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20/08/2020 Éticas teleológicas

Crítica
21 de Março de 2008 Ética

Éticas teleológicas
Thomas Hurka
Tradução de Luís Gottschalk

As teorias sobre o que é correcto ou errado dividem-se habitualmente em duas categorias: as teleológicas e as não
teleológicas. As teorias teleológicas são as que identificam primeiro o que é bom nos estados de coisas, caracterizando
depois os actos correctos apenas em termos desse bem. O exemplo paradigmático de uma teoria teleológica é, assim,
uma teoria consequencialista imparcial, como o utilitarismo hedonista; defendido por John Stuart Mill (1969) e Henry
Sidgwick (1907), afirma que a acção correcta é sempre aquela cujas consequências implicam a maior soma possível
de prazer. Porém, a noção de ética teleológica é normalmente considerada mais ampla que o consequencialismo,
podendo existir teorias teleológicas que não sejam consequencialistas, o que pode ser entendido de diferentes
maneiras.

O utilitarismo hedonista apresenta três aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, identifica os estados de coisas bons
independentemente de considerações sobre o que é correcto ou não, de modo que até mesmo o prazer proporcionado
por um acto errado, por exemplo o prazer sádico obtido pela tortura, é considerado intrinsecamente bom; e estes bens
são sempre consequência dos actos que os produzem, isto é, estados de coisas independentes que se seguem dos actos.
Em segundo lugar, ao avaliar as consequências, o utilitarismo considera imparcialmente os prazeres de todas as
pessoas, de modo que, para qualquer um, o prazer de um estranho conta tanto como o de um filho ou, até, o seu
próprio prazer. Finalmente, o utilitarismo caracteriza as acções correctas exclusivamente em termos da promoção do
bem e, mais especificamente, da sua maximização, de modo que a acção correcta é sempre a que promove o maior
bem possível.

Apesar de as teorias teleológicas terem de identificar o bem independentemente do que é correcto ou não, reconhecem
muitos bens distintos do prazer. Alguns dos bens possíveis, por exemplo o conhecimento e a criatividade artística, são,
tal como o prazer, estados de pessoas individuais. Outros envolvem padrões de distribuição entre pessoas, de modo a
terem prazeres equivalentes ou, de outro ponto de vista, prazeres proporcionais ao seu mérito. No entanto, outros bens,
como a existência de beleza ou de ecossistemas complexos, são independentes das pessoas. (Os consequencialismos
ideais, de G. E. Moore (1903) e de Hastings Rashdall (1907), admitem bens destes três tipos). Estes bens são todos, tal
como o prazer, consequências dos actos que os produzem, mas outros bens não o são. Imagine-se que uma teoria
valoriza as actividades difíceis por serem difíceis. Então, empenhar-se numa actividade difícil, jogar xadrez por
exemplo, promoverá o valor não apenas por produzi-lo como uma consequência externa, mas também por ser um caso
particular do valor ou por ter a dificuldade como propriedade intrínseca. O mesmo se pode dizer se a teoria valorizar a
acção que procede de uma motivação virtuosa, como o desejo benevolente relativo ao prazer de outrem. Neste caso,
um acto de benevolência contribuirá para o valor em parte por causa de uma propriedade intrínseca — o facto de ser
benevolente. Eis uma primeira forma de uma teoria poder ser teleológica sem ser consequencialista: se o
consequencialismo apenas pode valorizar as consequências externas dos actos, como se presume em algumas
definições, então uma teoria que valoriza propriedades intrínsecas dos actos está conforme com o sentido mais amplo
de ética teleológica, mas não com o sentido mais estrito. Pode ainda avaliar os actos com base no estado global do
mundo que resulta da sua execução, mas algumas propriedades relevantes desse estado são intrínsecas aos actos.

Uma teoria teleológica pode também abandonar o segundo aspecto do utilitarismo — a imparcialidade relativamente
ao bem. Assim, uma teoria teleológica pode ser egoísta, aconselhando os agentes individuais a promoverem apenas o
seu próprio prazer, conhecimento, ou outros bens, ou, pelo contrário, pode afirmar que devem promover
exclusivamente o bem de outrem e não o próprio. Pode ainda adoptar o que C. D. Broad (1971) chamou “altruísmo
auto-referencial”, que diz que, apesar de as pessoas deverem dar algum peso ao bem de todos, deveriam importar-se
mais com o daqueles que lhes estão próximos, por exemplo a família e os amigos. Estas teorias podem ainda
identificar o bem independentemente do que é correcto e afirmar que os actos correctos são os que maximizam o bem,
mas, se a imparcialidade for essencial no consequencialismo, como alguns pressupõem, são teleológicas mas não
consequencialistas.

Estas duas primeiras possibilidades integram-se num grupo de teorias frequentemente classificadas como teleológicas
mas não consequencialistas — as teorias eudemonistas de Aristóteles e outros filósofos antigos. Derivam todas as

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exigências morais de um fim último ou bem a que chamam a eudemonia da pessoa, o que significa felicidade ou plena
realização da pessoa. São pois, formalmente, teorias egoístas já que o fim último de cada pessoa mais não é do que a
eudemonia própria dessa pessoa. Mas defendem que uma componente principal da eudemonia é a virtude moral, que
se expressa em actos virtuosos tais como ajudar os outros por motivos benevolentes. As teorias eudemonistas podem,
em princípio, admitir os mesmos deveres substanciais que o utilitarismo, exortando as pessoas a imparcialmente
maximizar o prazer. Mas os seus argumentos não se baseiam na relação causal que é essencial no utilitarismo,
defendendo antes que os actos que visam ajudar os outros são exemplos da virtude moral que, por sua vez, é uma
parte da eudemonia.

Finalmente, uma teoria pode ainda abandonar o terceiro aspecto do utilitarismo: a maximização do bem. Este aspecto
é extremamente exigente uma vez que implica que sempre que não fazemos tudo o que podemos para beneficiar os
outros, o que inclui todas as vezes que descansamos ou nos divertimos, agimos erradamente. Uma possibilidade,
proposta por Michael Slote (1985), seria substituir o princípio de maximização por um princípio da satisfação do
suficiente que afirmasse que um acto é correcto desde que as suas consequências sejam suficientemente boas, quer em
termos absolutos quer porque realizam uma proporção razoável da máxima melhoria que o agente pode promover nas
circunstâncias. Muitos autores consideram que esta posição é consistente com o consequencialismo, mas, se a este
último é essencial ser maximizante, como está implícito em algumas definições, um princípio da satisfação do
suficiente está, também ele, na base de uma teleologia não-consequencialista. Outra possibilidade, proposta por
Samuel Scheffler (1982), seria conservar o princípio de maximização mas, simultaneamente, admitir que os agentes
tivessem a opção de dar, de algum modo, um peso maior ao seu próprio bem. Assim, se preferirem um benefício
menor para si próprios a um maior benefício para outrem, não agem erradamente, como também não agiriam
erradamente se preferissem o maior bem. Esta perspectiva resulta provavelmente numa teoria não-consequencialista,
uma vez que não contém apenas princípios sobre a promoção do bem; mas pode defender-se que é teleológica uma
vez que todos os seus princípios, de algum modo, dizem respeito ao bem.

São possíveis desvios mais radicais do princípio de maximização. É habitual opor-se as teorias teleológicas às
deontológicas, que defendem que um acto pode ser errado mesmo se tiver as melhores consequências. Assim, uma
teoria deontológica pode afirmar que é errado matar um inocente mesmo se tal impedir que morram cinco outros
inocentes, uma vez que fazê-lo viola uma restrição moral contra o acto de matar; do mesmo modo, pode ainda incluir
restrições contra o acto de mentir ou de quebrar uma promessa e outras. Uma teoria deontológica é claramente não-
consequencialista, e é também não teleológica se as suas restrições forem independentes do bem, por exemplo, se
contiver proibições independentes, não derivadas, de matar ou mentir. Mas alguns deontologistas, que classificam
como tomista a sua perspectiva, não relacionam as restrições com o bem. Começam por identificar certos estados de
coisas como intrinsecamente bons, por exemplo o prazer, o conhecimento e a liberdade. Mas, depois, pretendem que,
juntamente com o dever de promover esses bens, há um dever independente e superior de os respeitar, o que implica
nada escolher que os contrarie ou que os destrua intencionalmente. Este segundo dever é a base de restrições contra
matar, que destrói o bem que é a vida humana; contra mentir, que visa o oposto do conhecimento, e assim por diante.

Porém, os tomistas tal como John Finnis (1980) classificam a sua perspectiva como teleológica uma vez que se centra
nos bens que podem e devem ser promovidos. O mesmo não se poderia dizer das deontologias de inspiração kantiana
que baseiam as restrições no respeito por um valor que se encontra nas pessoas e não nos estados de coisas e que não é
para ser promovido uma vez que não há um dever de aumentar o número de pessoas virtuosas. Mas a deontologia
tomista partilha com as teorias teleológicas típicas um número suficiente de posições para que possa ser classificada
como tal, ainda que isso não seja incontroverso. (A ser assim, as éticas deontológicas opõem-se ao consequencialismo
mas não necessariamente à teleologia.)

As teorias morais teleológicas relacionam todos os deveres morais com o bem dos estados de coisas. Assim, serão
rejeitadas por quem pensa que as afirmações sobre valor intrínseco são ininteligíveis ou por quem defende, com Kant
(1998), que o valor fundamental é o da pessoa. Estas perspectivas são, no entanto, minoritárias. A maioria dos
filósofos aceitam como não deriváveis as afirmações de que a dor é um mal e o conhecimento um bem, de modo que
há, pelo menos, algum dever moral de evitar a primeira e promover o segundo. A questão crucial no que diz respeito
às éticas teleológicas é, pois, se todos os deveres podem ser relacionados com o bem. Ao tratar-se esta questão deve
ter-se em conta as múltiplas formas de éticas teleológicas. Estas podem valorizar não apenas o prazer mas também,
por exemplo, a distribuição equitativa e a acção virtuosa; podem permitir, ou mesmo exigir, que os agentes dêem um
peso maior ao bem de certas pessoas; e podem não requerer a maximização do bem. Permanece, porém, a questão de
saber se as éticas teleológicas podem ou não admitir restrições morais que tornem errado fazer aquilo que promoveria
os melhores efeitos. Os consequencialistas em sentido estrito rejeitam essas restrições ou alegam que admiti-las só se
justifica no caso de terem boas consequências. Mas os que pensam que as restrições se impõem por si perguntarão se
as éticas teleológicas podem comportar restrições, como procuram fazer as teorias tomistas, e, em caso afirmativo, se
as explicam de modo satisfatório. Se a resposta a ambas as questões for afirmativa, então a abordagem teleológica da
ética pode abarcar um largo espectro de fenómenos morais. No caso contrário, essa abordagem torna-se inaceitável
para aqueles que pensam que, por vezes, é errado fazer o que promove o maior bem.

Thomas Hurka
Encyclopedia of Philosophy, ed. Donald M. Borchert (Macmillan Reference, 2006)

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Bibliografia
Aristotle, The Nicomachean Ethics. Translated by David Ross. Oxford: Oxford University Press, 1980.
Broad, C. D. “Self and Others”. In Broad's Critical Essays in Moral Philosophy, edited by David R. Cheney. London: Allen
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Finnis, John. Natural Law and Natural Rights. Oxford: Clarendon Press, 1980.
Frankena,William K. Ethics. 2nd ed. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1973.
Kant, Immanuel. Foundations of the Metaphysics of Morals. Translated by Mary Gregor. Cambridge, U.K.: Cambridge
University Press, 1998.
Mill, John Stuart. Utilitarianism (1861). In Essays on Ethics, Religion, and Society, edited by J. M. Robson. Vol. 10 of
Collected Works of John Stuart Mill. Toronto: University of Toronto Press, 1969, pp. 203—259.
Moore, G. E. Principia Ethica. Cambridge, U.K.: Cambridge University Press, 1903.
Rashdall, Hastings. The Theory of Good and Evil, A Treatise on Moral Philosophy. 2 vols. London: Oxford University
Press, 1907.
Scheffler, Samuel. The Rejection of Consequentialism: A Philosophical Investigation of the Considerations Underlying
Rival Moral Conceptions. Oxford: Clarendon Press, 1982.
Sidgwick, Henry. The Methods of Ethics. 7th ed. London: Macmillan, 1907.
Slote, Michael. Common-Sense Morality and Consequentialism. London: Routledge & Kegan Paul, 1985.

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