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(1722 - 1760).
LUCIANA DA SILVA*
Introdução.
*
Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas. O trabalho apresentado é baseado em parte dos
resultados da pesquisa de doutorado realizada com bolsa concedida no âmbito do convênio FAPESP / CAPES –
Processo n° 2014/23498-7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
documentos são muito valorosos para o estudo da materialidade. Suas descrições, muitas vezes,
permitem conhecer os artefatos pelo nome e observar traços como cores, adereços, modelos,
entre outros, bem como revelam sinais do uso cotidiano, pelo registro do estado de conservação
dos objetos anotados. Os estudos sobre cultura material e cotidiano utilizam os inventários
amplamente em seus escopos documentais devido a esse perfil informativo. Uma análise atenta
desse tipo de fonte pode revelar aspectos importantes da vida material, do cotidiano e da
sociedade (ALGRANTI, 2016; FRAGOSO e PITZER, 1988; PEREIRA, 2010). À medida que
“Os fatos do homem social incorporam indivisivelmente seus artefatos”, sendo homem e
artefato um contínuo, no qual o objeto é a extensão do gesto do homem e, também, seu próprio
gesto (MENESES, 2017, p. 9 – 10), os objetos listados nessa documentação, devidamente
compreendidos no contexto de sua interdependência das práticas cotidianas (ABRAHÃO,
2008) são capazes de revelar muitas dimensões dos costumes e relações que se estabeleciam
através dos e para com os artefatos, bem como de levar a uma “apreciação mais profunda das
pessoas” de outras épocas (SILVA, 2019; MILLER, 2013, p. 12).
Presença, ausência e diferentes clivagens no registro dos objetos nos inventários mineiros.
Nesse conjunto documental foi possível entrever algumas clivagens no que se referia ao
registro de roupas. Primeiramente, em número considerável destes documentos não constaram
artefatos têxteis desse tipo. Algo notável, quando pensamos em quão importante eles são no
cotidiano atual e de outrora. As sociedades cristãs modernas incorporavam a necessidade do
vestuário para a proteção dos corpos das intempéries climáticas e com finalidades ligadas à
organização social e à moral: vestir denotava a inserção dos sujeitos nestas sociedades e
possibilitava, através de signos visuais, identificar a posição deles em seu interior, bem como
atendia à necessidade moral de cobrir o corpo (BRAUDEL, 2005, p. 237 – 349; ROCHE, 2007,
p. 19 – 75; GODART, 2010, p. 21 – 36). Dessa forma, na sociedade da América portuguesa do
século XVIII, as roupas deveriam estar presentes nos conjuntos de bens de todos os homens e
mulheres que disfrutassem de bens suficientes para estabelecer a necessidade de se fazer um
inventário após sua morte. Entretanto, em certa quantidade de arrolamentos de bens, produzidos
no termo da Vila do Carmo, entre 1722 e 1760, não foram registradas peças de vestimenta
pessoal, conforme mostra a tabela a seguir:
1
Para tanto, ampliou-se a quantidade de documentos trabalhados, incluindo na investigação alguns inventários
que não apresentaram valor de montemor e que se encontravam excluídos da amostra de 131 documentos utilizada
para as quantificações exposta na tabela.
no arrolamento, nem no testamento. João declarou em suas cláusulas de últimas vontades estar
“doente em cama”. Em seu período de doença, na ausência de ouro e prata para penhorar,
poderia ter suas roupas mais caras vendidas, como forma de obter o recurso necessário aos
cuidados médicos e à alimentação. Essa seria uma possibilidade para um número grande de
pessoas, especialmente os menos afortunados: despir-se de suas roupas com maior valor,
mantendo somente o estritamente necessário à cobertura do corpo, para obtenção de recursos
numa situação de grande necessidade. Possibilidade crível, mas nem sempre visível na
documentação.
a roupa e algum ouro de uso e servidão de minha mulher que isso lhe deixo de livre
vontade a parte que deles me toca e por isso quero de sua roupa de seu uso e ouro
lavrado que ela tiver não se faça inventario nem conta alguma e caso isso cause
algum embaraço sendo preciso se descontará da minha terça a parte que me tocar
nessa parte (ACSM. Inventário e testamento de Antônio Gonçalves Pereira, 1750 –
Cód. 029, Auto 0720).
O homem, em seu leito de morte, estabelecia em testamento que a parte que lhe
pertencesse da roupa e joias de sua mulher deveria ser entregue a ela e, portanto, ficar fora da
inventariação. Dessa maneira, estaria garantindo à viúva que seu vestuário e adornos não
fossem partilhados. As roupas de Gertrudes permaneceram fora da avaliação em atendimento
da preocupação de seu marido. Algo que pode ser tomado como uma expressão do cuidado do
marido para com a mulher, tendo em vista o significado mais geral da boa aparência numa
sociedade escravista com características de Antigo Regime: a aparência externa seria o critério
para medir a qualidade das pessoas (SILVA, 2019; ARIÈS, 1991). Assim, manter a viúva bem
vestida seria uma maneira de assegurar seu status. Ademais, Antônio se preocupou em preservar
os artefatos que proporcionariam à sua esposa além de boa aparência, uma reserva de elementos
conversíveis em recursos para alguma necessidade urgente.
Assegurar ao cônjuge a posse de roupas e joias compunha o quadro das motivações para
a exclusão de artefatos dessas classes dos arrolamentos de bens, juntamente a outras razoes para
essa ausência. Outras pessoas poderiam ser beneficiadas com legados compostos por roupas,
algo que também provocava a ausência do registro no rol. Na Vila do Carmo, no ano de 1728,
Antônio Borges de Mesquita, homem natural do reino, escreveu seu testamento, dois meses
antes do feitio do arrolamento de seus bens. Sendo homem solteiro e sem filhos, Antônio
declarou que “deixo a meu sobrinho Antônio Alves Pereira assistente nesta vila toda a roupa
do meu uso e todos os móveis da casa nua, e simplesmente os quais meus testamenteiros lhe
entregarão” (ACSM. Inventário e Testamento de Antônio Borges de Mesquita, 1728 – Cód.
136, Auto 2837). Constaram no inventário um crucifixo de prata, 33 oitavas referentes aos
jornais dos negros depois do falecimento, 61 oitavas procedidos de cobres vendidos em praça,
créditos e escrituras e os escravos do falecido. Rouparia do corpo e da casa, bem como móveis
de madeira e utensílios não foram arrolados. Sendo as roupas bens de necessidade primordial
no cotidiano, deveria ser motivo de alegria ganhá-las, em especial por meio de legados
testamentários, que possuíam, entre outros, a capacidade de expressar gratidão do testador, bem
como suas preocupações e sentimentos para com os entes mais queridos (PRIORE, 1997, p.
319).
Na ausência do testamento, o pedido no leito de morte poderia definir que as roupas e
outros bens, fossem dados ou vendidos. Em 1730, ao fazer o inventário dos bens do casal por
morte de Josefa da Pureza, o viúvo André Coelho Pessoa declarou às autoridades que “a roupa
que era do uso da defunta sua mulher que a dera pelo amor de Deus por a dita defunta assim
determinar na hora de sua morte” (ACSM. Inventário de Josefa da Pureza, 1730 – Cód. 024,
Auto 0617). A pobreza forçava destinar as roupas ao bem da alma. Sendo, em muitos casos, a
única propriedade com algum valor possuída, tais peças eram doadas em ato caritativo (SILVA,
2013, p. 175 – 224).
O baixo valor das peças ou seu péssimo estado de conservação, por sua vez, nem sempre
constituíam razão para sua exclusão do arrolamento de bens. Ao se fazer o inventário de
Bonifácio Coelho de Magalhães, no ano de 1753, vários itens não foram avaliados, apesar de
declarados: duas casacas, uma vestia e um calção já velhos, aparecem entre as vestimentas do
inventariado sem avaliações (ACSM. Inventário de Bonifácio Coelho de Magalhães, 1753 –
Cód. 136, Auto 2833). Inventariar objetos sem valor, entretanto, estava longe de constituir um
padrão. O caso de Bonifácio integrava o rol das exceções. Os altos valores das vestimentas, por
outro lado, certamente influenciavam a decisão de citar certos vestidos no testamento e de
registrá-los no inventário. José Ferreira Torres, falecido em 09 de dezembro de 1744, por
exemplo, declarou:
(...) um vestido de lemiste com sua vestia de veludo lavrado e outro mais de pano fino
azul ferrete com sua véstia de veludo lavrado cor de tabaco e dois mais usados
também de pano um par de esporas de prata. Declaro que a roupa de mais custo de
minha mulher são uma saia de veludo lavrado e dois guardapés de seda tudo rico e
no mais de roupas não falo porque quero que os mais fique à disposição daquilo que
o ministro inventariante vir que em sua consciência deve obrar (ACSM. Inventário e
testamento de José Ferreira Torres, 1744 – Cód. 132, Auto 2758).
A roupa de maior valor da mulher do testador foi escolhida e declarada dentre outras
peças. José Ferreira era pai de oito filhos. Manoel de 10 anos, Tomázia de 8, Joseph de 6 anos
e Mariana de 4 anos tivera com sua mulher, Ventura Antônia, então viúva. Francisca Ferreira,
de 23 anos já casada na época da morte do pai, Francisco Ferreira, de 20 anos, Vitoria e Josefa,
ambas com mais ou menos 15 anos, eram filhos naturais. Caberia à autoridade responsável por
inventariar os bens determinar o que seria feito das roupas mencionadas, mas não declaradas
no testamento. Por decisão do ministro as roupas poderiam, ou não, figurar no arrolamento de
bens, ser destinadas aos quinhões dos órfãos, indo a leilão em praça pública, ou até mesmo
serem desfeitas e reaproveitadas na confecção de roupas para as crianças. Para esta última
assertiva, cabe analisar mais um caso.
Em 1739, João Gomes Ribeiro, morador no Morro da Passagem, procurou a justiça dos
órfãos, para informar que Antônia Gomes, uma negra que foi sua e estava liberta, havia falecido,
deixando quatro filhos pardos, “os quais ele por caridade ampara”. Aos órfãos caberia receber
os bens de sua mãe, os quais consistiam em um escravo, que João já havia vendido por sessenta
e quatro oitavas de ouro, e recebido apenas catorze oitavas do valor negociado, alguns poucos
trastes de casa e roupas. Os bens não chegavam para as despesas do inventário e, por isso, João
procurou o escrivão dos órfãos para fazer petição ao juiz dos órfãos se haveria de se fazer, ou
não, inventário. O homem trazia consigo um rol, nos qual estavam descritos os “trastes da
defunta Antônia Gomes de nação cabo verde” (ACSM. Inventário de Antônia Gomes, 1739 –
Cód. 062, Auto 1343).
Em “uma caixa sem tapadura”, se guardavam alguns utensílios como dois pratos de
estanho usados, uma colher e uma candeia de ferro velhas, além das seguintes peças de roupa:
uma saia de camelão em meio uso, uma saia de chita usada, uma saia de baeta preta usada, uma
de estamenha em meio uso, quatro camisas de bretanha usadas, uma saia “braça” usada, um
timão de baeta velho, outro timão roto, um cobertor velho, um pano de lemiste velho e duas
baetas velhas de cor. Os bens da defunta foram levados à praça pública, mas ninguém os
comprava. Isso acabou por incentivar João, diante da necessidade,
o que toca as roupas, antes delas por estarem os ditos menores nus desfez o suplicante
para lhes fazer roupas que eles pudessem vestir uma saia de chita usada e outra de
baeta preta da mesma sorte (...) e as mais por serem inferiores não se podem reputar,
termos em que parece ao suplicante ser mais justo, que visto a menor Maria ter idade
de doze anos, a Ana Maria seis ou sete, o Roberto oito e João quatro para cinco anos,
e estes necessitarem precisamente de roupas para lhes cobrir as carnes, lhe mande
Vossa Mercê dar estas que lhe ficaram da dita sua mãe, para seu uso, visto também
dela não lhe ficarem outros bens e poderem melhor remediarem-se com as tais roupas
velhas de que com seu injusto produto ( ACSM. Inventário de Antônia Gomes, 1739
– Cód. 062, Auto 1343).
Diante da nudez das crianças, João desfez duas saias da defunta utilizando o pano para
fazer roupas para os quatro órfãos. Sabendo de sua obrigação de prestar contas dos bens, João
procurou o escrivão para fazer petição ao juiz, pedindo que as outras peças de roupas de Antônia
fossem dadas para uso dos órfãos, pois seria mais proveitoso reutilizar as peças, confeccionando
outras para as crianças, do que as vender. Afinal, por seu estado de conservação alcançariam
um preço ínfimo, ou ainda corriam o risco de, não sendo vendidas, estragarem a ponto de não
poderem ser reaproveitadas. João se comprometeu a criar os órfãos, sustentando-os e vestindo-
os por caridade, fazendo esmola de tudo o que pagou pela defunta, ou seja, algumas contas e as
oito oitavas de ouro referentes ao sepultamento da preta forra. Ele pediu, também, para ser
“aliviado das contas que em juízo deve dar dos ditos bens ou de seu produto”. O juiz concedeu
o pedido, sendo feito e assinado, em 1741 o termo de obrigação que confirmava a proposta de
João Gomes.
O caso dos órfãos da preta forra Antônia Gomes é bastante elucidativo das práticas de
reaproveitamento de roupas de inventariados em favor de órfãos. Ao que sugerem os indícios,
desfazer roupas de adultos com a finalidade de vestir crianças poderia ser algo comum no
cotidiano mineiro. Dos 38 inventários em que não constaram peças de roupa, (no interior da
amostra de 131 documentos), em 30 (79%) havia órfãos menores de 20 anos.
Considerações finais.
A ausência das vestimentas nos inventários estava ligada às mais diversas motivações,
sendo o não registro das peças relativamente comum no cotidiano mineiro. O aproveitamento
das peças, fosse para benefício da alma, em favor do cônjuge que ficava vivo ou outros parentes,
ou dos órfãos constituíam práticas corriqueiras que conectavam sentimentos, emoções e
materialidade, renovando o uso destes artefatos têxteis, que eram colocados em circulação. A
pobreza servia de forte incentivo à tais práticas, que, apesar disso, eram adotadas por sujeitos
de diferentes condições socioeconômicas. Essa intensa circulação e reciclagens eram aspectos
das diversas relações que se estabeleciam com os artefatos têxteis de forma geral: seu uso
deveria ser prolongado e duradouro, passando de pessoa para pessoa, algo que poderia estar
relacionado, por exemplo ao seu alto custo.
Fontes:
ACSM. Inventário e testamento de João Teixeira Carvalho, 1729 – Cód. 015, Auto 0464.
ACSM. Inventário de Josefa da Pureza, 1730 – Cód. 024, Auto 0617.
ACSM. Inventário de Francisco Xavier Baracho, 1736 – Cód. 087, Auto 1840
ACSM. Inventário de Antônia Gomes, 1739 – Cód. 062, Auto 1343.
ACSM. Inventário e testamento de José Ferreira Torres, 1744 – Cód. 132, Auto 2758.
ACSM. Inventário e testamento de Antônio Gonçalves Pereira, 1750 – Cód. 029, Auto 0720.
ACSM. Inventário de Bonifácio Coelho de Magalhães, 1753 – Cód. 136, Auto 2833.
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