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O DIÁLOGO NA INFÂNCIA: CONTRIBUIÇÕES DO CÍRCULO DE BAKTHIN

PARA ANÁLISE DAS CONVERSAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Nicolle Cloé Nassur

Resumo

Este trabalho teve como foco de estudo o momento pedagógico intitulado


“Roda de Conversa”, em uma turma do Infantil IV da Educação Infantil, no
Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) do município de Araucária. As
rodas de conversa fazem parte da rotina de atividades diárias e é obrigatória
para os CMEI’s da Rede Municipal de Ensino do município. O objetivo da
investigação foi analisar como ocorrem os momentos planejados de
conversação entre crianças pequenas, utilizando para análise dos dados
coletados a perspectiva teórica do Círculo de Bakhtin, para tanto utilizou como
metodologia a revisão bibliográfica sobre o assunto e registros das falas
infantis no instrumento intitulado anedotário. Considerou-se que é importante
valorizar as vozes infantis e proporcionar espaços onde as crianças pequenas
possam expor seus pensamentos e desejos, compartilhando suas experiências
e constituindo-se enquanto sujeitas de sua autonomia e aprendizagem. Sendo
o docente co-responsável por preparar o espaço e mediar o diálogo,
interagindo e participando da conversa.

Palavras-chave​​: Roda de conversa; Círculo de Bakhtin; Crianças pequenas.

1. Introdução

O presente ensaio investiga as relações dialógicas das conversas entr​e


crianças pequenas em uma sala de aula do Infantil IV, no espaço educativo
institucionalizado, o Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI). Localizado
no bairro Capela Velha no município de Araucária,
Tendo como base teórica as contribuições do Círculo de Bakthin no
estudo da análise do discurso e o conceito de dialogismo, expostos pelo autor
José Luiz Fiorin. A revisão bibliográfica sobre o tema também levou ao
encontro da obra “Rodas de Conversa: Uma análise das vozes infantis na
perspectiva do Círculo de Bakhtin”, da autora Viviane Maria Alessi, resultado da
dissertação de mestrado sobre a temática. O referencial teórico exposto junto a
análise dos dados coletados contribuiu para compreender como o diálogo
dentro da instituição de educação infantil contribui e pode contribuir para a
construção da identidade das crianças pequenas e seu desenvolvimento
cognitivo.
O CMEI onde foi realizada a investigação encontra-se na Zona Urbana
do município de Araucária, atende crianças de dois à cinco anos, em duas
salas de maternal (Creche), onde as crianças permanecem durante os dois
turnos, e Infantil IV e V (Pré-Escola) onde as crianças são atendidas pela
manhã e à tarde. A pesquisa se deu em uma turma de Infantil IV, do período da
tarde. A faixa etária do grupo variava entre crianças de quatro anos e dez
meses, até crianças com três anos e onze meses. Totalizando 24 crianças que
se dividem em 11 meninos e 13 meninas.
A metodologia utilizada foi a de registro dos momentos de conversa das
crianças dentro da sala de aula, no instrumento intitulado “anedotário”, onde
foram registrados as falas das crianças durante os meses de agosto à
novembro. Foram usados nomes fictícios para preservar a identidade das
crianças. Para análise dos dados obtidos utilizou-se o conceito de dialogismo
proposto pelo Círculo de Bakthin.
De acordo com Fiorin, o Círculo de Bakhtin foi formado durante o início
do século XX, na cidade de Nevel na então União Soviética, onde Bakhtin
lecionava, e contou com a participação de Matvei Issaévitch Kagan, Valentin
Nickolaévitch Voloshinov e Pável Nikolaévitch Medvedev, entre outros (2010).
O grupo se dedicou ao estudo da literatura e da linguística, e também de
estabelecer uma filosofia e teoria da superestrutura, sendo suas ideias muitas
vezes consideradas marxistas, consideram a linguagem central na constituição
da superestrutura (FIORIN, 2010). Segundo Fiorin, são “três eixos básicos do
pensamento bakhtiniano:unicidade do ser e do evento; relação eu/outro;
dimensão axiológica” (Fiorin, p.17, 2010).
O principal conceito na obra de Bakhtin é o de Dialogismo, que
segundo Fiorin “são as relações de sentido que se estabelecem entre dois
enunciados”, para tanto considera-se enunciado não apenas as unidades da
língua, as palavras, como as idéias e os ideais sociais que as acompanham. O
enunciado está sempre em diálogo com outros enunciados, e as palavras estão
necessariamente atravessadas pelo discurso social que delas se utiliza. Neste
sentido, todo enunciado é uma réplica a outros enunciados, a comunicação
está em permanente diálogo com o outro, com as vozes sociais por trás dos
enunciados. (FIORIN, 2010).

2. Desenvolvimento

O processo da investigação se deu sobre a análise dos registros das


falas infantis durante o momento pedagógico intitulado “Roda de Conversa”, a
roda faz parte da rotina diária das instituições de educação infantil do município
e é obrigatória no planejamento docente. Sobre as motivações da inclusão de
um espaço que valorize e inclua o diálogo como atividade diária e com intenção
pedagógica encontramos o seguinte referencial:

A roda de conversa é o momento privilegiado de diálogo e


intercâmbio de idéias. Por meio desse exercício cotidiano as crianças
podem ampliar suas capacidades comunicativas, como a fluência
para falar, perguntar, expor suas idéias, dúvidas e descobertas,
ampliar seu vocabulário e aprender a valorizar o grupo como instância
de troca e aprendizagem. A participação na roda permite que as
crianças aprendam a olhar e a ouvir os amigos, trocando
experiências. Pode-se, na roda, contar fatos às crianças, descrever
ações e promover uma aproximação com aspectos mais formais da
linguagem por meio de situações como ler e contar histórias, cantar
ou entoar canções, declamar poesias, dizer parlendas, textos de
brincadeiras infantis etc. (Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil, p.138, 1998)
A roda de conversa intencional e planejada pela docente é incentivada
e valorizada pelos documentos nacionais que orientam o trabalho pedagógico
para esta etapa da Educação Básica, como uma das estratégias didáticas para
o desenvolvimento cognitivo, afetivo e social das crianças pequenas.

Neste espaço elas têm sua voz ouvida por todo o grupo e onde cada
uma pode vir a contar suas histórias e experiências pessoais e também escutar
o próximo. No trecho retirado de uma roda de conversa podemos observar o
interesse da criança em ser ouvida:

Rafaela: Eu tava esperando, eu queria contar! Ontem eu fui na casa da minha vó e lá tava
minha prima. Tava muita gente e daí brincando!

A criança durante sua permanência dentro do CMEI, aos poucos vai se


acostumando à rotina das atividades permanentes, e cria expectativas para
cada um desses momentos, incluindo o momento em que a sua voz vai ser
ouvida pelas demais crianças e pelas professoras. As crianças também vão
aos poucos incorporando as regras sociais definidas para aquele momento,
como esperar o próximo e esperar a mediação da professora.
No trecho a seguir pode-se observar que o MIguel estava escutando
atentamente o colega e se incomodou quando este foi interrompido:

​Luiz: E daí eu fui no Acquapark e tinha um jacaré lá (...)


Bianca: Eu também fui no Acquapark!!
Miguel: Não Bianca! Você não levantou a mão! Deixa o Luiz
fala!

Por se tratar de um espaço de conversação institucionalizado, as regras


para o diálogo variam daquelas vividas pelas crianças em outros espaços
sociais que elas frequentam como a família. Segundo Alessi:

Assim, para compreender uma enunciação e seu significado, faz-se


necessário considerar o momento em que ela ocorreu, o falante e os
participantes diretamente envolvidos na situação, bem como as
nuances da sua entonação, sua expressão e seus gestos e, num
âmbito mais amplo, o grupo social a que pertence o falante, as
complexas inter-relações sociais que o influenciaram ao longo de toda
a vida. (Alessi, p.82,2014)
​A conversa dentro de sala de aula adquire, mesmo nas crianças
pequenas, características diversas daquelas vividas fora da instituição, e
muitas vezes o caráter formal e as regras estabelecidas levam as crianças a
buscar outras formas de se comunicar mesmo não estando dentro da regras da
sala:

Fernanda: Professora sabia que tava indo com minha vó daí eu um cachorrinho que tava
machucado e dái minha vó parou pra cuidar dele?
Maria: É mesmo? E o que ele tinha? - a criança se abaixa e
diminui o tom de voz , chegando bem próxima da colega.

Quando a Maria dirige seu enunciado para Fernanda, o faz também com
seu corpo, e evidencia outro enunciado, ao abaixar a voz e inclinar o corpo, ao
falar sem “esperar sua vez”, Maria reconhece as regras sociais daquele
momento de fala, mas seu interesse e necessidade de diálogo com Fernanda
leva a buscar outras formas de se comunicar.
O enunciado está sempre em posição a outro enunciado, característica
que o torna dialógico, está posição pode ser para afirmar, questionar ou refutar.
O discurso está sempre atravessado das vozes sociais que compõe o sentido
das palavras. O outro é fundamental e inseparável quando da pronúncia de um
enunciado, este outro pode ser o sujeito com o qual se está conversando, ou
outras vozes sociais que estão presentes nos discursos:

Paulo: Lá na minha casa o meu irmão só dorme! Minha mãe


já falou que tem que estudar e trabalhar, não pode ficar só dormindo!

A voz social presente no enunciado do Paulo, é a de que é preciso


trabalhar e estudar, valores que fazem parte do contexto da sociedade
capitalista no qual ele está inserido.
O enunciado está sempre atravessado por outros enunciados como
pode-se observar no seguinte trecho:

Aline: Sabia que eu fui na praia e eu tinha um anel, e quando eu voltei


da onda eu perdi ele!
Professora: Puxa Aline! Que pena! E você procurou na areia depois?
Aline: Eu procurei mas eu, eu procurei com a minha mãe mas não
achei.
Professora: Nossa mas ficou igual a musica né. Que a menina perde
o anel no mar, vocês lembram dessa música?
Algumas crianças: Sim (...)
Elen: Professora, sabia que eu fui na praia e achei um anel?
Professora: É mesmo? Será que era o anel da Aline?
Elen: Eu achei ele na areia assim, dentro da barriga da baleia!
(outra criança se levanta pra falar)
Professora: Fala Laura
Laura: Eu vi o anel da Aline lá na praia, tinha uma pedrinha. Eu ia
devolver daí o jacaré comeu o anel.

A história do anel compartilhada pela Aline, possibilitou uma variedade


de respostas das demais crianças e da professora. O enunciado inicial dirigido
para a turma fez que com outras crianças fossem motivadas a também
comentar sobre o fato, mesmo que a veracidade das respostas possam ser
contestadas, a intenção em participar da conversa e da situação vivida pela
colega, a perda do anel na praia, motivou uma série de relatos naquele
momento. De acordo com Bakhtin:

Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação


verbal de uma dada esfera. As fronteira desse enunciado
determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados
não são indiferentes uns aos outros nem são
auto-suficientes;conhecem-se uns aos outros, refletem-se
mutuamente. (BAKHTIN,1992, p.316. apud ALESSI, 2014 p.80)

Durante a conversa em sala de aula, as falas, os relatos e os causos


cotidianos são compartilhados pela e com a turma. As vivências narradas
possibilitam construir laços afetivos com os colegas e ressignificar situações
em que a criança necessita da ajuda do outro para compreender. Dessa forma,
no espaço acolhedor ela pode ser ouvida e construir junto com outras crianças
seus enunciados, sua voz.
Ao final da investigação durante uma das rodas de conversa, foi
proposto pela professora que as crianças falassem sobre se gostavam de
sentar para conversar e apareceram as seguintes respostas:
Paulo: Eu gosto de conversar porque gosto dos meu amigos! Gosto
de conversa de guitarra.
Telma: Eu gosto de conversar com minha mãe sobre festa! Sabia
que amanhã vai ter aniversário? Eu e a minha mãe, a gente conversa
sobre festa, bolo.
Márcia: Eu e a Fernanda, a gente conversa.
Professora: Do que vocês conversão?
Márcia: De música.E animais.

As crianças apreciam falar e se comunicar com outras crianças, contar


suas histórias pessoais, compartilhar os acontecimentos recentes e também
escutar as histórias dos colegas.

3. Considerações finais

A roda de conversa enquanto espaço de valorização do diálogo


possibilita que as crianças que frequentam o CMEI expressem seus
sentimentos, angústias e desejos, bem como compartilhem suas experiências e
criem narrativas próprias. Muito mais do que desenvolver a oralidade nas
crianças pequenas, a roda de conversa, planejada e mediada pelo trabalho
docente, pode se tornar um local em que a crianças pequenas possam de fato
ser ouvidas e também se construir enquanto sujeitas de sua autonomia.
As teorias propostas pelo Círculo de Bakhtin contribuíram para a
compreensão e análise dos registros das conversas coletadas, evidenciando a
importância do outro na construção da identidade dos sujeitos e como os
enunciados estão em constante diálogo com o meio histórico e social em que
estão inseridos.
A voz das crianças pequenas deve ser ouvida e valorizada por
professoras, educadoras, pedagogas e demais profissionais que atuam na
Educação Infantil. A escuta atenta e ativa move a ação pedagógica a se
reconstituir no caminho a uma educação de qualidade que promova a
autonomia e a liberdade das crianças que freqüentam estes espaços.
Neste sentido, o docente é co-responsável por fomentar o diálogo em
sala de aula, preparar o espaço para acolher as crianças, manter escuta ativa
da fala das crianças e registrar o relatos trazidos por elas.

4. Referências

ALESSI. Viviane Maria. ​Rodas de Conversa:uma análise das vozes infantis


na perspectiva do círculo de Bakhtin. ​Curitiba, 2014.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação


Fundamental. ​Referencial curricular nacional para a educação infantil​​.
Brasília, 1998. (v.3 - conhecimento de mundo)

FIORIN. José Luiz. ​Introdução ao pensamento de Bakhtin.​​ São Paulo, 2008.

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