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Expediente

Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva

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Beto Ferreira Martins Vasconcelos

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Beto Ferreira Martins Vasconcelos

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, ago./set. 2007


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Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, ago./set. 2007


www.presidencia.gov.br/revistajuridica
Artigos

A evolução doutrinária do contrato

Gisele Leite

Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, Doutora em Direito,


Professora de FGV, EMERJ, Conselheiro-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas
Jurídicas, Articulista dos sites www.jusvi.com/, www.lex.com.br, www.mundojuridico.com.br,
www.estudando.com, www.netlegis.com.br e www.uj.com.br
professoragiseleleite@yahoo.com.br .

Resumo: Traça a evolução do contrato desde direito romano, direito medieval, Código Civil
Napoleônico até o Código Civil Brasileiro de 2002. Os princípios aplicáveis ao direito
contratual e, a transformação em instrumento mais justo e democrático de circulação de
riquezas.

Palavras-chave: direito civil brasileiro; contrato; pacto; princípios jurídicos; direito


comparado

Sumário: 1 Introdução - 2 Desenvolvimento - 3 Conclusão - Referências

1 Introdução

Na verdade os contratos verteram-se em pactos, ou seja, perderam o formalismo ritualístico


romano que era fonte da obligatio, vínculo pessoal que subordinava a própria personalidade
do devedor recaindo sobre o corpo deste. Para se tornarem pactos do qual decorria o débito
que só operava efeitos de ordem patrimonial.

E, esse primeiro passo podemos perceber com a Lex Poetelia Papiria que deixa o devedor
livre (pois não mais seria escravizado ao seu credor quando se tornasse inadimplente) para
incidir sobre o patrimônio do devedor.

Perozzi e Bonfante como romanistas esclarecem que o contrato primitivo que se


materializava pelo nexum que originalmente constituía-se pelas palavras solenes1 (contratos
verbais) passa para a forma escrita e pela entrega da coisa (respectivamente contratos
literais e reais) e, por fim, pelo consenso (contratos consensuais).

Com a influência germânica e do cristianismo ressalta-se a importância da palavra dada, do


juramento feito libertando o contrato de seu formalismo primitivo. Assim o contrato deixa de
ser ritual e formal para ser livre e informal.

1
O pacto romano para se transformar em contrato dependia no direito antigo de formalidades que poderiam ser
de três espécies:
a. per aes et libram , pelo bronze e pela balança, a mais antiga solenidade conhecida e da qual deriva o nexum.
Tal figura muito similar com a mancipatio e coloca o devedor em situação das mais penosas, posto conforme
teoria predominante, o vendedor dá-se em venda (auto-mancipação) ou em penhor (auto-empenhamento) ao
credor para garantir o cumprimento de uma obrigação, que pode abranger não só o nexum, devedor, mas
também sua família;
b. actum verbis, ou seja, através das palavras solenes proferidas entre credor e devedor se caracterizava a
convenção, como na stipulatio.
c. actum litteris, vale dizer pela forma escrita ou literal. O credor faz uma inscrição num registro privado e, dessa
maneira, igualmente, concretiza-se a convenção.

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Sob a influência dos bárbaros temos o Edito do Rotário e a legislação de Liutprand
(lombardos) que nas palavras dos glosadores e pós-glosadores já aponta a idéia de que,
atendendo-se a boa fé, o contrato é obrigatório entre as partes e vige como lei fosse.

Máxima não só da pacta sunt servanda que foi difundida por Beaumanoir e imortalizada por
Pothier a quem se atribuiu a crença dominante naquela época de que a convenção é lei
entre as partes.

O mundo evoluiu parra o individualismo e para o mercantilismo que consagrou a divinização


do contrato. E nessa época o pragmatismo chegou a considerar o direito comercial como
fator de união dos povos, como espécie de direito natural.

O auge do contrato foi avivado pelo jusnaturalismo e, para os enciclopedistas do século XVII
a premissa primeira e fundamental de todos os poderes era liberdade humana. O contrato
social de Rousseau fornece a característica mentalidade da época para qual a sociedade
derivava de um contrato onde os indivíduos abdicavam de certos direitos naturais em troca
de encontrar maior segurança na vida organizada da sociedade onde outros direitos (de
deveres) lhes eram reconhecidos.

Na idéia do “contrato social” a influência do protestantismo, do liberalismo e dos fisiocratas


foi capaz de endossar o lucro, os juros, a ambição com apoio da analogia das ciências
naturais passando encarar o contrato como fase evolutiva necessária a todos seres
humanos.

Entre os juristas a concepção de liberdade era aquela que refletia, sobretudo a liberdade
econômica, política, comercial, de produção era a liberdade conceito oposto e reagente aos
privilégios reais e nobilásticos e à fechada economia medieval encastelada nas corporações.

Foi o movimento consolidado pelos robustes practiciens (profissionais competentes) de


índole corporativa que segundo Ripert fez com que finalmente se elaborasse o Código
Napoleônico que representa monumento da classe burguesa intoxicado de alto liberalismo e
individualismo.

Nessa época tudo era contrato, o casamento, a adoção, a cidadania. O contrato em vez da
tradição ou da transcrição tinha amplíssimos poderes que podia até meso transferir
propriedade, ao contrário do que acontecia no direito romano e do que hoje temos no direito
brasileiro que permanece fiel ao seu legado romano-germânico.

O espírito individualista liberal e eminentemente contratualista do Código Napoleônico (1804)


se manteve em diversas legislações que o seguiram e o imitaram. Faz parte da história do
pensamento jurídico francês o romantismo individualista endossado por doutrinadores como
Demolombe, Laurent, Huc, Aubry et Rau e Baudry-Lacantiere.

O século XIX foi crucial pois trouxe relevante alteração na vida econômica-financeira e
política, o que veio modificar o sentido de liberdade. Surgiu a decantada crise do direito
privado que tanto abalou tradicionais institutos como propriedade, contrato, responsabilidade
civil e até o comércio.

Na Alemanha tramavam os pandectistas2 (Windscheid e Dernburg) a renovação do direito


romano já arando devidamente e previamente o terreno para o BGB (Código Civil alemão),

2
Ora, o ideal dos pandectistas era resolver o direito dentro do direito, ou seja, dar ao direito respostas surgidas
sob o ângulo da juridicidade. Uma das coisas que esse código reconhece é que o direito não basta a si mesmo,
pois ele precisa, para atender as necessidades sociais, ter em conta os valores da ética. Rege-o um valor de
eticidade fundamental, conforme se pode ver em alguns dos dispositivos que vou citar, que reputo como
mandamentos-chave da nova codificação.

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para frutificar as idéias sociais difundidas em toda Europa que sofria as intempéries de
novas necessidades.

A filosofia racionalista (a exceção a de Descartes e o individualismo de Rousseau) foi


superada. E uma nova ordem se avulta pois é o social e, não apenas o individual que
comanda a cena do fim do século XIX.

Os juristas que em 1904 comemoravam o primeiro centenário do Código Napoleônico


reconheceram a necessidade de uma revisão de uma releitura completa dos conceitos
encerrados e entabulados pelo código civil francês.

Desta forma, os mestres do direito público como Duguit e do direito privado como Josserrand
e Saleilles exigem uma renovação do direito que teve uma dicção poética e não menos
verídica de ser a “revolução dos fatos contra o direito” assim cogitada por Gaston Morin e os
novos aspectos da socialização do direito que, após meio século, seriam objeto de tantos
estudos de Georges Ripert, Pierre de Harven, Savatier entre outros e, até hoje continuam
concentrando esforços para os juristas que se destacam e se dedicam ao direito privado nos
meados do século XX.

Na verdade essa evolução revelada em forma de crise, redimensionou vários institutos-


chave do direito privado, até mesmo alcançando o tradicional direito de família e das
sucessões e vem merecendo vários preciosos estudos como os de Arnoldo Medeiros da
Fonseca, Arnoldo Wald, San Tiago Dantas e Afonso Arinos.

Tantas foram as modificações sofridas pelo contrato que alguns autores vaticinaram que era
seu fim, e que o conceito original de contrato entre nós talhado pelo Código civil de 1916 não
mais existia.

A regulamentação e simplificação do contrato fizeram com que se transformasse em


contrato de adesão, contrato dirigido, contrato evolutivo e contemporâneo. (vide no link:
http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/16891 ).

A própria doutrina veio obrar distinção entre a liberdade de contratar e a liberdade contratual
o que podemos verificar positivada nos termos do art. 421 do CC Brasileiro de 2002.

A liberdade de contratar3 é a liberdade de firmar ou não um contrato, enquanto que a


liberdade contratual é a referente a fixar as normas, cláusulas reguladoras do contrato.

Por influência dos pandectistas, o código estabelece uma sinonímia entre o jurídico e o lícito. Lícito é o que é
jurídico, jurídico é o que é lícito. Essa sinonímia foi estraçalhada, digamos assim, pelo maior jurista de nosso
século, Hans Kelsen, o qual mostrou que era necessário ampliar o conceito de norma jurídica. Norma jurídica não
é a norma sobre o lícito. Kelsen dizia, com ironia: se o lícito fosse sinônimo do jurídico, não haveria lugar para o
direito penal. O ilícito também faz parte do direito, tanto assim que é considerado pelos juízes e pelos advogados,
culminando numa decisão, numa sentença, numa sanção. Miguel Reale
(...) in
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=133&breadcrumb=1&Artigo_ID=18
82&IDCategoria=1946&reftype=1
3
Consta, aliás, certa imprecisão terminológica no art. 421 do CC de 2002. A liberdade de contratar é ilimitada e
eis que se refere ao direito subjetivo de celebrar contrato, e é inerente a todo ser humano, por força de ditames
constitucionais. O que é contingenciada é a liberdade contratual que, em face de normas de ordem pública, será
maior ou menor.
Tal liberdade está condicionada à lei e por isto determinado contrato poderá ser considerado nulo e, não
produzirá efeitos desejados pelas partes. Então a função social atinge a liberdade contratual, diz respeito ao
objeto e conteúdo do contrato, mas não a inalienável liberdade de contratar.
Conclui-se que muitas vezes não havia mais liberdade contratual e mesmo a liberdade de contratar sofria
importantes limitações. Chega-se então a era quando se conclui que não existem direitos subjetivos absolutos e
ilimitados.

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O número crescente de normas de ordem pública consagrando a efetiva intervenção
econômica do Estado tem sido generalizada, fato que identificamos desde a Constituição de
Weimar e, que encontrou abrigo constitucional inclusive no Brasil através das Cartas de
1934, 1937, 1945, 1967 e 1969 e, finalmente, na redentora Constituição Federal Brasileira
de 1988 que se refere explicitamente à ordem econômica e social.

Importante ressaltar que o princípio da dignidade da pessoa humana é erigido como um dos
fundamentos da República federativa do Brasil que se constitui como Estado Democrático de
Direito (art. 1º, III da CF de 1988).

Cogitam alguns doutrinadores como Georges Ripert em declínio do direito, respondendo-


lhes com razão nossos notáveis juristas tupiniquins afirmando que não se trata de
decadência, mas de adaptação às novas necessidades. São novos paradigmas que surgem
tanto no direito privado como também no direito público e, quiçá no direito internacional.

Vicente Raó com sua lapidar obra “O direito e a vida dos direitos” esclarece que atual crise
consiste apenas no reajuste, no realinhamento das normas jurídicas às condições de vida de
nossa época. São novas as premissas a guiar o conhecimento jurídico.

As transformações sociais, ideológicas, econômicas e políticas e mesmo até tecnológicas


exigiram do legislador uma preciosa técnica especial de adaptação das normas de maneira a
evitar-se que o direito seja exercido, contrariamente à sua finalidade social, contendo-se e
coibindo-se abusos e excessos.

Daí porque o rigor positivista não é mais hábil a ser praticado, originando-se uma gleba
doutrinária chamada de neopositivistas que são mais flexíveis e sensíveis aos clamores
sociais contemporâneos.

Nesse momento surgem conceitos amortecedores ou válvulas de escape ou de segurança


que podemos evidenciar através das teorias do abuso de direito, da imprevisão, da
onerosidade excessiva, e outras como a do equilíbrio entre os contratantes e a conservação
dos contratos. Além das cláusulas gerais da função social do contrato e a da boa-fé objetiva.

Tais técnicas permitem manter o tradicional sistema, evitando seus inconvenientes em


certas hipóteses especiais.

As grandes inovações introduzem e despontam a necessidade humana que é a força motriz


da decantada revolução dos fatos contra o direito de Morim, mas já sabemos que o direito
surgiu e se nutre exatamente dos fatos (ubi jus ibi societas).Daí a pertinência dogmática da
tridimensionalidade que sintetiza: fato, valor e norma.

A cláusula rebus sic stantibus oriunda do trecho de uma glosa atribuída a Nerácio
(Contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus
intelligentiur). Traduzindo literalmente: Os contratos que têm trato sucessivo ou dependência
do futuro entendem-se condicionados pela manutenção do atual estado de coisas.

Esta cláusula é de origem canônico-medieval que vem a inspirar a teoria da imprevisão que
atua como amortecedor que limita a autonomia da vontade no interesse da comutatividade
dos contratos e com a finalidade de assegurar a equivalência das prestações dos
contratantes, quando, por motivo imprevisto, uma delas se tornou excessivamente onerosa.

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2 Desenvolvimento

Prevê o Código Civil de 2002 (nos arts 317 e 478) a possível resolução dos contratos por
onerosidade excessiva nos contratos de execução continuada ou diferida. Optou o legislador
pátrio por atrelar a onerosidade excessiva à teoria da imprevisão muito embora sejam essas
conceitualmente distintas.

Pressupõe-se para a aplicação das teorias que o contrato seja bilateral ou sinalagmático,
oneroso e comutativo. Apesar de que nos contratos aleatórios como o de seguro que
possuem parte comutativa, também possam ser aplicadas. Embora muito semelhantes tais
teorias não se confundem.

Surge na Idade Média a teoria da imprevisão através da cláusula rebus sic stantibus como
forma de abrandar o rigor do princípio da obrigatoriedade dos contratos (pacta sunt
servanda).

Sua base referencial é que o contrato é formado de acordo com determinadas condições
fáticas que existem no momento de sua formação. Se houver grave, brusca e imprevisível
alteração nas condições fáticas vigentes na época da celebração e, em razão destas, o
contrato gerar enriquecimento injusto a um dos contratantes, poderá o outro contratante
invocar a cláusula rebus sic stantibus para não cumprir o contrato firmado.

A teoria da imprevisão está vinculada aos fenômenos imprevisíveis e extraordinários que


são, por exemplo, guerras ou fortes mudanças econômicas que são capazes de afetar ou
mesmo romper o equilíbrio existente entre as prestações, é a quebra do sinalagma
contratual.

Por outro lado, para a teoria da onerosidade excessiva basta a mudança da situação fática
que torne insuportável o cumprimento contratual, não se levando em consideração se a
alteração fática era previsível ou mesmo extraordinária.

A importância da cláusula medieval que os doutrinadores modernos transformaram em teoria


da imprevisão veio crescer principalmente em face das grandes modificações do valor da
moeda, reconhecendo-se a existência da ilusão da chamada “moeda estável” no direito
contemporâneo que bem preconizou Galbraith quando identificou a “Era da Incerteza”.

A Lei Faillot em 1918 (na França) é marco histórico da cláusula rebus sic stantibus posto que
modificou normas contratuais onde uma prestação se tornou excessiva penosa a um dos
contratantes em virtude da guerra.

Origem de relevantes inflações monetárias foram duas grandes guerras do final do século
XIX é que forçou o legislador fixar sobre o curso forçado da moeda, proibindo cláusulas onde
as partes adotariam outro padrão, que não a moeda, para calcular seus débitos.

Entre nós, há a vedação de pagamento em moeda estrangeira (Dec. Lei 857/69 com as
exceções permitidas em lei).

A jurisprudência alemã integrando o parágrafo 242 do BGB admitiu a teoria da imprevisão, e


limitava a obrigar o devedor a cumprir a sua prestação de acordo com as normas de
lealdade e confiança recíproca (Treu und Glauben) e na forma de usos admitidos no
comércio.

Arnoldo Wald destaca a grande influencia dessa jurisprudência e de artigo jurídico sobre
direito brasileiro, notadamente o STF. A inflação no Brasil não pode ser considerada
imprevisível e nem extraordinária, pois faz parte da cultura nacional. Mesmo quando esta
dormita de forma controlada e limitada (desde 1994 com a realização do Plano Real).

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Desta forma, a alegação de inflação é insuficiente e impróprio pra credenciar o
descumprimento contratual com base na teoria da imprevisão.

Todavia, se houver uma galopante inflação como ocorrera nos anos 80 que atingiu 80% ao
mês, há crasso desequilíbrio objetivo entre as prestações pactuadas que pode ser a causa
de resolução por onerosidade excessiva.

Para ser possível a aplicação da resolução prevista no art. 478 do CC deverá o contratante
provar: que o contrato nascera equilibrado, com perfeito sinalagma genético; e um fenômeno
extraordinário (fora do comum) e imprevisível causou desequilíbrio entre a prestação e
contraprestação. E, ainda, a extrema vantagem patrimonial que terá o outro contratante por
vezes à custa da miséria do outro, caso seja a avença cumprida literalmente nos exatos
termos ajustados originalmente.

Assim recomenda o Enunciado 17 da CJF que o art. 478 do CC de 2002 deve ser
interpretado não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio mas também em
relação às conseqüências que ele produz.

Não segue o CDC a mesma linha do CC de 2002, ao disciplinar a onerosidade excessiva e a


noção da teoria da imprevisão, portanto, basta que nas relações de consumo haja o
desequilíbrio objetivo das prestações para que possa o consumidor invocar a resolução do
contrato. Não se importa também se era ou não previsível ou ordinário (art. 6º, V).

Pode o contratante então beneficiado optar por modificar o acordo com eqüidade,
reequilibrando o contrato (art. 479 do CC) e, por força do princípio da conservação dos
contratos, manter agora redimensionado o referido contrato.

Verdadeira construção jurisprudencial alemã que prova inequivocamente ser a jurisprudência


uma verdadeira fonte de direito como já havia reconhecido Josserrand e Vicente Raó.

Por outro lado, a doutrina alemã equiparou à impossibilidade de cumprir a obrigação, a


extinção dessa ou redução do seu montante, no caso de onerosidade excessiva. Essa
impossibilidade subjetiva de caráter econômica, oriunda da onerosidade excessiva, é outra
idéia fecunda no direito germânico contemporâneo, o que veio dominar os códigos mais
recentes.

Deve-se mencionar que outras legislações já tinham francamente admitido que conforme o
caso concreto, o juiz modificasse as cláusulas contratuais para evitar o abuso do direito. O
conceito amortecedor de abuso de direito apesar das severas críticas de Planiol, mereceu
precioso estudo de Josserrand e veio efetivamente influenciar a doutrina civilista da maioria
das legislações contemporâneas ora vigentes.

Concretos exemplos observamos no direito suíço que após reconhecer amplos poderes ao
magistrado que mesmo ante a ausência normativa quando poderá decidir como legislador
fosse, condenando o abuso de direito. O que em minhas aulas, chamo carinhosamente de
“filhote de urubu”, nasce branco, mas acaba preto. Nasce lícito, mas acaba ilícito. O Código
civil greco (art. 388) e o Código Civil italiano (art. 1.467).

Em torno desse tema surgiu vasta literatura e até mesmo um novo ramo de direito, o direito
monetário face da sua extrema importância e pertinência.

De qualquer forma, recomenda outro enunciado do CJF que em atenção ao princípio da


conservação dos contratos, o art. 478 do CC de 2002 deverá reduzir sempre que possível, a
revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.

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Assim como o Código Civil francês, o napoleônico e nosso Código Civil de 1916 foram de
cunho liberal e individualista e, surgiu uma sociedade rudimentar que ignorava a questão
social. Lembremos que o Código de Beviláqua fora feito para um país de moeda dita estável,
onde os contratos não deveriam sofrer maiores alterações inerentes à vontade dos
contratantes.

Na bossa fisiocrata do “lassez faire, laissez-passer” o nosso código civil nasceu provecto
para sua época, algo assim bem similar ao que se sucedeu com o Código Civil de 2002 que
foi originado por um Projeto de 1975 e, portanto, anterior, a Constituição Federal de 1988.

Poucos dispositivos legais se preocupam com a imprevisão, vide o art. 1.059, § único do CC
de 1916 que limitava a responsabilidade aos danos previsíveis, o que é, explicável dentro de
um sistema que em tese tinha a responsabilidade fulcrada na culpa. Também outros
dispositivos legais são os arts. 1.180 e 1.250 do CC. De 1916.

O erudito e pioneiro Arnoldo Medeiros da Fonseca estudando o problema do caso fortuito e


a teoria da imprevisão abrindo novos caminhos para doutrina nacional. Naquela época nosso
ordenamento jurídico não consagrava a cláusula rebus sic stantibus.

Posteriormente surgiram novas disposições legais depois de 1930 que vieram reconhecer o
que já era admitido na legislação brasileira o consagrado princípio da teoria da imprevisão.
Só a guisa de ilustração citamos: Dec 19.573/31 que permitiu a rescisão da locação de
funcionário público ou militar, no caso de remoção ou redução dos seus vencimentos, em
virtude das modificações decorrentes da Revolução de 1930; o Dec 23.501/33 que impôs a
nulidade da cláusula-ouro significando intervenção do Estado e a limitação da autônoma da
vontade dos contratantes. Entendeu nessa ocasião o legislador que deve intervir sempre que
os contratos revelassem o interesse social.

Como bem descreve Arnoldo Wald, civilista brasileiro de primeira linha, realizou-se assim o
eclatement (rompimento) dos contratos, a que se refere Savatier em sua magistral obra
intitulada “metamorfoses econômicas e sociais do direito contemporâneo”.

A ruptura do esquema contratual faz com que a lei incluía no contrato cláusulas que as
partes não convencionaram, ou ao contrário, as considere nulas e não escritas pelas partes.

Em referência à teoria da imprevisão temos a Lei de Luvas (dec. 24.150/34) que


regulamentou a renovação locatícia dos imóveis com fins comerciais e industriais, tendo sido
mantida na Lei 8.245/91 que atualmente disciplina matéria.

Tais dispositivos aceitavam implicitamente a cláusula rebus sic stantibus, também no art. 31
da lei locatícia de 1991 há clara alusão a teoria da imprevisão no que tange a locação
comercial. E mesmo na locação residencial permitiu-se a revisão dos alugueres até o limite
legalmente fixado (arts. 68 a 70).

O Código Civil Brasileiro de 2002 deu relevante ênfase, a justiça substancial no contrato
conforme seus arts. 421 422 que estabeleceram a função social do contrato e o da boa-fé
objetiva, consagrando também a teoria da imprevisão em seu art. 317.

É nítida a vocação para eticidade e sociabilidade do Código Civil de 2002 onde se reafirma a
teoria da revisão como instrumento de readequação contratual. Adotando a tese já então
consolidada na jurisprudência (especialmente no tocante aos contratos de empreitada) e
seguindo o exemplo do Código Civil italiano.

A teoria da imprevisão considera o contrato não como negócio isolado e, sim, como
pertencente a uma realidade contratual que está sujeita às incertezas inevitáveis próprias e

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imanentes do futuro. Esta tese possui o nobre objetivo de tutelar as partes em face da
alteração gravosa da realidade que era desconhecida no momento de sua celebração.

Ressalte-se que os tribunais pátrios reconheciam o caráter excepcional da revisão do


contrato com base na teoria da imprevisão a fim de evitar a criação de um clima de total
insegurança jurídica.

Também no direito público se fez sentir a necessidade de se aplicar a teoria da imprevisão, a


CF de 1969 se referia aos dois casos (art. 167, II e art. 102, §1º.).

Também leis especiais permitiram a aplicação da teoria da imprevisão principalmente


àquelas ligadas ao BNDES e ao Sistema Financeiro de Habitação.

A doutrina das dívidas de valor não se trata da incidência da rebus sic stantibus. As dívidas
de valor não importam em pagamento de certa quantia, e sim, em garantir ao credor
determinado poder aquisitivo (deve-se um quid, e não um quantum). È o que ocorre
comumente com os alimentos.

Quem causou dano a outrem não lhe deve quantia, mas sim a quantia representativa do
valor do prejuízo experimentado (Súmulas 490 e 560 do STF).

Apesar de terem finalidades bem análogas a teoria da imprevisão e a das dívidas de valor
são distintas, posto que visem reequilibrar o contrato em face das condições existentes no
momento de sua execução.

A teoria que se aplica às dívidas de dinheiro exige imprevisibilidade do evento que modificou
cancerigenamente as condições existentes. Já nas dívidas de valor não é plausível a
aplicação da teoria da imprevisão.

Pois mesmo tendo sido previsível e mesmo de fato prevista pelas partes, mesmo assim cabe
requerer o reajustamento das prestações em atenção às finalidades da dívida.

Podem a lei e a convenção transmutar a dívida de dinheiro em dívida de valor. De sorte, que
a incidência da correção monetária importa em converter a dívida líquida em dívida de valor.

O STF tem reiteradamente decidido sobre a validade da correção monetária convencional


(RTJ 64/386, 69/587, 65/874, 88/325 e 60/553 e 60/867).

3 Conclusão

Então resumindo, os contratos evoluíram se transformando em pactos, escapando da rigidez


da pacta sunt servanda, submetendo-se a rebus sic stantibus, sendo informal e consensual,
passando adotar na maioria das vezes o contrato de adesão, ganhando uma necessária
leitura de função social e requerendo de seus partícipes uma atuação com boa-fé objetiva,
em respeito ao equilíbrio das prestações avençadas e, ainda, sempre que possível
pleiteando-se pela conservação das avenças.

Assim, o contrato continua fazendo lei entre as partes, mas com respeito à dignidade da
pessoa humana e de todas as normas de ordem pública que o capacitam a ser instrumento
de circulação de riquezas mas destinado a ser um instrumento mais democrático e justo do
direito privado. Eis é o novo paradigma de contrato, onde para entendê-lo, interpretá-lo e
quiçá julgá-lo necessita-se de recorrer ao “diálogo das fontes”.

Résumé : Il trace l'évolution du contrat depuis droit romain, droit médiéval, du Code Civil
Napoléonien jusqu'au Code Civil Brésilien de 2002. Les principes applicables au droit

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contractuel et, la transformation dans instrument plus juste et démocratique de circulation de
richesses.

Palavras-chave: droit civil brésilien; contrat; pacte; principes juridiques; droit comparé

Referências

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Revista Jurídica
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/index.htm

Artigo recebido em 31/07/2007 e aceito para publicação em


31/08/2007

A Revista Jurídica destina-se à divulgação de estudos e trabalhos


jurídicos abrangendo todas as áreas do Direito.

Os originais serão submetidos à avaliação dos especialistas,


profissionais com reconhecida experiência nos temas tratados.

Todos os artigos serão acompanhados de uma autorização expressa


do autor, enviada pelo correio eletrônico, juntamente com o texto
original.

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Artigos

“Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre liberdade religiosa e laicidade estatal na
jurisdição constitucional brasileira1

Letícia de Campos Velho Martel

Doutoranda em Direito Público – UERJ, Mestre em Instituições Jurídico-Políticas – UFSC, Professora Licenciada
da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, Colaboradora do Núcleo de Pesquisa em Direitos
Humanos e Cidadania – NUPEC

1Introdução – 2 O sacrifício ritual de animais - 3 A menção a Deus no preâmbulo


constitucional - 4 O ensino religioso nas escolas públicas e a educação religiosa - 4.1 A
leitura diária da Bíblia - 4.2 Ensino religioso e escolas públicas: uma combinação polêmica –
5 Feriados Religiosos - 5.1 O feriado Herói da Resistência... - 5.2 Um feriado evangélico: a
outra face – 6 Dias de guarda, acesso a cargos públicos e direito à educação - 6.1 Supremo
Tribunal Federal - 6.2 Superior Tribunal de Justiça - 6.3 Tribunais Regionais Federais - 6.3.1
Concursos públicos - 6.3.2 Freqüência a cursos de formação - 6.3.3 Concursos vestibulares
- 6.3.4 Freqüência a cursos universitários - 6.4 Tribunais de justiça - 6.4.1 Situações
singulares - 6.4.2 Concursos públicos - 6.4.3 Cursos de formação - 6.5 Conclusões parciais
– 7 Conclusões – Referências

Ajedrez

En su grave rincón, los jugadores

rigen las lentas piezas. El tablero

los demora hasta el alba en su severo

ámbito en que se odian dos colores.

Adentro irradian mágicos rigores

las formas: torre homérica, ligero

caballo, armada reina, rey postrero,

oblicuo alfil y peones agresores.

Cuando los jugadores se hayan ido,

cuando el tiempo los haya consumido,

ciertamente no habrá cesado el rito.

En el oriente se encendió esta guerra

1 A expressão “Laico, mas nem tanto” é de Walter Ceneviva. CENEVIVA, Walter. Laico, mas nem tanto. Folha de
São Paulo, São Paulo, 24 out. 2006.

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cuyo anfiteatro es hoy toda la tierra.

Como el otro, este juego es infinito.

II

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada

reina, torre directa y peón ladino

sobre lo negro y blanco del camino

buscan y libran su batalla armada.

No saben que la mano señalada

del jugador gobierna su destino,

no saben que un rigor adamantino

sujeta su albedrío y su jornada.

También el jugador es prisionero

(la sentencia es de Omar) de otro tablero

de negras noches y de blancos días.

Dios mueve al jugador, y éste, la pieza

¿Qué Dios detrás de Dios la trama empieza

de polvo y tiempo y sueño y agonías?

Jorge Luiz Borges

Resumo: Partindo de uma ampla coleta de dados na jurisprudência do STF, do STJ, dos
TRFs e dos Tribunais Estaduais e Distrital, a pesquisa possui como objetivo geral identificar
quais respostas foram oferecidas na jurisdição constitucional brasileira a cinco tópicos
relativos à liberdade religiosa e à laicidade estatal. Para tanto, descreve os casos, os
resultados obtidos e o caminho interpretativo percorrido, inclusive quanto às escolhas de
motivação decisória. Complementarmente, realiza breves incursões analíticas em cada área
temática, tendo em vista, sobretudo, a metodologia decisória empregada, a vinculação a
casos anteriores e/ou decididos por Tribunais superiores (adesão ao precedente), a
existência de decisões díspares, a presença de empréstimo constitucional e a abertura à
participação no processo constitucional (amicus curiae). Paralelamente, traça algumas
conclusões sobre o modo como os tribunais brasileiros compreendem a laicidade estatal e a
liberdade religiosa em sua substância. Como resultado, tem-se que os Tribunais brasileiros
não adotam metodologias decisórias específicas nem padrões uniformes para o deslinde de
casos referentes à liberdade religiosa e à laicidade estatal. Em alguns temas, a disparidade
de resultados em casos análogos mostrou-se intensa, inclusive no mesmo Tribunal.

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Palavra-chave: jurisdição constitucional; liberdade religiosa; laicidade estatal

1 Introdução

A liberdade religiosa - direito, que envolve o de crer e o de não crer, de manifestar o credo
(culto) e de formar grupamentos religiosos - é, sem razões para dúvida, dotado de
jusfundamentalidade. Fazendo as vezes da liberdade de consciência e de manifestação do
pensamento no que toca ao mundo não-fenomênico, ao transcendental, a liberdade religiosa
salvaguarda escolhas identitárias de indivíduos e de comunidades. A religião é o mediador
pelo qual indivíduos ou grupos interpretam a si mesmos e a realidade em que vivem, seu
imbricamento com a formação e a manifestação da identidade é muito intenso. Em assim
sendo, a liberdade religiosa é uma das liberdades que permite aos indivíduos e grupos
construir sua maneira de ser no mundo; que dá lugar à possibilidade de as pessoas
adotarem concepções morais, políticas, ideológicas - abrangentes ou não - a partir uma
gramática específica.

Apesar de envolver um elemento individualista, a religiosidade normalmente manifesta-se


em grupos formados por pessoas que compartilham das mesmas convicções. Existem os
mais diversos tipos de agremiações religiosas, desde aquelas que congregam milhões de
fiéis em todos os recantos do globo, até aquelas que são restritas tanto geográfica quanto
numericamente. Além disso, há grupos que manifestam crenças mais tradicionais, muitas
vezes já enraizadas no imaginário coletivo do grupo social no qual se inserem, enquanto
outros constituem as assim chamadas heterodoxias, cujas crenças e manifestações são
diversas das tradicionalmente conhecidas e aceitas em determinadas sociedades. Destarte,
há denominações religiosas que, em certos locais, são fortes e não-minoritárias. Porém, há
também inúmeras denominações que constituem autênticas minorias, seja pela sua
inferioridade numérica, seja pelo estilo de vida que esposam. Há, aqui, um elemento
relevante no que concerne à jurisdição constitucional: pleitos judiciais referentes à liberdade
religiosa freqüentemente envolvem a luta por reconhecimento dos direitos de minorias,
muitas vezes alijadas de participação nos processos políticos e fóruns públicos majoritários
de tomada de decisão.

Ademais, nos Estados que adotam o princípio da laicidade e tutelam o pluralismo religioso, a
existência de relações simbióticas subreptícias entre os poderes públicos e uma ou algumas
denominações religiosas pode ser uma portentosa fonte de obstrução à democracia. Isso
porque, de um lado, se o Estado oferecer benefícios e privilégios a certos grupos, fortalecê-
los-á e facilitará a tomada de posição hegemônica - em franco atentado ao princípio da
igualdade - e, de quebra, criará nichos de clientelismo e de patrimonialismo, velhos inimigos
da república e dos procedimentos democráticos. De outro lado, em recompensa pelas
benesses recebidas e com os olhos voltados à sua manutenção, as denominações religiosas
mais íntimas do poder fornecerão os sustentáculos morais e ideológicos necessários à
legitimidade das autoridades constituídas, criando obstáculos à participação de variados
grupos e movimentos sociais nos canais democráticos. A laicidade, por seu turno, aliada que
está ao pluralismo religioso, permite o embate de diversas denominações religiosas não
apenas na vida privada, mas também no cenário da política, levando-as a lutar por espaço e
voz e a exercer fiscalização recíproca, seja com o intuito egoístico de granjear privilégios,
seja com a republicana intenção de evitar que qualquer grupo religioso os possua.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, é crescente o número de litígios envolvendo


a liberdade religiosa e a laicidade estatal. Partindo desta constatação, o objetivo dessa
pesquisa é identificar quais respostas foram oferecidas na jurisdição constitucional brasileira
a cinco tópicos relativos à liberdade religiosa e à laicidade estatal. Para tanto, serão
descritas as decisões coletadas sobre temas escolhidos e informados os resultados

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obtidos e o caminho interpretativo percorrido, inclusive quanto às escolhas de motivação
decisória.

O texto será, então, eminentemente descritivo. Apenas complementarmente serão


realizadas breves incursões analíticas em cada área temática, tendo em vista, sobretudo, a
metodologia decisória empregada, a vinculação a casos anteriores e/ou decididos por
Tribunais superiores (adesão ao precedente), a existência de decisões díspares, a presença
de empréstimo constitucional e a abertura à participação no processo constitucional (amicus
curiae). Paralelamente, serão traçadas algumas conclusões sobre o modo como os tribunais
brasileiros compreendem a laicidade estatal e a liberdade religiosa em sua substância.

Os temas foram selecionados dentre vários outros, a partir de um levantamento abrangente


de dados. Na coleta, foi adotada uma técnica específica de pesquisa. Foram visitados os
sítios de todos os Tribunais de Justiça brasileiros, de todos os Tribunais Regionais Federais,
do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Nos sítios virtuais, utilizou-
se o buscador de jurisprudência por assunto/palavra chave. Foram chaves de pesquisa: a)
liberdade religiosa; b) liberdade de crença; c) liberdade de culto; d) liberdade de consciência;
e) religião; f) religioso(a); i) símbolo religioso; j) Igreja. Houve pequenas variações na
utilização das chaves, segundo o sistema de busca do Tribunal. Assim, por exemplo, nos
sistemas que admitiam apenas uma palavra, foi excluída a locução liberdade religiosa e
substituída pela palavra religiosa. A coleta foi realizada entre os dias 24 e 30 de maio de
2006.

Houve falha de pesquisa em cinco Tribunais de Justiça, pois seus sistemas de busca
apresentaram erro ou não estavam disponíveis durante o período de consulta. Foram eles:
a) Piauí; b) Ceará; c) Alagoas; d) Espírito Santo; e) São Paulo. Deste modo, a coleta nos
Tribunais de Justiça restringiu-se a vinte e dois (22). Em seis Tribunais de Justiça não houve
ocorrências para as chaves de pesquisa utilizadas: a) Tocantins; b) Acre; c) Amazonas; d)
Rio Grande do Norte; e) Amapá; f) Sergipe.

Foram adotados alguns critérios de inclusão e de exclusão. Excluíram-se os acórdãos que:


a) não versaram sobre matéria constitucional relativa à liberdade religiosa ou à laicidade do
Estado, independentemente de pré-questionamento explícito; b) versaram sobre matéria
tributária; c) versaram sobre a validade e os efeitos de casamentos religiosos celebrados no
Brasil ou no exterior; d) versaram sobre contagem de tempo de serviço para efeitos
previdenciários de profissionais religiosos; e) versavam sobre o serviço militar obrigatório; f)
cuja decisão foi preferida antes de 05 de outubro de 1988 ou cuja análise tenha sido fundada
em documentos constitucionais anteriores. Foram excluídas também as decisões
monocráticas, exceção feita ao STF.

Os resultados obtidos apontaram a existência de dezesseis (16) assuntos: a) liberdade de


culto e poluição sonora; b) dia de guarda; c) liberdade religiosa, laicidade e bens públicos; d)
preconceito religioso e injúria religiosa; e) instituições religiosas e alvará; f) expulsão de
membros de agremiações religiosas; g) objeção de consciência e o voto obrigatório; h)
recusa de coleta de material biológico e de terapia transfusional; i) menção a Deus no
preâmbulo constitucional; g) uso ritual de substâncias psicotrópicas ilícitas; j) ensino religioso
nas escolas públicas e educação religiosa; k) feriados religiosos; l) estelionato,
curandeirismo e charlatanismo; m) Casamento e liberdade religiosa; n) sacrifício ritual de
animais.

Neste estudo, serão abordados apenas cinco temas, selecionados aleatoriamente: a)


sacrifício ritual de animais; b) menção a Deus no preâmbulo constitucional; c) feriados
religiosos; d) ensino religioso nas escolas públicas e educação religiosa; e) dia de guarda.

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2 O sacrifício ritual de animais

Há séculos, diversas agremiações religiosas consideram o sacríficio de animais não-


humanos como parte essencial do culto à divindade. Porém, a proteção dos animais não-
humanos, especialmente com a proibição de atos cruéis e de maus-tratos, foi ganhando
corpo, inclusive em sede constitucional, como é o caso brasileiro2. A legislação proibitiva
dos atos cruéis e do abate desnecessário de animais não-humanos, respaldada na
Constituição da República, cria uma restrição ao direito fundamental à liberdade de culto,
também constitucionalmente assegurada. Eis a contenda constitucional. No Rio Grande do
Sul, o Tribunal de Justiça foi instado a manifestar-se sobre ela, em acórdão que se passa a
narrar.

Em 2002, foi debatido na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul o Projeto do Código
Estadual de Proteção dos Animais, de autoria do Dep. Manoel Maria. Durante a tramitação,
inúmeras lideranças de religiões afro-brasileiras discutiram os termos do texto, pois ele
visava a proibir o abate de animais não-humanos não destinados primariamente ao
consumo, excetuando apenas algumas medidas profiláticas. Apesar da intensa participação,
o texto final foi considerado inadequado pelos adeptos das religiões afro-brasileiras, uma vez
que era possível a interpretação proibitiva da prática ritual3. Após inexitosa pressão pelo
veto do Executivo, eles buscaram apoio para a propositura de novo Projeto de Lei, que, se
aprovado, inseriria uma exceção permissiva do abate de animais não-humanos em cultos de
religiões de matriz africana. Houve aprovação, sem discussões mais intensas4. Quando da
apreciação pelo Executivo, os movimentos de defesa do meio-ambiente e dos animais não-
humanos tentaram, sem sucesso, obter um veto. Durante todo esse processo, houve
manifestações públicas dos membros das religiões afro-brasileiras, como passeatas e
presença maciça de pessoas vestidas a caráter durante as votações na Assembléia

2 O nascimento das teorias reconhecendo direitos fundamentais e as primeiras positivações desses direitos
foram marcados por um viés altamente antropocentrista. O mesmo pode ser dito sobre as declarações
internacionais de direitos humanos. Com o tempo, novos direitos foram agregados, alguns deles referentes ao
meio-ambiente, englobando a fauna e a flora. De início, a sua proteção continuava ligada ao ser humano, ainda
em um olhar antropocêntrico. Recentemente, os estudiosos passaram também a laborar em um viés biocentrista,
no qual a tutela destinada aos seres vivos é importante por si só, pois se admite que os seres vivos,
especialmente os animais não-humanos, devem ser destinatários de salvaguarda jurídica por seus próprios
interesses e não apenas em razão dos interesses humanos. A CF/88 possui um Capítulo sobre o meio-ambiente,
redigido em clara conotação antropocêntrica, no qual proíbe a submissão de animais à crueldade. Sobre o tema:
SINGER, Peter. Ética prática. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FEINBERG, Joel. Rights, justice and the
bounds of liberty: essays on social philosophy. Princenton: Princenton University, 1980, p.159-206. PIOVESAN,
Flávia. Curso de capacitação para docentes: direitos humanos. Criciúma, UNESC. Curso proferido em julho de
2005.

3 “Art. 2º. É vedado: (...) IV - não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para
consumo;” RIO GRANDE DO SUL. Assembléia Legislativa. Lei nº11.915/03. Código de Proteção aos animais.
Disponível em: www.alergs.gov.br. Acesso em: dez.2006.

4 “Parágrafo único – Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de
matriz africana”. O Decreto nº 43.252, de 22 de julho de 2004, regulamenta o art. 2º, dispondo que “para o
exercício de cultos religiosos, cuja liturgia provém de matriz africana, somente poderão ser utilizados animais
destinados à alimentação humana, sem utilização de recursos de crueldade para a sua morte” (art. 2º). RIO
GRANDE DO SUL. PGJ. Petição Inicial (ADIn 70010129690). Disponível em:
www.mp.rs.gov.br/areas/ambiente/arquivos/adin_culto.doc. Acesso em: dez. 2006. RIO GRANDE DO SUL.
Assembléia Legislativa. Lei nº12.131/04. Disponível em: www.alergs.gov.br. Acesso em: dez.2006.

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Legislativa. Houve, também, importante cobertura pela imprensa escrita gaúcha,
especialmente pelos jornais Correio do Povo e Zero Hora5.

Em Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Ministério Público atacou a exceção legislativa


que beneficiava os cultos de matriz africana, sob os aspectos formal e material. Quanto ao
primeiro, foi alegada a invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito
penal. Sob o aspecto material, foi argüida a violação ao princípio da igualdade, por tratar-se
de norma hipoinclusiva, cujo privilégio não se estendia a outras denominações religiosas que
realizam a imolação de animais não-humanos. É premente destacar que na peça exordial
admitiu-se que o equacionamento dos enunciados normativos constitucionais foi
adequadamente formulado pelo legislador, ou seja, que a liberdade de culto deveria
prevalecer em face da proteção dos animais não-humanos, desde que ausentes a
crueldade, o caráter comercial na prática e o emprego de animais não-humanos em via de
extinção. Esse resultado foi angariado com apoio - expresso ou implícito - em elementos
substancialistas de controle de constitucionalidade, com menção aos postulados da
concordância prática e da proporcionalidade. Ademais, foi ressaltado que as normas federais
atinentes, quando submetidas à interpretação conforme a Constituição e à filtragem
constitucional, excluem do espectro sancionatório a imolação ritualística (com as três
ressalvas dantes mencionadas), do contrário, haveria ataque ao núcleo essencial do direito à
liberdade de culto, o qual, segundo a concepção do parquet, ocupa posição preferencial6.

Desta feita, a defesa da inconstitucionalidade não se escorou na necessidade de se proibir o


sacrifício ritual, tampouco na sustentação de que, na aplicação dos postulados normativos, a
proteção aos animais deve sobrepor-se à liberdade de culto. Na trilha de pensar do parquet,
a declaração de inconstitucionalidade da lei estadual não acarretaria prejuízos aos cultos de
matriz africana, dado que a matização das leis federais aplicáveis poderia ocorrer no sistema
caso-a-caso. Entretanto, era exatamente esse um dos pontos centrais do pleito dos
dirigentes dos cultos de matriz africana. Segundo eles, a hostilidade social às suas práticas
religiosas é muito intensa. Por isso, o risco de enfrentar inúmeros processos criminais seria
sempre iminente. Outro ponto refere-se ao texto do Código de Proteção dos Animais, que
veda, com previsão de penalidades administrativas, o extermínio de animais que não sejam
necessários ao consumo. Ora, apesar de, via de regra, os animais sacrificados em cultos de
matriz africana serem consumidos ou doados para tal, existem proibições rituais ao consumo
daqueles imolados em cerimônias de cura ou de luto. Além disso, não se trata de
necessidade de consumo, mas de consumo secundário.

5 As informações extra-autos foram obtidas em: ORO, Ari Pedro. The sacrifice of animals in afro-brazilian
religions: analysis of a recent controversy in the brazilian state of Rio Grande do Sul. Translated by Enrique Julio
Romera. Relig. Soc. v.1, 2006. online. Special Edition [cited 14 March 2007]. Disponível em:
http://socialsciences.scielo.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872006000100001&lng=en&nrm=iso.
Acesso em: jan.2007.

6 RIO GRANDE DO SUL. PGJ. Petição Inicial (ADIn 70010129690).Cit. Sobre as teses empregadas, ver: ÁVILA,
Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003
(expressamente citado na peça). MARTEL, Letícia de Campos Velho. Hierarquização de direitos fundamentais: a
doutrina da posição preferencial na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana. Florianópolis: Seqüência:
estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, ano 24, n. 48, jul. 2004. SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem
constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: SAFe, 1999. SCHIER, Paulo Ricardo.
Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstitucionalismo. Revista Eletrônica de Direito
do Estado, Salvador, n. 4, out. nov. dez., 2005. Disponível em: www.direitodoestado.com.br. Acesso em:
dez.2006.

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Diversas organizações pleitearam a participação no feito na qualidade de amici curiae7 -
uma forma de participação dos movimentos sociais, de expertos e de organizações nos
processos judiciais-constitucionais -, bem como na condição de terceiros interessados. O
Tribunal gaúcho indeferiu a participação como terceiros interessados, mas aceitou a inclusão
das peças “à guisa de esclarecimento da matéria”. A Mesa da Assembléia posicionou-se
pela improcedência do pedido, e o Governador do Estado requereu manutenção da norma
impugnada, com declaração de inconstitucionalidade por omissão no que toca às
agremiações religiosas ali não mencionadas, com estabelecimento de prazo para o órgão
legiferante complementá-la8.

Na data do proferimento do voto do relator, houve passeatas em frente ao Tribunal de


Justiça e a sessão foi acompanhada por dezenas de adeptos de religiões de matriz africana
usando indumentária típica. O relator exarou voto sucinto, optando pela improcedência do
pedido. Seu voto foi vencedor. No que tange à inconstitucionalidade material, o
desembargador mencionou a necessidade de ponderar os interesses envolvidos,
salientando que existe apenas um direito fundamental absoluto, o direito à vida humana.
Essas afirmações foram formuladas sem maiores apoios teóricos e, ao longo do voto, não
são discerníveis os postulados normativos empregados, tampouco as etapas de aplicação
do postulado da proporcionalidade. Segundo ele, a restrição à liberdade de culto apenas
poderia ser formulada pela lei penal ou em proteção aos demais direitos fundamentais. Ele
examinou, então, a interpretação das duas leis federais referidas na petição inicial,
considerando que o ato de matar um animal (não-humano) não é, em si mesmo, uma
crueldade9. Portanto, somente quando o sacrifício ritual estivesse ligado à crueldade haveria
incidência das leis penais.

É interessante perceber que o relator frisou, por duas vezes, a inexistência de qualquer lei,
no direito brasileiro, que proíba alguém de matar animais não-humanos próprios ou sem
dono. Certamente, restringindo-se aos elementos do caso, ele não estava a se referir ao ato

7 Neste estudo, entende-se que o amicus curiae, figura cujos contornos atuais foram desenhados no direito
constitucional estadunidense, pode ser um elemento que confere maior abertura democrática aos processos
judiciais-constitucionais, sobretudo em sede de controle abstrato de constitucionalidade e quando estão em
discussão direitos de minorias com reduzida representação política. No caso em exame, postularam participação
no feito instituições ligadas à defesa da liberdade religiosa, ao movimento negro e à promoção da igualdade.
Sobre o tema amicus curiae, consultar: BAZÁN, Victor. El amicus curiae y la utilidad de su intervención procesal:
una visión de derecho comparado, con particular énfasis en el derecho argentino. Estudios Constitucionales:
Revista del Cientro de Estudios Constitucionales, Santiago do Chile, ano 1, p.677-682, 2003. BINENBOJM,
Gustavo. A interferência do amigo da corte nas ações do Supremo. Valor on line. Disponível em:
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Gustavo. A dimensão do amicus curiae no processo constitucional brasileiro: requisitos, poderes processuais e
aplicabilidade em âmbito estadual. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, n. 1, jan. 2004.
Disponível em: www.direitodoestado.com.br. Acesso em: set. 2005. BUENO FILHO, Edgard Silveira. Amicus
Curiae : a democratização do debate de controle jurisdicional de constitucionalidade. Revista Diálogo Jurídico.
Salvador, n. 14, jun./ago., 2002. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. Acesso em: ago.2004.
MARTEL, Letícia de Campos Velho; PEDROLLO, Gustavo Fontana. Amicus Curiae: elemento de participação
nas decisões judiciais-constitucionais. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v.32, n. 99, p.161-179, set. 2005.

8 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 70010129690. Relator:
Araken de Assis. Porto Alegre, 18 de abr. 2005. Disponível em: www.tj.rs.gov.br. Acesso em: jul.2005. ORO, Ari
Pedro. Sacrifice... op. cit.

9 “Então, não vejo como presumir que a morte de um animal, a exemplo de um galo, num culto religioso seja uma
‘crueldade’ diferente daquela praticada (e louvada pelas autoridades econômicas com grandiosa geração de
moedas fortes para o bem do Brasil) pelos matadouros de aves”. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça.
.Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 70010129690. Cit., voto do Desembargador Araken de Assis
(vencedor).

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.11-57, ago./set., 2007 17


de matar animais silvestres ou a outras hipóteses previstas na lei dos crimes ambientais.
Mas salta aos olhos o fato de o relator não ter considerado o art. 2º do Código Estadual de
Proteção dos Animais como uma norma que veda, de forma geral, o abate de animais
desvinculado do consumo. Pelo contrário, chegou mesmo a mencionar, como argumento
favorável à constitucionalidade da exceção, o fato de inúmeros animais não-humanos serem
mortos para o consumo.

Por fim, citou precedente da Suprema Corte dos EUA, asseverando: “No caso, sem traçar
paralelos com outras religiões ou práticas, ou adotar motivação porventura mais ajustada
àquele sistema jurídico, estimo que se aplique perfeitamente tal precedente à espécie como
uma diretriz geral. Portanto, conosco está a Suprema Corte dos Estados Unidos da
América”10. Neste ponto, o relator operou um empréstimo ou transplante constitucional, pois
selecionou julgado de corte estrangeira para orientar a linha decisória a ser empregada pelo
órgão de adjudicação nacional11. A prática, cada dia mais comum, possui benesses,
mormente quanto à interpretação de enunciados normativos de Direitos Fundamentais, vez
que proporciona dialogicidade, auto-reflexão, revitalização da jurisprudência interna,
“ampliação de sua [dos Tribunais] função garantidora da dignidade humana e da
democracia”12. Porém, o empréstimo exige cautelas, quais sejam, efetivo conhecimento e
compreensão dos elementos não-sistêmicos e o emprego de algumas metodologias que
permitam o controle de racionalidade da decisão. Além disso, especial atenção deve ser
dada aos limites da função judicante quando da incorporação de argumentos alheios ao
sistema, por vezes indesejados por outras instâncias democráticas13.

Nesse particular, há alguns pontos obscuros no voto. As diferenças entre as leis discutidas
nos casos comparados, principalmente nos históricos legislativos, levam a duvidar da
possibilidade de transplante das diretrizes da decisão estadunidense para o julgado gaúcho.
É tão-só quanto ao efeito aparente que há alguma similitude entre os julgados, e, mesmo
assim, ela é duvidosa14.

10 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 70010129690. Cit.,
voto do Des. Araken de Assis (vencedor).

11 Cf. BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto. Utilização do direito constitucional comparado na interpretação
constitucional. Mímeo. Texto posteriormente revisado e publicado em: LOIS, Cecília Cabellero; BASTOS
JUNIOR, Luiz Magno Pinto; LEITE, Roberto Basilone (Coord.). A Constituição como espelho da realidade:
interpretação e jurisdição constitucionais em debate: homenagem a Sílvio Dobrowolski. São Paulo: LTr, 2007.

12 BASTOS JUNIOR, op. cit.

13 Cf. BASTOS JUNIOR, op. cit.

14 Pesem embora os fatos de o relator ter mencionado o caso estadunidense e de o inteiro teor do julgado
estrangeiro figurar nos autos, é preciso dizer que existem significativas diferenças entre a lei gaúcha e as leis
apreciadas pela Suprema Corte dos EUA. A semelhança entre os casos dá-se em razão do seu efeito fático -
permissão do sacrifício ritual de animais. No julgado gaúcho, a lei permitiu a imolação ritualística por algumas
denominações religiosas, visando excetuá-las da incidência de norma geral e formalmente neutra em matéria
religiosa. No caso estadunidense, estavam em pauta regulações municipais, forjadas com esteio em leis de
proteção dos animais do Estado da Flórida, que vedavam o sacrifício ritual de animais não-humanos. À luz do
voto da pluralidade da Corte, as regulações não eram nem de aplicabilidade geral, nem formalmente neutras.
Pelo contrário, teriam sido desenhadas para impactar apenas uma minoria religiosa, pois não proibiam, e.g, a
caça e a pesca esportivas. Em assim sendo, o padrão de exame da constitucionalidade estabelecido, o exame
dos fins almejados pela municipalidade (preservação da saúde pública, prevenção da crueldade com animais,
zoneamento), o equacionamento entre fins e meios, e o labor com o princípio da igualdade (equal protection) são
assaz diversos daqueles que seriam apropriados ao caso pátrio. Assim também é o alcance do julgado, pois

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.11-57, ago./set., 2007 18


O desembargador Vasco Della Giustina seguiu o voto do relator, mas sugeriu o acréscimo,
na proposta de ementa, de ressalva quanto aos possíveis excessos e à crueldade. O relator
prontamente concordou e a sugestão foi aceita pela maioria15. Nem nesse voto, nem no do
relator, houve argumentos endereçados ao caráter hipoincluisivo da lei. Tal aspecto foi,
contudo, laborado em outros votos.

A desembargadora Maria Berenice Dias ofereceu interessante solução ao problema da


hipoinclusividade da lei. No seu entender, a limitação da exceção legislativa às religiões de
matriz africana enseja desigualdade constitucionalmente injustificada. Por esta razão, ela
optou por proferir uma decisão intermediária, acolhendo parcialmente o pedido. Sugeriu a
supressão do trecho final do dispositivo legal, ampliando-o, para que passasse a atingir
todas as denominações religiosas que possuem a imolação de animais como forma de
culto16.

Sua proposta insere-se na noção de que o controle jurisdicional de constitucionalidade não é


apenas ablativo, tampouco está centrado em um resultado binário constitucionalidade /
inconstitucionalidade da norma impugnada. Em muitos casos, o controle pode se mostrar
manipulativo, com maior ou menor intensidade, segundo a exigência lógica do sistema
jurídico. Nesse contexto, a doutrina, especialmente a italiana, concebe a existência de
decisões aditivas, substitutivas, interpretativas e exortativas, todas elas consideradas
intermediárias. Por um ângulo, especialmente em face das teses substantivistas de controle
de constitucionalidade, as decisões intermediárias podem se mostrar mais deferentes ao
órgão legiferante, pois podem manipular a norma, filtrando-a constitucionalmente, sem
declarar-lhe a inconstitucionalidade, medida mais drástica17.

In casu, foi exatamente isso que pretenderam tanto a desembargadora Maria Berenice Dias
quanto o Governador do Estado no pleito. Recorde-se que o Executivo sugeriu a
manutenção da norma no ordenamento, com declaração de inconstitucionalidade por
omissão no que toca à ausência de previsão para outras agremiações e o estabelecimento

exceções a uma lei geral e formalmente neutra não estavam diretamente em pauta e que o se mencionou acerca
da sua possível inconstitucionalidade constitui simples dicta. O trecho final do voto concorrente do Justice
Blackmun, ao qual aderiu a Justice O’Connor, é deveras propício para aclarar a diferença entre os julgados: “It is
only in the rare case that a state or local legislature will enact a law directly burdening religious practice as such.
Because respondent here does single out religion in this way, the present case is an easy one to decide. A harder
case would be presented if petitioners were requesting an exemption from a generally applicable
anticruelty law. The result in the case before the Court today, and the fact that every Member of the Court
concurs in that result, does not necessarily reflect the Courts view of the strength of a State’s interest in
prohibiting cruelty to animals. This case does not present, and I therefore decline to reach, the question
whether the Free Exercise Clause would require a religious exemption from a law that sincerely pursued
the goal of protecting animals from cruel treatment. The number of organizations that have filed amicus
briefs on behalf of this interest, however, demonstrates that it is not a concern to be treated lightly”. Não é
demais referir que um dos mais importantes debates desse caso na Suprema Corte estadunidense foram os
padrões decisórios a serem empregados quando está em jogo a liberdade religiosa, bem como o significado e a
forma de apreciação da neutralidade de uma lei. Church of Lukumi Babalu Aye v. City of Hialeah. 508 U.S. 520
(1993). [sem grifos no original]

15 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 70010129690. Cit.,
voto do Des. Vasco Della Giustina.

16 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 70010129690. Cit.,
voto da Desembargadora. Maria Berenice Dias.

17 Sobre as decisões intermediárias: CERRI, Augusto. Corso di giustizia costituzionale. 3. ed. Milano: Giuffrè,
2001. p.88-107. Para uma visão das decisões aditivas e admonitórias à luz de uma teoria procedimentalista,
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.
253.

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de prazo para atuação legislativa. Seria, pois, uma decisão exortativa de cunho admonitório.
Já a posição da desembargadora refere-se à decisão aditiva, que inclui no âmbito de
incidência normativo algo não previsto. Em substância, a última postura não difere do
emprego da analogia, pois é certo que, em se tratando da incidência do Código Estadual de
Proteção dos Animais, poderia o juiz estender, em cada caso concreto, por analogia, a
aplicação da exceção legislativa. A diferença reside nos efeitos e na amplitude da decisão,
mas ainda assim a postura é sustentável, pois prima pelos princípios da segurança jurídica e
da economia processual (ao unificar a jurisprudência e ao evitar novos processos judiciais ou
administrativos). Todavia, no julgado, as propostas de decisões intermediárias não
receberam nenhuma adesão e, em dois votos, a decisão aditiva foi expressamente
descartada, sob o argumento de que o órgão judicante não é legislador positivo18.

Nos votos divergentes, houve dois eixos argumentativos: a) inconstitucionalidade formal; b)


inconstitucionalidade material, por lesão ao princípio da igualdade, pois a lei privilegiaria
injustificadamente apenas um segmento religioso em um Estado laico. Em um dos votos
dissidentes, que angariou significativa adesão, a morte provocada de um animal não-
humano foi reputada como cruel em si mesma, por ferir o direito natural e absoluto à vida,
quer dos seres humanos, quer dos animais não-humanos. Esse argumento é indissociável
da análise da inconstitucionalidade formal. Também foi alvo de debate o que estava
exatamente em jogo no caso. Alguns desembargadores negaram que a liberdade religiosa
estivesse em pauta, para eles, discutia-se um salvo conduto, uma liberação geral de práticas
que podem constituir tipo penal punível19.

Tal qual nos votos vencedores, é difícil identificar um padrão ou uma sistemática decisória
na dissidência, os argumentos são variados e, agravando o quadro, há dúvidas acerca do
foco da decisão, seja na maioria, seja na minoria, dadas as interpretações das leis federais,
a pouca referência ao texto do Código de Proteção aos Animais, a menção retórica à
ponderação de interesses e o modo de definir e de avaliar a crueldade no ato do sacrifício
pelas religiões de matriz africana.

Houve recurso ao Supremo Tribunal Federal, que, até o momento, não se pronunciou sobre
o mérito. A rede Conectasur enviou um parecer de amicus curiae.

3 A menção a Deus no preâmbulo constitucional

No preâmbulo da Constituição Federal, os constituintes expressamente invocaram a


proteção de Deus. As constituições estaduais reproduziram a invocação, exceção feita à
acreana. Por esse motivo, o Partido Social Liberal ajuizou Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão, alegando que, no texto preambular da constituição do
Estado Acre, o constituinte derivado decorrente deixara de atender à norma central da
Constituição Federal, privando todos os cidadãos acreanos de ficar “sob a proteção de
Deus”20. Apesar de a menção a Deus no preâmbulo constitucional ter causado certas

18 Foram os votos do desembargador Danúbio Edon Franco, com o relator, e do voto do desembargador Alfredo
Guilherme Englert, com a divergência. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 70010129690. Cit.

19 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 70010129690. Cit.

20 Normas centrais são, segundo Raul Machado Horta, aquelas presentes na Constituição Federal cuja adoção é
obrigatória pelas unidades federativas estaduais e/ou municipais, dependendo do caso. Em assim sendo,
reproduzidas ou não nas constituições estaduais ou nas leis orgânicas, incidirão nas ordens locais. HORTA, Raul
Machado. Normas Centrais na Constituição Federal. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 34, n.135,

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contendas acadêmicas, primordialmente quanto à índole laica ou atéia do Estado brasileiro,
até o ajuizamento da referida ação essas discussões não haviam repercutido em questões
práticas.

Ao decidir, o STF não centrou seus argumentos na separação entre Igreja(s) e Estado no
Brasil, muito embora tenha mencionado o caráter laico da República Federativa do Brasil e a
assimetria entre a controvertida invocação preambular e as normas constitucionais. O rumo
decisório assentou-se no caráter normativo do preâmbulo, matéria de longa data pacificada
na jurisprudência e na doutrina constitucionais brasileiras. Segundo esse entendimento, o
preâmbulo não possui força normativa, sendo apenas um texto introdutório, que assinala a
matriz política da Constituição. Suas palavras somente possuirão força normativa se
estiverem reproduzidas em artigos constitucionais, o que não ocorre com a expressão “sob a
proteção de Deus”. Percebe-se que o STF não deslindou a questão com apoio em profundas
digressões sobre a separação entre Igreja(s) e Estado, recorrendo a argumentos
estritamente necessários à situação e há muito sedimentados21.

4 O ensino religioso nas escolas públicas e a educação religiosa

Atualmente, a correlação entre a laicidade do Estado e o ensino público tem sido palco de
intensas refregas. Basta pensar no uso de indumentária religiosa por estudantes e
professores - e.g. os casos do uso do shador -, na utilização de símbolos e na realização de
cerimônias religiosas em escolas, na formulação de certos conteúdos curriculares - e.g.,
criacionismo e evolucionismo -, na transmissão de valores religiosos ou de determinadas
agremiações em sala de aula - e.g. leitura de livros religiosos e oração compulsória, dentre
outros. A problemática não se restringe apenas ao ensino público, atingindo também a
esfera privada, especialmente nas hipóteses de subvenção ou de participação do poder

jul/set., 1997. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2076/AC. Relator:
Ministro Carlos Velloso. 15/08/2002. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: maio 2006.

21 De modo amplo, poder-se-ia dizer que a decisão foi minimalista, pois pontos polêmicos ou de desacordo sobre
a locução preambular foram cuidadosamente evitados (exceção feita ao voto do Min. Sepúlveda Pertence). Sobre
o minimalismo judicial, consultar: SUNSTEIN, Cass R. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme
Court. Massachusetts: Harvard University, 1999.

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público22. As questões não são singelas, tampouco recentes, e, diversas vezes, chegaram
aos tribunais estrangeiros, assumindo contornos de hard cases constitucionais23.

Muitos podem acreditar que a situação não se apresentou no Brasil, em face do auto-
proclamado sincretismo religioso, similar à noção dantes muito difundida de democracia
racial brasileira. No senso-comum, o ideário pode até ganhar ares de realidade, mas um
olhar acurado demonstra que ao longo da história republicana a relação entre o ensino e a
laicidade estatal foi uma polêmica constante, embora ocultada, seja propositadamente, seja
em razão de afrontas muito mais diretas e fragorosas de direitos fundamentais em tristes
períodos desses trópicos24.

22 Esse tema veio à tona no Brasil após um episódio envolvendo uma laureada antopóloga brasileira. Ela
conduzia pesquisas em medicina fetal, cujos resultados contrastaram com os posicionamentos da Instituição de
Ensino Superior confessional na qual ela lecionava. O embate culminou com a despedida da docente. Dois
problemas decorrem daí, primeiro, o balanceamento entre a liberdade de cátedra e a autonomia universitária.
Segundo, o financiamento público - normalmente via agências públicas de fomento - das pesquisas
empreendidas por professores vinculados a Universidades confessionais e o provável controle temático. No sítio
do CNPq, há dados sobre o recebimento de recursos públicos para pesquisa pelas Universidades brasileiras. O
quadro deixa claro que o maior contingente é destinado a universidades públicas. Todavia, algumas instituições
confessionais recebem uma parcela significativa de valores, o que demonstra a importância de se debater a
liberdade dos pesquisadores a ela vinculados, sob pena de permitir-se a existência de um filtro religioso ao
financiamento público do desenvolvimento científico. CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA CIENTÍFICA
TECNOLÓGICA. (Brasil). Total dos investimentos realizados em bolsas e no fomento à pesquisa segundo
instituições: 2001-2005: ranking das instituições cujos recursos corresponderam a 95% do total dos
investimentos em 2005. Disponível em: http://www.cnpq.br/estatisticas/investimentos/instituicao.htm. Acesso em:
fev.2007. DINIZ, Débora; BUGLIONE, Samantha; RIOS, Roger Raupp. Entre a dúvida e o dogma: liberdade de
cátedra e universidades confessionais no Brasil. Brasília: Letras Livres; Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

23 A título meramente elucidativo, elencam-se alguns julgados estrangeiros e internacionais: a) aceitando a


proibição do uso véu islamâmico por estudantes em universidades, decisão da Corte Européia de Direitos
Humanos, Leyla Sahin v. Turkey. Disponível em: http://www.echr.coe.int/echr. Acesso em: jun.2006; b) sobre o
criacionismo e o evolucionismo, a decisão da Suprema Corte dos EUA em Edwards v. Aguilar, optando pela
inconstitucionalidade de uma lei estadual que previa a necessidade de ensinar-se o criacionismo nas escolas
caso o evolucionismo fizesse parte do currículo; c) declarando inconstitucional a adoção compulsória de uma
oração não-denominativa nas escolas públicas, o caso Engel v. Vitale, decidido pela Suprema Corte dos EUA; d)
declarando inconstitucional a adoção de uma oração antes de jogos de futebol em campeonatos vinculados às
escolas públicas, Santa Fe Independent School District v. Doe, decidido pela Suprema Corte dos EUA. Cf. LEVY,
Leonard W. The establishment clause: religion and the first amendment. 2th ed. North Carolina: University of
North Carolina, 1994, p.184-185. COHEN, William. The first amendment: constitutional protection of expression
and conscience. New York: Foundation Press, 2003, p.473 e ss; 482 e ss. e) discutindo a regulamentação do
ensino religioso, mediante a disciplina de religião e moral católica, interessante manifestação do Tribunal
Constitucional português, que admitiu que ela poderia ser ministrada pelo professor da classe. Assumindo
posição contrária à do Tribunal, por acreditar que cada confissão religiosa deve indicar os professores e
responsabilizar-se pelos conteúdos, o constitucionalista Jorge Miranda. MIRANDA, Jorge. Manual de direito
constitucional: direitos fundamentais. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p.440. PORTUGAL. Tribunal
Constitucional. Acórdão n.173/93. Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19930174.html.
Acesso em: fev. 2007.

24 De início, a primeira Constituição republicana vedou o ensino religioso nas escolas públicas, bem como
qualquer subvenção de estabelecimentos de ensino confessionais. Porém, nas constituições que se seguiram
(1934, 1937, 1946 e 1967), houve uma tendência à atenuação da laicidade estatal, passando-se a admitir certas
contribuições entre o Estado e institutos educacionais confessionais, com possibilidade de reconhecimento de
filantropia e com concessão de bolsas de estudos. O abrandamento foi justificado pela necessidade de
proporcionar às famílias menos abastadas a opção por um ensino confessional sem que o Estado o oferecesse
diretamente. Os mesmos textos constitucionais passaram a assegurar (1934, 1946, 1967) ou a facultar (1937) a
oferta da disciplina ensino religioso nos currículos das escolas públicas, sempre com matrícula ou freqüência
facultativa. Porém, é preciso atentar para o fato de muitas normas constitucionais, inclusive Cartas inteiras, terem
sido meramente simbólicas ou, até mesmo, perniciosas. Nessa ótica, é muito pertinente colacionar o rigoroso
estudo empreendido pelo brasilianista Keneth Serbin. Analisando as relações Estado/Igreja Católica no Brasil no
período 1930-1964, o autor concluiu que se processou uma intensa simbiose entre o Estado e a Igreja Católica.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.11-57, ago./set., 2007 22


Um dos grandes objetos de disputa foi e continua sendo a oferta da disciplina de ensino
religioso, de matrícula facultativa, no ensino público fundamental, prevista por sucessivas
Constituições, inclusive a vigente25. Intensamente atacada por alguns setores sociais,
arduamente defendida como direito dos estudantes por outros segmentos, a medida mostra-
se perplexizante mesmo para aqueles que buscam o caminho da imparcialidade. Querelas
sobre o conteúdo a ser ministrado, a qualificação dos professores, o caráter confessional,
interconfessional, fenomenológico ou ecumênico da disciplina são constantes nos Conselhos
e na Câmara de Educação Básica, nos executivos, nos legislativos e, mais recentemente,
nos meios de comunicação26. Entretanto, mesmo com existência de debates em fóruns
públicos de tomada de decisão e na mídia, houve pequeno eco na jurisdição constitucional
pátria. Na pesquisa realizada foram encontrados apenas dois julgados sobre ensino
religioso, um referente à leitura diária de um versículo bíblico em escolas públicas

Em uma via, a Igreja fornecia o aparato moral necessário à sustentação dos governos, e, como retorno, recebia
fundos públicos que garantiam a sua hegemonia. Os fundos destinaram-se a três áreas preferenciais: a)
educação (colégios católicos, universidades pontifícias e seminários); b) assistência social, inclusive no âmbito da
saúde (Santas Casas); c) cultura. Ademais, as isenções e imunidades fiscais não eram concedidas mediante
requisitos objetivos, mas segundo padrões que ofereciam ampla margem interpretativa. No campo educacional,
Serbin detectou que tais benefícios foram ligados à capacidade de preparação moral dos estudantes e, por
conseguinte, privilegiaram os educandários católicos. Nas primeiras fases do regime militar, o pacto moral
continuou, sendo atingido apenas no processo de abertura. Com a Constituição de 1988, houve objetivação de
critérios para o reconhecimento de instituições filantrópicas e de assistência social e conseqüente perda do
espaço católico nos três campos referidos. Como exemplo das reações aos elos entre Igreja e Estado na
educação pública, pode-se citar os pleitos do movimento Nova Escola. FISCHMANN, Roseli. Escolas públicas e
ensino religioso em escolas públicas: subsídios para a reflexão sobre o Estado laico, a escola pública e a
proteção do direito à liberdade de crença e de culto. ComCiência: Revista Eletrônica de Jornalismo Científico,
São Paulo, v. 56, p. 1-7, 2004. FISCHMANN, Roseli. Ainda o ensino religioso em escolas públicas: subsídios
para a elaboração de memória sobre o tema. Revista Contemporânea de Educação. Rio de janeiro, v. 2, p. 1-
10, 2006. SERBIN, Keneth. The catholic church, religious pluralism, and democracy in Brazil. [S.l.]: The
Helen Kellog Institute for International Studies, 1999. (Working Paper 263). SERBIN, Kenneth. Church-State
reciprocity in contemporary Brazil: the convening of International Eucharistic Congress of 1955 in Rio de
Janeiro. [S.l.]: The Helen Kellog Institute for International Studies, 1996. (Working Paper 229).

25 A facultatividade da matrícula apresenta aspectos problemáticos, pois a escola deverá oferecer atividades
alternativas aos estudantes que não estiverem matriculados, sem que eles sejam por isso discriminados, quer
pelos docentes, quer pelos colegas. Uma pesquisa quantitativa realizada em todas as escolas públicas
municipais de Criciúma (SC) no ano de 2002 revelou que em 69,1% das escolas a matrícula na disciplina não era
facultativa. Em apenas 25% ela era facultada e exatamente o mesmo percentual oferecia informações sobre a
facultatividade. Do total de escolas, tão-somente 17,6% ofereciam atividades substitutivas aos estudantes não
matriculados (ou, seja, 70,4% dentre aquelas que facultavam a matrícula). Cf. BORGES, Anna Karenina Righetto
(pesquisadora). ANDRADE, Lédio Rosa de (orientador). MARTEL, Letícia de Campos Velho (orientadora).
Princípios republicano-constitucionais da liberdade religiosa e da separação Igreja/Estado: um exame de
suas concretizações no Município de Criciúma no interregno 1992-2002. Criciúma: Relatório de Iniciação
Científica, 2003.

26 As polêmicas podem ser facilmente ilustradas pelo histórico da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que,
originariamente, definira que a disciplina deveria ser oferecida “sem ônus para os cofres públicos”, de modo
confessional (separação por grupos religiosos, cada qual sendo educado por autoridade de sua denominação) ou
interconfessional (a partir de pontos de acordo entre diversas entidades religiosas). O impacto causado pelo
texto, especialmente quanto à desoneração do Estado, levou à aprovação, no ano seguinte, de nova redação,
suprimindo a ausência de ônus aos cofres públicos, vedando o proselitismo e delegando aos sistemas de
educação a tarefa de estabelecer os conteúdos e as qualificações profissionais exigidas, desde que ouvida
entidade civil específica. CURY, Carlos Roberto Jamil. Ensino religioso e escola pública: o retorno de uma
polêmica recorrente. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 27, p.183-191, set./out. /nov./dez.,
2004. FISCHMANN, Roseli. Escolas... op. cit. Há inúmeras matérias na mídia impressa e eletrônica sobre o
ensino religioso nas escolas públicas e nas universidades. Por exemplo: MARTINS, Elisa; FRANÇA, Valéria.
Rosinha contra Darwin: Governo do Rio de Janeiro institui aulas que questionam a evolução das espécies.
Revista Época, Rio de Janeiro, n. 314, 24 maio, 2002. MINC, Carlos. Só faltam a Inquisição e o óleo fervente. O
Globo, Rio de Janeiro, 01 abr. 2005. PEREIRA, Aldo. Subversão teocrática. Folha de São Paulo, São Paulo 04
dez. 2006. FISCHMAN, Roseli. Ameaça ao Estado laico. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 nov. 2006. Editorial.
Religião e Estado. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 maio 2004.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.11-57, ago./set., 2007 23


municipais; outro, à definição dos requisitos para a contratação de professores e ao caráter
confessional da disciplina de ensino religioso nas escolas públicas.

4.1 A leitura diária da Bíblia

Em 2002, no Município mineiro de Governador Valadares, foi editada lei instituindo a


obrigatoriedade da leitura diária de, pelo menos, um versículo do texto bíblico nas escolas
públicas municipais. O Prefeito ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade, alegando vício
material em face da Constituição Estadual e também ilegalidade, em razão do disposto na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Em defesa do texto legal, a Câmara Municipal
acentuou “o caráter educativo e filosófico da norma” e negou qualquer afetação da liberdade
religiosa27.

O relator, que exarou o voto que venceu, considerou inconstitucional a lei, fundando sua
conclusão na facultatividade do ensino religioso e nos princípios da legalidade, da liberdade
de manifestação do pensamento e das liberdades de religião, crença e culto. Segundo ele, a
leitura da Bíblia, fora da disciplina específica - cuja matrícula é facultativa -, atingiria
indiscriminadamente os estudantes, impedindo-os de optar pelo ensino religioso. Dois
desembargadores que acompanharam o voto salientaram o caráter laico e leigo do Estado
brasileiro. Um terceiro, além de frisar a separação entre Estado e Igreja no Brasil, ventilou a
existência do pluralismo religioso28.

Houve voto divergente, nos seguintes termos:

A leitura da Bíblia, como fonte de cultura religiosa, não é desrespeito à liberdade. Proporciona
acesso de leitura de boa qualidade e cria hábito diário que se deve prestigiar.

A Bíblia não é, estritamente, livro religioso. É livro histórico, manancial de ricas tradições, motivo
bom para se abrir e desenvolver a capacidade de diálogo, de argumentação e de dialética.

O versículo é um trecho simples e pequeno, que não ocupará maior tempo dos alunos29.

Em período posterior ao da coleta de dados dessa pesquisa, tomou-se conhecimento do


deslinde de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em tudo similar à ora descrita. O
resultado reverberou na mídia do sul do país, por isso será relatado. Lei do Município de
Entre-Ijuís estabeleceu a obrigatoriedade da leitura de um trecho bíblico diariamente nas
escolas públicas municipais. O Procurador Geral de Justiça ajuizou a ação alegando que a
lei feria os princípios da igualdade e da liberdade religiosa. O Tribunal, por unanimidade, em
voto que não excede uma lauda, optou pela procedência do pedido:

Na medida em que, por exemplo, no texto legal impugnado, deixa de ser garantida a leitura do
Tora ou do Corão, ou não é organizado calendário para que no decorrer do ano letivo municipal
os alunos participem de leituras destes ou de outros textos religiosos, por evidente, há

27 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.0000.00.33319-4/000(1).


Relator: Schalcher Ventura. Belo Horizonte 13 ago 2003. Disponível em: www.tjmg.gov.br. Acesso em: maio
2006.

28 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.0000.00.33319-4/000(1).


Cit. Votos dos Desembargadores Luiz Carlos Biasutti, Célio César Paduani e Francisco Figueiredo.

29 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.0000.00.33319-4/000(1).


Cit. Voto do Desembargador Almeida Melo, ao qual aderiram outros dois desembargadores.

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privilegiamento de uma religião e resulta violado o princípio constitucional de liberdade de crença
e que deve ser observado também no Município de Entre-Ijuís30.

Com argumentos algo distintos em casos análogos, os dois Tribunais chegaram ao mesmo
resultado. Em assunto paralelo, a Suprema Corte dos EUA obteve resposta análoga31.
Entretanto, no julgado mineiro resta implícita a idéia de que a leitura da Bíblia pode ser
adotada nas aulas de ensino religioso, enquanto o riograndense pavimentou a via para o
debate acerca da igualdade também nas aulas de ensino religioso.

4.2 Ensino religioso e escolas públicas: uma combinação polêmica

A espinhosa questão do caráter do ensino religioso nas escolas públicas e das qualificações
profissionais exigidas foi discutida em Representação por Inconstitucionalidade no TJRJ.
Estava em liça lei estadual que adotou o modelo confessional para o ensino religioso,
determinou que a disciplina seria ministrada por profissionais registrados no MEC
devidamente credenciados por autoridades religiosas e que caberia às autoridades religiosas
definir os conteúdos a serem ministrados. A lei autorizou a abertura de concurso público
para contratação de professores de ensino religioso32.

Atacando a constitucionalidade da lei, o então Deputado estadual Carlos Minc sustentou,


quanto ao aspecto material, que a opção pelo confessionalismo abre portas à ocorrência do
proselitismo e dificulta a promoção da tolerância religiosa, pois exige separação dos
estudantes consoante sua afiliação. Segundo ele, o ensino deveria ser, pelo menos,
ecumênico, hipótese que ficaria excluída com o confessionalismo. Quanto à formação dos
professores e ao estabelecimento dos conteúdos, ele atacou a participação de autoridades
religiosas, pois, como existem agremiações que não possuem organização hierárquica,
haveria lesão ao princípio da igualdade. Foi defendida a inconstitucionalidade formal da
previsão de concurso público33.

30 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 70017748831. Relator:
Paulo Augusto Monte Lopes. Porto Alegre, 05 fev. 2007. Disponível em: www.tj.rs.gov.br. Acesso em:
25/03/2007.

31 Ver supra, nota nº29.

32 RIO DE JANEIRO. Assembléia Legislativa. Lei nº3459/2000. Disponível em: www.alerj.gov.br Acesso em: jun.
2006.

33 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Representação por Inconstitucionalidade nº141/2000. Disponível


em: www.tj.rj.gov.br. Acesso em: maio 2006. Vale lembrar que a redação original do art.33 da LDB referia-se ao
ensino religioso confessional e ao interconfessional. O texto ora vigente não traz tal definição e exige que os
conteúdos e a qualificação dos professores sejam fixados pelos respectivos sistemas de ensino, ouvida entidade
civil composta pelas diferentes denominações religiosas. O Pleno do Conselho Nacional de Educação apreciou,
em parecer homologado pelo Ministro da Educação, o antigo art.33, concluindo que o ensino poderia ser
confessional, ou seja, ministrado por lideranças religiosas na escola, durante o horário letivo, desde que sem
ônus para os cofres públicos. O pleno entendeu que, em razão do art.19 da CF/88, não poderia o Estado ser
onerado por tais aulas. Com a nova redação ofertada ao art.33, mais uma vez manifestou-se o CNE, que
considerou não ser de sua alçada manifestar-se sobre os conteúdos, eis que especificamente atribuídos os
diferentes sistemas de ensino, o mesmo valendo, dentro dos parâmetros gerais, para a qualificação dos
educadores. O excerto final do parecer, além de curioso, ilustra a magnitude do problema: “Esta parece ser,
realmente, a questão crucial: a imperiosa necessidade, por parte do Estado, de não interferir e portanto não se
manifestar sobre qual o conteúdo ou a validade desta ou daquela posição religiosa e, muito menos, de decidir
sobre o caráter mais ou menos ecumênico de conteúdos propostos. Menos ainda deve ser colocado na posição
de arbitrar quando, optando-se por uma posição ecumênica, diferentes seitas ou igrejas contestem os referidos
conteúdos da perspectiva de sua posição religiosa, ou argumentem que elas não estão contempladas na

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As procuradorias do Estado e de Justiça pronunciaram-se pela improcedência do pedido no
aspecto material. Em decisão unânime, os desembargadores rejeitaram as alegações de
inconstitucionalidade material. Em primeiro lugar, destacaram que a lei proíbe o proselitismo
e interpretaram a palavra confessional em sentido não-técnico, entendendo que ela não
exclui o ecumenismo, compreendido como um modo de convivência interconfessional. Em
segundo lugar, rejeitaram uma interpretação estrita da palavra autoridade, asseverando que
as agremiações que não possuem organização hierárquica formal certamente possuem
alguma estruturação que permita identificar a autoridade. Os desembargadores silenciaram
acerca da exigência de credenciamento do profissional por instituição mantida pela ordem
religiosa. A autorização de concurso público foi reputada, à unanimidade, formalmente
inconstitucional34.

Esse julgado fluminense traz à tona as limitações institucionais e democráticas da jurisdição


constitucional, sobretudo quanto ao controle abstrato. Se bem percebida, a contenda exigia
dos julgadores uma manifestação sobre a elaboração de currículos escolares e a
estruturação de disciplinas, tomadas in abstracto diante dos enunciados normativos
constitucionais estaduais. Ao passo que os especialistas em educação demonstram cruciais
diferenças entre o ensino religioso confessional, interconfessional e não-confessional, os
julgadores consideraram a palavra confessional em um contexto léxico simplista
(desvinculado, até mesmo, de sentidos que lhe são conferidos juridicamente) e declararam a
constitucionalidade da norma. Esse fato demonstra um absoluto distanciamento dos
problemas reais que estavam em pauta, pois toda a arquitetura legal foi desenhada segundo
uma leitura técnica da qual não seria possível desvencilhar-se. A ausência de maiores
discussões sobre a aplicação da lei sugere que os magistrados não estavam plenamente
cientes do impacto e dos desdobramentos futuros da sua decisão, o que leva a crer que os
fundamentos adotados possam ser tarjados de subminimalistas35.

Logo após o julgamento, foi realizada Audiência Pública na ALERJ e apresentado o Projeto
de Lei nº1840/2000, de autoria do Deputado Carlos Minc, arquivado ao fim da legislatura.
Em 2003, o projeto foi desarquivado e aprovado no mesmo dia do lançamento do edital para
contratação de 500 professores de ensino religioso. Houve atos públicos de protesto ao
concurso e em favor da aprovação do Projeto de Lei nº1840/2000. A despeito dos protestos,
a então Governadora vetou integralmente o texto36. O veto não foi derrubado. O concurso

programação. Por estas razões, parece-nos impossível, sem ferir a necessária independência entre Igreja e
Estado, estabelecer uma orientação nacional uniforme que seria necessária para a observância dos processos
atuais de autorização e reconhecimento”. BRASIL. MEC. CNE. Parecer nº05/97. BRASIL. MEC. CNE. Parecer
97/99. Disponíveis em: http://portal.mec.gov.br/cne. Acesso em: dez.2006.

34 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Representação por Inconstitucionalidade nº141/2000. Cit.

35 Adota-se o conceito cunhado por Cass Sunstein. As decisões subminimalistas estão muito próximas às
imotivadas, uma vez que, perfunctórias e pouco transparentes, oferecem parca justificação ou guia para o futuro.
SUNSTEIN, Cass R. One case... op. cit., p.10. É importante cotejar essa decisão com a proferida pelo Tribunal
Constitucional português sobre a regulamentação do ensino religioso em escolas públicas. O caso não é idêntico,
mas os temas levantados lançam luzes sobre o assunto. Ver supra, nota nº29.

36 Em pesquisa que acompanhou, por amostragem, os primeiros dois anos da implementação do


confessionalismo nas escolas estaduais fluminenses, Ana Maria Cavaliere, apreciando as razões do veto,
concluiu que governo estadual adotou uma lógica que demonstra uma defesa da religião como parte necessária
da formação humana, sobretudo no que toca à construção de valores como solidariedade, amor, amizade,
repúdio à violência. Desse modo, tais valores somente seriam desenvolvidos por vias transcendentais, levando a
crer que quem é educado sem religião seria carente de algo. CAVALIERE, Ana Maria. Quando o Estado pede
socorro à religião. Disponível em: www.educacao.ufrj.br/revista/indice/numero2/artigos/amcavaliere.pdf. Acesso
em: jan. 2007.

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foi realizado e vigora o sistema confessional37. Porém, a Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação ajuizou ADIn contra a Lei nº3459/2000, cujo mérito ainda não
foi decidido pelo STF.

5 Feriados religiosos

Existem diversos feriados religiosos no Brasil, uns nacionais, outros locais, uns mono-
religiosos, outros, pluri-religiosos. Algumas datas já assumiram uma importância secular,
especialmente comercial, como é o caso do Natal e da Páscoa. Outras seguem
exclusivamente religiosas. Até poucos anos, a presença de feriados religiosos em uma
República laica não causava maiores controvérsias. No entanto, no dia 12 de outubro de
1995, feriado destinado ao culto mono-religioso de Nossa Senhora Aparecida, considerada
por força de lei federal a “padroeira do Brasil”38, um pastor da Igreja Universal do Reino de
Deus causou furor ao atacar em rede nacional a imagem da santa católica, mostrando sua
indignação com a data. O episódio dividiu opiniões. Muitos protestantes e evangélicos
assumiram sua desconformidade com o feriado. Houve, ainda, manifestações não
vinculadas a credos que defendiam a neutralidade estatal em matéria religiosa e a possível
violação de direitos dos não-católicos39.

Antes de adentrar na análise de julgados sobre os feriados religiosos, convém redigir


algumas linhas sobre o trato normativo da matéria. A Constituição Federal não possui
enunciado endereçado à instituição de feriados, possuindo-o tão-só quanto às datas
comemorativas. Sobre feriados, há a Lei nº9.093/95, com sutis alterações posteriores.
Conforme a lei, serão feriados civis: a) os fixados em lei federal; b) a data magna de cada
estado (lei estadual); c) data relacionada ao centenário de fundação dos municípios (lei
municipal). Acerca dos feriados religiosos, dispõe o art. 2º: “São feriados religiosos os dias
de guarda, declarados em lei municipal, de acordo com a tradição local e em número não
superior a quatro, neste incluída a Sexta-Feira da Paixão”40.

No levantamento de dados, identificaram-se nove julgados sobre feriados religiosos. Um


deles dirige-se ao problema da combinação entre laicidade estatal e o perfil religioso de um
feriado. Em todos os outros, esse debate foi apenas oblíquo, porque se discutia a
constitucionalidade/legalidade de leis municipais ou estaduais que adotavam feriados não-
religiosos. Reputou-se necessário estudá-los aqui pois, mesmo por via avessa, eles

37 Segundo informações do Jornal O Estado de São Paulo, disponíveis no site Universia, dos 500 candidatos
aprovados, 63,6% são católicos, 26,4% são evangélicos e 2,6% pertencem a outras denominações religiosas.
(Clipping, 31/05/2004). Disponível em: www.universia.com.br Acesso em: dez.2006.

38 Em 1980, a Lei nº6.802 instituiu o feriado de Nossa Senhora Aparecida, como dia de culto público e oficial à
padroeira do Brasil. A Lei nº10.607/02, alterando expressamente o art.1º da Lei nº662/49 e revogando a Lei
nº1.266/50, estabeleceu os feriados nacionais. Dentre eles, não consta o dia 12 de outubro. Na Câmara dos
Deputados, tramita projeto incluindo a data nos feriados arrolados pela Lei nº10.607/02, sob a justificativa de que
teria o legislador cometido um equívoco ao exclui-la. Mesmo sem a aprovação desse projeto, a data continua
sendo, de fato, considerada um feriado nacional. BRASIL. Lei nº6.802/80. BRASIL, Lei nº10.607/02. Disponível
em: www.presidencia.gov.br/legislacao/. Acesso em: jan. 2007.

39 A título meramente exemplificativo, ver os textos do articulista da Folha de São Paulo, Walter Ceneviva:
CENEVIVA, Walter. Crença ofendida. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 out. 1998. CENEVIVA, Walter. Laico,
mas nem tanto. Cit.

40 BRASIL. Lei nº 9.093/95. (atualizada). Disponível em: www.presidencia.gov.br/legislacao/. Acesso em: jan.
2007.

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permitem extrair a posição dos tribunais sobre o equacionamento entre os feriados
religiosos, a laicidade estatal e a liberdade religiosa. É digno de nota que em sete, dentre
nove julgados, atacava-se a constitucionalidade do feriado de 20 de novembro, em
celebração a Zumbi dos Palmares.

5.1 O feriado Herói da Resistência...

Em 1995, foi aprovada lei do Município do Rio de Janeiro instituindo o feriado de 20 de


novembro. O Prefeito Municipal ajuizou Representação por Inconstitucionalidade, alegando
que a norma extrapolava os limites da competência municipal, por tratar de matéria
trabalhista, violando, por conseguinte, dispositivos da Constituição Estadual, um que
determina obediência à Constituição Federal e outro que reproduz, parcialmente, a
competência destinada aos Municípios. À época da aprovação da lei, não vigia a Lei
9.093/95, mas Decreto-Lei com similar redação, referido na inicial. Por essa razão, foi
sustentada também a inconstitucionalidade da lei municipal, pois o feriado não era religioso
e o Município já possuía quatro feriados decretados41.

O Órgão Especial pronunciou-se pela inconstitucionalidade da lei, vencidos oito


desembargadores, inclusive o relator. Segundo o voto vencedor, a lei invadia competências
da União. No entender da maioria dos julgadores, a competência para instituir feriados seria
concorrente, tendo a União traçado as diretrizes da suplementação, quais sejam,
competência para o Município estabeceler feriados religiosos em número não superior a
quatro. A matéria não foi reputada interesse local, pois Zumbi dos Palmares era Alagoano e
seus restos mortais foram expostos em Recife. A figura do guerreiro negro, à luz dos votos
vencedores, não guarda relação com a municipalidade, possuindo uma simbologia nacional.
No voto vencido, sustentou-se a falsidade da premissa de que a lei versaria sobre direito do
trabalho (competência privativa) e foi frisado que nem a Constituição Federal, nem a
Estadual prevêem competência para legislar sobre feriados (inexistência de competência
concorrente)42. Seria, pois, assunto de interesse local, cabendo à municipalidade, por seu
órgão democrático, decidir quais personalidades deseja homenagear43.

Foi interposto Recurso Extraordinário. Em decisão unânime, da lavra do Min. Marco Aurélio,
houve provimento do recurso por impossibilidade jurídica do pedido em representação por
inconstitucionalidade. Apresentando as razões, o Ministro referiu que não há dispositivo na
Constituição Estadual vedando ou regulando a instituição de feriados pelos Municípios. Por
isso, o julgado faria referência ou à Constituição da República (silente sobre o assunto) ou à
lei federal, extrapolando as fronteiras constitucionais do controle abstrato das leis municipais
pelos Tribunais de Justiça44. Negou que a matéria fosse de competência concorrente,

41 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Representação por Inconstitucionalidade nº63/95. Relator:


Martinho Campos. Disponível em: www.tj.rj.gov.br. Acesso em: jun. 2006.

42 Nessa linha argumentativa, a discrepância entre a lei municipal e a lei federal não poderia ser analisada em
sede de controle abstrato de constitucionalidade.

43 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Representação por Inconstitucionalidade nº63/95. Cit.

44 É necessário, porém, trazer à tona que o STF já admitiu hipóteses de ajuizamento de ação direta nos
Tribunais de Justiça de lei municipal por agredir dispositivo da Constituição Estadual que reproduz norma da
Constituição Federal: “Reclamação com fundamento na preservação da competência do Supremo Tribunal
Federal. Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei
municipal sob a alegação de ofensa a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos
constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados. Eficácia jurídica desses dispositivos
constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-membros. Admissão da propositura da ação

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situando-a no âmbito da autonomia municipal, como interesse da localidade. Quanto ao
caráter nacional da figura escolhida, escreveu:

Ora, na espécie dos autos, os representantes do povo do município do Estado do Rio de


Janeiro concluíram no sentido da homenagem a Zumbi e o fizeram a partir da atuação cívica
revelada pelo personagem que acabou por integrar a História no panteão que a Pátria deve
cultuar (...) Atuou o Município em via na qual surge a autonomia maior norteada por
conceitos ligados à conveniência e oportunidade. Os textos dos incisos I e II do artigo 358 da
Constituição do Estado não brecam a competência legislativa dos Municípios para instituírem, à
luz do critério de razoabilidade, feriados. Se o fizessem, aí, sim, seriam inconstitucionais ante
a autonomia municipal assegurada pela Constituição da República45.

Nem na decisão fluminense, nem no Supremo Tribunal houve referência à laicidade estatal,
tampouco foi ventilada a hipótese de inconstitucionalidade material (in casu, de não-
recepção) do Decreto-Lei estabelecendo diretrizes para os Municípios legislarem sobre
feriados. Porém, pode-se entender que a Lei nº9.093/95 é de constitucionalidade duvidosa,
haja vista ter o ministro relator considerado que a instituição de feriados pelos Municípios é
matéria de interesse local.

Em 2002, a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou lei instituindo um feriado


estadual no dia 20 de novembro. A Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro
(FIRJAN) ajuizou representação por inconstitucionalidade, alegando invasão de esfera de
competência concorrente da União, cujas diretrizes estão fixadas na Lei nº9.093/95.
Segundo o princípio geral, cabe ao Estado decretar feriado apenas em sua data magna.
Mencionando o julgado do S.T.F e a inexistência de hierarquia entre as leis federais e as
estaduais, o Órgão Especial do TJRJ declarou a constitucionalidade da lei estadual,
entendendo que ela suplementou devidamente a lei federal46. Atualmente, a data magna do
Estado do Rio de Janeiro é o dia 20 de novembro, em homenagem a Zumbi dos Palmares.

No Rio Grande do Sul, os Municípios de Alvorada, Pelotas, Porto Alegre e Santa Maria
instituíram o feriado do dia 20 de novembro. A constitucionalidade de cada uma das leis
municipais foi atacada, tanto pela via difusa quanto pela via direta. Serão estudadas aqui
apenas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade, de forma conjunta, apesar dos percalços
que as generalizações podem oferecer. Houve cobertura dos casos pela imprensa e alguns
veículos de comunicação associaram o ataque às leis e a postura do TJRS ao preconceito

direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com possibilidade de recurso extraordinário se
a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância
obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl. 383.
Min. Moreira Alves. 11 jun. 1992. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: jan.2007.

45 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 251470-5 -RJ. Pleno. Relator: Min. Marco Aurélio Mello. Disponível
em: www.stf.gov.br. Acesso em: jan.2007. [sem grifos no original]

46 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Representação por Inconstitucionalidade nº146/2002. Relator:


Des. Sergio Cavalieri Filho. Disponível em: www.tj.rj.gov.br. Acesso em: jan.2007.

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racial47. O Movimento Negro Unificado participou como amicus curiae, quando da decisão
sobre a lei porto-alegrense48.

O Tribunal Pleno do TJRS considerou as leis municipais inconstitucionais. De início, em


cada decisão, foi ressaltado que não estava em apreço o merecimento de um feriado em
homenagem a Zumbi ou à celebração da “consciência negra”, mas apenas questões-técnico
jurídicas. Os votos vencedores negaram a instituição de feriados como uma competência
municipal, entendendo tratar-se de competência privativa da União, por ser matéria de direito
do Trabalho e de direito Civil. Desta feita, consideraram violados os arts. 8º e 13 da
Constituição Estadual. Além disso, trouxeram à tona a Lei nº9.093/95, compreendida como
um “bloqueio de competência” devidamente formulado pela União. Assim, a União teria
permitido aos Municípios legislar em matéria de sua competência privativa, dentro dos
limites por ela delimitados, quais sejam, a religiosidade do feriado e o número não superior
a quatro. Citando expressamente a obra “Jurisdição Constitucional”, de Gilmar Ferreira
Mendes, os votos vencedores reputaram ser possível empregar a lei federal como parâmetro
de aferição de constitucionalidade, admitindo o exame de um conflito oblíquo das leis
municipais com a Constituição Federal e com a Estadual. Por essas razões, o caráter não
religioso do feriado e, em algumas ações, a pré-existência de quatro feriados contribuíram
para a declaração de inconstitucionalidade das leis49. Cumpre destacar que em um dos
votos o feriado de 20 de novembro foi tarjado de uma data com “conotação política”, em um
país onde se conhece a harmonia social e racial50.

Em cada julgado, houve dois votos vencidos. Em primeiro lugar, os votos apegaram-se ao
precedente do Supremo Tribunal Federal, optando pela impossibilidade jurídica do pedido.
Por serem vencidos nesse ponto, adentraram no mérito. Foi no voto do Desembargador
Ranolfo Vieira que a laicidade do Estado emergiu:

Ocorre que o Estado brasileiro é laico. Nessas condições, a referência a feriados religiosos, dias
de guarda, não tem sentido. Não encontra guarida nos princípios fundamentais insculpidos na
Constituição. Há de se ter que a Lei Federal atribuiu aos Municípios a instituição de quatro

47 Informações constantes nos acórdãos. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. ADI nº70007645369.
Relstor: Des. Paulo Augusto Montes Lopes. Porto Alegre, 19 abr., 2004. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de
Justiça. ADI nº70007645443. Relator: Des. Vasco Della Giustina. Porto Alegre, 07 jun 2004. RIO GRANDE DO
SUL. Tribunal de Justiça. ADI nº70007611650. Relator Des. João Carlos Branco Cardoso. 18/10/2004. RIO
GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. ADI nº70010191815. Relator: Des. Alfredo Guilherme Englert. Porto
Alegre, 21 mar. 2005. Acórdãos disponíveis em: www.tj.rs.gov.br. Acesso em: maio 2006.

48 O Tribunal aceitou a sustentação oral por parte do amicus curiae. O entendimento diverge daquele do STF.
“Ação direta de inconstitucionalidade. Amicus curiae. Sustentação oral: descabimento. Lei n. 9.869/99, art. 7º, §
2º." BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº2.223-MC. Relator: Min. Maurício Corrêa. Brasília, 10 out. 2002.
Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: set.2004.

49 O estabelecimento do número de feriados foi uma preocupação para os desembargadores, havendo expressa
referência a um possível descontrole na criação de feriados pelos Municípios brasileiros. O teto, quatro feriados,
foi diversas vezes mencionado como razoável, palavra empregada com clara conotação de bom senso. O
Município de Porto Alegre não possuía quatro feriados.

50 “Nunca vi negros comemorando uma data religiosa exclusivamente sua. (...) A lei municipal em referência visa
a estabelecer o Dia da Consciência Negra, como fruto de descoberta ideológica, a título de feriado religioso. Para
nossa sorte, não temos, sob o prisma religioso, um dia de Consciência Negra, um dia de Consciência Branca e
um dia de Consciência Amarela. (...) Nós, no Brasil, estamos muito longe disso, porque conhecemos aqui a
harmonia social e racial. Temos os nossos problemas sim, mas não é pela radicalização que vamos resolvê-los,
nem instituindo feriado religioso de cunho racial”. Voto do Desembargador Aguiar Vieira. Sua posição quanto ao
fenômeno religioso no Brasil foi isolada. RIO GRANDE DO SUL. TJRS. ADI nº70007611650.

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feriados anuais, a serem declarados na conformidade com as tradições locais, ainda que essas
não se enquadrem, estritamente, no conceito corrente e tradicional de dia de guarda51.

Respondendo a essa manifestação, o desembargador Araken de Assis expressou que “o


Estado brasileiro é laico, mas não é ateu”. Nessa esteira, em diversos votos foi asseverado
que a expressão “feriados religiosos” da Lei nº9.093/95 não deveria receber a interpretação
expansiva proposta pelo Desembargador Ranolfo Vieira. Ademais, a locução foi tarjada de
razoável, em um nítido sentido de bom senso52.

Vencido em uma das ADIns, o desembargador Rui Portanova salientou a força do


precedente estabelecido pelo STF, requerendo a adesão do TJRS. Também chamou a
atenção para a deferência ao órgão legiferante e os limites da jurisdição: “Ora, o legislador
municipal, do alto da sua independência, está dentro do limite para fixar feriados. O Poder
Judiciário não tem o poder de adentrar no mérito do ato discricionário legislativo para
declarar a inconstitucionalidade”53. Em seu entender, mesmo que a municipalidade já
possuísse quatro feriados, um novo poderia ser estabelecido.

Os julgados gaúchos carregam em si diversos elementos de interesse. Dois pontos técnicos


merecem algumas palavras, pois deixam indagações em aberto. Em primeiro lugar, se a
competência para fixar feriados for considerada privativa da União, como admitir sua
delegação, por lei ordinária, aos Municípios, tendo em vista o disposto no art.22, parágrafo
único, da Constituição Federal? Em segundo lugar, se a lei federal estabelece o limite de
quatro feriados, por que é inválida a lei local nova, que institui o quinto feriado, e não as leis
anteriores? Por que não se aplica o critério de solução de antinomias lei posterior revoga lei
anterior?

Sob o ponto de vista da jurisdição constitucional, há dois elementos a pôr em relevo. O


primeiro é o papel do precedente na jurisdição constitucional brasileira. Sabe-se que a
decisão do TJRJ, formulada no âmbito de incidência da Constituição Estadual, não possui
qualquer vinculatividade quanto aos demais Tribunais dos Estados, atuando somente como
fonte de apoio ou de inspiração. Porém, o Pleno do STF, em sede de extraordinário, já havia
se manifestado à unanimidade sobre idêntica ADIn quando o TJRS decidiu as quatro ações
ora descritas. Para além de reputar a competência para instituir feriados como municipal, o
STF considerou que a ADIn continha pedido juridicamente impossível, pois versava sobre
conflito entre leis, expressamente afirmando que a Constituição Federal silencia sobre a
matéria. Ainda que não seja formalmente vinculante, é de se destacar que o extraordinário
possui também um certo viés objetivo54, especialmente quando interposto em face de

51 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. ADI nº70007645369. Cit. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de
Justiça. ADI nº70007645443. Cit. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. ADI nº70007611650. Cit. RIO
GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. ADI nº70010191815. Cit.

52 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. ADI nº70007645369. Cit.

53 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. ADI nº70007611650. Cit.

54 Nos últimos anos, o STF tem discutido a possibilidade de o recurso extraordinário receber um certo sentido
objetivo. O debate iniciou-se ligado às decisões proferidas pelos Juizados Especiais Federais. Sobre o tema:
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MC RE 376.852-2/SC. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília, 27 mar. 2003.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AC MC 272-9/RJ. Relator: Min. Ellen Gracie. Brasília, 06 out. 2004.
Disponíveis em: www.stf.gov.br. Acesso em: fev.2007. No segundo julgado assim se manifestou o Min. Gilmar
Mendes: “É o fenômeno que temos chamado de “relativa objetivação do recurso extraordinário”, que reputo
extremamente alvissareira - fenômeno já verificado no recurso de amparo espanhol, na
“Verfassungsbeschwerde” alemã”.

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decisão em ação direta de inconstitucionalidade. A possibilidade de o Tribunal estadual
virtualmente ignorar ou apenas tergiversar sobre decisões prévias do STF sugere a fluidez
do controle de constitucionalidade das leis no Brasil, bem como atesta inúmeras das críticas
endereçadas ao controle, como a insegurança jurídica, a morosidade, os altos custos
processuais, a disparidade decisória e, in casu, a baixa deferência à decisão do órgão
democraticamente eleito. É claro que há de se levar em conta a independência judicial, tanto
quanto o perigo de engessamento das decisões, mas, nas ações examinadas, deve-se
atentar para o fato de os magistrados estarem a interpretar dispositivos da Constituição
Estadual que ou determinam o cumprimento da Federal, ou reproduzem seu texto, isto é,
avaliavam a lei municipal, ao fundo, à luz da Constituição Federal, em caminho diverso
daquele já apontado pelo Pleno do STF55.

Em segundo lugar, uma das técnicas de interpretação utilizada foi a leitura da Constituição
Federal a partir da legislação. É, efetivamente, um modo complementar de se avaliar a
constitucionalidade, que possui o mérito de demonstrar vênia pelas escolhas do legislador
democraticamente eleito. Porém, em algumas matérias a técnica pode se mostrar dúbia. É
justamente o que acontece quando o que está em jogo é um conflito de competências
federativas, ressalvada em grande medida a competência concorrente. Se a repartição de
competências for interpretada em face da lei federal, as competências municipais e
estaduais podem ficar à sua mercê, pois a querela pode ser centrar-se exatamente na
possível invasão das competências dos entes locais ou regionais pela União.

5.2 Um feriado evangélico: a outra face

O último caso a ser visto é bastante diferente dos até aqui elencados. Nele, o debate foi
dirigido ao caráter religioso de um feriado. Foi uma ação de indenização por danos morais
ajuizada por um fiel católico contra o feriado estabelecido em lei distrital. O autor sentiu-se
“envergonhado, humilhado, desmoralizado” pela instituição de um feriado “discriminatório”, o
“dia do evangélico”. Ele sustentou a inconstitucionalidade da lei, por ferir o princípio da
igualdade (art. 5º, CF/88) e a vedação de alianças entre os entes federados e as
agremiações religiosas (art.19, I CF/88). Argumentou que a lei distrital contrariava o disposto
na Lei 9.459/97, que proíbe a discriminação religiosa56.

O desembargador relator, seguido pelos demais, considerou que estava dentro da esfera de
competência distrital legislar sobre feriados, mesmo os religiosos, que não recaem nas
vedações federativas estipuladas no art.19, I da Constituição Federal. Negou que a
instituição de um feriado religioso, cívico ou cultural configure discriminação ou preconceito,
afastando de plano a incidência de Lei nº9.459/97. Quanto ao princípio da igualdade, referiu:

Registre-se que da mesma maneira que se institui, por lei, no âmbito do Distrito Federal, feriado
no dia 30 de novembro, data comemorativa do dia do evangélico, vários são os outros dias do
ano, por tradição religiosa católica, considerados feriados nacionais, em comemoração a algum
santo, a exemplo da Semana Santa, Corpus Christi, Nossa Senhora Aparecida, para não dizer
dos feriados municipais em comemoração ao dia da santa ou santo padroeiro da cidade. (...) São
dias dedicados à oração, à peregrinação e reflexão dos católicos, mas que os credos de outras
religiões, a exemplo dos evangélicos, não podem sentir constrangimento, vergonha, humilhação

55 Além da presunção de constitucionalidade, as leis municipais contavam com um precedente do STF a seu
favor. Não se parte do pressuposto de que os Tribunais devam operar uma genuflexão ao precedente, mas, se
ele não for seguido, é necessário discriminar os motivos, salientando as diferenças e a não-aplicabilidade ao
caso, em nome da segurança jurídica e do princípio da igualdade.

56 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 2001.01.1.087576-6. Relator: Des. Jair Soares.
Quarta Turma Cível. Brasília, 05 nov. 2001. Disponível em: www.tjdft.gov.br. Acesso em:jul. 2006.

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ou que estão sendo desmoralizados, porque obrigados a escutar referências a respeito da data
comemorativa. O mínimo que podem fazer - e fazem - é aproveitar para descanso físico (...).
Vislumbrar, no entanto, em situações que tal preconceito ou discriminação é emprestar razão à
intolerância religiosa, praga que aqui felizmente não temos, mas que, ao longo da história, tem
feito muitas vítimas e, lamentavelmente, continua fazendo, como ocorre na Irlanda do Norte57.

Em todos os julgados, percebe-se claramente que os magistrados viram com naturalidade a


instituição de um feriado religioso por um ente federado, afirmando ou permitindo entender
que ela não está incluída na vedação federativa que consubstancia a laicidade do Estado
brasileiro, tampouco lesa o direito à liberdade religiosa. Em reforço à posição, foram citados
exemplos de inúmeros feriados religiosos - instituídos, no mais das vezes, por lei federal -
bem como de outros pontos de flexibilidade, como a existência de menção a Deus nas notas
de Real.

6 Dias de guarda, acesso a cargos públicos e direito à educação

Domingo é dia de repouso. A legislação brasileira reconhece-o expressamente, inclusive em


sede constitucional. A origem do domingo como dia de repouso é religiosa, pois era o dia de
guarda dos católicos, elaboradores dos calendários ocidentais. Com o tempo, as exigências
de guarda foram relativizadas em grande parte das religiões e o domingo perdeu o elo com a
transcendentalidade, assumindo um perfil secular. Porém, muitas agremiações religiosas
mantêm como forma de culto uma rígida observância do dia de guarda, que pode ser o
domingo, a sexta-feira ou o período sabático (entre os pores-do-sol de sexta-feira e de
sábado). É um momento da semana destinado ao culto da divindade e a atividades
religiosas, aceitas também condutas caritativas. Durante a guarda, ao fiel é vedado
trabalhar, dedicar-se a atividades lucrativas e, em certos casos, realizar labores domésticos.
Em alguns credos, é também proibido incentivar o trabalho alheio ou com ele lucrar58.

A adoção de um dia de guarda de observância estrita, diverso do domingo, tem o condão de


gerar inúmeras restrições, como a redução do acesso ao mercado de trabalho, em razão do
horário exigido, impossibilidade de acesso a cargos públicos ou à educação pública, em
virtude de certames, atividades acadêmicas e provas realizadas durante o período de
guarda, entre outros. Diversos tribunais estrangeiros já se depararam com pedidos de
proteção do período de guarda, especialmente em face de atos da administração pública59.

57 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 2001.01.1.087576-6. Cit.

58 Em muitas agremiações são aceitos os trabalhos de emergência, como o hospitalar, desde que o fiel não se
locuplete com os valores obtidos, doando-os aos necessitados. A noção de incentivo ao trabalho alheio no
período de guarda inclui, por exemplo, fazer compras, freqüentar restaurantes, utilizar transporte público, manter
estabelecimento próprio em funcionamento, etc.

59 Nos Estados Unidos, a Suprema Corte deslindou um caso de uma sabatista que não conseguira receber o
seguro-desemprego, pois recusara uma oferta de trabalho em razão do Sábado. A Corte julgou que a denegação
do seguro-desemprego obliterava indevidamente a manifestação das convicções religiosas da sabatista. Sherbert
v. Verner 374 U.S. 398 (1963). COHEN, op. cit., p.560 e ss. No Canadá houve interessante discussão sobre uma
lei da província Ontário que determinava o fechamento de estabelecimentos comerciais de pequeno porte aos
domingos, a fim de garantir o repouso dos empregados. Havia uma exceção para os sabatistas, que poderiam
fechar aos sábados e abrir aos domingos. Segundo a Corte, a lei atendeu a propósitos seculares ao estabelecer
o domingo como dia de repouso e buscou neutralizar os impactos adversos, ou seja, os ônus criados aos
sabatistas. A lei foi considerada proporcional, pois conseguiu equalizar os direitos dos trabalhadores e dos fiéis.
Mas a Corte não considerou que a lei violava direitos daqueles que pretendiam abrir seus estabelecimentos
apenas por razões econômicas. CANADA. R. v. Edwards Books and Art. Ltd., (1986) 2 S.C.R. 713. Disponível
em: http://www.canlii.org/ca/cas/scc/1986/1986scc75.html. Acesso em: jul.2006. Na Corte Européia de Direitos

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Buscando contemporizar a situação, os sabatistas, representados sobretudo pelos membros
da Igreja Adventista do Sétimo Dia, angariaram aprovação de leis estaduais que visam a
tutelar seus períodos de guarda. Como exemplos, podem ser citados Bahia, Santa Catarina,
Rio Grande do Sul e São Paulo. Em síntese, as leis vedam a realização de concursos
públicos e de avaliações funcionais durante os períodos de guarda. Em caso de necessidade
de realização nesses momentos, as leis prevêem uma alternativa, a incomunicabilidade dos
candidatos que alegarem, antecipada e comprovadamente, o pertencimento a grupo
religioso com dia de guarda. As mesmas disposições são endereçadas aos vestibulares.
Quanto ao horário de trabalho dos servidores públicos, há previsão de compensação de
horas. As leis estabelecem, ainda, sistemas de compensação de ausências e de justificativa
para faltas em dias de avaliação nas escolas e universidades das redes pública e privada.

No levantamento de dados realizado nos Tribunais brasileiros, o pleito referente ao dia de


guarda foi um dos que mais ocorrências apresentou, totalizando 29 julgados. Existem dois
problemas essenciais: a) realização de concursos públicos e de concursos vestibulares
durante o período de guarda; b) freqüência a cursos de formação e a aulas durante o
período de guarda. Dois dos casos apresentaram fatos bastantes diversos, que versavam a
respeito: a) da definição do horário de abertura de uma loja em shopping center; b) da
reposição de calendário escolar aos sábados. Como será visto, os principais problemas
envolvem uma complexa trama de direitos fundamentais e de princípios constitucionais.
Como exemplo, quanto aos concursos públicos, aparecem, de um lado, o direito de acesso
aos cargos públicos, à igualdade, à liberdade de crença e de culto e à objeção de
consciência. De outro lado, afirma-se a laicidade estatal, a igualdade, a impessoalidade dos
atos da administração pública e a vinculação editalícia. Quanto aos certames para ingresso
em instituições públicas de ensino, os mesmos direitos e princípios são invocados,
substituindo-se, apenas, o direito de acesso aos cargos públicos pelo direito à educação.

Apenas 10,3% do total de julgados são de Tribunais Superiores, como se infere da


ilustração:

STF

STJ
6,9%
3,4% TRFs

TJs

37,9%

51,7%

Humanos tem-se o caso Kosteski v. The Former Yugoslav Republic of Macedonia, que versou sobre o
comparecimento ao trabalho e a observância dos feriados religiosos muçulmanos. Na antiga Iuguslávia havia
feriados religiosos de observância geral e outros que somente poderiam ser gozados pelos fiéis do credo
correspondente à data. No caso, a CEDH não reconheceu violações aos direitos do peticionário, que fora punido
por faltar ao trabalho nos feriados muçulmanos. O rumo decisório, entretanto, foi sedimentado na recusa do
peticionário em fazer prova de que era muçulmano e no levantamento de indícios, em sede doméstica, de que ele
não pertencia ao grupo religioso que alegava. Disponível em: http://www.echr.coe.int/echr. Acesso em: jun.2006.

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Analisar-se-ão, primeiramente, os julgados dos Tribunais Superiores e, na seqüência, os dos
Tribunais Federais e os dos Tribunais Estaduais. A ordem não será cronológica, fator de
influência, pois muitos julgados são anteriores aos decididos pelo STF e pelo STJ.

6.1 Supremo Tribunal Federal

Em 2002, o Ministro Marco Aurélio Mello indeferiu um pedido liminar da União para sustar a
segurança concedida a um sabatista para a realização de concurso público. Na
fundamentação, reputou de menor extensão qualquer prejuízo, por tratar-se de um único
candidato, considerou cabível a incomunicabilidade e frisou que a única pessoa a correr
riscos era o próprio impetrante60. Posteriormente, a União comunicou a perda do objeto.

No ano seguinte, o STF foi provocado a manifestar-se sobre a matéria, pois a lei do Rio
Grande do Sul protetiva dos sabatistas foi alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade,
proposta pelo Governador do Estado. Como fundamento, foram apontados diversos vícios
formais. Sobre a constitucionalidade material, sustentou-se que o enunciado normativo
violava os princípios da igualdade e da laicidade do Estado, por submetê-lo ao interesse de
uma religião. Também foi tarjada de materialmente inconstitucional por criar indevidamente
obrigações para entidades privadas (universidades e escolas). Asseverou-se, ainda, que da
objeção de consciência surgem implicações ao objetor, que deve com elas arcar. A
Assembléia Legislativa, prestando informações, defendeu a constitucionalidade da lei, em
especial por tratar-se da tutela de Direitos Fundamentais assegurados pela Constituição e
por Pactos e Declarações internacionais de Direitos Humanos. A lei seria uma salvaguarda
contra a imposição de atos por entes administrativos e privados que obrigam os fiéis a
abdicar da sua religião61.

O relator, em voto seguido por todos os demais ministros, declarou a inconstitucionalidade


formal da lei, por: a) ferir a iniciativa privativa do Poder Executivo (concursos públicos e
regime jurídico dos servidores); b) ferir a atribuição privativa do Executivo de regular, por
decreto, os órgãos da administração pública estadual (escolas públicas); c) invadir
competência privativa da União para legislar sobre as diretrizes da educação (escolas
privadas); d) interferir na autonomia universitária. O texto do voto permite ao leitor entender
que o último item foi compreendido como uma inconstitucionalidade formal, muito embora se
possa dizer que é, ao fundo, material, pois a autonomia universitária é princípio substantivo.
Porém, houve somente a invocação da autonomia universitária, inexistindo referência a
qualquer restrição de Direitos Fundamentais62. Esse modo de agir pode soar como uma
ocultação do problema, pois a autonomia universitária foi trabalhada como se fosse um
espaço de competência intocável das instituições de ensino superior. Assim, mesmo que as
decisões de uma universidade sejam altamente lesivas aos Direitos Fundamentais, poderiam

60 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SS 2.144 DF. Relator: Min.Marco Aurélio Mello. Brasilia, 18 abr. 2002.
Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: jan.2007.

61 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2.806-5 RS. Relator: Min. Ilmar Galvão. Brasília, 27 jun. 2003.
Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: maio 2005.

62 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2.806-5 RS. Cit.

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ser levadas a cabo, tendo em vista o invólucro gerado pela autonomia universitária, que
abrigaria inclusive contra a incidência de lei63.

Para não incorrer nessa conclusão, poder-se-ia sugerir que o Tribunal entendeu que a
liberdade religiosa não seria digna da proteção legislativa em face da autonomia
universitária, ou seja, que esta preponderaria sobre aquela. Ou, ainda, que o Tribunal,
delimitando o direito à liberdade religiosa, concebeu que a tutela do dia de guarda diante das
universidades não faria parte do seu âmbito de proteção, ao ensejo da teoria do suporte
fático restrito dos Direitos Fundamentais64. Esse pensar é, porém, forçoso, pois foi
declarada a inconstitucionalidade formal, não foram nem referidos nem seguidos postulados
normativos, tampouco houve argumentação acerca da delimitação do suporte fático da
liberdade religiosa no caso.

O Ministro Sepúlveda Pertence, aderindo ao voto do Relator, acrescentou que a lei era,
também, materialmente inconstitucional:

Pergunto: seria constitucional uma lei de iniciativa do Poder Executivo que subordinasse assim o
andamento da Administração Pública aos “dias de guarda” religiosos? Seria razoável, malgrado
fosse a iniciativa do governador, acaso crente de alguma fé religiosa que faz seus cultos na
segunda-feira à tarde, que todos esses crentes teriam direito a não trabalhar na segunda feira e
pedir reserva de outra hora para seu trabalho? É desnecessário à conclusão, mas considero
realmente violados, no caso, princípios substanciais, a partir do “due process” substancial e do
caráter laico da República65.

Ciente de que a maioria dos ministros não estava aferindo a constitucionalidade material, o
Ministro Sepúlveda Pertence não desenvolveu maiores argumentos, tão-somente invocou o
postulado do devido processo legal substantivo e o princípio da laicidade estatal, indicando
sua posição para futuros casos. Sua linha argumentativa discrepa daquela do Ministro Marco
Aurélio na Suspensão de Segurança narrada linhas atrás. Não há, pois, guia autoritativo do
STF no assunto.

6.2 Superior Tribunal de Justiça

No STJ, como referido, foi encontrado apenas um julgado, um recurso ordinário em


Mandado de Segurança impetrado por um sabastista candidato ao cargo de Juiz de Direito
no Pará. Uma das provas da segunda fase do concurso foi agendada para um Sábado. O
candidato requereu administrativamente a alteração da data ou a incomunicabilidade e não
obteve êxito. No mandamus, o impetrante não requereu concessão de medida liminar, por
isso, quando do julgamento, houve perda do objeto, pois ele se ausentara da prova. No
recurso, o candidato alegou que a perda do objeto ocorrera em face da demora na prestação
jurisdicional. O relator, Ministro Paulo Medina, invocou os princípios aplicáveis aos
concursos públicos, dentre eles a estrita vinculação ao instrumento convocatório, o
democrático, o da eficiência e o da isonomia. Lembrou que a igualdade exigida em

63 Claro é que não poderia o legislativo estadual normatizar a atuação de IES não pertencentes ao seu sistema
de ensino, como é o caso das Universidades Federais situadas no território do Estado. Quanto a essas, não há
dúvidas de que se trata de um problema de competência federativa.

64 Sobre a teoria imanente dos direitos fundamentais: SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos
direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, ano
1, n. 4, p.29, out/dez 2006. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos
fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

65 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2.806-5 RS. Cit.

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concursos é a material, “única capaz de realizar a verdadeira justiça”, mas disse que
somente a lei é hábil a desigualar os indivíduos. Para o Ministro, os ditames editalícios não
violaram a igualdade material, pois a data foi “genérica e isonomicamente” determinada para
todos. Em assim sendo, afirmou que não há direito líquido e certo a tratamento
discriminatório, seja para favorecer, seja para prejudicar. Negou, também, a existência de
violação da liberdade religiosa, em virtude da laicidade estatal, que veda o tratamento
diferenciado entre pessoas por conta da religião. A adesão ao voto do relator foi total66.

Do voto, extrai-se que os ministros do STJ sequer consideraram a existência de restrições


aos direitos fundamentais de liberdade religiosa e de acesso aos cargos públicos. Se assim
houvessem entendido, certamente teriam aplicado postulados normativos referentes à
colisão horizontal de princípios constitucionais, praxe no Tribunal. Talvez a decisão sugira a
aderência dos ministros à tese dos limites imanentes dos Direitos Fundamentais. Segundo
tal concepção, existem hipóteses que estão fora do âmbito de proteção de um direito
fundamental, que seria definitivo e não prima facie67. Contudo, essa é apenas uma
suposição, pois não existem elementos argumentativos operando as delimitações do
republicano direito de paridade no acesso aos cargos públicos e do direito à liberdade
religiosa.

Percebe-se também que o princípio da igualdade material68 foi interpretado como um


obstáculo ao pleito do candidato, pois ele ficaria em situação de vantagem diante dos
demais competidores, sem que lei determinasse o discrímen. O Tribunal compreendeu,
então, que o único modo de movimentar as engrenagens do princípio constitucional da
igualdade é a lei. Todavia, para o caso dos sabatistas, o voto autoriza compreender que nem
mesmo a lei poderia estabelecer o discrímen requerido, dada a laicidade estatal. Destarte, a
liberdade religiosa não constituiria discrímen hábil a legitimar a igualização.

6.3 Tribunais Regionais Federais

Nos Tribunais Regionais Federais, foram identificados quinze julgados envolvendo o dia de
guarda, distribuídos do seguinte modo (resultados expressos em %):

66 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RMS 16.107/PA. Relator: Min. Paulo Medina. Sexta Turma. Brasília, 31
maio, 2005. Disponível em: www.stj.gov.br. Acesso em: maio 2006.

67 Supra, nota nº63.

68 O voto causa certa perplexidade ao leitor no que respeita à invocação da igualdade material. De um lado,
houve conceituação do viés material da igualdade, como a necessidade de se reconhecer algumas diferenças e
conceder, à sua luz e até certo ponto, tratamento diferenciado aos indivíduos. De outro, para justificar a ausência
de lesão à igualdade material, foi asseverado que nem a lei, nem o edital criam diferenças em virtude de religião,
tratando genericamente todos os interessados, ou seja, houve claro emprego do conceito de igualdade formal.

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TRF 1 TRF 2 TRF 3 TRF 4 TRF 5

13,33

40

6,66

6,66

33,33

0 10 20 30 40

Quanto à matéria, podem ser assim catalogados (em %):

Concursos Públicos Vestibulares Cursos de Formação Aulas

13,33

13,33

20

53,33

0 10 20 30 40 50 60

6.3.1 Concursos públicos

Do total de casos relativos à realização de concursos públicos, em um deles


(12,5%) a prova já havia sido realizada ao abrigo de liminar posteriormente confirmada
quando da manifestação do Tribunal, que optou pela perda do objeto69. O julgamento de
mérito pelo Tribunal ocorreu em seis julgados (75%). Em dois (33,33% dentre os com

69 BRASIL. Tribunal Regional Federal (5. Região). RMO MS nº 88213. Relator: Juiz Francisco Cavalcanti.
Segunda Turma. 14 set., 2004. Disponível em: www.trf5.gov.br. Acesso em: jul. 2006. O magistrado a quo
concedeu a segurança com fulcro na liberdade religiosa e na inexistência de prejuízo à administração e a
terceiros.

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julgamento de mérito; 25% do total sobre concursos), foram indeferidos os pedidos de
realização de provas em horários alternativos ou a troca de suas datas. O direito de
realização de provas em horários alternativos ou diversos do estipulado nos editais foi
reconhecido em quatro julgados (66,66% dentre os com julgamento de mérito; 50% do total
sobre concursos). Houve um caso (12,5% do total) no qual o mérito não foi decidido, pois se
discutia a concessão de medida liminar pelo juízo a quo. Como o recurso foi provido, suas
razões, ainda que de cognição não-exauriente, serão estudadas junto às dos
denegatórios70.

Em dois dos julgados nos quais o direito de realização da prova foi reconhecido, havia uma
peculiaridade fática. As provas não exigiam simultaneidade nem sigilo e estavam marcadas
para mais de um dia da semana. Na motivação de um dos acórdãos, a máxima efetividade
dos Direitos Fundamentais e a necessidade de interpretá-los extensivamente foram os
principais argumentos. Os princípios da isonomia e da impessoalidade foram interpretados
não como obstáculos aos direitos dos fiéis, mas como fundamento para sua plena
realização71. No outro acórdão, a ausência de prejuízo à administração pública e aos
demais candidatos foi o móbil central72. Em outros dois casos, nos quais os candidatos
haviam realizado as provas simultâneas e sigilosas albergados em liminares que permitiram
a incomunicabilidade, foram argumentos a preservação da liberdade de culto e a ausência
de prejuízos a terceiros e ao interesse público e, em um deles, a consumação do fato73.

Nos três casos restantes, foi negado o direito de realizar provas em horários alternativos. Em
dois deles, considerou-se que a administração não criara qualquer óbice aos candidatos, ao
contrário, era um obstáculo auto-imposto74. Nesses mesmos acórdãos, encontra-se uma
interpretação diferenciada acerca da existência de privação de direitos em virtude de credo
religioso. Negada sua existência em um, foi admitida no outro, mas reputada permissível
porque não havia cumprimento das obrigações legais pelo candidato75. No terceiro julgado,
houve exame de colisão horizontal de princípios. De um lado, a liberdade de crença e, de

70 BRASIL. Tribunal Regional Federal (4. Região). AgI 2001.04.01.0022499-6/RS. Relator: Des. Amaury Chaves
de Athayde. Quarta Turma. 04 out. 2001. Disponível em: www.trf4.gov.br. Acesso em: jul. 2006.

71 BRASIL. Tribunal Regional Federal (3. Região). 2002.61.00.000026-5 AMS -SP 240650. Relator: Juiz Renato
Barth. Terceira Turma. 1 fev. 2006. Disponível em: www.trf3.gov.br. Acesso em: jan. 2007.

72 BRASIL. Tribunal Regional Federal (4. Região). REO MS 95.04.09256-0/RS. Relator: Juíza Sílvia Maria
Gonçalves Goraieb. Quarta Turma. 12 dez. 1995. Disponível em: www.trf4.gov.br. Acesso em: jul. 2006.

73 BRASIL. Tribunal Regional Federal. (4. Região). REO MS 2002.70.00.068143-9/PR. Relator: Juiz Luiz Carlos
de Castro Lugon. Terceira Turma. 22 jul. 2004. Disponível em: www.trf4.gov.br. Acesso em: jul. 2006. BRASIL.
Tribunal Regional Federal. (4. Região). REO MS 2002.70.00.069053-2/PR. Relator: Juíza Sílvia Maria Gonçalves
Goraieb. Terceira Turma. 18 nov. 2003. Disponível em: www.trf4.gov.br. Acesso em: jul. 2006.

74 Aqui, mais uma vez, pode-se sugerir a adesão à tese do suporte fático restrito dos Direitos Fundamentais.
Estariam fora do âmbito de proteção do direito à liberdade religiosa as chances perdidas - seja em concursos
públicos, cursos de formação, educação - em virtude de o indivíduo orientar-se segundo os dogmas de sua
agremiação. O resultado seria, evidentemente, um direito assaz estreito e, por vezes, inábil a proteger um
contingente significativo de heterodoxias. Porém, novamente não há argumentos encadeados nesse sentido,
existe apenas menção ao fato de o óbice ser auto-imposto.

75 BRASIL. Tribunal Regional Federal. (4. Região). AgI 2001.04.01.0022499-6/RS. Relator: Des. Amaury
Chaves de Athayde. Quarta Turma. 04 out. 2001. Disponível em: www.trf4.gov.br. Acesso em: jul. 2006. BRASIL.
Tribunal Regional Federal. (2. Região). AMS 2001.51.01.021679-2/RJ. Relator: Juiz Franca Neto. Quinta Turma.
28/09/2004. Disponível em: www.trf2.gov.br. Acesso em: jul.2006.

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outro, a legalidade e a igualdade, os quais preponderam, pois haveria privilégio aos
candidatos crentes76.

A análise dos julgados sobre concursos públicos nos TRFs conduz, pelo menos, a quatro
conclusões. Primeira. Não há um rumo decisório sedimentado nos Tribunais. Segunda. Há
uma tendência à concessão da medida liminar pelo juízo a quo. Terceira. Determinados
princípios recebem conteúdos divergentes, funcionando tanto para o reconhecimento dos
direitos dos fiéis, quanto para sua denegação. É o que se passa com os princípios da
igualdade e da impessoalidade. Quarta. A existência de restrição a direitos fundamentais é
controversa. Quando ela é admitida, há sopesar de princípios, mas das argumentações é
impossível extrair quais critérios (postulados normativos) levaram os julgadores a conferir
maior peso a um grupo de princípios e não a outro.

6.3.2 Freqüência a cursos de formação

Quanto à freqüência às atividades de cursos de formação para aprovados ou pré-


selecionados em alguns concursos públicos, houve dois casos, com resultados diversos. Em
um, foi concedida a possibilidade de ausência em atividades durante o período de guarda,
pois as sabatistas realizariam provas a respeito e não pleiteavam a isenção de conteúdos.
Destarte, não haveria qualquer conflito entre o direito à liberdade religiosa e o interesse
público de selecionar os mais aptos candidatos77.

No outro, a recusa foi fundada na insuscetibilidade de revisão judicial do critério de aferição


de freqüência utilizado em cursos de formação. Pesou o fato de a candidata não ter tomado
providências para evitar sua reprovação, somente argüindo sua escusa de consciência após
ser reprovada78.

6.3.3 Concursos vestibulares

Nos três julgados relativos aos concursos vestibulares, em um (33,33%) houve perda do
objeto, mas o candidato havia realizado as provas com amparo em medida liminar
confirmada em sentença79. Os demais receberam decisões antagônicas. Adentrando no
mérito, em um julgado (33,33%) os desembargadores consideraram que a procedência do
pedido levaria à criação de um privilégio injustificável ao vestibulando sabatista e atentaria
contra o caráter leigo da República80. Sem ensecar o mérito, em Agravo de Instrumento

76 BRASIL. Tribunal Regional Federal. (4. Região). AMS nº2004.72.00.017119-0/SC. 3ª Turma. Relator: Desa.
Sílvia Maria Gonçalves Goraieb. 22 ago. 2005. Disponível em: www.trf4.gov.br. Acesso em: jul. 2006.

77 BRASIL. Tribunal Regional Federal. (1. Região). AMS nº1997.01.00.040137-5/DF. Relator: Juiz Souza
Prudente. 15 fev. 2004. Disponível em: www.trf1.gov.br. Acesso em: jul.2006. Interessante colacionar que as
candidatas prestavam concurso para a Polícia Federal e, por esta razão, houve um toque admonitório no voto,
advertindo-as de que não prosperariam pedidos de mudança de escala de trabalho ou compensação de faltas em
períodos de guarda.

78 BRASIL Tribunal Regional Federal. (1. Região). AMS 96.01.04890-1/DF. Relator: Juiz Amilcar Machado.
Primeira Turma. 17 mar. 2000. Disponível em: www.trf1.gov.br. Acesso em: maio 2006.

79 BRASIL. Tribunal Regional Federal. (1. Região). REO MS 89205/SE (2004.85.00.000115-4). Relator: Des.
Marcelo Navarro. 15 fev. 2006. Disponível em: www.trf1.gov.br. Acesso em: jul. 2006.

80 BRASIL. Tribunal Regional Federal. (1. Região). REO 90.01.01978-1/GO. Relator: Juiz. Hércules Quasímodo.
Segunda Turma. 06/11/1990. Salienta-se que este é o julgado mais antigo sobre o dia de guarda.

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interposto contra a concessão de liminar, os magistrados, amparados em profundo parecer
ministerial, ratificaram a decisão de primeiro grau que reconhecera o direito. A liberdade de
culto, a objeção de consciência, a igualdade material e o direito à educação foram
invocadas, tanto por serem insculpidos constitucionalmente, quanto por figurarem em
Declarações e Tratados de Direitos Humanos. Considerou-se que o Estado deve tomar
atitudes positivas para concretizar esses direitos. Aplicando o postulado normativo da
proporcionalidade, como o parquet, concluíram que a troca da datas das provas para todos
os inscritos seria desproporcional e desigual, ao passo que a incomunicabilidade mostrava-
se adequada e proporcional81.

6.3.4 Freqüência a cursos universitários

Estabelecendo as diretrizes e bases da educação, a legislação federal admite duas


modalidades de oferta do ensino superior, a presencial e a não-presencial. Naquela, exigem-
se níveis mínimos de freqüência do corpo discente e docente, vedado o abono de faltas,
aceito o regime de compensação de ausências82. Os fiéis que adotam um dia de guarda
encaram dificuldades nos cursos presenciais, já que algumas aulas são ministradas em seus
períodos inatividade. Fulcrados na objeção de consciência religiosa, solicitam a extensão do
regime compensatório à sua circunstância como prestação alternativa83.

Os dois julgados encontrados negaram a possibilidade de os estudantes ausentarem-se de


aulas ministradas durante o período de guarda. No primeiro, os desembargadores trilharam
o rumo do parecer da Procuradoria Regional da República, sustentando que as normas
aplicadas pela Universidade eram igualitárias, porquanto gerais. Desta feita, não havia
qualquer restrição à liberdade religiosa. Posto que considerassem o pedido não ofensivo ao
interesse público ou a direitos de terceiros, negaram que houvesse qualquer lesão a direito

81 BRASIL. Tribunal Regional Federal. (1. Região). AgI 2001.01.00.050436-4/PI. Relator: Des. Jirair Aram
Meguerian. 21 ago. 2002. Disponível em: www.trf1.gov.br. Acesso em: maio 2006.

82 O art.24 da LDB define que a freqüência mínima exigida é de 75% para a educação básica. O enunciado
normativo relativo ao ensino superior torna apenas obrigatória a freqüência de professores e alunos, não
definindo um percentual, embora a prática administrativa de muitas IES seja estipular em 75%. Além disso, é
mister informar que o abono de faltas, admitido pela legislação anterior, foi substituído pelo regime de
compensação de ausências, no qual o discente efetua atividades alternativas prescritas, compensando sua
ausência em sala. Estudantes enfermos e gestantes têm direito a requerê-lo. Para aqueles que estão prestando o
serviço militar obrigatório, existe o sistema de justificação, cabendo ao estudante requerer regime especial, que
não o isenta de atividades escolares. Em 2004, lei federal admitiu um caso de abono, destinado ao representante
discente no CONAES que tenha participado de reuniões em horários de atividades acadêmicas. A Portaria do
MEC nº2253/01, por seu turno, admitiu que, em cursos superiores presenciais, sejam oferecidas disciplinas não-
presenciais, desde que não ultrapassem 20% da carga horária total do curso (hipótese válida para as IES
pertencentes ao Sistema Federal de Ensino). Cf. BRASIL. Lei nº9.394/96 (atualizada). BRASIL. Decreto-Lei nº
1.044/69. BRASIL. Lei nº6.202/75. BRASIL. Decreto-Lei nº715/69. BRASIL. Lei nº10.861/04. Disponíveis em:
www.planalto.gov.br. Acesso em: jan.2007. BRASIL. MEC. Portaria nº2253/01. Disponível em:
http://www.cev.org.br/br/biblioteca/leis_detalhe.asp?cod=107 Acesso em: jan.2007.

83 O MEC, desde 1984, mantém firme seu posicionamento de não aceitar a escusa de consciência dos
acadêmicos sabáticos para fins de compensação de ausências. No Parecer nº 430/84, do extinto CFE, a
conclusão foi de não haver amparo legal para o reclame dos estudantes que, por motivos religiosos, não
compareciam às aulas em certos dias da semana. Em manifestação posterior, a Câmara de Educação Básica
lembrou que esta questão diz respeito diretamente à LDB e à educação nacional e, citando o parecer 731/99, da
Consultoria Jurídica do MEC, concluiu que, na ausência de regra infraconstitucional sobre o tema, não assiste o
direito de escusa de consciência religiosa aos acadêmicos sabáticos para efeitos de compensação de ausências,
já que a assiduidade escolar, no ensino regular, é imposta a todos os estudantes. CF. BRASIL. MEC. CEB.
Parecer nº 15/99, aprovado em 04.10.99. e CUNHA, Sebastião Fagundes. Abono de faltas e escusa de
consciência por convicção religiosa. Revista Aporia Jurídica. Disponível em:
http://www.cescage.com.br/graduacao/direito/artigos_aporia%20juridica/abono_falt as.htm Acesso em: set.2002.

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líquido e certo. Entretanto, como o juízo de primeiro grau concedera a medida liminar e
decidira em sentido diverso, o Tribunal considerou consumados os fatos ocorridos entre a
concessão da liminar e a sua manifestação84.

No segundo, o voto vencedor fundou-se nos princípios da legalidade e da igualdade, os


quais deveriam prevalecer sobre a liberdade religiosa. Não são identifícáveis os padrões
decisórios que conduziram ao resultado, compreendendo-se somente que os
desembargadores consideraram que haveria um privilégio ao estudante sabatista. O voto
vencido, cujo sustentáculo foi o parecer do parquet, reputou a compensação de ausências a
prestação alternativa exigida dos objetores de consciência85.

6.4 Tribunais de justiça

Nos Tribunais de Justiça, foram encontrados onze julgados tratando do tema do dia de
guarda. Muitos deles assemelham-se aos dos Tribunais Regionais Federais, mas há alguns
que apresentam um conjunto fático bastante distinto (figura, resultados em %). O relato
iniciar-se-á pela descrição de situações singulares e depois serão catalogados os demais.

Concurso Público Curso de Formação Diversos

18,18

45,45

36,36

0 10 20 30 40 50

6.4.1 Situações singulares

No Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, houve um Agravo de Instrumento de um


proprietário de loja situada em shopping center que se recusava a abrir seu estabelecimento
durante seu período de guarda. Havia convenção do condomínio acerca do horário de
funcionamento. O Tribunal considerou que a convenção vincula a minoria e os ausentes, e

84 BRASIL. Tribunal Regional Federal. (1. Região). AMS nº1997.01.00.006643-4/RO. Relator: Juiz João Carlos
Mayer Soares. 1ª Turma Suplementar. 25 fev. 2003. Disponível em: www.trf1.gov.br. Acesso em: jun. 2006.

85 BRASIL. Tribunal Regional Federal. (4. Região). Apelação Cível nº 2003.70.02.005660-9/PR. Relator: Des.
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz (vencido). Relator: Acórdão. Desa. Sílvia Maria Gonçalves Goraieb.
10/10/2005. Disponível em: www.trf4.gov.br. Acesso em: jul. 2006.

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aduziu que não haveria prejuízo à liberdade de culto, uma vez que as tarefas atinentes à
atividade comercial poderiam ser delegadas a terceiros não-sabatistas86.

Interessante situação foi decidida pelo TJDFT. Um professor judeu, que não aderira a um
movimento grevista, teria de repor aulas em seu período de guarda. Como o servidor público
mantivera-se à disposição da escola e dos alunos, o Tribunal considerou ilegal a exigência
de reposição das aulas aos sábados. Os fundamentos jurídicos foram os seguintes: a)
ilegalidade da greve de servidores públicos; b) cumprimento do dever pelo professor; c)
liberdade de culto, considerada direito natural e personalíssimo87.

6.4.2 Concursos públicos

A pesquisa indicou quatro casos sobre concursos públicos, dois do TJPR, um do TJRS e um
do TJMT. O direito à realização das provas foi reconhecido em um julgado (25%). Os
desembargadores consideraram que a incomunicabilidade, tal como permitida em liminar e
confirmada em sentença, não causava qualquer prejuízo ao interesse público ou à higidez
do concurso e primava pela realização dos direitos de liberdade religiosa e de acesso aos
cargos públicos. Entenderam que a impessoalidade pode ser quebrada a fim de assegurar a
igualdade material, desde que não se configurem benefícios ou prejuízos demasiados.
Dentre todos os julgados, esse foi o único que atentou, ainda que brevemente, para as
situações fáticas de desigualdade advindas de normas gerais: “Da mesma maneira que são
vedadas normas que importem qualquer tipo de discriminação, também devem ser evitadas
situações fáticas que impeçam o igual acesso ao concurso público”88.

Oriundo também do TJPR, um julgado no qual o direito de realizar a prova em horário


diverso não foi reconhecido, mas os fatos foram considerados consumados (25%). Os
julgadores afirmaram que não pairavam dúvidas sobre a inadequação da medida liminar e
da sentença favoráveis ao candidato, em razão da desigualdade que criaram. Porém, apesar
do “estranho e extravagante artifício” que o certamista adotara para lograr êxito, a nomeação
e a posse já haviam ocorrido, consumando-se o fato89.

Em dois julgados (50%) foram refutados os pedidos. No TJMT, os desembargadores


decidiram que da negativa em trocar a data de uma prova não decorre privação do direito de
liberdade religiosa, pois a restrição advém da conduta do certamista. Mas aceitaram que a
administração pública pode, por mera liberalidade, permitir o horário especial90.
Estranhamente, em que pese a organização do concurso haver rejeitado de plano as
solicitações do candidato, os desembargadores levaram em conta a alegação da banca do

86 GOIÁS. Tribunal de Justiça. AgI. 200401512929. Relator: Des. Ubaldo Ferreira. 14 dez. 2004.

87 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça. APC 3910196/DF. Relator: Des. Nívio Gonçalves. Terceira Turma
Cível. 19/08/1996. Disponível em: www.tjdft.gov.br. Acesso em: maio 2006.

88 PARANÁ. Tribunal de Justiça. MS nº132.338-8. IV Grupo de Câmaras Cíveis. Relator: Des. Celso Rotoli de
Macedo. 28 mar. 2003. Disponível em: www.tj.pr.gov.br. Acesso em: ago. 2006.

89 PARANÁ. Tribunal de Justiça. Reexame Necessário nº0162664-2. Relator: Des. J. Vidal Coelho. Terceira
Câmara Cível. 10 maio 2005. Disponível em: www.tj.pr.gov.br. Acesso em: maio 2006.

90 Tratava-se de uma prova de datilografia.

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concurso de que, se o candidato estivesse presente e incomunicável durante as provas, os
testes teriam sido aplicados em horário diferenciado91.

O TJRS não proveu Agravo de Instrumento interposto por candidatas sabáticas contra
decisão denegatória de antecipação da tutela. Valendo-se das razões expostas no parecer
ministerial, os magistrados asseveraram que os dois pólos amparavam-se em princípios
constitucionais, a liberdade religiosa e a igualdade. Ademais, verificaram a contraposição
entre um interesse individual e o interesse público, julgando necessário fazer preponderar o
interesse público sobre o privado, bem como a igualdade em face da liberdade religiosa92.

Do exame desses acórdãos, nota-se que em 75% não houve reconhecimento do direito de
participar de provas de concursos públicos em horários alternativos.

6.4.3 Cursos de formação

A pesquisa resultou em cinco julgados, dois do TJRO, dois do TJMG e um do TJPE. Em


dois deles (40%), foi considerado inválido o ato administrativo de expulsão dos concorrentes.
Todavia, os desembargadores não avaliaram os fatos sob a ótica da liberdade religiosa, mas
da ofensa ao contraditório e à ampla defesa em processo administrativo93. Nos
remanescentes (60%), admitiu-se a expulsão dos cursos, em nome: a) do prévio
conhecimento dos horários e adesão voluntária94; b) da supremacia do interesse público95;
c) da igualdade96; d) da ausência de direito líquido e certo97.

6.5 Conclusões parciais

Em face do exposto, algumas conclusões exsurgem acerca do tema dia de guarda.

91 MATO GROSSO. Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança nº2.427. Relator: Des. Leônidas Duarte
Monteiro. Câmaras Cíveis Reunidas. 04 maio 2000. Disponível em: www.tj.mt.gov.br. Acesso em: maio 2006.

92 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº70011459534. Relator: Des.
Wellington Pacheco Barros. 27 maio 2005. Disponível em: www.tj.rs.gov.br. Acesso em: maio 2006. É de anotar
que uma das certamistas compareceu à prova no Sábado, contrariando os mandamentos de sua religião.

93 PERNAMBUCO. Tribunal de Justiça. MS 49674-8. Relator: Des. Macedo Malta. 02 fev. 2000. Disponível em:
www.tj.pe.gov.br. Acesso em: maio 2006. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. MS nº1.0024.04.521459-0/001.
Relator: Des. Geraldo Augusto. 10 maio 2005. 1º Grupo de Câmaras Cíveis. Disponível em: www.tjmg.gov.br
Acesso em: maio 2006. A análise do viés religioso emergiu apenas no voto vencido do julgado mineiro, no qual
considerou-se não haver privação de direitos por motivo de crença ou culto e existência de lesão ao interesse
público e ao princípio da igualdade.

94 RONDÔNIA. Tribunal de Justiça. 00120040128767. Relator: Des. Eliseu Fernandes. 08 mar. 2006. Disponível
em: www.tj.ro.gov.br. Acesso em: maio 2006. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. AMS 1.0024.04.521642-
1/001(1). Relator: Des. Hugo Bengtsson. 16 ago. 2005. Disponível em: www.tjmg.gov.br. Acesso em: maio 2006.
RONDÔNIA. Tribunal de Justiça. 001200201805969. Juiz convocado José Antônio Robles. 20 jul. 2005.
Disponível em: www.tj.ro.gov.br. Acesso em: maio 2006.

95 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. AMS 1.0024.04.521642-1/001(1). Cit.

96 RONDÔNIA. Tribunal de Justiça. 00120040128767. Cit. RONDÔNIA. Tribunal de Justiça. 001200201805969.


Cit.

97 RONDÔNIA. Tribunal de Justiça. 00120040128767. Cit.

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Primeira. É possível entrever diferença no modo de compreender e aplicar o direito
administrativo, ora desenhado aos moldes tradicionais, ora constitucionalizado. O modelo
tradicional apega-se a uma acepção hermética dos princípios que regem a administração,
como a impessoalidade, a vinculatividade dos instrumentos editalícios e a eficiência. Calca-
se na supremacia e na indisponibilidade do interesse público, referido, no mais das vezes,
como se não fosse um conceito indeterminado. Pauta-se na igualdade formal e na estrita
legalidade, mostrando-se menos permeável aos Direitos Fundamentais.

Na outra banda, o direito administrativo constitucionalizado possui como principal móbile e


limite de atuação administrativa os Direitos Fundamentais, não se satisfazendo, portanto,
com a legalidade estrita, tampouco com a mera retórica calçada em princípios abstratos e
em conceitos indeterminados ministrados como se axiomas fossem. É um modelo mais
complexo. Para que se consubstancie o interesse público - já desvinculado da idéia de
supremacia - mister se faz partir do exame minudente dos direitos e princípios em jogo em
cada hipótese98.

À luz dessas informações, necessário dizer que nos acórdãos analisados foi preponderante
o viés tradicional do direito administrativo. O que conduz a um outro tópico - igualmente
nuclear nas diferenças entre o direito administrativo tradicional e o constitucionalizado - o
modo de fundamentação das decisões judiciais relativas ao controle dos atos da
administração99.

Segunda. A motivação decisória e a arquitetura argumentativa são absolutamente


essenciais à legitimação da atividade jurisdicional. É crucial que os jurisdicionados possam
seguir os passos dos julgadores e compreender o porquê do resultado. Não se trata apenas
de limitar a atividade jurisdicional, compelindo o exame de todas as variáveis de fato e de
direito, mas de permitir maior previsibilidade aos destinatários da decisão, aprimorando a
segurança jurídica e de permitir o diálogo e reflexão sobre os julgados, quer pelos demais
poderes, quer pela sociedade100.

98 Como ilustração de expoentes do direito administrativo tradicional: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007. MEIRELES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São
Paulo: Malheiros. Sobre o direito administrativo constitucionalizado: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito
administrativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo:
direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

99 No modo tradicional, muito influenciado por correntes do positivismo estrito, alguns jargões (e.g., interesse
público), tomados como simples comando a priori, dogmas, ou axiomas, podem se converter em um absoluto que
oblitera o debate. Sem que se conheçam seus conteúdos, suas formulações teóricas e sua conformação aos
casos, podem eles demudar-se em um rótulo que traduz tanto as mais sinceras e aceitáveis motivações, quanto
as mais arraigadas vertentes ideológicas, muitas vezes situadas à longa distância da idéia de razão pública. Sem
o devido labor de determinação, são hábeis a tornar-se um locus argumentativo privilegiadíssimo, cuja simples
invocação é capaz de encerrar e fundamentar o deslinde de um problema concreto, por mais que ele se afigure
um hard case.

100 Sobre o assunto, existe farta literatura nacional e estrangeira. Destaca-se alguns: ALEXY, Robert. Teoria de
los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. NOVAIS, Jorge Reis. As
restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra,
2003. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo:
Malheiros, 2003. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005. SARMENTO, Daniel. Ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2000. BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O começo da história: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação
constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. p.271-316. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da
constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5. ed. rev. ampl. atual. São Paulo:
Saraiva, 2003. DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Tradução Marta Gustavino. Barcelona: Ariel, 1995.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.11-57, ago./set., 2007 45


Em significativa parcela dos acórdãos analisados apresentou-se uma espécie de sincretismo
metodológico. Por exemplo, diversas vezes os julgadores anunciaram um conflito entre
princípios, mencionaram a ponderação e apresentaram a prevalência, sem permitir aos
jurisdicionados perfilhar o iter entre a identificação do conflito horizontal e o resultado. Foram
meras invocações retóricas. Essa constatação não autoriza sustentar que os magistrados
devem endossar uma ou outra postura teórica nas exposição das razões de decidir. Trivial
dizer que os operadores do direito podem filiar-se às teses jurídicas e filosóficas mais
diversas, desde que possíveis segundo a lógica constitucional vigente. Quer-se
simplesmente salientar que quando se anuncia um método de exame para o caso, sua trilha
deve ser seguida, sob pena de incorrer-se no que se pode denominar déficit de
fundamentação101. Ademais, a não adoção de padrões decisórios pode acarretar
demasiadas incoerências entre decisões sobre temas semelhantes, ferindo a integridade do
sistema, bem como a igualdade de tratamento devida aos jurisdicionados.

Ao pôr de lado o aprofundamento argumentativo, especialmente quando a opção


metodológica recai na aplicação dos postulados normativos, pode-se dar vazão ao
fenômeno que o constitucionalista Daniel Sarmento cognominou de carnavalização da
Constituição102, no qual há alguma displicência do “dever de fundamentar racionalmente os
(...) julgamentos”103 , mantendo portas abertas ao decisionismo.

Nos acórdãos examinados, três pontos demonstram com singularidade esse problema.
Primeiro, o conceito indeterminado interesse público, via de regra, não recebeu
determinação de conteúdo. Em certas ocasiões foi associado à igualdade, noutras à seleção
do candidato mais apto, noutras à ausência ou presença de prejuízos à administração e, na
maior parte, foi usado como se seu conteúdo fosse óbvio e por todos conhecido. Em
nenhum julgado houve distinção entre interesse público primário e secundário, tal qual
levantado nas razões dos autores e, por vezes, em pareceres ministeriais104. Segundo. Ao
princípio da igualdade foram conferidas duas interpretações diametralmente opostas, o
mesmo valendo, em menor medida, para o princípio da impessoalidade. Terceiro, pese
embora a presença de um feixe de princípios constitucionais possivelmente incidentes sobre
as hipóteses de fato, normalmente não são perceptíveis os padrões adotados para negar
incidência - conferindo a alguns direitos suporte fático restrito -, nem para identificar a

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006.

101 Os termos são de Virgílio Afonso da Silva. SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo... op. cit., p. 25. SILVA,
Virgilio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.).
Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005. Ressalta-se que a locução sincretismo metodológico
não se refere, de modo algum, ao toque do direito com a realidade, com a interpretação situada num contexto
espaço-temporal determinado, influenciada por elementos extra-sistêmicos. O autor emprega a expressão para
os casos nos quais se aplicam, simultaneamente, metodologias decisórias incompatíveis entre si.

102 Sabe-se que o autor utilizada a expressão para os excessos cometidos no uso dos princípios dentro do
paradigma de constitucionalização do direito. Acredita-se, porém, que a idéia pode ser transplantada para o
modus de fundamentação das decisões no direito administrativo tradicional, pois apresenta-se um similar
desvirtuamento dos princípios, embora as bases de cada um sejam distintas. SARMENTO, Daniel.
Ubiqüidade..., op. cit., p.83. Constitucional: os dois lados da moeda. Mímeo. Texto posteriormente publicado na
Revista de Direito do Estado, nº2, p.83.

103 SARMENTO, Daniel. Ubiqüidade...

104 Houve acórdãos nos quais a supremacia do interesse público conviveu com o postulado da
proporcionalidade.

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existência de uma restrição a direito fundamental, tampouco aqueles empregados para
solvê-la, se reconhecida.

Terceira. Falando em padrões, cabe lembrar a adesão ao precedente. Os casos descritos


tornam patente que, por vezes, no mesmo Tribunal foram proferidas decisões radicalmente
distintas em face de situações idênticas. Em muitos julgados, foram referidos anteriores,
todavia sempre aqueles de mesma orientação, utilizados com o objetivo de corroborar a
postura escolhida. Não se nota o cotejo entre julgados divergentes, nem o confronto
argumento a argumento. Assim, não se consegue compreender os elementos distintivos que
fazem com que, por exemplo, em uns casos adote-se a igualdade formal e noutros a
material; ou, ainda, que em uns a incomunicabilidade seja aceita como a prestação
alternativa e negada em outros. Remetendo ao que foi dito antes (item 2), não se propugna
um engessamento decisório. Chama-se atenção, unicamente, para a carência de motivação
e de padrões para o desapego do precedente. Comparativamente, mas sem advogar
qualquer mimetismo, vislumbrem-se decisões estrangeiras e internacionais sobre o dia de
guarda. São dezenas e dezenas de laudas, trazendo esmiuçadamente cada princípio em
jogo, distinguindo situações, e, acima de tudo, discutindo franca e abertamente a
metodologia decisória empregada e o como fortalecer ou relativizar o liame entre o
precedente e o futuro.

Quarta. Na maior parte dos acórdãos analisados, a referência ao republicano princípio da


separação entre Igreja(s) e Estado - caráter laico e/ou leigo - acarretou a denegação do
pedido dos fiéis. Isso significa que os magistrados reputam a laicidade como a neutralidade
formal, ou seja, como a não imposição de benefícios ou de prejuízos em virtude da afiliação
religiosa. Dessa maneira, promover a inclusão de pessoas vinculadas a agremiações
minoritárias por meio de políticas afirmativas ou mediante a igualdade material torna-se uma
tarefa árdua, eis que aparentemente não-neutra. Ocorre que a neutralidade estatal em
matéria religiosa é intensamente problemática. Só para ilustar, tem-se que normas gerais
podem impactar adversamente minorias religiosas ou, ao revés, favorecer grupamentos mais
tradicionais numa dada comunidade. Tem-se que certas vedações de colaboração com
entidades religiosas podem incentivar a irreligião, já que não vedadas a instituições não
confessionais. Assim, nascem as perguntas: há neutralidade nesses casos? Será a justa
medida a neutralidade formal, com um Estado cego quanto à religião? O desafio consiste em
encontrar um filtro que permita a passagem apenas dos enunciados normativos que nem
inibam nem promovam denominações religiosas, quer direta, quer adversamente. Ao
encarar profundamente os argumentos contrários e ao demonstrar as razões que levam uma
Corte a seguir os precedentes ou reputá-los como erros, os julgadores estão demonstrando
respeito e compromisso pela igualdade de tratamento devida a todos os jurisdicionados.

Quinta. O conjunto de julgados ilumina um aspecto que, talvez, não seja perceptível em
situações insulares. Em 93,10% do universo identificado, os postulantes eram membros da
mesma agremiação religiosa, os Adventistas do Sétimo Dia105. Em assim sendo, é possível
concluir que as normas atinentes à educação pública e aos concursos públicos, ainda que
editadas sem qualquer intento discriminatório (neutras na origem ou prima facie), possuem
efeitos colaterais sobre uma minoria religiosa específica. Novamente, disso não se pode
extrair que a minoria possua um direito fundamental preponderante, mas há motivos
suficientes para aproximar-se do caso com um olhar ciumento, assegurando-se de que o
impacto sobre os interesses da minoria não se dá exclusivamente em função de um
interesse administrativo secundário ou de direitos de terceiros que facilmente poderiam ser
salvaguardados de outros modos. Trata-se de proporcionar a grupos excluídos uma arena

105 Se computada a ADI sobre a lei do Rio Grande do Sul protetiva dos sabatistas, cuja aprovação deveu-se, em
grande medida, ao labor dos Adventistas, ter-se-ia 96,56%.

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de participação, apta a desobstruir canais democráticos e a evitar que pré-concepções
compartilhadas atinjam núcleos vitais da autonomia e da construção da identidade dos
membros de uma sociedade democrática.

Com estas preocupações, alguns tribunais estrangeiros desenvolveram a doutrina do


impacto desproporcional ou adverso, “utilizada para impugnar medidas públicas ou privadas
aparentemente neutras (...), mas cuja aplicação concreta resulte, de forma intencional ou
não, a manifesto prejuízo a minorias estigmatizadas”106. Apoiadas na doutrina, as Cortes
invalidam ou excepcionam leis e atos da administração, criando uma barreira ao prejuízo
oblíquo ensejado para as minorias. Consoante Daniel Sarmento, a doutrina ainda não
ganhou adesão explícita dos Tribunais nacionais, mas já se pode perceber certa
permeabilidade aos seus ditames107.

7 Conclusões

A cada tema, foram formuladas breves considerações conclusivas. Não se considerou


oportuno reproduzi-las aqui. Em suma, pensa-se que os dados colhidos permitiram
fotografar cinco temas atinentes à liberdade religiosa e à laicidade estatal na jurisdição
constitucional brasileira. A imagem parece ainda um tanto fora de foco, sobretudo em função
da alta freqüência de decisões díspares e da dificuldade em aferir os padrões decisórios, o
que demonstra que há, ainda, um longo percurso pela frente, tanto no que tange à liberdade
religiosa e à laicidade estatal, como no que se refere à própria jurisdição constitucional.

Abstract: Having as stand point a comprehensive case search at Brazilian Courts (STF,
STJ, TRFs and State Courts), this research has as objective identifying the position of the
Courts in five issues related to the religious freedom and establishment clauses. To achieve
this goal, it describes the cases and decisions, focusing on the identification of the standards
adopted by the judges; adherence to previous cases; presence of constitutional transplant
and acceptance of amicus curiae briefs. As a complement, some analytic remarks are done
in each subject. As a result, it was observed that the Courts did not develop standards or
tests to guide the constitutional reasoning in these subjects matter. In some analogous
cases, the decisions were divergent, even in the same Court at the same year.

Keywords: constitutional adjudication; religious freedom; establishment clause

106 SARMENTO, Daniel. A igualdade étnico-racial no direito constitucional brasileiro: discriminação ‘de facto’,
teoria do impacto desproporcional e ação afirmativa. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Org.). Leituras
complementares de direito constitucional: direitos fundamentais. Salvador: JusPODIVM, 2006. p.125. Sobre o
impacto desproporcional ver também: GOMES, Joaquim Benedito Barbosa. Ação afirmativa & princípio
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características de aplicabilidade – a linha decisória da Suprema Corte estadunidense. Rio de Janeiro: Lumen
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107 Como exemplo, o autor menciona a ADI nº1946-DF, julgada pelo STF em 2003. SARMENTO, Daniel. A
igualdade étnico-racial... op. cit., p.128.

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Revista Jurídica
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/index.htm

Artigo recebido em 31/07/2007 e aceito para publicação em


31/08/2007

A Revista Jurídica destina-se à divulgação de estudos e trabalhos


jurídicos abrangendo todas as áreas do Direito.

Os originais serão submetidos à avaliação dos especialistas,


profissionais com reconhecida experiência nos temas tratados.

Todos os artigos serão acompanhados de uma autorização expressa


do autor, enviada pelo correio eletrônico, juntamente com o texto
original.

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Artigos

Direitos autorais no trabalho acadêmico1

João Augusto Cardoso2

Mestre em Direito pela UNIMEP e doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA.
Professor de Direito Civil e Empresarial na UNIP. Advogado especializado em Propriedade
Intelectual.
jcardoso@jurisdoctor.adv.br

Resumo: O presente artigo tem como escopo contribuir com a difusão dos direitos autorais
entre os estudantes que vivem à guisa da produção de obras intelectuais quer no âmbito da
graduação ou da pós-graduação. Visa, sobretudo, transmitir informações doutrinárias e
legais, a fim de que produzam seus trabalhos acadêmicos com maior consciência e
segurança, sem que venham a incorrer em crassa violação de direitos de autor por falta de
conhecimento, quer seja o plágio, contrafação ou outros ilícitos civis e penais. Para que a
violação não ocorra, é necessário reconhecer que o trabalho acadêmico é obra intelectual,
caracterizado como documento e, portanto, protegido pela legislação pátria desde a
Constituição Federal até a lei específica de direitos autorais, bem como pelos acordos e
tratados internacionais dos quais o Brasil é país signatário. Logo, sua violação é tipificada
como crime. Além da orientação de que as normas insculpidas na legislação autoral devam
ser seguidas, a fim de se reconhecer a necessidade e a importância das citações de autores
consagrados e suas obras, ainda que estejam em domínio público, em paralelo, chama-se a
atenção para que as normas editadas pela ABNT sejam igualmente seguidas. Desse
conjunto, evidentemente sem se olvidar da leitura, do estudo e da pesquisa, ao redigir os
trabalhos acadêmicos o estudante estará contribuindo para o desenvolvimento do tema e
para a construção do conhecimento.

Palavras-chave: direitos autorais; trabalho acadêmico; documento; plágio; domínio público

Sumário: 1 Introdução – 2 Breve histórico dos direitos autorais no mundo e no Brasil - 3 A


propriedade intelectual e o direito autoral - 4 Fundamentos jurídicos dos direitos autorais 5
Prazo de proteção da criação intelectual e domínio público - 6 O trabalho acadêmico como
obra intelectual e documento – 7 Violação dos direitos autorais - 8 Elaboração do trabalho
acadêmico consoante às normas - 9 Considerações finais - Referências

“Considero o direito de autor um dos direitos sagrados, se posso exprimir-me assim. Cumpre zelá-lo e
defendê-lo. Nada mais belo do que a criação espiritual. Se fosse possível, devia ser pago em mirra, incenso
3
e ouro.”

1
O presente artigo foi publicado na forma livre no livro intitulado “Encontros de Reflexões”, 2006, p. 35-48. O
presente texto foi revisado, atualizado e ampliado.
2
O autor é Mestre em Direito pela UNIMEP e doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA. Cursou
pós-graduação em Administração de Empresas na EEP e Direito da Economia e da Empresa na FGV/RJ.
Cursou Propriedade Intelectual, e Direito de Autor e Direitos Conexos, pela Organização Mundial de
Propriedade Intelectual; Propriedade Industrial pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial e pela Escola
da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro; e Propriedade Intelectual para Gestores de Tecnologia,
módulos básico e avançado, pela UNICAMP, INPI e OMPI. É Professor de Direito Civil e Comercial na
Universidade Paulista, nos cursos de Direito e Administração de Empresas. Foi Professor de Propriedade
Industrial na Faculdade de Direito da UNIMEP e nos cursos de pós-graduação em Administração de
Empresas da Escola de Engenharia de Piracicaba e da Faculdade de Engenharia de Sorocaba. É Advogado
especializado em propriedade intelectual e foi Agente da Propriedade Industrial.

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4
D. Manuel Gonçalves Cerejeira

1 Introdução

Nos últimos anos, muito se tem digladiado acerca da proteção das obras intelectuais,
representadas por qualquer manifestação, quer sejam as obras escritas, a música, a pintura,
a escultura, a fotografia, as cartas geográficas, as obras arquitetônicas, os projetos de
engenharia, o programa de computador e as demais obras protegíveis pelos direitos
autorais, no âmbito das obras literárias, artísticas ou científicas.

Segundo o advogado e escritor brasileiro HENRIQUE GANDELMAN, “o direito autoral é um dos


ramos da ciência jurídica que, desde os seus primórdios, e até na atualidade, sempre foi e é
controvertido, pois lida basicamente com a imaterialidade da propriedade intelectual.”5

Para o mesmo autor,

A tendência de alguns profissionais da área, usuários, advogados, generalistas e cultores do


direito, é a de encarar os direitos autorais como assunto de extrema complexidade (o que, aliás,
por vezes, é mesmo!...) e de que sua compreensão seria acessível somente aos poucos
6
especialistas da matéria.

Talvez, seja esta a razão intuitiva pela qual se têm poucos especialistas em direitos autorais
no Brasil, contribuindo sobremaneira para a lenta disseminação da matéria em todos os
segmentos da sociedade, desde os públicos empresarial e consumidor, até mesmo o
acadêmico ou universitário.

Após a participação em exatas 40 bancas de apresentação de monografias jurídicas, que


versaram sobre os mais diversos temas entre 2001 e 2004 na Universidade Metodista de
Piracicaba, bem como outras 15 de trabalhos de conclusão dos cursos de Direito,
Administração de Empresas e de Propaganda e Marketing na Universidade Paulista, além
de orientações e co-orientações e ainda o envolvimento com monografias de cursos de pós-
graduação lato sensu e dissertações de mestrado, e agora de tese doutoral, este autor pôde
constatar uma certa dificuldade, natural por parte de muitos acadêmicos, quanto à
compreensão da matéria protegida pela legislação autoral.

Outro fato que chamou a atenção é um crescente número de violação de direitos autorais,
quer no trabalho acadêmico durante os cursos de graduação e pós-graduação, quer nos
trabalhos de conclusão de curso. Desde reproduções de trechos inteiros sem as devidas
citações dos autores até cópias literais de um trabalho todo.

Um dos fatores que em muito tem contribuído para esta prática não só ilegal quanto
antiética, é a farta disponibilidade de trabalhos completos e de artigos publicados na internet,
notadamente para a pesquisa pública, acadêmica ou científica, o que não quer dizer que
estas publicações sejam de domínio público, e autorizariam, em tese, a cópia e/ou
reprodução indevida de textos inteiros ou suas partes, com ou sem citação dos autores e
suas fontes.

3
CEREJEIRA, D. Manuel Gonçalves apud CHAVES, Antônio. Direito de autor. 1987. p. 4.
4
Don Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), Estudou na Faculdade de Teologia de Coimbra de 1909 a 1911,
tornando-se professor e sacerdote. Doutorou-se em Letras em 1918. Foi Cardeal Patriarca de Lisboa, o chefe
da Igreja Católica portuguesa, de 1929 a 1971. Em 1967, inaugurou a Universidade Católica Portuguesa. Cf. CITI. Centro
de Investigação para Tecnologias Interactivas. No mesmo sentido: Cf. Paróquias de Portugal. O cardeal. 2002.
5
GANDELMAN, Henrique. De Gutenberg à internet: Direitos autorais na era digital. 1997. p. 26.
6
Ibid. p. 25.

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Esta crescente mentalidade da “lei do mínimo esforço” e da falsa crença de que se está na
internet está em “domínio público”, tem causado sérios prejuízos ao trabalho acadêmico, e
pior ainda, à formação e à construção do conhecimento. Além da crassa violação de direitos
autorais – o que é crime – pela prática do plágio, da cópia e/ou reprodução de trabalhos
acadêmicos e artigos (inteiros ou em partes), como se fossem seus, há também a violação
das normas de elaboração do próprio trabalho acadêmico.

Essa realidade inspirou a produção do presente artigo, que ainda que seja em largas
pinceladas, tem o claro intuito de oferecer uma orientação simples e prática não só aos
acadêmicos que vivem à guisa da produção de trabalhos escritos, quer no âmbito da
graduação ou da pós-graduação, como também aos professores do ensino médio e técnico,
que preparam e dão a base para os alunos freqüentarem a universidade; evitando-se assim,
a prática de atos ilícitos, notadamente da contrafação em propriedade intelectual, ou
violação de direitos autorais.

O presente artigo está dividido em sete partes, iniciando-se com um breve histórico dos
direitos autorais, seguido pela conceituação de propriedade intelectual e de direito autoral,
passando-se a tratar em seguida, de seus fundamentos jurídicos, dos prazos de proteção e
do domínio público. Na seqüência, aborda-se o trabalho acadêmico enquanto obra
intelectual, bem como enquadrando-o na figura jurídica de documento e tratando a seguir
das violações dos direitos autorais, até se chegar à prática da elaboração do trabalho, sem
contudo, se violar as normas, quer sejam de direitos autorais, quanto as NBR’s da ABNT.

2 Breve histórico dos direitos autorais no mundo e no Brasil

Primitivamente, a idéia de direitos de autor remonta à épocas imemoriáveis, porquanto sabe-


se que já havia nas duas civilizações clássicas, as antigas Grécia e Roma, um conceito de
plágio, conquanto dispunham de alguns sistemas práticos para se coibir a reprodução não
autorizada de obras intelectuais.7

CLOVIS BEVILAQUA acentua que “foi com a descoberta da imprensa e da gravura que,
facilitada a multiplicação dos escritos e obras de arte, se tornaram possíveis a exploração
industrial das produções do espírito, e o conseqüente reconhecimento de um novo direito”.
Disserta ainda que inicialmente se concederam os privilégios de reprodução das obras
intelectuais primeiro aos editores e, somente depois, aos autores.8

Somente no início do século XVI é que apareceram os primeiros privilégios concedidos aos
escritores na Inglaterra, sendo um deles a Reginald Wolf; e em 1530, ao londrino Jean
Palsgrave, graduado em Paris, concedeu-se o privilégio de venda de sua gramática
francesa, por sete anos. Neste mesmo século já se concediam privilégios e autorizações
para os autores de obras literárias na França.9

Um dos mais antigos documentos da história do direito autoral alemão foi a Ordenança de
Nuremberg de 1623, que visava reprimir a reprodução não autorizada independentemente
do autor ter o respectivo privilégio, e no mesmo sentido, em 1660, houve uma decisão do
Senado de Frankfurt.10

7
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Abc do direito de
autor. 1984. p. 13.
8
BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. 1956. v. 1. p. 234.
9
Ibid. p. 234-235.
10
Ibid. p. 235.

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Mais próximo do que conhecemos hoje, a Inglaterra foi o primeiro país a estabelecer uma lei
de direitos de autor em 10 de abril de 1710, visando unicamente as obras literárias, que se
resumia no seguinte: 11 “An act for the encouragement of learning by vesting the copies
during the time therein mentioned”.12 Esta espécie de proteção do direito de autor foi
reclamada pela corporação dos livreiros e conduzido um projeto de lei em 11 de janeiro de
1709 à Câmara dos Comuns, cuja lei de 1710 ficou conhecida como a lei da rainha Ana.13

Somente em 1723 que a primeira norma legal de direito de autor surgiu em França, quando
estabeleceu o seu Droit d’Edition, que consistia no “direito de fixar por signos gráficos e de
publicar uma obra”, nascendo aí a proteção das obras literárias.14

No Brasil, a primeira noção legal de direitos de autor surgiu com a lei de 11 de agosto de
1827, quando Dom Pedro I criou os dois primeiros cursos de Ciências Jurídicas no país,
garantindo aos professores a proteção às obras intelectuais que criarem para o ensino de
suas referidas disciplinas.

Depois de mais de um século de inovações e aperfeiçoamentos a partir primeira norma


autoral, é que a proteção foi ampliada, cristalizada na Convenção de Berna para a proteção
das obras literárias e artísticas, firmada em Paris, em 9 de setembro de 1886, da qual o
Brasil é país originalmente signatário.

Somente a partir desta Convenção internacional que o Brasil incluiu em seu texto
constitucional a proteção dos direitos de autor aos brasileiros e estrangeiros residentes no
país, insculpida na Constituição de 1891, ainda que a Constituição do Império, de 1824, já
dispusesse em seu art. 179, XXVI, os princípios de proteção aos direitos de propriedade
industrial.15

Após a primeira Constituição republicana, nossa primeira norma específica de direitos de


autor foi editada através da Lei nº 496, de 1º de agosto de 1898, contemplando a proteção
às obras literárias, científicas e artísticas,16 seguida pelo Código Civil de 1916, que
estabeleceu normas semelhantes dentre os arts. 649 e 673, que passou a regular a matéria.
Depois disso, veio a lei de direitos autorais anterior à vigente, a Lei nº 5.988, de 14 de
dezembro de 1973, revogada pela atual lei autoral de 1998, que também revogou
expressamente os citados artigos do antigo Código Civil.

3 A propriedade intelectual e o direito autoral

Este importante e complexo ramo do direito veio, ao longo do tempo, sendo estudado e
conhecido por várias nomenclaturas, algumas utilizadas ainda hoje em vários países,
conquanto outras foram sendo abandonadas e substituídas por denominações mais
modernas.

Uma delas é direitos intelectuais, inaugurada por EDMOND PICARD17 antes mesmo da
Convenção de Berna. Como ensina o professor e senador belga, “la division tripartite
romaine: Droits personnels, Réels, Obligationnels. Les droits intellectuels ajoutés comme 4ª

11
SOARES, José Carlos Tinoco. Direitos de autor nas obras artísticas. In: Regime das patentes e royalties.
1972. p. 119.
12
Tradução livre: Lei para o encorajamento do estudo, protegendo as publicações durante o tempo aqui
mencionado.
13
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA, op. cit., p. 15.
14
SOARES, op. cit., p. 119-121.
15
CARDOSO, João Augusto. Breve histórico dos direitos autorais no Brasil e no mundo. 2002. p. 9.
16
BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. 1956. v. 1. p. 235. No mesmo sentido: SOARES, op. cit., p. 121.
17
PICARD, Edmond. Le droit pur. 1899. p. 119.

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terme”.18 Como se vê, os direitos intelectuais não correspondem a essa tripartição clássica
do Direito Romano, porém, PICARD19 propôs que fosse acrescentada em 1877, como se lê:

Cette situation m’avait d’autant plus frappé que je m’étais livré à une étude spéciale des droits
intellectuels protégés par les Brevets d’Invention. Je meditai la question. En 1877, j’eus l’audace
de proposer d’ajouter un quatrième terme à la Division classique des Romains, sous l’étiquette
20
“Droits intellectuels”.

A partir dessa assertiva, o professor francês HENRI DESBOIS21, seguindo a doutrina de


PICARD, compreende a nomenclatura direitos intelectuais, e em seu estudo acerca do direito
de autor, assim preleciona:

L’expression «droits intellectuels» a fait son apparition voilà longtemps, déjà, dans la terminologie
juridique: E. Picard l’y a introduite (1) a fin de souligner à la fois la raison d’être et la nature dês
droits patrimoniaux, reconnus aux auteurs et aux inventeus: ceux-ci méritent une telle appellation,
22
parce que le monopole qu’ils comportent se justifie par la création d’une œuvre de l’espirit.

Em sua justificativa pelo uso da expressão direitos em vez de propriedade, PICARD23


preleciona que:

Aussi s’accoutuma-t on à dire Propriété artistique, Propriété littéraire, Propriété industrielle,


comme on disait propriété d’un immeuble ou d’un meuble matériel.

On s’y est même appliqué à éviter le mot “propriété” pour désigner la plénitude du droit sur une
24
production de l’intelligence.

No Brasil, país fortemente influenciado pelo direito europeu, adotou-se desde seus
primórdios a expressão propriedade literária, científica e artística, a exemplo do direito
francês, no qual se espelhou, bem como na Convenção de Berna para a proteção das obras
literárias e artísticas, de 1886, que utilizava como título da matéria a propriété littéraire et
artistique, seguida pela maioria dos países signatários da Convenção.

Ao aprofundar o estudo da propriedade industrial em sua monumental obra, matéria típica de


Direito Comercial, o tratadista CARVALHO DE MENDONÇA trata desde logo da diferenciação
entre essa e o direito autoral, cuja matéria é estudada no âmbito do Direito Civil, dissertando
que:

A propriedade literária, científica e artística compreende toda produção do domínio literário,


científico e artístico, qualquer que seja o modo ou forma de reprodução, como os livros,

18
Tradução livre: “A divisão romana em três partes: Direitos Pessoais, Reais e Obrigacionais. Os direitos
intelectuais se acrescentam como uma 4ª termo.”
19
PICARD, Edmond, op. cit., p. 120-121.
20
Tradução livre: “Esta situação me tinha tomado ainda mais por eu ter me entregue a um estudo especial dos
direitos intelectuais protegidos pelas Patentes de Invenção. Eu meditei sobre a questão. Em 1877, tive a
audácia de propor que se acrescentasse um quarto termo à Divisão clássica dos Romanos, sob o título de
"Direitos intelectuais”.
21
DESBOIS, Henri. Le droit d’auteur. 1950. p. 294.
22
Tradução livre: “A expressão «direitos intelectuais» teve seu aparecimento há muito tempo; já, na terminologia
jurídica, E. Picard a introduziu com o fim de acentuar ao mesmo tempo, a razão de ser e a natureza dos
direitos patrimoniais reconhecidos aos autores e aos inventores; estes merecem tal distinção, porque o
monopólio que comportam se justifica pela criação de uma obra do espírito.”
23
PICARD, Edmond, op. cit., p. 120-121.
24
Tradução livre: “Também se costuma dizer Propriedade artística, Propriedade literária, Propriedade industrial,
como se diz propriedade de um imóvel ou um móvel material (p. 120). Foi aplicável mesmo evitar a palavra
‘propriedade’ para designar a plenitude do direito sobre uma produção da inteligência” (p. 121).

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opúsculos, jornais, revistas, as obras teatrais ou musicais e as obras de desenho, pintura,
25
arquitetura, etc.

O “direito de autor” tem atualmente as mesmas denominações em vários países, dos quais
destacamos por sua proximidade lingüística o Droit D'auteur dos franceses, o Diritto D'autore
dos italianos, como o Derecho de Autor dos espanhóis, seguido pelos países de língua
espanhola. Entretanto, os ingleses e os norte-americanos utilizam a expressão Copyright,
cujo sistema de proteção se difere sensivelmente do brasileiro, por se tratar do “direito de
reprodução”.

Entretanto, quando se trata do gênero propriedade intelectual, esta nomenclatura surgiu


anos mais tarde, compreendendo a expressão propriedade já utilizada para designar as
propriedades literária, artística e industrial, contempladas pelas Convenções de Paris (1883)
e de Berna (1886). É conhecida por propriété intellectuelle pelos sistemas de língua francesa
e por intellectual property pelos de língua inglesa.

A primeira expressão supracitada no presente título, qual seja a propriedade intelectual, vem
definida pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, com sede em
Genebra, Suíça, sendo este um dos 14 órgãos especializados da Organização das Nações
Unidas, justamente na Convenção que a criou em 1967, cuja definição que abaixo se
transcreve também é verbete de seu glossário oficial de termos e definições:
26
PROPRIÉTÉ INTELLECTUELLE.

Dans la Convention instituant l’OMPI il faut entendre par “propriété intellectuelle”, les droits relatifs
: aux oeuvres littéraires, artistiques et scientifiques, aux interprétations des artistes interprètes et
aux exécutions des artistes exécutants, aux phonogrammes et aux émissions de radiodiffusion,
aux inventions dans tous les domaines de l’activité humaine, aux découvertes scientifiques, aux
dessins et modèles industriels, aux marques de fabrique, de commerce et de service, ainsi qu'aux
noms commerciaux et dénominations commerciales, à la protection contre la concurrence
déloyale; et tous les autres droits afférents à l’activité intellectuelle dans les domaines industriel,
27
scientifique, littéraire et artistique.

Antes de se definir direito autoral, convém ressaltar que, como se verificou acima, este é
espécie do gênero “propriedade intelectual”, e tem sede no Direito Civil. Didaticamente,
podemos dizer que a propriedade intelectual é o gênero que abarca duas espécies
principais: os direitos autorais e a propriedade industrial, sendo esta segunda, matéria
compreendida pelo Direito Comercial.28 Dentre as espécies, outros autores também
classificam os “conhecimentos tradicionais” e os “cultivares”. Considera-se, aqui, as duas
principais espécies citadas – o Direito de Autor e a Propriedade Industrial – como “direitos
especiais”, quer sejam entendidas como espécies ou subespécies do gênero propriedade
intelectual.

25
MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. v. 5. 1963. p. 12.
26
PROPRIÉTÉ INTELLECTUELLE. Cf. ORGANISATION MONDIALE DE LA PROPRIÉTÉ
INTELLECTUELLE. Glossaire: terms et définitions. 2002. p. 49. Cf. Convenio de la OMPI. Art. 2, (viii).
1967.
27
Tradução livre: PROPRIEDADE INTELECTUAL. Na Convenção que instituiu a OMPI ela faz entender por
“propriedade intelectual”, os direitos relativos: às obras literárias, artísticas e científicas, as interpretações dos
artistas intérpretes e as execuções dos artistas executantes, dos fonogramas e as emissões de radiodifusão,
as invenções em todos os campos da atividade humana, as descobertas científicas, os desenhos e modelos
industriais, as marcas de fábrica, de comércio e de serviço, assim como aos nomes e denominações
comerciais, a proteção contra a concorrência desleal, e a todos os demais direitos relativos a atividade
intelectual nos terrenos industrial, científico, literário e artístico.
28
CARDOSO, João Augusto. Direitos autorais dos engenheiros e arquitetos. Juris Doctor: revista jurídica, 2002.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 63


Nas palavras do ilustre civilista CLOVIS BEVILAQUA, patrono do Direito Civil brasileiro e pai do
Código Civil de 1916,

Direito autoral é o que tem o autor de obra literária, científica ou artística, de ligar o seu nome às
produções do seu espírito e de reproduzi-las, ou transmiti-las. Na primeira relação, é
29
manifestação da personalidade do autor; na segunda, é de natureza real, econômica.

Um outro conceito de direito de autor que merece ser considerado é dado pela OMPI30, que
além de tratar dos institutos protegidos, cuida da finalidade e de uma compensação pela
criação intelectual, como se verifica na citação abaixo:

Por derecho de autor se entiende un conjunto de derechos exclusivos encaminados a la


protección de las obras literarias y artísticas. La finalidad del derecho de autor es promover las
ciencias, la cultura y las artes. Para ello se ofrece una compensación a los creadores de dichas
obras y se trata de llegar a un equilibrio entre los derechos de esos creadores, los derechos de los
empresarios, como los editores, los organismos de radiodifusión, las compañías discográficas,
31
etc. y los derechos del público.

No magistério de CARLOS ALBERTO BITTAR,

Em breve noção, pode-se assentar que o Direito de Autor ou Direito Autoral é o ramo do Direito
Privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da utilização econômica de obras
32
intelectuais estéticas e compreendidas na literatura, nas artes e nas ciências.

O Direito Autoral é, portanto, um arcabouço jurídico que compreende a proteção de obras


intelectuais, “expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou
intangível”, tais como: “os textos de obras literárias, artísticas ou científicas” (matéria tratada
no presente artigo), bem como a música, escultura, pintura, ilustrações e desenhos,
fotografia, fonograma, programa de computador, entre outras elencadas no art. 7° da Lei do
Direito Autoral e no art. 2º da Convenção de Berna; bem como a repressão à contrafação, ou
seja, a reprodução não autorizada de obra intelectual protegida.

Em sua obra Diritto D’Autore, AMEDEO GIANNINI33 disserta que “la convenzione di Berna
dispone all’ art. 2, primo comma, che il termine ‘opere letterarie ed artistiche’ comprende
‘toutes les productions du domaine littéraire, scientifique et artistique’.”34

Para ANTÔNIO CHAVES,

A diferença essencial, que existe entre direito de autor e o de propriedade material, revela-se
tanto pelo modo de aquisição originário (único título: criação da obra), como pelos modos de
aquisição derivados, lembrando Bluntschli que no direito autoral uma perfeita transferência não

29
BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. 1956. v. 1. p. 233. Também citado por: Cf. CHAVES, Antônio. Direito
de autor. 1987. p. 16.
30
OMPI. El concepto de derecho de autor, antecedentes históricos y marco internacional. In: Curso de derecho
de autor y derechos conexos. 2003. p. 5.
31
Tradução livre: “Por direito de autor se entende um conjunto de direitos exclusivos determinados à proteção
das obras literárias e artísticas. A finalidade do direito de autor é promover as ciências, a cultura e as artes.
Por isso se oferece uma compensação aos criadores de tais obras e se trata de alcançar um equilíbrio entre
os direitos desses criadores e os direitos dos empresários, como os editores, os organismos de radiodifusão,
as empresas discográficas, etc., e os direitos do público.”
32
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 1994. p. 8. No mesmo sentido: Cf. Id., 1989. p. 15.
33
GIANNINI, Amedeo. Il diritto d’autore. 1943. p. 251.
34
Tradução livre: “a Convenção de Berna dispõe em seu art. 2º, inciso primeiro, que o termo obra literária e
artística compreende todas as produções do domínio literário, científico e artístico”.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 64


existe, não saindo completamente uma obra intelectual da esfera de influência da personalidade
35
que a criou.

Em nosso magistério, ao contrário das obras protegidas pela propriedade industrial, como as
marcas, as patentes, os desenhos industriais, etc., sendo que estes institutos só gozam da
proteção legal a partir da expedição do competente certificado de registro ou carta patente,
as obras tuteladas pelos direitos autorais independem do registro.36 Isto é, os direitos do
autor nascem no exato momento da concepção de sua obra intelectual e independem de
quaisquer outras formalidades administrativas ou jurídicas. O registro não é obrigatório por
lei, mas serve de presunção de autoria e como prova documental (que goza de fé pública)
em caso de disputa judicial.

Quanto aos direitos de autor, pode-se dividir didaticamente o direito autoral em duas esferas,
a fim de uma melhor compreensão da matéria e elucidação de uma gama de dúvidas ou
confusões que fazem as pessoas de uma forma em geral, quando tratam indevidamente do
assunto. São elas: os “direitos morais” de autor e os “direitos patrimoniais” (do autor ou do
respectivo titular).

São direitos morais de autor, o direito de paternidade da obra de sua criação intelectual, o
direito de reivindicar a qualquer tempo sua autoria; o direito de ter seu nome associado à
mesma; o direito de ver sua obra original e inalterada, dentre outros. Estes direitos morais
são inalienáveis e irrenunciáveis, na forma do art. 27 da Lei Autoral. Ou seja, após a criação
da obra, o criador sempre será seu autor e jamais poderá renunciar sua autoria nem
transferir a respectiva “autoria” a terceiros, a qualquer título.

Já os direitos patrimoniais se referem à utilização ou exploração econômica da obra


intelectual, quer seja pelo próprio autor, como por terceiro por ele autorizado. Isso quer dizer
que o autor, enquanto titular desses direitos patrimoniais poderá alienar, ceder ou licenciar
os direitos de publicação, edição, reprodução, transmissão ou retransmissão, distribuição,
etc., de sua obra. O terceiro que adquiriu a titularidade desses direitos de forma expressa
também poderá transferi-los, porém, tão somente a titularidade dos direitos patrimoniais.
Como quer a lei autoral, a transferência sempre se dará de forma expressa, ou seja, por
escrito, e se presumirá onerosa.

Nessa esteira de reprodução é que melhor se enquadra, a nosso ver, o chamado copyright,
que segundo MILLER e DAVIS37, ao traçarem em sua conhecida obra os principais objetivos
do copyright, tem-se o seguinte trecho:

The essence of copyright is originality, which implies that the copyright owner or claimant
originated the work. By contrast to a patent, however, a work of originality need not be novel. An
author can claim copyright in a work as long as he created it himself, even if a thousand people
created it before him. Originality does not imply novelty; it only implies that copyright claimant did
not copy from someone else. From that definition of originality comes the common but true
example that an author could gain a copyright on the Romeo and Juliet story as long as he made it
up himself and did not copy it from Shakespeare. Such a copyright would prevent anyone else
from copying the work of the copyright owner (but it would not prevent others from copying
38
Shakespeare’s creation since that is in the public domain).

35
CHAVES, Antônio. Direito de autor. 1987. p. 16.
36
CARDOSO, João Augusto. Do nome empresarial e sua tutela jurídica em face da marca registrada. 2004.
p. 22.
37
MILLER, Arthur R.; DAVIS, Michael H. Intellectual property: patents, trademarks, and copyright. 1990. p. 290.
38
Tradução Livre: A essência do copyright é a originalidade, que implica que o titular protegido por direitos
autorais, ou pretendente, originaram o trabalho. Ao contrário de uma patente, porém, um trabalho de
originalidade não necessita ser novo, inédito. Um autor pode reivindicar direitos autorais de um trabalho
contanto que ele o tenha criado, até mesmo se mil pessoas tivesses criado isto antes dele. Originalidade não

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 65


A reprodução de obra intelectual é exclusiva do autor39, que segundo BEVILAQUA, é a
faculdade “de reproduzir ou de autorizar a reprodução de seu trabalho”. Esse exercício de
direito é discriminado. Quanto às “obras literárias e científicas, compreende a faculdade
exclusiva de publicar, editar, espalhar, expor a venda, traduzir, e modificar a obra”.40

Esse princípio já vem consagrado na Convenção de Berna, porquanto GIANNINI41 o comenta


a partir do sistema italiano estabelecido pelo decreto-lei de 7 de novembro de 1925,
substituído pelo Codice Civile de 1942: “L’art. 511 (ora 2575 cod. civ.42) si riferisce al
contenuto dell diritto e dispone: ‘L’atore ha il diritto esclusivo di pubblicare l’opera e di
utilizzarla economicamente in ogni forma e modo, nei limiti e per gli effetti fissatti dalla
legge’.”43

Desta forma, a diferença fundamental entre os direitos morais de autor e os direitos


patrimoniais, consiste no fato de que uma obra intelectual escrita por Pedro jamais poderá
ser assinada por Maria (direitos morais), mesmo que ela lhe pague os proventos inerentes
aos direitos autorais; entretanto, com a expressa autorização, Maria poderá publicar a obra
de Pedro, porém, sempre com o nome do legítimo autor, e auferir os lucros decorrentes da
exploração econômica da obra (direitos patrimoniais).

4 Fundamentos jurídicos dos direitos autorais

Por tratar o presente artigo sobre direitos autorais no trabalho acadêmico, muito oportuno
ratificar que Dom Pedro I ao criar os dois primeiros cursos jurídicos no Brasil, através da Lei
de 11 de agosto de 1827, um em São Paulo e outro em Olinda, desde logo estabeleceu a
primeira norma de direitos autorais em seu art. 7º, que abaixo se reproduz, ipsis litteris:

Art. 7.º - Os Lentes farão a escolha dos compendios da sua profissão, ou os arranjarão, não
existindo já feitos, com tanto que as doutrinas estejam de accôrdo com o systema jurado pela
nação. Estes compendios, depois de approvados pela Congregação, servirão interinamente;
submettendo-se porém á approvação da Assembléa Geral, e o Governo os fará imprimir e
fornecer ás escolas, competindo aos seus autores o privilegio exclusivo da obra, por dez annos.

No tocante à natureza jurídica dos direitos autorais, muito se debateu sobre ser esta uma
propriedade ou não; e enquanto propriedade, se atinente aos direitos pessoais, reais ou
intelectuais, e mesmo quanto ao seu enquadramento dentre as antigas nomenclaturas, bem
como modernas, quer como propriedade literária, artística e científica, direitos intelectuais ou
mesmo enquanto propriedade imaterial ou propriedade intelectual. Isso posto, CHAVES
disserta em sua obra que o

implica novidade; só implica que o pretendente de direitos autorais não copiou de outra pessoa. Daquela
definição de originalidade vem a coisa comum, mas verdadeiro exemplo de que um autor pudesse obter
direitos autorais da história de Romeu e Julieta, contanto que ele a tivesse criado e não copiado de
Shakespeare. Esses tais direitos autorais visam prevenir qualquer um de copiar o trabalho de um titular
protegido pelos direitos de autor (mas não impediria outros de copiarem a criação de Shakespeare, desde
que ela esteja em domínio público).
39
Art. 28 da atual Lei de Direitos Autorais: Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra
literária, artística ou científica. Cf. Art. 649 do Código Civil de 1916: Ao autor de obra literária, científica ou
artística, pertence o direito exclusivo de reproduzi-la.
40
BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. 1950. v. 3, p. 206. No
mesmo sentido, Chaves comenta o art. 29 da revogada Lei nº 5.988/73: Cf. CHAVES, op. cit., p. 428.
41
GIANNINI, Amadeo. Il diritto d’autore. 1943. p. 23.
42
Cf. ITÁLIA. Codice Civile. Art. 2575 Oggetto del diritto. Formano oggetto del diritto di autore le opere
dell'ingegno di carattere creativo che appartengono alle scienze, alla letteratura, alla musica, alle arti
figurative, all'architettura, al teatro e alla cinematografia, qualunque ne sia il modo o la forma di espressione.
43
Tradução livre: Art. 511 (atual 2575 cod. civ.) se refere ao conteúdo do direito e dispõe: “Ao autor cabe o direito
exclusivo de publicar sua obra e de utilizá-la economicamente de toda forma e modo, nos limites e pelos
efeitos fixados pela lei”.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 66


direito de autor representa uma relação jurídica de natureza pessoal-patrimonial, sem cair em
qualquer contradição lógica, porque traduz uma fórmula sintética aquilo que resulta da natureza
44
especial da obra da inteligência e do regulamento determinado por esta natureza especial.

Concernente aos fundamentos jurídicos, pode-se afirmar que os direitos autorais classificam-
se dentre os direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal de 1988 em seu art.
5°, como se transcreve abaixo:

XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas
obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz


humanas, inclusive nas atividades desportivas;

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que


participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e
associativas;

Segundo disserta BITTAR,

os direitos autorais – a exemplo de outros direitos privados – vêm sendo constitucionalizados em


vários países, compondo o elenco dos denominados ‘direitos fundamentais da pessoa’ ou
‘liberdades públicas’, em razão da evolução alcançada no plano da preservação, ante ao Estado,
45
de direitos inatos do homem.

No Brasil, a matéria recepcionada pela constituição é regulada por lei específica, ou seja, a
Lei n° 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998, que “regula os direitos autorais, entendendo-se
sob esta denominação os direitos de autor e os que lhes são conexos”.

Antes disso, o direito de autor era regido pela revogada Lei n° 5.988/73 (apenas o art. 17 e
seus §§ 1° e 2° continuam em vigor até o momento). Somente com a nova lei autoral é que
foram expressamente revogados os arts. 649 a 673 do antigo Código Civil de 1916, que
tratavam no Título II, da Propriedade, Capítulo VI: da Propriedade Literária, Científica e
Artística.

Em sua obra, o professor CHAVES faz uma preleção acerca dos fundamentos dos direitos
autorais, conquanto destaca-se o seguinte trecho:

O direito de autor implanta-se tão profundamente nas necessidades primordiais da civilização, da


cultura e do progresso, que transcende os estreitos limites das legislações internas, dando origem
não apenas a importantíssimas convenções internacionais, mas lançando suas raízes na própria
46
Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Além de nossa carta magna e legislação pátria, a proteção autoral das criações intelectuais
também tem assento no art. 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, da qual o Brasil é país
signatário, como segue:

Artigo 27

44
CHAVES, op. cit., p. 6.
45
BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais do direito de autor. 1992. p. 26.
46
CHAVES, op. cit., p. 3-4.

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I) Todo o homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as
artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios.

II) Todo o homem tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de
qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

Além da Declaração acima, os direitos autorais são objeto de proteção de acordos ou


tratados internacionais do quais o Brasil também é país signatário.47 Dentre eles estão a
monumental Convenção de Berna, para a proteção de obras literárias e artísticas (Berne
Convention for the protection of literary and artistic works), de 9 de setembro de 1886,
completada em Paris em 1896, revisada em Berlim em 1908, completada em Berna em
1914, revisada em Roma em 1928, em Bruchelas em 1948, Estocolmo em 1967 e
novamente em Paris, em 1971, sendo aumentada em 1979.

Outro tratado internacional é a Convenção de Roma, para a proteção dos artistas intérpretes
ou executantes, dos produtores de fonogramas e dos organismos de radiodifusão
(Convention de Rome, convention internationale sur la protection des artistes interprètes ou
exécutants, des producteurs de phonogrammes et des organismes de radiodiffusion), de 26
de outubro de 1961.

Também há o Tratado da OMPI sobre Direitos de Autor (Traité de L’OMPI sur le Droit
D’Auteur), adotado pela conferência diplomática de 20 de dezembro de 1996. Estes três
últimos tratados e convenções internacionais são administrados pela Organização Mundial
da Propriedade Intelectual.

Dentre os tratados, há a Convenção Universal sobre o Direito de Autor, assinada em


Genebra, a 6 de setembro de 1952 e revista em Paris, a 24 de julho de 1971, por iniciativa
da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, que
tem o escopo “de assegurar em todos os países a proteção do direito de autor sobre obras
literárias, científicas e artísticas”, contando até 2003, com cerca de 98 Estados contratantes,
e dentre eles, o Brasil.

Ainda na esfera da proteção jurídica concernente ao direito internacional, há também o


Acordo sobre os Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual Relacionados com o
Comércio48 (Trade Related Intellectual Property Rights – TRIPs, ou Acuerdo sobre los
Aspectos de los Derechos de Propiedad Intelectual Relacionados con el Comercio – ADIPC),
que trata da matéria atinente ao direito de autor, além dos direitos de propriedade industrial,
e nele se adotaram as disposições fundamentais da Convenção de Berna. Este acordo foi
assinado em Marrakech, em 1994, e é relacionado ao comércio, pois foi adotado
originariamente na Rodada do Uruguai de negociações comerciais multilaterais do GATT49, e
é administrado por sua sucessora, a Organização Mundial do Comércio50.

47
“A constituição brasileira não determina claramente a sistemática para a aprovação de tratados no Brasil. Na
prática histórica: o Executivo negocia o tratado, remetendo uma mensagem ao Congresso Nacional; se
aprovado nas duas casas legislativas, o Congresso publica um decreto legislativo; o Presidente, então,
determina que se publique o tratado no Diário Oficial da União (geralmente como anexo a um decreto) e
procede à ratificação perante outro Estado ou o depositário, nos tratados multilaterais.” Cf. BARRAL, Welber.
Direito internacional: normas e práticas. 2006. p. 46.
48
“O Congresso Nacional brasileiro, aprovou a Ata Final da rodada Uruguai de Negociações Comerciais
Multilaterais do GATT em 15 de dezembro de 1994, pelo Decreto Legislativo nº 30 de 15/12/94, e o presidente
da República promulgou-a pelo Decreto nº 1355, de 30 de dezembro de 1994, entrando em vigor em 1º de
janeiro de 1995, revogando as disposições em contrário.” Cf. CHINEN, Akira. Know-how e propriedade
industrial. 1997, p. 77.
49
GATT: General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre Tarifas Alfandegárias e Comércio).
”Fórum permanente no qual se organizou, desde seu início, grandes conferências para negociar a redução dos
impostos alfandegários e diminuir as barreiras ao comércio internacional. Foi um tratado multilateral

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 68


No estudo de ANTONELLA CARMINATTI acerca da aplicação do TRIPs no Brasil, que dentre os
institutos de propriedade intelectual por ele tutelados está o direito de autor, este tem
aplicação na ordem jurídica interna, como se lê em suas próprias palavras:

Interpretando-se o § 2º do artigo 5º da Constituição Federal conjuntamente com o § 1º do mesmo


dispositivo, conclui-se que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, constantes
de tratados internacionais que o Brasil vier a promulgar, têm aplicação imediata.

Considerando que o TRIPs estabelece regras atinentes a direitos e garantias fundamentais em


matéria de propriedade intelectual, regulando o disposto no artigo 5º, XXIX da Constituição
Federal, e que o mesmo passou a integrar o ordenamento jurídico interno através do decreto nº
1.355, de 30 de dezembro de 1994, tem ele aplicação imediata, sobrepondo-se à legislação
51
ordinária em vigor, sem a necessidade de nova manifestação do Poder Legislativo.

Ainda nesta seara, há nova regra constitucional que complementa o art. 5º da Constituição
Federal, cujo parágrafo terceiro foi incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 de
dezembro de 2004, que assim prescreve:

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em


cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Sem se olvidar quanto à aplicabilidade das Convenções de Berna, de Roma e da Universal


no Brasil, na mesma esteira de argumentação de CARMINATTI, todas estão em pleno vigor no
ordenamento jurídico interno, vez que a primeira foi promulgada através do Decreto nº
75.699, de 6 de Maio de 1975, conquanto a segunda, através do Decreto nº 57.125, de 19
de Setembro de 1965. Já a Convenção Universal sobre o Direito de Autor, foi inserida em
nosso direito pátrio através do Decreto nº 76.905, de 24 de Dezembro de 1975. Ou seja,
todas estão em pleno vigor no Brasil.

À guisa de se complementar o presente tópico sobre os fundamentos jurídicos dos direitos


autorais, tanto quanto no direito pátrio quanto no direito internacional, têm-se que citar os
demais diplomas legais que historicamente regeram a matéria no Brasil, bem como as
Convenções internacionais que o Brasil assinou, conquanto vários diplomas já se tenham
tratados na parte histórica.

Anteriormente ao Código Civil de 1916, os direitos autorais eram regulados primitivamente


no Brasil pela Lei nº 496, de 1º de agosto de 1898, consoante ao disposto no art. 72, § 26 da
Constituição de 1891, que abaixo se transcreve, ipisis litteris:

firmado em 1947, em vigor a partir de 1948, que recebeu adesões ao longo de quase 50 anos por países que
representam a mais significativa parcela do comércio mundial. Seu objetivo fundamental foi o de garantir o
funcionamento do princípio de livre comércio no mercado mundial.” Cf. PIMENTEL, Luiz Otávio. Direito
industrial: As funções do direito de patentes. 1999. p. 26, nota nº 21.
50
A importância do acordo sobre o TRIPS: “Com a política de abertura de 1990, visando a globalização, o Brasil
assinou, com outros 120 países, em abril de 1994, em Marrakesh, o acordo sobre o TRIPS (Trade Related
Intellectual Property Rights) Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comércio, na Ata Final da Rodada Uruguai de Negociações Multilaterais do GATT (General Agreement on
Tariffs and Trade) Acordo Geral de Tarifas e Comércio, onde se estabeleceu a WTO (World Trade
Organization), conhecida entre nós por OMC (Organização Mundial de Comércio), que tem como objetivo
estabelecer entre os países membros, normas gerais para regerem o comércio internacional.” Cf. CHINEN, op.
cit., p. 77.
51
CARMINATTI, Antonella. A aplicação do TRIPS na ordem jurídica interna. Revista da Associação Brasileira
da Propriedade Intelectual, Rio de Janeiro, n. 17, p. 17, jul.-ago., 1995.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 69


Art. 72 A Constituição assegura a brazileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade
dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos seguintes
termos:

§ 26 - Aos autores de obras litterarias e artisticas é garantido o direito exclusivo de reproduziI-as,


pela imprensa ou por qualquer outro processo mechanico. Os herdeiros dos autores gozarão
52
desse direito pelo tempo, que a lei determinar.

A partir da também histórica Lei nº 2.577, de 17 de Janeiro de 1912, “estendeu-se a proteção


jurídica às obras publicadas em país estrangeiro, aderente a convenções internacionais
sobre a matéria”.53

No âmbito das convenções, há ainda que se citar a Convenção de Buenos Aires sobre
propriedade literária e artística, assinada em 11 de agosto de 1910, na quarta Conferência
Internacional Americana, que adentrou ao direito interno através do Decreto nº 11.588, de
19/05/1915.

Também, o Brasil assinou com Portugal o Acordo de 9 de setembro de 1889, e depois, a


Convenção de 22 de setembro de 1922, esta última promulgada pelo Decreto nº 16.452, de
9/04/1924.54 E com a França, em 15 de dezembro de 1913, assinou Convenção relativa às
obras literárias, científicas e artísticas, promulgada pelo Decreto nº 12.662, de 29/09/1917.55

Por todo o exposto, concernente aos fundamentos jurídicos dos direitos de autor, nota-se
pela gama de leis pátrias e tratados ou convenções internacionais, que a matéria já vem
sendo regulada há muito no ordenamento jurídico internacional, desde os primórdios de
1710 com a lei da rainha Ana, na Inglaterra, e timidamente inaugurada no Brasil pela célebre
Lei de Dom Pedro I, de 1827. Mas foi a partir da Convenção de Berna, cujos princípios
basilares se cristalizaram na lei pátria nº 496, de 1898, que estabeleceu a primeira legislação
atinente aos direitos autorais no Brasil.

Atualmente, como se vislumbrou acima, o Brasil contempla a proteção aos direitos de autor
desde a carta constitucional até lei federal específica, sem se olvidar dos tratados ou
convenções dos quais o Brasil é país signatário.

Portanto, os direitos autorais fundam-se em princípios jurídicos atinentes aos direitos


fundamentais do Homem, quer sejam os insculpidos no art. 5º da Constituição Federal de
1988, quer os constantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Por fim, em contrapartida ao direito positivo acima amplamente exposto, faz-se das palavras
do professor ANTÔNIO CHAVES as nossas palavras: “se algum direito natural existe, nenhum
poderá ser mais ‘natural’ do que o direito de autor”.56

5 Prazo de proteção da criação intelectual e domínio público

Dado ao relevo dos direitos morais e patrimoniais que envolvem a matéria atinente à
proteção autoral, estes são regidos tanto pela Constituição Federal e lei nacional própria,
quanto por tratados e convenções internacionais, como já se viu. Apesar dos prazos de
proteção dos direitos de autor serem diferentes em diversos países do mundo, há um prazo

52
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil. p. 40 e 44.
53
BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. 1950. v. 3. p. 198.
54
Ibid. p. 200-201.
55
Id. Direito das coisas. 1956. v. 1. p. 236.
56
CHAVES, Antônio. Direito de autor. 1987. p. 4.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 70


mínimo de 50 anos de proteção a ser adotado pelos países signatários em suas leis
nacionais, estabelecido pelo art. 7°, 1, da Convenção de Berna: Article 7, 1) La durée de la
protection accordée par la présente Convention comprend la vie de l’auteur et cinquante ans
après sa mort.57

O TRIPs adotou em seu texto, especialmente em seu artigo 9º, que os países membros
observarão o disposto nos artigos 1º a 21 da Convenção de Berna. Quanto ao tempo de
proteção das obras intelectuais adotado pelo TRIPs, prescreve em seu art. 12 que o prazo
não será inferior a 50 anos, senão vejamos:

Artículo 12

Duración de la protección

Cuando la duración de la protección de una obra que no sea fotográfica o de arte aplicado se
calcule sobre una base distinta de la vida de una persona física, esa duración será de no menos
de 50 años contados desde el final del año civil de la publicación autorizada o, a falta de tal
publicación autorizada dentro de un plazo de 50 años a partir de la realización de la obra, de 50
años contados a partir del final del año civil de su realización.58

Atualmente no Brasil, a proteção que é dada aos direitos patrimoniais de autor compreende
toda a vida da pessoa e mais 70 anos, contados a partir do dia 1° de janeiro do ano
subseqüente à morte do autor, na forma do art. 41 da Lei nº 9.610/98. À égide da revogada
lei autoral de 1973, bem como e anteriormente, o art. 649, § 1º do Código Civil de 1916,
esses direitos gozavam de 60 anos de proteção.

Entretanto, quando a obra literária, artística ou científica for criada em co-autoria, e esta for
indivisível, o prazo de proteção previsto no art. 41 acima, passará a ser contado a partir da
morte do último dos co-autores sobreviventes, na forma do art. 42. Porém, com relação às
obras anônimas ou pseudônimas, o prazo de proteção será de 70 anos, contudo, contados
da data da primeira publicação da obra. Todavia, se o autor for conhecido durante esse
prazo de vigência da proteção de que trata o art. 43, prescreve seu parágrafo único que a
regra de proteção será aplicada, então, na forma do art. 41, ou seja, de 70 anos após a
morte do autor.

Somente a partir de então, os direitos patrimoniais cairão em “domínio público”; ou como


dissertava BEVILAQUA, em “domínio comum”59, ao passo que não há prazo de proteção ou de
prescrição determinado em lei quanto aos direitos morais de autor, pois como se viu, são
inalienáveis e irrenunciáveis, como quer o art. 27 de nossa referida lei autoral, sendo
portanto, imprescritíveis.

Por domínio público se entende:


60
Domaine public:

57
Tradução livre: Artigo 7. A duração da proteção acordada para a presente Convenção compreende a vida do
autor e de cinqüenta anos após sua morte.
58
Tradução livre: Artigo 12. Duração da proteção. Quando a duração da proteção de uma obra, que não
fotográfica ou de arte aplicada, for calculada com uma base diferente à da vida de uma pessoa física, esta
duração não será inferior a 50 anos, contados a partir do fim do ano civil da publicação autorizada da obra ou,
na ausência dessa publicação autorizada, nos 50 anos subseqüentes à realização da obra, de 50 anos,
contados a partir do fim do ano civil de sua realização.
59
BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. 1950. v. 3. p. 204. Cf. Art.
649, § 2º do Código Civil de 1916.
60
DOMAINE PUBLIC. Cf. OMPI. Glossaire: termes et définitions. 2002. p. 26.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 71


Désigne, en matière de droit d’auteur, l’ensemble des oeuvres qui peuvent être exploitées par
quiconque sans aucune autorisation, dans la plupart des cas en raison de l’expiration de la durée
de protection ou de l’absence d’instrument international assurant une protection dans le cas des
61 62
oeuvres étrangères .

Ao contrário do que se poderia imaginar, que uma vez em domínio público as obras estariam
sem nenhuma garantia ou proteção, podendo delas se fazer qualquer tipo de uso e que não
haveria ninguém para reclamar, conforme preceitua o § 2º do art. 24 da Lei de Direitos
Autorais, “compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio
público”. Ainda, a Lei nº 5.805/72, “estabelece normas destinadas a preservar a
autenticidade das obras literárias caídas em domínio público”.

No tocante ao prazo prescricional dos direitos autorais, BEVILAQUA assevera que:

merece ser tratado à parte o direito autoral pela particularidade, com que se apresenta, em face
da ação dissolvente do tempo. Em primeiro lugar, há uma parte do direito autoral, a mais íntima, a
que constitui atributo especial da pessoa, que não se pode perder pela prescrição. Por mais longo
63
que seja o decurso do tempo, um autor conserva sua qualidade.

Ou seja, entende-se aqui que, os direitos morais de autor reputam-se ad aeternum, e o


nome do autor sempre acompanhará sua obra através dos tempos, e não poderia ser
diferente, como se verificará na sequência.

Quase 2500 anos já passados, Sófocles é sempre o autor de Antígona, Édipo Rei, Electra.
Mesmo que a estátua de Zeus Olímpico (400 anos antes de Cristo) tenha desaparecido,
Fídias é conhecido pela humanidade como seu criador, e igualmente a de Atena, como nos
ensina GANDELMAN.64

O escritor inglês William Shakespeare (1564-1616), autor de Ricardo III, Hamlet e Romeu e
Julieta, dentre tantas outras obras, ainda é considerado o poeta nacional da Inglaterra, e
reconhecido mundialmente como o maior autor dramático de todos os tempos. Luís de
Camões (1525-1580), poeta e dramaturgo português, autor de Os Lusíadas, foi quem,
através de suas obras, contribuiu para que a língua portuguesa se consolidasse.

Isso ocorre porque, como disserta DESBOIS65, “les prérogatives, inhérentes au droit moral,
accompagnent l’œuvre au cours de toute son existence, aussi longtemps qu’elle résistera
aux épreuves du temps”.66

Note-se que, do ponto de vista dos direitos morais de autor, ainda que suas obras já tenham
caído em domínio público, a relação entre o nome do autor e sua obra permanecem,
diferentemente de quando se trata dos chamados direitos patrimoniais de autor.

Imagine que um autor criou uma obra intelectual aos 18 anos. Como já se viu, o direito
nasceu com a concepção da própria obra. Este vem a morrer aos 98 anos. Assim, de acordo

61
No Brasil, os autores estrangeiros domiciliados no exterior gozam da mesma proteção legal que é aplicada em
nosso país, porquanto os brasileiros gozem de reciprocidade de proteção conferida por lei no país em que
tenham domicílio. (Art. 2º e seu parágrafo único da Lei nº 9.610/98).
62
Tradução livre: Domínio público: Pela perspectiva do direito de autor, domínio público significa o conjunto de
todas as obras que podem ser exploradas por qualquer pessoa sem necessidade de nenhuma autorização,
principalmente em razão da expiração do prazo de proteção ou porque não existe um instrumento
internacional que garanta a proteção em caso de obras estrangeiras.
63
BEVILAQUA, Clovis. Theoria geral do direito civil. 1951. p. 411-412.
64
GANDELMAN, Henrique. De Gutenberg à internet: direitos autorais na era digital. 1997. p. 27.
65
DESBOIS, Henri. Le droit d’auteur. 1950. p. 544.
66
Tradução livre: “As prerrogativas inerentes ao direito moral, acompanham a obra ao curso de toda sua
existência, por isto de muito que ela resiste às provas dos tempos”.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 72


com a lei civil autoral quanto aos direitos patrimoniais, a obra de sua criação intelectual tem
proteção por toda sua vida, e adicionam-se mais 70 anos. Podemos somar os 80 anos de
tutela enquanto vivo, mais 70 após sua morte, chegando a um prazo de proteção legal de
150 anos, ao passo que, quanto aos direitos morais, o de cujus (morto) sempre terá seu
nome ligado à sua obra.

Pelo acima exposto, claro está agora, que o fato de uma pessoa adicionar na internet, em
meio digital, publicar ou fazer comunicação ao público de sua obra intelectual, não implica
que esta caiu em domínio público, pois ainda prevalece a proteção de que trata a legislação,
quer quanto aos direitos patrimoniais, quer quanto aos direitos morais de autor. Ainda que o
autor dê expressa autorização para reprodução, implicando ou não na citação da fonte, este
poderá fazê-lo exclusivamente quanto aos direitos patrimoniais, pois está abrindo mão da
possível exploração econômica da obra.

Como já se verificou, a obra somente cai em domínio público, podendo ser “explorada” por
qualquer pessoa, a partir de 70 anos após a morte do autor. A conseqüência prática do
domínio público é a possibilidade de um editor publicar livremente de autorização dos
herdeiros e de proventos de direitos autorais as obras caídas em domínio público, como as
clássicas de Ihering, Maquiavel, Montesquieu, Voltaire, Aristóteles, Gracián e tantos outros
autores, porém, mantendo-se a fidelidade da obra, bem como o nome do autor ou seu
pseudônimo associado à mesma.

À título de exemplo de domínio público e de tradução, este autor do presente artigo, está
traduzindo obra intelectual, cujo original é edição publicada em Amberes, Bélgica, em 1669,
procurando-se manter a fidelidade da obra na tradução, e obrigatoriamente, o nome e o
pseudônimo do autor. Desta futura publicação, somente se possuirá os direitos autorais da
tradução e não do conteúdo intelectual da obra em si, ainda que esteja em domínio público,
pois o autor sempre será seu autor, como já se verificou.

Isso quer dizer que qualquer pessoa poderá publicar e republicar a obra que se encontrar
em domínio público em seu idioma original ou traduzida. Porém, não poderá publicar ou
republicar a tradução ainda protegida pelo direito de autor sem expressa autorização do
tradutor, pois aplica-se ao tradutor os mesmos direitos conferidos ao autor, consoante à
proteção autoral de sua tradução.

6 O trabalho acadêmico como obra intelectual e documento:

Parte-se do princípio que o trabalho acadêmico é fruto da criação intelectual, ou seja, é fruto
da criação da mente humana. Logo, como tal, é obra intelectual, e assim sendo, é instituto
protegido pela legislação autoral.

Suas características principais resultam do fruto do estudo e da pesquisa, da interpretação e


da crítica e de conhecimentos anteriormente obtidos através da leitura, das aulas, palestras,
audiovisuais e outras formas, que resultam em sua maioria na forma final escrita.

Contudo, isso não afasta a hipótese de que um dado trabalho acadêmico não possa ser
elaborado através de outro processo qualquer, que não seja simplesmente o escrito,
podendo ser, inclusive, oral, bem como apresentado através da execução de projetos ou
cumprimento de tarefas, cujo resultado final conferirá ao autor os direitos de proteção de
acordo com sua natureza, se obra protegível pelo direito autoral ou pela propriedade
industrial.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 73


Em seu estudo acerca do trabalho acadêmico, os TAFNER e FISCHER assim o classificam:
Trabalho de Graduação, Trabalho de Final de Curso, Monografia para os cursos de
especialização, Dissertação67 de mestrado, Tese68 de doutorado, Artigo de Periódicos e
Eventos Científicos, e Comunicação Científica.69

Quanto ao trabalho, MARIA FRANCISCA CARNEIRO disserta que:

em sentido amplo, todos os trabalhos acadêmicos podem ser entendidos como monografias.
Porém, em sentido estrito, dentre os trabalhos acadêmicos, a monografia é o mais basilar. Como
70
expressa a etimologia do vocábulo, é o escrito sobre um tema, com aspectos delimitados.

A Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, define trabalhos acadêmicos (trabalho


de conclusão de curso – TCC, trabalho de graduação interdisciplinar – TGI, trabalho de
curso de especialização e/ou aperfeiçoamento e outros) na NBR 14724, em sua regra 3.28,
como sendo:

Documento que representa o resultado de estudo, devendo expressar conhecimento do assunto


escolhido, que deve ser obrigatoriamente emanado da disciplina, módulo, estudo independente,
71
curso, programa e outros ministrados. Deve ser feito sob a coordenação de um orientador.

Ainda que o trabalho acadêmico não vise primeiramente resultados financeiros, EDUARDO
VIEIRA MANSO consigna que,

sendo a obra intelectual o fruto de um esforço humano capaz de proporcionar proveitos


econômicos, nada mais natural que atribuir, ao criador dela, todas as garantias para que essa
72
utilização patrimonial seja somente possível ao autor desse bem.

Conquanto aqui se pretenda demonstrar que além de obra intelectual, o trabalho acadêmico
resulta num documento73, mesmo que NELSON HUNGRIA disserte que “não são documentos
os papéis totalmente datilografados ou impressos (sem firma manuscrita)”, como são a
maioria dos trabalhos apresentados e entregues pelos alunos, porém, mais adiante, o autor
completa sua afirmação prelecionando que também não o são “os escritos que não
representam manifestações de idéias e, em geral, os destituídos de cunho pessoal”.74

Deste modo, ainda que o trabalho acadêmico seja inteiramente impresso, evidentemente,
este é uma obra intelectual, assim, é revestido de cunho pessoal (autoral), bem como
expressa manifestações de idéias, quer sejam particulares do próprio autor do trabalho, ou

67
DISSERTAÇÃO. “Documento que representa o resultado de um trabalho experimental ou exposição de um
estudo científico retrospectivo, de tema único e bem delimitado em sua extensão, com o objetivo de reunir,
analisar e interpretar informações. Deve evidenciar o conhecimento de literatura existente sobre o assunto e a
capacidade de sistematização do candidato. É feito sob a coordenação de um orientador (doutor), visando a
obtenção do título de mestre.” Cf. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 14724: regra
3.8. 2005. p. 2.
68
TESE. “Documento que representa o resultado de um trabalho experimental ou exposição de um estudo
científico de tema único e bem delimitado. Deve ser elaborado com base em investigação original,
constituindo-se em real contribuição para a especialidade em questão. É feito sob a coordenação de um
orientador (doutor) e visa a obtenção do título de doutor, ou similar.” Cf. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
NORMAS TÉCNICAS. NBR 14724. Regra 3.27. 2005. p. 3.
69
TAFNER, Malcon Anderson; TAFNER, José; FISCHER, Juliane. Metodologia do trabalho acadêmico. 1998.
p. 15.
70
CARNEIRO, Maria Francisca. Pesquisa jurídica. 1998. p. 48.
71
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 14724: informação e documentação, trabalhos
acadêmicos, apresentação. 2005. p. 3.
72
MANSO, Eduardo Vieira. Direito autoral. 1980. p. 22.
73
As definições de dissertação e tese, dadas pela ABNT 14724/2005, principiam com a expressão “documento”,
como já se verificou; determinando desde logo, que as monografias são documentos. Segundo a Dra. Maria
Francisca Carneiro, já citada, “dentre os trabalhos acadêmicos, a monografia é o mais basilar”.
74
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 1958. v. 9, p. 256.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 74


mesmo de outros tantos autores pesquisados e citados. Logo, podendo o trabalho ser
individualizado, é um documento, não sendo necessário que o docente colha a assinatura
(firma manuscrita) do autor, ou seja, do estudante, acadêmico.

Para a ABNT, quanto às bases de pesquisa, documento é “qualquer suporte que contenha
informação registrada, formando uma unidade, que possa servir para consulta, estudo ou
prova. Inclui impressos, manuscritos, registros audiovisuais, sonoros, magnéticos e
eletrônicos, entre outros”.75

Na preleção do jurista italiano VINCENZO MANZINI76,

Documento, in senso proprio, è ogni scrittura fissata sopra mezzo idoneo, dovuta ad un autore
determinato, contenente manifestazioni o dichiarazioni di volontà, ovvero attestazioni di vertà, atte
a fondare o a suffragare una pretesa giuridica o a provare un fatto giuridicamente rilevante, in un
77
rapporto processuale o in altro rapporto giuridico.

Para SÁ PEREIRA, em suas Exposições de Motivos ao Projeto de Código Criminal brasileiro,

São documentos: 1, os escritos em que algum direito ou relação jurídica se afirma; 2, os que se
destinam a provar, ou são afetos a provar qualquer fato de alcance jurídico; 3, os objetos que, por
78
convenção ou pelo costume social, se destinam a provar qualquer fato do “mesmo alcance”.

O eminente doutrinador italiano FRANCESCO CARNELUTTI, em sua Teoria del Falso79,


preleciona que o documento deve ser definido como “cualquiera cosa idónea à la
representación de un acto”80, conquanto em sua obra Sistema de Derecho Procesal Civil81,
assim define:

Documento, en sentido etimológico, es una cosa que docet, esto es, que lleva en sí la virtud de
hacer conocer; esta virtud se debe a su contenido representativo; por eso, documento es una
cosa que sierve para representar otra. Por otra parte, siendo la representación siempre obra del
82
hombre, el documento, más que una cosa, es un opus (resultado de un trabajo).

Mais adiante, CARNELUTTI83 ao referenciar o “autor”, nos ensina que “la importancia de la
consideración del autor del documento resalta porque el documento merece la fe que goce
su autor“.84 Isso quer dizer que, uma vez entregue o documento ou trabalho acadêmico, há
uma simples presunção de autoria, visto que o aluno regularmente matriculado na instituição

75
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: informação e documentação, referências,
elaboração. 2002. p. 2.
76
MANZINI, Vincenzo. Tratatto di diritto penale italiano. 1962. v. 6. p. 645-646. No mesmo sentido: “cioè tutte
le scritture pubbliche o private, fissate sopra mezzi idonei, dovute ad un autore determinato, contenenti
manifestazione o dichiarazioni di volontà, ovvero attestazioni di vertà, atte a fondare o a suffragare una
pretesa giuridica o a provare un fatto giuridicamente rilevante, in un rapporto processuale o in altro rapporto
giuridico”. Cf. op. cit., 1963. v. 9. p. 25.
77
Tradução livre: Documento, em sentido próprio, é toda escrita fixada sobre meio idôneo, provindo de autor
determinado, e contendo manifestações ou declarações de vontade, ou atestações de verdade, aptas a
fundamentar ou apoiar uma pretensão jurídica ou a provar um fato juridicamente relevante, seja em uma
relação processual, seja em qualquer outra relação jurídica.
78
PEREIRA, Virgílio de Sá. Projeto de código criminal. 1933. Artigo 379.
79
CARNELUTTI, Francesco. Teoria del falso. 1935. p. 138-139.
80
Tradução livre: “qualquer coisa idônea à representação de um fato”.
81
Id. Sistema de derecho procesal civil. 1944. v. 2., p. 414.
82
Tradução livre: Documento, em sentido etimológico, é uma coisa que docet, isto é, que leva em si a virtude de
fazer conhecer; esta virtude deve-se a seu conteúdo representativo; por isso, documento é uma coisa que
serve para representar outra. Por outro lado, sendo a representação sempre obra do homem, o documento
mais do que uma coisa, é um opus (resultado de um trabalho).
83
Ibid. p. 415.
84
Tradução livre: a importância da consideração do autor do documento ressalta porque o documento merece a
fé de que goze seu autor.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 75


de ensino estaria cumprindo, em tese, parcial ou totalmente os requisitos de aprovação ou
promoção da disciplina ou curso em questão, cuja relação jurídica adveio da simples
matrícula ou contrato de prestação de serviços educacionais entre as partes (instituição e
aluno).

Logo, uma vez constatada que a autoria do referido trabalho acadêmico é de outrem, ou
seja, em se tratando de plágio, sem prejuízo das sanções civis e penais previstas pela
legislação, o trabalho poderá ser desconsiderado, podendo, inclusive, ser a nota cancelada.
Isso quer dizer que o prejuízo sofrido pelo aluno poderá ser igualmente parcial ou total, ou
seja, se o trabalho acadêmico em questão for requisito fundamental para a obtenção de um
título de licenciado, bacharel, especialista, mestre ou doutor, por exemplo, sua titulação
poderá ser anulada. Se for parcial, poderá ser o aluno reprovado na série ou disciplina em
que a nota do trabalho cancelado for subtraída do cômputo total, e este não obtiver nota
suficiente para promoção ou aprovação.

Isso posto, e considerando que o conhecimento está a disposição de todos que o


alcançarem, e que está disponível em diversas plataformas ou meios físicos ou digitais, até
mesmo em informações verbais, dentre outras formas de transmissão, bem como é passado
de geração em geração, devemos verificar quais são os conhecimentos protegidos ou
protegíveis, e quais são os de domínio público, bem como o que é do senso comum, a fim
de sabermos exatamente o que é de nossa criação intelectual e o que é de criação de
terceiros, pois com o estudo aprofundado e a repetição, a memória pode nos confundir.

Como exemplo, note-se que na construção do presente artigo são feitas várias citações de
autores com suas respectivas referências bibliográficas, porquanto fora, também, escrito
com as próprias palavras, com base na experiência profissional, nos conhecimentos
anteriores obtidos através do estudo de muitos livros da área, apostilas, jurisprudência e
legislação, aulas expositivas, cursos, seminários, etc., salvo nos casos, como já foi dito, em
que houve citações de trechos de outros autores, dando-lhes a devida autoria de seus
escritos, bem como da legislação e jurisprudência, que nestes dois últimos casos, embora
não gozam de proteção autoral na forma da lei, também devem ser citados.

É essencial que na criação ou elaboração de um trabalho acadêmico ou científico, muitos


autores e suas obras devam ser lidos, entendidos, comparados, criticados, citados, para se
chegar ao fim proposto no projeto de elaboração. Entretanto, este novo trabalho igualmente
goza da proteção autoral, da mesma forma que os livros e artigos pesquisados (salvo os em
domínio público), não podendo ser contrafeitos.

Ao se concluir o presente item, consigna-se que alguns trabalhos acadêmicos ou científicos,


pela riqueza nas citações de trechos de outros autores, sem se olvidar das referências
bibliográficas, respeitados os limites legais, parecem verdadeiras colchas de retalhos,
porém, não perdem sua característica de obra intelectual, pela construção de um trabalho,
crítica ou estudo novo, resultando também em um documento.

7 Violação dos direitos autorais

A este respeito, CLOVIS BEVILAQUA escreveu as seguintes considerações: “As violações ao


direito dos autores são reprimidas por penas criminais e civis e, ainda, por prescrições
policiais”. A estes atos ilícitos, segundo o mesmo autor, “destaca-se, em primeiro lugar, o

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crime de contrafação, que é definido como ‘todo ato doloso ou fraudulento contra os direitos
de autor’.”85

Quanto à tutela jurídica do direito de autor, segundo BITTAR, “a tutela dos direitos autorais
estende-se por diferentes níveis, a fim de propiciar ao titular ampla proteção, a saber: civil,
penal e administrativa”.86

Segundo NELSON HUNGRIA, “a lei protege, aqui, o que se denomina ‘direito de autor’ ou
‘direito autoral’, concernente ao interesse econômico e moral que a lei reconhece ao autor de
obra intelectual, nacional ou estrangeira, no campo literário, científico ou artístico”.87

A violação dos direitos autorais implica em ato ilícito, na forma do art. 186 do Código Civil,
também prevista na Lei de Direitos Autorais em seus arts. 101 e seguintes, bem como crime,
tipificado pelo Código Penal. E “as sanções civis de que trata” a lei autoral em seu art. 101,
“aplicam-se sem prejuízo das penas cabíveis”, abaixo indicadas.

Os crimes contra a propriedade intelectual estão elencados no art. 184 do Código Penal, que
trata do crime de “violação de direito autoral e aqueles que lhe são conexos”, prescrevendo
uma pena de três meses a um ano de detenção, ou multa; podendo chegar a uma pena de
reclusão de dois a quatro anos e multa, conforme o caso.

Tal violação, como por exemplo a contrafação, é considerada crime pela legislação em vigor,
que não deve ser entendida de forma restritiva, ou seja, não só a reprodução não autorizada
em exemplares com o intuito de lucro, mas também a reprodução sem menção do nome do
autor merecem atenção da norma penal.

Além das demais cominações legais, o ato de reproduzir obra intelectual de outrem e/ou
colocar seu nome em lugar do autor, ou seja, como se fosse o autor, em nosso entender,
além da clássica violação de direito autoral, é crime tanto de estelionato quanto de falsidade
ideológica, bem como de falsificação de documento particular, considerando o trabalho
acadêmico, como já se considerou, como “documento”. O simples fato de reproduzir obra de
terceiro como se fosse sua, trata-se de obtenção de vantagem ilícita, e como prescreve o art.
171, também do Código Penal:

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou
mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.

Ainda que aparentemente possa se indagar qual seria o “prejuízo alheio” tipificado pelo art.
171 acima, sem o que, poderia não se caracterizar o crime de estelionato, crê-se que tal
prejuízo seja o da própria instituição de ensino em sentido lato, bem como e principalmente,
em sentido stricto, o prejuízo da violação aos direitos morais e patrimoniais de autor;
conquanto a vantagem ilícita é evidentemente a “nota” ou “conceito”, total ou parcial,
necessários para se considerar a aprovação ou reprovação de um aluno.

No mais, o fato de se reproduzir obra intelectual de outrem e substituir o nome do legítimo


autor por outro, em nosso parecer, constitui-se também em crime de falsidade ideológica,
tipificado pelo art. 299 do Código Penal, como se verifica abaixo:

85
BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. 1956. v. 1. p. 256.
86
BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais do direito de autor. 1992. p. 24.
87
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 1980. v. 7. p. 335.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 77


Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele
inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de
prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três


anos, e multa, se o documento é particular.

Ao comentar o referido art. 299, HUNGRIA ensina que documento “é todo escrito
especialmente destinado a servir ou eventualmente utilizável como meio de prova de fato
juridicamente relevante”88, entretanto, o autor também esclarece que nem todo papel escrito
é documento, mas alarga o conceito abrangendo outros suportes físicos que possam servir
para receber a escrita, e nos dias de hoje, podemos considerar também que o suporte
digital, eletrônico ou magnético possam ser incluídos aí, entre esses que podem ser
englobados como suporte, também considerados como “documentos”.

Ao tratar o trabalho acadêmico como documento (rever item 5), afirma-se que este serve
para se fazer “prova de fato juridicamente relevante”, ou seja, que o trabalho é uma das
formas de avaliação do aluno na atividade acadêmica, educacional ou escolar, e serve como
prova de aproveitamento de seus estudos, através da análise criteriosa de seu conteúdo;
destarte, o fato de se substituir o nome do legítimo autor e simplesmente trocar por outro
nome, além da reprodução, é tipificado como crime.

Também, a prática da “adaptação”, ou da “maquiagem” como é vulgarmente conhecida, de


trabalhos de terceiros fazendo-se passar como se fossem de outrem, além de violação de
direitos autorais, é prática tipificada como crime de falsificação de documento particular,
previsto no art. 298 do Código Penal, em tese alcançando também, conforme o caso, os
crimes de estelionato, bem como o de falsidade ideológica (pois o fato de se anotar o nome
de outrem em lugar do legítimo autor, usurpando-lhe a obra de criação intelectual, configura
essa prática).

Infelizmente, tais práticas tem sido bastante comuns nos meios acadêmicos, com as
“pseudo-justificativas” dadas pelos “pseudo-autores”, tão conhecidas pelos professores e
orientadores, que dentre elas estão: a falta ou ausência de tempo para estudar ou pesquisar;
falta de recursos ou bibliografia disponível; enfim, toda sorte de desculpas com o fito de se
furtar do trabalho acadêmico, incluindo-se a máxima de que desconheciam as normas
autorais ou metodológicas, o que sequer pode ser considerado, tendo em vista o disposto no
art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando
que não a conhece”.

8 Elaboração do trabalho acadêmico consoante às normas

A fim de não se violar as normas vigentes de Direitos Autorais na elaboração do trabalho


acadêmico, deve-se atentar para alguns pontos muito importantes que certamente
influenciarão em sua apresentação e conseqüente avaliação, pois o fruto da pesquisa
acadêmico-científica consolidado na construção do conhecimento é o prêmio maior que se
pode obter, ao passo que negligenciar estas normas ou regras poderão repercutir não só no
conceito ou nota mínima como também na reprovação.

Apesar de extremamente desagradável, ser reprovado pela insuficiência do objetivo


alcançado com o trabalho acadêmico é melhor que sê-lo pelo plágio, pois desde a “Grécia

88
HUNGRIA, Nelson, op. cit. 1958. v. 9. p. 250.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 78


antiga, assim como em Roma, o plágio era considerado uma ação desonrosa, e os gregos
contavam já com algumas formas de reprimir a pirataria literária”.89

Uma das advertências que sempre se deve fazer quando da elaboração do trabalho
acadêmico é a utilização do tipo (espécie, classificação e nível) de leitura apropriado para o
estudo dos vários autores, entender e escrever com as próprias palavras; ou, quando o autor
pesquisado chegou a uma síntese, definição ou conceito e a “citação” nas palavras dele for
importante, pode-se e deve-se fazer tal citação, ou seja, a “menção de uma informação
extraída de outra fonte”90, a fim de se fundamentar com maior profundidade e alcance o
objeto estudado.

DESBOIS91 disserta que “citer, au sens littéral du mot, c’est transcrire fidèlement, et en
indiquant la provenance du passage emprunté, l’œuvre d’un tiers”.92 Mais adiante, o autor
francês preleciona que “le «droit de citation» se caractérise par une certaine immunité, la
dispense de se premunir du consentment d’autrui”.93

Como se verifica, apesar de não ser necessário a solicitação de autorização do autor de uma
certa obra para que a citação seja feita em seu trabalho acadêmico ou científico, há,
entretanto, a obrigatoriedade de se efetuar as devidas referências ao autor citado e à obra
pesquisada.

Outros cuidados simples devem ser tomados a fim de que a citação não implique plágio e
esteja de acordo com a lei.

O primeiro deles é que toda citação dentro do corpo do texto deve estar sempre entre aspas.
O ideal é que as citações dentro do texto não ultrapassem três linhas (no formato A4),
tolerando-se até quatro, pois a partir daí, deve-se destacá-la do texto corrente, como se faz
com a citação de trecho de um acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cujo
relator foi o Desembargador VILLA DA COSTA, que abaixo se transcreve (da mesma forma
que as demais citações foram feitas no presente artigo):

Condena-se o plágio, que consiste na consciente apresentação de textos elaborados por outrem,
modificando-os ou não, como se fossem de sua autoria.

Não se trata, é evidente, de se proibir, a professores e estudiosos de ministrarem aulas,


utilizando-se de coleta de conhecimentos auferidos de livros e obras didáticas, com citações,
menções, considerações, comentários. Tudo isto é salutar, porque trata-se de fundamentação
embasadora dos ensinamentos proferidos, através de outras pesquisas realizadas. Mas, para isto
94
há as aspas, parênteses, colchetes, hífens e travessões ou, até mesmo, “negritos”.

A forma adequada de se destacar a citação com mais de três linhas no texto deve estar de
acordo com o manual de redação de monografias, dissertações e teses da universidade. De
acordo com a regra 5.3 da NBR 10520, o recuo da margem esquerda deve ser feito com 4
cm. No entanto, alguns manuais universitários recomendam também o recuo da margem
direita.

89
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Abc dos direitos
autorais. 1984. p. 13.
90
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: informação e documentação, citações em
documentos, apresentação. 2002. p. 1.
91
DESBOIS, Henri. Le droit d’auteur. 1950. p. 349.
92
Tradução livre: “Citar, no sentido literal da palavra, consiste em transcrever fielmente e indicar a proveniência
da passagem emprestada da obra de um terceiro”.
93
Tradução livre: “o «direito de citação» se caracteriza por uma certa imunidade, a dispensa de se acautelar do
consentimento de outrem”.
94
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação 178.064-1/0, 24 de novembro de 1992, 8ª Câmara Cível. Revista
dos Tribunais, 698, p. 82.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 79


A recomendação geral quanto ao espaçamento (entrelinhas) da citação é o “simples” e em
corpo (tamanho da fonte) menor do que o texto, ou seja, se o texto é redigido em corpo 12, o
corpo da citação destacada será em 11. Normalmente o trabalho acadêmico de conclusão
de curso deve ter espaçamento entrelinhas de 1½ ou espaçamento duplo, conforme as
orientações do manual universitário utilizado.

Em todos os casos, as notas de referência, ou seja, a referência bibliográfica da citação


deve ser feita de acordo com a NBR 10520, devendo o autor e a obra serem citados de
acordo com a norma ou padrão que se esteja seguindo, em notas de rodapé ou no corpo do
texto entre parênteses, bem como a correta anotação das “referências bibliográficas ou
bibliografia” ao fim do trabalho, de acordo com a NBR 6023.

Quanto à citação, GIANNINI95 já dissertava sobre a autorização legal ao comentar a lei autoral
italiana em sua obra, referenciando que:

la citazione e la riproduzione di brani o di parti di opere per scopi di critica, di discussione ed


anche di insegnamento sono liberi ‘nei limiti giustificati da tali finalità e perchè non costituiscano
96
concorrenza’ all’utilizzazione economica dell’opera.

A própria Lei brasileira dos Direitos Autorais autoriza a citação “na medida justificada” em
seu art. 46, III, abaixo transcrito, determinando que não se trata de violação dos direitos
autorais; porém, como já visto anteriormente através da legislação e jurisprudência,
condena-se a contrafação e o plágio:

III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens
de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a
atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra;

Considerando a citação, o mesmo art. 46 acima referenciado, prescreve em seu inciso VIII a
questão da reprodução de pequenos trechos em quaisquer obras, incluindo-se aí os
trabalhos acadêmicos, que se transcreve ipsis verbis:

VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de


qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si
não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra
reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

Por fim, para uma melhor compreensão de como efetuar corretamente as citações, notas de
referências, notas de rodapé, referências bibliográficas, bem como conhecer as demais
normas atinentes à produção e formatação do trabalho acadêmico, recomenda-se a leitura e
o estudo das Normas Brasileiras de Referência – NBRs, a seguir elencadas: NBR 14724
(Informação e documentação, trabalhos acadêmicos, apresentação, 2005); 6022 (Artigo em
publicação científica impressa, apresentação, 2003); 6023 (Referências, elaboração, 2002);
6024 (Numeração progressiva das seções de um documento escrito, 2003); 6027 (Sumário,
2003); 6028 (Resumo, 2003); 6029 (Livros e folhetos, 2006); 6034 (Índice, 2004); 10520
(Citações em documentos, 2002); 10719 (Apresentação de relatórios técnico-científicos,
1989) e NBR 15287 (Projeto de pesquisa, apresentação, 2005); todas da ABNT –
Associação Brasileira de Normas Técnicas.

95
GIANNINI, Amadeo. Il diritto d’autore. 1943. p. 55.
96
Tradução livre: A citação e a reprodução de trecho ou de parte da obra com o fim de crítica, de discussão ou
mesmo de ensino é livre “no limite justificado à finalidade a ser atingida, desde que não constitua
concorrência” a utilização econômica da obra. Cf. Art. 10 da Convenção de Berna.

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9 Considerações Finais

Conclui-se, portanto, que a legislação autoral em vigor no Brasil – quer seja a Constituição
Federal de 1988 em seu art. 5º, XXVII e XXVIII ou a Lei pátria (9.610/98), bem como os
Tratados e as Convenções internacionais das quais o Brasil é país signatário –, protege os
direitos de autor, aqui se destacando o trabalho acadêmico, dentre as obras intelectuais
escritas.

Como já estudado, afirma-se que o trabalho acadêmico escrito constitui-se em obra


intelectual e em documento, que provém de autor determinado (o aluno, estudante ou
acadêmico), sendo hábil a fundamentar um direito ou pretensão jurídica (nota ou aprovação)
junto a uma disciplina ou instituição de ensino de qualquer natureza e grau.

Isso significa que o trabalho acadêmico deve ser original, novo, e não pode ser cópia total ou
parcial de outras obras intelectuais pesquisadas, como artigos e monografias, livros ou
apostilas, utilizando-se de textos de outros autores como se fossem seus, sob pena de
plágio e/ou violação de direitos autorais, concorrendo tanto o ilícito civil como o penal, além
de outros crimes em suas possíveis modalidades: contrafação, estelionato, falsidade
ideológica e falsificação de documento particular.

O fato de se localizar obras intelectuais disponíveis para pesquisa pública em meio


eletrônico (pela internet, por exemplo), não implica que são públicas ou de domínio público,
pois são de titularidade do autor ou de terceiro legitimado; e o fato de também serem
protegidas pelo Direito de Autor, implica que a reprodução no todo ou em parte com o fim de
exploração da obra à qualquer título, deve ser expressamente autorizada pelo legítimo titular
dos direitos patrimoniais, salvo as de domínio público, porém, o nome do autor não pode ser
suprimido, e a fonte deve ser referenciada.

Isso não quer dizer que mesmo que você obtenha a autorização expressa ou consentimento
tácito do legítimo autor ou titular dos direitos patrimoniais de uma obra intelectual, você
possa utilizar a obra como se fosse sua, ou seja, substituindo os nomes e apresentar a obra
como trabalho acadêmico de sua autoria.

Entretanto, como já se estudou, a citação de trechos e passagens de outras obras de vários


autores a fim de fundamentar a argumentação do trabalho acadêmico, comparar, criticar,
dentro da medida justificada a esse fim, não constitui violação de direitos autorais,
conquanto haja a devida referência dos autores e suas obras utilizadas.

Com efeito, as idéias ou mesmo trechos de outros autores devem ser citados
adequadamente, utilizando-se a norma aplicável a cada caso, a fim de que palavras ou
idéias de outrem não se confundam com as suas e não haja, portanto, violação de direitos
de autor. Assim, estará criando obra nova, original, que possa realmente contribuir para o
aprofundamento ou desenvolvimento do estudo em questão, bem como contribuir para a
construção do conhecimento.

Por fim, para a correta elaboração do trabalho acadêmico é necessário o estudo e a


pesquisa a partir de diversas fontes, como livros, jornais, revistas e outros periódicos,
enciclopédias, dentre tantas outras em papel ou meio eletrônico, sem se olvidar das normas
de padronização do trabalho acadêmico.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 81


Abstract: This paper aims to contribute with the propagation of the copyrights among the
students that deal with the intellectual production during the graduation or post-graduation. Its
objective is, in particular, to transmit doctrinaire and legal information so that they can
produce their academic papers with more security and awareness, without the risk of
violating the copyrights of any author due to lack of knowledge about plagio, counterfeit or
other civil or penal illegal works. In order that the violation does not occur, it is necessary to
recognize that the academic paper is an intellectual production characterized as a document
and, therefore, protected by legislation of intellectual property since Federal Constitution to
the specific law of copyright, as well as the international agreements and treaties which Brazil
is the signatory country. Consequently, its violation is classified as crime. Besides the
orientation that the rules inscribed in the legislation of copyright must be followed to
recognize the need and the importance of the quotation of the renowned authors and their
production, even if their in the public domain, we have to draw the attention of the public that
the norms issued by ABNT be equally followed. Considering the above mentioned together
with the development of reading, study and research, when writing the paperwork, the
student will be contributing with the development of this theme and for knowledge building.

Keywords: copyright; academic papers; documents; plagio; public domain

Referências

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Revista Jurídica
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/index.htm

Artigo recebido em 31/07/2007 e aceito para publicação em


31/08/2007

A Revista Jurídica destina-se à divulgação de estudos e trabalhos


jurídicos abrangendo todas as áreas do Direito.

Os originais serão submetidos à avaliação dos especialistas,


profissionais com reconhecida experiência nos temas tratados.

Todos os artigos serão acompanhados de uma autorização expressa


do autor, enviada pelo correio eletrônico, juntamente com o texto
original.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.58-86, ago./set., 2007 86


Artigos

O Writ of Certiorari*

José Guilherme Berman C. Pinto

Advogado, Mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio, professor de Direito


Constitucional da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro) e das Faculdades
Integradas Doctum (Juiz de Fora).
jgberman@gmail.com

Resumo: O artigo procura fazer uma análise do writ of certiorari, principal mecanismo de
acesso à Suprema Corte dos Estados Unidos, por meio do qual seus integrantes selecionam
os casos que serão julgados anualmente. Os juízes possuem ampla discricionariedade na
seleção dos recursos, o que leva cientistas políticos e sociais a investigar quais são as
características que um caso deve possuir para ser admitido na mais alta corte
estadunidense. A análise parece oportuna, considerando-se a forte influência que o judicial
review norte-americano teve sobre a jurisdição constitucional brasileira, tanto historicamente
quanto em alterações recentes promovidas pela Reforma do Judiciário (Emenda
Constitucional nº 45/2004), notadamente na adoção de mecanismos como a súmula
vinculante e a repercussão geral dos recursos extraordinários.

Palavras-chave: direito constitucional; controle de constitucionalidade; Estados Unidos; writ


of certiorari

Sumário: 1 Introdução - 2 O writ of certiorari - 3 Aspectos institucionais - 4 A busca por


critérios entre os pesquisadores da Suprema Corte - 5 Os casos que não merecem o
certiorari – uncertworthiness - 6 Os casos que merecem o certiorari – certworthiness; 7 O
modelo de decisão de Perry - 8 Críticas e síntese

1 Introdução

O controle de constitucionalidade das leis hoje é uma prática amplamente difundida ao redor
do globo como a forma mais eficaz de assegurar a supremacia de textos constitucionais que,
cada vez mais, ocupam o centro do universo jurídico, ao redor do qual gravitam os demais
ramos tanto do direito público como do direito privado1. E, se hoje o judicial review possui
essa amplitude, isso se deve à contribuição da doutrina estadunidense, que, no início do
século XIX, afirmou ser da competência do Poder Judiciário decidir se os atos normativos
infraconstitucionais são ou não compatíveis com a norma fundante de um ordenamento
jurídico – a Constituição.

Dentro deste movimento de expansão do judicial review pelo globo, pode-se dizer que o
Brasil foi pioneiro. Já na Constituição de 1891 estava previsto o exercício da fiscalização da
constitucionalidade das normas pelo Poder Judiciário, por influência direta do direito
estadunidense2. Assim, muito embora o sistema jurídico brasileiro não seja filiado à tradição
*
Este artigo corresponde, com algumas modificações, ao Capítulo 3 da dissertação de mestrado
defendida pelo autor no Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, em maio de 2006. A
respeito, v. PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. Repercussão geral e writ of certiorari.
2006. 161 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade
Católica, Rio de Janeiro, 2006.
1
Sobre a relação entre controle de constitucionalidade e a supremacia e rigidez constitucionais, v.
BARROSO, Luís Roberto. O Controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2006, p. 1-2; BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. São
Paulo: Malheiros, 2005. p. 296-297.
2
Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 87


da common law, em que os precedentes judiciais ocupam papel central no desenvolvimento
do direito, o controle de constitucionalidade foi aqui implementado em seu modelo difuso-
concreto, no qual a aferição de compatibilidade das normas com o texto constitucional é feito
por qualquer juiz, a partir do exame de um caso concreto3.

As diferenças entre o direito brasileiro e o estadunidense, no entanto, tornaram difícil a


operacionalização de um sistema de controle de constitucionalidade que permita a todos os
juízes, livremente, analisar a adequação das normas ao texto constitucional, levando a um
risco exacerbado de decisões contraditórias acerca da mesma matéria (justamente por não
haver efeito vinculante das decisões proferidas pela instâncias superiores, como nos
Estados Unidos). A solução de atribuir ao Senado Federal a incumbência de suspender a
execução de lei declarada inconstitucional pelo STF, conferida por meio do artigo 52, inciso
X, da Constituição de 1988 (repetindo a saída adotada desde 1934), mostrou-se
insatisfatória. Outra alternativa, buscada mais recentemente pelos nossos legisladores, tem
sido o fortalecimento do controle abstrato e concentrado, fornecendo ao Supremo
mecanismos cada vez mais fortes para uniformizar os entendimentos sobre interpretação da
Constituição Federal e, por outro lado, enfraquecendo a jurisdição difusa realizada pelos
tribunais ordinários.

Com efeito, de todas as recentes modificações no controle de constitucionalidade das


normas exercido no Brasil, praticamente todas se dirigiram a reformas no controle abstrato
de normas (veja-se, por exemplo, a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade, a
regulamentação da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a possibilidade
de modulação temporal dos efeitos das declarações de inconstitucionalidade, entre outras).
E, ressalte-se, todas estas modificações não foram suficientes para desafogar o Supremo
Tribunal Federal, que continua analisando um número de recursos bastante superior à sua
capacidade.

Com a Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004, os olhos voltaram-se novamente


para o controle concreto de constitucionalidade. Foram introduzidas duas importantes
novidades: a súmula vinculante e a repercussão geral, cuja demonstração passou a ser
exigida em todos os recursos extraordinários que batem às portas do STF. E, não só ambos
os institutos aplicam-se especificamente ao controle concreto de constitucionalidade, como
têm inequívoca origem no direito estadunidense4.

Parece certo que, com tais mecanismos de filtragem, o Supremo Tribunal Federal busca
selecionar as questões constitucionais mais relevantes e decidi-las de maneira a pacificar a
sua aplicação não apenas no âmbito do próprio STF, mas também (e principalmente) nas
demais cortes judiciais do país, exercendo, assim, a sua verdadeira função de tribunal
responsável pela interpretação constitucional definitiva, e não de terceira instância revisora
dos julgamentos proferidos em milhares de casos5.

325-326; CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito


brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 82-84.
3
Sobre os sistemas abstrato e concreto de fiscalização da constitucionalidade, v. BONAVIDES, op.
cit., p. 302-311.
4
Sobre a inspiração norte-americana para a introdução da repercussão geral entre nós, v. PINTO,
José Guilherme Berman C. Repercussão geral e writ of ceriorari. Dissertação de mestrado
apresentada no Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio, 2006, pp. 95-99.
5
Esta tendência é apontada também por Fredie Didier Jr., que fala em “objetivação” do recurso
extraordinário. V., a respeito, DIDIER JR., Fredie. “O recurso extraordinário e a transformação do
controle difuso de constitucionalidade no direito brasileiro”, in CAMARGO, Marcelo Novelino.
Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade. Salvador:
Juspodivm, 2007.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 88


O que se buscará neste artigo é analisar como os Estados Unidos (que, repita-se, serviram
de inspiração para as nossas recentes reformas) lidaram, décadas atrás, com o mesmo
problema. E, como se verá, a solução encontrada foi a utilização de um poderoso filtro de
admissibilidade das questões analisadas pela Suprema Corte, o writ of certiorari. Espera-se
que esta análise possa ser útil na busca por uma jurisdição constitucional adequada à
realidade brasileira, sem a ilusão de que aquilo que funciona em outros locais funcionará
aqui sem as devidas adaptações, mas conscientes de que o conhecimento de experiências
alienígenas pode ajudar no desenvolvimento do nosso direito.

2 O writ of certiorari

No direito estadunidense, a Suprema Corte funciona como órgão de cúpula do Poder


Judiciário, sendo hierarquicamente superior a todos os demais tribunais e juízes do país,
possuindo diversas competências, tanto originárias quanto recursais. Entre estas últimas, de
todos os caminhos para a Suprema Corte, aquele que se dá por meio do writ of certiorari, no
qual a Corte decide discricionariamente se conhece ou não de determinada questão, é o
mais comum. Ao longo da história, a tendência observada é de fortalecimento do controle
discricionário (via certiorari), em detrimento do controle obrigatório, tido como um direito do
jurisdicionado6. Atualmente, quase todos os casos analisados pela Suprema Corte chegam
ali por meio deste writ.

O certiorari dá à Suprema Corte um controle praticamente absoluto sobre os casos que


serão julgados naquela instância. Sua introdução no sistema jurídico norte-americano deu-se
por meio de uma lei de 3 de março de 1891. Até então, em diversas matérias, as decisões
das Cortes Distritais e de Circuito não podiam ser revistas pela Suprema Corte. Com a
referida lei, a Suprema Corte recebeu o poder de, através de um writ of certiorari, conhecer
de determinado caso, ordinariamente não submetido à sua esfera de competência7. Ainda
assim, diversos casos permaneciam afastados da jurisdição da Suprema Corte. O passo
definitivo em direção ao fortalecimento do certiorari foi dado com um diploma normativo
conhecido como “Lei dos Juízes” (Judge’s Bill), aprovado em 1925. O grande mentor desta
reforma foi o Chief Justice William Howard Taft, que assumiu a presidência da Suprema
Corte em 1921, depois de ter sido presidente dos Estados Unidos entre 1908 e 19128.

O desafio que o certiorari enfrenta é o de conciliar a necessidade de uniformização do direito


aplicado em todo o território dos Estados Unidos com as limitações de um tribunal composto
por apenas nove juízes. Cabe justamente à Suprema Corte o papel de conferir unidade ao
ordenamento jurídico. Porém, o volume de trabalho que lhe seria atribuído caso tivesse de
decidir todas as questões controversas e uniformizar todas as diferentes interpretações
existentes no Judiciário norte-americano já era considerado, à época em que o instituto
surgiu, como insuportável para uma corte tão pequena. O certiorari, desta forma, é visto não
como a solução ideal, mas como o mecanismo que torna viável a atuação da Suprema Corte
na uniformização do direito vigente nos Estados Unidos, por meio da apreciação dos casos
mais importantes, de acordo com o seu próprio julgamento9.

6
NOWAK, John E.; ROTUNDA, Ronald D.; YOUNG, J. Nelson. Constitutional law. St Paul,
Minnesota: West Publishing, 1978. p. 29-30. Destaca-se a seguinte passagem: “The Supreme
Court achieved its goal of limiting appellate jurisdiction as of right and expanding discretionary
jurisdiction for a large class of cases.”.
7
Cf. MADDEN, J. Warren. One Supreme Court and the writ of certiorari. Hastings Law Journal, v.
15, p. 155, nov. 1963.
8
Cf. HARTNET, Edward A. Deciding what to Decide: the judge’s Bill at 75. Judicature, v. 84, n. 3,
dez. 2000.
9
V. MADDEN, J. Warren, op. cit., p. 159, de onde se destaca: “if the country is to have a unified and
uniform system of Constitutional and statutory justice, there must be a single tribunal with power to
decide what the federal law is, and to supervise, and correct, if necessary, the actions of other

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Quando a lei foi aprovada, imaginava-se que o certiorari seria concedido sempre que
houvesse um conflito entre decisões de instâncias inferiores (garantindo-se a uniformidade
da aplicação do direito federal em toda a nação). Havia a crença, ainda, de que apenas se
negaria o certiorari quando a decisão recorrida fosse claramente correta, ou seja, quando
não houvesse dúvida quanto à sua conformidade com a Constituição. Diante de tais
argumentos, e com forte pressão de Taft e de seus colegas de Suprema Corte, alguns deles
antigos políticos, a lei foi aprovada praticamente sem enfrentar oposição nas duas casas do
Congresso norte-americano10.

Mas tão logo a indigitada lei entrou em vigor, a Suprema Corte passou a aplicá-la de
maneira bem mais ampla do que a imaginada. Já em 1928, no julgamento do caso Olmstead
v. United States11, estabeleceu-se a possibilidade de concessão de certiorari limitado, ou
seja, passou-se a admitir a discussão de “questões constitucionais” inseridas no contexto de
um determinado caso concreto. De acordo com esta técnica, o mérito do caso nem sempre
será analisado, mas apenas uma questão específica envolvida, ignorando-se outras
matérias também abordadas na discussão. Na prática, esta acabou tornando-se a regra12.
Assim, aquilo que havia sido imaginado como uma forma de lidar rapidamente com casos
explicitamente infundados ou já cobertos pelos precedentes consolidados na jurisprudência
tornou-se um mecanismo de poder discricionário na escolha da agenda da Suprema Corte.

Esta utilização ampla da discricionariedade conferida pelo writ of certiorari, especialmente


em sua modalidade limitada, traz consigo problemas de harmonização com a justificação
tradicional do judicial review e com a exigência do devido processo legal (due process). A
justificativa tradicional para o exercício do controle de constitucionalidade, contida no voto
proferido pelo juiz Marshall no julgamento de Marbury v. Madison13, defende que o Judiciário
deve ter o papel de dizer o que o Direito é, o que pressupõe que este papel deva ser tido
não como um direito arbitrariamente exercido em alguns casos apenas, mas sim como o

tribunals which have decided cases involving federal questions. Since it is physically impossible for
any single tribunal to take all, or even any large fraction of such cases and give them the full
consideration (...) the country must be satisfied with the best that can be done, in the
circumstances.” Em tradução livre: “se o país deve ter um sistema unificado e uniforme de justiça
constitucional e legal, deve haver um único tribunal com poder de decidir o quê o direito federal é,
e supervisionar, e corrigir, se necessário, as ações dos outros tribunais que tenham decidido casos
envolvendo questões federais. Como é fisicamente impossível para qualquer tribunal isoladamente
conhecer de todos, ou mesmo de boa parte de tais casos e destinar a eles inteira consideração, o
país deve se satisfazer com o melhor que pode ser feito, sob tais circunstâncias.”
10
Cf. HARTNETT, Edward A., op. cit., p. 122-123 e MADDEN, J. Warren, op. cit., p. 156-157.
11
277 U.S. 438 (1928)
12
Cf. HARTNETT, Edward A., op. cit., p. 124. Destaca-se o seguinte trecho: “This practice of limited
grants of certiorari has become so uncritically accepted that, under current Supreme Court rules, no
writ of certiorari brings before the Court all questions presented by the record. Today, then, all writs
of certiorari are limited writs. Put slightly differently, the Supreme Court does not so much grant
certiorari to decide particular cases, but rather to decide particular questions”. Em tradução livre,
“Esta prática de conceder certiorari limitado tornou-se tão aceita acriticamente que, sob as regras
atuais da Suprema Corte, nenhum writ of certiorari coloca diante da Corte todas as questões
apresentadas no caso. Hoje, portanto, todos os writs of certiorari são limitados. Colocando de
maneira um pouco diferente, a Suprema Corte não concede certiorari para decidir casos
particulares, mas sim para decidir questões particulares.”
13
5 U.S. (1 Cranch), com destaque para a seguinte passagem: “it is emphatically the province and
duty of the judicial department to say what the law is. Those who apply the rule to particular cases
must of necessity expound and interpret that rule. If two laws conflict with each other, the courts
must decide on the operation of each”. Em tradução livre: “é enfaticamente a provincial e o dever
do Poder Judiciário dizer o que o direito é. Aqueles que aplicam a regra a casos particulares
devem necessariamente expor e interpretar aquela regra. Se duas leis colidem uma com a outra,
as cortes devem decidir sobre a operacionalização de cada uma.”

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dever de se pronunciar sempre que um conflito seja estabelecido processualmente14. Porém,
o certiorari modifica esta lógica de justificação, permitindo à Suprema Corte escolher os
casos que irá julgar, sem precisar sequer de apresentar justificativa para sua recusa em
apreciar outras questões, às quais se nega o certiorari15.

Duas linhas de raciocínio podem ser indicadas como as respostas à objeção citada acima.
De um lado, diz-se que o certiorari é um mecanismo utilizado apenas pela Suprema Corte.
Logo, sua denegação não significa que uma determinada questão ficará sem resposta, mas
apenas que o pronunciamento das instâncias inferiores será definitivo naqueles casos. De
acordo com esta visão, a Constituição exigiria que alguma instância do Poder Judiciário
apreciasse todas as questões jurídicas envolvidas no caso, mas não que todos os tribunais
responsáveis pelo julgamento de eventuais recursos o fizessem. Scott H. Bice, por exemplo,
adota esta postura ao tentar reconciliar o certiorari e a justificação tradicional do judicial
review. Segundo o autor, a dificuldade encontrada nesta tarefa a partir da leitura de Marbury
v. Madison é apenas aparente, decorrendo de uma interpretação ampla do que foi decidido
no paradigmático caso. Na hipótese de se adotar uma interpretação restrita, não existe
dificuldade alguma. Isto porque, como explica Bice,

Marbury v. Madison foi apresentado diretamente à Suprema Corte numa tentativa de invocar
a competência originária da Corte. Portanto, a Corte estava, com efeito, deliberando como
uma corte de julgamento16 quando proferiu sua decisão afirmando que as cortes têm o dever
de considerar todo o direito relevante para a decisão do caso. A opinião da Corte fala
genericamente do dever das cortes, não fazendo qualquer distinção entre o dever das cortes
de julgamento e o dever das cortes de apelação; reconstruída de maneira estrita, a opinião
pode ser lida como dirigida apenas ao escopo do dever das cortes de julgamento. Em outras
palavras, porque a Corte estava sentada como uma corte de julgamento, a decisão pode ser
interpretada estritamente, como se dissesse que apenas as cortes de julgamento têm o
dever de resolver todo o direito necessário à resolução da causa, deixando aberto o escopo
do dever das cortes de apelação17. (grifos no original)

14
Cf. HARTNETT, Edward A., op. cit, p. 125; BICE, Scott H. The limited grant of certiorari and the
justification of judicial review. Wisconsin Law Review, v. 1975, p. 380-383. V., também,
WECHSLER, Herbert. Toward neutral principles of constitutional law. Harvard Law Review, v. 73,
n. 1, nov. 1959, onde o autor reconhece a necessidade de limitar o acesso dos recursos à
Suprema Corte, defendendo, no entanto, que esta tarefa seja feita com respeito às regras
definidas nas Supreme Court Rules, e não discricionariamente (p. 9-10).
15
Bickel utiliza um escrito do Procurador-Geral James M. Beck ao Presidente, quando da discussão
acerca do Judiciary Act de 1925, para destacar esta dificuldade. Destaca-se: “o Procurador-Geral
em atividade, o falecido James M. Beck, (...) escreveu ao Presidente que ele sempre acreditou que
é um direito do cidadão ter qualquer matéria constitucional decidida definitivamente pela Suprema
Corte ‘como a consciência final da nação em tais matérias’. O Dr. Beck jamais empregou a frase
eloqüente, mas o que ele tinha na mente era a dificuldade de reconciliar a jurisdição discricionária
do certiorari com Marbury v. Madison e Cohens v. Virginia”. Cf. BICKEL, Alexander M., The least
dangerous branch. Indianapolis: Bobs-Merrill, 1962, p. 127, tradução livre. No original: “the
Solicitor General of the day, the late James M. Beck, (...) wrote to the President that he had always
believed it to be a citizen’s right to have any issue ultimately decided by the Supreme Court ‘as the
final conscience of the Nation in such matters’. Mr. Beck ever employed the eloquent phrase, but
what he had in mind was the difficulty of reconciling the discretionary certiorari jurisdiction with
Marbury v. Madison and Cohens v. Virginia”.
16
A expressão usada em inglês é trial court, que se refere às instâncias que possuem competência
originária para o julgamento das causas. Contrapõem-se às appellate courts, que traduzimos por
corte de apelação, que são as instâncias responsáveis pelo julgamento de eventuais recursos, ou
seja, instâncias de revisão.
17
BICE, Scott H. op. cit., p. 391, grifos no original, tradução livre. No original: Marbury v. Madison
was brought directly to the Supreme Court in an attempt to invoke the Court’s original jurisdiction.
Thus the Court was in effect sitting as a trial court when it delivered its opinion indicating that courts
have a duty to consider all the law relevant to the disposition of a case. The Court’s opinion speaks

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Sob o ponto de vista acima exposto, não existe qualquer tensão entre a tradicional
justificativa do judicial review e o writ of certiorari, especialmente em um sistema jurídico
onde existe o controle difuso de constitucionalidade. Isto porque, a leitura que se faz da
justificativa desenvolvida em Marbury é mais restrita, exigindo que haja sempre uma
instância apta a decidir de maneira definitiva as causas devidamente ajuizadas, apreciando
todas as questões de direito envolvidas, inclusive as constitucionais. Mas não
necessariamente esta instância deverá ser a Suprema Corte, sendo tido como dispensável,
de alguma forma, seu pronunciamento sobre todas as matérias discutidas.

Outra possibilidade para explicar o porquê de não haver tensão entre o certiorari e o judicial
review é buscar uma outra justificativa para esta prática, um papel institucional diferente
daquele tradicionalmente atribuído à Suprema Corte (de uma super instância de revisão).
Para os que adotam esta explicação, cabe à Suprema Corte decidir questões constitucionais
controversas, e não litígios concretos. Seus membros irão ter influência na definição da
agenda do debate público e irão nortear a atuação dos demais poderes ao lidar com aquelas
questões18.

Para que se aceite este papel diferenciado da Suprema Corte, é preciso reconhecer seu
caráter político, e não meramente jurídico. Sua função dentro do mecanismo de freios e
contrapesos imaginado pela teoria democrática estadunidense é mais destacada sob esta
compreensão, ultrapassando a esfera do puramente jurídico19.

Alexander Bickel, por exemplo, examina a importância da função legitimadora da Suprema


Corte. Esta função, para ele, deve-se ao fato de ela ser capaz de gerar consenso sobre
matérias altamente controvertidas nos poderes executivo e legislativo, bem como proteger
os direitos das minorias. Além disso, a Constituição é, para ele, o símbolo de unidade da
nação (papel que na Grã Bretanha é exercido pela Coroa), e a Suprema Corte desenvolve
um importante papel na sua concretização, especialmente através do exercício do judicial
review. A vantagem da Suprema Corte na proteção da Constituição em relação ao Chefe do
Poder Executivo deve-se ao fato de que este não pode ficar acima da batalha político-
ideológica, enquanto aquela sim. Sua composição é independente e por isso é vista como
um contínuo, não sofrendo mudanças drásticas conforme as variações das preferências

generally of the duty of the courts, and it fails to make any discretion between the duty of trial courts
and the duty of appellate courts; narrowly construed, it could be read as addressing only the scope
of the duty of trial courts. In other words, because the Court was sitting as a trial court, the opinion
could be narrowly interpreted as holding only that trial courts have a duty to resolve all the law
necessary to disposition of the suit, leaving open the scope of the duty of appellate courts.”
18
Cf. BICKEL, Alexander M., op. cit., p. 127-133, HARTNETT, Edward A., op. cit., p. 127, MADDEN,
J. Warren. op. cit., p. 160, BICE, Scott H., op. cit., p. 379. V., ainda, POSNER, Richard. Foreword:
a political court. Harvard Law Review, v. 119, n. 31, nov. p. 60-90, 2005, onde o autor faz um
exame de diversas concepções sobre o papel adequado da Suprema Corte.
19
Neste sentido, v. POSNER, Richard, op. cit. Destaca-se, na página 34: “I shall argue that, viewed
realistically, the Supreme Court, at least most of the time, when it is deciding constitutional cases is
a political organ(…)”. Em tradução livre: “Eu argumentarei que, vista realistamente, a Suprema
Corte, pelo menos na maioria das vezes, ao decidir casos constitucionais, é um órgão político”. A
explicação do autor para esta afirmativa pode ser sintetizada na seguinte passagem:
“Constitutional cases in the open area are aptly regarded as ‘political’ because the Constitution is
about politics and because cases in the open area are not susceptible of confident evaluation on
the basis of professional legal norms. They can be decided only on the basis of a political judgment,
and a political judgment cannot be called right or wrong by reference to legal norms.” (idem, p. 40,
grifos no original). Em tradução livre: “Casos constitucionais inéditos são precisamente vistos como
‘políticos’ porque a Constituição tem a ver com política e porque casos inéditos não são suscetíveis
de uma valoração confiável com base em normas legais profissionais. Eles só podem ser
decididos com base em um julgamento político, e um julgamento político não pode ser chamado de
certo ou errado com referência às normas legais.”

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 92


políticas em um determinado período20. Mais do que o órgão técnico que ocupa a cúpula do
Poder Judiciário, aplicando as leis produzidas pelos poderes políticos, a Suprema Corte
funciona como um mecanismo de equilíbrio na relação entre os Poderes21.

J. Warren Madden, por sua vez, enxerga na Suprema Corte uma “sessão perpétua de uma
espécie de Convenção Constitucional”22, necessária para assegurar a permanência, ao
longo do tempo, da vigência da mesma Constituição. Madden critica a insistência da
Suprema Corte em afirmar que seu papel é o de decidir casos concretos, e não o de criar o
direito; ao mesmo tempo, o certiorari serve justamente para possibilitar à Corte a escolha de
casos nos quais o direito precisa ser criado23, demonstrando a necessidade de uma outra
justificativa para a atuação da Corte.

3 Aspectos institucionais

O julgamento do pedido de certiorari é feito por todos os nove membros da Suprema Corte.
Embora não escrita, vigora uma .tradição chamada “regra dos quatro”: se quatro dos nove
membros da Suprema Corte quiserem examinar uma determinada causa, seu mérito será
apreciado pela Corte24, havendo casos excepcionais em que basta a manifestação de três
juízes neste sentido25. A decisão de conceder ou não o certiorari não necessita sequer de
fundamentação26.

As regras que regem o writ of certiorari estão previstas na Parte III do Regimento da
Suprema Corte (Supreme Court Rules). Dentre as regras que disciplinam o procedimento
formal do certiorari, pode-se destacar a admissão da chamada apelação per saltum, ou seja,
a interposição do certiorari antes mesmo do julgamento pelo tribunal inferior, desde que a
questão tenha uma importância pública suficiente para justificar a provocação imediata da
Suprema Corte27, entre outras normas acerca do número de cópias que devem ser
fornecidas, o limite de páginas para a petição (no máximo 30), o prazo para a interposição
(90 dias), o conteúdo que deve constar obrigatoriamente da petição e a possibilidade de a
parte recorrida oferecer petição (obrigatória em casos de pena de morte)28.

A Regra 16 enuncia as três possíveis decisões que a Suprema Corte pode tomar ao analisar
a petição de certiorari: (i) negar o certiorari, hipótese em que a decisão inferior é mantida
integralmente; (ii) admitir o certiorari, convocando os litigantes para apresentar razões orais
e escritas defendendo suas respectivas posições; e (iii) proferir uma decisão sumária sobre o
mérito (summary disposition). Neste terceiro caso, são necessários seis juízes para,
imediatamente, proferir-se uma decisão sobre o mérito de determinada questão,
confirmando ou reformando o julgamento anterior29.

20
BICKEL, Alexander M., op. cit., p. 29-33.
21
Importante notar que Bickel não defende este papel especial da Suprema Corte como uma forma
de legitimar o ativismo judicial. Ao contrário, ao utilizar o certiorari, seus membros fazem uso de
uma das técnicas para exercitar o que o autor chama “as virtudes passivas”, que norteiam a
definição do que julgar e o que não julgar. V. BICKEL, Alexander, op. cit., cap. 4.
22
MADDEN, J. Warren, op. cit., p. 160
23
Ibid.
24
Cf. NOWAK, John E.; ROTUNDA, Donald D.; YOUNG., J. Nelson, op. cit., p. 32-33.
25
MADDEN, J. Warren. One Supreme Court and the Writ of Certiorari. Hastings Law Journal, v. 15,
nov. p. 158, 1963.
26
Cf. NOWAK, John E.; ROTUNDA, Donald D.; YOUNG., J. Nelson, op. cit., p. 28-29.
27
Regra 11, Supreme Court Rules.
28
Regras 12 a 15, Supreme Court Rules. V. PERRY Jr., H. W. Deciding to decide: agenda setting
in the United States Supreme Court. Cambridge: Harvard University, 1991. p. 32-33.
29
Cf. PERRY Jr. H. W. op. cit., p. 99-102, onde o autor destaca que esta prática é sujeita a muitas
críticas, embora bastante apropriada em determinados casos (como erros crassos ou causas que

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 93


A Regra que desperta maior atenção é, certamente, a Regra 10, que estabelece parâmetros
para a conceituação do certiorari. Seu texto é o seguinte:

Regra 10: Considerações que regem o Writ of Certiorari

A decisão sobre o writ of certiorari não é uma matéria de direito, mas de discricionariedade
judicial. Uma petição de writ of certiorari somente será admitida se houver fortes razões. As
seguintes disposições, embora não controlem ou limitem completamente a
discricionariedade da Corte, indicam a característica das razões que a Corte considera:

(a) uma Corte de Apelação dos Estados Unidos proferiu uma decisão em conflito com a
decisão de outra Corte de Apelação sobre a mesma importante matéria; decidiu uma
importante questão federal de uma forma que conflita com a decisão de uma corte estadual
de última instância, ou se afastou do curso aceito e comum do procedimento judicial, ou
ratificou um tal afastamento por uma corte inferior, ao ser chamada para o exercício do
poder de revisão da Corte;

(b) uma corte estadual de última instância tenha decidido uma importante questão federal de
uma forma que conflita com a decisão de outra corte estadual de última instância ou de uma
corte de apelação dos Estados Unidos;

(c) uma corte estadual ou uma corte de apelação dos Estados Unidos tenha decidido uma
importante questão de direito federal que não tenha sido, mas deveria ser, resolvida por esta
Corte, ou tenha decidido uma importante questão de direito federal de uma maneira
conflitante com decisões relevantes desta Corte;

Uma petição de writ of certiorari raramente é aceita quando o erro alegado consiste em uma
apreciação fática errônea ou na má aplicação de uma regra de direito propriamente
estabelecida.30

Tais regras claramente não ajudam muito a definir o que realmente é preciso para que um
caso tenha seu mérito analisado pela Suprema Corte, na medida em que estabelecem
apenas um ponto de partida para os justices admitirem, ou não, determinada causa31. A

estavam aguardando decisão de algum recurso pendente de julgamento).


30
Tradução livre. No original:
“Rule 10. Considerations Governing Review on Writ of Certiorari
Review on a writ of certiorari is not a matter of right, but of judicial discretion. A petition for a writ of
certiorari will be granted only for compelling reasons. The following, although neither controlling nor
fully measuring the Court's discretion, indicate the character of the reasons the Court considers:
(a) a United States court of appeals has entered a decision in conflict with the decision of another
United States court of appeals on the same important matter; has decided an important federal
question in a way that conflicts with a decision by a state court of last resort; or has so far departed
from the accepted and usual course of judicial proceedings, or sanctioned such a departure by a
lower court, as to call for an exercise of this Court's supervisory power;
(b) a state court of last resort has decided an important federal question in a way that conflicts with
the decision of another state court of last resort or of a United States court of appeals;
(c) a state court or a United States court of appeals has decided an important question of federal
law that has not been, but should be, settled by this Court, or has decided an important federal
question in a way that conflicts with relevant decisions of this Court.
A petition for a writ of certiorari is rarely granted when the asserted error consists of erroneous
factual findings or the misapplication of a properly stated rule of law.”
31
Cf. PERRY Jr., H. W., op. cit., p. 34. O autor afirma que “(...) eles essencialmente definiram o
certiorari tautologicamente; isto é, o que faz um caso importante o suficiente para ser digno do
certiorari é o caso que nós consideramos importante o suficiente para ser digno do certiorari”
(tradução livre). No original: “they have essentially defined certworthiness tautologically; that is, that

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 94


dificuldade é agravada pelo fato de que as decisões de conceder ou não o certiorari não são
justificadas, e raramente há a publicação dos votos32.

4 A busca por critérios entre os pesquisadores da Suprema Corte

Os cientistas sociais que estudam o tema fazem uso de duas técnicas, principalmente, na
tentativa de definir quais as características que deve possuir um caso para ser aceito na
Corte. Uma delas é baseada na análise de um possível comportamento estratégico dos
juízes no momento de decidir se concedem ou não o certiorari a um determinado caso.

A primeira e mais óbvia estratégia que pode ser indicada refere-se vontade de corrigir um
eventual erro da instância julgadora. Assim, se o justice quiser reverter alguma decisão irá
votar pela concessão do certiorari; por outro lado, se concordar com ela votará pela sua
denegação33. Outra estratégia possível está associada a um cálculo feito acerca do
resultado do julgamento do mérito da ação. Caso o juiz acredite que irá vencer, votará pela
concessão do certiorari, optando pela sua denegação se imaginar uma derrota ao final do
julgamento34.

A segunda opção para tentar identificar as características que fazem com que determinada
causa seja julgada pela Suprema Corte decorre da utilização de dados estatísticos, em que
se busca identificar variáveis associadas à concessão de certiorari pela Suprema Corte.
Podem ser citadas: a presença dos Estados Unidos como parte, desacordo entre os
componentes do tribunal inferior que decidiu a questão, a presença de matérias ligadas à
liberdade civil35, a decisão inferior ser dissonante da posição ideológica da maioria dos
membros da Suprema Corte36, o conflito entre esta decisão e os precedentes da Suprema
Corte37, o conflito entre decisões de diferentes tribunais federais38 e a presença de amicus
curiae atuando no caso.39

Mas aquele que talvez seja o trabalho mais interessante (especialmente para aqueles com
formação jurídica) acerca da seleção dos casos na Suprema Corte40 utiliza uma metodologia

which makes a case important enough to be certworthy is a case that we consider to be important
enough to be certworthy”.
32
NEUBAUER, David W.; MEINHOLD, Stephen S. Judicial process: law, courts and politics in the
United States. [S.l.]: Thomson Wadsworth, 2004. p. 483
33
Cf. BRENNER, Saul. Granting certiorari by the United States Supreme Court: an overview of the
social science studies. Law Library Journal, v. 92, p.195, 2000.
34
Algumas variáveis podem ser acrescentadas a este tipo de estratégia. Por exemplo, Saul Brenner
argumenta que esta estratégia só se faz presente quando a intenção do juiz é a de manter o
julgamento que fora proferido pela instância inferior. Se se pretende alterar esse julgamento, não
se utiliza esta estratégia. Cf., a respeito, BRENNER, Saul. The new certiorari game. Journal of
Politics, v. 41, n. 2, p. 649-655, 1979.
35
Estes três critérios foram indicados por Joseph Tanenhaus, mas apenas o primeiro deles foi
confirmado em um estudo posterior de Ulmer, Hintze e Kirklosky. V., a respeito, BRENNER, Saul,
cit., p. 197-198 e ULMER, S. Sidney; HINTZE, William; KIRKLOSY, Louise. The decision to grant
certiorari: further consideration of cue theory. Law and Society Review, v. 6, n. 4, maio, p. 637-
643, 1972.
36
Cf. SONGER, Donald R. Concern for policy outputs as a cue for Supreme Court decisions.
Journal of Politics, v. 41, n. 4, nov. p. 1185-1194, 1979.
37
ULMER, S. Sidney. Conflict with Supreme Court precedents and the granting of plenary review.
Journal of Politics, v. 45, n. 2, maio, p. 474-478, 1983.
38
ULMER, S. Sidney. The Supreme Court’s certiorari decisions: conflict as a predictive variable.
American Political Science Review, v. 78, n. 4, p. 901-911, dez.1984.
39
Cf. CALDEIRA, Gregory A.; WRIGHT, John R. Organized Interests and Agenda Setting in the U.
S. Supreme Court. American Political Science Review, v. 82, 1988.
40
PERRY Jr., H. W. Deciding to decide: Agenda Setting in the United States Supreme Court.
Cambridge: Harvard University, 1991.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 95


distinta da análise estatística. Seu autor, H. W. Perry, realizou entrevistas pessoais com
diversos funcionários públicos envolvidos no processo de julgamento dos casos,
especialmente cinco justices e sessenta e quatro assessores (clerks), além de juízes de
cortes de apelo, procuradores-gerais e advogados41.

A primeira conclusão importante a que Perry chega refere-se ao comportamento estratégico


dos juízes, tema bastante explorado pelos demais estudiosos da Suprema Corte. Os dados
obtidos em suas entrevistas apontam para uma clara rejeição deste comportamento, que,
apesar de existir, é bem mais raro do que os estudos anteriores indicavam. Com efeito, a
negociação (ou barganha) entre os membros da Suprema Corte no momento da concessão
de certiorari não é vista com bons olhos e acontece poucas vezes, sempre por meio de uma
reunião formal ou pela publicação de um voto dissidente42.

A prática estratégica mais amplamente reconhecida pelos integrantes da Suprema Corte é o


que chamam “defensive denials”, que ocorrem quando um juiz deixa de conceder o certiorari
por acreditar que a posição que ele defende não será vencedora no exame do mérito da
questão43. Esta estratégia, logicamente, leva à manutenção do status quo, já que faz com
que não sejam revistos com freqüência os pronunciamentos anteriores da própria Suprema
Corte ou que não se tornem nacionais interpretações efetuadas pelas cortes estaduais ou
distritais44. Outra estratégia admitida pelos entrevistados é o uso de “convites” (invitations)
para que determinados casos sejam levados ao conhecimento da Suprema Corte. Estes
convites dão-se por diversas maneiras, como, por exemplo, deixando consignado em votos
proferidos que determinadas matérias serão bem-vindas naquela corte futuramente45.

Além de constatar a aversão dos juízes e de seus assistentes por estratégias políticas na
seleção dos casos que a Suprema Corte irá julgar, Perry busca, a partir dos dados obtidos
nas entrevistas, definir os requisitos para que um caso seja digno de receber o certiorari
(sendo, assim, chamado de certworthiness, ou “merecedor do certiorari”).

5 Os casos que não merecem o certiorari - uncertworthiness

Na tentativa de escapar de uma resposta tautológica à questão “o que torna uma causa
digna do certiorari” (que seria “aquilo que os juízes disserem que é”), Perry inicia por definir o
contrário, ou seja, quando um caso não é digno de ser conhecido pela Suprema Corte
(uncertwothness)46.

O primeiro grupo que não merece consideração é o mais claro, e refere-se aos casos
conhecidos como “frivolous”, que se dividem em três subgrupos: (i) fact-specific cases, que
são os casos em que se busca unicamente o reexame fático, o que não cabe no âmbito da
Suprema Corte, (ii) insufficient evidence cases, consistentes naqueles casos em que não há
prova cabal para a condenação imposta (especificamente referente a procedimentos
criminais), e (iii) diversity cases, que são aqueles que se referem à má aplicação do direito
estadual47.

Embora muitas vezes casos que seguramente serão rejeitados sejam levados à Suprema
Corte por falta de habilidade dos advogados, o que pode ensejar inclusive a aplicação de
multa (muito embora não seja comum), em outras o ajuizamento dos writs of certiorari

41
Sobre a metodologia utilizada, v. PERRY Jr., H. W. op. cit., p. 08-10.
42
Ibid., p. 192.
43
Ibid., p. 198 e segs.
44
Ibid., p. 199.
45
Ibid., p. 212-215.
46
Ibid., p. 221-222.
47
Ibid., p. 222-224.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 96


fadados ao insucesso é proposital, decorrendo de uma estratégia para retardar a execução
da sentença, sendo este um expediente largamente utilizado48.

Além da irrelevância de determinados casos, diversas outras características podem levar à


denegação do certiorari. Em primeiro lugar, há aquelas matérias que são chamadas “clear
denies”, geralmente tópicos reincidentes que a Corte simplesmente não demonstra qualquer
interesse em apreciar49.

Existe também um desejo de que a matéria tenha sido amplamente discutida nas cortes
inferiores e na doutrina, ao que se chama percolation50. Em geral, o primeiro caso que
levanta uma determinada questão não é aquele que será julgado pela Corte, que prefere
aguardar uma oportunidade em que a discussão esteja mais madura. E, se este segundo
caso não aparecer, acredita-se que a questão não era tão relevante a ponto de merecer a
consideração da Suprema Corte51.

Da mesma forma, a Corte evita conhecer de casos que tenham a situação fática complicada,
de maneira que dificulte a prolação de uma decisão clara (bad facts/vehicles)52. E ainda, se
houver outros casos conhecidos sobre o mesmo tema, é possível que ela prefira aguardar
que um deles chegue à sua jurisdição, muito embora seja difícil controlar a tramitação dos
feitos nas instâncias inferiores53. Por fim, há matérias que são simplesmente intratáveis
(intractableness), em geral porque a Corte não conseguiria dar uma solução satisfatória a
eles54.

6 Os casos que merecem o certiorari - certworthiness

Basta a presença de uma das causas acima listadas para que o certiorari seja negado a um
determinado caso; há uma presunção de que isso acontecerá em face da pequena
proporção dos writs concedidos ao longo do ano pela Suprema Corte (em média, 5%).
Porém, para a sua concessão é necessária uma combinação de fatores, não bastando a
presença de um deles isoladamente55. A única característica que foge a esta regra,
praticamente assegurando o conhecimento da matéria pela Suprema Corte, ocorre quando
um tribunal inferior declara inconstitucional um diploma legislativo federal.56

Quanto aos demais casos, a característica apontada mais freqüentemente pelos


entrevistados de Perry como capaz de conferir certworthiness a um determinado caso é o
conflito entre decisões de Tribunais Federais57. Ainda assim, a presença do conflito não é

48
Ibid., p. 224-225.
49
Ibid., p. 226-230.
50
Ibid., p. 230-234.
51
Este ponto está ligado ao que Perry chama “fungibilidade” dos casos, o que, por sua vez, decorre
do fato de que a Suprema Corte não se preocupa com casos individuais, mas sim com a clareza
do ordenamento. V. PERRY Jr., H. W. op. cit., p. 220-221, de onde se destaca o seguinte trecho:
“(...) the Court basically sees itself not as a place to right wrongs in individual cases but as a place
to clarify the law”. Em tradução livre: “(...) a Corte se vê basicamente não como um local para
corrigir erros em casos individuais, mas como o local para esclarecer o direito”.
52
Ibid., p. 234-236.
53
Ibid., p. 236-239. O autor refere-se aos casos que ainda não alcançaram a Suprema Corte como
casos que estariam no “pipeline” (encanamento).
54
Ibid., p. 239-245.
55
Ibid., p. 245. Destaca-se a seguinte passagem: “It takes only one thing to make a case
uncertiworthy. It takes a combination of things to make a case certworthy”. Em tradução livre:
“Basta uma coisa para tornar um caso indigno de certiorari. É preciso uma combinação delas para
tornar um caso digno de certiorari.”
56
Ibid., p. 245.
57
Ibid., p. 246.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 97


garantia de concessão do certiorari, mas provavelmente o seu melhor indicativo58. É curioso
notar, entretanto, que os cientistas políticos que estudam a Suprema Corte por muito tempo
ignoraram esta variável na realização de seus estudos estatísticos59.

Como mencionado acima, não basta a presença de uma característica para que o certiorari
seja concedido em uma determinada matéria. A própria existência do conflito não é
determinante: é preciso, além de haver um conflito real, que este envolva uma matéria
importante60. A importância do caso é difícil de definir sem apelar para o juízo subjetivo de
cada integrante da Suprema Corte, mas a sua divisão em três espécies pode facilitar.

Há, primeiramente, os casos que são importantes por si mesmos, e não pelas matérias neles
envolvidas. É a resolução do caso que é relevante, e não da matéria tratada. Como a
Suprema Corte, em geral, não se preocupa com a correção do julgamento de casos
concretos e sua repercussão para as partes do litígio, mas sim em resolver questões
constitucionais importantes, de modo que estes casos são excepcionalíssimos61.

A segunda espécie são os casos dotados de importância social ou política. Sua relevância
decorre do grande impacto que a decisão terá sobre a sociedade como um todo. São citados
os exemplos de Brown v. Board of Education62 (segregação racial), Roe v. Wade63 (aborto) e
University of California Regents v. Bakke64 (ação afirmativa).

Por fim, há a categoria que envolve a maior parte dos casos aceitos pela Suprema Corte:
aqueles que são relevantes para o direito. Sua resolução traz ordem ao sistema jurídico
estadunidense, uniformizando sua aplicação em todo o território ou esclarecendo
interpretações equivocadas fornecidas por cortes inferiores65. Em todo caso, as categorias
não são estanques, havendo casos que se enquadram em mais de uma delas
(especialmente nas duas últimas)66.

Outro fator que pode influenciar na concessão do certiorari refere-se às áreas do direito
preferidas pelos membros da Suprema Corte. Os interesses variam de juiz para juiz, não
sendo possível identificar um interesse comum da Corte por determinadas áreas67.

Muito embora a Suprema Corte não seja tratada como uma super-instância de revisão, que
possui o dever de corrigir os erros cometidos pelos tribunais inferiores, em determinados
casos os justices não conseguem deixar de corrigir determinadas falhas. Diz-se que os erros
cometidos naquelas situações são egrégios (egregious). Há duas principais situações em

58
Como afirma o autor, “a circuit split is not simply a formal criterion for cert; it is probably the single
most important criterion, and those who wish to comprehend the cert. process must realize this. A
circuit split is neither necessary nor sufficient, but is almost both”, ibid., p. 251. Em tradução livre:
“Uma divisão entre os Tribunais de Circuito não é simplesmente um critério formal para o certiorari;
ela é provavelmente o critério isolado mais importante, e aqueles que pretendem compreender o
processo do certiorari devem ter isto em mente. Uma divisão não é necessária nem suficiente, mas
é quase ambos”.
59
O primeiro autor a identificar a presença do conflito como critério para a concessão de certiorari foi
Sidney Ulmer, em 1984. Cf., a respeito, ULMER, S. Sidney. “The Supreme Court’s Certiorari
Decisions: Conflict as a Predictive Variable”, cit., pp. 901-911.
60
PERRY Jr., H. W. op. cit., p. 253.
61
Os exemplos apontados são United States v. Nixon (418 U.S. 683, 1974) e Dames and Moore v.
Regan (453 U.S. 654, 1981), conhecido como “the iranian assets case”.
62
347 U.S. 483 (1954).
63
410 U.S. 110 (1973).
64
438 U.S. 265 (1978).
65
PERRY Jr., H. W. op. cit., p. 254.
66
Ibid., p. 254.
67
Ibid., p. 260-265.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 98


que a Corte conhece de um caso devido a esta característica: quando ocorre uma grave
injustiça ou quando há um flagrante descumprimento dos precedentes já estabelecidos.
Nestas hipóteses, geralmente o que se faz é um summary reverse, ou seja, uma anulação
sumária da decisão anterior68.

7 O modelo de decisão de Perry

Uma assertiva bastante difundida entre os cientistas políticos dedicados ao estudo da


Suprema Corte é a de que o julgamento do certiorari em geral configura uma antecipação do
mérito da questão. Um dos fatores que levam a tal conclusão é o percentual de casos em
que a decisão inferior é revertida depois da concessão do certiorari, que varia entre 65-75%.
Mas nas entrevistas, Perry constatou que esta afirmativa é verdade apenas em
determinados casos. Nos casos em que existe conflito, por exemplo, muitas vezes a
concessão do certiorari é feita sem que os justices tenham definido o mérito antes do
julgamento69.

A conclusão a que Perry chega após confrontar o resultado de suas entrevistas com os
trabalhos de cientistas políticos anteriores é a de que estes indicavam uma influência
exagerada de comportamento estratégico dos justices, ignorando considerações de índole
judicial no procedimento. Veja o que diz, por exemplo, a seguinte passagem:

Quando entrevistei os juizes e seus assessores, boa parte do que eles disseram
simplesmente não batia com a literatura de cientistas políticos sobre o certiorari. Lembre-se
que muito da literatura vê os votos de certiorari como votos estratégicos, calculados para
obter o resultado desejado no mérito da ação. Considerações sobre preocupações
legalísticas, como divisão entre tribunais, defeitos jurisdicionais, desejo de maior discussão e
assim por diante, desempenham pouco ou nenhum papel em muito da ciência política,
embora sejam as preocupações centrais e os fatores predominantemente discutidos por
aqueles que participam do processo70.

Mas a constatação desta falha na ciência política que havia tratado do tema não é um fator
isolado. Ao mesmo tempo, os relatos fornecidos nas entrevistas deixavam transparecer
contradições e confusões que davam a entender que o cenário fornecido por aquela
literatura aproximava-se, sim, ao menos em algumas hipóteses, da realidade. E é na
tentativa de fazer uma descrição fiel de um processo que é, ao mesmo tempo, político e
jurídico,71 que Perry elabora um modelo de decisão para o processo do certiorari dividido em
dois, aos quais chama de modo jurisprudencial (jurisprudential mode) e modo de resultado
(outcome mode). Antes de definir qual dos modos pautará a apreciação de um caso
específico, duas questões são respondidas: primeiro, se o caso é frivolous. Em caso
negativo, passa-se à segunda indagação, que se refere ao especial interesse que o juiz
tenha no resultado do julgamento. A resposta a esta indagação é que definirá qual dos
modos de decisão será adotado72.

68
Ibid., p. 265-268.
69
Ibid., p. 268-270.
70
Ibid., p. 272, tradução livre. No original: “As I interviewed clerks and justices, so much of what they
say simply did not jibe with much of literature by political scientists on cert. Recall that much of the
literature sees cert. votes as strategic voting calculated to have a desired outcome on the merits.
Consideration of legalistic concerns such as circuit splits, jurisdictional defects, desire for
percolation, and so on play little or no role in much political science, yet they were the central
concerns and the predominant factors discussed by those who participate in the process”.
71
Ibid., p. 272.
72
Ibid., p. 277 e segs.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 99


Quando a resposta à indagação colocada acima é negativa, ou seja, o juiz não possui
especial interesse no resultado daquela votação, adota-se o modo jurisprudencial de
decisão, que se caracteriza por considerar principalmente os aspectos técnico-jurídicos
envolvidos. Nestes casos, são feitas em seqüência as seguintes indagações: se existe um
conflito entre os tribunais federais, se a matéria discutida é importante, se há necessidade de
maior discussão e se o veículo (caso) é bom ou se não há um caso melhor envolvendo a
mesma matéria a ser apreciado. A tendência é que o certiorari só seja concedido se a
resposta a todas as afirmativas anteriores for afirmativa, embora razões fortes para conhecê-
lo naquele momento possam levar à sua concessão desde logo, mesmo não sendo
preenchidos todos esses requisitos. Mas, no geral, basta que uma das respostas seja
negativa para o caso não ser apreciado73.

Uma resposta afirmativa à questão acerca do interesse do juiz no resultado do julgamento


leva ao modo de resultado. Neste modo de decisão, predomina o comportamento
estratégico, e a primeira questão que o juiz se coloca é se ele irá ou não vencer o caso no
seu julgamento de mérito74. Se ele achar que não, a tendência é que ele denegue o
certiorari, a não ser que isto seja uma irresponsabilidade institucional75. Em seguida, passa-
se à indagação acerca da adequação do caso em relação às suas características fáticas (ou
seja, se ele constitui um bom veiculo para a discussão da matéria). Em caso afirmativo, o
certiorari tende a ser concedido. Mesmo se o caso não constituir um bom veículo, ainda
assim o resultado pode ser o mesmo, desde que não exista um caso mais adequado.

8 Críticas e síntese

O livro de H. W. Perry Jr. tornou-se referência obrigatória para os estudiosos da Suprema


Corte, especialmente por trazer à luz a perspectiva dos participantes do processo de seleção
dos casos, algo praticamente inimaginável até então76. No entanto, o modelo de decisão
fornecido pelo autor não parece perfeito, especialmente por não ser crível que o mesmo
julgador aja de maneiras tão distintas e bem delineadas, dependendo de seu interesse ou
não no resultado da questão. Ou seja, mesmo quando existe este interesse, isto não
significa que considerações de índole legal não desempenhem nenhum papel no processo
de decisão, assim como não parece razoável que nos demais casos inexista qualquer tipo
de consideração estratégica. Há, de certa forma, um intercâmbio entre fatores
predominantes nos dois modelos, o que compromete a sua precisão científica77.

A metodologia empregada também é sujeita a restrições. Isto porque, como seus dados
foram obtidos em entrevistas assistemáticas, não se pode afirmar com segurança que suas
conclusões refletem com precisão as visões e o comportamento real dos juízes da Suprema
Corte78. Ademais, o uso exclusivo de entrevistas com os juízes e funcionários do Poder

73
Ibid., p. 277-279.
74
Ibid., p. 279-280.
75
Perry utiliza como exemplo de casos em que a denegação do certiorari equivaleria a uma
irresponsabilidade institucional situações em que o Procurador-Geral demonstra que seria
desastroso não decidir logo a questão ou casos em que a Suprema Corte simplesmente deve
intervir (como no caso da publicação das fitas do escândalo watergate, que derrubou o presidente
Nixon). Cf. PERRY Jr. op. cit., p. 280.
76
Cf. CALDEIRA, Gregory. Book review: deciding to Decide: Agenda Setting in the United States
Supreme Court. The Law and Politics Book Review. Disponível em:
http://www.unt.edu/lpbr/subpages/reviews/perry2.htm. Acesso em: 11 abr. 2005. Destaca-se: “It is
unclear whether any political scientist had attempted anything on the scale of H. W. Perry’s effort;
obviously no one else has succeeded” (p. 78-79). Em tradução livre: “Não está claro se algum
cientista político tentou algo na escala do esforço de H. W. Perry; obviamente, nenhum deles
conseguiu”.
77
V. WILLIAMS, Stephen F. Court-Gazing. Michigan Law Review, v. 91, p. 1161-1165, 1993.
78
V. BRENNER, Saul. Granting Certiorari by the United States Supreme Court, op. cit., p. 197.

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Judiciário envolvidos “internamente” no processo de decisão não leva em consideração a
influência que figuras externas ao referido processo podem ter sobre a Suprema Corte. É o
que destaca o cientista político Gregory Caldeira, na seguinte passagem:

Não vejo a Corte ou o processo de seleção de casos como autônomos, como a descrição de
Perry e de seus entrevistados sugere. Em meu ponto de vista, litigantes – grupos de
interesse, governos, escritórios de advocacia de interesse público, corporações, advogados
poderosos e outros – desempenham um papel relevante na definição da agenda da
Suprema Corte79.

Caldeira aponta, ainda, a impossibilidade de testar a proposição feita por Perry, já que a
variável chefe (“forte interesse em casos particulares”) é indeterminável. Para ele, o
processo seqüencial sugerido em Deciding to Decide não ocorre na prática, onde o processo
de decisão é bem menos organizado. Segundo Caldeira, qualquer dos critérios que
recomendem o conhecimento de um determinado caso pode, isoladamente, ter peso
suficiente para levar ao voto favorável ao certiorari, mesmo que os demais critérios não
estejam presentes80.

Nenhuma das objeções listadas, contudo, diminui o valor do trabalho de Perry. Um dos
pontos mais importantes é que a obsessão dos cientistas políticos em tentar identificar
estratégias e critérios precisos no processo de definição da agenda da Suprema Corte
encontrará sempre um obstáculo intransponível: este processo está longe de ser uma
ciência exata. E o modelo elaborado por Perry, com base nas suas entrevistas, se não é
perfeito, ao menos tem o mérito de deixar este ponto bem esclarecido.

Para descrever corretamente as decisões do certiorari, é preciso encontrar um meio termo


entre o tecnicismo que os envolvidos alegam predominar e as estratégias às quais os
cientistas políticos atribuem o papel principal no mecanismo de decisão. E, embora Perry
não consiga oferecer dados precisos acerca do que é efetivamente necessário para um
determinado caso alcançar a Suprema Corte, ele tem sucesso ao examinar os dois lados da
moeda, atribuindo a cada um o seu papel, por mais difícil que seja delineá-lo.

A validade de seu trabalho decorre principalmente da demonstração de que o procedimento


de decisão da admissibilidade dos casos na Suprema Corte é ao mesmo tempo político e
jurídico, e que todos os juízes atuam utilizando elementos técnicos e estratégicos, muitas
vezes ao mesmo tempo. Não parece crível a conclusão a que os modelos puramente
estatísticos predominantes na doutrina chegam, de que a definição da agenda da Suprema
Corte é um processo exclusivamente político-estratégico, devendo ser reconhecido o papel
das matérias técnico-jurídicas que ocupam, indubitavelmente, um importante espaço nas
razões de decidir adotadas.

Abstract: This paper describes methodology analyze the writ of certiorari, the main
mechanism of access to the Supreme Court of the United States, through which their
members select the cases that should be judged annually. Judges possess broad discretion
in their selection of appeals, which enables political and social scientists to investigate which
characteristics a particular case must possess in order to be referred to the highest American
court. Such analysis seems quite timely, considering the strong influence that the American
79
Cf. CALDEIRA, Gregory A. op. cit., p. 80-81, tradução livre. No original: “I do not see a Court or a
process of case selection as autonomous as the description Perry and his respondents offer us. In
my view, litigants -- interest groups, governments, public interest law firms, corporations, high-
powered lawyers, and others -- play a large role in shaping the agenda of the Supreme Court
80
Cf. CALDEIRA, Gregory A. op. cit., p. 81

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 101


judicial review has exerted upon the Brazilian constitutional jurisdiction, both historically and
on the recent changes promoted by the Reform of the Judicial Power (Constitutional
Amendment no. 45/2004), especially in connection with the adoption of mechanisms such as
the binding precedent, and the general repercussion of extraordinary appeals.

Keywords: Constitutional Law; Judicial Review; United States; Writ of Certiorari

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Revista Jurídica
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/index.htm

Artigo recebido em 31/07/2007 e aceito para publicação em


31/08/2007

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jurídicos abrangendo todas as áreas do Direito.

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Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007 103


Artigos

Segurança pública e riscos: políticas públicas voltadas à distribuição de renda e


educação como instrumento capaz de enfrentar apelos da violência

Arllington Campos Sousa

Advogado, pós-graduado em Direito Empresarial, servidor público federal do Instituto


Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP.
arllington@gmail.com

Resumo: A sociedade brasileira vem sendo submetida invariavelmente a riscos,


principalmente no campo da segurança pública. No atual contexto, a pressão por soluções à
questão é gritante. Por outro lado, os gestores públicos vêm demonstrando falta de
planejamento e desconhecimento ao tratar as atividades arriscadas. Nesse diapasão, o
Estado não consegue tomar decisões capazes de diminuir os níveis de violência e
insegurança que atormentam a sociedade. Diante dessa problemática, programas de
governo voltados à educação e à distribuição de renda, tal como o Bolsa Escola, se
apresentam como possibilidade viável de políticas públicas voltadas ao enfrentamento
preventivo dos fatores de riscos propiciadores das condições que estimulam a prática da
violência, em lugar de políticas públicas voltadas somente à repressão, que, à base de altos
custos, não têm demonstrado eficiência e eficácia frente à situação.

Palavras-chave: riscos; segurança pública; educação; distribuição de renda; violência

Sumário: 1 Introdução – 2 Segurança pública e gestão dos riscos – 3 Políticas públicas de


segurança – 4 Educação como modelo viável de políticas públicas – 5 Conclusão: educação
como fator de decisão – Referências

1 Introdução

A imprensa nacional vem noticiado recentemente com maior ênfase várias tragédias
relacionadas às intempéries climáticas e a segurança pública, tragédias essas que já
ocupam espaço na mídia a alguns anos, e vêm se repetindo sem que a sociedade brasileira
consiga respostas do poder público aos riscos que invariavelmente vem sendo submetida.

Dessa forma, a expansão dos novos riscos, os conflitos sociais e econômicos sobre sua
admissibilidade, e a ausência de diretrizes científicas que fixem pautas de condutas seguras,
acarretam um sentimento de temor social. Esta insegurança é reforçada pelos meios de
comunicação de massa. (BOTTINI, 2006)

Nesse contexto destaco a questão da violência, que em rota de crescimento vem sendo
combatida em conta-gotas, sem muito planejamento.

Se considerarmos que a população cada vez mais questiona os limites dos riscos a que é
submetida e que os políticos trabalham mais com a percepção social dos riscos e o
momento oportuno de tomar decisões sobre novas medidas sobre riscos (LUHMANN, 1993),
chegamos à conclusão que já estamos apenas a alguns passos do caos, sendo imperativo
que os gestores públicos se decidam por políticas públicas que possam efetivamente
diminuir os níveis de violência e insegurança a que são submetidos a sociedade. Sob pena
de não haver tempo que permita tomada de decisões eficazes e realmente voltadas ao
interesse primário do Estado que é a busca da pacificação social, e não ao interesse
secundário, interesse este específico e particular do gestor público.

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Nesse diapasão, programas de políticas públicas voltadas à educação e distribuição de
renda, tal como o Bolsa Escola, se apresentam como instrumentos viáveis na persecução da
efetiva implementação da pacificação social. Uma vez que incontestavelmente contribuem
de forma preventiva no embate aos fatores favorecedores da violência.

2 Segurança pública e gestão dos riscos

Antropólogos e cientistas políticos discorrem a respeito dos problemas sociais como


empecilho para a avaliação e aceitação do risco. Levanta uma questão: quem ou o quê
decide se um risco deve ou não ser considerado. (LUHMANN, 1993)

Do conceito de risco e sua relação com a segurança surge a idéia de que deseja-se a
segurança, mas, dado o estado do mundo, deve-se aceitar riscos. Essa idéia seria originária
da acomodação com a situação? Talvez.

Assim, o grande desafio do Estado contemporâneo está em como enfrentar a onda de


violência que cresce, nas suas mais variadas formas de manifestação, principalmente nos
grandes centros urbanos brasileiros, a ponto de a segurança pública constituir-se em uma
das principais preocupações da sociedade e conseqüentemente do próprio Estado, que só
recentemente passou a entendê-la como um fenômeno multidisciplinar de alta
complexidade.

Revendo o conceito de risco, que significa ousar, ou seja, atuar perante a possibilidade de
perigo, vemos que a situação fática em comento é congruente com sua definição. E quando
se leva riscos em consideração, toda variante no repertório da tomada de decisão é
arriscada, se somente o risco de não aceitar certas oportunidades que poderiam provar ser
mais vantajosas.

O paradoxo do risco se reflete na atividade de conhecimento dos riscos, na determinação do


grau de risco permitido, e nas decisões sobre como tratar as atividades arriscadas. Os
conflitos de interesse que permeiam a criação e o enfrentamento dos riscos repercutem na
sua medição e na sua administração. Assim, as decisões neste terreno não podem ser
reconhecidas como objetivas, técnicas e politicamente neutras, mas sempre como opções
interessadas e ideológicas. A revelação do conflito subjacente nas operações de gestão de
riscos, e a desmistificação de sua pretensão técnica e exata intensificam a perplexidade e a
insegurança da sociedade sobre a condução política desta atividade. (BOTTINI, 2006)

Especialistas em segurança, mas também todos aqueles que os acusam de não fazer nada
pela segurança, são observadores de primeira ordem. Eles acreditam em fatos; e quando
eles lutam ou negociam, é tipicamente com base nas diferentes interpretações de diferentes
clamores em relação aos mesmos fatos. O problema da informação entre aqueles que lidam
com segurança é levantado. (LUHMANN, 1993)

A insatisfação com a segurança pública é provocada pelos índices de violência, os quais se


revelam inquietadores na maioria dos estados brasileiros, chegando à indesejável marca de
25 assassinados por 100 mil habitantes/ano, considerando o coeficiente nacional (SILVA
FILHO, 1999), o que coloca o Brasil entre os países mais violentos do mundo, fato que vem
piorando na década em curso.

Na visão dos profissionais que lidam com segurança aprendemos que a segurança absoluta
nunca pode ser alcançada, algo sempre pode acontecer, por isso o conceito de risco é
utilizado por eles matematicamente. (LUHMANN, 1993)

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Constatamos, ainda, que atualmente a convivência com a violência se apresenta com maior
intensidade no cotidiano das pessoas, especialmente das de baixa renda. Ainda que não
devamos por mero empirismo associar pobreza e violência, é fato que crianças e jovens em
situação de pobreza são colocados em posição mais vulnerável à influência dos grupos
organizados de criminosos (ZALUAR, 1994). Prova de que para alguns tipos de riscos a
exposição é maior entre os mais pobres. Em que pese a nova sociedade de riscos não
seguir a velha classificação da sociedade por classes, uma vez que todos serão afetados da
mesma forma. (VARELLA, 2005).

Na modernidade avançada a produção social de riqueza vem acompanhada


sistematicamente pela produção social de riscos. Portanto os problemas e conflitos de
repasse da sociedade carente são substituídos pelos problemas e conflitos que surgem da
produção, definição e repasse dos riscos produzidos de maneira científico-técnica. (BECK,
1998)

O conceito de 'sociedade industrial ou de classes' (Marx e Weber) girava em torno da


questão de como se pode repartir a riqueza produzida socialmente de maneira desigual e ao
mesmo tempo legítima. Isso coincide com o novo paradigma da sociedade do risco, que em
seu núcleo repousa na solução de um problema similar e ao mesmo tempo completamente
diferente. Como se podem evitar, minimizar os riscos e perigos que se tem produzido
sistematicamente no processo avançado de modernização e limitá-los e reparti-los no ponto
onde tenham visto a luz do mundo, na figura dos efeitos secundários latentes, de tal modo
que não obstaculizem o processo de modernização, nem ultrapassem os limites do
suportável? (BECK, 1998)

Nesse aspecto, entendemos que estamos sofrendo hoje riscos oriundos de políticas públicas
deficientes praticadas durante as últimas décadas, em que, quando o Estado não se omitia,
até mesmo pela escassez de verbas, executava políticas públicas dissociadas dos objetivos
constitucionais, acabando por privilegiar projetos emergenciais, com foco exclusivamente em
políticas assistencialistas e populistas, que não cumprem o papel de retirar as famílias da
pobreza e incluí-las na sociedade nacional.

3 Políticas públicas de segurança

Para combater os problemas que enfrentamos oriundos das políticas públicas deficientes
temos que considerar o reconhecimento simultâneo da centralidade da liberdade individual e
das influencias sociais sobre o grau e o alcance da liberdade individual. O desenvolvimento
consiste na eliminação de privação de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades
das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente. Considerando a liberdade
como o principal objetivo do desenvolvimento o alcance das políticas públicas depende de
estabelecer mecanismos para vencer essas privações. Assim, o avanço da sociedade está
interligado a um processo simultâneo de desenvolvimento de muitas instituições diferentes,
incluindo práticas econômicas, sociais e políticas. (SEN, 2000)

Na contra-mão desse pensamento, constatamos que as decisões políticas voltadas à


segurança pública enfatizam há muito o aspecto repressivo, talvez em função da expectativa
de redução a curto prazo dos crescentes índices de violência, o que tem demonstrado pouca
eficiência frente ao direito da sociedade à segurança.

Assim, o conceito dinâmico do que vem a ser o grau de segurança ideal para a prática de
uma atividade, e de quais são os patamares aceitáveis de risco diante da necessidade de
suprir as demandas econômicas, políticas e sociais de um grupo, submete a atividade de
gerenciar riscos a um constante conflito de discursos e interesses. Caberá ao gestor a
decisão, nunca definitiva, sobre os termos e limites do risco permitido. Esta decisão não será

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neutra, mas refletirá uma opção política, no sentido de abrigar determinados interesses em
detrimento de outros. (BOTTINI, 2006)

Todavia, projetos de segurança voltados à prevenção de forma sistêmica, passaram a figurar


timidamente e mais recentemente entre as medidas adotadas pelos governantes, mesmo
que ainda pesem o seu efeito a longo prazo e as respectivas implicações políticas.

O problema é intensificado por uma segunda codificação: a do governo x oposição. Este


código constitui uma tentação para tomar decisões com um olho nos efeitos eleitorais. Se
alguém não deseja assumir riscos desse ponto de vista pode, no entanto, levar à grande
vontade de assumir riscos em muitos outros aspectos. Do ponto de vista das táticas
eleitorais pode ser recomendável obstruir desenvolvimentos nos campos tais quais pesquisa,
progresso tecnológico e projeto industriais, sem refletir nos riscos que tais obstruções
envolvem. Acima de tudo, o princípio da oposição recompensa quem impõe uma matéria e a
empurra rapidamente através do nível de tomada de decisão, pois mais atenção é dada para
palavras de efeito e apresentação do que à avaliação de conseqüências. Em todas essas
considerações uma análise do sistema político confirma nossa contenção de que a
diferenciação funcional e a codificação binária [sim/não, certo/errado, totalmente
aceitável/totalmente inaceitável] limita a 'possibilidade' de controle e promove a tendência a
assumir riscos. (LUHMANN, 1993)

Contudo, tais implicações devem ser superadas na medida em que aumenta a necessidade
de se combater as causas da violência, sob pena de os governos incorrerem em erros
crassos na tentativa de estancar os efeitos de um mal cuja fonte geradora não se esgotaria.

Os riscos são como uma 'bomba relógio' que já está em marcha. Nesse sentido, os riscos se
referem a um futuro que temos que evitar. Em contrapartida, a evidência palpável das
riquezas, os riscos têm algo de irreal. Em sentido central, são ao mesmo tempo reais e
irreais. O centro de consciência do risco não reside no presente, mas no futuro (prognóstico).
(BECK, 1998)

Questionamos o poder-dever do Estado de impedir a realização desses riscos sociais,


exigindo reflexão sistematizada sobre os efeitos ambivalentes do progresso e sobre a
articulação entre o mínimo de conhecimento e a decisão. (FRANÇA, 2006)

Aliás, a intervenção efetivamente capaz de prevenir a violência e a criminalidade é aquela


que busca alterar as condições propiciatórias imediatas, isto é, as condições diretamente
ligadas às práticas que se deseja eliminar (BISCAIA et. al, 2002).

Nesse diapasão, em que pesem as controvérsias, cabe apontar as principais causas


hipotéticas da violência que apresentaram maior convergência: (1) as políticas de segurança
podem se constituir em variáveis significativas, dependendo das condições em que se
aplicam e do tipo de criminalidade que buscam reduzir; (2) a presença relativa na população
de jovens do sexo masculino é fator positivamente associado à maior parte dos tipos de
prática delituosa; (3) a impunidade cumpre um papel chave; (4) os seguintes fatores são
propiciadores das condições que estimulam a prática da violência: pobreza relativa e
moradia inadequada; apoio familiar inconsistente; deficiência de aprendizado; exclusão da
escola; violência doméstica; poucas oportunidades de emprego e exclusão econômica;
cultura da violência; superlotação dos presídios e inexistência de uma adequada política de
drogas (BISCAIA et. al, 2002).

Isso sem contar que questões que envolvem riscos são administradas de forma diferente em
diversos Estados e até mesmo dentro de um mesmo Estado. Não existe muita troca de

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informações entre os Estados sobre riscos. O que dificulta ainda mais a tomada de decisão.
(HOOD, C.; ROTHSTEIN, H.; BALDWIN, R.)

Diante dos fatores apontados acima abstraímos a noção da complexidade sócio-econômico-


cultural que envolve o tema segurança pública no Brasil. Porém, ainda que não implique
negligenciar os outros aspectos envolvidos, mas, devido à proposta deste trabalho, se fez
mister um recorte em sua abordagem, na qual priorizamos a proteção aos jovens pobres,
considerando os graves impactos sofridos nas últimas décadas por essa classe, pelas mais
variadas formas de violência, em especial as mais graves, os homicídios dolosos,
justamente em função da ausência de aporte para superar as citadas condições que
estimulam a prática da violência.

Há de se observar ainda, que o beneficiário preferencial de políticas preventivas eficientes é


o jovem, e o foco, sua auto-estima (SOARES, 2006).

Hipótese teórica ilustrativa da proposta acima alvitrada é a de que a maioria da juventude é


excluída da participação política e do processo de produção econômica, social e cultural por
não ter acesso à educação básica e, em menor número, por buscar no caminho do crime um
sucedâneo para a frustração social.

As disposições sociais podem ter importância decisiva para o crescimento econômico por
meio da oportunidade social, especialmente na área de educação básica, a exemplo do
Japão que apresentava taxas de alfabetização mais elevadas que a da Europa (já
industrializada) em meados do século XIX e da China, que a partir de 1979 promoveu uma
economia mais aberta para o mercado, e que aliada a um pregresso incentivo à educação
básica se destacou, por saber aproveitar melhor as oportunidades econômicas oferecidas.
Esses exemplos, portanto, contrariam a crença dominante em muitos círculos políticos de
que o desenvolvimento humano (processo de expansão da educação e outras condições da
vida humana) é realmente um tipo de luxo que apenas os países mais ricos podem ter.
Esses países citados parecem ter solapado totalmente esse preconceito tácito, pois,
buscaram mais cedo a expansão em massa da educação e o fizeram em muitos casos antes
de romper os grilhões da pobreza generalizada. E colheram o que semearam. (SEN, 2000)

Quanto a nossa realidade fática, tanto a crise da educação quanto o crescimento da


violência no país têm uma relação específica, ambas as crises retroalimentando-se
mutuamente e tornando suas respectivas soluções mais problemáticas (BARRETO, 1992).

Ademais, o quadro oferecido pela própria violência urbana, já estabelecida durante os anos
80, fechou o circuito baixa escolaridade / baixos salários / atração pelas quadrilhas, pois
também afastou da escola alunos pobres (ZALUAR, 1996).

Nesse ínterim, o que se pretende demonstrar é a propalada eficiência da educação aliada à


distribuição de renda, sob o ponto de vista de suas contribuições na luta contra
determinados aspectos da violência o que beneficiaria a parcela da sociedade que não
aceita conviver com esse tipo de risco.

Essa aliança se torna eficaz na medida em que vários estudos comprovam que estar na
escola significa, de forma imediata, acesso a um direito social da educação e pode significar,
em médio e longo prazo, ganhos nos direitos políticos e civis (AGUIAR; ARAÚJO, 2002).

Na outra ponta surge a questão de como lidar com o acesso à educação, partindo do
pressuposto da existência de forte correlação entre as altas taxas de evasão escolar e a
pobreza das crianças que abandonam as escolas. Assim, se as crianças serão adultos
pobres porque não estudam no presente, e se não estudam porque são pobres, a solução

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para quebrar o círculo vicioso da pobreza é pagar às famílias para que seus filhos estudem
no lugar de trabalhar (BUARQUE, 1999)

4 Educação como modelo viável de políticas públicas

O programa Bolsa-Escola, como ferramenta apresentada visando a melhoria da educação


para combater a pobreza também pode ser visto como solo fértil no que tange a ações
preventivas ligadas a violência e a segurança pública.

O destaque a este programa se justifica por se tratar de um modelo de política pública viável
e eficiente pelas seguintes características:

Baixo custo, se compararmos com os altos gastos realizados pelos governos nas ações
repressivas à violência e a criminalidade;

Ação em vertentes da causa do problema;

Comprovada eficiência na desconstrução dos fatores propiciadores das condições que


estimulam a prática da violência;

Programa premiado pela inovação e reconhecimento de sua eficiência tanto a nível nacional
quanto internacionalmente.

Segundo pesquisa da UNESCO (2003) o quadro de violência atual apresenta para o País
elevados custos, não só no plano econômico, mas também no campo social, na política, na
saúde pública e até na esperança de vida da população.

No campo econômico, para se ter uma idéia, o Brasil gasta 10,5% de seu PIB, algo acima de
R$100 bilhões anuais, com a criminalidade e a violência, segundo estimativa do Banco
Interamericano de Desenvolvimento. Isso é mais que toda a riqueza produzida por muitos
países do mundo. Se considerarmos que o Brasil gasta em educação menos de 5% do seu
PIB, temos a dimensão do problema: dinheiro demais vai embora pelo ralo da violência.
(UNESCO, 2003).

Outro dado brasileiro é que uma vaga no sistema penitenciário custa, em média, R$800,00
por mês. Construir o espaço prisional necessário para abrigar um preso custa, em média,
R$12.000,00, em se tratando de uma unidade de segurança média, e R$19.000,00 em uma
unidade de segurança máxima. Esses valores tornam-se chocantes quando comparados
com o custo de um aluno, por mês, em uma escola pública estadual da região sudeste, que
é de R$75,00 (PROJETO SEGURANÇA PÚBLICA PARA O BRASIL, 2002).

Neste aspecto o programa Bolsa-Escola apresenta impacto econômico interessante, uma


vez que para atender as dez milhões de crianças até 14 anos, que precisam desse
programa, este custo seria de R$3,3 bilhões, que não chegaria a 0,36% do PIB ao ano,
considerando uma média de 2,5 filhos na escola para cada família, ao custo mensal de
R$68,00 por família atendida (BUARQUE, 1999).

Dessa forma, para cada real que investirmos em prevenção, pouparemos entre R$4 e R$7
em punição e repressão (UNESCO, 2003).

Considerando que o grande impacto dos gastos com violência se encontra nas suas
conseqüências, nos aparatos de proteção e na repressão das ocorrências e que bem pouco
é destinado a programas de prevenção visando a diminuição de fatores de risco,
evidenciamos a importância desta questão.

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A adoção de políticas preventivas como o Programa Bolsa-Escola, em larga escala e de
forma continuada, poderá trazer grandes benefícios no campo dos fatores citados que
contribuem com as causas da violência e da criminalidade, que se tornaram problemas
complexos e graves demais para serem tratados apenas de forma repressiva, ainda que o
papel da repressão seja de grande importância.

Pesquisa da UNESCO, apresentada por Aguiar e Araújo (2002), realizada após o período de
implantação do Programa Bolsa-Escola no Distrito Federal, que se deu de forma pioneira e
original, constatou seus efeitos imediatos e potenciais no enfrentamento de graves
problemas sociais, tais como: evasão, promoção e repetência escolar; saúde, nutrição e
alimentação; trabalho infantil; empoderamento, ganho de auto-estima e perspectiva de
futuro. Apenas para exemplificarmos alguns de forma sintética.

Como podemos observar esses efeitos produzidos pelo Programa se contrapõem aos
fatores propiciadores das condições que estimulam a prática da violência. Justificando assim
sua atuação eficiente na desconstrução dessas condições, combatendo não somente a
violência atual e visível, mas principalmente seus potenciais destrutivos que necessitam,
com urgência, de redirecionamento.

O Programa Bolsa-Escola como fora concebido e implantado no Distrito Federal, em meados


da década de 90, foi destaque nas imprensas nacional e internacional, chegando a ser
objeto de capa da revista Time, em novembro de 1995, e receber o prêmio Criança e Paz,
do Unicef. Dessa forma o projeto obteve adesões tanto a nível nação quanto internacional
em várias esferas de governo (AGUIAR; ARAÚJO, 2002).

Até mesmo o Poder Judiciário reconheceu a importância do programa, no âmbito de Ação


Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, dando
procedência ao pedido e determinando ao Município do Rio de Janeiro que oferecesse
bolsa-escola para todas as famílias com renda inferior a 1 salário mínimo e filhos na faixa
etária de 7 até 12 anos incompletos, conforme sentença contida nos autos registrados sob o
nº 1999.710.011079-9.1

No Brasil, contudo, em que pese o seu sucesso inicial, devido a questões de ordem política,
que identifico como decisões sobre os níveis aceitáveis de risco, o projeto nem sempre
manteve suas concepções na integralidade, passando por várias mutações para ser
implantado a nível nacional visando aumentar sua rede de proteção às crianças pobres. O
que culminou em 2001 no lançamento do Programa Bolsa-Escola Federal, e posteriormente,
em 2003, se transformou no Bolsa-Família, visando prioritariamente massificar a expansão
do atendimento, com a junção dos programas de transferência de renda do governo federal.
Sem, contudo, primar pelo controle efetivo da freqüência escolar dos alunos beneficiários, o
que não deixa de prejudicar o objetivo central dos programas anteriores, que era a questão
educacional, donde a transferência de renda era condicionada à freqüência e resultados
escolares.

Cabe registrar a descontinuidade do Programa no âmbito do Governo do Distrito Federal, o


que certamente gerou algumas implicações, que ainda desconhecemos de modo efetivo.

O Bolsa-Família é considerado hoje o programa social mais importante do atual governo


federal. Sua concepção, gestão, montante de recursos financeiros alocados e volume de

1
SILVA, Fábio Ribeiro Soares da; SOUZA, Wanessa Alentejano de. Atuação do Ministério Público
Junto à Vara de Infância e Juventude da Capital. Rio de Janeiro, 2005.
Disponível em: http://www.femperj.org.br/store/pesquisa/pesquisa.doc. Acesso em 20 de novembro de
2006.

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beneficiários atingidos é o que o torna herdeiro dos programas Bolsa-Escola e
Oportunidades (AGUIAR, 2006)

Inclusive, o Bolsa-Escola foi também precursor do Programa Oportunidades, executado de


forma ininterrupta no México desde 1997, hoje exemplo de sucesso, programa social que
concilia além de educação e distribuição de renda, atenção básica à saúde de todos os
membros da família e apoio à melhoria da situação nutricional das famílias pobres.

O aumento de matrícula, o crescimento no nível de escolaridade, a diminuição da evasão


escolar e ganho de chances de conquista de melhores postos de trabalho no futuro são
eixos de impacto muito claros no Oportunidades, além de vários outros impactos que foram
detectados pelas avaliações que vêm sendo realizadas pelos gestores do programa
(AGUIAR, 2006).

5 Conclusão: educação como fator de decisão

Evidentemente, a proposta não é fazer do Programa Bolsa-Escola um exemplo isolado de


redenção da violência do Brasil, pela complexidade, multidisciplinariedade e por tudo que
dissemos alhures sobre a questão, mas sim destacá-lo como possibilidade viável de políticas
públicas voltadas ao enfrentamento preventivo dos fatores de riscos2, propiciadores das
condições que estimulam a prática da violência, além do seu propalado efeito na melhoria da
educação e inclusão social, pela distribuição de renda, sem perder de vista o seu
aperfeiçoamento.

Torna-se inaceitável que os gestores públicos enfatizem políticas públicas voltadas à


repressão, relegando ações preventivas que podem reverter o atual quadro de violência,
sendo imperioso reconhecer o papel fundamental da escola neste ponto, que aliada a outras
políticas sociais poderão promover as mudanças iniciais necessárias para livrar a sociedade
da violência.3

E se ainda há dúvida científica sobre os riscos à segurança pública, para embasar qualquer
tomada de decisão no sentido apontado por este trabalho, talvez seja uma oportunidade
para pensarmos, quem sabe, na tomada de decisão discricionária do gestor público, que
passe pela preeminência da proteção a segurança em detrimento de interesses econômicos
e políticos, de modo razoável, apontando para o que pode ser um viés do princípio da
precaução no campo social. No atual contexto, o que não pode é prevalecer a decisão pela
inércia, pois a pressão por soluções à questão é gritante, sob pena, inclusive, da
responsabilidade vir a recair sobre a autoridade competente, ao revés da progressiva
socialização do risco.

O curso do mundo pode produzir infortúnio, mas isso é destino e não a conseqüência de
uma decisão, a qual é por se dizer, legitimada pelo momento escolhido para fazê-la.

Abstract: Brazilian society has been continuously submitted to many risks, mainly in the field
of public security. Especially in the recent historic period, the pressure for solutions came to a

2
Análise de risco de Paulo Freire: “É fundamental que eu saiba não haver existência humana sem
risco de maior ou menor risco. Enquanto objetividade o risco implica a subjetividade de quem o
corre”.

3
Segundo Paulo Freire: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a
sociedade muda”.

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climax. Nevertheless, on the other hand, public managers seem to be far behind in the
search for solutions. The extension of the gap is so huge that Government is completely
unable to devise effective actions to overcome risks. In face of that, well-structured
governmental programs, directed to the field of education and focused on the distribution of
income, appear as good means to approach the problem. The so called “Bolsa-Escola
Program” makes proof of that. This option surpasses significantly, in terms of efficiency as
much as in terms of efficacy, the possibilities demonstrated, until now, by high-cost programs
focused basically on repression.

Keywords: risks; public security; education; income distribution; violence

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Artigo recebido em 31/07/2007 e aceito para publicação em


31/08/2007

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Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.104-113, ago./set., 2007 113


Artigos

Perspectivas de um acordo de céus abertos na América do Sul

Ernesto Roessing Neto

Mestrando em Direito, área Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa


Catarina; Especialista em Comércio Exterior pela Universidade Federal do Amazonas.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas. Bacharel em Ciências
Econômicas pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas.
ernestoroessing@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de analisar as perspectivas para a criação de


um acordo de céus abertos entre os países da América do Sul. Para tanto, inicia-se
abordando a regulação tradicional do transporte aéreo. Posteriormente, passa-se à análise
dos acordos de céus abertos, delimitando seu conceito e tecendo considerações a respeito
do mercado interno europeu de transportes aéreos, do acordo de céus abertos entre
Estados Unidos e União Européia e do acordo de céus abertos entre os países da
Comunidade Andina de Nações. Em seguida, analisa-se a atual política brasileira de acordos
bilaterais e as propostas do país para o incremento do tráfego aéreo no continente sul-
americano. Por fim, conclui-se pela viabilidade de um eventual acordo e defende-se seu
efeito benéfico para o Brasil e a região.

Palavras-chave: céus abertos; transporte aéreo; América do Sul

Sumário: 1 Introdução – 2 Regulação tradicional do transporte aéreo – 3 O que são acordos


de céus abertos? - 4 Espaço aéreo na União Européia – 5 Acordo de céus abertos entre
União Européia e Estados Unidos – 6 Cielos abiertos nos países da Comunidade Andina de
Nações – 7 Mercosul e o Acordo de Fortaleza – 8 Atual política brasileira de acordos
bilaterais e proposta da ANAC de revisão – 9 Conclusões e perspectivas – Referências

1 Introdução

Tradicionalmente, os serviços de transporte aéreo internacionais submetem-se às


disposições da Convenção de Chicago de 1944, as quais impõem restrições à livre
prestação desse tipo de serviço. Deste modo, o transporte aéreo é uma atividade
tradicionalmente sujeita à forte regulamentação e intervenção estatal. Contudo, a partir do
fim da década de 1970, iniciou-se um movimento mundial rumo à desregulamentação dos
serviços de transporte aéreo tanto no âmbito interno dos países como no âmbito
internacional. Deste modo, acordos internacionais mais flexíveis, conhecidos como acordos
de céus abertos, passaram a ser assinados, o que levou a uma ampliação do tráfego aéreo
entre certos países. Atualmente, já existe o conceito de Área de Aviação Comum, defendido
pela União Européia e aplicado em seu território.

Na América do Sul, a regulação do transporte aéreo, tanto dentro do continente quanto entre
países da região e outros continentes, segue, de modo geral, o regime tradicional. Algumas
exceções podem ser listadas, como: o caso dos países da Comunidade Andina de Nações,
que possuem um acordo de céus abertos intra-regional1; o caso do Chile, que possui
acordos de céus abertos com vários países, tanto sul-americanos quanto de outros

1 O acordo será abordado em uma seção deste artigo, tendo em vista que pode servir de modelo para um
eventual acordo sul-americano.

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continentes2. O Brasil permanece um dos países mais fechados da região nesse sentido,
mas já há indicações de que o pensamento político começa a mudar no país em relação ao
tema.

Nas seções seguintes, discorrer-se-á sobre a regulação tradicional dos serviços de


transporte aéreo, sobre os acordos de céus abertos (incluindo-se uma breve análise dos
acordos da União Européia, da União Européia com os Estados Unidos e da Comunidade
Andina de Nações), sobre a atual política brasileira de acordos bilaterais e sobre a proposta
do país para o estabelecimento de um acordo de céus abertos na América do Sul. Por fim,
demonstra-se a viabilidade e o efeito benéfico de um eventual acordo do tipo para o Brasil e
para a região.

2 Regulação tradicional do transporte aéreo

Com a invenção do avião, no início do século XX, e o rápido desenvolvimento da tecnologia


aeronáutica, logo se passou a discutir como se regularia a navegação aérea. Deste modo,
duas correntes desenvolveram-se: uma “encarava a navegação aérea como destinada a
expandir-se amplamente mediante a garantia de certas liberdades, as quais seriam
asseguradas por uma Legislação Internacional”3; a outra era favorável à imposição de
severas restrições à circulação de aeronaves4.

Com a Primeira Guerra Mundial, e o uso em larga escala de aviões, incluindo o sobrevôo
sobre países neutros, firmou-se a corrente que propugnava pela imposição de restrições à
circulação. Desta forma, em 1919, a Convenção para a Regulamentação da Navegação
Aérea consolidou o princípio da soberania do espaço aéreo5.

Entretanto, em virtude do aumento do tráfego aéreo internacional, fez-se necessária uma


regulamentação mais precisa dos serviços internacionais de transporte aéreo, o que ocorreu
com a assinatura da Convenção de Chicago de 1944. Nela, consolidou-se o princípio da
soberania dos Estados sobre os seus respectivos espaços aéreos. No âmbito da
Convenção, foram adotados dois acordos multilaterais, o Acordo Internacional de Trânsito
Aéreo (que estabeleceu as duas primeiras liberdades do ar) e o Acordo Internacional de
Transporte Aéreo (que criou as terceira, quarta e quinta liberdades do ar).

Do sistema da Convenção de Chicago, surgiram as chamadas liberdades do ar. As


liberdades do ar são diferentes direitos, relativos ao transporte aéreo, que podem ser
negociados bilateralmente ou multilateralmente entre os países. Como visto, os acordos
assinados no âmbito da Convenção criaram cinco liberdades do ar. Posteriormente, embora
não estejam listadas num tratado internacional, foram criadas mais quatro liberdades do ar,
de modo que, atualmente, nove são as liberdades passíveis de negociação, quais sejam6:

 Primeira liberdade do ar – o direito de sobrevoar o território do Estado sem pousar;

 Segunda liberdade do ar – o direito de pousar no território de um Estado por motivos


técnicos, sem embarcar ou desembarcar passageiros ou carga;

2 DIRECCIÓN (Chile), 2001. Alguns países com os quais o Chile possui acordos de céus abertos de 3ª, 4ª e 5ª
liberdades: Bélgica, Brunei, Coréia do Sul, Dinamarca, Holanda, Noruega, Nova Zelândia, Cingapura, Suécia,
Suíça, Estados Unidos, Aruba, Costa Rica, Guatemala, Panamá, República Dominicana, Paraguai
3 BATISTA, 2005, p. 151.
4 Id., 2005, p. 152.
5 Id., 2005, ibid.
6 ORGANIZAÇÃO DA AVIAÇÃO CIVIL INTERNACIONAL (OACI). Vale ressaltar que a OACI faz distinção entre
as cinco primeiras liberdades e as outras quatro. As outras quatro são chamadas, pela organização, em
inglês, pelo termo so-called Freedoms of the Air, tendo em vista elas não fazerem parte de um acordo
multilateral como os assinados no âmbito da Convenção de Chicago.

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 Terceira liberdade do ar – o direito de transportar passageiros e carga do território do
Estado de origem a aeronave para o território de outro Estado;

 Quarta liberdade do ar – o direito de transportar passageiros e carga do território do


outro Estado para o território do Estado de origem da aeronave;

 Quinta liberdade do ar – o direito de transportar passageiros e carga entre o território


de outro Estado e um terceiro Estado, desde que na realização de um serviço aéreo
entre o Estado de origem da aeronave e o terceiro Estado;

 Sexta liberdade do ar – o direito de transportar passageiros e carga, através do


território de origem da aeronave, entre o território de um terceiro Estado e o território
de outro Estado;

 Sétima liberdade do ar – o direito de transportar passageiros e carga entre o território


do outro Estado e o território de um terceiro Estado sem realizar um serviço aéreo
entre o Estado de origem da aeronave e o terceiro Estado;

 Oitava liberdade do ar – o direito de transportar passageiros e carga entre dois


pontos no território do outro Estado, desde que na realização de um serviço aéreo
proveniente do Estado de origem da aeronave (é conhecida como cabotagem, ou
consecutive cabotage);

 Nona liberdade do ar – o direito de transportar passageiros e carga entre dois pontos


no território de outro Estado, sem qualquer vínculo com um serviço aéreo originado
no Estado de origem da aeronave (é conhecida como cabotagem pura, ou stand-
alone cabotage).

De modo geral, os acordos aéreos tradicionais, geralmente bilaterais, limitam-se às quatro


primeiras liberdades e, às vezes, também abrangem a 5ª e 6ª liberdades7. Por muito tempo,
os acordos bilaterais foram a base normativa do transporte aéreo internacional, e eram
realizados de modo que os países realizavam entre si concessões recíprocas. Segundo
Mario Umaña8, “durante os primeiros 35 anos do sistema de Chicago, o transporte aéreo
internacional caracterizou-se por uma condução bilateral das negociações, com marcado
protecionismo das companhias aéreas nacionais, a maioria de propriedade estatal”.

Esses acordos, de modo geral, regulam questões como rotas, concessão de licenças,
propriedade, número de freqüências a serem operadas entre os países, nacionalidade das
companhias, controle das companhias aéreas (sobretudo enfocando a questão da
nacionalidade do controle) e, em alguns casos, mesmo tarifas9.

Em virtude da massificação do transporte aéreo, o modelo baseado em acordos bilaterais


passou a mostrar-se insatisfatório para alguns países, de modo que reformas passaram a
ser propostas e ações passaram a ser empreendidas nesse sentido. Os Estados Unidos, por
exemplo, a partir de 1979, acompanhando a desregulamentação promovida internamente,
passaram a defender um modelo baseado em acordos de céus abertos e passaram a
assinar acordos do tipo com vários países (em sua maioria pequenos) ao redor do mundo.

7 SILVA, p. 3
8 UMAÑA, 1998, p. 3.
9 Embora, segundo Mario Umaña, a fixação das tarifas seja, em geral, delegada às companhias aéreas e à
IATA (Associação Internacional de Transporte Aéreo). V. UMAÑA, 1998, p. 4. Ainda, interessante o exemplo
trazido por Toh, que mostra como era realizada a fixação de preço entre Nova Iorque e Frankfurt, com base
no acordo multilateral de 1984 entre os Estados Unidos e vários países europeus. V. TOH, 1998, p. 64

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Os acordos de céus abertos, embora possuam algumas das restrições inerentes aos
acordos bilaterais, como a questão da nacionalidade e, de modo geral, restrições às sétima,
oitava e nona liberdades, possuem regras mais flexíveis, sobretudo no âmbito da
concorrência, o que resulta numa maior desregulamentação do transporte aéreo
internacional.

3 O que são acordos de céus abertos?

Acordos de céus abertos estabelecem normas mais flexíveis para o transporte aéreo
internacional e minimizam a intervenção governamental. De um modo geral, esses acordos
incluem disposições estabelecendo a livre concorrência de mercado, a livre determinação de
preço pelo mercado, oportunidades justas e iguais de concorrência, acordos de marketing
cooperativo e mecanismos de consultas e solução de controvérsias entre os Estados10.

De um modo geral, os Acordos de Céus Abertos mantém algumas restrições dos acordos
bilaterais, geralmente11:

 restrições quanto à nacionalidade das companhias aéreas;

 restrições quanto à nacionalidade do controle das companhias aéreas;

 restrições à nona liberdade do ar (cabotagem pura)12;

 restrições à oitava liberdade do ar (cabotagem).

Ainda, cabe adicionar que os acordos de céus abertos, ao estabelecerem restrições quanto
à nacionalidade das companhias aéreas, geralmente proíbem o exercício da sexta e sétima
liberdades do ar. Deste modo, pode-se dizer que um acordo de céus abertos,
tradicionalmente, libera o exercício das cinco primeiras liberdades do ar, ou seja, limita-se à
flexibilização do exercício das liberdades listadas nos acordos relacionados à Convenção de
Chicago13.

Os acordos de céus abertos passaram a substituir os acordos bilaterais tradicionais devido


aos movimentos liberalizantes realizados pelos Estados Unidos no fim da década de 1970.
Com a desregulamentação do mercado interno, em 1978, os Estados Unidos passaram a
perseguir uma política para o transporte aéreo internacional que resultasse em maior
liberdade de tráfego. Deste modo, já em 1979, os Estados Unidos lograram estabelecer
acordos com Coréia do Sul, Cingapura, Tailândia, Finlândia, Bélgica e Nova Zelândia14. Com
o tempo, outros países passaram a seguir o mesmo caminho, como o Canadá (a partir de
1987) e a Austrália (a partir de 1990); na América Latina, Chile, México, Equador e Panamá
passaram a perseguir uma maior abertura no setor de transporte aéreo15.

A maior parte da América Latina, nela incluída o Brasil, tem-se, tradicionalmente, oposto a
uma maior flexibilização do transporte aéreo internacional. Segundo Mario Umaña, as
principais razões para essa oposição tem sido, de um modo geral, políticas e econômicas, e
podem ser sintetizadas da seguinte maneira16:

10 SILVA, p. 8
11 MOSELLE; REITZES; ROBYN, passim
12 Sobre o tema, interessante o posicionamento do ex-presidente da TAM, Rolim Amaro (apud Lima, 2000, p.
42), que afirmava ser “100% favorável a céus abertos no dia em que puder voar Nova Iorque-Washington”.
13 Neste sentido, Staniland (1999, p. 16), afirma que os acordos de céus abertos “are simply liberalized Chicago-
regime bilaterals”.
14 TOH, 1998, p. 63.
15 Id., 1998, p. 67-68.
16 UMAÑA, 1998, p. 8

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 a liberalização atenta contra a soberania nacional do espaço aéreo, consagrada na
Convenção de Chicago de 1944 (posto que é necessário assegurar a estabilidade
financeira, a segurança operacional, a regularidade e continuidade dos serviços);

 não se pode deixar em mãos de companhias aéreas estrangeiras a realização de


serviços essenciais;

 uma indústria aérea bem estabelecida pode contribuir para a defesa nacional;

 o prestígio do país aumenta com uma companhia de bandeira nacional;

 os países grandes em termos de aviação continuam sendo protecionistas;

 todo país tem direito a participar dos benefícios do transporte a partir de seu território;

 geração de divisas;

 geração de emprego em alta tecnologia;

 indústria incipiente que requer proteção;

 há concorrência desleal por dumping social ou subsídios.

Entretanto, muitos desses argumentos não fazem sentido num mundo que se move, cada
vez mais, rumo a uma maior interdependência. Além disso, num mundo que se move rumo à
consolidação de blocos econômicos, faria sentido o estabelecimento de um acordo
multilateral regional de céus abertos na América do Sul. Mesmo se levando em conta o
argumento protecionista contra a competição com as empresas dos países desenvolvidos, é
provável que empresas regionais, atuantes num ambiente de céus abertos sul-americano,
poderiam construir uma capacidade maior de competir com as empresas do mundo
desenvolvido do que conseguiriam mantendo-se fechadas em seus próprios países.

Como se demonstrará nas breves análises de alguns acordos de céus abertos (e, no caso
da União Européia, do estabelecimento de um único mercado aéreo), um acordo sul-
americano de céus abertos poderia trazer benefícios para todos os países signatários e
poderia, mesmo, lançar as bases para a instalação de uma zona aérea comum, a exemplo
do que já ocorre no âmbito da União Européia17.

4 Espaço aéreo na União Européia

A União Européia adota, atualmente, um conceito que vai além da noção de céus abertos.
Trata-se do mercado de aviação comum18, que se diferencia de um acordo normal de céus
abertos ao abolir quaisquer restrições para o transporte aéreo realizado entre os países da
União. Enquanto os acordos de céus abertos limitam-se a liberalizar o exercício das cinco
primeiras liberdades do ar, o estabelecimento de um mercado de aviação comum resulta no

17 Como ilustração, um estudo aponta que a liberalização de 320 acordos bilaterais existentes (selecionados
para o estudo), resultaria na criação de mais de 24 milhões de empregos e geraria um acréscimo de 490
bilhões de dólares ao PIB mundial. V. INTERVISTAS Consulting, 2006, p. 2.
18 Além da União Européia, a Austrália e a Nova Zelândia passaram, a partir de 1996, a tratar o mercado de
aviação dos dois países como um mercado único, o que resultou num aumento do tráfego entre ambos. V.
INTERVISTAS Consulting, 2006, p. 19.

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exercício irrestrito das nove liberdades do ar. Atualmente, portanto, um vôo entre dois países
da União Européia não é mais considerado um vôo internacional, mas um vôo doméstico19.

O caminho rumo ao atual mercado comum de aviação na União Européia foi percorrido em
três etapas, cada uma delas contando com um pacote20 de medidas liberalizantes.

A primeira etapa iniciou-se em dezembro de 1987, quando se começou a flexibilizar as


regras existentes até então, diminuindo o poder de interferência dos governos dos países
membros sobre as tarifas e conferindo alguma flexibilidade para a adoção de acordos de
code-share entre as companhias aéreas.

Em 1990, passou-se à segunda etapa de liberalização. As possibilidades de code-share


foram ampliadas, e a fixação das tarifas passou a ser mais livre. Ainda, as restrições quanto
ao número de passageiros e ao volume de carga a serem transportados entre os países
membros da então Comunidade Econômica Européia foram revogadas.

A partir de 1993, a liberalização passou a ser mais profunda, com a introdução de um


terceiro pacote de medidas. Já a partir deste ano, foram liberados os serviços de transporte
aéreo entre os países da União Européia, sem restrições. A partir de abril de 1997, foram
também liberados os serviços de cabotagem a serem prestados dentro de qualquer país
membro da União. Posteriormente, o mercado comum foi estendido à Noruega, Islândia e
Suíça, três países que não fazem parte da União Européia. Ainda, outras medidas
liberalizantes foram adotadas: foram harmonizados os requisitos para a obtenção de uma
licença de operação para as companhias aéreas da União Européia; foi estabelecido que a
licença concedida por um país membro do mercado comum de aviação é válida para todos
os países; foi estabelecida a plena liberdade de fixação de preços.

Essa liberalização trouxe benefícios para a União Européia, como o aumento do número de
rotas servidas e a diminuição do preço das passagens aéreas. Segundo a Comissão
Européia:

Os resultados foram altamente positivos, com o número de rotas operadas quase dobrando desde
1992, e um número crescente de companhias aéreas voando dentro da União Européia. Graças
ao aumento da concorrência entre as companhias aéreas, os consumidores foram beneficiados
não só com uma maior escolha de rotas, mas com uma significativa redução das tarifas, graças,
em particular, a novos tipos de serviços. Talvez a maior mudança, do ponto de vista do
consumidor, seja o rápido crescimento das companhias aéreas de baixo custo, que
21
revolucionaram os as maneiras de viajar em vários países europeus nos últimos cinco anos .

Observa-se, atualmente, como o exposto, o surgimento de companhias aéreas de baixo


custo que operam em todo o mercado europeu, com bases tanto dentro quanto fora de suas
sedes. Um exemplo é o caso da companhia aérea SkyEurope22, uma companhia aérea
privada, baseada em Bratislava (Eslováquia), que cresceu a ponto de tornar-se a maior
companhia aérea de baixo custo da Europa Central. Atualmente, a empresa negocia ações
na bolsa de Viena e vale tanto quanto a tradicional Austrian Airlines23. Ainda, dentro de uma
lógica de mercado único, possui bases operacionais em várias cidades do continente
europeu, entre elas Bratislava, Viena, Budapeste, Cracóvia, Varsóvia, Praga e Bucareste, de
onde opera vôos para destinos em toda a Europa24. Há várias outras empresas que operam
com sistema semelhante, como RyanAir, EasyJet e WizzAir25.

19 STANILAND, 1999, p. 17.


20 O termo pacote é mesmo utilizado pela Comissão Européia. v. União Européia, Comissão Européia,____
21 UNIÃO EUROPÉIA. Comissão Européia, 2004, p. 2.
22 MÜLLER-JENTSCH, 2007, p. 10.
23 Id., 2007, ibid.
24 Para mais informações, ver <http://www1.skyeurope.com/en/>.
25 Para mais informações, ver <http://www.ryanair.com>, <http://www.easyjet.com> e <http://www.wizzair.com>.

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Em relação às empresas tradicionais dos países membros, observou-se um movimento
rumo à consolidação, como no caso da fusão entre Air France e KLM e no caso da compra
da Swiss pela Lufthansa26. Contudo, essas empresas, de modo geral, ainda que
pertencentes ao mesmo grupo, continuam mantendo operações separadas, devido ao fato
de ainda estarem em vigor muitos acordos bilaterais com países não pertencentes à União
Européia27. É provável que, com o novo acordo de céus abertos firmados com os Estados
Unidos, muitas fusões se observem entre empresas européias, e também é provável que a
noção de empresa européia, em vez de empresa francesa, holandesa, ou alemã, passe a
consolidar-se28.

Atualmente, a União Européia, calcada no sucesso da sua política de área de aviação


comum, tem buscado expandir essa política para países de fora da União. Deste modo, os
países da União Européia e alguns vizinhos (como a Islândia, a Noruega29 e todos os países
dos Bálcãs, incluindo o território do Kosovo) firmaram um acordo para o estabelecimento de
uma Área Européia de Aviação Comum até 2010. Da mesma forma, a União Européia tem
como meta o estabelecimento de uma área de aviação aberta transatlântica com os Estados
Unidos num futuro próximo, e procura realizar suas negociações nesse sentido.

Observa-se que a desregulamentação ocorrida na União Européia gerou grandes benefícios


para os consumidores e para as empresas. Entretanto, uma liberalização do tipo, que atinge
todas as liberdades do ar, talvez não seja bem aceita, ao menos neste momento, entre os
países da América do Sul, que ainda seguem, com algumas exceções, regulando os seus
serviços internacionais de transporte aéreo com base em acordos bilaterais. Contudo, os
benefícios advindos da abertura intra-européia devem servir como uma amostra dos
benefícios que poderiam resultar de uma maior abertura entre os países sul-americanos
(ainda que não compreendendo as nove liberdades do ar).

5 Acordo de céus abertos entre União Européia e Estados Unidos

Os Estados Unidos, a partir do fim da década de 1970, passaram, como exposto, a


defender, em suas negociações internacionais de acordos de tráfego aéreo, uma política de
céus abertos restrita às cinco liberdades do ar do regime da Convenção de Chicago30. A
União Européia, por sua vez, tendo em vista o sucesso de sua política interna de
liberalização total do mercado, isto é, baseada na liberalização de todas as nove liberdades
do ar, passou a defender, externamente, o estabelecimento de uma política de área de
aviação comum. Deste modo, pode-se dizer que Estados Unidos e União Européia possuem
pontos de vista conflitantes em relação à liberalização mútua do tráfego aéreo.
Outro ponto de conflito é a questão da propriedade das companhias aéreas. A União
Européia exige que uma empresa, para ser considerada da União, deve ter no mínimo 51%
de capital controlado por empresas ou indivíduos de países-membros da União. Os Estados
Unidos, por sua vez, exigem que 75% do capital de suas empresas esteja em mãos de
companhias ou indivíduos estadunidenses31.

Deste modo, as negociações entre Estados Unidos e União Européia caracterizaram-se por
um impasse, de modo que a assinatura de um acordo de céus abertos entre ambos, em 30

26 MÜLLER-JENTSCH, 2007, p. 11.


27
No caso da Swiss, a Suíça não é parte da União Européia, o que restringe ainda mais as operações conjuntas
com a Lufthansa.
28 The Economist, 2007.
29 Atualmente, Islândia e Noruega já fazem parte dessa área expandida do mercado comum de aviação
europeu. Restam, portanto, somente os países dos Bálcãs ainda fora da área.
30 Ver seção 3 deste artigo.
31 OSHIOKPEKHAI, 2005, p. 16.

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de abril de 2007, foi uma surpresa para muitos32. Em termos gerais, o acordo, que deve
entrar em vigor em março de 2008, prevê que companhias da União Européia poderão voar
para qualquer ponto dos Estados Unidos partindo de qualquer ponto da União Européia (isto
é, os acordos bilaterais entre os Estados Unidos e os países-membros da União serão
revogados). As empresas dos Estados Unidos poderão, também, passar a voar para
qualquer ponto da União Européia partindo de qualquer ponto dos Estados Unidos. Com
relação à cabotagem, ela será permitida somente para as empresas estadunidenses dentro
da União Européia33, e não será permitida para as empresas da União Européia dentro dos
Estados Unidos. Com relação à propriedade das companhias aéreas, empresas e indivíduos
europeus poderão deter 49,9% do capital total de companhias americanas, mas deverão
ater-se a 25% de participação no capital votante.

O acordo foi bem recebido pela França e pela Alemanha, mas não contou com o entusiasmo
do Reino Unido, que restringe as operações no aeroporto londrino de Heathrow a algumas
empresas, e deverá liberalizar as operações no aeroporto34. Deste modo, o acordo prevê
que, caso não seja alcançado um acordo, até 2010, relativo à cabotagem nos Estados
Unidos e ao controle estrangeiro das empresas estadunidenses, cada país da União
Européia poderá impor restrições aos serviços de transporte aéreo realizados de ou para os
Estados Unidos.

Embora não tenha sido possível encontrar estudos específicos sobre um acordo de céus
abertos entre a União Européia e os Estados Unidos, há um estudo35 realizado sobre a
consolidação de uma área transatlântica de aviação que pode ser levado em consideração
para estimar os impactos do novo acordo de céus abertos para o futuro do transporte aéreo
entre os Estados Unidos e a União Européia.

Entre os principais benefícios apontados pelo estudo36, estão:

 aumento de número de passageiros transportados entre a União Européia e os


Estados Unidos dos atuais (2006) 21,9 milhões para 37,5 milhões até 2011;

 queda do preço das passagens aéreas;

 aumento do número de empregos no setor aéreo, estimado em 72000 novos postos


até 2011;

 fusão de companhias aéreas e estabelecimento de novas alianças;

 redução de custos para as companhias aéreas;

 aumento do volume de carga transportada via aérea;

Deste modo, o novo acordo de céus abertos entre União Européia e Estados Unidos tenderá
a ser benéfico para ambas as partes. Vale ressaltar que, no caso, trata-se de um acordo
realizado entre duas partes com grau de desenvolvimento e políticas internas de mercado
semelhantes. Deste modo, ainda que, talvez, não se possa pensar, no momento, num
acordo semelhante entre União Européia e América do Sul, ou entre América do Sul e
Estados Unidos, um acordo de céus abertos entre os países da América do Sul (e, talvez, no
futuro, a consolidação de uma área de aviação comum entre esses países) poderia contribuir

32 FLINT, 2007, p. 5
33 Desde que operando um serviço proveniente dos Estados Unidos, ou seja, trata-se do exercício da oitava
liberdade do ar.
34 Para mais informações, ver FLINT, 2007, p. 5 e Air Transport World, 2007, p. 9.
35 BOOZ ALLEN HAMILTON LTD., 2007
36 Id. 2007, passim

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para preparar a região para o novo paradigma de grandes acordos que começa a surgir no
mundo.

6 Cielos abiertos nos países da Comunidade Andina de Nações

Na América do Sul, cabe destacar a realidade dos países da Comunidade Andina de


Nações, que possuem, no âmbito dos acordos do bloco, regulamentos relativos à prestação
do serviço de transporte aéreo que instituem uma política de céus abertos.

Na década de 1990, os países do então Pacto Andino envidaram esforços com o intuito de
liberalizar os serviços de transporte em geral, especialmente transporte marítimo e aéreo.
Como resultado, adotou-se uma política de céus abertos entre os países do bloco.

Atualmente, a política é regulada pela Decisão n. 582 da Comissão da Comunidade Andina.


A política da Comunidade Andina visa estritamente ao espaço aéreo dos países membros, e
difere da política da União Européia, pois adota estritamente a visão de céus abertos, e não
o conceito de área de aviação comum. O artigo 6º da decisão37 afirma:

Os Países Membros concedem-se o livre exercício de direitos de terceira liberdade, quarta


liberdade e quinta liberdade, em vôos regulares de passageiros, carga e correio, separadamente
38
ou em combinação, que se realizem dentro da Sub-região .

Além do artigo 6º, os artigos 7º e 8º também flexibilizam a prestação de serviços não-


regulares de transporte aéreo no âmbito da Comunidade Andina de Nações39.

A decisão mantém, no entanto, exceto para os vôos não regulares de carga40, a necessidade
de outros acordos entre os países membros da Comunidade para o caso de direitos de
quinta liberdade para vôos com origem num dos países membros e com destino para
terceiros países:

Artigo 9º – Os Países Membros conceder-se-ão, sujeitando-se a negociações bilaterais ou


multilaterais, mantendo o princípio da igualdade e sob fórmulas adequadas de compensação,
direitos de tráfego aéreo de quinta liberdade em vôos regulares de passageiros, carga e correio,

37 COMUNIDADE ANDINA DE NAÇÕES. Comissão da Comunidade Andina, 2004.


38 Vale ressaltar que o termo “sub-região” é definido, no artigo 1º da Decisão n. 582, como o âmbito geográfico
da Comunidade Andina.
39 Artículo 7.- Los Países Miembros se conceden el libre ejercicio de derechos de tercera libertad, cuarta
libertad y quinta libertad, en los vuelos no regulares de pasajeros que se realicen dentro de la
Subregión, cuando se observen las siguientes condiciones:
a) Las solicitudes que se presenten ante la respectiva Autoridad Nacional Competente cumplan los
requisitos establecidos en esta Decisión; y
b) Los vuelos se autorizarán para ser realizados entre puntos en los que no existan servicios aéreos
regulares establecidos. En los casos en que dichos servicios regulares existan, las autorizaciones se
otorgarán siempre que la oferta de los vuelos no regulares no ponga en peligro la estabilidad
económica de los servicios regulares existentes.
Cuando se soliciten series de vuelos no regulares, los mismos deberán responder a la realización de
“paquetes todo incluido” y se cumplirán necesariamente en una ruta de ida y vuelta, con salidas y
retornos prefijados. El incumplimiento de esta condición ocasionará la aplicación de las respectivas
sanciones, de acuerdo con la legislación de cada País Miembro.
Artículo 8.- Los Países Miembros se conceden el libre ejercicio de derechos de tercera libertad, cuarta
libertad y quinta libertad en los vuelos no regulares de carga y correo que se realicen dentro de la
Subregión.
40 Artículo 10.- Los Países Miembros se conceden el libre ejercicio de derechos de trafico de quinta
libertad para los vuelos no regulares de carga que se realicen entre Países Miembros y terceros
países.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.114-133, ago./set., 2007 122


separadamente ou em combinação, e estabelecerão as condições para a realização de vôos não
41
regulares de passageiros que se realizem entre Países Membros e terceiros países .

O regime da Comunidade Andina permitiu uma maior flexibilidade na operação de vôos entre
os países da região. O resultado foi o surgimento de novas rotas, de novas companhias
aéreas e a melhora no padrão de serviços prestados na região42. O regime da Comunidade
Andina, tendo em vista ter sido elaborado entre países que enfrentam muitos dos problemas
enfrentados pelos demais países sul-americanos, pode servir como uma base para um
eventual acordo que abranja toda a América do Sul.

7 Mercosul e o Acordo de Fortaleza

No Mercosul, não existe uma política única de regulamentação dos serviços de transporte
aéreo entre os países membros, apesar da assinatura de um acordo, o Acordo de Fortaleza,
em 1996, cujo artigo primeiro estabelece:

O presente Acordo tem por objetivo permitir a realização de novos serviços aéreos sub-regionais
regulares, em rotas diferentes das rotas regionais efetivamente operadas nos termos dos Acordos
Bilaterais, a fim de promover e desenvolver novos mercados e atender devidamente à demanda
43
dos usuários.

O artigo primeiro estabelece, basicamente, um objetivo típico de um acordo de céus abertos.


Entretanto, o próprio artigo, ao definir o escopo do acordo como as “rotas diferentes das
rotas regionais efetivamente operadas nos termos dos Acordos Bilaterais”, torna claro que
não se trata de um acordo de céus abertos, mas sim de um acordo que visa a complementar
os acordos bilaterais já existentes. Ainda, a substância do acordo mostra que, na verdade,
trata-se de um marco inicial no desenvolvimento ainda incipiente de um entendimento
comum relativo à prestação de serviço de transporte aéreo entre os signatários do acordo44.

Desta forma, os serviços de transporte aéreo no Mercosul são governados por uma
verdadeira teia de acordos bilaterais, que tornam a situação do bloco semelhante a da União
Européia antes da desregulamentação do transporte aéreo no âmbito da União. Para Silva,
um mercado comum de transporte aéreo no Mercosul deveria:

 liberar os direitos de tráfegos para as empresas aéreas dos Estados Partes;

 adotar um conceito regional de propriedade substancial e controle efetivo;

 uniformizar a normativa da Aviação Civil;

 maximizar as conexões;
 estabelecer uma política externa comum;

 compartilhar a infra-estrutura aeroportuária e de navegação aérea;

 facilitar os procedimentos aduaneiros, priorizando uma saudável concorrência e


preocupação com os usuários45.

41 COMUNIDADE ANDINA DE NAÇÕES.Comissão da Comunidade Andina, 2004.


42 NOGUEIRA; TACONE, 2002, p. 21.
43 BRASIL, 1999
44 Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
45 SILVA, p. 11-12.

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Um Memorando de Entendimento, comumente conhecido como Memorando de Santiago46,
foi adotado, no âmbito do Acordo de Fortaleza, pelas autoridades Aeronáuticas de Brasil,
Chile, Paraguai e Uruguai. Posteriormente, Bolívia e Peru também firmaram o instrumento.
Apesar de prever uma maior liberalização do tráfego entre os países a partir de 2003, o
Brasil somente passou a adotá-lo, plenamente, a partir de 2005. Embora não se trate de um
verdadeiro acordo de céus abertos, o Memorando constitui um “marco inicial para um Acordo
Aéreo Multilateral na América do Sul”47.

Na atual União Européia, somente foi possível iniciar esforços de liberalização interna a
partir de 1987, ou seja, 30 anos após a assinatura do Tratado de Roma (que criou a
Comunidade Econômica Européia em 25 de março de 1957). Deste modo, seria talvez irreal
esperar que os países do Mercosul, um bloco econômico criado pelo Tratado de Assunção
(em 26 de março de 1991), já se mostrassem dispostos a avançar rumo a um mercado
comum para os transportes aéreos. Entretanto, uma política de céus abertos entre os países
do bloco poder-lhes-ia ser benéfica e servir como base para uma política sul-americana de
liberalização do transporte aéreo. O Memorando de Entendimento de Santiago parece
apontar para esse caminho.

8 Atual política brasileira de acordos bilaterais e proposta da ANAC de revisão

Atualmente, o Brasil segue uma política de estabelecimento de acordos bilaterais para a


regulação dos serviços de transporte aéreo internacionais. Segundo a Agência Nacional de
Aviação Civil (ANAC), o Brasil possui, na América do Sul, acordos bilaterais com os países
listados na Tabela 148:

Como exposto na tabela 1, os acordos de transporte aéreo do Brasil com outros países da
América do Sul são, em geral, antigos, assinados há décadas. Ainda, essa política tem-se
mostrado ineficiente. Já em 1998, o Brasil era apontado, em estudo sobre a flexibilização
dos acordos de transporte aéreo da América Central, como um exemplo a não ser seguido:

[O Brasil] Tem mantido políticas restritivas e protecionistas, ainda que contra os objetivos do
Mercosul. O número de visitantes diminuiu 44% entre 1986 e 1990. Ainda que a situação de
queda se tenha reduzido na década de 90, o Brasil mantém um número de ingresso de turistas
internacionais muito baixo (só 2,1 milhões em 1996), menor que de países muito menores, como
o Uruguai. No âmbito mundial, o Brasil encontrava-se em 35º lugar, caindo para o 52º em 1990 e
49
indo para 45º em 1996 .
Ainda, Araújo Júnior aponta que:

um dos obstáculos às intenções de fortalecer os vínculos econômicos do Brasil com os demais


países da América do Sul reside no círculo vicioso entre a precariadade [sic] do sistema de
transporte na região e a escassez de demanda por vôos mais freqüentes entre as capitais destes
países. Obstáculos similares ocorrem em polos [sic] potenciais de atração turística em localidades
50
remotas .

Acordos bilaterais de transporte aéreo entre Brasil e países sul-americanos


País Rubrica* Assinatura Promulgação

46 BRASIL, 2007b, Anexo G.


47 BRASIL, 2007b, Módulo IV, p. II.4
48 AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL (Brasil), 2007a. As datas de rubrica, assinatura e promulgação
devem ser tomadas apenas como indicativas, pois, infelizmente, não se pode confiar inteiramente na lista
provida pela ANAC. Um exemplo de erro contido na lista original é o fato de indicar que não houve
promulgação do acordo com os Estados Unidos, quando ela, na verdade, ocorreu em 1992 (v. Brasil, 1992).
49 UMAÑA, 1998, p. 13.
50 ARAÚJO JUNIOR, 2005, p. 9

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Argentina 19/10/2006 02/06/1948 30/06/1967
Bolívia 02/06/1951 18/06/1954
Chile 04/07/1947 25/03/1952
Colômbia 28/05/1958 02/07/1975
Equador 23/02/1996
França (inclui Guiana 29/10/1965 16/06/1967
Francesa)
Guiana 09/09/2005
Paraguai 26/06/1951 20/05/1954
Peru 28/08/1953 21/08/1957
Suriname 23/11/1979 28/01/1980
Uruguai 28/12/1956 23/02/1972
Venezuela 31/01/2007 (novo) 11/11/1988 10/10/1991

*Rubrica não é o mesmo que assinatura, pois simboliza apenas um entendimento, e não a conclusão
de um acordo.

Tabela 1 – Acordos bilaterais de transporte aéreo entre Brasil e países sul-americanos.


FONTE: ANAC

Deste modo, percebe-se que a política brasileira traz resultados negativos para o turismo no
país e para a própria integração econômica do Mercosul e da América do Sul. Entretanto,
algumas resistências persistem, devido aos motivos tradicionais de oposição a acordos de
céus abertos, mas também devido, no caso do Brasil, a problemas internos que dificultam o
funcionamento do mercado de aviação civil51.

Para viajar entre várias cidades brasileiras e várias cidades de países sul-americanos, é
necessário, muitas vezes, fazer um grande número de conexões e, às vezes, mesmo
pernoitar em algum ponto intermediário52. É fácil ver como isto pode inibir o deslocamento de
pessoas na região. A tabela 2, elaborada com base em consultas ao sistema Amadeus de
reservas53, mostra alguns exemplos de deslocamentos dificultados em virtude da ausência
de melhores ligações entre as cidades brasileiras e sul-americanas.

Os exemplos da Tabela 2 não podem ser tomados como exaustivos, tendo em vista a
escolha arbitrária de pares de cidades e as falhas do sistema Amadeus54. Todavia, esses
exemplos ilustram como as ligações secundárias são prejudicadas pela ausência de vôos
mais diretos entre cidades do Brasil e da América do Sul. Embora seja impossível haver
vôos diretos partindo de todas as médias e grandes cidades brasileiras em direção a todas
as médias e grandes cidades da América do Sul, uma política de céus abertos poderia

51 Rolim Amaro, ex-presidente da TAM, reclamava, já em 2000, da excessiva quantidade de tributos aos quais
as empresas aéreas brasileiras estão sujeitas. Na época, 35% do valor dos bilhetes aéreos era composto por
tributos. V. LIMA, 2000, p. 42.
52 Poder-se-ia dizer que um acordo de céus abertos não resolveria o problema, posto que o Brasil,
internamente, apresenta distorções do tipo. Contudo, o mercado brasileiro ainda absorve o impacto da quase
falência da VARIG. Ainda, iniciativas como a das companhias BRA e OceanAir de explorarem novos pontos
de conexão mostram que o mercado desperta para uma reestruturação interna do transporte aéreo em
direção a consolidação de novas rotas. V. G1, 2007.
53 AMADEUS.NET
54 O sistema Amadeus, apesar de exibir os principais vôos existentes, não mostra todos os vôos existentes,
tendo em vista que as companhias aéreas devem pagar para ter seus vôos listados no sistema. Vôos da
OceanAir e da BRA, por exemplo, não aparecem nas consultas ao Amadeus. Ainda, há o fato de que
empresas podem preferir trabalhar com outros sistemas, como o SABRE. Deste modo, existe uma chance de
que haja alternativas diferentes das expostas na tabela.

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contribuir para a formação de mais hubs55 e para o estabelecimento de algumas rotas mais
diretas, operadas por empresas menores, que permitiriam uma maior interconexão. A
ligação entre Rio Branco e Lima, por exemplo, tendo em vista a pequena distância (597km) e
o provável pequeno número de passageiros, poderia ser feita por uma companhia aérea
regional de algum dos dois países utilizando aeronaves menores.

Rotas aéreas atuais entre pontos selecionados do Brasil e da América do Sul*


Trecho Distância em linha reta Rotas atual mais rápida
(aproximadamente) (duração estimada)
Manaus – Quito 2080km Manaus – Panamá – Quito (6h26)
Brasília – Georgetown (Guiana) 2755km Brasília – Belém – Paramaribo –
Port of Spain – Georgetown
(22h15)
Florianópolis – Assunção 942km Florianópolis – São Paulo –
Assunção (4h05)
Santiago do Chile – Foz do Iguaçu 1785km Sem rota listada no sistema
Amadeus.
Rio Branco – Lima 597km Sem rota listada no sistema
Amadeus.
Belo Horizonte – Mendoza 2858km Belo Horizonte – São Paulo –
Buenos Aires – Mendoza (9h30)
Campo Grande – La Paz 1561km Campo Grande – Santa Cruz de la
Sierra – La Paz (9h20, há
pernoite).

Elaborada com base em consulta para vôos programados entre os dias 03 e 10 de Agosto de 2007

Tabela 2 – Rotas aérea entre pontos selecionados do Brasil e da América do Sul


Fonte: AMADEUS.NET, GEOBYTES

Diante deste contexto, a Agência Nacional de Aviação Civil e o Ministério do Turismo


elaboraram um estudo visando a efetuar um diagnóstico da realidade dos serviços de
transporte aéreo na América do Sul e a propor soluções para os problemas encontrados.
Trata-se de um estudo extenso, dividido em sete partes56, e que aborda não só o transporte
aéreo dentro da América do Sul, mas também o transporte aéreo entre a América do Sul e
outras regiões do mundo.

No que tange, especificamente, à América do Sul, o diagnóstico obtido pode ser resumido da
seguinte forma57:

 Somente 28 cidades possuem pelo menos um vôo regular intra-regional (isto é,


dentro da América do Sul) diário em todo o continente, o que evidencia a
necessidade de aumento da oferta no âmbito sul-americano;

 É necessário o acesso direto, ou por meio de hubs, de outras cidades que ainda não
possuem vôos internacionais, como Foz do Iguaçu (um dos principais destinos
turísticos do Brasil);

55 Aeroportos que funcionam como pontos de conexão entre diversos vôos, permitindo que um passageiro se
desloque de uma cidade a outra sem a necessidade de um vôo direto entre ambas.
56 BRASIL, 2007b.
57 BRASIL, 2007b, Módulo I, p. 1.

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 Há possibilidade de ampliação das ligações entre o Brasil e a Argentina, tanto no que
tange à quantidade de vôos, como no que diz respeito à variedade de destinos;

 É necessário que, além das 21 empresas que realizam vôos intra-regionais na


América do Sul, outras empresas entrem no mercado, especialmente as que já
operam vôos domésticos dentro de seus respectivos países;

 Os atuais níveis de demanda aérea na região implicam uma necessidade de


aumento da oferta, o que pressupõe o aumento e renovação das frotas das
empresas que operam na região.

Com relação à aviação transfronteiriça, isto é, à ligação aérea entre cidades secundárias de
países diferentes, o estudo58 concluiu que é necessário um maior desenvolvimento desta
modalidade de ligação aérea, com o intuito de oferecer mais ligações diretas, sem
necessidade de uso de um centro de distribuição. Tais ligações ocorreriam entre aeroportos
que movimentariam entre 30 e 40 passageiros internacionais por dia. Neste caso, poder-se-
ia imaginar ligações diretas, servidas por empresas regionais, entre, por exemplo, Rio
Branco e Iquitos (Peru), ou entre Boa Vista e Ciudad Bolívar (Venezuela), por exemplo.
Contudo, o estudo também aponta que, devido ao número reduzido de vôos internacionais
nesses aeroportos secundários, seria inviável manter neles uma equipe de agentes da
Polícia Federal e da Receita Federal sete dias por semana, 24 horas por dia. Para enfrentar
a questão, o estudo aponta que seria necessária uma redução da burocracia de imigração,
com a adoção de um critério de fiscalização por amostragem, e não de fiscalização de toda a
bagagem e de todos os passageiros, como ocorre atualmente59.

Segundo o estudo, com uma maior flexibilização do mercado sul-americano de aviação, a


tendência seria o surgimento de alguns pontos de distribuição pelos quais passaria a maior
parte do tráfego aéreo da região60, conforme demonstrado na Tabela 3.

Efetuado o diagnóstico, o estudo propõe, com relação ao transporte aéreo, as seguintes


medidas61:

 designação automática de empresas de âmbito regional, de modo que qualquer


empresa autorizada, pelo país de origem, a realizar vôos internacionais, estaria
autorizada a realizar vôos para os países signatários do acordo62;

 as rotas poderiam ser estabelecidas para qualquer ponto dos países signatários,
limitando-se somente por motivos de ordem técnica e de infra-estrutura;

 os direitos de tráfego intra-regional deveriam abranger as primeira, segunda, terceira,


quarta, quinta e sexta liberdades do ar;

 não deveria haver limitações de capacidade e freqüência;

 a liberdade deveria ser estendida aos vôos não-regulares;

 a política tarifária deveria basear-se na livre concorrência;

58 BRASIL, 2007b, Módulo II, p. IV1-IV2.


59 O estudo inclui uma proposta de acordo de simplificação dos procedimentos de imigração, que pode ser
encontrada em Brasil, 2007b, Anexo E.
60 BRASIL, 2007b, Módulo III, p. III.37
61 BRASIL, 2007b, Módulo IV, p. II.10.
62 O estudo da ANAC baseia-se no Acordo de Fortaleza. Entretanto, poder-se tratar a palavra acordo como um
eventual acordo sul-americano que venha a ser assinado.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.114-133, ago./set., 2007 127


 tarifas aeroportuárias deveriam ser as praticadas no mercado doméstico de cada
país;

 as medidas deveriam ser adotadas pela via administrativa, para maior agilidade
enquanto não se firmasse um acordo;

 a integração deveria ser feita com a participação de todos os países sul-americanos.

Aeroportos com vocação para hub na América do Sul


Aeroportos Justificativa
São Paulo - Guarulhos Ponto de confluência de várias rotas aéreas. Ainda, é o principal pólo gerador de
viagens no Brasil.
Buenos Aires Ponto de confluência de várias rotas. Ainda, é o principal pólo gerador de viagens
na Argentina.
Santiago do Chile Ponto de confluência de várias rotas. É o principal pólo gerador de viagens no
Chile, e também permite conexão entre o sul do Chile e as rotas de acesso ao
país.
Santa Cruz de la Sierra Não é um centro gerador de viagens, mas está próximo ao cruzamento de várias
rotas. Ainda, as condições do relevo são mais favoráveis que as do aeroporto de
La Paz.
Brasília Está estrategicamente localizado na região central do Brasil. É, também, ponto
extremo de novas rotas potenciais nacionais e internacionais.
Lima É ponto extremo de várias rotas existentes, e possui posição privilegiada como
pólo de distribuição do tráfego na região do Andes.
Bogotá Ponto de confluência de várias rotas e possui localização estratégica para atuar
como distribuidor de viagens ao norte do continente.
Caracas Ponto de confluência de várias rotas e estrategicamente localizado para distribuir
viagens ao norte do continente. Sua localização mais a leste favorece conexões
para Manaus, para as Guianas e o Suriname.

Tabela 3 – Aeroportos com vocação para hub na América do Sul.


Fonte: ANAC

Ainda, como medidas complementares, para apoiar os esforços de integração aérea da


região, o estudo recomenda63:

construção de hubs e de uma rede aeroportuária ligada a eles;

expansão dos exploradores de infra-estrutura aeroportuária (por meio de concessões ou, por
exemplo, Parcerias Público-Privadas);

o tratamento do combustível como commodity, sem discriminação quanto à companhia aérea;


desoneração tributária do transporte aéreo e de seus principais insumos;

financiamento da atividade e da aquisição de seus componentes básicos;

simplificação dos controles migratórios nos aeródromos;

criação de centros de homologação e certificação de reconhecimento mútuo;

formação de recursos humanos;

63 BRASIL, 2007b, Módulo IV, p. II.15.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.114-133, ago./set., 2007 128


64
suporte e estímulo ao tráfego de raiz .

Por fim, o estudo estimou que a oferta de assentos, na região, passe dos atuais 30 bilhões
para 350 bilhões com um acordo regional de céus abertos65.

Com base nesse diagnóstico, a ANAC passou a defender uma política de maior abertura do
Brasil em relação à prestação de serviços de transporte aéreo na América do Sul. No dia 18
de abril de 2007, foi noticiado66 que o presidente da ANAC, Milton Zuanazzi, defendeu
publicamente o fim dos acordos bilaterais entre os países da América do Sul. Segundo o
informe, as propostas de mudança já teriam sido apresentadas ao presidente do Brasil, Luís
Inácio Lula da Silva, a ministros de Turismo e autoridades da aviação civil da América do
Sul. Ainda, de acordo com a notícia veiculada, o país deve apresentar, oficialmente, uma
proposta de acordo sul-americano de céus abertos em junho de 200767.

9 Conclusões e perspectivas

Até o momento, como exposto neste trabalho, o transporte aéreo na América do Sul segue,
salvo algumas exceções, sendo regulado por uma teia de acordos bilaterais. Neste contexto,
o Brasil, maior país da região, tradicionalmente seguiu uma política de estabelecimento de
acordos bilaterais, não assinando nenhum acordo de céus abertos com nenhum país do
mundo, nem mesmo com os países fronteiriços.

Em algumas partes do mundo, no entanto, já se verifica uma flexibilização dos acordos de


transporte aéreo internacional. Neste caso, há duas vertentes: uma, capitaneada pelos
Estados Unidos, defende uma liberalização baseada no exercício das cinco liberdades do ar
do regime de Chicago; outra, liderada pela União Européia, defende uma liberalização mais
profunda, fundada no exercício irrestrito das nove liberdades do ar.

A análise dos acordos de liberalização demonstra que, de um modo geral, eles tendem a ser
benéficos para os países signatários, tendo em vista, entre outros fatores, o aumento da
oferta de rotas, a melhora no padrão dos serviços e a queda das tarifas.

Os benefícios da liberalização podem mesmo ser verificados em partes da América do Sul.


O Chile, por exemplo, já assinou acordos de céus abertos com vários países. Os países da
Comunidade Andina de Nações, por sua vez, construíram um interessante acordo
multilateral de céus abertos, que trouxe benefícios para todos os membros da Comunidade.

Um estudo conduzido pelo Ministério do Turismo em conjunto com a ANAC, além de outros
estudos realizados em outras regiões, demonstram que uma liberalização do transporte
aéreo entre os países sul-americanos tenderá a trazer melhoras para o transporte aéreo na
região, resultando numa diversificação das rotas, na consolidação de centros de distribuição
regionais, no aumento da oferta, na melhora do padrão dos serviços e na queda das tarifas.

Despertado pelos benefícios potenciais de uma política sul-americana de céus abertos, o


Brasil passou, recentemente, de um defensor da política de acordos bilaterais a defensor de
uma política sul-americana de céus abertos, de modo que o país já inicia negociações com
os demais países sul-americanos na tentativa de estabelecer um acordo multilateral nestes

64 O tráfego de raiz pode ser entendido como o transporte aéreo proporcionado às cidades com baixo potencial
de tráfego e que depende, portanto, de suplementação de tarifas para viabilizar a regularidade dos vôos. V.
BRASIL, 2007b, Módulo IV, p. II.14.
65 LAGE, 2007.
66 LAGE, 2007.
67 Até a última revisão deste artigo, no dia 29 de junho de 2007, a proposta em questão ainda não havia sido
apresentada.

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termos. Ainda, mesmo antes dessa postura mais direta adotada pelo Brasil, já se podia notar
alguma insatisfação de vários países com a realidade atual nas negociações que levaram à
assinatura do Acordo de Fortaleza e do Memorando de Santiago.

Nesse contexto, pode-se afirmar que a América do Sul caminha rumo ao estabelecimento de
uma política regional de céus abertos, semelhante a existentes nos países da Comunidade
Andina de Nações. Está-se, no entanto, no início da caminhada, e é provável que se leve
algum tempo para a implantação dessa política. Com a consolidação de seus benefícios, no
entanto, é possível que, num futuro mais distante, pense-se no estabelecimento de um
mercado aéreo comum, a exemplo do que já ocorre na União Européia e entre a Austrália e
Nova Zelândia. A América do Sul está ainda no começo de um caminho já trilhado por outras
nações, um caminho que, provavelmente, tornar-se-á a regra conforme for avançando a
globalização.

Abstract: This work aims at analyzing the perspectives for the establishment of an open
skies agreement among the South American countries. In order to achieve this goal, this
work begins with an analysis of the traditional air transportation regulation. Subsequently, the
open skies agreements are analyzed: the concept of open skies is clarified, and the
European internal market, the open skies agreement between the United States and the
European Union and the open skies agreement within the framework of the Andean
Community of Nations are discussed. Afterwards, the current Brazilian policy of bilateral
agreements, as well as the proposals for the growth of the air traffic in South America are
analyzed. At last, it is concluded that an eventual open skies agreement is viable and will
benefit Brazil and the region.

Keywords: open skies; air transport; South America

Referências

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. Acesso em: 3 jun. 2007.

Revista Jurídica
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/index.htm

Artigo recebido em 31/07/2007 e aceito para publicação em


31/08/2007

A Revista Jurídica destina-se à divulgação de estudos e trabalhos


jurídicos abrangendo todas as áreas do Direito.

Os originais serão submetidos à avaliação dos especialistas,


profissionais com reconhecida experiência nos temas tratados.

Todos os artigos serão acompanhados de uma autorização expressa


do autor, enviada pelo correio eletrônico, juntamente com o texto
original.

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Artigos

A conservação da fauna e da flora silvestres no Brasil: a questão do tráfico ilegal de


plantas e animais silvestres e o desenvolvimento sustentável

Gabriela Garcia Batista Lima

Pesquisadora do UniCEUB – Brasília/DF, Membro do projeto de pesquisa “Internacionalização dos Direitos”.


gblima@gmail.com.

Resumo: A presente análise contextualiza a questão do tráfico ilegal no Brasil, enfatizando a


gravidade da continuidade da atividade comercial ilegal da fauna e da flora para a
conservação ambiental e o desenvolvimento sustentável. Sob essa forma, estruturada a
composição brasileira voltada para a regulamentação deste comércio, delineando suas
principais falhas na condução da atividade, bem como as possibilidades de alterações
adequadas ao contexto brasileiro, a fim de que se efetive conservação ambiental no
comércio da fauna e da flora silvestres.

Palavras-chave: tráfico ilegal; comércio; fauna; flora; desenvolvimento sustentável

Sumário: 1 Introdução: a conservação da fauna e da flora silvestre no contexto de sua


utilização para o comércio – 2 A biodiversidade, a fauna e a flora silvestres: o fundamento
para a implementação de políticas voltada para o desenvolvimento sustentável - 2.1
Contextualização biológica: a fauna e a flora silvestres - 2.2 Contextualização econômica: a
utilização comercial da fauna e da flora silvestres - 3. A regulamentação do comércio da
fauna e flora silvestres no Brasil - 4 O tráfico ilegal da fauna e da flora silvestres no Brasil – 5
Medidas tomadas pelo Brasil para tornar a proteção mais efetiva: avanços e limites - 6
Conclusão - Referências

1 Introdução: a conservação da fauna e da flora silvestre no contexto de sua utilização


para o comércio

O Brasil é o país de maior biodiversidade do mundo. O enfoque sócio-cultural e econômico


delineado neste contexto remonta para a necessidade de implementação de políticas
públicas mais eficazes no que tange ao plano da conservação e do desenvolvimento, pois
questões como o desmatamento ilegal, destruição do habitat natural das espécies e o
comércio ilegal da fauna e da flora permanecem com grande ênfase na realidade brasileira.

A presente análise visa verificar a contextualização do tráfico ilegal de fauna e flora silvestres
no Brasil, haja vista ser uma das principais causas da perda da biodiversidade como um
todo. Sob o alicerce do desenvolvimento sustentável, demonstra-se que a conservação
ambiental é dever e direito de todos, de forma que não basta apenas a atuação estatal, mas
sim de toda a sociedade que, ao exigir o cumprimento da lei, como atos habituais de seus
cidadãos, permitirá que esta conservação ocorra de fato.

Nesse sentido, averiguar a efetividade dos principais instrumentos normativos no


ordenamento jurídico brasileiro voltados para a regulamentação do comércio da fauna e da
flora silvestres, consiste justamente no estudo do comportamento da sociedade, tanto no
campo estatal, de exigência do cumprimento das normas, tanto nos hábitos do cidadão, em
cumprir ou não a lei.

2 A biodiversidade, a fauna e a flora silvestres: o fundamento para a implementação


de políticas voltada para o desenvolvimento sustentável

O Brasil abriga 07 biomas, 49 ecorregiões já classificadas, e incalculáveis ecossistemas. É o


país com a maior biodiversidade existente, reúne ao menos 70% das espécies vegetais e

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animais do planeta, e possui a flora mais rica do mundo, com até 56.000 espécies de plantas
superiores, já descritas; abrigando também, acima de 3.000 espécies de peixes de água
doce, 517 espécies de anfíbios, 1.677 espécies de aves, 518 espécies de mamíferos, e pode
ter até 10 milhões de insetos.1

Essa diversidade implica na intensa busca por animais e plantas exóticas para os mais
diversos fins no Brasil. Desta forma, a necessidade de consolidação dos termos de proteção
ambiental é relevante diante do quadro ecológico no que tange a manutenção da
biodiversidade, e também em razão da exploração econômica desses recursos, que viabiliza
a criação de empregos, possibilidade de uma atividade sustentável e assim, o
desenvolvimento do país.

É compreender a própria aplicação da noção do desenvolvimento sustentável, que evoluiu


nas últimas décadas, caracterizando a questão de que o desenvolvimento de um país não
consiste somente no crescimento de seu Produto Interno Bruto (PIB), mas abrange também
um enfoque social e individual, de realização enquanto cidadão e ser humano, para melhorar
sua qualidade de vida e a da sociedade.

E, na questão da exploração de recursos ambientais, o desenvolvimento somente será


efetivo se possibilitar a conservação ambiental, pois, além de propiciar qualidade de vida,
permite também que se tenha uma manutenção daquela atividade econômica, na
conservação de seu produto base. Sob este enfoque, analisaremos nesta primeira parte, a
importância da conservação da biodiversidade, diante de sua contextualização ecológica e
econômica, como alicerce do desenvolvimento sustentável, tendo como foco principal, o
comércio da fauna e da flora silvestres.

2.1 Contextualização biológica: a fauna e a flora silvestres

A fauna e a flora, assim como os demais recursos ambientais, exercem uma função no
ecossistema, e são indispensáveis para o seu equilíbrio. É dizer que cada um dos elementos
do ecossistema tem uma missão a cumprir para mantê-lo estruturado e em harmonia. Nesse
sentido, se todas as espécies são insubstituíveis nesse complexo, a ausência de qualquer
uma delas altera toda a dinâmica do sistema.

A fauna consiste no conjunto de espécies animais de um determinado país ou região, tanto


selvagens como domesticados. A fauna silvestre não quer dizer exclusivamente aquela a ser
encontrada na selva, mas é a vida natural em liberdade, fora do cativeiro, e mesmo que em
uma espécie já haja indivíduos domesticados, nem por isso os outros dessa espécie, que
não o sejam, perderão o caráter de silvestre.2

De sua conceituação normativa, tem-se que a fauna silvestre brasileira comporta todos os
animais pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou
terrestres, reproduzidos ou não em cativeiro, que tenham seu ciclo biológico ou parte dele
ocorrendo naturalmente dentro dos limites do Território Brasileiro e suas águas
jurisdicionais.3

A flora possui estreita ligação com a fauna, expressada nas relações ecossistêmicas, ao
exemplo das relações alimentares. Nesse sentido, compõem a flora as florestas, as matas

1 INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (Brasil).


Ecossistemas. ecossistemas brasileiros: estudo de representatividade ecológica nos biomas brasileiros.
Disponível em: [http://www.ibama.gov.br/]. Acesso em: 31 mar. 2007.
2 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 645-646.
3 BRASIL. Portaria nº 118/97, de 15 de outubro de 1997. Dispõe sobre o funcionamento de criadouros de
animais da fauna silvestre brasileira com fins econômicos e industriais., Diário Oficial da União, Brasília, DF,
17 nov. 1997. Disponível em: [http://www.ibama.gov.br/fauna/legislacao/port_118_97.pdf]. Acesso em: 28 fev.
2007.

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ciliares, os cerrados, manguezais e quaisquer formas de vegetação existentes.4
Ecossistema significa um complexo dinâmico de comunidades vegetais, animais e de
microorganismos e o seu meio inorgânico que interagem como uma unidade funcional.5

Biodiversidade é a variabilidade dos organismos vivos e dos sistemas ecológicos dos quais
eles são parte, ou seja, inclui todo o resultado da evolução da vida biológica no planeta, em
seus diferentes níveis, desde espécies, seus habitats e ecossistemas, os complexos
ecológicos dos quais fazem parte, até mesmo sua capacidade de reprodução.6

A diversidade da vida é essencial ao equilíbrio ambiental, e um ambiente ecologicamente


equilibrado propicia condições para que o meio ambiente permaneça saudável, pois capacita
os ecossistemas a melhor reagirem às alterações causadas por fatores naturais e sociais,
pois, ecologicamente, quanto maior a simplificação de um ecossistema, maior a sua
fragilidade.7

A diversidade oferece condições para que a própria humanidade adapte-se às mudanças em


seus meios físico e social e disponha de recursos que atendam a suas novas demandas.
Assim, uma alteração considerável na diversidade das espécies afeta a qualidade dos
ecossistemas de sobreviver como, por exemplo, absorver poluição, manter a fertilidade do
solo, purificar a água, ou seja, a sua capacidade de adaptação se torna mitigada, e isso
afeta diretamente na vida do ser humano.

Nesse panorama, destaca-se o ensinamento de Ignacy Sachs, enfatizando que o termo


“ambiente”, ou “meio ambiente” para fins de estudo, de conservação e de proteção, abrange
tanto o equilíbrio dos recursos naturais, quanto a conservação da qualidade do ambiente,
que constitui elemento essencial ao nível de vida e condiciona as disponibilidades e a
qualidade dos demais recursos naturais.8

Buscar a conservação ambiental, neste sentido, não é apenas garantir condições de


sobrevivência, mas propiciar um ambiente com qualidade, capacitado e fortalecido,
habilitado para suportar as alterações, tanto naturais, quanto causadas pelo homem no seu
sistema, além de possibilitar a continuidade de sua utilização como meio para o alcance do
desenvolvimento da sociedade.

Assim, tem-se que a preservação da biodiversidade existente é de extrema relevância para


manutenção do equilíbrio ecológico, por sua qualidade de capacitação do meio ambiente, e
conseqüentemente, preserva a biodiversidade, que por sua vez, mantém as condições de
sobrevivência e de adaptação dos ecossistemas existentes na Terra, e do ser humano.

Nesse sentido, possibilitar e implementar a utilização sustentável dos recursos naturais


permite a possibilidade de continuidade de vida no planeta, para gerações presentes e
futuras, tanto em aspectos de manter condições para a sobrevivência dos seres humanos,
quanto para o seu desenvolvimento individual, social, econômico e mesmo cultural.

2.2 Contextualização econômica: a utilização comercial da fauna e da flora silvestres

4 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005. p. 202.
5CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA. Disponível em:
[http://www.redenortebrasil.org.br/doc/cdb.doc]. Acesso em: 31 mar. 2007.
6 ALBAGLI, Sarita. Amazônia: fronteira geopolítica da biodiversidade. Parcerias Estratégicas, Brasília, n.12, p.
6-19, set. 2001. Disponível em: [http://ftp.unb.br/pub/unb/ipr/rel/parcerias/2001/3379.pdf]. Acesso em: 29 mar.
2007
7 _______. Amazônia: fronteira geopolítica da biodiversidade. Parcerias Estratégicas, Brasília, n.12, p. 6-19,
set. 2001. Disponível em: [http://ftp.unb.br/pub/unb/ipr/rel/parcerias/2001/3379.pdf]. Acesso em: 29 mar. 2007
8 SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São Paulo: Vértice, 1986. p. 12.

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O uso de animais e plantas silvestres para os mais variados fins ultrapassa séculos. A
preocupação com essa relação pode se orientar quando o homem começou utilizá-los como
mercadorias, para fins comerciais e econômicos. Após o descobrimento do Brasil, por
exemplo, mais ou menos 3.000 peles de onças e 600 papagaios eram desembarcadas na
Europa, para enfeitar vestidos e palácios. Quando esse comércio se mostrou bastante
lucrativo, no final do século XIX, se sistematizou, e então se iniciou o extermínio de várias
espécies brasileiras para atender ao mercado estrangeiro. 9

O comércio da flora e da fauna silvestre interfere na existência e função de várias espécies e


inclui centenas de espécimes e espécies de animais e vegetais, para diversos fins que vão
desde a obtenção doméstica de animais e plantas exóticas até a um vasto número de
produtos derivados, como couro e regalias, alimentação, instrumentos de madeira e
produtos medicinais.

Após a perda do habitat, a retirada de espécies para subsistência e comércio, é a segunda


maior ameaça à fauna e flora silvestres.10 Com base na taxa atual de destruição dos
ambientes naturais, estimou-se que cerca de 0,25% de todas as espécies de organismos do
planeta (ou seja, 5 a cada 200 espécies conhecidas) são extintas por ano.11 Destaca-se que
populações de várias espécies declinaram em uma média de 40%, entre 1970 e 200012, de
forma que o nível de exploração de alguns animais e plantas é tão alto, e o seu comércio,
junto com outros fatores como a destruição do habitat, são capazes de prejudicar em níveis
elevados na população da espécie, e mesmo levá-la a extinção.

Nessa vertente, a relevância da conservação da fauna e da flora se dá em razão de, para


muitas regiões, inclusive no Brasil, a utilização dos recursos naturais comporta a base para
sua economia e a garantia de emprego para a sua população. Atividades como a extração
de pérolas, de madeira, graxa de borracha, exportação de animais para estimação,
pesquisas medicinais e alimentação, e seus produtos, como penas e peles, para a moda.

O desafio para a continuidade do comércio de vida selvagem é gerar no seu complexo social
e político, a conscientização de como e porquê se deve preservar e exercer a atividade de
forma sustentável. É dizer que a atividade necessita de regulamentação, não apenas para
proteger os recursos da fauna e da flora, mas também para conservá-los, e permitir a
continuidade de sua exploração econômica.

A utilização da fauna e da flora propicia uma melhor qualidade de vida, não somente por
fazerem parte da manutenção do equilíbrio ecológico conforme já ressaltado, mas também
por proporcionar avanços medicinais, pelo uso e estudo de plantas medicinais e mesmo de
animais silvestres, além de criação de produtos derivados, como poções, cremes e
remédios.

Um exemplo da contribuição da atividade à melhoria da qualidade de vida em seus diversos


aspectos, registra-se a utilização da quinina, que se extrai da casca da quina, árvore
encontrada principalmente na América Central, que consiste em um dos principais antídotos

9 SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. Direito ambiental internacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex , 2002.
p. 113.
10 REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES. 1º Relatório Nacional sobre o
Tráfico de Animais Silvestres, 2001. p. 1-108. Disponível em:
[http://www.renctas.org.br/files/REL_RENCTAS_pt_final.pdf]. Acesso em: 27 mar. 2007.
11 INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (Brasil).
Orientações para a criação de novas unidades de conservação: projeto unidades de conservação.
Brasília, abril de 1999. p. 1-45. Disponível em:
[http://www.ibama.gov.br/siucweb/guiadechefe/guia/anexos/anexo8.pdf]. Acesso em: 28 ago. 2007.
12 _______. What is wildlife trade? When is wildlife trade a problem? Disponível em:
[http://www.traffic.org/wildlife/wild6.htm]. Acesso em: 28 fev. 2007.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.134-150, ago./set., 2007 137


para malária conhecido a séculos.13 Assim, tem-se que propiciar o uso sustentável dos
recursos da fauna e da flora é garantir tanto a conservação da biodiversidade e condições
para o equilíbrio ecológico, quanto a possibilidade de continuidade de sua exploração
econômica e o aumento da qualidade de vida da humanidade.

Verificar a regulamentação de uma atividade cuja base é um recurso finito na natureza


implica em conscientizar para a relevância da conservação para a continuidade da atividade,
e para a melhoria da qualidade de vida, objetos do desenvolvimento. Comporta entender que
o desenvolvimento sustentável não consiste tão somente na correspondência entre
desenvolvimento e utilização dos recursos naturais, mas fazê-la de tal forma que se propicie
melhoria na qualidade de vida em todos os seus aspectos.

Amartya Sen descreve o desenvolvimento como um processo de expansão das liberdades


reais que as pessoas desfrutam. Em uma visão antropocêntrica, aponta que a avaliação do
progresso tem de ser feita verificando-se se houve aumento das liberdades das pessoas, e
que a própria realização do desenvolvimento depende inteiramente da livre condição de
agente das pessoas.14

Liberdade, na vertente de Amartya Sen, “diz respeito aos processos de tomada de decisão e
às oportunidades de obter resultados considerados valiosos”.15 Nesse sentido, é garantir
também os direitos humanos, constitucionalmente garantidos, direito à saúde, educação, à
um ambiente ecologicamente equilibrado, oportunidades de crescimento no mercado, na
sociedade, e individualmente também, o que acaba por acarretar em garantir os alicerces da
dignidade da pessoa humana e da liberdade de escolha propriamente dita.

Ainda no ensinamento de Sen, o desenvolvimento requer a renovação das principais fontes


de privação da liberdade, que são a pobreza, a tirania, a carência de oportunidades
econômicas, dentre outros16, de forma que, se a sustentabilidade da utilização de um
recurso natural de determinada região for efetiva, a atividade pode continuar sem que seu
produto base vá se extinguir, e novas oportunidades para aquela população surgirão.

Desenvolvimento abrange tanto o crescimento econômico de um país, quanto, em uma


lógica mais política e social, a expansão de liberdades, como o acesso à saúde, educação,
trabalho e outras disposições enquanto cidadão na sociedade.17 É enfatizar a relevância da
proteção das liberdades humanas contra qualquer tipo de privação e restrição. Nesse
panorama, o desenvolvimento compreende um, processo de expansão das liberdades
humanas, então considerado como o fim primordial e o principal meio para o seu alcance.18

Nessa vertente, importa para a implementação do desenvolvimento sustentável toda uma


adaptação da atividade ao contexto do país, ou países nos quais se insere, ou atinge
indiretamente. Consiste, pois, no próprio aproveitamento das qualidades e desenvolvimento
das fraquezas locais, resultando na expansão econômica e política local, o que contribui, e
inclusive integra, o desenvolvimento em termos nacionais, bem como internacional.

É dizer que o esforço para o desenvolvimento define um modo sustentável na sua


realização, que aposta na capacidade natural da região, valorizando os seus recursos
específicos, para a satisfação das necessidades fundamentais da população em matéria de

13 THE WILDLIFE TRADE MONITORING NETWORK. Traffic South América. Disponível em:
[http://www.traffic.org/network/network8.htm]. Acesso em: 28 fev. 2007.
14 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p. 17-18.
15 Ibid. p. 329.
16 Ibid. p. 18.
17 VARELLA, Marcelo Dias. Direito internacional econômico ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 43.
18 SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 52.

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alimentação, habitação, saúde e educação, emprego, segurança, qualidade nas relações
humanas, pois, sendo o desenvolvimento voltado para a realização do homem, compreende
parte de seu conceito, um resultado satisfatório.19

Se tomar como foco a utilização da fauna e da flora silvestres, demonstra-se, nesse sentido,
que a conservação destes recursos como parte das políticas organizadoras da sociedade, e
como meta de atuação no mercado consiste justamente na ampliação das liberdades do
homem, na medida em que, além de conservar o produto base de uma atividade, aumenta a
qualidade ambiental e as condições de vida, e oportunidades de progresso. É a própria
complementação entre direito ao desenvolvimento e direito a um ambiente ecologicamente
equilibrado.

Desta feita, tem-se que a conservação dos recursos ambientais emergiu diante das graves
conseqüências da intervenção do homem no meio ambiente, e, atualmente, integra a própria
conceituação do desenvolvimento. E o tráfico ilegal da fauna e flora silvestres, por sua falta
de critérios que acarretam em uma devastação contínua, prejudica o equilíbrio ecológico,
privando as liberdades humanas, tanto no aspecto ecológico, restringindo o direito a um
ambiente ecologicamente equilibrado, a gerações presentes e futuras, quanto à restrição de
oportunidades e de uma melhor qualidade de vida.

Nesse sentido, por seu cunho não sustentável, o tráfico ilegal importa em uma atividade que
impede o desenvolvimento, sob todos os seus aspectos, e deve ser barrado, por meio de
políticas públicas eficientes, mas principalmente, pela conscientização da sociedade como
um todo, por ser o alvo principal, e assim, o mais importante fiscalizador da atuação regular
da atividade.

3 A regulamentação do comércio da fauna e flora silvestres no Brasil

Em termos mundiais, as primeiras reações contra a extinção de certas espécies se registram


na segunda metade do século XIX, motivadas por considerações comerciais, visto que
punham em risco os interesses daqueles que dela dependiam. Foram verificadas,
primeiramente, na área da pesca, na ameaça de extinção das baleias, cuja gordura, ossos e
carne eram de muito valor comercial.20

Outra demanda, ainda que em menor escala, consistiu na proteção do meio ambiente sem
necessariamente estar vinculado a um fim econômico; nesse sentido, a campanha do World
Wildlife Fund – WWF em defesa do urso panda, foi uma das primeiras a alertar para
catástrofe ecológica da extinção de animais caçados com fins de lucro ou por esporte. A
panda chegou ao número de 100 no mundo inteiro, hoje somam mais de mil.21

Contudo, tendo em vista a função política e econômica das atividades que utilizam os
recursos naturais, responsáveis diretamente pela realização da extensão do
desenvolvimento, não há que se vê com um sentido negativo os tratados que visam
conservar os recursos para a garantia de um fim econômico; além disso, estarão por fim,
protegendo a continuidade do recurso propriamente dito. Se assim não fosse, muitos
recursos já estariam escassos, como muitos já foram diante da contínua exploração
humana.

No que tange ao Direito Internacional, destaca-se a Convenção sobre o Comércio


Internacional das Espécies de Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção, conhecida
como CITES, que é um tratado que visa à proteção e conservação da fauna e da flora

19 SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São Paulo: Vértice, 1986. p. 15-16.
20 SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. Direito ambiental internacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex, 2002.
p. 114.
21 Ibid. p. 114.

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silvestres, por meio do monitoramento da atividade comercial de determinadas espécies, de
forma a garantir que a atividade não ameace a sua sobrevivência ou a sua função ecológica.

O campo de atuação da Convenção mencionada abrange tão somente aquelas espécies


que são ou podem vir a serem demandadas pelo comércio internacional. Nos espécimes
protegidos pela CITES, mais de 95% não estão em risco de extinção, podendo ser
comercializados internacionalmente, submetidos a uma regulamentação e monitoramento,
de modo que, o que a Convenção visa é evitar o uso incompatível do recurso com a espécie
respectiva.22

Instrumento do Direito Internacional Ambiental, a CITES comporta uma série de disposições


que exigem a colaboração entre os Estados para sua consolidação, e obriga tanto os países
de importação, exportação, como os de reexportação, ou seja, abrange todos os sujeitos
envolvidos no processo da comercialização; desde o produtor, ao intermediário até o
receptor, criando um sistema de cooperação internacional para o seu funcionamento.

A comercialização das espécies descritas na Convenção somente é possível com a devida


regulamentação, autorizada após toda uma pesquisa de impacto na população da espécie,
evitando que, pela comercialização haja a afetação no equilíbrio ecológico, seja pelo risco de
extinção, ou pela restrição à função ecológica das espécies envolvidas. As definições que se
têm na Convenção, de extração não prejudicial das espécies e de avaliação do impacto sob
as populações, são fundamentais para o uso sustentável do recurso.23

Assim, se permite identificar a CITES como instrumento do desenvolvimento sustentável da


atividade de comércio internacional que envolve espécies da fauna e da flora silvestres, de
forma que, monitora e implementa regras que visam conservar as espécies envolvidas, suas
funções ecológicas, e ao mesmo tempo, busca expandir a atividade, permitindo o uso
sustentável dos recursos.

Com isso, as populações têm um instrumento, não somente que orienta como deve ser a
atividade, mas que também a promove, permitindo o desenvolvimento social e econômico. É
a própria implementação do desenvolvimento sustentável, pois compatibilizar meio ambiente
e desenvolvimento, implica considerar os problemas ambientais como parte do processo de
planejamento, de modo que a política ambiental se construa não como um obstáculo ao
desenvolvimento, mas sim um de seus instrumentos.24

Atualmente, a CITES protege mais de 30.000 espécies e espécimes.25 Registra-se que o


comércio internacional monitorado pela Convenção nos anos de 1995 a 1999 abrangeu
cerca de 1.5 milhões de pássaros vivos, 640.000 répteis vivos, 300.000 peles de crocodilo,
1.600.000 peles de lagartos, 1.100.000 peles de cobras, quase 300 toneladas de caviar,
mais de 1.000.000 pedaços de coral.26

A Convenção merece destaque, tendo em vista que monitora o comércio daquelas espécies
mais visadas no comércio, e, portanto, a atividade representa um risco à manutenção da
espécie envolvida, de sua função ecológica e da biodiversidade como um todo. Desse modo,

22 TEN popular misconceptions about CITES. CITES World: Official Newsletter of the Parties. n. 17, p. 14-15, jul.
2006. Disponível em: [http://www.cites.org/eng/news/world/17.pdf]. Acesso em: 28 fev. 2007.
23 VERCILLO, Ugo Eichler. A efetividade da CITES. Entrevista concedida à Gabriela Garcia Batista Lima,
conforme Parecer PIC 94/06, do Comitê de Ética em Pesquisa - CEP/ UniCEUB, haja vista Memo 189/06 de
11 de dezembro de 2006. Brasília, 26 jan. 2007.
24 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005. p. 52-53.
25 CONVENTION ON INTERNATIONAL TRADE OF ENDANGERED SPECIES. What is CITES? Disponível em:
[http://www.cites.org/eng/disc/what.shtml]. Acesso em: 15 nov. 2006.
26 THE WILDLIFE TRADE MONITORING NETWORK. What is the scale of wildlife trade? Disponível em:
[http://www.traffic.org/wildlife/wild2.htm]. Acesso em: 21 fev. 2007.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.134-150, ago./set., 2007 140


para que a proteção ambiental interna seja efetiva e compatível com o mercado
internacional, sua estrutura deve estar de acordo com a CITES.

O Brasil aderiu a CITES em 1973, e foi formalmente inserida na legislação interna quando da
sua ratificação, em 24 de junho de 1975, pelo Decreto Legislativo nº 54, promulgado pelo
Decreto nº. 76.623 de 1975, entrando em vigor 90 dias após o ato. A Convenção entrou em
vigor para o Brasil, em 04 de novembro de 1975, e posteriormente, foi alterada pelo Decreto
Legislativo nº. 35, em 1985, e tal alteração promulgada pelo Decreto nº. 92.446 de 07 de
março de 1986.

O órgão Administrativo e Científico, no contexto brasileiro, designado para monitorar o


comércio de fauna e flora silvestres e a CITES, é o IBAMA, que então atua pelas suas
Diretorias, Coordenações e Unidades Especializadas, papel dividido atualmente, entre a
Diretoria de Florestas e Diretoria de Fauna e Recursos Pesqueiros para espécies da flora e
fauna - DIPAF, respectivamente.27 A regulamentação do comércio da fauna e da flora é
limitada à extensão técnica e de localização das Unidades Especializadas que, por vezes, ou
não possuem todo o conhecimento científico, ou não chegam ao local pertinente para a
investigação.

Para esse comércio no contexto brasileiro, em suma, segue da necessidade da


regulamentação e incentivo para a implementação de criadouros especializados no que se
refere a fauna, e empresas regularizadas para a flora, haja vista restrições legais internas.
Ademais, são instrumentos, as regulamentações sobre o modo de proceder da
comercialização, educação ambiental, fiscalização e punição, além da regulamentação
quanto ao destino dos recursos apreendidos.

Destaca-se assim, a Portaria nº 102/98, que regulamenta os criadouros de animais da fauna


silvestre exótica com fins econômicos e industriais; a Portaria de nº 118/97, que regulamenta
os criadouros de animais da fauna silvestre brasileira, seus produtos e subprodutos, voltados
para fins comerciais e industriais. A comercialização é regulamentada pela Portaria nº
117/97, que dispõe sobre a comercialização de animais vivos abatidos, partes e produtos da
fauna brasileira provenientes de criadouros, com finalidade econômica e industrial e jardins
zoológicos registrados junto ao IBAMA, e pela Portaria nº 93/98, que dispõe sobre o ato de
importação e exportação de espécimes vivos, produtos e subprodutos da fauna silvestre e
exótica brasileiras.

Tem-se ainda, a Instrução Normativa nº. 02/01 de 2001, que dispõe sobre a obrigatoriedade
na identificação individual de espécimes da fauna para fins de controle de criação e
comércio, e a Portaria nº. 113/97. Para os recursos pesqueiros, destacam-se a Instrução
Normativa nº. 56/2004, que estabelece normas para utilizar peixes ornamentais marinhos, e
Instrução Normativa nº. 13/2005, que estabelece normas para a utilização de peixes
ornamentais de águas continentais. Apontam que, ao se tratar de espécies CITES, deve
corroborar com toda regulamentação da Convenção.

Para a flora, existem a Portaria nº. 112/1985, que regulamenta a coleta, transporte,
comercialização e industrialização de plantas ornamentais, medicinais, aromáticas ou
tóxicas, a Portaria nº. 83/1996, que regulamenta a exportação de produtos e subprodutos
oriundos da flora brasileira, e a Instrução Normativa nº. 03/ 2004.

Para o infrator, constitui crime matar, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre
sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em
desacordo com a obtida, conforme a Lei nº 9.605/1998. A pena deverá corroborar também
com a Lei nº 6.938/1981, sendo prevista também, sanção administrativa, conforme Decreto

27 INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (Brasil).


Plano de Ação GT-CITES. Brasília, 2005. p. 01-17.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.134-150, ago./set., 2007 141


nº 3.179/1999. Aqui, se identifica a relevância da atuação do judiciário para a
conscientização da população, pois, no momento da formulação da punição, possui a
oportunidade de influenciar no comportamento social destes, podendo propiciar ao infrator, o
máximo de esclarecimento da importância da não repetição daquele crime.

4 O tráfico ilegal da fauna e da flora silvestres no Brasil

A utilização de recursos silvestres ainda é objeto do tráfico ilegal, que ocupa a terceira maior
atividade ilegal no campo mundial, somente perdendo para o tráfico de drogas e o de armas,
movimentando de 10 a 20 milhões de dólares por ano, sendo que o Brasil participa com
cerca de 5% a 15% do total mundial.28 A existência do tráfico ilegal da fauna e da flora
silvestre ainda é umas principais causas à perda da biodiversidade.

Segundo o relatório, publicado em 2001 pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de


Animais Silvestres - RENCTAS, apesar de regulamentado o comércio, o tráfico ilegal ainda
retrata um dos principais problemas da atualidade. De modo que, ainda hoje é fácil de se
encontrar animais, suas partes e produtos sendo comercializados sem qualquer legalidade
ou cuidado com a espécie. 29

No Brasil, a questão do tráfico ilegal é preocupante, haja vista ser um dos países mais
requisitados quando da procura por fauna e flora silvestres. Além disso, importante ressaltar
que, a atitude da sociedade perante toda essa irregularidade, é a de impunidade, de forma
que é comum a permanência de feiras, lojas irregulares e criadouros clandestinos, que tão
somente encoraja o comércio ilegal.

A legislação brasileira proíbe retirar um animal diretamente de seu habitat e comercializar.


Assim, somente pode fazer parte do comércio quando vindo de cativeiro legalizado; contudo,
em um país grande como é o Brasil, ainda não há um grau expressivo de incentivos à
formalização de cativeiros em comparação à grande busca que se tem pela fauna exótica
silvestre. 30

Ademais, a característica de o mercado não estar plenamente desenvolvido abrange desde


a falta de incentivos suficientes por parte do Estado, para a criação de criadouros,
conscientização da gravidade que isso opera, e para a impunidade que se tem diante de tal
atividade. E isso somente agrava as condições de combate ao tráfico ilegal de fauna e flora
silvestre.

Dentre os principais tipos de tráfico estão a coleta de animais para colecionadores


particulares e zoológicos, este talvez seja o mais cruel, pois prioriza as espécies mais
ameaçadas; animais para fins científicos, que servem como base para pesquisa e produção
de medicamentos; animais para pet shop, e produtos de fauna, como couro, peles, penas,
garras, e etc, que são muito utilizados para fabricar adornos e artesanatos, cujas espécies
envolvidas variam de acordo com os costumes e a moda.31

Uma das piores realidades que se enfrenta são as condições de tratamento dos animais.
Apesar de existirem técnicas de manejo e transporte adequadas às espécies, os animais são

28 REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES. 1º Relatório Nacional sobre o


Tráfico de Animais Silvestres, 2001, p. 1-108. Disponível em:
[http://www.renctas.org.br/files/REL_RENCTAS_pt_final.pdf]. Acesso em: 27 mar. 2007.
29 Ibid. Acesso em: 27 mar. 2007.
30 VERCILLO, Ugo Eichler. A efetividade da CITES. Entrevista concedida à Gabriela Garcia Batista Lima,
conforme Parecer PIC 94/06, do Comitê de Ética em Pesquisa - CEP/ UniCEUB, haja vista Memo 189/06 de
11 de dezembro de 2006. Brasília, 26 jan. 2007.
31 REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES. 1º Relatório Nacional sobre o
Tráfico de Animais Silvestres, 2001, p. 1-108. Disponível em:
[http://www.renctas.org.br/files/REL_RENCTAS_pt_final.pdf]. Acesso em: 27 mar. 2007.

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confinados em pouco espaço, sem água e alimento, onde se estressam, se mutilam e se
matam. Além da ingestão de bebidas alcoólicas, muitas vezes os animais são submetidos a
práticas cruéis que visam a amortecer suas reações e fazê-los parecer mais mansos ao
comprador e chamar menos atenção da fiscalização.32 Estima-se que dentre cada dez
espécimes traficados, nove morrem antes de chegar ao seu destino.33

As aves são um dos animais mais encontrados no comércio ilegal, tanto o animal vivo, como
mortos, para a retirada de suas penas, couros, ovos e outras partes. Outra grande demanda
é a pele de répteis como crocodilos, cobras e lagartos, que são muito utilizadas para
diversos artigos: sapatos, bolsas, roupas, malas, pulseiras de relógio, cintos e outros, sem
falar da procura para animais de estimação exótica.34

Os peixes de aquário também são muito populares, inclusive nos Estados Unidos. Os
americanos mantêm cerca de 340 a 500 milhões de peixes, cujo comércio movimenta pelo
menos US$ 215 milhões por ano. É estimado que o mercado mundial para peixes de aquário
movimente US$ 600 milhões; e ainda vem crescendo cerca de 10% a 15% anualmente.35

No âmbito da flora, o foco do tráfico ilegal está principalmente no mercado de madeira,


realça a The Wildlife Trade Monitoring Network - TRAFFIC, organismo junto ao WWF, e ao
The World Conservation Union - IUCN, criada principalmente para assistir na implementação
da CITES, no Traffic Bulletin, boletim publicado em outubro de 2005, que a atividade legal de
comercialização da madeira perde milhões de dólares em razão do contínuo e acentuado
tráfico ilegal de madeiras.36

A título ilustrativo, na fronteira com o Peru, a fiscalização brasileira combateu a extração


ilegal de mogno, espécie de madeira arrolada no anexo II da CITES, e de outras madeiras
nobres; entre a Bolívia e o Mato Grosso do Sul, as equipes embargaram empresas
envolvidas no contrabando de aroeira, árvore de corte proibido no Brasil, e na faixa de
fronteira com o Mato Grosso, as operações se concentraram na atuação de empresas por
extração ilegal de minérios e madeira. E juntamente com os crimes ambientais, destaca-se,
também se confronta com os traficantes de drogas e armas e até mesmo de agrotóxicos e
pneus, principalmente nas fronteiras com o Paraguai, Argentina e Uruguai.37

O comércio ilegal está associado a problemas culturais, de educação, pobreza, falta de


opções econômicas, pelo desejo de lucro fácil e rápido, e por status e satisfação pessoal de
manter animais silvestres como de estimação. Envolve várias atividades fraudulentas, de
forma que um tipo de fraude é detectado, outro já está emergindo, podendo, contudo,
diferenciar duas principais categorias: o contrabando e o uso de documentos legais para
cobrir coisas ilegais ou de documentos falsos. 38

No tráfico ilegal os contrabandistas agem em áreas de difícil patrulhamento, a exemplo de


fronteiras em áreas montanhosas ou em florestas densas. O transporte se dá desde carros,
roupas, malas, até containers, que são muito utilizados por não serem freqüentemente
checados, devido ao grande movimento nos principais portos do país. O uso de documentos

32 Ibid. Acesso em: 27 mar. 2007.


33 BECHARA, Erika. A proteção da fauna sob a ótica constitucional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p.
62.
34 REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES. op. cit. Acesso em: 27 mar.
2007.
35 Ibid. Acesso em: 27 mar. 2007.
36 THE WILDLIFE TRADE MONITORING NETWORK. Traffic Bulletin, v. 20, n. 3, p. 89-128, out. 2005..
Disponível em: [http://www.traffic.org/content/393.pdf]. Acesso em: 25 set. 2006.
37 MACEDO, Kézia. A última fronteira do crime ambiental. Revista Ibama, Brasília, ano 2, n. 2, p.17.
38 REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES. 1º Relatório Nacional sobre o
Tráfico de Animais Silvestres, 2001. p. 1-108. Disponível em:
[http://www.renctas.org.br/files/REL_RENCTAS_pt_final.pdf]. Acesso em: 27 mar. 2007.

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legais para encobrir produtos ilegais também é freqüente, assim como a transformação dos
animais para parecerem outros, que não estariam arrolados na CITES, por exemplo.39

A dificuldade que se tem em conter o tráfico ilegal de recursos silvestres é alarmante. Entre
os principais motivos do aumento dessa atividade ilegal se materializam também no fato de
que o tráfico de drogas é cada vez mais arriscado, e o tráfico de fauna silvestre possui
menor risco e quase igual lucro para o traficante, cuja atividade é facilitada também, diante
da visão benigna do comércio ilegal da fauna e flora, enquanto crime, por parte da polícia,
alfândegas e autoridades judiciais.40

Outro óbice consiste na dificuldade de uma correta identificação da fauna ou flora objeto do
comércio internacional, de difícil ou quase impossível identificação para um funcionário
aduaneiro, de forma que, para o traficante é fácil exportar uma arara ou um papagaio
ameaçado de extinção com uma denominação de espécie cuja exportação é permitida.41

O tráfico ilegal reflete negativamente em termos sanitários, econômicos e ecológicos.


Sanitários por que quando os animais são comercializados ilegalmente, não passam por
qualquer controle sanitário, podendo transmitir doenças graves que vão desde a febre
amarela, raiva até mesmo tuberculose e doenças desconhecidas. Na década de 70, por
exemplo, um surto da bactéria Salmonella ocorreu nos EUA e foi relacionado com a
manutenção de tartarugas como animais de estimação.42

Há conseqüências econômicas também, pois a atividade legalizada existente é prejudicada,


até mesmo a conservação do recurso é afetada negativamente. O comércio ilegal cujos
métodos não possuem quaisquer critérios regulamentados aptos para a preservação do
animal, além da crueldade com que são tratados, contribui para a ameaça a sua extinção,
pois a intensa pressão que se coloca nos animais é difícil de se suportar, pois, não se
respeita sequer as suas condições de vida e de reprodução.

Entendida a consciência de que são a fauna e a flora recursos indispensáveis e


insubstituíveis para a composição equilibrada do meio ambiente, e a sua função em termos
econômicos e sociais de desenvolvimento, buscando regulamentar o comércio internacional
da fauna e da flora silvestres diante da inevitável e pertinente demanda do mercado, a
efetividade da CITES corresponde a um instrumento de combate ao tráfico ilegal.

A coibição do tráfico ilegal pela implementação da CITES se dá diante do pretexto de que a


Convenção permite e implementa uma opção de continuidade da atividade, pelo uso
sustentável do recurso. Regula e monitora o comércio internacional das espécies mais
almejadas, buscando conservar as condições de sobrevivência e funcionalidade, por meio
de estudos do impacto ambiental.

Excelente exemplo se tem com a situação das orquídeas hoje: as orquídeas são plantas
muito visadas pelo mundo todo, de forma que todas as espécies que existem no Brasil estão
na CITES, e a legislação brasileira só permite a comercialização de orquídeas, quando
forem reproduzidas artificialmente, ou seja, de laboratório, e por causa da legislação interna,

39 Ibid. Acesso em: 27 mar. 2007.


40 REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES. 1º Relatório Nacional sobre o
Tráfico de Animais Silvestres, 2001. p. 1-108. Disponível em:
[http://www.renctas.org.br/files/REL_RENCTAS_pt_final.pdf]. Acesso em: 27 mar. 2007.
41 SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. Direito ambiental internacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex , 2002.
p. 114.
42 REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES, op. cit. Acesso em: 27 mar.
2007.

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por que a CITES permite o comércio de plantas silvestre, não entrou nenhuma em
extinção.43

O resultado da implementação da regulamentação do comércio da fauna e da flora


corrobora, portanto, dois aspectos principais que, inclusive, se complementam: a
preservação das espécies e de sua função ecológica, permitindo a continuidade da
capacitação dos ecossistemas e evitando, com isso o enfraquecimento desses, bem como o
conseqüente desequilíbrio ecológico; e a continuidade da atividade, pela conservação de
seu recurso base, contribuindo para o desenvolvimento sustentável, em seus aspectos
sociais e econômicos.

5 Medidas tomadas pelo Brasil para tornar a proteção mais efetiva: avanços e limites

Compreendida que, para o exercício da atividade de modo legalizado no Brasil, é preciso a


regulamentação dos criadouros e das empresas especializadas, assim como o transporte e
as condições de compra e venda devem ser compatíveis com a manutenção da saúde do
animal, para o caso da fauna, são nesses campos que se verifica quais as principais ações
brasileiras para combater o tráfico ilegal.

No que se refere aos criadouros, para aquelas espécies não descritas na CITES, ou seja,
não muito visadas internacionalmente; a lista dos criadouros comerciais devidamente
registrados junto ao IBAMA consta um número bastante expressivo, mais de 120 por todo o
Brasil44. No entanto, para o mercado de importação e de exportação, campo de atuação da
CITES, apesar da grande demanda, o número de exportadores e importadores registrados é
muito pequeno.

Constam na Lista de Exportadores registrados no IBAMA, cerca de 50 criadouros ativos45,


até 2003, quando foi feita sua última atualização, sendo que apenas 15 possuem os dados
plenamente definidos. Constam na Lista de Importadores46, também atualizada em 2003,
cerca de 90 registros ativos junto ao IBAMA, sendo que desses, cerca de 50, somente,
possuem os dados completos.

Além de uma maior fiscalização da regulamentação da atividade, é necessário um maior


incentivo para tornar o mercado mais expressivo no território brasileiro, com a presença de
grandes importadores e exportadores especializados nas espécies e espécimes CITES.
Pois, por serem as mais visadas internacionalmente, são, necessariamente o maior alvo do
tráfico ilegal, se a atividade legalizada é, de alguma forma, dificultada, como por exemplo, a
falta de incentivo para o mercado.

Nesse aspecto, além da falta de incentivo, por parte do governo para a criação de criadouros
legalizados, falta também uma atuação mais efetiva da educação ambiental, propiciando
informações suficientes para modificar todo um comportamento social, de modo que as
próprias passem a exigir a legalidade na atividade, conscientizadas da importância da
conservação da biodiversidade.

43 MELLO, Claudia Maria Correia de. A efetividade da CITES. Entrevista concedida à Gabriela Garcia Batista
Lima, conforme Parecer PIC 94/06, do Comitê de Ética em Pesquisa - CEP/ UniCEUB, haja vista Memo
189/06 de 11 de dezembro de 2006. Brasília, 26 jan. 2007.
44 INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (Brasil). Lista dos
criadouros para fins comerciais. Disponível em: [http://www.ibama.gov.br/fauna/criadouros/comerciais.pdf].
Acesso em: 04 mar. 2007.
45 Id. Lista de exportadores ativos junto ao IBAMA. Disponível em:
[http://www.ibama.gov.br/fauna/criadouros/exportadores.pdf ]. Acesso em: 04 mar. 2007.
46 Id. Lista de importadores ativos junto ao IBAMA. Disponível em:
[http://www.ibama.gov.br/fauna/criadouros/importadores.pdf]. Acesso em: 04 mar. 2007.

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A falta de conscientização se verifica, principalmente pela facilidade que se tem de encontrar
animais, suas partes e produtos sendo comercializados sem qualquer legalidade ou cuidado
com a espécie, a exemplo de Feiras como a de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, onde já
se registrou vários casos de comércio ilegal de fauna e flora. 47

Além disso, todo ano o IBAMA e polícias ambientais apreendem em torno de 70 mil animais
silvestres em feiras, residências e estradas, sendo que a maioria são aves. 48 No Brasil, a
questão do tráfico ilegal é preocupante, haja vista ser um dos países mais requisitados
quando da procura por fauna e flora silvestres.

Na esfera da educação ambiental, segundo o realizado pelo IBAMA, em 2007, com o


Programa Nacional de Educação Ambiental – PRONEA iniciado em 1994, houve inúmeras
ações educativas realizadas com grupos sociais relacionados atividades de gestão
ambiental, e desde então, se busca criar condições para a participação individual e coletiva
nos processos decisórios sobre o acesso e uso dos recursos ambientais no Brasil.49 Em que
pese, a atitude é positiva e necessária em termos de buscar uma maior efetividade, contudo,
se percebe ainda insuficiente, dado os aspectos até então verificados.

No que se refere à comercialização, buscou-se fortalecer o sistema de registro das espécies


e espécimes envolvidos, que é a própria garantia da legalidade do respectivo recurso. Nesse
sentido, grande avanço se teve na coibição do tráfico ilegal, na alteração do sistema de
registro de transporte de Produtos Florestais, na qual a Autorização de Transporte de
Produtos Florestais –ATPF foi substituída pelo Documento de Origem Florestal -DOF, que
funciona integralmente eletrônico. Foi um golpe no crime organizado, que se especializara
em falsificar e comprar as guias de papel do antigo sistema para o comércio ilegal de
madeiras e de carvão vegetal, principalmente. 50

Assim que o DOF entrou em operação, o IBAMA detectou tentativas de fraude, como por
exemplo, de empresas que tentaram falsificar declarações de estoque de madeira em
quantidades superiores às verificadas no pátio das madeireiras, e a descoberta do delito se
deu cinco dias após a vigência do DOF, comprovando a eficiência do sistema.51

O IBAMA, em 2004, criou o Grupo de Trabalho CITES – GT-CITES, formalmente constituído


pela Portaria nº 22 de abril de 2005, com o objetivo de fortalecer e adaptar toda a
composição interna brasileira, desde uma maior integração interna, capacitação dos
agentes, até a viabilização da descentralização do sistema de licenciamento da CITES para
outras unidades do IBAMA, então estrategicamente montadas nos lugares com maior
demanda pela fauna e flora pertinentes, pois atualmente, a emissão de licenças ocorre
somente em Brasília, o que enseja morosidade ao procedimento.52

Com o GT-CITES, o IBAMA identificou as principais falhas no modelo de aplicação da


CITES, e está, gradualmente modificando o modo pelos quais os métodos vêem sendo
aplicados. Verifica-se, nesse sentido, a própria consolidação da busca pela real

47 REDE NACIONAL DE COMBATE AO TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES. 1º Relatório Nacional sobre o


Tráfico de Animais Silvestres, 2001. p. 1-108. Disponível em:
[http://www.renctas.org.br/files/REL_RENCTAS_pt_final.pdf]. Acesso em: 27 mar. 2007.
48 MOTTA, Luiz da. CETAS: expansão da rede de triagem de animais silvestres. Revista Ibama, Brasília, ano 2,
n. 2. p. 39.
49 INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (Brasil). Relatório
de Atividades da Coordenação Geral de Educação Ambiental: Cgeam/Disam: 2003/2006. Disponível em:
[http://www.ibama.gov.br/cgeam/download.php?id_download=7]. Acesso em: 21 maio 2007.
50 AMADOR, Rubens; SATO, Sandra; MOTTA, Luiz da. DOF: O big brother do transporte florestal. Revista
Ibama, Brasília, ano 2, n. 2, p. 28-31.
51 Ibid. p. 28-31.
52 INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS (Brasil).
Plano de Ação GT-CITES. Brasília, 2005. p.10.

Rev. Jur., Brasília, v. 9, n. 86, p.134-150, ago./set., 2007 146


implementação do desenvolvimento sustentável no âmbito do comércio da fauna e da flora
silvestres.

No que tange à fiscalização importante ressaltar a intensificação das ações da polícia


federal, com a colaboração do Ministério do Meio Ambiente, IBAMA e entidades dos países
das principais fronteiras, na coibição do tráfico ilegal. No contexto da flora, 292 toras de
cedro e mogno, além de 957 pranchas dessas espécies, foram apreendidos em 2006 só
nessas operações. Nesse aspecto, as fronteiras são os principais focos para o tráfico ilegal.
53

Outro elemento é a expansão da quantidade de Centros de Triagens de Animais silvestres,


que são estadia dos animais vivos apreendidos. Atualmente, são 42 CETAS espalhados
pelas cinco regiões brasileiras, e o IBAMA vem articulando um trabalho, visando triplicar o
seu número, com o Projeto CETAS Brasil, que pretende construir 117 novas unidades,
estrategicamente distribuídas por onde há o maior número de apreensões. 54

Na esfera da punição dos infratores, há de se ressaltar que as disposições existentes, não


parecem estar adequadas com a gravidade de sua infração, pois há uma interferência
agressiva nas condições funcionais do ambiente, enquanto mantedor da biodiversidade e do
equilíbrio ecológico. Isso implica, necessariamente, na não efetividade da CITES, em termos
de se evitar que a conduta venha a ocorrer novamente.

De acordo com a Lei nº. 9.605/1998, a pena para os crimes contra a fauna e contra a flora,
variam conforme o potencial ofensivo da ação danosa. Por exemplo, para a fauna, matar,
apanhar, vender, exportar ou adquirir de forma ilegal, a pena é de detenção de seis meses a
um ano e multa; aumentada de metade, quando tratar de espécie ameaçada de extinção,
conforme §4º do art. 29. Exportar peles e couros de anfíbios e répteis em bruto sem
autorização competente, incorre em reclusão de um a três anos e multa, segundo art. 30.

Segundo o art. 32, abuso e maus tratos aos animais, a pena é de detenção de três meses a
um ano e multa, sendo aumentada de um sexto a um terço se ocorre a morte. Cumpre
perceber que a prática de maus tratos aos animais é uma das principais colaboradoras para
a extinção das espécies, e conseqüente afetação na biodiversidade mundial e, contudo, a
pena consiste somente na detenção de três meses a um ano, não demonstrando o
reconhecimento esperado pelo Estado, da tamanha gravidade da conduta.

No âmbito da flora não parece ser diferente, por exemplo, descreve o art. 39 que danificar
floresta de preservação permanente, a pena é de detenção de um a três anos ou multa, ou
ambas as penas cumulativamente, causar dano às Unidades de Conservação concorre para
reclusão de um a cinco anos, e se afetar espécies ameaçadas de extinção, se considera
circunstância agravante; e se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade.

Por vezes, a legislação penal ambiental parece suficiente, por vezes não, e na maioria dos
casos, a aplicação da pena segue a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Lei nº.
9.099/1995, no âmbito da Justiça Estadual, e dependendo das circunstâncias do crime,
aplica-se a Lei dos Juizados Criminais Federais, de nº. 10.259/2001, obedecida às
alterações da Lei nº. 11.313/ 2006.

De um modo geral, a crítica que se manifesta é que, ao invés de incidir as penas privativas
de liberdade, mais adequadas à punição de um crime ambiental, se aplicam as penas
alternativas e restritivas de direito instituídas pelos referidos diplomas processuais, que não
parecem estar adequadas à conscientização da realidade da gravidade do dano ambiental,

53 MACEDO, Kézia. A última fronteira do crime ambiental. Revista Ibama, Brasília, ano 2, n. 2, p.17.
54 MOTTA, Luiz da. CETAS: Expansão da rede de triagem de animais silvestres. Revista Ibama, Brasília, ano 2,
n. 2, p. 39.

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isto quando não ocorre a suspensão do processo, nos termos do artigo 89 da Lei
9.099/1995, quando a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano.

Importante ressaltar que a reestruturação do sistema interno é demasiadamente importante


para propiciar a conservação ambiental e suportara demanda do mercado internacional. Ou
seja, a abrangência legislativa e a existência de instrumentos específicos para realização da
norma, capacitam a estrutura interna de proteção, aprimorando a conservação ambiental.

Conclusão

A estrutura brasileira ainda é insuficiente no que se refere à efetiva proteção da fauna e da


flora no campo comercial. É necessário um maior incentivo na regulamentação de toda a
atividade, propiciando uma maior segurança jurídica e ambiental na emissão da licença, e na
efetiva atuação da fiscalização, na identificação dos produtos nos portos e aeroportos do
país.

Contudo, haja vista a atuação do IBAMA, na implementação do GT-CITES, bem como na


expansão dos CETAS, e na atuação da polícia federal, identificando cada vez mais os
mecanismos utilizados pelos traficantes, se percebe toda uma integração e movimentação
fundamentada na conscientização da relevância da conservação da biodiversidade.

Todavia, outras mudanças ainda se fazem necessárias, conforme já ressaltadas, como o


incentivo à implementação de criadouros, para que se tenha no contexto brasileiro um
mercado expressivo e capaz de comportar toda a demanda que impõe o campo
internacional para a manutenção da atividade pela CITES, bem como uma conscientização
mais efetiva por parte da sociedade, e uma revisão da legislação pertinente à punição dos
infratores para uma maior sensibilidade na identificação da gravidade que consiste uma
conduta contra o meio ambiente.

Em que pese, ainda que se tenha toda uma previsão legal e atuação do Estado,
regulamentando todo o procedimento interno até a comercialização internacional
propriamente dita, é importante que a sociedade se conscientize da necessidade da
conservação ambiental, e da relevância da conduta de cada indivíduo para a efetivação
dessa proteção em todas as etapas da atividade.

Nesse sentido, conscientes da necessidade da conservação ambiental, se haveria uma


maior coibição por parte da sociedade do tráfico ilegal, pois sequer admitiriam feiras e
criadouros ilegais, ou comprariam produtos de origens duvidosas. Dessa forma, se percebe
a importância da conscientização e mobilização da sociedade, pois do contrário, de nada
adianta todo um incentivo e atuação por parte do governo, se a coletividade não cumpre e
não exige a atividade legalizada e adequada com a conservação ambiental pertinente.

Abstract: The present analysis describes the situation of the illegal traffic in Brazil,
emphasizing the gravity of the continuity of the illegal comercial activity of the fauna and the
flora, for the ambient conservation and the sustainable development. Under this form,
structuralized the Brazilian composition directed toward the regulation of this commerce, the
study delineated its main imperfections in the conduction of the activity, as well as the
possibilities of adequate alterations to the Brazilian context, for the accomplishement of the
ambient conservation in the commerce of the wild fauna and the flora.

Keywords: illegal traffic; commerce; fauna; flora; sustainable development

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Artigo recebido em 31/07/2007 e aceito para publicação em


31/08/2007

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