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Autopropriedade, Propriedade e
Apropriação
Não é muito difícil aceitar que um tal critério
justificador da passagem do factual para o normativo
seja um critério de apropriação. A passagem do
controle interno exclusivo do corpo para
autopropriedade nada mais é que a passagem da
posse de X para propriedade de X (ainda que não
vejamos essa passagem como um verdadeiro “ato de
apropriação” em que o sujeito, por meio de um ato
consciente, porta-se a adquirir um objeto externo com
seu. Neste caso basta supor um critério que justifique
que a autopropriedade é o caso de um direito, não de
um fato despojado de normatividade). Isso é assim
porque se eu suponho a autopropriedade somente
em termos factuais, o que eu tenho em resultado é a
constatação de uma posse – uma mera relação física
com o corpo – não de uma propriedade. Logo, o
critério capaz de fazer esta passagem, seja qual for
sua constituição, deve ser entendido em termos de
apropriação, isto é, a única coisa capaz desse projeto
é um critério de apropriação. E é exatamente aqui
que nos deparamos com a próxima etapa de nossa
viajem pelos confins da ética libertária: a elucidação
do famigerado critério.
Hoppe, infelizmente, não deixa muitas certezas,
se não indícios (em verdade fortes), quanto a
suposição de um critério desse tipo também para o
próprio corpo. No entanto, haja vista a própria
concepção do corpo como um recurso escasso como
outro qualquer, não se torna muito dificultoso pensar
na apropriação corporal nos mesmos termos da
apropriação de um objeto externo comum. Basta nos
lembrarmos de que somos de nossos corpos
seus primeiros usuários. Não é possível negar,
ainda que se suponha a tutela dos pais na infância,
que somos os primeiros (e, por fatalidade da
natureza, únicos) a ter de nossos corpos o controle
interno e exclusivo. Sendo assim, em virtude da
necessidade de uma transposição segura nos termos
descritos preliminarmente, supor a validade do
critério de primeiro usuário também para o corpo é,
em ultima análise, uma gentileza que fazemos a
Hoppe. Isso porque nós devemos, solidariamente,
independentemente de mais nada, pressupor sua
múltipla utilidade em virtude da necessidade do
cruzamento da linha do normativo. Neste artigo em
particular essa suposição é necessária especialmente
porque nossa viajem pelas origens normativas da
Ética Hoppeana ganharia um fim prematuro se se
admitisse de antemão outra possibilidade que não a
da apropriação do corpo pelo critério do primeiro
usuário. Ainda assim, Hoppe nos deixa uma luz
bastante clara quanto a esse problema:
“Furthermore, it would be equally
impossible to sustain argumentation for any
length of time and rely on the propositional
force of one’s arguments if one were not
allowed to appropriate in addition to one’s
body other scarce means through
homesteading action (by putting them to use
before somebody else does) […]” [6]
Porquanto uma ação é apropriadora, enquanto
tal, ela deve ser orientada segundo um critério de
apropriação, i.e., um critério que determine a forma
pela qual a matéria (sujeito + objeto) deve se portar
para que aquele estado ou episódio conte como o de
uma apropriação. Se suponho a apropriação do
corpo (appropriate in addition to one’s body), devo
pressupor como seu corolário a apropriação original
que não é outra senão a do primeiro usuário. Desse
modo, só é possível que no cenário discutido no
parágrafo anterior concluamos que a passagem de
fato ocorre, e ocorre conforme um critério de
apropriação original.
Nossa viagem agora chega a um ponto
delicado. Um dos pressupostos a priori da
argumentação é a autopropriedade. Ela, por sua vez,
conta como tal segundo um critério de apropriação. É
patente nesse instante que o que de fato legitima a
autopropriedade, pelo menos nesse ponto da viajem,
fica sendo a apropriação. Isto é, qualquer um que
queira justificar, ainda que inutilmente, a propriedade
que tem do corpo, deve alegar ser do próprio corpo
seu dono legítimo em virtude do fato de ter sido dele
seu primeiro usuário. Se aqui parássemos,
estaríamos ainda sujeitos a Lei de Hume, visto que
de um acontecimento ou ato empiricamente factual
(como o fato de ser primeiro usuário de X), não
podemos inferir qualquer norma. Faz-se necessário,
portanto, algo externo objetivo que defina a
necessidade da propriedade privada e do critério de
apropriação como algo capaz de erigir normatividade.
Dito isto, é preciso retornar à passagem anterior pois
é nela que Hoppe procura estabelecer esses
fundamentos:
“Furthermore, it would be equally
impossible to sustain argumentation for any
length of time and rely on the propositional
force of one’s arguments if one were not
allowed to appropriate in addition to one’s
body other scarce means through
homesteading action (by putting them to use
before somebody else does) and if such
means and the rights of exclusive
control regarding them were not defined in
objective physical terms. For if no one had the
right to control anything at all except his own
body, then we would all cease to exist and the
problem of justifying norms simply would not
exist. Thus, by virtue of the fact of being
alive, property rights to other things must be
presupposed to be valid. No one who is alive
could argue otherwise.”
Que nós seres humanos no passado
necessitamos utilizar de recursos escassos de
maneira originária para sobreviver não é muito difícil
de estabelecer. O problema reside em afirmar que
isso implica na necessidade de direitos de
propriedade. Não pode ser o fato de termos
necessariamente colocado recursos escassos em
uso que se justifica a existência de um direito a
propriedade. Mas se é do uso primeiro de um recurso
escasso, uso este que foi para nós uma de nossas
condições materiais necessárias, que Hoppe deriva a
necessidade dos direitos de propriedade, então ele o
faz segundo o quê? Ora, neste cenário, eu só posso
admitir que os direitos de propriedade estão
pressupostos nas condições materiais da raça
humana se for entendido que o uso primeiro de um
recurso escasso já conta como propriedade. Nesse
sentido, o que hoppe quer dizer ao afirmar que os
direitos de propriedade foram necessários para a
subsitência humana é precisamente que foi preciso
se apropriar deles para consumi-los e/ou controla-
los. Assim, trocado em miúdos, é a apropriação de
bens escassos que conta como condição material
da humanidade atual. Logo, só é possível concluir
que é o critério de apropriação ou a obediência a ele
que dá à propriedade o status de propriedade: ‘it
would be equally impossible to sustain argumentation for
any length of time and rely on the propositional force of
one’s arguments if one were not allowed to appropriate
in addition to one’s body other scarce means
through homesteading’.
Essas considerações devem ter feito agora o
leitor perceber que tanto a legitimidade da
autopropriedade como da propriedade no geral se
dão pela sua conformidade com o mesmíssimo
critério: o critério de primeiro usuário. Um sujeito S
que venha a ser questionado sobre sua legitimidade
enquanto dono originário de uma propriedade X, deve
incorrer na justificação de X através da alegação que
é apropriador original de X. Veja que embora este
caso não seja a regra (pois é possível que S não seja
o dono originário de X, mas ainda seja dono pois o
obteve por meio de troca, presente ou herança), a
legitimidade de toda a rede de propriedade existente
depende da legitimidade da apropriação original dos
bens ou recursos necessários para a produção ou
derivação dos demais. Um bem não pode repousar
no vazio, ele tem de ser ao menos derivado de um
outro bem ou recurso que tenha sido originalmente
apropriado.
Esclarecimentos acerca da
circularidade da Ética Hoppeana
O argumento aqui é fundado precisamente
numa reconstrução do paradigma ético hoppeano a
partir da noção de regressão anteriormente
estabelecida. A circularidade aqui se põe somente
depois que soluciona-se ou ignora-se os problemas
anteriores, i.e., este argumento só possui efeito se
nos dispomos a efetivamente sair, ao menos
conceitualmente, da condição de posse do corpo
para a de propriedade mediante um critério de
apropriação, abstraindo-se de outras antinomias.
Esse problema, como foi dito, ocorre sempre quando
supomos a validade do critério de apropriação para o
corpo e tentamos justifica-lo com a autopropriedade.
Já estabelecemos que essa passagem é obrigatória
se quisermos justificar a adição de uma partícula
normativa para o controle interno exclusivo do corpo.
Se não há outro critério capaz de sustentar a
autopropriedade que não o de primeiro usuário, e não
é possível estabelecer a normatividade dela sem o tal
critério, segue-se a impossibilidade da justificação do
critério a partir da autopropriedade, segue-se
a circularidade.
Esclareço também que, em virtude da
metodologia adotada neste artigo, tive que me abster
de críticas a uma série de outros problemas por que
passei nessa regressão (dualismo pueril, sujeito X
objeto, guilhotina de Hume, etc), i.e., não é que eu
não seja adepto dessas e outras críticas, mas sim
que tive que desconsiderar a maioria delas em nome
dos objetivos desse artigo.
Conclusão
Aqui verdadeiramente encerramos nossa
viagem que, infelizmente ou não, foi incapaz de
estabelecer uma fonte justificada de normatividade na
Ética da Propriedade Privada de Hoppe. Ao contrário,
nos deparamos ao final com um problema insolúvel
da apropriação original: uma circularidade inerente do
argumento Hoppeano que torna improdutivo qualquer
tentativa de alicerça-lo ainda que se busque pela
interpretação mais coerente, como a empreendida
neste artigo. Também foi sucedida uma crítica en
passant à interpretação dessa ética utilizada
atualmente por alguns libertários através da análise
da validade material do argumento disposto por eles.
Dito tudo isso, será o problema da apropriação mais
complexo do que imaginavam os libertários
anarcocapitalistas? Será que é sempre um problema
tentar estabelecer a propriedade privada como algo
divinamente absoluto? Será ela somente uma relação
entre sujeitos e recursos escassos? Será possível se
livrar de um problema de circularidade ao se
estabelecer direitos dessa sorte? É o que pretendo
abordar em meus futuros artigos.