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Tens a certeza de que não és uma personagem do Sims?

(Determinismo radical: tese, argumentos e principais objeções)

Bom, antes que perguntes, respondo já: não, não costumo jogar Sims... Mas a
minha filha e as minhas sobrinhas jogavam. Seja como for, a parte que me interessa no
Sims é esta: “jogo eletrónico de simulação de vida.” O que é que isto tem a ver com a
Filosofia? Tudo. Deixa lá o joystick e ouve.
Quem joga Sims pode fazer uma série de escolhas divertidas e interessantes ao
“criar” as personagens. Escolher a cor dos olhos, a altura, a cor e o tipo de cabelo: loiro,
ruivo ou moreno, liso, ondulado ou frisado, por exemplo (o corte de cabelo também está
no menu). Pode também escolher traços da personalidade: tímido ou extrovertido,
alegre ou melancólico. Até o quarto pode ser escolhido previamente (o sonho de todas
as mães...). Pode escolher-se o estilo “mamã feliz e orgulhosa”: quarto todo
arrumadinho, cada coisa no seu lugar, sapatos alinhados, até no cesto a roupa suja está
virada e dobrada. Ou a versão “mãe com os cabelos em pé”: caos completo (tipo cenário
de guerra), roupa espalhada por todo o lado, meias e sapatos órfãos de par, livros e
mochila no chão, cadeira da secretária habilmente camuflada com peças de roupa
dispostas aleatoriamente, carregador ligado à tomada sem telemóvel... E que mais pode
escolher quem joga Sims? Gostos musicais, estilo de roupa, comidas preferidas, etc.,
etc.
O que te peço agora é que me acompanhes numa experiência mental, um
“truque” que os filósofos utilizam com muita frequência e algum sucesso. Trata-se de
imaginarmos uma situação que sabemos não ser real, mas que pode ser muito útil para
explicarmos as nossas ideias. Pois bem, a experiência mental que te proponho é a
seguinte.
Esquece que o Sims é um jogo. Esquece por momentos que todas aquelas
personagens foram criadas por ti. Dá um salto para o interior do jogo e tenta imaginar
como as diferentes personagens se “veem” umas às outras. Consideremos duas
possíveis personagens.
A Maria, por exemplo. É alta, morena e elegante. Tem cabelo preto, comprido e
ondulado, e gosta de música alternativa. Faz amigos com facilidade, é extrovertida e
adora fazer novas amizades. É daquelas pessoas que está sempre à vontade, mesmo
em situações novas com pessoas desconhecidas. Valoriza a família acima de tudo o
mais e adora crianças.
O Miguel é tímido e introvertido. Adora desportos, a única situação em que perde
a timidez. Prefere estar sozinho. É amigo da Maria, mas nunca escolheria o mesmo
estilo de vida e a mesma profissão que ela. Mas respeita naturalmente as opções delas,

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porque lhe reconhece o direito de fazer as escolhas que melhor se adequam à sua
maneira de ser.
Ao “pensar” assim, o Miguel está a partir do princípio de que a Maria, chegado
o momento de escolher casar ou não casar, por exemplo, pode muito bem não casar. O
mesmo se aplica à profissão: poderia ter escolhido um trabalho solitário atrás de uma
secretária, mas não o fez. Ou seja, o Miguel vê nas escolhas da Maria decisões livres.
Dito de outro modo, as ações da Maria não foram determinadas: ela usou o seu livre
arbítrio.
O Miguel pensa assim porque parte do princípio de que as ações que a Maria
realiza ao longo da sua vida são escolha sua, e apenas sua. O que escapa ao Miguel é
que as escolhas da Maria foram determinadas por algo que ela não escolheu e que a
levaram a, inevitavelmente, ter seguido o caminho que seguiu e não outro qualquer.
A decisão de casar, por exemplo. À primeira vista, parece que a Maria poderia
ter escolhido não o fazer. No entanto, houve duas características suas que
determinaram a sua escolha. Refiro-me à valorização da família e ao gosto por crianças.
Uma rapariga assim não escolhe não casar e não ter filhos! Esse caminho não é, de
facto, uma opção para ela. Pelo que a sua escolha não foi livre, mas sim determinada.
Neste caso, pelo seu “histórico”. Que, ao contrário do que acontece com os
computadores, nunca pode ser apagado, determinando as nossas opções futuras.
A escolha da profissão obedece ao mesmo padrão. A Maria tem características
de personalidade que não foram por si escolhidas: extrovertida, confiante, está tão à
vontade na vida social como peixe na água. As suas características de personalidade
determinaram as suas escolhas profissionais. Uma pessoa assim nunca escolheria ficar
uma vida inteira a trabalhar isolada atrás de uma secretária. Talvez preferisse ir para a
universidade...
Vamos agora fazer a leitura filosófica desta experiência mental que te propus.
As personagens do Sims pensam das outras (e, também, de si mesmas) que as
decisões que tomam são escolhas livres. Mas acontece que lhes escapa um aspeto
fundamental: as suas decisões são determinadas por causas anteriores às suas
escolhas e que as encaminham para essas escolhas e não outras. Inevitavelmente, sem
o poderem evitar. Por isso, em rigor, pode-se dizer que as suas escolhas foram
determinadas e, por isso, não são livres.
Há uma teoria filosófica que defende o que acabámos de afirmar. E vai mais
longe: defende que o mesmo se passa com os seres humanos na vida real. Esta teoria
designa-se determinismo radical. Irei explicar-te de seguida por que motivos esta
concepção do determinismo é apelidada de radical.

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Para o determinismo radical, todo o universo é determinista, ou seja, tudo o que
nele acontece é o efeito de causas físicas (naturais), incluindo as ações humanas. Ou
seja, não existe livre-arbítrio. Ao não admitir exceções para o determinismo, esta teoria
retira aos seres humanos qualquer esperança de serem um caso especial no universo.
O determinista radical raciocina do seguinte modo:

Se existe determinismo, o livre arbítrio não existe.


Existe determinismo.
Logo, o livre arbítrio não existe.

Por aquilo que aprendeste no último capítulo, estás em condições de concluir


que o determinismo radical é uma teoria incompatibilista, uma vez que defende que a
existência de determinismo e de livre arbítrio são incompatíveis.
Chegado aqui, está na hora de conheceres os argumentos utilizados pelo
determinismo radical para sustentar a sua tese. Vou apresentar-te dois dos argumentos
mais utilizados pelos defensores desta corrente filosófica.
Comecemos pelo argumento da causalidade à distância. Este argumento parte
da convicção de que as ações dos seres humanos no momento em que as realizam têm
a sua origem no seu passado mais remoto. No início de tudo temos a herança genética
que herdamos dos nossos pais. Para o determinista radical, grande parte do que cada
um de nós vem a ser no futuro tem a ver com os genes que herdou. Mas não são apenas
os genes que determinam o que fazemos. Também a nossa infância e as influências do
meio familiar e social condicionam grandemente aquilo em que nos tornamos. Voltando
à analogia com os computadores, podemos dizer que aquilo que somos hoje é
fortemente determinado pelo “histórico” da nossa vida. Este histórico é constituído por
tudo o que nos foi acontecendo e tudo o que fomos fazendo no passado. Mas,
contrariamente ao que acontece com os computadores, o nosso histórico não pode ser
apagado para se começar do zero. Cada um de nós tem uma história pessoal que, a
par das nossas características genéticas, fez com que nos tornássemos no que somos.
Comparando com as personagens do Sims, cujas características foram impostas e não
escolhidas, poderíamos dizer que também nós somos o que não escolhemos ser, uma
vez que o que determina as nossas ações (genes e meio ambiente durante e após a
infância) são fatores sobre os quais não temos controlo. Percebes agora a
provocaçãozinha que te fiz com o título tens a certeza de que não és uma personagem
do Sims?
Talvez seja a altura ideal para resumir o argumento da causalidade à distância.
Aqui vai, então:

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Qualquer ação que um agente pratique é causada por fatores (genes e influências
familiares e sociais) sobre os quais não tem controlo.
Se não tem controlo sobre o que o faz agir, o agente não tem possibilidade de escolha.
Ser livre é ter possibilidade de escolha.
Logo, não há ações livres.

O segundo argumento de que te quero falar, apesar de menos subtil, é no


entanto muito utilizado. Refiro-me ao argumento dos impulsos. Como o próprio nome
indica, pretende-se destacar a importância que os impulsos têm nas nossas ações.
Todos nós ouvimos falar de situações em que pessoas são “levadas” por impulsos. Isso
deve querer dizer que a pessoa não só não controlou esse impulso, como, ainda por
cima, foi controlada por ele. É isto que a expressão “foi mais forte do que eu” quer
habitualmente significar. Ora bem, o argumento dos impulsos pode ser sintetizado
assim:
Se alguém age determinado por impulsos que não pode controlar, não age livremente.
Os impulsos existem e interferem nas nossas ações.
Logo, não há ações livres.

E pronto, aqui tens os dois argumentos principais. O determinismo radical é uma


teoria que tem tido ilustres seguidores ao longo da história da Filosofia. Vou exemplificar
historicamente esta teoria com uma corrente filosófica nascida na Grécia Antiga e que,
posteriormente, se estendeu ao Império Romano. Refiro-me ao estoicismo. Os dois mais
famosos filósofos estoicos tiveram vidas completamente diferentes: um, Epicteto, foi
escravo, o outro, Marco Aurélio, foi imperador de Roma. Selecionei um pequeno excerto
de cada um deles, retirados de obras suas. Aqui tens o primeiro excerto, de Epicteto:

“Mentaliza-te de que és um ator de uma peça que será como o seu autor quiser que
seja: curta se a quiser curta, longa se a quiser longa. Se quiser que representes o
papel de um mendigo, procura representá-lo com naturalidade; e o mesmo se aplica
ao papel de um coxo, um juiz ou outro qualquer. O que de ti depende, pois, é isto:
representar bem o papel que te foi destinado; mas a sua escolha não depende de ti.”

Epicteto, Enquiridion, XVII.

Repara na metáfora que o autor utiliza: a vida é como uma peça de teatro.
Segundo ele, nós não somos os autores da nossa vida, mas apenas atores. Ora, é

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sabido que aos atores lhes é atribuído um papel, não sendo eles que escolhem o que
vão fazer na peça. Epicteto defende que o mesmo acontece comigo, contigo, com todos
os seres humanos: várias circunstâncias não escolhidas por nós determinam aquilo em
que nos tornamos, o “papel que nos foi destinado”. Nada podemos contra isso uma vez
que, tal como ele próprio te diz no texto, “a sua escolha não depende de ti”.
Agora é a vez de Marco Aurélio, imperador de Roma:

“Não fica bem enfurecermo-nos contra as coisas. Elas não se importam com isso.”
Marco Aurélio, Pensamentos Para Mim Próprio, VII, 38.

Ora aqui está uma posição perturbadora, não te parece? Aceitar tudo o que
acontece com resignação, porque nada ganhamos em nos revoltarmos contra as coisas.
Bom, isto é decerto verdade para fenómenos como a chuva ou as estações do ano, por
exemplo. Mas será realmente assim com as pessoas?
Seja como for, não há dúvida de que o determinismo radical é consistente com
o que a ciência nos diz acerca do funcionamento do universo. De facto, a ciência
defende que o universo obedece a leis. Quem subscreve a tese do determinismo radical
não necessita, portanto, de pôr em causa a sua crença na veracidade da ciência. Trata-
se, sem dúvida, de um ponto forte a favor do determinismo radical. Mas também há
objeções fortes que podemos colocar a esta teoria. Vejamos algumas.
Primeira: os juízos morais deixam de fazer sentido. Com efeito, se as ações
humanas são determinadas e não existe possibilidade de escolha, não faz sentido
classificar as ações como sendo «boas» ou «más» nem responsabilizar, elogiar ou punir
alguém pelos seus atos. Ou seja, é o fim da noção de responsabilidade moral, tal como
normalmente a entendemos: quem comete um crime não é responsável por ele, quem
realiza um feito enorme não merece ser elogiado por isso. Deixo-te aqui um desafio:
imagina o discurso de um Cristiano Ronaldo determinista radical no momento de receber
a Bola de Ouro da UEFA, troféu que serve para eleger o melhor jogador do mundo...
Carlos Café (2013), O problema do livre arbítrio (capítulo 2): Tens a certeza de que
não és uma personagem do Sims? Retirado de
http://afilosofiavaiaocinema.blogspot.pt/2013/11/o-problema-do-livre-arbitrio-capitulo-
2.html

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