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DISCIPLINA, O PRINCÍPIO DA EDUCAÇÃO EM KANT 
Leonardo de Ross Rosa i 
 
Resumo 

O  presente  artigo  busca  mostrar  a  disciplina  como  o  primeiro  passo  na 


educação kantiana, mas não apenas isso, pretende apresentar a disciplina como, para 
o homem, a mais contundente mudança em todo o processo educacional de Immanuel 
Kant.  É  o momento  de  maior tensão,  não  somente  por  se  tratar  do  primeiro avanço, 
mas também por apresentar ao homem uma situação absolutamente diversa da vida a 
partir  da  natureza  do  ser  na  qual  estava  inserido.  É  relevante  salientar  que  não  se 
trata  de  definir  a  disciplina  como  ponto  mais  decisivo  do  processo  educacional 
kantiano, mas sim de refletir sobre uma alteração drástica que muda completamente o 
caminho  do  ser  em  sua  forma  de  vida  natural  e  selvagem  para  trilhar  o  caminho  do 
pensamento autônomo e assim conquistar sua verdadeira liberdade.   
 
Palavras chave: Kant, disciplina, autonomia, educação e natureza 
 
Abstract 
This  paper  tries  to  show  discipline  as  the  first  step  in  Kantian  education;  but 
not  only  that.  It  intends  to  present  discipline  as  the  most  incisive  change  in  the 
educational process proposed by Immanuel Kant for Man. It is the moment of highest 
tension, not only because it is the first advance, but also because it presents Man with 
a  situation  that  is  absolutely  different  from  life  from  the  nature  of  human  being  in 
which  they  were  inserted.  It  is  relevant  to  point  out  that  it  is  not  about  defining 
discipline as the most decisive point in the entire Kantian educational process, but of 
reflecting  about  a  drastic  change  that  takes  place  and  changes  the  path  of  human 
being  completely  from  its  natural  and  wild  life  to  travel  through  the  path  of 
autonomous thought and thus conquer its true freedom. 
Keywords: Kant, discipline, autonomy, education, and nature. 
 
Introdução 
Com  base  no  material  das  preleções  de  Kant  na  Universidade  de  Königsberg 
dos anos de 1776 a 1787, seu discípulo, Friedrich Theodor Rink, publicou em 1803, o 
texto mais específico de Immanuel Kant acerca da educação. Na realidade, não existe a 
certeza  sobre  onde  terminam  as  idéias  de  Kant  e  onde  iniciam  os  pensamentos  de 
Rink.  No  entanto,  Über  Pädagogik  (Sobre  a  Pedagogia)  se  constitui  na  obra  mais 
específica do filósofo alemão sobre a educação, apesar de Kant tratar da educação em 
muitos de seus textos. Tendo a participação de Rink ou não, são nas páginas de Sobre a 
Pedagogia que Kant discorre toda a sua valiosa teoria educacional. 
No texto, Kant aborda de forma precisa o tema Educação dizendo que ela é que 
faz do homem um verdadeiro homem. É a Educação que possibilitará ao homem sua 
evolução até que possa chegar ao seu fim que é ver‐se enquanto  humanidade. Neste 
contexto,  o  tema  central  do  presente  trabalho  aborda  a  disciplina  como  sendo  o 
primeiro,  mas  mais  do  que  isso,  constituindo‐se  no  mais  impactante  momento  da 
teoria  educativa  do  filósofo  por  se  tratar  de  uma  verdadeira  interrupção  no  que 
poderíamos  chamar  de  curso  natural  da  vida  do  homem  oriundo  da  natureza,  que 
nasce  sob  a  inclinação  à  uma  liberdade  sem  regras,  atenta  a  caprichos  e  cômoda  no 
ponto  em  que  se  satisfaz  tendo  suas  necessidades  básicas  atendidas.  A  partir  da 
disciplina,  sob  forma  de  coação  externa,  o  homem  depara‐se  com  a  possibilidade  de 
evolução, condição imposta a ele para que possa chegar ao seu fim enquanto homem, 
ou seja, ver‐se enquanto humanidade. 
 
A educação em Kant 
A pedagogia, processo destacado por Kant e conceito que dá nome a seu texto mais
específico sobre o tema educação, é a sua verdadeira doutrina da educação e se constitui
num desenvolvimento filosófico no sentido de buscar os fundamentos da determinação
daquilo que seja o homem e sua tarefa no mundo. É uma ciência, diferente da educação. A
educação para Kant é uma arte. Entretanto, apesar de fazer parte da pedagogia, toda a
educação não pode ser restrita à ela, pois vai além do conceito ao assumir papel
preponderante na constituição da sociedade almejada.
Immanuel  Kant  vê  na  educação  uma  tarefa  árdua  para  o  homem,  cuja 
dificuldade deixa explícita através da passagem de seu texto Sobre a Pedagogia (2002, 
p. 447): “Entre as descobertas humanas há duas dificílimas, e são: a arte de governar 
os homens e a arte de educá‐los”. Mais do que isso, Kant identifica a educação como 
uma questão sem solução para o homem por ele, enquanto homem, não poder dar um 
fim à questão. No pensamento kantiano, o homem não poder dar‐se a educação. Isso 
só  seria  possível  se  o  homem  conseguisse  se  ver  enquanto  humanidade,  o  que  na 
teoria educacional kantiana, é o fim do processo, o que presume que o caminho para 
este  entendimento  é  demasiado  longo  e  impossível  de  se  construir  sem  a  ação  do 
outro. Em Kant, o homem nunca viverá o bastante para resolver o problema da educação,
que é, como dito, dar-se a educação.
De fato, o filósofo alemão prega uma educação passada de geração em geração,
sempre buscando o melhor, um momento realmente superior. Assim, o educador deve
preparar a criança sempre com o entendimento de humanidade e de sua inteira destinação, o
que se coloca sempre como ponto futuro. Do contrário, Kant aponta para uma realidade em
que o homem educa seus filhos com vistas ao presente, a fim de que cumpram um papel
condizente no mundo, que sejam bons e tenham sucesso e isso lhe parece satisfatório. No
formato exposto não há a busca pelo estado superior.
Mas  é  relevante  apontar  que,  como  em  todo  o  processo,  a  educação  em  Kant 
também  tem  um  início,  um  ponto  de  partida  e  este  surge  a  partir  do  nascimento  da 
criança. O primeiro momento da Educação é que o filósofo identificou como Educação 
Física. Para Kant, a Educação Física tem como primeira tarefa o cuidado com o corpo, 
o que, na verdade, é comum aos animais. É o momento onde há a maior proximidade 
entre  homem  que  conhecemos  e  o  animal,  pois  ambos  estão  ligados  à  uma  mesma 
natureza que não lhes proporciona racionalidade. Obviamente, se não houver a ação 
da educação, essa situação irá perdurar e, no entender de Kant, o ser não alcançará a 
condição de homem. Kant é enfático logo na abertura de Sobre a Pedagogia (2002, p. 
441) com a frase: “O homem é o único ser que precisa ser educado” e segue (2002, p. 
444): “O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação”. Ele 
entende a educação como uma arte que possui a tarefa de “desenvolver as disposições 
naturais  do  ser  humano”,  arte  que  interroga  a  natureza  e  nunca  chega  a  um  saber 
absoluto, condição que para ele é apenas possível a Deus. A educação para Kant não é 
uma  ciência  e  sim  uma  arte  e  um  processo,  o  processo  de  transformação do homem 
num verdadeiro homem. 
Dentre  as  fases  da  Educação  Física,  o  cuidado  é  o  primeiro  estágio  e  faz‐se 
necessário  logo,  desde  o  nascimento.  É  o  momento  em  que  a  criança  deve  ter  a 
atenção dos pais a fim de que não utilize de forma errada suas forças. Este cuidado dos 
pais é um ato de conservação, de trato, que vai proteger o bebê de si mesmo. De outra 
forma, no caso dos animais, não existem cuidados, mas somente a nutrição ou ainda o 
aquecimento  e  alguma  segurança,  o  que,  para  Kant,  não  se  identifica  como  cuidado. 
Ademais,  os  animais  fazem  uso  de  suas  forças  sem  que  prejudiquem  a  si  mesmos, 
lançando mão apenas de seus instintos para a sobrevivência.  
O homem também possui instintos e não se pode afirmar que os mesmos sejam 
todos  inúteis  ou  mesmo  nefastos.  O  homem  tem  o  instinto  de  alimentar‐se,  por 
exemplo, o que possibilita sua boa nutrição e é condição para a vida. Mas para que os 
instintos ruins não determinem sua conduta, faz‐se necessário o que em Kant assumiu 
a condição de segundo estágio da Educação Física, a disciplina. A disciplina doma os 
instintos  e  é  a  ponte  que  permite  ao  homem  avançar  na  busca  da  instrução  e  do 
esclarecimento.  É  onde  ocorre  a  ruptura  com  a  natureza  e  leva  o  homem  da  sua 
menoridade  animal  para  a  maioridade,  dando‐lhe  condições  de  deixar  ao  mundo 
irracional.  É,  sem  dúvida,  um  processo  ao  qual  Kant  confere  grande  importância, 
mesmo que a identifique como a parte negativa da Educação Física pelo fato de retirar 
o homem de sua natureza. A disciplina terá atenção exclusiva posteriormente. 
A  parte  positiva  da  Educação  Física  corresponde  à  cultura  ou  instrução  que, 
segundo  Kant  (2002,  p.  466),  “consiste  notadamente  no  exercício  das  forças  da 
índole”.  Nesse  período  se  evidencia  a  diferença  entre  homem  e  animal.  É  onde  as 
habilidades  da  criança  são  trabalhadas.  É  o  momento  em  que  a  imaginação  deve 
ganhar espaço para criar e a memória será exercitada. Para Kant, o processo seguinte 
é a cultura da alma, que não deixa de ser uma Educação Física pois:  
 
A natureza do corpo e da alma concordam no seguinte: cultivando‐as, deve‐
se  procurar  impedir  que  se  corrompam  mutuamente  e  buscar  que  a  arte 
aporte  algo  tanto  àquela  quanto  a  esta.  Pode‐se,  portanto,  em  um  certo 
sentido,  qualificar  de  física  tanto  a  formação  da  alma  quanto  a  do  corpo 
(2002, p. 470). 

A formação da alma se refere à natureza e por isso não tem similaridade com a 
formação moral, que se refere à liberdade. Kant sugere a distinção  da formação física 
e  da  formação  prática  ou  moral,  ou  ainda  pragmática.  Ele  indica  que  na  formação 
moral  existe  a  moralização  e  não  a  cultura.  Eis  o  segundo  momento  da  educação 
kantiana,  a  saber,  a  Educação  Prática.  Ela  é  o  que  Kant  chamou  de  método  e  que  se 
divide em três partes: educação mecânica‐escolástica, que está vinculada à habilidade, 
o que, para Kant, é possuir uma faculdade que seja suficiente para um fim desejado; 
educação pragmática, que engloba a prudência, que é a “arte de aplicar aos homens a 
nossa  habilidade”  de  modo  a  alcançar  os  objetivos  propostos;  formação  moral,  que 
concerne a ética e diz respeito ao caráter, sendo o último estágio da teoria educacional 
de Kant.  
A  moralização  se  estabelece  como  o  verdadeiro  fim  para  o  homem.  Seu 
conceito se une ao conceito de educação e nele é possível vislumbrar toda a evolução 
do ser, onde ele passa pelos cuidados, pela disciplina, pela instrução ou cultura e pela 
civilização.  É  importante  salientar  que,  apesar  da  obra  de  Kant  ter  como  fim  uma 
educação moral, a educação kantiana não ensina o agir moral. A explicação para isso é 
que  o  agir  moral  é  de  legislação  absolutamente  interna,  ou  seja,  advém  do  próprio 
homem  e  assim  não  há  como  depender  de  outro  homem.  Aqui  se  constitui  uma 
relativa diferença de origem, digamos, entre o agir moral e a educação. No primeiro, a 
origem deve ser o próprio homem, há um processo interno, já no segundo, a origem é 
externa, ou seja, alguém deve educar o homem. Não se pode esquecer, no entanto, que 
ambos estão ligados pois a ação dentro da moralidade exige a educação. Na verdade, a 
educação  em  Kant  tem  o  objetivo  de  preparar  a  criança  para,  enquanto  homem, 
buscar seu agir moral através da autonomia de pensamento. O pensar por si e ter sua 
ação alicerçada na mesma autonomia do pensamento possibilitará ao homem seu agir 
dentro da moralidade.  
Todo  o processo educacional se encerra com a consolidação de uma educação
moral.  Com  ela  o  homem  supera  gradativamente  a  propensão  existente  para  o  mal, 
convertendo‐a em impulso para o bem. Deve‐se destacar que em Kant o homem não é 
bom nem mau por natureza pois sua natureza não o faz um ser moral. Ele só será bom 
ou  mau,  quando  elevar  sua  razão  aos  conceitos  do  dever  e  tornar‐se  um  ser  moral. 
Sendo  um  ser  moral,  poderá  escolher  o  caminho  a  tomar.  Poderá  ser  bom,  mas 
também poderá trilhar o caminho do mau. Sendo moral, poderá assumir as máximas 
escolhidas  por  ele  mesmo  e  que  determinarão  sua  vontade.  Vale  lembrar  que  Kant 
atrela  o  mal  à  natureza  quando  esta  não  for  submetida  a  regras  e  que,  no  homem, 
existem  germes  somente  para  o  bem.  De  mesma  forma,  ao  atingir  a  moralidade,  o 
homem consolida seu caráter – quer fazer algo e realmente coloca isso em prática ‐ e 
está apto a ver‐se como humanidade, grande objetivo de todo o processo. Em Sobre a 
Pedagogia  (2002, p. 487) Kant  exemplifica  o  caráter:  “Se, por exemplo, prometi algo a
alguém, devo manter minha promessa, mesmo que isso acarrete algum dano. Porque um
homem que toma uma decisão e não a cumpre, não pode ter confiança em si mesmo”.
Como  dito  anteriormente,  o  caminho  que  o  conduz  à  moralidade  é  embasado 
na liberdade e na autonomia, objetivo de todo o homem. Com efeito, Kant busca uma 
educação  para  a  liberdade,  que  é  a  condição  de  possibilidade  para  que  esse  homem 
torne‐se  esclarecido  e  autônomo,  um  homem  que  procura  seu  próprio  caminho  e 
assim  se  realiza  enquanto  homem,  concretizando  seu  plano  que  é  o  de  ver‐se 
enquanto humanidade. Uma humanidade que é sempre fim, um objetivo e nunca um 
meio do qual o homem possa fazer uso.  
Ainda dentro do princípio da autonomia, Kant alerta para o conceito de dever, 
a  atitude  de  agir  por  dever  e  também  conforme  o  dever.  O  dever  carrega  consigo  o 
conceito  da  boa  vontade  e  para  que  uma  vontade  seja  autônoma,  sua  força  deve  ser 
originada no próprio ser, em sua própria razão. Ao agir conforme o dever e por dever, 
o  homem  está  fazendo  uso  da  autonomia  da  vontade  e  esta  mostra‐se  como  a 
capacidade do ser humano de dar‐se a lei moral com valor universal, ou seja, uma lei 
que  parta  do  homem  individual,  mas  que  tenha  uma  validade  para  todos,  que  possa 
ser  utilizada  por  todos.  De  mesma  forma,  a  vontade  deve  ser  determinada 
primeiramente pela vontade em si e não pela vontade pelo objeto. Conseqüentemente, 
a  vontade  não  deve  ter  sua  origem  em  algo  externo  ao  homem  ou  mesmo  que  seja 
motivada por algo externo à ele. Kant assevera ainda que uma “boa vontade” é boa em 
si  e  sem  limites  e  não  tem  necessidade  de  outros  objetos  para  determiná‐la.  Ela  é  a 
única coisa realmente boa e está alicerçada no princípio do querer, segue o dever pelo 
dever e seu valor está no princípio da ação, não estando vinculada ao resultado desta 
mesma ação. É o respeito à lei que o conduz à ação. 
 
Disciplina, a ruptura com a natureza 
Para  Kant,  apenas  quando  o  homem  faz  com  que  sua  razão  determine  a 
liberdade é que se encontra a liberdade moral, finalidade de todo o ser racional. Em 
Kant  vemos  uma  educação  libertadora,  que  eleva  o  homem  em  sua  condição  e,  para 
tal, necessita de um processo que mude drasticamente a condição primeira da vida do 
mesmo homem. Esse estado onde se encontra o ser e que tem na natureza sua fonte, 
deve  ser  colocado  à  distância  pela  disciplina  a  fim  de  que  o  homem  atinja  um  novo 
momento.  A  disciplina,  que  não  se  configura  como  adestramento,  garantirá  a  boa 
preparação  para  que  a  criança  receba  a  instrução,  mas  não  se  pode  caracterizar  a 
disciplina como um estágio com encerramento ou período de atuação determinados. 
Na verdade, a disciplina estará presente durante todo o processo educacional.  
Com  a  indicação  de  que  o  homem  deve  sofrer  a  coação  desde  muito  cedo,  o 
sujeito  da  teoria  educacional  de  Kant  é  a  criança.  Não  obstante,  em  Kant,  a  criança 
nasce sob o poder de suas inclinações, o que seria um estado selvagem, sem regras, ou 
melhor com uma liberdade sem regras. Nesse estado selvagem, comum aos animais, a 
criança age conforme seus desejos e caprichos. Urge então a necessidade da imposição 
de  uma  ordem,  a  fim  de  que  a  mesma  criança  não  se  desvie  de  seu  caminho  para  a 
humanidade.  Como  diz  Kant  em  Sobre  a  Pedagogia  (2002,  p.  442):  “A  disciplina  é  o 
que  impede  o  homem  de  desviar‐se  do  seu  destino,  de  desviar‐se  da  humanidade, 
através de suas inclinações animais”. Kant assevera que a disciplina deve ser imposta 
o  quanto  antes,  pois  no  futuro  a  tarefa  se  tornará  impossível.  Kant  afirma  que  “O 
homem  é  tão  naturalmente  inclinado  à  liberdade  que,  depois  que  se  acostuma  a  ela 
por  longo  tempo,  a  ela  tudo  sacrifica”  (2002,  p.  442).  Na  verdade,  Kant  fala  sobre  a 
possibilidade  de  a  cultura  ser  instituída  posteriormente  e  mesmo  corrigida, 
diferentemente  da  disciplina,  que  só  encontra  lugar  na  “mais  tenra  infância”  e  que 
após a infância será inútil a tentativa de impô‐la.   
É  importante  estar  atento  para  a  condição  primeira  do  homem  e  que  se 
assemelha a dos animais, que já nascem sendo tudo o que podem ser. O que regula os 
animais  é  o  instinto.  Diferente,  o  homem  não  tem  esse  limite  que  confere  ao  animal 
um  estado  acabado.  O  homem  é  inacabado  e  essa  condição  traz  a  necessidade  de 
desenvolvimento.  A  natureza  que  deu  aos  animais  os  instintos  também  oferece  ao 
homem a possibilidade do uso da razão. 
A  disciplina  retira  o  homem  de  sua  natureza  selvagem  mas  isso  não  se 
consolida  como  um  processo  de  separação  e  abandono  absoluto.    Kant  fala  de  uma 
retirada  do  ser  de  sua  natureza  sim,  mas  mais  do  que  isso,  seu  intento  é  um 
regramento, uma normatização desta natureza. Ela não é substituída simplesmente. A 
natureza  deverá  ser  normatizada,  regrada.  De  qualquer  forma,  para  o  homem  esse 
momento de mudança é um avanço absolutamente relevante.  
A  disciplina  carrega  toda  a  responsabilidade  de  dar  o  primeiro  passo  em 
direção ao objetivo final do homem. Seu papel, como visto, é afastar o homem de sua 
menoridade ‐ situação onde sua condição natural de animal o conduz à ação segundo 
seus  estímulos  e  sentimentos  ‐  através  da  coação.  A  disciplina  vem  para  retirar  a 
criança  do  estado  selvagem  onde  ela  se  encontra  ao  nascer  e  assim  diferenciar  o 
homem do animal bruto que age instintivamente. O homem requer polimento devido 
à  sua  inclinação  à  liberdade.  Com  efeito,  cabe  aos  pais,  o  primeiro  contato  do  ser, 
passar  a  seus  filhos  a  disciplina  ‐  para  que  sejam  obedientes  ‐  e  a  instrução.  Kant 
enfatiza  a  importância  do  cuidado  dos  pais  para  com  os  bebês,  pois  sem  estes 
cuidados  os  mesmos  morreriam  por  não  ter  nenhuma  condição  de  sobrevivência 
sozinhos.  Assim  as  crianças  não  farão  uso  nocivo  das  forças  e  inclinações  animais  e, 
portanto,  não  cairão  na  selvageria  independente  de  quaisquer  regras,  possibilitando 
cresçam  rumo  ao  esclarecimento.  Vale  lembrar  que  em  Kant,  não  há  uma  força 
superior que vá guiar o homem. Se fosse desta forma tudo já estaria determinado, não 
necessitando de qualquer movimento dele. É o homem que constrói seu caminho de 
busca para que, enfim, encontre a humanidade. 
A  ruptura  com  um  estado  de  comodidade  no  qual  o  ser  já  está  inserido  é 
colocado  neste  trabalho  como  o  mais  tenso  momento  da  educação  de  Kant.  Ao 
encontrar‐se em um estado e ter que sair do mesmo, a então criança, sob o cuidado do 
educando, passa por sua maior prova na busca que o homem faz de seu objetivo final.
Neste contexto da retirada do homem do estado primitivo, Kant vê a interrupção do
caminho que seria comum aos animais. Ao homem seria possível seguir a comodidade em
uma vida em que são supridas as suas necessidades básicas. O primitivo lhe é atrativo, mas
não permite seu desenvolvimento e acaba por impedir sua evolução para o esclarecimento e
também sua constituição no verdadeiro homem. Ainda, não sendo disciplinado, Kant
entende ser absolutamente complexa a obediência a leis. Se for pensado o homem já
distante da selvageria, disciplinado por assim dizer, parecem um tanto mais suaves os
degraus ou estágios a serem guindados rumo ao objetivo final. Obviamente, não haveria
forma de evolução para o homem com a ausência da disciplina no entendimento de Kant,
mas o salto do estado natural sem regras para um momento de coação e imposição de
ordens é de forte impacto.
Convém lembrar que Kant afirma que cultura e moralidade, momentos de mesma
forma imprescindíveis no processo educativo kantiano, colocam-se como conseqüentes, ou
melhor, ocupam uma posição de evolução quase natural do ser após o impacto da
disciplina. O homem já está, de certa forma, nos trilhos do esclarecimento e pode seguir de
maneira mais branda seu caminho, mesmo que isso represente um considerável esforço, o
que lhe é exigido por todo o processo.
 
Considerações finais 
O  processo  educativo  kantiano  tem  como primeiro passo formar o homem para
viver em sociedade, transformando a coação externa em liberdade e autonomia e isso 
se  traduz  por  fazer  com  que  a  disciplina  imposta  pelo  educando  passe  a  ser 
gradativamente uma coação interna do ser humano, quando ele terá condições de dar‐
se leis e viver sob as mesmas. São leis universais que servirão para o próprio homem e 
para todos os outros homens, como indica Kant na Fundamentação da Metafísica dos 
Costumes  quando  descreve  a  fórmula  do  imperativo  categórico  (1960,  p.  80)  “Age 
segundo máximas que possam simultaneamente ter‐se a si mesmas por objeto como 
leis universais da natureza”. 
Outrossim,  apenas  alguém  esclarecido  poderá  disciplinar,  tornando  o 
esclarecimento  o  fundamento  de  possibilidade  da  disciplina,  percurso  inverso  ao 
realizado pela própria disciplina que, por sua vez, se estabelece como o fundamento 
de  possibilidade  do  esclarecimento.  Em  Kant,  o  ciclo  formado  por  disciplina  e 
esclarecimento  caminha  para  a  consolidação  da  moralidade,  e  a  moral  só  encontra 
possibilidade  de  formação  através  da  disciplina.  Como  conseqüência,  a  moral  acaba 
por forjar o caráter, o que é essencial aos homens a fim de que formem um estado de 
paz. 
Nota‐se  que  a  mesma  disciplina,  posta  como  negativa  inicialmente,  adquire 
caráter  positivo  quando  eleva  o  homem  à  condição  de  convivência  em  sociedade  na 
formação  daquele  estado  de  paz.  Essa  possibilidade  alcança  a  concretude  quando  o 
homem passa a se determinar e pode obedecer e respeitar uma regra geral, que sirva 
para  todos.  Ao  dar‐se  uma  regra  e  que  esta  máxima  possa  ser  universalizada,  o 
homem também será capaz de refletir, o que lhe possibilita ser seu próprio guia. 
Na quinta proposição dos textos Idéia de uma historia universal de um ponto de
vista cosmopolita (2003, p. 11), Kant fala sobre o alcance de uma sociedade civil justa e
evoluída. Para que esta aconteça, o homem deve buscar o convívio em sociedade
usufruindo de sua liberdade e agindo sob normas. Do contrário, vivendo sem regras e
gozando de uma liberdade desenfreada, só poderá ter prejuízos, como exemplifica a
metáfora:
Assim como as árvores num bosque, procurando roubar umas às outras o ar e o
sol, impelem-se a buscá-los acima de si, e desse modo obtêm um crescimento
belo e aprumado, as que, ao contrário, isoladas e em liberdade, lançam seus
galhos a seu bel-prazer, crescem mutiladas, sinuosas e encurvadas.

Por fim, o homem necessita da sociedade para cumprir sua destinação, que é, como
prega Kant, ver-se enquanto humanidade e não enquanto homem isolado, individual, pois
apesar de o fim se dar individualmente, é a espécie que poderá gozar de sua inteira
destinação. Assim, a sociedade tem no homem agente imprescindível de sua constituição e
a base desta formação será, para Kant, o processo educacional - responsável por conduzir o
homem ao esclarecimento e à condição de formar uma sociedade justa composta por
homens morais.
 
Referências  
KANT,  Immanuel.  Grundlegung  zur  Metaphysik  der  Sitten  [Fundamentação  da 
Metafísica dos Costumes (trad. alemão: Paulo Quintela). Coimbra: Atlântida, 1960]. 
 
KANT,  Immanuel.  Über  Pädagogik  [Sobre  a  Pedagogia  (trad.  alemão:  Francisco  Cock 
Fontanella). 2a ed., Piracicaba: Unimep, 2002] 
 
KANT,  Immanuel.  Idéia  de  uma  história  universal  de  um  ponto  de  vista  cosmopolita 
(trad.  do  alemão:  Rodrigo  Naves  e  Ricardo  Terra).  2a  ed.,  São  Paulo:  Martins 
Fontes, 2004 
 
 
                                                            
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  Leonardo  De  Ross  Rosa  é  graduado  em  Educação  Física  pela  Universidade  de  Caxias  do  Sul  e 
mestrando  em  educação  pelo  PPGEdu  (Programa  de  Pós‐Graduação  em  Educação)  da  UCS 
(Universidade  de  Caxias  do  Sul).  Atua  profissionalmente  na  área  esportiva  da  instituição  (Programa 
“UCS – Olimpíadas”) desde 1997. Desenvolve a linha de pesquisa em Filosofia da Educação e tem como 
temas pesquisados: Filosofia da educação, o conceito de disciplina em Kant, filosofia da educação física 
e o cuidado com o corpo. Endereço eletrônico: leorosa11@hotmail.com  
 

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