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CADERNOS

VOLUME 1 | EDIÇÃO 9 | OUTUBRO 2020

SENSIBILIZAÇÃO
CENTRAL

EDITORA DO “CADERNOS SBDOF”


LIETE ZWIR

REVISÃO CIENTÍFICA
LEONARDO BONJARDIM
FRANCO ARSATI

AUTORES DESTE FASCÍCULO


DANIELA AP. DE GODOI GONÇALVES
GUILHERME V. DO VALE BRAIDO
JULIANA DOS SANTOS PROENÇA

DIRETORIA DA SBDOF

PRESIDENTE: PAULO AFONSO CUNALI


VICE-PRESIDENTE: RODRIGO TEIXEIRA
SECRETÁRIO: LEONARDO BONJARDIM
DIRETOR FINANCEIRO: DANIEL BONOTO
SENSIBILIZAÇÃO
CENTRAL

1. O que é Sensibilização Central? destes no SNC. A disfunção desse sistema está associa-
da a um maior risco de cronificação da dor7.
A Sensibilização Central (SC) é um processo de hiper- Clinicamente, a SC se caracteriza pela presença de hipe-
sensibilidade caracterizado por redução dos limiares de ralgesia e alodínia, além de expansão da área de dor
excitação de neurônios centrais mediante diferentes tornando-a mais difusa e com envolvimento de tecidos
estímulos, associado a uma função inadequada do sem alterações visíveis1,8.
Sistema Endógeno de Controle da Dor que atua modu-
lando a dor1. Os fatores envolvidos com o desenvolvi- 2. Sensibilização Central e
mento da SC ainda são bastante discutidos, embora Disfunção Temporomandibular
evidências apontem para participação conjunta de
aspectos neurofisiológicos e psicossociais. Além disso, A Disfunção Temporomandibular (DTM) está frequen-
evidências indicam que fatores genéticos podem ter temente associada à presença de outras condições
papel importante nesse processo2. dolorosas ou não-dolorosas, que são as chamadas
Diversos mecanismos podem estar envolvidos com o comorbidades. As condições mais associadas à DTM
desenvolvimento da SC. O influxo persistente de são a fibromialgia9, síndrome do intestino irritável10,
estímulos advindos da periferia, como músculos e síndrome da fadiga crônica11, cefaleias primárias (espe-
articulações, pode sensibilizar os neurônios de segun- cialmente a migrânea), cervicalgia e lombalgia12,13.
da ordem localizados no SNC, reduzindo seus limiares Além das comorbidades dolorosas, alterações psicos-
de ativação. Nesse estado, os neurônios centrais sociais como depressão e ansiedade, também são
tendem a responder de forma exacerbada a estímulos frequentemente encontradas em indivíduos com DTM
nocivos de baixa intensidade (hiperalgesia), bem como e que apresentam outras condições dolorosas14,15.
a estímulos não nocivos (alodínia)1,3. A expansão do O número de comorbidades está relacionado com
campo receptivo dos neurônios também representa maior duração dos sinais e sintomas da DTM e também
outro mecanismo importante. A excitação prolongada com sua intensidade11. Essa relação ocorre principal-
dos neurônios de segunda ordem ativa os neurônios mente pela participação de mecanismos envolvidos
adjacentes, expandindo seus campos receptivos, fazen- com a SC1,5. Portanto, a avaliação de pacientes apresen-
do com que impulsos advindos de tecidos sem lesões tando DTM não deve levar em conta apenas os meca-
também causem dor4. nismos periféricos envolvidos com a disfunção, mas
Quando a SC está presente, não são apenas os sinais também considerar a presença de sinais e sintomas
nociceptivos que podem ser erroneamente processa- compatíveis com a SC16.
dos, mas também outros estímulos sensoriais como a
luminosidade, estímulos sonoros, olfatórios e até 3. Avaliação dos Sinais e Sintomas
mesmo químicos5. Ainda, como mencionado acima, a Relacionados à Sensibilização Central
SC envolve uma função inadequada do sistema de
modulação da dor6. Esse sistema atua promovendo A SC não pode ser medida de maneira direta1,17. Contu-
analgesia endógena, modulando a intensidade dos do, algumas ferramentas permitem avaliar sinais e sinto-
impulsos dolorosos e controlando o processamento mas que podem estar relacionados à essa condição. Os
testes quantitativos sensoriais (Quantitative Sensory Outra ferramenta de fácil e rápida aplicação para
Testing – QST), os qualitativos somatossensoriais avaliação de sintomas relacionados à SC é o Inventá-
(Qualitative Somatosensory Testing - QualST), e ainda rio de Sensibilização Central (Central Sensitization
o teste de Modulação Condicionada da Dor (Condi- Inventory – CSI)8,21–24. O CSI é composto por 25 ques-
tioned Pain Modulation – CPM), podem inferir a tões sobre sintomas somáticos e emocionais, com
existência de SC ao identificarem sinais e sintomas escore variando de 0 a 100 pontos21. Tem sido sugeri-
compatíveis com SC, como hiperalgesia, alodínia e do que escores mais altos indicam mais sintomas
disfunção na modulação da dor1,5,18–20. Esses métodos associados à SC8,21–24. De acordo com a pontuação do
permitem a avaliação de alterações somatossenso- inventário, foram estabelecidos cinco níveis de seve-
riais relacionadas à SC por meio da aplicação de ridade dos sintomas: subclínico – 0-29 pontos; leve –
diferentes estímulos e a observação da intensidade 30-39 pontos; moderado – 40-49 pontos; severo –
de resposta dos indivíduos5,18–20. Na prática clínica, o 50-59 e extremo – 60-10024. Idealmente, o CSI deve
QualST é mais simples e fácil de ser realizado se com- ser utilizado em conjunto com o exame completo da
parado aos demais. Sua confiabilidade parece ser dor para identificar a presença de SC25.
suficiente para a avaliação inicial da função somatos- Muitas vezes, na presença de SC, não é possível iden-
sensorial19. De maneira geral, o protocolo para esse tificar uma alteração tecidual capaz de explicar a dor
conjunto de testes recomenda a utilização de uma relatada, fato frequentemente observado nos
haste flexível para promover um estímulo tátil, uma pacientes com DTM5,25. Assim, um exame clínico
espátula odontológica resfriada pode promover um cuidadoso se torna ainda mais importante. A Figura 1
estímulo térmico e uma sonda exploratória para apresenta alguns métodos de avaliação, além de
promover um estímulo nocivo19. A resposta do sinais e sintomas que podemos observar durante o
paciente frente aos estímulos pode indicar a presen- exame clínico de pacientes com características com-
ça de alodínia e hiperalgesia19. patíveis com SC1,5,25,26,8,18–24.
4. Manejo terapêutico do paciente reduzir a experiência dolorosa e a incapacidade a ela
com sensibilização central relacionada27. Controlar os fatores que contribuem
para a dor também é fundamental durante o trata-
A presença de SC pode ter um efeito negativo sobre o mento. A prática de exercícios físicos favorece os
manejo terapêutico do paciente, especialmente processos de modulação da dor e também os aspec-
quando somente abordagens periféricas são utiliza- tos psicossociais28. A TCC auxilia no manejo da depres-
das5,25. Assim, na elaboração do plano de tratamento, são, ansiedade e estresse, além de possivelmente agir
é altamente relevante considerarmos a presença de nas áreas cerebrais responsáveis pelo processamento
alterações centrais25. Idealmente, quando o paciente da dor29.
apresenta uma fonte de dor periférica e características Resumindo, o manejo terapêutico do paciente com
condizentes com a SC, a abordagem terapêutica deve características de SC deve considerar aspectos perifé-
envolver tanto o controle dos mecanismos periféricos ricos e centrais, procurando identificar os fatores
quanto centrais. Considerando a DTM, o tratamento contribuintes. Preferencialmente, deve ser multipro-
periférico pode incluir aconselhamento e instrução de fissional e direcionado às características específicas de
procedimentos de autocuidado (como massagens e cada indivíduo.
compressas), técnicas fisioterápicas, utilização de
dispositivos intraorais quando indicados, medicamen- REFERÊNCIAS
tos como relaxantes musculares e antinflamatórios5,
1. Woolf CJ. Central Sensitization: Implications for the diagnosis
agulhamento seco, bloqueios anestésicos e outras
and treatment of pain. Pain. 2011;152 (3 Supplemental):1–31.
abordagens que visam o controle da disfunção e da
dor articular e/ou muscular. 2. Arendt-Nielsen L. Central Sensitization in Humans: Assessment
and Pharmacology. In: Handbook of experimental pharmacolo-
O manejo terapêutico visando controle da SC pode gy. 2015. p. 79–102.
incluir desde farmacoterapia como também aborda-
3. Chichorro JG, Porreca F, Sessle B. Mechanisms of craniofacial
gens voltadas aos aspectos psicossociais como
pain. Cephalalgia. 2017 Jun;37(7):613–26.
terapia cognitivo comportamental (TCC), educação
em neurociência, controle de hábitos, higiene do 4. Sessle BJ. Peripheral and central mechanisms of orofacial pain
and their clinical correlates. Minerva Anestesiol. 2005 Apr; 71(4):
sono, entre outros. As opções farmacológicas incluem
117–36.
o uso de medicamentos de ação central como antide-
pressivos tricíclicos e duais e anticonvulsivantes5,27. 5. Harper DE, Schrepf A, Clauw DJ. Pain Mechanisms and Centrali-
zed Pain in Temporomandibular Disorders. J Dent Res. 2016 Sep
Contudo, deve-se ter cautela com a prescrição desses 20; 95 (10): 1102–8.
fármacos, pois sua utilização ainda é alvo de discus-
6. Lewis GN, Rice DA, McNair PJ. Conditioned pain modulation in
sões na literatura. Pacientes com características de SC
populations with chronic pain: A systematic review and meta-a-
frequentemente não entendem sua própria dor e o nalysis. J Pain. 2012; 13 (10): 936–44.
motivo de não responderem a tratamentos locais25. A
7. Costa YM, Conti PCR, de Faria FAC, Bonjardim LR. Temporoman-
educação em neurociência auxilia esses indivíduos a dibular disorders and painful comorbidities: clinical association
entenderem melhor os mecanismos envolvidos com a and underlying mechanisms. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral
Radiol. 2017 Mar; 123 (3): 288–97.
dor. Colabora também na compreensão de que a dor
muitas vezes é desproporcional a uma lesão periférica 8. Caumo W, Antunes L, Lorenzzi Elkfury J, Herbstrith E, Busanello
presente ou que, em alguns casos, ela não está Sipmann R, Souza A, et al. The Central Sensitization Inventory
validated and adapted for a Brazilian population: psychometric
relacionada diretamente com uma lesão tecidual
properties and its relationship with brain-derived neurotrophic
identificável25,27. A educação em neurociência tende a factor. J Pain Res. 2017 Sep; 10: 2109–22.
9. Eriksson P, Lindman R, Stal P, Bengtsson A. Symptoms and signs M, et al. Chairside Intraoral Qualitative Somatosensory Testing:
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