la
externamente legítima) estou caindo numa
circularidade ainda mais fechada. Existem diversos
conflitos e diferentes formas de resolvê-los. Não é do
fato da propriedade poder solucionar conflitos que
devemos concluir que esta norma é justificada. Não
há justificações pairando no vazio. Uma norma é
justificada dentro do framework conceitual de uma
Ética que fornece a base segundo a qual a norma é
considerada (eticamente) válida. Se uma norma foi
“criada” para solucionar conflitos, a sua justificação
não pode ser a de que ela serve a algum propósito
pré-estabelecido sem que haja antecipadamente a
justificação do critério que estabelece que a norma
(eticamente) válida é de fato a que estabelece, por
exemplo, a resolução de conflitos. Fica mais fácil de
entender se atentarmos para a comparação que se
segue:
P1 Existem conflitos envolvendo corpos assim
como existem idosos

P2 Para dirimir conflitos envolvendo corpos,


deve existir regras de resolução de conflitos (regras
de propriedade) também para eles, assim como para
matar idosos, deve existir regras para matarmos
idosos.
Logo, a autopropriedade é legítima porque
soluciona conflitos envolvendo corpos assim como a
regra de matar idosos é legítima porque permite com
ela matar idosos.

Estas normas são terminantemente circulares e


obviamente não justificadas. Uma norma não é
legítima simplesmente porque com ela é possível
atingir uma determinada finalidade (seja resolver
conflitos ou matar idosos), mas porque anteriormente
se estabelece a legitimidade do seu conteúdo. É
precisamente nesse ponto que alguns Libertários têm
lançado mão de uma justificativa ainda mais
problemática para a propriedade privada e
autopropriedade utilizando-se das assunções de que
a)devemos querer resolver conflitos (o que
constituiria uma espécie de dever originário) e b) a
única maneira de solucionar conflitos (de maneira
universal) é através da norma de propriedade
privada.

Outra coisa que jamais poderia realizar a


passagem do factual para o normativo é o que Hoppe
trata como “reconhecimento implícito” do direito de
propriedade do corpo durante o curso da
argumentação. Este reconhecimento (ou respeito,
como alguns tem colocado) decorreria do fato da
argumentação pressupor um consenso mínimo (um
consenso ou acordo de que pelo menos se está
discordando). O que Hoppe fala e trata como
condição formal necessária para a possibilidade da
argumentação não é o reconhecimento da autoposse
como uma autopropriedade (o que pressuporia de
fato uma passagem que é, nesses termos,
impossível pelos motivos tratados no início deste
artigo), mas o reconhecimento de um direito já
constituído e independente da ação Argumentativa
que é, no entanto, sua condição Transcendental:
“[…] no one could possibly propose
anything, and no one could become convinced of
any proposition by argumentative means, if a
person’s >right< to make exclusive use of his
physical body were not already presupposed.”
E é simples de imaginar o porquê. Basta nos
lembrarmos de que, para Hoppe, a autopropriedade
conta como autopropriedade não só
independentemente de qualquer ato argumentativo
(ou algo que ocorra durante este ato) como também
independentemente de qualquer coisa que possa ser
falada:

“[…] nobody can say and declare anything,


unless his right to use his body is already
assumed to be valid simply because of the very
fact that regardless of what he says, it is he,
and nobody else, who has homesteaded it as
his instrument of >saying< anything.”
Sendo assim, a justificação e
consequentemente passagem da autoposse para
autopropriedade não pode decorrer de algo suposto
durante um ato argumentativo, mas que já se
encontra como tal independentemente de qualquer
reconhecimento que se possa projetar na
comunidade humana.

Caso contrário, se a autopropriedade só


contasse como tal por um reconhecimento implícito
suposto durante e somente durante a ocorrência de
trocas proposicionais, ela estaria, por assim dizer,
limitada ao curso argumentativo, o que contradiria o
que Hoppe pretendia ao estabelecer o
reconhecimento não de uma autoposse como
autopropriedade, mas de um direito já constituído de
forma a priori independente de qualquer
reconhecimento que se possa fazer. Este
“reconhecimento” pode ser, sem maiores prejuízos,
considerado condição formal necessária para a
possibilidade da argumentação (a despeito da
necessidade modal que se queira estabelecer com
esse reconhecimento, o que é papo para outra
crítica), mas a autopropriedade nunca poderá ser
legitimada por algo que ocorra somente em seu
curso, mesmo sabendo que um tal feito é impossível
logicamente (o que também só alteraria a posição do
círculo). Sendo assim, se do reconhecimento da
Autopropriedade nasce uma condição necessária
para a argumentação, teríamos, do mesmo modo,
que mover nossos olhos “justificadores” para o agora
direito de autopropriedade afim de provar sua
validade e constatar que ele (e seu consequente
reconhecimento) realmente conta como condição a
priori da argumentação. Um tal movimento recairia no
mesmo trajeto empreendido neste artigo e
atravessaria os mesmos percalços.

Como não estabelecer um direito


de propriedade

Que todos os conflitos tem relação direta ou


indireta com recursos escassos (nos termos
libertários) é bastante claro, mas disso não segue
que todo conflito tenha como causa eficiente uma
disputa por recursos escassos. Ora, que numa
discussão acerca de um tema qualquer estão
envolvidos dois ou mais sujeitos que são escassos é
muito simples de entender, mas não podemos dizer
que a causa eficiente (o motivo que fez com que
sujeitos entrassem em conflito) daquela discussão é
precisamente a disputa por um recurso escasso em
particular. Nem sempre entramos em
conflito por estarmos diante da disputa de um bem.
Podemos nos digladiar por eu ter te chamando de
burro e você ter me chamado de burro também. Ter
te chamando de burro é que te motivou a me chamar
de burro. Essa troca de ofensas nos motivoua
entramos numa briga física. Não posso dizer que a
motivação de nossa investida é o fato de nossos
corpos (ou de nós) sermos escassos. O que nos
motivou foi o fato de termos nos chamando de burros
o que nem sequer é uma propriedade de nossos
corpos.
Ainda que se estabeleça por estipulação essa
noção equivocada de conflito sempre como algo que
tem como causa a disputa por recursos escassos,
existem diversos problemas em admitir que, em
virtude disso, a propriedade privada deve ser
adotada. Aqui as noções de que a) devemos querer
resolver conflitos e b) a única forma de solucionar
conflitos (de maneira universal) é estabelecendo a regra
de propriedade privada ganham especial destaque na
justificação dos direitos de propriedade empreendidas
pelos Libertários de quem falei. Para analisar a
validade material desse argumento, validade esta que
é condição necessária para a consecução de um
argumento considerado correto (sound), devemos
proceder uma análise que possa identificar se as
premissas são verdadeiras (basta que uma seja falsa
para que o argumento seja dito incorreto). Eu posso,
sem maiores compromissos, ao menos inicialmente,
admitir que devemos resolver os conflitos (ou achar
uma forma para tal). No entanto, é mesmo possível
admitir que a propriedade é a única forma de
resolução de conflitos? Isso se estabeleceria sem
muitas dificuldades se de fato a propriedade
resolvesse, caso seguida por todos, todos os conflitos
possíveis. A propriedade não só não é a única forma
de resolver conflitos de maneira universal como
também pode causar conflitos insolúveis.
A interpretação a ser tomada deve sempre ser
a de que a norma a ser adotada para resolução de
conflitos é uma que resolva todos os conflitos de
maneira universal. Ora, é possível que, em um
conflito particular, seja escolhida uma norma ou
critério que não seja o de propriedade privada e ainda
assim seja suficiente para a solução daquele conflito.
No caso da disputa por um recurso escasso qualquer
pode ser acordado entre os disputantes uma norma
que diga que quem conseguir cantar o hino nacional
brasileiro corretamente primeiro fica com aquele bem.
Essa é uma norma que satisfaz o critério caso este
seja somente o de resolução de conflitos. Para
chegar na propriedade privada é preciso, assim,
estabelecer que ela é a única maneira de resolução
de conflitos de maneira universal. É como dizer que
propriedade privada, se seguida por todos, é capaz
de solucionar necessariamente qualquer
conflito possível, i.e., não deve ser possível nem
conceber um conflito que não possa ser solucionado
pela regra de propriedade (isso porque todo conflito é
conflito por recursos escassos). Deste modo, deve
estar patente que é necessário apenas um exemplo
em que a propriedade privada não pode resolver um
conflito para que essa premissa caia por terra.
O que quero dizer ao dizer que a propriedade
privada pode resolver todos os conflitos se seguida?
Ora, se a propriedade é o controle externo exclusivo
legítimo de algo, então só podemos entender que ela
soluciona conflitos caso se respeite uma espécie
de critério do dono legítimo, isto é, é através da
delimitação de quem tem os direitos sobre o recurso
escasso em disputa que se resolveria todos os
conflitos possíveis (pois todo conflito é conflito por
recursos escassos). Assim, na disputa de um objeto
C, o sujeito S “sabe” que o sujeito S2 é dono legítimo
de C e, por isso, ele respeita a propriedade privada
de S2 e eles não entram em conflito ou o conflito se
dilui imediatamente já que S respeita a propriedade
privada de S2 (isso valeria para todos, igualmente).
Evidentemente, esta situação é hipotética pois pode
haver o caso em que S não respeite a posse legítima
de S2 e ambos entrem em conflito. Devemos nos
guiar, portanto, pela hipótese de que todos os
sujeitos respeitam a regra de propriedade privada, ou
seja, todos reconhecem as posses dos demais com
base na ideia de que eles são donos legítimos delas.
Outra coisa importante de salientar é que estou
trabalhando aqui com a ideia de que a propriedade
privada é epistemicamente independente, i.e., o
conhecimento ou desconhecimento de um sujeito
sobre quem é o dono legítimo de X nada tem a dizer
sobre quem verdadeiramente é o dono de X. Eu
posso achar uma bola de basquete no chão e não
saber de quem é. Se esta bola for de S3 e eu me
apossar dela, ela, ainda que eu não saiba a quem
pertence, continuará sendo propriedade de S3. Isto
deve ser assim se ainda quisermos trabalhar com a
ideia fantasmagórica proposta por Hoppe de que o
sujeito dono estabelece um “link objetivo” (é objetivo
justamente porque não depende do conhecimento
“subjetivo” do sujeito) com o objeto apropriado.
Na análise desse argumento não tomaremos
por válida qualquer contradição que se queira
estabelecer com a autopropriedade porque isso só
seria possível depois do estabelecimento do direito
de propriedade privada por esse argumento. Caso
contrário, mais uma vez, nos envolveríamos numa
circularidade. Aqui só importa a definição de quem é
o dono legítimo de X através do ponto de vista da
Ética ou, enfim, de um referencial objetivo. Este é o
caso de um privilégio devido ao fato de tratar-se de
um exercício mental hipotético em que podemos
manipular livremente (porém dentro dos limites da
realidade fenomênica) os estados de coisas possíveis
afim de mostrar, independentemente
da probabilidade da ocorrência de uma determinada
situação, o que seria ou não problemático na ideia
que queremos estabelecer.
Comecemos então com um exemplo: imagine
que há uma bicicleta atrás de uma árvore. O seu
último dono acaba de morrer eletrocutado a 15
metros dali. A bicicleta então retorna ao estado de
natureza, sem dono, pois não é possível conceber
um link objetivo entre uma coisa e um sujeito que já
não existe mais. Um sujeito S a esquerda da árvore
se aproxima no intuito de ser seu primeiro usuário.
Outro sujeito (S2) à direita da árvore que caminha em
direção à bicicleta com o mesmo objetivo também a
vê, mas nenhum dos dois vê um ao outro. Eles então
encostam suas mãos cada um em uma das
extremidades da bicicleta, ao mesmo tempo. Nesse
cenário, ambos os sujeitos reivindicam o controle
exclusivo da bicicleta. Como se resolveria este
conflito? Através da propriedade privada, isto é,
através da definição de quem é o dono legítimo da
bicicleta podemos perfeitamente responder a essa
questão alegando que S ou S2 é dono legítimo do
bem reivindicado. No entanto, nem sequer é possível
definir quem é o dono uma vez que os dois se
“apropriaram” dela ao mesmo tempo. Dizer que
existem 2 donos é possível (afinal muitas
propriedades – ou conjunto de – possuem co-
proprietários e não há possibilidade de conflitos
quanto a isso justamente porque o são
mediante contrato prévio) mas não seria de
nenhuma maneira possível dizer que isso
solucionaria o conflito da reinvindicação do controle
exclusivo (no sentido de quem tem permissão para
excluir X do uso dos demais) proposto no problema.
Tampouco é possível dizer que um dos dois teria que
“usar” a superfície da bicicleta de uma forma que não
seja o mero toque para que ela seja de alguém sob
pena de admitir que os órgãos internos e partes
inúteis (no sentido de que não podem ser utilizadas
através da vontade) do nosso corpo não são de fato
partícipes de nossa propriedade. Muito menos seria
aceitável dizer que os dois são donos cada um de
uma metade da bicicleta. Quanto ao problema da
substância do que é apropriado, Hoppe é bastante
enfático:
“It is also not to say “to transform each and
every part of it” (after all, my body has lots of
parts with respect to which I never did
anything!); it means instead to transform a
thing within (including/excluding) borders, or,
even more precisely, to produceborderlines for
things.”
Fica claro aqui que ele já considera na
apropriação todas as bordas do objeto apropriado,
isto é, para ser o primeiro usuário basta que haja o
contato direto com o bem e ao fazê-lo você não está
se apropriando apenas da parte em que tocou, mas
sim de toda a substância (forma + matéria) do objeto
em questão. Sendo assim, uma vez que é impossível
solucionar esse conflito através da delimitação do(s)
dono(s) legítimo(s), é impossível também que esse
conflito seja solucionado pela regra de propriedade.
No entanto, duas questões poderiam ser
legitimamente levantadas:

• O conflito poderia ser solucionado caso os


disputantes fizessem um “acordo” ou assinassem um
“contrato” decidindo voluntariamente o destino da
bicicleta;

• Só depois de alguém ter montado e/ou pedalado


na bicicleta é que poderíamos dizer que houve
apropriação.
No primeiro podemos dizer que fazer um
acordo ou um contrato seria realmente cabível numa
situação em que ambos concordem em fazê-lo, mas
isso já parte da noção de que existem de fato 2
donos. Outro caso igualmente possível seria o de
que S e S2 não acordariam nada e estão
legitimados a não fazê-lo exatamente
porque ambos são donos (tomadores últimos
dedecisão). Além disso, supor um acordo como
solução para o conflito já é sair do escopo da
propriedade privada (o critério que estabelece o dono
legítimo de um recurso X) como solucionadora
de qualquer conflito possível. Se não é possível
solucionar este conflito somente com a ideia da
definição de um dono, mas somente mediante
contrato, segue-se que a propriedade privada não
soluciona todos os conflitos, segue-se a refutação da
segunda premissa. No segundo não há outra coisa
senão a arbitrariedade em afirmar que a apropriação
só seria legítima se o uso corresponder à finalidade
objetiva do objeto em questão, i.e., será preciso
“andar” ou “montar” na bicicleta para que haja um
dono. Ora, se assim fosse, eu teria que ser obrigado
a saber pilotar um jatinho para que a minha compra
ou apropriação dele seja concretizada como legítima,
por exemplo. Ainda assim é muito simples de rebater
este ponto ainda que não seja tomado como
arbitrário: basta imaginar que no lugar da bicicleta
haja um barco de remo num rio. O barco tem quatro
remos e opera-lo corresponde precisamente em usar
os remos para movê-lo pelo rio. S e S2 então se
apoderam cada um de dois remos e operam o barco.
Não é preciso entrar em detalhes para dizer que
neste exemplo o problema persiste.
Não é meu objetivo aqui salientar mais
exemplos possíveis em que a propriedade não
soluciona um conflito. Como foi dito, basta a
existência de apenas um caso em que obedecer a
regra de propriedade não solucionaria o conflito para
que a premissa seja falseada.

Conclusão
Aqui verdadeiramente encerramos nossa
viagem que, infelizmente ou não, foi incapaz de
estabelecer uma fonte justificada de normatividade na
Ética da Propriedade Privada de Hoppe. Ao contrário,
nos deparamos ao final com um problema insolúvel
da apropriação original: uma circularidade inerente do
argumento Hoppeano que torna improdutivo qualquer
tentativa de alicerça-lo ainda que se busque pela
interpretação mais coerente, como a empreendida
neste artigo. Também foi sucedida uma crítica en
passant à interpretação dessa ética utilizada
atualmente por alguns libertários através da análise
da validade material do argumento disposto por eles.
Dito tudo isso, será o problema da apropriação mais
complexo do que imaginavam os libertários
anarcocapitalistas? Será que é sempre um problema
tentar estabelecer a propriedade privada como algo
divinamente absoluto? Será ela somente uma relação
entre sujeitos e recursos escassos? Será possível se
livrar de um problema de circularidade ao se
estabelecer direitos dessa sorte? É o que pretendo
abordar em meus futuros artigos.

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