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Em guarda!

Garrafas de vinho devem ficar na horizontal. Estudos


mostram que isso é um mito
Por Arnaldo Grizzo em 21 de Julho de 2014 às 00:00
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“Em termos de capacidade de vedação e transferência de


oxigênio, a conservação pode ser realizada com a garrafa
em pé ou deitada, pois os resultados serão idênticos”, 
diz o enólogo Paulo Lopes
Um dos dogmas do mundo do vinho – que de tão decantado está enraizado no
subconsciente até dos enófilos mais inexperientes – é o fato de guardar as
garrafas de vinho sempre (sempre!) deitadas. Isso é importante, pois mantém a
rolha umedecida, impedindo que ela resseque, conservando suas qualidades,
especialmente no que diz respeito à mínima entrada de oxigênio que favorece
o bom envelhecimento do líquido.

No entanto, chegou a hora de rever esse conceito, pois dois longos estudos –
um da Facultè d’Oenologie de Bordeaux e outro do The Australian Wine
Research Institute (AWRI) –, demonstram que a posição da garrafa
simplesmente não tem qualquer relevância durante a guarda do vinho. E isso
derruba tudo o que aprendemos e pregamos por aí durante anos e anos.

Essas duas pesquisas estudaram o ingresso de oxigênio na garrafa de acordo


com diferentes tipos de vedantes (rolhas naturais, sintéticas e rosca) e a
posição de armazenagem (vertical ou horizontal) com o tempo. O estudo
australiano foi além e mediu ainda impactos na composição, cor e sabor dos
vinhos testados (um Riesling e um Chardonnay barricado), além de ter feito
essa avaliação por mais tempo (cinco anos contra três dos franceses). Ambas
as investigações chegaram a conclusões interessantes quanto aos efeitos
causados pelas diferentes rolhas usadas, no entanto, um aspecto se
sobressaiu: “a orientação da garrafa durante o armazenamento teve pouco
efeito na composição dos vinhos examinados”, reportou o relatório australiano,
e “as taxas de ingresso de oxigênio foram independentes da posição de
armazenagem da garrafa”, atestaram os franceses.

Então quer dizer que posso guardar meus vinhos em pé? “Sem qualquer
problema!”, garante Paulo Lopes, enólogo PhD que gerencia o departamento
de pesquisa e desenvolvimento da Amorim, o maior fabricante de rolhas do
mundo, e que liderou a equipe do estudo bordalês. Para ele, os resultados das
duas pesquisas citadas mostram muito claramente que as diferenças entre a
armazenagem horizontal e vertical são mínimas, independentemente do tipo de
rolha, ou seja, mesmo nas de cortiça natural. “Em termos de capacidade de
vedação e transferência de oxigênio, a conservação pode ser realizada com a
garrafa em pé ou deitada, pois os resultados serão idênticos”, confirma.

Horizontal ou vertical?
A pesquisa de Lopes e seus colegas bate de frente com outra feita em 2002
por um grupo de cientistas espanhóis. Na época, eles afirmaram que as
análises químicas e sensoriais mostraram que o vinho era melhor preservado
quando mantido na horizontal. No entanto, os testes atuais usam sistemas
mais eficazes de avaliação, como um método colorimétrico (que usa a cor para
medir a absorção de determinados elementos em uma solução), por exemplo.

Aliás, as primeiras análises feitas sobre o ingresso de oxigênio na garrafas de


vinho datam dos anos 1930. O francês Jean Ribéreau-Gayon foi pioneiro e
apontou que de 0,1 a 0,38 ml de oxigênio entrava na garrafa (vedada com rolha
de cortiça) nas três primeiras semanas depois do engarrafamento e de 0 a 0,07
ml nos quatro meses seguintes.

Cerca de 80 anos depois, a pesquisa bordalesa mostra que as rolhas de


cortiça, na verdade, deixaram passar 1,7 e 2,3 ml de oxigênio durante os 36
meses (três anos) de estudo quando as garrafas são mantidas deitadas. Essa
variação depende da qualidade da rolha (veja matéria sobre rolhas na página
42) e a de categoria Flor (melhor qualidade) permitiu menos ingresso do que a
considerada de 1º grau.

Além disso, a pesquisa mostrou que a dinâmica do ingresso de oxigênio é


maior no primeiro mês após o engarrafamento, com 0,7 para a Flor e 1,3 ml
para a de 1º grau, o que chega a representar mais de 50% do total de oxigênio
observado ao final dos três anos. Depois do primeiro mês até o final de um
ano, a quantidade de oxigênio foi de 0,03 e 0,17 ml por mês. Finalmente,
depois de 12 meses, a entrada foi de 0,002 e 0,07 ml por mês até o término do
período de estudo.
No entanto, o que interessa é a comparação com os números obtidos com as
mesmas rolhas, porém, em garrafas mantidas em pé. Aí podemos dizer que há
uma surpresa, pois a entrada foi de 1,5 e 2,4 ml de oxigênio, respectivamente,
ao final de três anos. Ou seja, uma rolha de alta qualidade, como a Flor, deixou
passar até menos oxigênio quando armazenada na vertical do que na
horizontal (1,5 contra 1,7 ml) – apesar de a diferença ser desprezível.

Continuando a comparação, quando em pé, as rolhas permitiram o ingresso de


0,8 e 1,3 ml de oxigênio no primeiro mês. De dois meses a um ano, os níveis
caem para 0,05 e 0,1 ml por mês. Depois disso, ficam entre 0,02 e 0,04 ml por
mês até o fim do segundo ano (veja o gráfico com as curvas de ingresso de
oxigênio dependendo do tipo de rolha e da posição de armazenamento nas
páginas a seguir). Mas, afinal, o que é importante, permitir a entrada de mais
ou de menos oxigênio?

Taxa de ingresso de oxigênio em ml por dia


    Armazenagem

Tipo de vedante Primeiro mês Horizontal

Screw cap <500a 0,2-0,7

Rolhas técnicas 15-40 0,1-0,4

Rolhas naturais 25-45 1,7-6,1b

    0,1-2,3c

Rolha sintética 1 30-40 6

Rolha sintética 2 35-45 11–15

a- no momento do engarrafamento            


b- de 2 a 12 meses de armazenagem            
c- de 12 a 36 meses (horizontal) e de 12 a 28 meses (vertical) de armazenagem   

Oxigênio
“Oxigênio é o pior inimigo do vinho”, já dizia Louis Pasteur, apenas para
complementar em seguida: “o oxigênio é quem faz o vinho, é por sua influência
que ele envelhece”. Isso mostra o quão dicotômica é a relação desse gás com
a bebida. Ao mesmo tempo que uma pequena quantidade garante uma boa
evolução do vinho, quando em excesso, o líquido oxida e estraga.

É por isso que esse elemento é o alvo de muitas das pesquisas, incluindo
essas duas. Sobre esse fenômeno do envelhecimento, o estudo australiano
aponta: “Pareceu que uma taxa de ingresso de oxigênio muito alta – como vista
nas rolhas sintéticas – levaram a sabores oxidados, assim como taxas muito
baixas – como as observadas nas tampas de rosca e de vidro – levaram ao
desenvolvimento de aromas reduzidos, de borracha e similares, no vinho”.
Nesse caso, ponto para as rolhas de cortiça, as que melhor se comportaram no
estudo patrocinado pela associação de produtores da Austrália. Lembrando
que foi devido à insatisfação da indústria vitivinícola australiana quanto à
qualidade das rolhas naturais que as sintéticas e de rosca se propagaram
mundo afora.

A pesquisa francesa chega a conclusões semelhantes: “Está claro que as taxas


de ingresso de oxigênio são baixas com screw caps e rolhas técnicas,
intermediárias com rolhas naturais, e altas com rolhas sintéticas”. As rolhas
técnicas usadas no teste foram a 1+1 (que tem um disco de cortiça natural em
cada extremidade de um corpo granulado) e a microgranulada. Curiosamente,
elas chegaram a permitir a entrada de menos oxigênio do que as tampas de
rosca, que variaram de 0,9 a 1,3 ml (quatro tipos foram testados) ao fim de um
ano de guarda, enquanto que as rolhas técnicas apresentaram 0,7
(microgranulada) e 0,8 ml (1+1), quando na horizontal, e 0,8 e 1,2 ml
respectivamente quando mantidas em pé. Sendo que, assim como os screw
caps, o primeiro mês concentrou cerca de 90% da entrada de oxigênio na
garrafa. Na tampa de rosca, contudo, 90% do ingresso ocorreu nos primeiros
dois dias e depois mostrou-se totalmente hermética. Com isso, os cientistas
estimam que boa parte do oxigênio que entra nas garrafas com screw cap está
relacionada à exposição ao ar na hora do engarrafamento e, uma porção
mínima, ao oxigênio de dentro da tampa.
Com temperatura e umidade controladas, cientistas dizem que garrafas podem ser
mantidas em pé sem qualquer prejuízo ao vinho
Curvas de ingresso de oxigênio ao longo dos meses na garrafa
dependendo do tipo de rolha (natural e sintética) e da posição de
armazenamento
Curvas de ingresso de oxigênio ao longo dos meses na garrafa nos
diferentes tipos de screw cap

Entrada de oxigênio?
Aliás, a discussão sobre como se dá o ingresso de oxigênio na garrafa,
especialmente quando se trata das rolhas de cortiça, é extensa e inconclusiva.
“O mecanismo [de entrada] permanece desconhecido e serão necessárias
pesquisas mais aprofundadas para elucidar esse fenômeno, que pode ocorrer
por difusão ou infiltração, ou ambos”, aponta o estudo francês. De acordo com
Paulo Lopes, contudo, boa parte (ou até mesmo a totalidade) do oxigênio que
ingressa na garrafa com o tempo já está dentro da própria rolha. “Há bons
indícios que levam à essa conclusão”, diz.

Isso estaria explicado pelo fato de a difusão de oxigênio observada no primeiro


mês (fase crítica) ser alta, para então decair até o final de 12 meses e seguir
mínima e estável até o fim do estudo. Nos gráficos, vê-se que as rolhas de 1o
grau permitiram mais oxigênio na garrafa do que as Flor e, segundo os
cientistas, “é possível que elas contenham mais ar dentro de suas estruturas
(pois têm um coeficiente de porosidade maior), que se propaga da rolha para a
garrafa durante o primeiro mês”. Ou seja, a vedação pela rolha, ao contrário do
que se pensa, impediria as trocas gasosas, na verdade.

Como guardar então?


Depois de tudo isso, estaria aqui então os porquês de alguns produtores de
Champagne e também de Vinho do Porto afirmarem que seus vinhos devem
ser guardados em pé? Sim, pois ainda há estudos feitos pelas casas de
Champagne que dizem não haver grandes diferenças entre espumantes
envelhecidos na vertical ou na horizontal, apesar de as avaliações ligeiramente
favorecerem as garrafas mantidas em pé.

Mesmo reafirmando que simplesmente não importa a posição de


armazenagem, Lopes recomenda guardar deitados – como manda o figurino –
os vinhos feitos para envelhecer. Isso não por qualquer receio de sua pesquisa
estar errada, mas devido a outro estudo que avalia a migração de compostos
fenólicos da rolha para o vinho. “O vinho pode, sim, ser armazenado em pé, no
entanto, face aos novos resultados que mostram que existe um ‘aporte’ de
compostos da rolha para o líquido, a conservação deitada poderá ser benéfica,
pois facilitará a migração desses compostos para a bebida e estou certo de que
eles irão contribuir para o envelhecimento equilibrado do vinho em garrafa”,
aponta.

Segundo algumas pesquisas, compostos fenólicos como os ácidos gálico,


protocatecuico e caféico, vanilina, além de taninos, podem passar da rolha para
o vinho e, de certa maneira (ainda não evidenciada completamente), também
contribuir para o envelhecimento.

Por outro lado, se pensarmos que, além desses citados, outros compostos,
como o TCA, também podem migrar para o vinho quando o líquido está em
contato com a rolha, talvez seja melhor manter as garrafas em pé.

Matt Holdstock, enólogo da AWRI, lembra, contudo, que os experimentos foram


conduzidos em ambiente controlado com as garrafas mantidas em temperatura
constante, próxima de 20oC, e umidade relativa de 65%. Ele aponta que, na
pesquisa australiana, os mesmos vinhos em condições não controladas
mostraram uma maior taxa de escurecimento nas garrafas guardadas em pé.
“Isso indica que, se você não tiver esses fatores sob controle, manter vinhos
em pé pode acelerar o envelhecimento”, diz o pesquisador. Lembrando que,
diante de alterações de temperatura, o volume do líquido pode variar
(contraindo com o frio e expandindo com o calor – o que pode expelir a rolha)
e, sem umidade, o vedante pode secar (perdendo suas propriedades elásticas
– permitindo a entrada de ar ou saída do líquido). Ou seja, se quiser guardar
suas garrafas em pé, não há problema, só tenha cuidado com a umidade e a
temperatura.

Original: http://revistaadega.uol.com.br/artigo/em-
guarda_9901.html#ixzz3oe4qjRAP

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