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DISCIPLINA, O PRINCÍPIO DA EDUCAÇÃO EM KANT
Leonardo de Ross Rosa i
Resumo
A formação da alma se refere à natureza e por isso não tem similaridade com a
formação moral, que se refere à liberdade. Kant sugere a distinção da formação física
e da formação prática ou moral, ou ainda pragmática. Ele indica que na formação
moral existe a moralização e não a cultura. Eis o segundo momento da educação
kantiana, a saber, a Educação Prática. Ela é o que Kant chamou de método e que se
divide em três partes: educação mecânica‐escolástica, que está vinculada à habilidade,
o que, para Kant, é possuir uma faculdade que seja suficiente para um fim desejado;
educação pragmática, que engloba a prudência, que é a “arte de aplicar aos homens a
nossa habilidade” de modo a alcançar os objetivos propostos; formação moral, que
concerne a ética e diz respeito ao caráter, sendo o último estágio da teoria educacional
de Kant.
A moralização se estabelece como o verdadeiro fim para o homem. Seu
conceito se une ao conceito de educação e nele é possível vislumbrar toda a evolução
do ser, onde ele passa pelos cuidados, pela disciplina, pela instrução ou cultura e pela
civilização. É importante salientar que, apesar da obra de Kant ter como fim uma
educação moral, a educação kantiana não ensina o agir moral. A explicação para isso é
que o agir moral é de legislação absolutamente interna, ou seja, advém do próprio
homem e assim não há como depender de outro homem. Aqui se constitui uma
relativa diferença de origem, digamos, entre o agir moral e a educação. No primeiro, a
origem deve ser o próprio homem, há um processo interno, já no segundo, a origem é
externa, ou seja, alguém deve educar o homem. Não se pode esquecer, no entanto, que
ambos estão ligados pois a ação dentro da moralidade exige a educação. Na verdade, a
educação em Kant tem o objetivo de preparar a criança para, enquanto homem,
buscar seu agir moral através da autonomia de pensamento. O pensar por si e ter sua
ação alicerçada na mesma autonomia do pensamento possibilitará ao homem seu agir
dentro da moralidade.
Todo o processo educacional se encerra com a consolidação de uma educação
moral. Com ela o homem supera gradativamente a propensão existente para o mal,
convertendo‐a em impulso para o bem. Deve‐se destacar que em Kant o homem não é
bom nem mau por natureza pois sua natureza não o faz um ser moral. Ele só será bom
ou mau, quando elevar sua razão aos conceitos do dever e tornar‐se um ser moral.
Sendo um ser moral, poderá escolher o caminho a tomar. Poderá ser bom, mas
também poderá trilhar o caminho do mau. Sendo moral, poderá assumir as máximas
escolhidas por ele mesmo e que determinarão sua vontade. Vale lembrar que Kant
atrela o mal à natureza quando esta não for submetida a regras e que, no homem,
existem germes somente para o bem. De mesma forma, ao atingir a moralidade, o
homem consolida seu caráter – quer fazer algo e realmente coloca isso em prática ‐ e
está apto a ver‐se como humanidade, grande objetivo de todo o processo. Em Sobre a
Pedagogia (2002, p. 487) Kant exemplifica o caráter: “Se, por exemplo, prometi algo a
alguém, devo manter minha promessa, mesmo que isso acarrete algum dano. Porque um
homem que toma uma decisão e não a cumpre, não pode ter confiança em si mesmo”.
Como dito anteriormente, o caminho que o conduz à moralidade é embasado
na liberdade e na autonomia, objetivo de todo o homem. Com efeito, Kant busca uma
educação para a liberdade, que é a condição de possibilidade para que esse homem
torne‐se esclarecido e autônomo, um homem que procura seu próprio caminho e
assim se realiza enquanto homem, concretizando seu plano que é o de ver‐se
enquanto humanidade. Uma humanidade que é sempre fim, um objetivo e nunca um
meio do qual o homem possa fazer uso.
Ainda dentro do princípio da autonomia, Kant alerta para o conceito de dever,
a atitude de agir por dever e também conforme o dever. O dever carrega consigo o
conceito da boa vontade e para que uma vontade seja autônoma, sua força deve ser
originada no próprio ser, em sua própria razão. Ao agir conforme o dever e por dever,
o homem está fazendo uso da autonomia da vontade e esta mostra‐se como a
capacidade do ser humano de dar‐se a lei moral com valor universal, ou seja, uma lei
que parta do homem individual, mas que tenha uma validade para todos, que possa
ser utilizada por todos. De mesma forma, a vontade deve ser determinada
primeiramente pela vontade em si e não pela vontade pelo objeto. Conseqüentemente,
a vontade não deve ter sua origem em algo externo ao homem ou mesmo que seja
motivada por algo externo à ele. Kant assevera ainda que uma “boa vontade” é boa em
si e sem limites e não tem necessidade de outros objetos para determiná‐la. Ela é a
única coisa realmente boa e está alicerçada no princípio do querer, segue o dever pelo
dever e seu valor está no princípio da ação, não estando vinculada ao resultado desta
mesma ação. É o respeito à lei que o conduz à ação.
Disciplina, a ruptura com a natureza
Para Kant, apenas quando o homem faz com que sua razão determine a
liberdade é que se encontra a liberdade moral, finalidade de todo o ser racional. Em
Kant vemos uma educação libertadora, que eleva o homem em sua condição e, para
tal, necessita de um processo que mude drasticamente a condição primeira da vida do
mesmo homem. Esse estado onde se encontra o ser e que tem na natureza sua fonte,
deve ser colocado à distância pela disciplina a fim de que o homem atinja um novo
momento. A disciplina, que não se configura como adestramento, garantirá a boa
preparação para que a criança receba a instrução, mas não se pode caracterizar a
disciplina como um estágio com encerramento ou período de atuação determinados.
Na verdade, a disciplina estará presente durante todo o processo educacional.
Com a indicação de que o homem deve sofrer a coação desde muito cedo, o
sujeito da teoria educacional de Kant é a criança. Não obstante, em Kant, a criança
nasce sob o poder de suas inclinações, o que seria um estado selvagem, sem regras, ou
melhor com uma liberdade sem regras. Nesse estado selvagem, comum aos animais, a
criança age conforme seus desejos e caprichos. Urge então a necessidade da imposição
de uma ordem, a fim de que a mesma criança não se desvie de seu caminho para a
humanidade. Como diz Kant em Sobre a Pedagogia (2002, p. 442): “A disciplina é o
que impede o homem de desviar‐se do seu destino, de desviar‐se da humanidade,
através de suas inclinações animais”. Kant assevera que a disciplina deve ser imposta
o quanto antes, pois no futuro a tarefa se tornará impossível. Kant afirma que “O
homem é tão naturalmente inclinado à liberdade que, depois que se acostuma a ela
por longo tempo, a ela tudo sacrifica” (2002, p. 442). Na verdade, Kant fala sobre a
possibilidade de a cultura ser instituída posteriormente e mesmo corrigida,
diferentemente da disciplina, que só encontra lugar na “mais tenra infância” e que
após a infância será inútil a tentativa de impô‐la.
É importante estar atento para a condição primeira do homem e que se
assemelha a dos animais, que já nascem sendo tudo o que podem ser. O que regula os
animais é o instinto. Diferente, o homem não tem esse limite que confere ao animal
um estado acabado. O homem é inacabado e essa condição traz a necessidade de
desenvolvimento. A natureza que deu aos animais os instintos também oferece ao
homem a possibilidade do uso da razão.
A disciplina retira o homem de sua natureza selvagem mas isso não se
consolida como um processo de separação e abandono absoluto. Kant fala de uma
retirada do ser de sua natureza sim, mas mais do que isso, seu intento é um
regramento, uma normatização desta natureza. Ela não é substituída simplesmente. A
natureza deverá ser normatizada, regrada. De qualquer forma, para o homem esse
momento de mudança é um avanço absolutamente relevante.
A disciplina carrega toda a responsabilidade de dar o primeiro passo em
direção ao objetivo final do homem. Seu papel, como visto, é afastar o homem de sua
menoridade ‐ situação onde sua condição natural de animal o conduz à ação segundo
seus estímulos e sentimentos ‐ através da coação. A disciplina vem para retirar a
criança do estado selvagem onde ela se encontra ao nascer e assim diferenciar o
homem do animal bruto que age instintivamente. O homem requer polimento devido
à sua inclinação à liberdade. Com efeito, cabe aos pais, o primeiro contato do ser,
passar a seus filhos a disciplina ‐ para que sejam obedientes ‐ e a instrução. Kant
enfatiza a importância do cuidado dos pais para com os bebês, pois sem estes
cuidados os mesmos morreriam por não ter nenhuma condição de sobrevivência
sozinhos. Assim as crianças não farão uso nocivo das forças e inclinações animais e,
portanto, não cairão na selvageria independente de quaisquer regras, possibilitando
cresçam rumo ao esclarecimento. Vale lembrar que em Kant, não há uma força
superior que vá guiar o homem. Se fosse desta forma tudo já estaria determinado, não
necessitando de qualquer movimento dele. É o homem que constrói seu caminho de
busca para que, enfim, encontre a humanidade.
A ruptura com um estado de comodidade no qual o ser já está inserido é
colocado neste trabalho como o mais tenso momento da educação de Kant. Ao
encontrar‐se em um estado e ter que sair do mesmo, a então criança, sob o cuidado do
educando, passa por sua maior prova na busca que o homem faz de seu objetivo final.
Neste contexto da retirada do homem do estado primitivo, Kant vê a interrupção do
caminho que seria comum aos animais. Ao homem seria possível seguir a comodidade em
uma vida em que são supridas as suas necessidades básicas. O primitivo lhe é atrativo, mas
não permite seu desenvolvimento e acaba por impedir sua evolução para o esclarecimento e
também sua constituição no verdadeiro homem. Ainda, não sendo disciplinado, Kant
entende ser absolutamente complexa a obediência a leis. Se for pensado o homem já
distante da selvageria, disciplinado por assim dizer, parecem um tanto mais suaves os
degraus ou estágios a serem guindados rumo ao objetivo final. Obviamente, não haveria
forma de evolução para o homem com a ausência da disciplina no entendimento de Kant,
mas o salto do estado natural sem regras para um momento de coação e imposição de
ordens é de forte impacto.
Convém lembrar que Kant afirma que cultura e moralidade, momentos de mesma
forma imprescindíveis no processo educativo kantiano, colocam-se como conseqüentes, ou
melhor, ocupam uma posição de evolução quase natural do ser após o impacto da
disciplina. O homem já está, de certa forma, nos trilhos do esclarecimento e pode seguir de
maneira mais branda seu caminho, mesmo que isso represente um considerável esforço, o
que lhe é exigido por todo o processo.
Considerações finais
O processo educativo kantiano tem como primeiro passo formar o homem para
viver em sociedade, transformando a coação externa em liberdade e autonomia e isso
se traduz por fazer com que a disciplina imposta pelo educando passe a ser
gradativamente uma coação interna do ser humano, quando ele terá condições de dar‐
se leis e viver sob as mesmas. São leis universais que servirão para o próprio homem e
para todos os outros homens, como indica Kant na Fundamentação da Metafísica dos
Costumes quando descreve a fórmula do imperativo categórico (1960, p. 80) “Age
segundo máximas que possam simultaneamente ter‐se a si mesmas por objeto como
leis universais da natureza”.
Outrossim, apenas alguém esclarecido poderá disciplinar, tornando o
esclarecimento o fundamento de possibilidade da disciplina, percurso inverso ao
realizado pela própria disciplina que, por sua vez, se estabelece como o fundamento
de possibilidade do esclarecimento. Em Kant, o ciclo formado por disciplina e
esclarecimento caminha para a consolidação da moralidade, e a moral só encontra
possibilidade de formação através da disciplina. Como conseqüência, a moral acaba
por forjar o caráter, o que é essencial aos homens a fim de que formem um estado de
paz.
Nota‐se que a mesma disciplina, posta como negativa inicialmente, adquire
caráter positivo quando eleva o homem à condição de convivência em sociedade na
formação daquele estado de paz. Essa possibilidade alcança a concretude quando o
homem passa a se determinar e pode obedecer e respeitar uma regra geral, que sirva
para todos. Ao dar‐se uma regra e que esta máxima possa ser universalizada, o
homem também será capaz de refletir, o que lhe possibilita ser seu próprio guia.
Na quinta proposição dos textos Idéia de uma historia universal de um ponto de
vista cosmopolita (2003, p. 11), Kant fala sobre o alcance de uma sociedade civil justa e
evoluída. Para que esta aconteça, o homem deve buscar o convívio em sociedade
usufruindo de sua liberdade e agindo sob normas. Do contrário, vivendo sem regras e
gozando de uma liberdade desenfreada, só poderá ter prejuízos, como exemplifica a
metáfora:
Assim como as árvores num bosque, procurando roubar umas às outras o ar e o
sol, impelem-se a buscá-los acima de si, e desse modo obtêm um crescimento
belo e aprumado, as que, ao contrário, isoladas e em liberdade, lançam seus
galhos a seu bel-prazer, crescem mutiladas, sinuosas e encurvadas.
Por fim, o homem necessita da sociedade para cumprir sua destinação, que é, como
prega Kant, ver-se enquanto humanidade e não enquanto homem isolado, individual, pois
apesar de o fim se dar individualmente, é a espécie que poderá gozar de sua inteira
destinação. Assim, a sociedade tem no homem agente imprescindível de sua constituição e
a base desta formação será, para Kant, o processo educacional - responsável por conduzir o
homem ao esclarecimento e à condição de formar uma sociedade justa composta por
homens morais.
Referências
KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten [Fundamentação da
Metafísica dos Costumes (trad. alemão: Paulo Quintela). Coimbra: Atlântida, 1960].
KANT, Immanuel. Über Pädagogik [Sobre a Pedagogia (trad. alemão: Francisco Cock
Fontanella). 2a ed., Piracicaba: Unimep, 2002]
KANT, Immanuel. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita
(trad. do alemão: Rodrigo Naves e Ricardo Terra). 2a ed., São Paulo: Martins
Fontes, 2004
i
Leonardo De Ross Rosa é graduado em Educação Física pela Universidade de Caxias do Sul e
mestrando em educação pelo PPGEdu (Programa de Pós‐Graduação em Educação) da UCS
(Universidade de Caxias do Sul). Atua profissionalmente na área esportiva da instituição (Programa
“UCS – Olimpíadas”) desde 1997. Desenvolve a linha de pesquisa em Filosofia da Educação e tem como
temas pesquisados: Filosofia da educação, o conceito de disciplina em Kant, filosofia da educação física
e o cuidado com o corpo. Endereço eletrônico: leorosa11@hotmail.com