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NATAL, AGOSTO/SETEM BRO DE 2006

Arquiyo/DN
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f í n jrn îAnM Natal, agosto /setembro de 2006

Arquivo/DN
1\ yfais dequatromilhões deindivíduosforamseqüestrados DN EDUCAÇÃO
NESTA EDIÇÃO IVIdesuas terrasnaAMcaetomaram-seescravosnoBrasil. Diretor Geral:

Albimar Furtado___________________________

Hoje, os afro-descendentes chegama 80milhões de pessoas, Promoções e

Projetos Especiais

46,2% da população nacional. Resgatar as origens dessa Afonso Laurentino Ramos

Editor do Suplemento:

população é simplesmente umato de cidadania, assimcomo Francisco Francerle

Reportagens

está fazendo a SecretariaEstadual de Educação, ao capacitar Adriana Am orim e Valéria Credídio

Revisão

professores paratrabalhar o tema em sala de aula do Ensino Francisco Francerle

Diagramação

Fundamental e Médio, em cumprimento à Legislação. Silvana Belkiss

Telefone: 220 0150 ~

fmncerie@diariodenatal.com.br

ORELHA DE LIVRO OUTRAS PUBLICAÇÕES


■ "O negro da chibata" social do Brasil"
Fernando Granato Clóvis Moura
"A abolição antes da Lei Áurea"
Editora Objetiva Editora UFAL
Manuel Onofre
Editora Tupy, 1972
"O tráfico negreiro e a diplomacia bri­
■ "Ensaios - O escravismo
tânica"
O autor fez uma extensa Alfredo Carlos Teixeira
colonial"
pesquisa sobre a figura do abo­ Editora UCS Jacob Gorender
licionista, republicano e poti­ Editora Ática
guar Abnmo Afonso, 131 anos ■ "Negros no sul do Brasil:
após a sua morte, ressaltando
invisibilidade e territorialidade" ■ "Os escravos e libertos no
sua atuação nos estados de
llka Boaventura Brasil colonial"
Pernambuco, Paraíba, Rio
Editora Letras Contemporâneas
Grande do Norte, Ceará, Ama­ A.J.R. Russell-Wood
zonas e Distrito Federal, prin­ Editora Civilização Brasileira
■ "Rebeliões da Senzala"
cipalmente no que diz respei­
Clovis Moura
to à luta pela abolição dos es­ ■ "História da África" ■
3a edição -
cravos na região nordeste.
J. D. Fage
"A Escravidão" ■ "Os quilombos na dinâmica Edições 70
Joaquim Nabuco
Editora Nova Fronteira,
"Dicionário da escravidão negra no Brasil"
Clóvis Moura
Editora Usp, 2004
Em 1869, estudando na Facul­
dade de Direito do Recife, escre­
Com mais de oitocentos verbetes, o traba­ veu seu primeiro livro "A Escra­ FONTES DE PESQUISA
lho inventaria, de forma crítica, todo o conhe­ vidão”, que permaneceu inédito
cimento a respeito do tema proveniente de até 1888, e escandalizou a elite ■ Enciclopédia Barsa Planeta ■ Denise Matos M onteiro - artigo

áreas tão distintas como história, literatura, local, por defender, em um júri, "Formação do mercado de trabalho

economia, religião e costumes, obra de refe­ um escravo negro que assassina­ ■ Enciclopédia virtual Wikipédia no Nordeste: Escravos e trabalhado­

rência, inédita no país, abre ao leitor novas ra o seu senhor. res livres no Rio Grande do N orte"
■ B ib lio te *
maneiras de compreensão da exclusão huma­
ca Nacional do RJ 1 Julie A . Cavignac - artigo "A etnici-
na, social e cultural imposta ao negro no Bra­
dade encoberta: índios’ e ‘Negros’ no
sil, um drama nacional que pode ser percebi­
■ Fundação Raimundo Ottoni de Cas­ Rio Grande do N orte"
do ainda nos dias atuais.
tro Maia, Rio de Janeiro
■ Revis/â
■ Site da Prefeitura de Mossoró ta História Viva (Ed. n. 3)

"Dicionário escolar afro-brasileiro"


Nei Lopes
Editora Selo Negro

Pelo menos três personalidades com atuação no RN figuram AGRADECIMENTOS


neste dicionário escolar organizado pelo escritor Nei Lopes. O tra­
balho consagrou a trajetória do autor como um dos mais repre­ I Profa. Maria Goretti de Medeiros Filgueira
sentativos militantes da causa afro descendente. Neste novo tra­
balho, em formato de verbetes, o autor procura atender outro ■ Profa. Brasília Carlos Ferreira
público, o estudante brasileiro, por entender que a igualdade so­
cial pode ser alcançada especialm ente pela educação. ■ Instituto Histórico e Geográfico do RN

■ Museu Ney Pontes


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Naial,
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agosto /s e t e m b r o d e 2 0 0 6 DNO
Entrevista Marcos Silva Arquivo/DN

historiador Marcos Silva, professor da

0
escrava, questionando a afirm ação de que não
U niversidade de São Paulo (USP) e havia escravos no RN em função da econom ia
autor de diversos livros, é estudioso pecuária. Fala sobre Mossoró, uma das cidades
sobre a escravidão no Brasil. Nessa entrevista,pioneiras na luta pela abolição da escravatu­
ele fa la sobre os diversos aspectos econômicos, ra, defendendo um m aior reconhecim ento a
históricos, antropológicos e sociológicos que nível nacional. Fala, ainda, sobre os efeitos da
m arcaram e continuam influenciando a pre­ discrim inação presente entre jovens e adoles­
sença dos negros no Rio Grande do Norte e no centes até mesmo em sala de aula e dos avan­
Brasil. Fala sobre a utilização da m ão-de-obra ços dos movimentos dos negros no Brasil.

A presença negra no RN
FRANCISCO FRANCERLE negros para negar a existência de argu­ Adiscriminação emnome de "raça" sentido, fomentar aquele mito da de­ vergadura seja tarefa apenas de um go­
DA EQUIPE DO DIÁRIO DE NATAL mentos racistas nos desafios. E em (biológica) é um fenômeno mais clara­ mocracia racial brasileira contribui verno. A política de cotas nas universi­
DN EDUCAÇÃO - N oRN M a-seque
muitas de suas obras, o escritor men­ mente definido a partir do século XIX. para a persistência de um racismo dades é significativa, no sentido de iden­
p raticam en te não houve escravidão
cionou a mescla de raças como marca Critérios anteriores de discriminação doloroso, embora em versão light. tificar um problema grave (desequilí­
africana, você concorda com essa tese?
da historicidade brasileira. É preci­ (família de nascimento, pobreza, de­ Para as vítimas do racismo, todo pre­ brio do número de estudantes afro-des-
MARCOS SILVA - A capitania e de­ so, portanto, ir além das observações sempenho de atividades desvalorizadas conceito (inclusive o light) é terrível. cendentes em relação aos percen­
pois província do Rio Grande do Norte presentes naquele livro de viagem. A socialmente) não desapareceram, ape­ Crianças, jovens e adultos sofrem, tuais da população brasileira), mas
História potiguar aparece em dife­ nas foram e continuam a ser reatuali- sim, quando percebem o desprezo ainda muito tímida, pois não dis­
não foi uma grande concentradora de
rentes gêneros de seus escritos, e a zados - já ouvi, neste século XXI, refe­ que está contido em determinadas cute nem ataca o conjunto do pro­
escravos africanos porque não abrigou,
presença africana deve ser identifi­ rências grosseiras aos portadores de designações ("negrinha", "cabelo cesso educacioná nem o nível qua­
em maior escala, atividades econômi­
cada nesses vários gêneros. determinados sobrenomes. Consoli- ruim", etc.). E quase nunca o teor cri­ litativo das instituições que ofere­
cas geradoras de rendas para a compra
dou-se, no Brasil, uma discriminação minoso desse racismo é salientado cem aquelas vagas. Considero uma
de escravos. Isso não elimina a predo­
Q ual a co n trib u ição de C âm ara racial difusa, que não foi inscrita na le­ para quem o pratica, escolas e outras conquista, também, o ensino de
minância das relações escravistas na
Cascudo n a historiografia do RN no gislação formal (proibição de casamen­ instituições tratam o preconceito, História da África nas escolas fun­
América portuguesa e no Brasil impe­ que se refere à escravidão? tos entre pessoas de diferentes raças, muitas vezes, como "brincadeira" ou damental, básica e média, para su­
rial, inclusive naquela capitania/pro- A História do Rio Grande do Norte por exemplo), mas se manteve muito "coisa de criança". Uma questão que perarmos a imagem exclusivamen­
víncia. Vale lembrar que, além do exter­ registra apenas uma personalidade po­ forte para desvalorizar grandes parce­ merece maior discussão é a tendên­ te portuguesa e européia de forma­
mínio de índios durante o período co­ tiguar como ex-escravo - Félix José do las da população, em termos econô­ cia a afirmar que o racismo nasce dos ção do Brasil. Falta ensinar, tam­
lonial, houve prática de escravização e Nascimento (1802//1904). Câmara Cas­ micos, estéticos e morais. Se a época do movimentos anti-racistas, como se bém, a História indígena.
comercialização desses homens e mu­ cudo não identifica os brilhantes ir­ Nazismo foi uma primavera para os as evidências discriminatórias bro­
lheres, como se observa na chamada mãos Souza (Auta, Elói e Henrique Cas- racistas, o segundo pós-guerra repre­ tassem da imaginação mórbida de Com o analisa o fato de a cidade de
"Guerra dos bárbaros", estudada por triciano) como negros, o que chega a senta um período mundial de com­ poucas pessoas, ou da imitação de M ossoró ter sido u m a das pioneiras
Câmara Cascudo e, mais recentemen­ surpreender, pois essa faceta dos irês bate a esse tipo de discriminação, padrões estrangeiros (principalmen­ do abolicionism o? Os historiadores
te, por Pedro Puntoni. É preciso definir evidencia uma sofisticada presença dando início ao fim do apartheid no te, estadunidenses). n a cio n á s aceitam isso?
quais as modalidades de trabalho que afro-descendente na cena intelectual e sul dos EEUU (que se encerrou ape­ A forte ligação entre Mossoró e
vigoraram na agricultura e na pecuária artística do estado, e até depõe a favor nas nos anos 60). Ao mesmo tempo, O m ovim ento negro avançou no Ceará contribm para entender esse pio-
potiguares, e seus desdobramentos em da capacidade potiguar de reconhecer a redefinição de raça humana como país? E r.o governo Lula, d á p a ra en u ­ neirismo, antecipando-se à LeiÁurea. O
relação a outros setores da população, o alto talento entre negros - Auta de fenômeno étnico, com a prioridade m erar m u itas conquistas? fim da escravidão não deve ser resumi­
para não pensarmos, de forma ideali­ Souza foi contemporânea do grande atribuída à experiência cultural em O movimento avançou muito, prin­ do à ação abolicionista, para não esque­
zada, que a capitania e a província es­ Poeta Cruz e Souza, violentamente dis­ relação ao viés exclusivamente bioló­ cipalmente desde as lutas contra a di­ cermos da capacidade de ação e luta dos
tiveram à margem das relações escra­ criminado em Santa Catarina e no Rio gico, expandiu-se significativamen­ tadura de 1964/1984, sem esquecer de próprios escravos, mesmo enquanto o
vistas dominantes na colônia e no im­ de Janeiro. Há comentários de Câma­ te, e os estudos de Gilberto Freyre, lutas coletivas e iniciativas individuais sistema escravista funcionava plena­
pério, para entendermos outras mo­ ra Cascudo, muito interessantes, na­ desde o início dos anos 30, são muito anteriores (Lima Barreto, Imprensa e mente. É preciso estudar as relações com­
dalidades de exploração do trabalho e quele livro, sobre o fim da escravidão expressivos dessa tendência. A mídia teatro negros, a afirmação da identida­ plexas durante a vigência da escravidão,
de dominação social. na província do Rio Grande do Norte, brasileira, na maior parte, segue essa de negra em artistas e intelectuais de que incluíam a definição de águns po­
indicando alforrias condicionais à atitude, embora alimente o mito de peso, como Ruth de Souza, Clementi­ deres para os próprios escravos e por
E sobre Cascudo, ele tam b ém disse prestação de serviços pelo alforriado que o Brasil é e sempre foi uma de­ na de Jesus, Clóvis Moura e Paulinho eles mesmos, expressos na capacidade
que p ra tica m e n te n ão existiam n e­ a seu antigo senhor, enquanto este mocracia racial. A perseguição poli­ da Viola). Ele conseguiu divulgar más de negociar com seus senhores deter­
gros por esses lados. A pesquisa do his­ vivesse. É um tema que merece ser cial contra candomblés e a desvalo­ a existência de modalidades racistas no minadas condições de vida e trabalho. O
toriad o r foi ab ran gen te ou até hoje retomado e ampliado, porque evi­ rização estética do corpo negro (cor Brasil, conquistou espaços afirmativos pioneirismo do Ceará é más conhecido
ele está sendo m al-interpretado? dencia a existência de escravidão e a da pele, tipo de cabelo), até meados para os padrões estéticos e culturais nacionalmente que o exemplo de Mos­
Essa afirmação de Câmara Cascu­ definição de novos laços de depen­ do século XX, indicam como a dis­ africanos, váorizou a trajetória históri­ soró. É possível que isso se deva à máor
do foi feita no livro "Viajando o Ser­ dência, após a alforria. criminação foi forte entre nós. Mesmo ca dos afro-descendentes no pás. O amplitude do primeiro (abrangendo uma
tão", e mereceu críticas muito cedo. hoje, ouço relatos de amigos sobre fato de um caná mmto influente de te­ província inteira). Váe à pena procurar
Não podemos esquecer, todavia, que a Comoanalisaatualmenteadiscrimi- racismos informais, entre crianças de levisão ter produzido uma novela com explicar essa experiência e as relações
primeira obra-prima do etnógrafo, 'Va­ n açãorad árw B rasiM atuação damídia, classe média ou mais pobres, contra protagonista negra merece atenção. de trabalho e poder que passam a vigo­
queiros e Cantadores", fala dos poetas estimula ou combate o rad an o ? os colegas negros e mestiços. Nesse Não penso que uma política dessa en­ rar após a abolição locá.
DNOEDUCACÃO Na h l , agosto /setembro de 2006

HISTÓRIA ORIGENS DA ESCRAVIDÃO ESTÃO LIGADAS AO PASTOREIO E AGRICULTURA


escravidão nem sempre existiu

A nas sociedades humanas, como


não existe em muitas sociedades
primitivas contemporâneas. Os povos
coletores e caçadores não a praticaram,
como também foi quase inexistente entre
os pescadores. As origens da escravidão
estão mais ligadas ao sedentarismo, e,
portanto, ao surgimento, no neolítico,
do pastoreio e da agricultura.
No quarto milênio antes da era cris­
tã os textos legais dos sumérios descre­
viam os escravos como "homens de paí­
ses estrangeiros", o que parece designar
prisioneiros de guerra. O código de Ha-
murabi (c.1750 a.C.) considerava tam­
bém escravos os devedores insolventes,
que eram vendidos com suas famílias.
Os escravos permanentes traziamna ore­
lha um furo, que os distinguia dos escra­
vos por tempo determinado.
Na civilização grega, os trabalhos
artesanais e agrícolas eram realiza­
dos por escravos. Os prisioneiros de
guerra eram vendidos em mercados,
como o de Delos. Vendidos ou com­
prados como objetos, não podiam
ser soldados nem tomar parte nas as­
sembléias, mas eram autorizados a
praticar o comércio e a participar de
atos rebgiosos. Por volta do século III
a.C., os romanos passaram a utilizar
grande número de escravos em tra­
balhos agrícolas e domésticos.
Apesar das leis que lhes ampara­
vam os direitos e da possibilidade
de comprarem sua própria liberda­
de, eram tratados geralmente com
dureza, o que originou sangrentas
revoltas, como a liderada por Es-
pártaco no século I a.C. O cristianis­
mo, ao proclamar a igualdade de
todos os homens, contribuiu para
aliviar a situação dos submetidos
ao regime de escravidão.

C Ó D IG O S
O código de Manu, o mais antigo
conjunto de leis da índia, identificava
seis tipos de servos: o cativo de guer­
ra; o servo doméstico; o servo nascido
de mulher escrava na casa do senhor;
o homem comprado ou ganho; o her­
dado; e o que foi feito escravo por não .... I.IIIM,
ter como pagar uma multa.
Poderiam adquirir a liberdade, traição transformavam-se em escra­ mica das terras descobertas no con­
nas seguintes condições: o escravo vos do poder público, no palácio real; tinente americano, os colonos ten­
de guerra, se deixasse em seu lugar os filhos desses condenados podiam taram escravizar a mão-de-obra in­
outro, que se encarregasse das tare­ ser castrados e usados como eunucos dígena, mas os índios revelaram-se
fas a ele incumbidas; e o escravo por e vigias dos haréns; as adúlteras, ex­ pouco dóceis, revoltando-se ou fu­
dívida, se liquidasse seu débito. Um pulsas de casa, não tinham alternati­ gindo para as florestas. Eram pouco
escravo que salvasse a vida do se­ va senão venderem-se como escravas; resistentes às doenças transmitidas
nhor não só teria direito à liberda­ os devedores podiam tomar-se escra­ pelos colonizadores e não aceitavam
de, como receberia um prêmio. vos do credor. Essas práticas vigora­ a exploração a que estes o.s queriam
A China não conheceu a compra e ram na China até o século XVI. submeter. Contavam ainda com o
venda de escravos, mas havia pessoas apoio dos missionários, que propu­
escravizadas por diversas razões: mise­ O S D E S C O B R IM E N T O S nham um abrandamento no trato
ráveis vendiam a liberdade para não E A E S C R A V ID Ã O com os indígenas como forma de fa­
morrer de fome; réus de crime de alta No início da exploração econô­ cilitar seu trabalho de catequese. A Princesa Isabei assinou a Lei Aurea Abolicionista José do Patrocínio
* t ♦

i Natai, agosto /setembro d e 2006 DNOEDUCAÇAO


Bartolomé de Las Casas, bispo de guês, que não aceitava fazer o traba­ mente, uma vez que ocorre uma di­
Chiapas, levantou-se em defesa dos lho braçal em nome de uma nobreza minuição na sua oferta.
índios e sugeriu que se empregasse muitas vezes auto-outorgada. Mas, Já em 1871, é promulgada a Lei
mão-de-obra negra, já submetida a uma outra tese ainda recorrente na A ndré Rebouças, do Ventre Livre, que garante a Uber­
escravidão. Isso já vinha sendo pra­ historiografia brasileira é a da substi­ dade aos filhos de escravos. Nove
ticado em pequena escala. Em 1517, tuição da mão-de-obra dos"arredios'1 José do anos depois, inicia-se uma campa­
um nobre espanhol obteve licença índios pela dos negros, considerados nha abolicionista estimulada por in­
para importar um número determi­ mais fortes e menos preguiçosos. Patrocínio, Lu iz telectuais e pohticos, como José do
nado de negros africanos para traba­ Essa tese vem sendo superada por Patrocínio e Joaquim Nabuco. O sis­
lhos na ilha de São Domingos. outra que remete a escravidão negra no G am a, Fco.Paula tema escravista enfraquece-se mais A pesar de garantir a liberdade,
Começou aí a importação de mi­ Brasil às experiências coloniais portu­ ainda com a Lei dos Sexagenários a abolição da escravidão não
lhares de negros para as Antilhas e para guesas na Madeira e nos Açores. Os por­ B rito . Hom ens (1885), que Uberta todos os escravos alterou as condições
o continente americano, onde a escravi­ tugueses experimentaram nesses ar­ com mais de 60 anos de idade.
dão negra coexistiria com a escravização quipélagos, em menor escala, a produ­ de cor na No dia 13 de maio de 1888, a Lei
socioeconôm icas dos ex-

dos índios. O enorme desenvolvimento ção de cana-de-açúcar com mão-de- Áurea é assinada pela Princesa Isa­ escravos que continuaram a
que a escravidão tomou em todo o con­ obra negra e depois transportaram essa linha de bel, extinguindo oficialmente a es­ viver na probreza e sem
tinente está ligado ao surto da economia experiência para o Brasil. Não se pode cravidão no Brasil. A assinatura da direitos básicos com o saúde e
açucareira, que exigia abundante mão- esquecer, todavia, que o tráfico negrei­ frente da Lei Áurea decorre não só como con- educação
de-obra nas plantações. ro era uma atividade altamente lucra­ seqüência das pressões de movimen­
O apogeu do tráfico negreiro foi tiva tanto para os traficantes, quanto intelectualidade tos aboficionistas e do contexto que
atingido no século XVIII, com o cons­ para a Coroa portuguesa. se formava com a assinatura das leis
tante aumento do uso de produtos A atividade do tráfico negreiro ini- antiescravista acima citadas, mas também sofreu
tropicais na Europa. Entre 1781 e 1790 cia-se oficialmente em 1559, quando influência dos movimentos de re­
eram importados 82 mil escravos por a metrópole portuguesa decide permi­ sistência à escravidão promovidos
ano, dos quais 35 mil por ingleses, 24 tir o ingresso de escravos vindos da
pelos próprios escravos e das pres­
mil por franceses, 18 mil por portu­ África no Brasil. Antes disso, porém,
wm sões que a Inglaterra exercia sobre
gueses, quatro mil por holandeses e transações envolvendo escravos afri­
o governo brasileiro, uma vez que o
mil por dinamarqueses. canos já ocorriam no Brasil, sendo a perlotadas. Quando desembarcavam fim da escravidão era de interesse
As principais regiões fornecedo­ escassez de mão-de-obra um dos prin­ em solo brasileiro, os escravos afri­ A o proclam ar a igualdade
inglês, já que ocorria nesta nação o
ras eram o golfo da Guiné, a região de cipais argumentos dos colonos. canos eram vendidos em praça públi­ entre todos os homens, o
Capturados nas mais diversas si­ processo de Revolução Industrial e
Angola e Moçambique. Quando a es­ ca. Os mais fortes e saudáveis eram cristianismo aliviou o regime
cravidão se radicou fortemente no tuações, como nas guerras tribais e esse processo lhe garantiria a am­
os mais valorizados. A atividade do pliação dos seus mercados consu­ de escravidão
continente americano, a Igreja Cató­ na escravização por dívidas não tráfico negreiro foi extremamente lu­
lica reconheceu expressamente a va­ pagas, os escravos africanos provi­ midores. Quando a Lei Áurea foi as­
crativa e perdurou até 1850, sendo sinada, beneficiou apenas 750 mil
lidade da instituição, enquanto a ati­ nham de lugares como Angola, Mo­ oficialmente extinguida nesse ano
tude das demais igrejas cristãs não çambique, Guiné e Benin. Eram ne­ escravos, menos de um décimo da
com a Lei Eusébio de Queirós. população negra existente no Brasil.
diferiu muito dessa. gociados com os traficantes em troca
de produtos como fumo, armas e A abolição da escravidão, apesar
A B O L IÇ Ã O D A E S C R A V A T U R A de garantir a liberdade, não alterou
aguardentes e transportados nos cha­
Escravidão negra mados navios negreiros. Esses na­ A abolição da escravatura foi pro­ em nada as condições socioeconômi-
vios tinham destinos como as cida­ cessada de forma gradual e decor­ cas dos ex-escravos, que continuaram
no Brasil des do Rio de Janeiro, Salvador, Re­ reu de toda uma situação formada a viver, de uma forma geral, na pobre­
A escravidão negra no Brasil durou cife e São Luís, e delas eram transpor­ com o decorrer do processo históri­ za, sem escolaridade e sofrendo com
cerca de trezentos anos. Os negros vin­ tados para regiões mais distantes. co. Em 1850, o tráfico negreiro é ofi­ a discriminação. Não impediu tam­
dos daÁfrica, segundo as diversas teses Durante as viagens, muitos escra­ cialmente extinto com a Lei Eusébio bém que a superexploração de mão-
sobre a escravidão no Brasil, foram tra­ vos morriam em decorrência das pés­ de Queirós. Com o fim da principal de-obra em regime de escravidão e o
zidos com o objetivo de constituir a simas condições sanitárias existen­ fonte de obtenção de escravos, o tráfico de pessoas continuassem sendo
mão-de-obra do colonizador portu­ tes nas embarcações, que vinham su- preço destes eleva-se significativa­ praticados até os dias atuais.

A HERANÇA DOS ESCRAVOS


Tanto os indígenas quanto os escravos africanos foram
elementos essenciais para a formação não somente da popu­
lação, mas também da cultura brasileira. A diversidade étni­
ca verificada no Brasil decorre do processo de miscigenação
entre colonos europeus, indígenas e africanos.
A cultura brasileira, por sua vez, apresenta fortes traços tanto da
cultura indígena quanto da cultura africana. Desde a culinária, onde
se verificam o vatapá, o caruru e a tradicional feijoada brasileira nas­
cida nas cozinhas dos escravos, chegando até a língua portuguesa, é
impossível não perceber a influência da cultura dos povos que foram
escravizados no Brasil.
O negro, ao longo de sua história no país, também influenciou
sensivelmente os costumes brasileiros. Histórias do Quibungo de­
leitaram e aterrorizaram crianças; os cultos de origem africana, com
orientação jeje-nagô, floresceram nos centros principais e conquis­
taram adeptos em todas as classes sociais. A capoeira, que antes
servira à defesa da Uberdade do negro, passou a ser vista como uma
forma brasileira de arte marcial; o batuque de Angola saiu dos ter­
reiros das fazendas e invadiu as cidades sob a forma de lundu, baia­
no, coco, samba e variações.
Multidão diante do Paço da Cidade, no Rio de janeiro, em 1889, para com em orar a assinatura da Lei Áurea
DNOEDUCACÃO
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Natal, agosto /setembro de 2006

p e s q u is a ANTROPÓLOGA APRESENTA MAPA DA ESCRAVIDÃO NO RIO GRANDE DO NORTE

Escravidão no RN
negro, cujo advento coincidiu com a fundação colher algodão em Serra Negra do Norte, Timbaú- Norte, onde a população escrava, no início do sécu­

O de Natal, nunca chegou a ser dominante no Rio


Grande do Norte, e, segundo diversos historia­
dores, os escravos começaram a entrar com maior fre-
qüência no Rio Grande do Norte a par tir da segunda me­
ba dos Batista e Ouro Branco. lo XIX, se encontrava primeiramente no litoral, e, de­
A partir da metade do século XVIII, o algodão co­ pois, no interior, disseminadas ou agrupadas nas pro­
nhece uma fase próspera, ao invés do açúcar, que ximidades de Açu, Apodi - Portalegre, Pau dos Ferros
tende a declinar. O setor algodoeiro emprega os - e no Seridó, em Caicó e Jardim do Seridó, sobretu­
tade do século XVII, tendo sido primeiramente impor­ escravos no agreste e no sertão. Nessa época, a re­ do no cultivo de algodão.
tados da África (Angola, Congo, Guiné), via Recife, em gião dos Cariris Novos, no Ceará, recebe uma leva Até 1884, a população servil representava em tomo
Pernambuco. Nessa época, os escravos estavam concen­ notável de mão-de-obra escrava visando a explo­ de 10% da população total do Nordeste; este número
trados, principalmente, na cultura da cana-de-açúcar. ração das minas de ouro de Missão Velha. Depois • vai baixando até a abolição. Nas montanhas mais úmi­
Mais tarde, em meados do século XIX, houve um do fracasso dessa tentativa, os escravos serão em­ das, onde tinha engenho de açúcar, nas planícies, nas
crescimento da produção açucareira, ainda concen­ pregados nos engenhos, tendência essa seguida plantações de algodão que, na época, conheciam uma
trada quase .exclusivamente no litoral sul do estado. pelo Rio Grande do Norte.
relativa prosperidade, os escravos eram mais numero­
A antropóloga Julie Cavignac descreve em seu artigo O período do final do século XVIII e do início do
sos do que em outros lugares.
"A etnicidade encoberta: 'índios' e 'Negros' no Rio século XIX corresponde ao momento no qual a socie­
As grandes secas do final do século atingem de ma-
Grande do Norte", publicado na revista eletrônica dade do interior conhece uma prosperidade relativa
Mneme, em 2003, que "é interessante notar que são - pelo menos em relação ao litoral potiguar -, perío­ neba radical a economia sertaneja, diminuindo de ma­
as antigas vilas e aldeamentos jesuítas que recebem do em que o país inteiro absorve um aporte signifi­ neira significativa a popiúação escrava que está sendo
o maior número de escravos". cativo de população: com a chegada de novos colo­ encaminhada para o Sudeste, nas plantações de café.
Somente dois séculos mais tarde, uma outra nos, sobretudo originários do norte de Portugal e de Finalmente, e apesar da falta de estatísticas confiá­
onda de população escrava, proveniente do Mara­ outras regiões da Europa e com o aumento do tráfi­ veis, Julie Cavignac diz em seu artigo que "pode-se pen­
nhão, vai desembarcar nos portos do litoral norte co negreiro, desta vez para o sul do país. sar que havia mais escravos na Paraíba e em Pernam­
do estado para trabalhar nas salinas de Macau, Neste período, na vizinha Paraíba, há um cresci­ buco do que no Rio Grande do Norte ou no Ceará, por­
Areia Branca e Mossoró. No Seridó, é preciso espe­ mento significativo de população negra, onde se en­ que, ao contrário dessas duas primeiras províncias, as
rar até o século XVIII para encontrar os primeiros contram cada vez mais libertos. Esse mesmo movi­ últimas não eram zonas açucareiras significativas, re­
rastros de escravos trazidos de Pernambuco para mento pode ser notado também no Rio Grande do presentando menos interesses econômicos".

■»B

ENGENHOS
Em 1775, eram localizados 22
dos 27 engenhos e engenhocas
existentes: São José do Mipibu,
Goianinha, Canguaretama (enge­
nho Cunhaú), Vila Flor, Extremoz,
Coité (hoje Macaíba, onde havia
o engenho Ferreiro Torto), Arês,
São Gonçalo e Ceará-Mirim
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Nakl, agosto/setembro de 2006 PN O EDUCAÇAO

Revisar a história
os estudos sobre o Rio Grande do Norte, as "Na maioria destes escritos, se muito encontramos, são Segundo a antropóloga, hoje, no Rio Grande do

N referências aos índios e negros são discre­


tas. Eles foram relegados ao segundo plano
pelos historiadores e antropólogos, que não inves­
contabilizações de escravos nos diferentes pontos de econo­
mia açucareira do estado, ou a descrição de seus hábitos e
manifestações "exóticas", bem característica dos estudos fol-
cloristas, sendo estes atores reduzidos a categorias estatísti­
Norte, a história que é encenada chega, às vezes, a ser
caricatural. "O negro, quando se encontram referências,
é representado como um vaqueiro solitário, amigo do
seu patrão e feliz por ser escravo", descreve, ponto em
tigaram sistematicamente a multiplicidade de atua­
ções, além de que os principais atores da história cas e caricatas, sem nenhum exame crítico de sua situação". questão "Como explicar, então, se não houve uma forte
colonial sofreram um visível apagamento. É visan­ Contudo, a pesquisadora percebe que tal "esque­ presença indígena e negra no estado, que, no censo de
do entender essas aparentes ausências, tanto na cimento" não se dá tão-somente nos registros histó­ 1940, no Rio Grande do Norte, os 'pardos' representavam
produção acadêm ica quanto nas representações ricos. "Quando voltamos nossa atenção para os ato­ 43 % da população total e em 1980,56,7%?".
coletivas, que a antropóloga Julie Cavignac propôs res desta questão - os próprios 'índios' e 'quilombolas' Dessa forma, Julie Cavignac enfatiza que é tempo de
uma reflexão crítica da literatura, associada a uma - percebemos que esse caráter de identidade diferen­ propor uma reflexão crítica e uma revisão da questão no
revisão da história indígena e do passado escravo­ ciada, tão prontamente postulado pelos órgãos ofi­ Rio Grande do Norte e, sobretudo, de questionar a his­
crata do Rio Grande do Norte. ciais, na maioria das vezes, não é assumido e valori­ tória local. "Tentaremos assim, vislumbrar os elemen­
Em seu artigo, a pesquisadora justifica tais fatos "levan­ zado por eles", descreve, ressaltando que "seu passa­ tos constitutivos das identidades diferenciadas, dis­
do em conta o fato que pouco se sabe da realidade sócio- do diferenciado recai muito mais sobre aspectos po­ cussão que não pode perder de vista o problema ét­
cultural em que as populações se encontraram ao longo dos sitivos do que sobre a negatividade arraigada às cate­ nico no Nordeste, de um modo geral. Assim, pensamos
séculos, pois foram englobadas em categorias genéricas, gorias depreciativas e generalizantes". que a história dos 'negros' e dos 'índios' que foram
elaboradas historicamente". Além disso, Julie pretendeu De acordo com a pesquisa, no Nordeste, e ainda integrados ao processo colonial e muitas vezes asso­
também abrir pistas de investigações a serem trilhadas por mais no Rio Grande do Norte, a história foi primeira­ ciados e 'misturados', precisa ser reescrita, levando
antropólogos e historiadores. mente escrita fora dos contextos acadêmicos e, essen­ em conta que pouco se sabe sobre a realidade sócio-
Segundo a pesquisadora, no Rio Grande do Norte, como cialmente, pelas elites locais que tentaram apagar, cultural em que as populações nativas se encontra­
em outras partes do Nordeste, a figura do escravo passou a todo custo, as especificidades étnicas ao longo dos vam, pois foram englobadas nessas categorias gené­
por diversos processos que contribuíram para o seu "apaga­ séculos. "Precisamos, então, desconfiar da versão ricas, historicamente elaboradas".
mento" histórico, sendo inseridos em categorias generali- proposta pela historiografia tradicional que se es­ De maneira sintomática, a antropóloga constata que
zantes, como a de camponês ou de sertanejo. Os estudos forçou em descrever os fatos, escondendo aspec­ a figura do escravo é excluída do script da história do
potiguares dedicados às figuras de "índios" e "negros" enfo­ tos pouco gloriosos da história, chegando, por Rio Grande do Norte, aparecendo mais como um ator que
cam, quase que exclusivamente, aspectos folclóricos ou de exemplo, a declarar a extinção total das popula­ possui um papel subalterno ou como um indivíduo pe­
religiosidades afros descendentes em âmbito urbano, assim ções autóctones ou subestimar o número de escra­ rigoso. "As razões da invisibilidade refletem, em parte, a
o vemos mais evidentemente nos trabalhos de "clássicos" vos no sertão", disse, Citando alguns autores, entre ausência da atuação dos descendentes de escravos e a
como Câmara Cascudo, Hélio Galvão, dentre outros. eles Luís da Câmara Cascudo e Pedro Puntoni. perda de uma memória coletiva".

Arquivo/DN

É tempo de propor uma re­


flexão crítica e uma revisão da
questão no Rio Grande do Norte
e, sobretudo, de questionar a
história local. A história do
negro e do índio precisa ser
reescrita, levando em conta que
pouco se sabe.
DNOEDIJCAÇÃO Na k l , agosto /setembro de 2006

REMANESCENTES SITUADAS EM LOCAIS DE DIFÍCIL ACESSO E BAIXA QUALIDADE DE VIDA

Comunidades quilombolas no RN
antropóloga Julie Cavignac,no artigo Fora algumas raras exceções, os grupos de dez comunidades, que apresentam ca­

A "A etnicidade encoberta: 'índios' e


'Negros' no Rio Grande do Norte" diz
que a existência de pequenas comunidades
rurais no interior do estado contrasta com o
ainda não são bem conhecidos e, cada vez
mais, tendo sofrido um forte êxodo rural,
encontram-se desestruturados e conhecem
dificuldades econômicas. Há uma grande
racterísticas similares, como sua localiza­
ção, na maioria, em serras, em locais de di­
fícil acesso, e tendem a ser mais pobres do
que as comunidades rurais", disse.
que Câmara Cascudo anunciou em 1934, resistência, entre os membros destas
após uma longa viagem de 1.307 Km pelo 'comunidades', no auto-reconhecimento co­ P O L ÍT IC A S P Ú B L IC A S
sertão do Rio Grande do Norte, quando disse letivo como afro-descendente e na busca de Apesar das comunidades terem uma qua­
não haver encontrado um único negro. Ape­ uma "história enterrada". lidade de vida muito baixa, Elizabeth disse
sar dessa polêmica, a pesquisadora encon­ "Por outro lado, quando investigamos a que houve uma melhora devido às políticas
trou raros registros de agrupamentos negros memória individual dos descendentes dos públicas voltadas a elas. "Em geral, eles
no interior da região que respondem à clas­ africanos, e mesmo tendo a presença de es­ vivem da agricultura e estudam de acordo
sificação de quilombos. cravos atestada historicamente nas zonas com as condições de suas localidades. Mui­
Hoje, no Estado, Julie aponta para um nú­ montanhosas do estado - como Serra Negra, tos municípios oferecem apenas o Ensino
mero variável de comunidades de afro-des- Martins, Pau dos Ferros ou Portalegre -, raras Fundamental, então eles tendem a concluir
cendentes - de dez a cinqüenta registros -, reu­ são as pessoas que se reclamam de um an­ este nível de ensino e parar por aí por não
nidas em comunidades rurais, de caráter en- cestral escravo ou que têm uma lembrança terem condições de se deslocar para uma ci­
dogâmico, ainda tendo uma memória genea­ específica 'do tempo da escravidão"'. dade maior", explicou.
lógica forte. Porém, o acesso a essas fontes é di­ Nesse sentido, a coordenadora enfatizou
fícil e existem poucos detalhes sobre os contex­ O N G K IL O M B O que a Kilombo está buscando apoio junto
tos, a metodologia e os critérios utilizados na Para Julie, no Rio Grande do Norte, o de­ às prefeituras desses municípios para viabi­
realização destes mapeamentos. bate sobre os quilombolas ainda não tem lizar condições de educação, para que os es­
Segundo a antropóloga, os membros dos expressão, "pois o despertar étnico é ainda tudantes cheguem ao Ensino Superior. "Aí,
grupos designados sob o termo genérico de tímido e pouco visível". Mas, uma institui­ entra a questão das cotas, e junto a isso a
Os grupos de negros se
''negros1' se reconhecem, às vezes, como os ção que vem levantando essa discussão é a discussão da implantação da disciplina sobre
organização não-governamental Kilombo,
reconhecem às vezes, como os
descendentes dos africanos, mas nem sem­ história da África, numa parceria junto à Se­
pre como os dos escravos. De fato, são mui­ cujo objetivo principal é o combate ao racis­ cretaria de Educação do Estado". descendentes dos africanos, nem
tas vezes comunidades formadas por escra­ mo. Atuando em Natal há mais de dez anos, Elizabeth ainda destacou um projeto reali­
vos fugidos ou que surgiram após a abolição. hoje, o trabalho da ONG está quase que ex­ zado em 2003, onde foram reunidas várias li­ sem pre como os dos escravos”
"Assim, por exemplo, é estranho encon­ clusivamente voltado para as comunidades deranças das comunidades quilombolas por
trar os "Caboclos da Cachoeira", no muni­ quilombolas do Estado. meio de um curso de capacitação visando ofe­
cípio de Caraúbas, registrados como sendo De acordo com Elizabeth Nascimento, recer a essas pessoas conhecimentos. "A ação
uma comunidade negra, quando, tradicional­ coordenadora da instituição, a Kilombo vem teve um resultado bastante interessante, pois
mente, a categoria 'caboclo' designa os des­ se articulando com outras entidades no sen­ foi quando muitas pessoas começaram a se
cendentes das populações indígenas e que tido de garantir melhores condições às co­ envolver realmente com o movimento, desper­
o único estudo chama a atenção para a ori­ munidades remanescentes de quilombos. taram para essa questão e para o próprio co­
gem portuguesa do grupo", descreve. "Atualmente, temos uma inserção em cerca nhecimento de sua capacidade", concluiu.
Arquivo/DN

COMUNIDADESONDEA
KILOMBODESENVOLVE
ATIVIDADES?
. Moita Verde, em Parnamirim
. Capoeiras, em Macaíba
. Grossos e Pavilhão, em Bom Jesus
. Sítio Pega e Sobrado, em Portalegre
. Nova Descoberta, em Ielmo Marinho
. Gameleira, em São Tomé
. Aroeira, em Pedro Avelino
. Jatobá, em Patu
. Boa Vista dos Negros, em Parelhas
. Macambira, em Bodó
. Sibaúma, emTibau do Sul
. Negros do Riacho, em Currais Novos

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. C
Nh a l , agosto/setembro de 2 0 0 6 D N O EDUCAÇÃO
tese PRO FESSO RA DA UFRN CO N STATA PR EC O N C EITO EM SA LA DE A U LA

“A escola brasileira não está


preparada para as diferenças”
Fotos Arquivo/DN

afirmação é da professora

A
e cultural, do desconhecimento, por bém uma limitação na raiz do pro­ gógico, muitas vezes, sem a acui­
Wilma Coelho, autora da parte dos professores, da história blema", expbcou. dade necessária, pois esse livro
tese de Doutorado que de­ dos negros e seus descendentes, re­ Sobre a Lei 10.639/2003, Wilma didático se constitui como parte
fende justam ente a condição de forçada por livros didáticos mal for­ acredita que ainda existem lacunas im p ortan te da co n stru ção d a'
que os alunos negros são relega­ mulados. "Na escola ainda se repro­ a serem preenchidas. "Mesmo identidade da criança".
dos em sala de aula. Produzido duz a idéia do senso comum de que assim, é a única forma de se discu­ Por outro lado, disse, isso pode
na Universidade Federal do Rio vivemos num paraíso racial, o des­ tir o problema, sendo um dos ca­ desencadear na criança negra uma
Grande do Norte (UFRN), sob dobramento desse discurso, é a re­ minhos para se debater questões autonegação e baixa auto-estima.
orientação do professor Dr. José produção de preconceito”. como as cotas para as minorias nas Em conseqüência, também a crian­
Willington Germano, o trabalho, Dessa forma, disse, tanto os pro­ universidades públicas". Já em re­ ça branca percebe que tem um di­
agora publicado em livro, sob o fessores da rede pública quanto os lação aos livros didáticos, a profes­ ferencial na escola e na sociedade,
título de "A cor ausente", versa da privada não estão preparados sora analisa que, em muitos casos, e poderá também reproduzir esses
sobre a formação de professores para lidar com esta questão em sala o negro e o índio ainda aparecem de procedimentos. "A criança negra
para o trato da questão racial ofe­ de aula. "Primeiro porque a questão modo desumanizado e desprovido que recebe esse ensinamento fixa
recida pelo Instituto de Educação racial não fazia parte do conteúdo de referência familiar. a idéia de que está no lugar da mi­
do Estado do Pará, nas décadas obrigatório dos currículos de for­ "O nocivo disso é que livros di­ séria, no lugar da feiúra, no lugar
de 1970 e 1980. mação de professores. A ausência dáticos se constituem uma obra da preguiça, que só serve o futebol, A tese da professora W ilm a
De acordo com Wilma, os pro­ da disciplina História da África, na didática e, em geral, professores e a escola tende a reforçar essas prá­ Coelho foi transformada no
blemas do racismo no Brasil são re­ maioria dos cursos de licenciatura da Educação Básica tendem a sa- ticas discriminatórias que estão pre­ livro “A cor ausente”
sultados da falta de estrutura social em História, no Brasil, indica tam­ cralizar esse instrum ento peda­ sentes na sociedade", concluiu.
DIVg)EDUCACAO Nækl , agosto/setembro de 2006

iNTERDisciPLiNARiDADE PROFESSORES ESTUDAM COMO ABORDAR OTEMA EM SALA DEAULA

A identidade negra
em sala de aula
Foto: Joana Lima/DN

Legislação determinou
prazo de um ano para
que todas as escolas
públicas e privadas
insiram, nos currículos,
o ensino da história e
cultura afrobrasileira

ADRIANA AMORIM cravidão sempre foi abordada de uma manei­ ra, a Secretaria Estadual de Educação está
Nos Centros Escolares DA EQUIPE DO DIÁRIO DE NATAL ra negativa, impedindo que os próprios alunos fazendo uma tentativa de resgatar a verdadei­
afros descendentes se vejam positivamente, ra história e cultura afro-brasileira e africa­
tem os apenas 150 alunos omo ensinar o que não se conhece? Esta pa­ seja na formação de sua herança ou da histó­ na, além de mostrar aos professores a im­
que se consideram afros
descendentes. Há uma
C rece ser a questão mais discutida nas esco­ ria do Brasil, como explicou Eduardo Pereira,
las de Ensino Médio de todo o Brasil, em professor de História lotado na Subcoordena-
virtude da promulgação da Lei 10.639, de 9 de ja­
doria do Ensino Médio (SUEM), da Secretaria
neiro de 2003, que estabelece a obrigatoriedade do de Educação do Estado.
portância de abordar em sala de aula a ques­
tão da identidade negra. "A SUEM montou,
este ano, um grupo de profissionais das áreas
das Ciências Humanas e Linguagem, no sen­
ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Afri­ Segundo ele, existe um paradoxo quando se tido de propor alguns trabalhos que visem
situação em que o aluno cana. No Rio Grande do Norte, o tema é ainda aborda a questão da identidade negra. "Nos cen­ preencher essa lacuna, além de atender o
mais polêmico, principalmente porque a ausên­ tros escolares, temos apenas 150 alunos que se
que a lei pede", disse, enfatizando que o pro­
negro não quer se cia da história da África também é uma lacuna
nos currículos das principais instituições de En­ consideraram afros descendentes. Agora, imagine jeto está em parceria com a Universidade Fe­
enxergar” sino Superior presentes no Estado. que são mais de 70 comunidades quilombolas no deral do Rio Grande do Norte (UFRN).
Apesar de a lei existir há mais de três anos, ape­ Estado. Ou seja, há uma situação em que o aluno "Nosso objetivo é estreitar ainda mais os
nas algumas escolas da Rede Estadual de Ensino negro não quer se enxergar negro", disse, ressal­ laços com a academia e discutir ações que
iniciaram trabalhos pontuais, mas muitos sequer tando que, embora a Lei tenha um propósito po­ viabilizem, principalmente, uma mudança
avançaram. Agora, a legislação determinou um sitivo, a temática pode ser ainda mais negativa de postura dos professores das diversas dis­
prazo de um ano para que todas as escolas públi­ caso os professores não estejam preparados para ciplinas que, ao trabalharem seus conteú­
cas e privadas insiram em seus currículos o ensi­ tal. "Nós temos um sério problema, mas que es­ dos, possam valorizar essa identidade negra
no da cultura afro-brasileira. peramos solucioná-lo". e com isso levar uma posição crítica para a
No entanto, o grande problema é que a es­ Para isso, de acordo com Eduardo Perei­ sala de aula", explicou.
Nm a l , agosto/setembro de 2 0 0 6

Capacitação
O primeiro passo do projeto foi a realização de uma capacitação com os professores da
área das Ciências Humanas, envolvendo as disciplinas de História, Geografia, Filosofia, So­
O s p ro fe sso re s
ciologia, Cultura e Economia do RN, como explicou Elizabeth Jácome, subcoordenadora do
p re te n d e m
Ensino Médio. "Como nós trabalhamos com a interdisciplinaridade, os professores da área
f a z e r u m a p ro ­
da Ciência também podem fazer parte, bem como os profissionais de Sinais e Códigos", disse.
d u ç ã o d id á tica
A capacitação aconteceu nos dias 4 e 5 de outubro, no Instituto de Formação Superior Pre­
so b re o t e m a
sidente Kennedy, com representantes das 282 escolas de Ensino Médio de todo o Rio Gran­
q u e s ir v a d e elo
de do Norte. Sob coordenação de Elizabeth e de Aliete Cavalcante, o evento teve como tema
d e c o m u n ic a ­
central "As novas perspectivas sobre o estudo da história e da cultura africana".
çã o e n t r e e le s e
"Junto com os professores, pretendemos articular propostas que viabilizem ações po­
o alu n o
líticas e pedagógicas da referida
legislação resultando em uma Fotos: Arquivo/DN

produção didática acerca dessa


tem ática", explicou, com ple­
mentando que o material pro­
duzido será o grande elo de co­
m unicação entre professor e
aluno. "O evento constou de di­
versas oficinas temáticas, com a
participação de profissionais ca­
pacitados e conscientes do pro­
pósito do projeto".
Na opinião de outro membro
do grupo, professora Rita de
C ássia, de G eografia, a in i­
cia tiv a é um a grande c o n ­
trib u iç ã o na d iscu ssã o da
cu ltu ra african a e dos afros
descend entes. "É uma tem á­
tica que está sendo c o lo c a ­
da de fo rm a tra n s v e r s a l,
p rin cip alm en te na área das
C iências Humanas, mas p er­
m ean d o tam b ém to d a s as
áreas do co n h ecim e n to ".

Trabalhando a mudança de postura


A ausência da história da África é uma das bros do grupo temático que visa propor alter­ uma maneira melhor. "Isso será disseminado
maiores lacunas no sistema educacional bra­ nativas para o ensino de História e Cultura pela sociedade através da comunidade escolar,
sileiro, o que impossibilita aos afros descen­ Afro-brasileiraeAfricana, normalmente, a pa­ ou seja, é um trabalho multiplicador".
dentes construir uma identidade positiva sobre lavra "negro" está associada a feio, delinqüên- Para Clélia, o Rio Grande do Norte conse­
as suas origens. Ao mesmo tempo, abre espa­ cia, marginalidade, entre outros. "O negro ficou guiu dar passos importantes com a implanta­
ço para hipóteses sem fundamentação teórica posicionado na sociedade de tal forma que ção das disciplinas de Economia e Cultura no
geradora de preconceito sobre as origens dos perdeu sua identidade, onde ele não assume a RN. "Educação é a base de tudo e é importan­
afros descendentes, permitindo reprodução e sua cor, a sua origem", disse Clotilde. te que essa questão da igualdade racial se faça
difusão de concepções racistas sobre as ori­ Segundo ela, o trabalho de sensibilização presente. Mas, o mais importante é trabalhar
gens da população negra. proposto pela SUEM é um grande diferencial em prol da concretização da eliminação de
Na opinião das irmãs Clotilde e Clélia de para a mudança de postura desses alunos afros qualquer tipo de preconceito, não só o racial,
Souza, graduadas em Letras e também mem­ descendentes, que vão passar a se enxergar de também o social", concluiu.
Na m l , agosto/setembro de 2 0 0 6

"Tentativa de estupro em dias de janeiro


Trabalhos de estudantes de projeto da E.E.
por ocasião da Festa de Santa Luzia" a
Aida R. Cortez Pereira no I Fóru m Estadual
"De Escola P ara Escola", em 2001, promovido
pelaSECD c /to s s o R ó Cia um a escrava adolescente. Noticiado em
O Mossoroense de 02/02/1874

ompra escravos
s sexos de 14a 24 anos de
dude na rua conde dSu
QifíícsicR&m? ejs iz \

Desenho do aluno Jeová: "Prisão tfescravos" na Desenho do aluno Jeová: "Anúncio de


cadeia pública de Mossoró, preso com gargalheira. Com p ras de Escravos". Noticiado no jornal O
Noticiado em 23/08/1874. Mossoroense em 23 a 31 /08/1873.

D ESTA Q U E JO R N A LISTA FA LA SO BRE A PO LÊM ICA LIB ER TA ÇÃ O D O S ESCRAVO S

Tradição e coragem de Mossoró


em a primeira, nem a terceira, quarta

N
ou quinta... Mossoró foi a segunda
cidade brasileira a libertar os escravos.
A precursora, na verdade, foi Aracape, uma
pequena cidade no interior do Ceará, que
QUEM É
Rubens Coelho nasceu em Mila-
gres-CE, morou 11 anos em Fortale­
K u b a iiü Cotelt*©

za, 20 em São Paulo e 19 anos em b eq eb eb b b b s


deu o grito de alforria sete meses antes do Mossoró 1■■ - rente. É
30 de setembro de 1883, data fielmente ce­ graduado em Geografia pela PUC de D
lebrada com grande festa todos os anos em São Paulo e Ciências Sociais pela Uni­
Mossoró, que continua com o mérito de ter versidade de Mogi das Cruzes-SP.
sido a primeira no Rio Grande do Norte a Exerceu o magistério e jornalismo, e jM lH a ta g n a n a
emancipar a escravidão. é, atualmente, articulista do jornal Ga­
Tais fatos não têm origem recente. Mui­ zeta do Oeste, escrevendo um artigo
tos historiadores e pesquisadores, como semanal. Além disso, é sócio corres­ (Revisado e Ampliado)
Francisco Fausto de Medeiros, Raimun­ pondente do Instituto Histórico e Geo­
do Nonato e Vingt-un Rosado, por exem­ gráfico do Rio Grande do Norte, dire­
plo, registraram essas ocorrências. E quem tor do Instituto Cultural do Oeste Po­
vem trazer à tona esses apontamentos é tiguar (ICOP), sócio correspondente
o jornalista Rubens Coelho, residente em do Instituto Cultural do Vale Caririen-
Mossoró e autor de seis livros, entre os se (ICVC), sócio da Sociedade Brasi­
quais "Precedentes e Verdades Históri­ leira de Estudo do Cangaço (SBEC) e
cas", já em sua 2a Edição, onde é aborda­ em 22 de abril de 1884, muitos registros his­
sócio da Fundação Ving-tun Rosado. tóricos atestam para o seu pioneirismo", res­
do o movimento negro no Nordeste.
1 Nesta obra, Rubens dedica um capítulo saltou. Neste mesmo mês, no dia 6, é criada
especial sobre a abolição em Mossoró, fazen­ em Mossoró a Sociedade Libertadora Mos­
Jornalista Rubens Coelho fala em seu livro sobre do um registro de ocorrências importantes foi fundamental. A Loja Maçónica 24 de soroense. "A partir de então foram dados os
a cidade de Mossoró na abolição dos escravos que apontam para a veracidade de muitos Junho, fundada em 1873, participou ativa­ primeiros passos na luta pela abolição dos
estudiosos, mas, sobretudo, que contestam mente do movimento, e todos os seus mem­ escravos nessa cidade", enfatizou.
uma história que continua a alimentar o pio­ bros eram abolicionistas", disse. Finalmente, no dia 30 de setembro de
neirismo mossoroense de libertar os escravos A partir de 1880, apareceram inúmeras 1883, a Loja Maçónica "24 de junho" rece­
antes da abolição feita sociedades de combate à escravidão. Em Re- be uma delegação do Ceará de abolicio­
oficialmente em 13 de cife-PE, é criado o "Clube do Cupim", uma en­ nistas comandada por Almino Afonso, e
maio de 1888, através tidade liderada pelo maranhense João Ramos da qual fazia parte o presbítero america­
da Lei Áurea. e que tinha por finalidade lutar pela liberta­ no De Lacey Wardlau, que, na ocasião, fez
Para isso, o jornalis­ ção dos escravos, bastante procurada pelos uso da palavra exaltando a proclamação
ta precisou pesquisar negros em busca de alforria. "Nesse mesmo da abolição dos escravos.
Os grupos de negros se reconhecem às vezes, Rubens Coelho ainda enfatiza que, após
em documentos da ano, foi criada a Fundação da Sociedade Li­
o feito, Mossoró passou a ser a rota segura
como os descendentes dos africanos, nem sem pre época, realizando lei­ bertadora do Ceará, por intelectuais e políti­
de escravos fugitivos, que eram, posterior­
turas de pesquisado­ cos cearenses, e entre seus membros se des­
mente, transferidos para Aracati e Fortale­
como os dos escravos” res e historiadores tacaram João Cordeiro e o potiguar Almino
za, no Ceará. "Mesmo assim, os escravos
sobre o tema aborda­ Afonso", explicou.
do. "Vale salientar que Dessa forma, como conta Rubens, três de Mossoró ainda precisaram passar por
o papel da Maçonaria anos depois, em Io de janeiro de 1883, a ci­ um longo processo a caminho da liberda­
no movimento aboli­ dade de Acarape-CE liberta seus escravos. de, já que muitos escravocratas relutaram
cionista mossoroense "Apesar de o Ceará ter decretado a libertação contra a abolição", disse.
Na h l , agosto /setembro de 2006 D N O EDUCAÇÃO
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FUNDADA E M 24 061873

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"Libertadora Mosoroense" entidade pioneira da campanha redentora que


Grupo de ex-escravos com o m ajor Romão Filgueira e o historiador e escritorVingt-un Rosado declarou livres todos os escravos do município na sessão de 30/09/1873

Tese de mestrado esquenta polêmica


De fato, foram os cearenses quem trouxeram para acabou com o tráfico externo de escravos. "Sendo de­
Mossoró o "grito de liberdade", mas, de acordo com cretada a proibição da renovação da mão-de-obra pro­
Emanuel Pereira Braz, Mestre em Ciências Sociais pela veniente da África para o Brasil, era a certeza de que a Mossoró foi a sexta
UFRN, a segunda maior cidade do Estado foi a sexta do escravidão estava com os seus dias contados", disse.
Brasil a libertar os escravos. De acordo com o profes­ Mesmo assim, explicou, a elite dominante po­ cidade do Brasil a
sor, Mossoró tomou-se mais uma cidade a determinar lítica e economicamente defendeu a continuida­
o fim da escravidão, pois, no Ceará, cinco municípios de da escravidão até a sua desmoralização. Nesta libertar os escravos.
já haviam decretado tal fato. época, o Brasil tinha a ascensão da produção do
O assunto foi tema de sua dissertação de Mestra­ café na Região Sudeste, enquanto que os lati­ Foram os cearenses
do, em 1998, e surgiu após perceber a crença da fundiários das Regiões Norte e Nordeste enfren­
população de que Mossoró havia sido a prim ei­ tavam um refluxo econômico resultado da deca­ que trouxeram para a
ra cidade do Brasil a abolir a escravidão. Em seu dência principalm ente da produção do açúcar.
trabalho, Emanuel, que hoje é Diretor da Facul­ "Esta realidade provocou um deslocamento em cidade o ‘grito de
dade de Filosofia e Ciências Sociais da Univer­ massa da mão-de-obra escrava, e os senhores de es­
sidade do Estado do Rio Grande do Norte e Pro­ cravos das regiões norte e nordeste conseguiam ven­ liberdade’
fessor Titular das Cadeiras Metodologia do En­ der os escravos a preços exorbitantes para os latifun­ Emanuel Pereira B raz é professor e
sino da História e História do Brasil, faz uma diários do café, houve, certamente, uma valorização diretor da Faculdade
análise de todo o contexto histórico, os fatos maior desses trabalhadores porque o tráfico externo
de Filosofia da U FR N
que levaram a sociedade a aceitar de imediato já fora extinto, valorizou significativamente os escra­
a ação abolicionista e até mesmo o posiciona­ vos das regiões norte e nordeste".
mento adotado por donos de escravos da região.
Segundo ele, em Mossoró, o mito da abolição da
Dessa forma, o deslocamento dos escravos para
os cafezais da região sudeste, entre outras condições, Mossoró após a
escravidão foi sendo construído, entre outras condi­ levou recentes escravistas das regiões Norte e Nor­
ções, pelas ações do poder público que historicamen­
te investe na renovação dos festejos populares, os
deste a assumirem posições em defesa da abolição.
"Esta foi a realidade imposta pelas mudanças nas re­ escravidão
quais influenciam a mente do mossoroense e afetam lações de trabalho que foram adotadas nas regiões
os sentimentos. "O convívio no espaço urbano, in­ onde a produção não mais convive com os conflitos Nas duas últimas décadas do século XIX, a abolição da escravidão em Mos­
cluindo a paisagem da cidade, suas mas, prédios, bair­ do trabalho compulsório. A elite dominante que, há soró não trouxe nenhuma mudança marcante. De acordo com professor Ema­
ros, logradouros públicos foram sendo modificados bem pouco tempo, convivia com a escravidão, agora, nuel, é fato incontestável que até as primeiras décadas do século XX não havia
para dar materialidade ao mito do 'pioneirismo nesta realidade, não dependendo mais da mão-de- comemorações deste fato na data do seu aniversário.
mossoroense'", observou. obra escrava, assume um 'discurso literário' nos mol­ "A revitalização veio com a institucionalização do feriado municipal em 30
Dessa forma, disse, concomitante a esta iniciati­ des liberais que a época lhe propicia. Assim ocorreu de setembro de 1913. Contudo, foi a partir da década de cinqüenta, marcada-
va do poder público municipal, veio também a reno­ em Mossoró em 1883", explicou.
mente em 1953, quando Vingt Rosado, então prefeito da cidade, implementou
vação dos festejos comemorativos ao 30 de setembro Segundo Emanuel, a condição de escravos domés­ ações com o intuito de perpetuar na memória social este fato histórico", disse.
de 1883. "Foi assim que estas ações encetadas para a ticos determinava relações entre senhor e escravo dife­
Dessa forma, explicou, as ações continuadas por Dix-Huit Rosado, dois man­
integração da força social para a estruturação do sig­ rentes daquelas condições dos escravos do litoral que datos na prefeitura de Mossoró durante a década de 1990, e pelos seguidores
nificado mítico me despertou para a pesquisa a res­ trabalhavam na produção do açúcar, sendo que os es­
peito desse fato histórico, dos mais valorizados para desta forma de manutenção e renovação das tradições, atualmente marcam a
cravos urbanos, após serem libertos, permaneciam sob
os mossoroenses", explicou. paisagem urbana da cidade de Mossoró com o nome de ruas, prédios públicos,
a tutela do senhor. "A liberdade nesta realidade trouxe
conjuntos residenciais, construção de monumentos, dentre outros.
mais 'status' para o senhor do que para os affos descen­
"Mas o investimento de maior repercussão social é, sem dúvida os festejos
D IA S C O N T A D O S dentes que continuaram sendo discriminados em uma
Na opinião de Emanuel Braz, um dos marcos deter­ do 30 de setembro, que tem cada ano reativado no 'imaginário social'
sociedade em que a condição de ser e estar era deter­
minantes para a decadência da escravidão no Brasil foi este fato histórico ocorrido há mais de cem anos, e que é apropriado
minada pela aparência e a cor da pele, indicando assim
a decretação da Lei Eusébio de Queiroz (1850), a qual pela elite política no que ele pode significar de fantástico e impres­
sua condição social".
sionante como formas de dominação", concluiu.
, o »v . i >. a w . •; > c j. . * *

DNPEDUCACAO Naial, agosto/setembro de 2006

NA LIBERTAÇÃO DOS ESCRAVOS,


ESTATÍSTICAS

Cidade de MOSSORÓ TINHA CERCA DE 153 NEGROS

poucos
escravos
e o Rio Grande do Norte não devastada por uma aterrorizante

S chegou a ser um Estado que


dependesse da mão-de-obra
escrava para o seu desenvolvimen­
seca que se estendeu até 1879. A
população faminta abandonava
seus lares em busca do litoral. Mos­
to, imagine Mossoró, que nem en­ soró, Macau e Areia Branca, no Rio
genhos possuía, e apenas cuidava Grande do Norte, Aracaü e Forta­
do gado, atividade que não neces­ leza, no Ceará, abrigaram grupos
sitava de muitos braços. Estima-se numerosos de flagelados. Mas não
que a cidade tinha na época que li­ eram só os pobres que sofriam com
bertou seus escravos cerca de 153 a seca.
negros para uma população de Os ricos fazendeiros, donos de
2.493 pessoas. escravos também sofriam. E para Negra escrava
Entretanto, segundo o historia­ amenizar os prejuízos, esses fazen­ carregando água numa
dor Raimundo Nonato, esse nú­ deiros mandavam para as cidades moringa, num a
mero era ainda menor, em tomo de litorâneas seus escravos para serem das inúmeras
58 escravos. Na opinião do jorna­ vendidos, e Mossoró por ser uma atividades domésticas.
lista Rubens Coelho, o número de das cidades onde o comércio mais
escravos é irrelevante, "pois, a florescia, recebia muitos escravos N a foto abaixo, o
quantidade que fosse, a escravidão para esse fim. estandarte da Libertadora
era uma terrível crueldade huma­ Desse modo era estabelecido na Mossoroense,
na, tanto fazia para um só, como cidade o comércio dos escravos.Vá­ confeccionado com
para um milhão", disse. rias casas comerciais se especiali­ franjas e letras douradas
No dia Iode setembro de 1848, zaram nesse tipo de mercadoria, pela Sinhá Galvão, esposa
Casimiro José de Morais Sarmen­ entre elas a "Mossoró & Cia", de de Romualdo Galvão,
to, deputado geral pelo Rio Gran­ propriedade do Barão de Ibiapaba. presidente da Intendência
de do Norte, falava durante sessão Os escravos comprados em Mosso­ no período abolicionista
daquele dia: ró eram remetidos para Fortaleza e,
dali, para as províncias do sul. Tal­
"Concorda em que o trabalho do vez tenha sido esse tipo de comér­
escravo não é necessário. No Rio cio que tenha despertado o senti­
Grande do Norte há poucos mento de piedade pelos cativos.
escravos, e quase toda a Mossoró a única cidade do Bra­
agricultura é feita por braços sil a festejar anualmente a data da
livres. Conhece muitos senhores de libertação dos seus escravos, de
engenho que não têm senão acordo com Rubens Coelho. Após
quatro ou cinco escravos, a promulgação da Lei n° 30, de 13
entretanto que têm 20,25 e 40 de setembro de 1913, o dia 30 de se­
trabalhadores livres, e se não os tembro foi declarado feriado mu­
têm em m aior número, é pelo nicipal, ainda hoje comemorado Os grupos de negros se
pequeno salário que lhes pagão. com muito entusiasmo pela cida­ ' V'
Disto se convenceu o orador de de Mossoró. reconhecem às vezes,
quando a lifo i presidente, porque "O 30 de Setembro é a data
em consequência de elevar o magna da cidade com festas, feria­ como os descendentes
salário a 400 reis por dia, nunca do e tudo mais, fazendo lembrar o
lhe faltarão operários livres para feito histórico para as gerações que dos africanos, nem
trabalharem na estrada que teve se sucedem não o esquecerem.
de fazer". Desconhecemos outro lugar que sem pre como os dos
faça o mesmo, embora saibamos
Mas, se o número de cativos era que os negros ainda têm muito o escravos”
tão baixo, o que justificou o movi­ que conquistar, mas a abolição dos
mento abolicionista em Mossoró? escravos foi o ponto inicial e mais da
O ano de 1877 foi terrível para importante para sua completa
h k é ín ii Missitsfisf
os sertões nordestinos. A terra era emancipação".
Na k l , agosto /setembro de 2006 DN<DEDUCAÇAO
a fin id a d e O PRÍNCIPE DOS POETAS ERA TAMBÉM ABO LICIO N ISTA POR INFLUÊN CIA DE CASTRO ALVES

Segunde WandeHey
Poeta dos Escravos no RN
Arquivo/DN
onsiderado o maior poeta do Rio Gran­

C de do Norte de sua época, Manoel Se­


gundo Wanderley, por inspiração de Cas­
tro Alves, abraçou o "condoreirismo", na ter­
ceira geração do romantismo brasileiro, assu­
mindo a postura de único poeta norte-rio-
grandense a ter participação ativa no movi­
mento abolicionista.
Apesar do seu talento, Segundo Wander­
ley foi duramente criticado, sobretudo por
causa da forte influência que recebeu do poeta
baiano Castro Alves. Estudioso da obra de Se­
gundo Wanderley o historiador Cláudio Gal-
vão disse que "muito se comentou no princí­
pio do século, sobre a influência de Castro
Alves na poesia de Segundo Wanderley como
se consistisse em demérito ao discípulo, guar­
dar as marcas do mestre".
Foram nove anos na Bahia, recebendo in­
fluências de intelectuais, especialmente no
POESIA agitado ambiente da Faculdade de Medicina,
em meio aos movimentos estudantis. "Entu­
"Traz na fren te augusta, imensa, siasmado e vibrante de solidariedade huma­
na, fruto de uma rígida formação moral e re­
ligiosa, Segundo Wanderley já levava plasma­
Como dogm a, com o crença, dos em sua sensibilidade os elementos que o
fazia apto para receber e amplificar a mensa­
gem abolicionista que fermentava em todo o
Uma idéia - A bolição Brasil e, na Bahia tivera em Castro Alves, au­
dacioso vulcão".
Infelizmente para o Rio Grande do Norte,
Seu verbo - é m ais que espada Segundo Wanderley viveu o momento aboli­
cionista brasileiro em Salvador; e lá foram es­
critos e declamados os seus vibrantes poemas
Seu braço forte é a enxada sobre o tema. Se aqui estivesse, na opinião de
Cláudio Galvão, certamente teríamos tido a
sua entusiasmada participação nos nossos jor­ O historiador e escritor Cláudio Galvão é estudioso da obra do poeta potiguar, Segundo W anderley
Do túm ulo d a escravidão" nais abolicionistas, como o fez, ao voltar a
Natal, e uma vez apenas na "Gazeta de Natal", P E R F IL gando a dizer que "no gênero patriótico, as duas in­
n° 120, de 13 de maio de Segundo Wanderley nasceu em Natal, em 6 de dividualidades se completam admiravelmente".
1899, primeiro aniver­ abril de 1860. Filho de Dr. Luiz Lins Wanderley e D. Não foi apenas um grande poeta, mas seu
sário da Lei Áurea. Francisca Carolina LinsWanderley. Estudou em Natal maior destaque foi, sem dúvida, como poeta. Se­
Teria celebrado, cer­ e em Recife e, em 1880, partiu para Salvador, onde gundo Wanderley morreu em Natal, no dia 14 de
tamente, com o Boletim se formou em Medicina, no ano de 1886. Em 1889 janeiro de 1909.
da "Libertadora Norte- ele volta a Natal, já casado com a baiana Amália da
riograndense", que pu­ Mota Bittencourt e exercendo sucessivamente as
blicaria nove números de funções de lente de Filosofia, Francês, Física e Quí­ OPINIÃO
janeiro a dezembro de mica e História Natural no Atheneu Norte Riogran- *** "A poesia de Segundo W anderley está
1888 e, teria participado dense; inspetor da Saúde e do Porto, médico-ad­ impregnada da influência de Castro A lves, mas
da fundação e atividade junto e diretor do Hospital de Caridade, inspetor de
o poeta potiguar influiu também de maneira
da Sociedade Libertado­ higiene. Foi eleito deputado estadual em 1906.
decisiva sobre todos os poetas do seu tempo
ra Norteriograndense, Na Bahia estreou como poeta com o livro Estre­
no Rio Grande do N orte". Sobre as críticas
criadaelideradapelo seu las Cadentes (1883), ao qual se seguiram outros vo­
que Câmara Cascudo fez em Alm a Patrícia a
colega médico e profes­ lumes de poesia. O livro "Poesias", de Segundo Wan­
Segundo W anderley, com ênfase no seu
sor do Atheneu, Pedro derley, teve três edições, editadas em Fortaleza (1910
Velho de Albuquerque e 1928) e a última, pela tipografia Galhardo, em Natal, condorism o démodée, Cascudo refez esse

Maranhão e presidida no ano de 1915. Aprimeira edição traz um estudo de juízo em obras p o steriores". (Manuel

por padre João Maria Ca­ Gotardo Neto que analisa os dois poetas, o baiano Rodrigues de M elo)*
valcanti de Brito. Castro Alves e o potiguar Segundo Wanderley, che­
DNOEDUCAÇÃO Natal, agosto/setembro de 2 0 0 6

estudo dos afros descendentes, antes consi­


ATRAVÉS DAANALISE DE GERAÇÕES DE ESCRAVOS, PROFESSORA CONTESTAANTIGASTESES
O derados pela historiografia como "sem impor­
tância" na vida social, vem ganhando força
em todo o mundo. No Brasil, esse resgate vem sendo
alvo de diversos pesquisadores, entre historiadores,
antropólogos, cientistas sociais, e outros. Uma recen­
te e importante pesquisa é a análise sobre descenden­
tes de escravos realizada pela professora Maria Go-
retti Medeiros Filgueira, especialista em Antropolo­
gia e História do Brasil, cujos trabalhos de conclusão
se concentraram na escravidão.
Da segunda especialização, concluída em 2005,
na Faculdade Integrada de Patos/PB, resultou no tra­
balho "Recortes deVidas: Um estudo sobre uma fa­
mília escrava no semi-árido norte-rio-grandense",
que teve como orientador Dr. Raimundo Nonato Araú­
jo da Rocha, da UFRN. Nele, Goretti fez uma análise
de uma família escrava no semi-árido do Rio Gran­
de do Norte e conseguiu mapear seis gerações de des­
cendentes que deram a ela elementos suficientes para
reforçar e contestar teses defendidas por historiado­
res e estudiosos da área.
Para conhecer os reflexos deixados pelos escra­

Gerações
vos no semi-árido potiguar, a professora teve como
fio condutor a investigação do depoimento de Dona
Cacilda Neves de Oliveira, que se diz neta de Milita-
na, uma das escravas de Antônia Rufina Praxedes e
Lúcio Manoel Fernandes, proprietários em 1885 da
Fazenda Sabemuito, localizada no município de Ca-
raúbas. "Junto ao depoimento de Dona Cacilda, ana­
lisei o inventário de Dona Antônia, bem como ou­
tros documentos cartoriais e paroquiais, além de en­

de
trevistas e fotografias", disse.
Dessa forma, em busca de elementos junto aos
descendentes de Dona Militana e de sua família,
Goretti procurou saber alguns indicadores socioe-
conômicos ao longo das seis gerações. Com base
nesse mapeamento, a professora conseguiu ana­
lisar a inserção das gerações dos descendentes da
escrava liberta Luíza, estabelecendo uma relação
entre a ascendência genealógica e a forma de dis­
persão dessa família, sobretudo a escolaridade e
a profissão dos descendentes.

A escrava Luíza
Escravos Dona Cacilda Neves é neta de escrava

Luíza era mãe de Militana e de mais cinco filhos, Raimundo,


Olímpia, Baldina, Rufina, João e Luís. De acordo com a pesquisado­
ra, a única informação conseguida sobre a condição de escrava foi
por ocasião do batismo da filha Rufina, nascida em 18 de outubro
de 1864 e batizada na fazenda Sabemuito. "O que é mais provável é
que Luíza, por ter dado sete crianças para a família do seu dono, tenha
sido alforriada", disse Goretti.
Na opinião da professora, a importância desta pesquisa está
ancorada em alguns fatores que se interligam. "Ao tratar-se pos­
sivelmente da primeira pesquisa de longa duração sobre afro-
brasileiros em nosso Estado, na qual demonstra uma estreita
relação da baixa escolaridade e profissão e seus reflexos na qua­
lidade de vida, pode servir de alerta a todos os segmentos po­
líticos e socioeducacionais que integram as instituições em
nossa sociedade, uma vez que essa realidade é mais acentuada
que à região Sudeste, por exemplo", disse.
Outro ponto destacado por Goretti é que a descoberta do elo da
ascendência escrava por essa família, além de aproximar parentes
pesquisa

há tempos distanciados, aumentou o interesse de conhecimento


entre si. "Noutras palavras, foi aflorado o sentimento familiar. Igual­
mente importante é que o elo dessa família com ascendência da es­
crava Luíza, agora historicizada, possa servir de documento com-
probatório de inclusão social, assim haja reinvidicação".
Natal, agOsto/ setembro de 2006

Herança
A pesquisa da professora, feita através do mapea­
mento das gerações dos descendentes da escrava Luíza,
revelou dados interessantes com transformações políti­
cas, econômicas, sociais e culturais. Um dos principais
dados está relacionado à educação. Em um universo de
quase 300 pessoas entrevistadas, apenas quatro conse­
guiram chegar ao nível superior.
Isso revela que o percentual afro descendente do RN
está abaixo do percentual brasileiro, que está entre 2% e
2,5%. "O melhor rendimento escolar, em termos quantita­
tivo e qualitativo, foi observado na quarta geração, quando
houve o ingresso em todos os níveis de ensino", observou.
De acordo com a pesquisadora, o entrelaça­
mento desses indicadores socioeconômicos levou
à constatação de que as condições dessa família
afro-brasileira vivendo no semi-árido norte-rio- A pesquisa trabalhou com a
grandense se insere nas condições de pobreza
em que se encontra a maioria da população, nor­ genealogia, indicadores e
malmente agravada entre os afros descendentes.
Por outro lado, essa realidade se refletiu dire­ distribuição da fam ília
tamente nas profissões exercidas. O quadro so-
cioeducacional das seis gerações dos descenden­ mapeada nos m unicípios de
tes da liberta Luíza mostra que a situação é mais
crítica entre os homens, que além de não conse­ Caraúbas, Severiano Melo, Itaú
guirem bom desempenho escolar, a maioria con­
tinuou trabalhando na agricultura. No caso das e Mossoró”
mulheres, a maioria tornou-se dona-de-casa ou
doméstica, preservando traços de submissão pa­
triarcal. "Chegamos à conclusão de que os nos­
sos descendentes de escravos ainda não conse­
guiram conquistar o seu espaço na sociedade",
concluiu a professora.

Descobertas
O interesse de Maria Goretti sobre essa temática surgiu com a
constatação de que ainda existiam inventários que citavam os escra­
vos no Rio Grande do Norte. "O fato me surpreendeu, pois a versão
de Câmara Cascudo, dentre outros historiadores, era de que Rui Bar­
bosa teria mandado queimar tais documentos após a Abolição. Pes­
quisando melhor aquele historiador, deparei-me com sua Tese Patriar-
calista para as relações escravistas do Sertão, comum entre todos os
pesquisadores das áreas Sociais", disse.

Investigando os Inventários do Século XIX, a professora observou


que tais documentos mostravam algumas características semelhanças
do ser escravo da pecuária com o escravismo geral ocorrido em várias
partes do Brasil. "Nós registramos relatos de muitas fugas de escravos e
violências praticadas pelos senhores, o que descaracteriza muito a idéia
defendida por Cascudo de que a maioria dos escravos eram tratados como
membros da família", justificou a professora.

Ela também reconheceu aspectos de teses defendidas por histo­


riadores de que o número de escravos no RN era bastante pequeno
se comparado aos do Sul do País. "A principal razão era a atividade
pecuarista. Lá no Sul, a principal atividade era a cana-de-açúcar, que
requer mais mão-de-obra que as criações de gado do Nordeste”.

Outra constatação que reforça teses já defendidas é que a maio­


ria dos escravos do Rio Grande do Norte não vinha da África, mas de
Pernambuco, devido ao poder aquisitivo dos comerciantes e fazen­
deiros do Estado. A pesquisa da professora trabalhou, principalmen­
te, com a genealogia, indicadores e distribuição da família mapeada
nos municípios de Caraúbas, Severiano Melo, Itaú e Mossoró.
Næ k l , agosto/setbmbro de 2 0 0 6

JORNALISTA ESTUDA CARICATURAS


PRECURSOR

DO ABOLICIONISTA ANGELO AGOSTINI

A representação
do negro pela
imprensa do
século X IX O Italiano e artista gráfico Angelo Agostini
foi um dos principais críticos do escravismo

\ intensificação do abolicionismo no Isso porque, antes da década de Brasileira contiaaEscravidão, tinha como 1883, a Confederação Abolicionista Em
LX Brasil, nadécada de 1880, não podia 1880, os militantes antiescravistas não preocupação primordial a "péssimaima- São Paulo, ojornal "Redenção", criado em
JL Aser omitida pela imprensa, que tinham acesso fácil aos jornais de gem" doBrasüno exterior devido aescra- 1887, por Antônio Bento, mobilizou os
transmitia notícias e assuntos que refle­ prestígio, pois estes adotavam uma vidão. Já a "RevistaIlustrada", do imigran­ "caifazes", militantes que empreendiam
tiam, de uma fornia ou de outra, os inte­ posição cautelosa devido à depen­ te italiano Angelo Agostini, criticava de ações radicais como fugas e sublevações
resses dos leitores. Assim, nada mais na­ dência dos anunciantes, muitos umafoima satíricaatravésde chargesotia- de escravos.
tural de que, no período, o escravo ocupas­ deles senhores de escravos, apesar balho escravo e seus defensores. Estes jornais publicavam tudo o
se os vários espaços dos jornais. da crise do escravismo e a amplia­ Outros veículos que também ti­ quepudesse contribuirpara o avanço das
No início, as adversidades para o de­ ção dos grupos sociais urbanos con­ veram um papel destacado na campa­ idéias contrárias ao escravismo: resumos
senvolvimento de publicações abolicio- trários ao cativeiro, nem todos os nha abolicionista na capital do Império de conferências, datas e locais de eventos
nistaseramimensas.Entretanto,jánapri- jornais aderiram à campanha abo­ na época foram os jornais de José do destinados à obtenção de fundos para a
meira metade do século XIX, no Rio de licionista. Patrocínio, a "Gazeta da Tarde", durante campanha, alforrias e violências cometi­
Janeiro, circularam diversos pasquins cri­ A "Gazeta de Notícias", de Ferreira de todaadécadade 1880, eo "CidadedoRio, das contra os escravos. Tiveramum papel
ticando a escravidão, embora tivessem Araújo, fundada em 1876, foi o pioneiro, a partir do final de 1887. Na redação da fundamental na extinção legal da escra­
um alcance fimitadoeumatiragempeque­ na cidade do Rio de Janeiro. "O Abolicio­ "Gazeta da Tarde", na Rua Uruguaiana, vidão no Brasil, na medida em que veicu­
na alcançando 400 ou 500 exemplares. nista", criado, em 1880, pela Sociedade no centro da cidade, organizou-se, em lavam a campanha abolicionista
Naeu, agosto/setembro de 2 0 0 6 DNOEDOCAÇÃO
Q UEM É
Gilberto Maringoni é jornalista, histo­
riador e artista gráfico. Formado em ar­
quitetura pela FAUUSP. Colaborou para
revistas COIRO Atenção!; Carta Capital; Veja;
Istoé; Visão e Afinai, e parajornais como
O Estado de São Paulo; Folha de São Pauio;
Jornal da Tarde; Jornal do Brasil; Zero Hora,
de Porto Alegre; Hoje em dia, de Belo Ho­
rizonte e Jornal do Comércio, de Recife.
Publicou por mais de dez anos, em quin­
ze jornais, a tira em quadrinhos Romeu.
0 abolicionismo ilustrado perdício não me aprofundar no assunto. Além Tem trabalhos publicados nas revistas Flui-
A ilustração começou no Brasil em uma data do mais, ele viveu numa das épocas de maio­ de Glacial (França), Seleções BD (Portugal)
precisa: no Jornal do Comércio de 14 de dezem­ res transformações da história do Brasil, que e no jornal Punto Final (Chile). É autor
bro de 1837, chamada de Caricatura (uma espé­ deixava para trás os restos da economia co­ dos livros "O dia em que o sol não nas­
cie de folheto litografado), de autoria de um ar­ lonial, baseada no escravismo, recebeu um ceu" (Editora Salamandra); "Deus e o
tista consagrado na época: Manoel de Araújo montante considerável de capitais externos Diabo na terra da mídia" (Circo Editorial);
Porto Alegre, que estudou em Paris nesse ano, e e construía as bases de uma sociedade de clas­ "Os filhos da Dinda" (Scritta Editorial);
trouxe a novidade. ses profundamente desigual e injusta, mas "Como não enlouquecer no trânsito" (Edi­
Apartir daí a influência francesa em nossa ilus­ moderna", explicou. tora 34); "A imagem e o gesto - fotobiogra-
tração foi marcante, até que em 1859 desembarca Na sua pesquisa, o jornalista aponta, fun­ fia de Carlos Marighella" (Editora Funda­
no Brasil um piemontês, nascido em Farcelle, damentalmente, duas coisas. A primeira é que ção Perseu Abramo), e "AVenezuela que
Itália, a 8 de abril de 1843, neto materno de uma Agostini, embora seja um dos mais destacados se inventa: poder, petróleo e intriga nos
senhora parisiense que passara a infância e a ativistas pelo abolicionismo, acompanhou o pro­ tempos de Chávez" (Editora Fundação
adolescência em Paris, onde estudou pintura. jeto que a minoria branca tinha para o país: uma Perseu Abramo). Atualmente colabora com
Esse jovem artista era Angelo Agostini, que sociedade baseada no liberalismo, no trabalho a Agência Carta Maior, a revista Repúbli­
já em 1864 estreava no pasquim Diabo Coxo, o assalariado, que relegou os negros à própria ca e a editora Boitempo.
primeiro periódico ilustrado editado em São sorte. "Secundariamente, mostro a passagem
Paulo, começando a desenvolver um estilo muito de um tempo em que a imprensa era uma ati­
pessoal, diferente da característica francesa, cu­ vidade artesanal, de poucas pessoas, para um
nhando um traço que depois seria chamado de empreendimento capitalista de grande porte, a
f brasileiro, que criaria uma escola desenvolvida exigir pesados investimentos em maquinário,
até o final do século XIX por outros artistas. pessoal e matérias-primas".
Todo o ambiente político propício foi bem apro­ O estudo levou o autor a observar que, embo­
veitado por Agostini, que se tornou um dos ra Agostini fosse um abolicionista, isso não im­
maiores críticos do reinado. plicava um compromisso maior com os negros ou
Republicano, anticlericale, principalmente, abo­ com as classes populares. "Era um homem da
licionista, Angelo Agostini é considerado por mui­ elite ilustrada, com seus parâmetros e visões de
A im portância de Agostini tos um legítimo brasileiro - embora nunca tenha se mundo. Era genial, mas eüüsta, como Joaquim
naturalizado, paia que não pensassem que, nos em­ Nabuco, Rui Barbosa e outros", enfatizou.
é decisiva na im plantação bates políticos, ele teria medo ou fraqueza. Afinal, Mesmo assim, Maringoni não diminui a im­
corria o risco permanente de deportação. portância do chargista para a história da impren­
de uma im prensa Mas, mesmo que ele se dissesse abolicionis­ sa no País. "Agostini atuou por 44 anos na im­
ta, não chegou a viver esses ideais, pois era um prensa. É uma das carreiras mais longas de nossa
ilustrada e de agitação no homem da elite, que não tinha um necessário história. Sua importância é decisiva na implan­
compromisso com os negros, como defendeu tação de uma imprensa ilustrada e de agitação em
país. Seus painéis sobre a Gilberto Maringoni, em sua tese de Doutorado nosso país. Além disso, seus painéis sobre a es­
concluída em julho deste ano, pela Universidade cravidão são o melhor retrato visual da barbárie
escravidão são o m elhor de São Paulo (USP). A pesquisa durou cinco anos, social dos anos 1880", disse.
mas o interesse por Agostini vem de longe. Come­ Na opinião do jornalista, Agostini deve ser
retrato visual da barbárie çou nos anos 1980, quando conheceu parte do tra­ apontado, na história das Histórias em Qua­
balho dele. Planejou uma biografia. Adiou o pro­ drinhos, como um dos principais precursores,
social dos anos 1880 jeto. Adaptou a idéia no doutorado. ao lado do suíço Rudolph Topffer e do ale­
Aos 47 anos, Maringoni despertou para o as­ mão Willheim Busch. "Ele fez aqui algo que
sunto ao adquirir em sebos grande parte das co­ não existia em parte alguma: um romance se­
leções dos jornais editados por Agostini. "Tinha riado totalmente ilustrado, com duração de 24 Jornalista e historiador G ilb erto Maringoni
o material na mão e achei que seria um des­ anos, recheado de interrupções".

S A IB A M AIS dizer: 'Bom, enquanto não me deportam, eu aproveito para tal do começo do século nas páginas da famosa revista O Malho.
Durante 46 anos, de 1864 a 1910, Angelo Agostini, além da sá­ dizer o que sinto e o que eu penso...'". Continuou desenhando nas páginas de O Malho até às véspe­
tira e crítica política, desenvolveu uma perspicaz e minuciosa ob­ No Vida Fluminense, até 1871, Agostini desenvolve sua obser­ ras de sua morte, num domingo, 23 de janeiro de 1910, cansado
servação do tipo humano brasileiro, especialmente o carioca. vação sobre o tipo popular, retratando o caixeiro em domingo, o pelos anos de trabalho e atingido pela morte de seu amigo de 50
Como outros artistas e propagandistas republicanos, criou um sím­ mascate, o chim do pesado, a mucama alcoviteira, a mulatinha cheia anos, Joaquim Nabuco, que falecera no dia 17, em Washington.
bolo do homem nacional: um índio soberbo, ao estilo de "O Gua­ de dengos e a sinhazinha. Também desenvolveu a fundo a metamor­ No sábado Agostini participou de uma reunião com os antigos
rani" , que sempre aparece nos seus desenhos, carregando os des­ fose de importantes figuras da corte em cmmais característicos. membros da Confederação Abolicionista para homenagear o
mandos do Império: impostos, parlamento, políticos, "afilhada- Agostini, além do traço, percorria os salões com óleos e aqua­ velho companheiro de lutas.
gem" ou observando inconformado as trapalhadas da corte. relas com paisagens do Brasil e da Europa, e também aproveita­ Alquebrado pelos anos e fustigado pelo violento verão, ele vol­
Em 1869, Agostini intensifica sua atividade abolicionista va a ocasião para ironizar outros artistas plásticos com caricatu­ tou para sua casa, triste e saudoso, falecendo no dia seguinte.
sendo interpretado por José do Patrocínio assim: "Quando o es­ ras de suas obras. Fazia isso regularmente desde 1872.0 adven­ Deixou uma obra memorável, num volume surpreendente em
cravismo pretendeu levantar a opinião, chamando-o estran­ to de abolição e da República não aquietou o lápis do desenhis­ quantidade e qualidade, criando um estilo único, pioneiro e pre­
geiro, audaz, hóspede ingrato, Angelo sorria-se e limitava-se a ta. Ele continuou satirizando os políticos e os costumes da capi- cursor da caricatura nacional.
DN© VESTIBULAR N ame , agosto/setembro de 2 0 0 6

ARTIGO BRASÍLIACARLOSFERREIRA»

C o ta s: igualdade de direitos e justiça social


sociedade brasileira está despertando para o en- gros e pardos ainda não seja consenso, a comunidade uni­

A frentamento das desigualdades sociais: a discussão


do Projeto de Lei 3627/04 que trata da implemen­
tação de cotas raciais e sociais passou dos gabinetes dos
gestores da educação, para os colegiados das universidades
versitária em todo o país, vem debatendo diversas formas
de promover sua inclusão.A pesquisa "Não deixando a cor
passar em branco: o processo de implementação de cotas
para estudantes negros na Universidade de Brasília", mos­
e movimentos sociais, irradiando-se pela sociedade. O PL trou que professores e alunos estão mais sensíveis à causa,
reserva 50% das vagas nas universidades federais para es­ desde que os debates possibilitaram a explicitação dos di­
tudantes que tenham cursado o ensino médio em escolas versos argumentos. As cotas são hoje, a principal bandeira
públicas. Dentro do percentual de 50%, terão preferência de luta dos movimentos negros.Tema de intensa discussão
alunos que se declararem negros ou índios, em uma pro­ nacional nos últimos meses, as cotas raciais são fundamen­
porção igual à população de negros, pardos e indígenas da tais para alterar a pirâmide econômica e social brasileira.
população brasileira.A reserva de vagas deverá ser aplica­ Sem as cotas esses contingentes levarão muito tempo para
da em cada curso e turno, dando preferência aos afrodes- alterar a perversa curva de participação no sistema públi­
cendentes e indígenas, de acordo com os dados do IBGE. co de educação superior e na sociedade brasileira, bem
O instrumento legal para definir a característica étnica é a como a igualdade de oportunidades e direitos.
autodeclaração presente no registro de nascimento e de­ O combate às desigualdades decorrentes do precon­
mais documentos civis. ceito terá um impacto im portante sobre o próprio pre­
Trata-se de uma política pública de inclusão social: uma conceito. A discussão que se espraia por todo o país já é
medida que visa reparar séculos de exclusão de que esses um bom início: independente dos resultados imediatos
grupos foram vítim as, oferecendo-lhes a chance de dimi­ trata-se do fato de que a sociedade brasileira iniciou a ca­
nuir a discrim inação que em nosso país impede a popu­ minhada em direção ao reconhecimento de sua própria
lação negra do acesso à escola e ao mercado de traba­ fisionomia. Está em curso a luta pela igualdade social, a par­
lho. O Dieese mostra que mesmo em localidades com gran­ tir da percepção da urgência em se combater as formas
de proporção de negros, como em Salvador, os trabalha­ de desigualdade para que tenhamos enfim um país demo­
dores negros recebem em média cerca de 51% do que crático, justo e plural que se envaideça de sua miscigena­
recebe um não-negro. É revelador o fato de que 64% dos ção, trate cada homem e cada m ulher da mesma manei­
pobres sejam negros. Eles têm menor escolaridade, salá­ ra e não lhes interdite o acesso a qualquer form a de rea-‘
rio e acesso à saúde, baixo índice de emprego e piores lização individual e coletiva.
condições de moradia. O s indicadores comuns à comu­ O debate sobre cotas invoca a sociedade a pensar em
nidade negra são muito inferiores aos índices relativos que modelo de país ela quer investir. Se a educação é o
aos não-negros. A ess.es indivíduos e grupos vem sendo ponto nevrálgico da nação - o que se deduz das falas de
negado o direito a te r direitos. políticos, gestores públicos, professores, pais e alunos - é
O PL aponta para estratégias de democratização do tência, a segunda oferece a oportunidade da sociedade bra­ preciso que o caminho da mudança seja pactuado social-
ensino superior. O s estudos indicam que apenas 12% dos sileira reparar injustiças, rever prejuízos, e repensar os sen­ m ente.Trata-se de abandonar o cômodo espaço da igual­
jovens entre 18 e 24 anos têm acesso à universidade e tidos de justiça e de democracia. É nessa perspectiva que dade form al, cara ao campo liberal e construir a igualda­
que, em nosso país, a ascensão econômica e social passa se colocam as políticas de ação afirmativas, como as cotas. de social de forma concreta: passando pela expurgação da
pelo ensino superior.Tais constatações levaram o governo Como diz Boaventura Santos, temos direito a reivindicar a praga do preconceito apesar das dificuldades próprias de
federal a instituir medidas emergenciais para aumentar as igualdade sempre que a diferença nos inferioriza e temos séculos de solidificação, para chegarmos ao reconheci­
possibilidades de ingresso de jovens negros e indígenas. A direito de reivindicar a diferença sempre que a igualdade mento e o respeito das diferenças raciais, expresso na
desigualdade de acesso ao ensino superior foi forjada na nos descaracterize. Essa formulação decorre do fato de igualdade de oportunidades em nossa sociedade: um mundo
perversa exclusão dos contingentes negros, indígenas e po­ que igualdade não é o contrário de diferença. Igualdade é sem cotas, com o fim das discrim inações.
bres. A eles foi ofertado o tortuoso caminho escolar que o contrário de desigualdade. Nossa expectativa é de que a implantação do Fundeb,
vai da ausência de creches à deterioração do ensino médio. A democracia é sempre passível de reinvenção.Articu- associada à expansão das vagas nas universidades públicas
O combate à sua exclusão educacional será feito através lar igualdade e diferença é um dos desafios do mundo con­ através de 10 novas instituições de ensino superior e à po­
de políticas de Estado, democraticamente instituídas como temporâneo e rebate na agenda da democracia: como pen­ lítica de cotas tragam um novo cenário para a educação bra­
direitos, de modo a assegurar a esses segmentos as condi­ sar uma democracia sem igualdade social e como pensar sileira, com a presença e expressão de nossa(s) identida­
ções de acesso e de permanência no ensino superior. em igualdade sem a aceitação das diferenças? É neste con­ de^). Por seu lado, a Universidade ganhará estatuto de uma
A sociedade brasileira tem sido historicam ente mar­ texto que se colocam as críticas às políticas de ação afir­ entidade verdadeiramente republicana, onde num espaço pú­
cada pela exclusão social e a dominação política. A orga­ mativa: é difícil fazer os grupos socialmente melhor posi­ blico e plural produza-se conhecimentos e cruzem-se sa­
nização desigual e hierárquica das relações sociais é o te r­ cionados compreenderem que a cidadania deve ser cons­ beres e experiências, num clima de diálogo e de respeito
reno fé rtil para a produção e reprodução do autoritaris­ truída a partir do reconhecimento das diferenças, aceitan­ às diferenças. É de se pensar na riqueza contida numa ava­
mo social, em que diferenças de classe, raça e gênero de­ do que aparentes privilégios sejam destinados aos que liação enfocando os efeitos da diversidade social e cultural
finem os lugares sociais. Nesse contexto, temos de pen­ foram sempre desprivilegiados. no espaço universitário, apontando a fertilidade das trocas,
sar formas de operar a passagem da luta contra o racis­ As cotas entraram na agenda do debate público, eviden­ a multiplicidade de pontos de vista e seus efeitos positivos
mo para a luta pela igualdade social. O racism o, o precon­ ciando as concepções vigentes na sociedade brasileira sobre não apenas na ambiente escolar, mas na própria sociedade.
ceito e a discrim inação racial são fatores da degradação o direito à educação e a função do ensino superior. Deba­
moral e espiritual de uma sociedade. te oportuno tanto pelo que expressa, quanto pelo que si­
A luta contra o racismo é diferente da luta pela pro­ lencia, ambos reveladores dos valores compartilhados pela * Brasília Carlos Ferreira é Professora do Depto. de Ciên­
moção da igualdade racial.A prim eira é uma luta de resis­ sociedade. Embora a reserva de vagas para estudantes ne­ cias Sociais da UFRN .

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