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com a colaboração da COLABORADORES


FAPESP
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo)

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CIP - B ra sil. Cataiogaçao-na-Fonte
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Câmara B ra sile ira do L ivro, SP
Antônio Cândido M elo e Souza
Estudos de Filologia e L in g üística : em homenagem Bruno Fregni Bassetto
E85 a Isaac Nicolau Salum. — Sao Paulo : T. A.
Queiroz : Ed. da Universidade de São Paulo, 1981. Carlos Alberto da Fonseca
(B iblioteca U n iv e rsitá ria de Lín­
gua e Lingüística ; v.2) D ino Preti
Inclui vida e obra de Isaac Nicolau Salum. Izidoro Blikstein
I. Filo lo g ia 2. L ingüística 3. Salum, Isaac Lilian Proença de M enezes M ontenegro
Nicolau, 1913-
M aria Valíria Aderson de M ello Vargas
CDD-410 M ário Ferreira
81-1386 -409.2
M assaud M oisés
índices para catalogo sistem ático: O nélia de Lima Salum
1. F ilo lo g ia 410 Segism undo Spina
2. L ingüistas : Biografia e obra 409.2
3. L ingüística 410

Ataliba Teixeira de Castilho


Luiz Carlos Cagliari
Rodolfo Ilari

A lceu D ias Lima


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Cacilda de Oliveira Camargo
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Rua Joaquim Floriaiio, 733 — 4? O dette Gertrudes Luiza Altm ann de Souza Campos
04534 São Pàulo, SP Teim o Correia Arrais
1981
Impresso no Brasil Evanildo Cavalcante Bechara
A ESTRUTURA MENTAL DO LÉXICO

Maria Teresa Camargo Biderman


(Departamento de Lingttística, “Campus” de
Araraquara —UNESP)

1. Introdução
O estudo do léxico, ou a ciência da Lexicologia, tem uma longa tra­
dição na Lingüística Românica. No final do século XIX e primeira metade
do século XX algumas províncias dessa ciência tiveram muitos cultores
que produziram trabalhos de grande prestígio, particularmente em três
áreas: (a|)a semântica evolutiva, ou história das p a l a v r a s o domínio
conhecido como de “palavras e coisas” ;1 c) a geografia lingüística.2 Em­
bora privilegiando diversos tipos de enfoques, essas três áreas sempre
relacionaram ojéxico à cultura. Em 1966 Manuel Alvar traduziu e publi­
cou uma coletânea de trabalhos lexicológicos de Gerhard Rohlfs, denomi­
nando-a Lengua y Cultura, com base no título de um ensaio do mestre,
de 1928, “Sprache und Kultur” . Tâl fato pretende ilustrar os laços íntimos
que ligam o léxico à cultura, seja qual for a perspectiva teórica adotada
pelo especialista.
Nos anos 50-60, quando a Teoria da Informação nasceu e adquiriu
maturidade, a Lexicologia foi enriquecida com outro enfoque teórico que
conduziu a uma extraordinária produção de trabalhos, pesquisas e projetos
monumentais: os estudos quantitativos e probabilísticos sobre o léxico.
Na França e na Itália sobretudo a partir do início da década de 60 e até
hoje, a produção de trabalhos léxicos e de tesouros léxicos das línguas
tem sido extraordinária. Neste artigo vou utilizar alguns pressupostos e
resultados desta província da Lexicologia.
Finalmente, a análise do léxicò realizada por outros estudiosos do
vocabulário e da semântica, assumiu denominações várias: campos semân­
ticos, campos léxicos, campos conceptuais, campos nocionais. Também
vou utilizar descobertas feitas a partir dessa perspectiva no tópico que
pretendo discutir. No estudo denominado “Le champ conceptuel de la
beauté en français modeme” , Ducháéek propõe um esquema para esses
campos,3 reproduzido na página seguinte.
As duas coordenadas (de palavras, de idéias) propostas corres­
pondem às duas direções sugeridas por Baldinger: a Onomasiologia e a Se-
masiologia.4 A Onomasiologia estuda as designações (as palavras) ao passo
132 — Filologia e linguística Lexicologia — 133

campos lingüísticos dades próximas em que o léxico de uma língua vai necessariamente de-
saguar.
1
de palavras de idéias
2. O relativismo linguístico e a categorização léxica
conceptuais semânticos Numa outra direção dos estudos lingüísticos e não exclusivamente
— t K S ’ lexicológicos, vamos considerar agora a tese do relativismo lingüístico
__________________________________i_________
associativos
(ou hipótese Sapir-Whorf) e algumas das descobertas dessa teoria com
relação ao léxico. Para essa teoria, o léxico pode ser considerado como
uma categorização simbólica organizada, que classifica de maneira única
que a Semasiologia estuda as significações., São, pois, direções opostas as experiências humanas de uma cultura. Para Whorf:
e complementares. “Nós dissecamos a natureza segundo diretrizes estabelecidas por
Geckeler acha discutível o modelo e as propostas de Duchá&^k: “A nossas línguas nativas. As categorias e os tipos que isolamos do mundo
investigação de um ‘‘campo semântico” na linha de Ducháéek é, do ponto dos fenômenos, nós não os encontramos aí porque eles encaram cada
de vista operacional, simplesmente impossível no estado atual da semân­ observador face a face; pelo contrário, o mundo se apresenta como um
tica moderna, pois metodologicamente não existe ainda nenhuma possibi­ fluxo caleidoscópico de impressões, que têm de ser organizadas por nossas
lidade de provar ou descubrir uma estruturação sistemática com milhares mentes — e isso significa em grande parte pelos sistemas lingüísticos em
de unidades funcionais. Aliás, o próprio Duchá3ek reconheceu esta difi­ nossas mentes. Nós recortamos a natureza, organizamo-la em conceitos,
culdade. Aqui nos movemos já muito próximos do domínio de uma aná­ e atribuimos-lhe significações como fazemos, em grande parte, porque
lise da totalidade do vocabulário, objetivo último da Lexicologia.” 5 somos parte de um contrato para organizá-la dessa forma — um contrato
Outra corrente de lexicólogos enveredou por estudos que correlacio­ que se mantém através de nossa comunidade lingüística e está codificado
naram léxico e sociedade. Matoré depois de escrever sua tese de douto­ nos padrões da nossa língua. Esse contrato é implícito e não explícito,
rado Le vocabulaire et la société sous Louis-Philippe, publicou, em 1953, mas seus termos são absolutamente coercitivos; não podemos falar sequer,
La mèthode en lexicologie. Nesse livro, Matoré classifica a lexicologia a não ser subscrevendo a organização e a classificação dos dados que esse
como disciplina sociológica (p. 13). Não só essa classificação é discutível. contrato impõe.” 7
Além disso, Matoré incluiu a semântica na Lingüística Histórica; certa­ Se acrescentássemos a essas afirmações de Whorf, vários exemplos
mente referia-se apenas à semântica evolutiva. Aliás, na sua perspectiva, tirados dos seus estudos sobre línguas e culturas indígenas da América
o léxico é apenas tuna testemunha de uma sociedade, de uma época, por (hopi, navajo, esquimó, nutka),8 bem como de Sapir, especialmente no
isso chamou os elementos do léxico de “mots-témoins” . Nessa mesma estudo denominado “Língua e ambiente” , veriamos que o vocabulário
linha de idéias se situa o livro de J. Dubois Le vocabulaire politique et é o domínio, por excelência, em que estão codificados os símbolos da
social en France de 1869 à 1872 (1962). cultura.
Se considerarmos a dimensão social da língua, podemos ver no léxico Num estudo de Charles Bally, o “campo associativo” de b o e u f( 1)
o patrimônio social da comunidade por excelência, juntamente com vache, taureau, veau, cornes, ruminer, etc.; 2) labour, charrue, joug, etc.,
outros símbolos da herança cultural. Dentro desse ângulo de visão, esse abattoir, boucherie etc.) foi certamente organizado da maneira como
tesouro léxico é transmitido de geração a geração como signos operacio­ foi a partir dos moldes da cultura francesa, já que a língua francesa é
nais, por meio dos quais os indivíduos de cada geração podem pensar e um espelho dessa cultura.9 Inversamente, uma cultura como a francesa
exprimir seus sentimentos e idéias. Matoré tem razão quando afirma que evoluiu do rural e rudimentar (o exemplo de Bally) para o urbano
que a palavra tem uma existência psicológica e um valor coletivo.6 Tam­ e universal, traço que a caracteriza hoje como qualquer grande cultura
bém está certo ao afirmar que é pela palavra (diriamos a nomeação) que da civilização ocidental, sofreu um processo de ampliação progressiva
o homem exerce a sua capacidade de abstrair e de generalizar o individual, do seu léxico. Dessa forma vem se descaracterizando de traços peculiares
o subjetivo. A palavra cristaliza o conceito resultante dessa operação men­ nas últimas décadas quando a interação intensa entre as diferentes cultu­
tal, possibilitando a sua transmissão às gerações seguintes. ras, levou o francês como as demais línguas ocidentais, a acolher emprés­
O que gostaria de frisar é que os lexicólogos mais ilustres dificil­ timos de variadas línguas, especialmente do inglês. O desenvolvimento
mente conseguiram isolar a sua ciência das várias ciências afins e reali­ de uma civilização técnica de grande sofisticação em nossos dias vem
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criando categorizações léxicas, cada vez mais específicas e maiores. Multi­


plicam-se as palavras úteis para as tecnologias que a comunicação de massa
internacional passou a divulgar em todo o mundo. Hoje muitos vocabu­
lários técnico-científicos são patrimônio universal e não específico de uma
cultura.
Vou considerar, porém, não esse vocabulário técnico-dentífico,
mas o léxico usual e básico de uma língua qualquer e, a seguir, o léxico
português. O acervo verbal de um idioma é o resultado de um processo
de categorização secular e até milenar na cultura, através do reconheci­
mento das semelhanças e das diferenças entre os elementos da experiênda
humana, tanto a experiênda resultante da interação com o ambiente
físico como com o meio cultural.
Sir Karl Popper situa o homem em três mundos distintos.10 Eles
compreendem todas as existêndas e todas as experiências. Sumarizando
a proposta de Popper: o Mundo 1 compreendería o mundo físico; o
Mundo 2, o dos estados de consciência e o Mundo 3, o universo da cultura.
Com base na teoria do filósofo Popper, relativa a esses três mundos em
que vive o homem, pode-se especular que as experiêndas e a interação
entre o Mundo 1 e o Mundo 3, fornecerão o conjunto de dados que serão
codificados lingüisticamente e armazenados na memória léxica do indi­
víduo.
O neurologista John C. Eccles valeu-se do modelo e das idéias de
Sir Karl Popper, para propor um modelo de como se processa, no cére­
bro humano, a interação entre os três mundos de que fala Popper. Eis
o modelo de Eccles:11
Da interação contínua entre esses três mundos o indivíduo foi e
vai retirando as percepções, as sensações, as experiências e as informações
que então categorizadas lingüisticamente e registra duradouramente na
memória.
Confrontemos agora essa explicação com a hipótese Sapir-Whorf.
Para essa teoria o léxico de uma língua seria um arquivo acumulado da
experiência multi-secular das comunidades humanas que falavam e falam
essa língua. As categorias verbais formadas ao longo da história desse
idioma e dessa cultura criaram um molde linguístico para as suas comuni­
dades falantes. Através do prisma da língua, o mundo e a realidade serão
vistos e percebidos pelos seus falantes de uma determinada maneira, com
base nos lexemas cristalizados no seu patrimônio lexical.
Vários psicólogos, lingüistas e sociólogos e até mesmo neurolin-
güistas se impressionaram vivamente pela teoria do relativismo lingüístico.
Nos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60, vários experimentos foram rentes (um, em 1954 e outro, em 1958). Os seus experimentos, planejados
realizados para testar e comprovar essa teoria. Não vou tratrá-los em deta­ para testar a hipótese Sapir-Whorf, basearam-se na capacidade individual
lhe porque não cabe aqui.1 * Gostaria de lembrar apenas alguns resultados de diferentes sujeitos de perceber matizes variados de cores e nomeá-los,
obtidos por Brown e Lenneberg que foram relatados em dois artigos dife- a partir do vocabulário disponível na sua língua. Foram testados falantes
Gqyyv
136 — Filologia e lingüística Lexicologia — 137

nativos do inglês. Não vou discutir tais experiências que estão descritas Outros experimentos psicológicos comprovaram que a língua é res­
nos artigos “A Study in Language and Cognition” (1954) e "Studies in ponsável pela forma como as pessoas reconstroem as experiências e mani­
Linguistic Relativity” .13 Interessam-me apenas as conclusões. Nesses pulam as informações; parece não haver dúvida que um registro dura­
trabalhos Brown e Lenneberg propõem o conceito da “codifícabilidade” , douro se sedimenta na memória léxica dos indivíduos.15
isto é: o indivíduo tende a reconhecer facilmente uma realidade, memo­ O psicólogo Vernon Gregg sugere um modelo de organização e
rizá-la para depois distingui-la, se ela se lhe apresentar de novo, caso a encadeamento das memórias e do aparato sensorial que esquematiza
sua língua lhe forneça uma palavra já categorizada para tal informação. assim:16
Teria assim um alto grau de codifícabilidade. O contrário ocorre quando
ele precisar se servir de um circunlóquio, de uma perífrase para codificar
lingüisticamente essa experiência. Cito-os textualmente:
“A língua que tem uma palavra para uma categoria, especialmente
uma palavra curta, provavelmente tem agora ou teve no passado freqüen-
tes ocasiões de referir-se a essa categoria. ( . . . ) Tal categoria pode ser
considerada como altamente codificável para a comunidade em questão.”
(1958)
Além disso, muitos sujeitos desses experimentos informaram Brown
e Lenneberg que a estratégia utilizada por eles para se lembrarem posterior­
mente das cores que lhes haviam sido mostradas, foi nomear essas cores
para memorizá-las. Assim, puderam lembrar-se facilmente das cores cujos
nomes podiam identificar sem dificuldade, como, por exemplo: vermelho,
azul, amarelo, etc.

3. A estocagem e o processamento verbal na memória Vários trabalhos e resultados comentados por Gregg lhe permitiram
Além dos experimentos de Brown e Lenneberg, outros resultados concluir que as informações e estímulos devem ser convertidos em códigos
foram obtidos por psicólogos e psicolingüistas que comprovam a inter­ que a memória seja capaz de manipular. Quanto às denominações correntes
mediação da língua na categorização e memorização da interação vivida na literatura — “memória a curto prazo” e “memória a longo prazo” —
pelos indivíduos com o mundo físico (M 1) e com o universo da cultura são rejeitadas por V. Gregg por serem vagas. Ele contrapõe o modelo acima
(M 3). Glanzer e Clark propuseram a hipótese do “elo verbal” (verbal- mais específico. Para ele, no estágio pós-categórico onde se situa a me­
loop hypothesis).14 Essa hipótese testada duas vezes em experimentos mória, podem-se distinguir três tipos de memória: uma reserva temporária
diferentes, afirma que as informações e os estímulos recebidos por um da informação — a “memória primária” , uma reserva a longo prazo, a
sujeito são traduzidos em palavras para serem armazenados na memória “memória secundária” , e a “memória semântica” , onde está armazenado
em forma verbal: a base para qualquer resposta ulterior. Glanzer e Clark o léxico. Essa constitui uma memória duradoura. Alguns teóricos prefe­
propõem o esquema: rem considerar a “memória primária” como um “memória operacional” ,
ou “ consciência” .
A caixa denominada “logogens” foi proposta por John Morton e
seria responsável pelo estabelecimento do “elo verbal” de que fala Glan­
zer. Ela “ converte os sinais emitidos pelas reservas periféricas em forma
verbal, fornecendo a localização das palavras no léxico ou dicionário da
memória semântica ( logogens é uma combinação de palavras gregas que
significam palavras e nascimento, e foi cunhada por John Morton). A
figura deixa claro que as reservas periféricas são pré-categóricas, quer
dizer, precedem a transformação dos estímulos em categorias verbais (isto
é, palavras).” 17
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Ao invés de adotar a terminologia de V. Gregg “memória semântica” as palavras que têm variadas significações e usos diferentes em qualquer
vou preferir denominá-la “memória léxica”. A seguir, vou propor um mo­ língua que se considere. Ora, todo esse tesouro léxico foi arquivado na
delo de estruturação do léxico na memória de um falante adulto de língua memória léxica desse indivíduo, para ser utilizado quando ele tiver neces­
portuguesa. Especifico esse detalhe porque admito a teoria do relativismo sidade de usar a língua tanto na codificação, como na decodificação de
lingüístico, particularmente no domínio do léxico, como deve ter ficado uma mensagem. Por conseguinte, em virtude do número elevadíssimo dos
evidente pelo que foi dito anteriormente. É claro, porém, que, com elementos do léxico e da complexidade combinatória resultante desse'
exceção do modelo da rede semântica, que será proposto mais adiante, as número, é necessário supor que o cérebro organiza uma estrutura dos
considerações aqui feitas podem aplicar-se ao léxico de qualquer língua. dados léxicos de grande funcionalidade, para que ele possa recuperar em
frações mínimas de segundo (100 a 700 milissegundos) não só o signifi­
4. Caracterização do léxico — Registro e arquivamento do acervo léxico cado de uma palavra, mas todas as suas características gramaticais e os
usos que lhe são adequados, conforme o contexto do discurso, a situação
O léxico pode ser considerado como o tesouro vocabular de uma momentânea e o registro lingüístico requerido pela situação, pelo inter­
determinada língua. Ele inclui a nomenclatura de todos os conceitos locutor e pelo assunto.
lingüísticos e não-lingüísticos e de todos os referentes do mundo físico
(M 1) e do universo cultural (M 3), criado por todas as culturas humanas 5. Modelo estruturado de uma rede semântica e de seus campos léxicos
atuais e do passado. Por isso, o léxico é o menos lingüístico de todos os
domínios da linguagem. Na verdade, é uma parte do idioma que se situa O problema das associações mentais entre as palavras tem interes­
entre o lingüístico e o extra-lingüístico (cf. introdução). sado filósofos e psicólogos de longa data. A constatação desse fenômeno
Pode-se admitir que, de uma certa forma, o léxico está material e em que, dada uma palavra, ela produz imediatamente uma palavra-respos-
sistematicamente organizado nos dicionários impressos da língua. Existe, ta, comprova o fenômeno no nível empírico. Esse fenômeno deve resul­
porém, uma outra organização estruturada do léxico também de cunho tar do encadeamento do léxico em redes semânticas. Os padrões neuro­
material: os padrões neuronais dos cérebros dos indivíduos. Para os fins nais da memória léxica devem ter estabelecido redes de ligações entre os
deste artigo convém considerar o indivíduo adulto, de preferência à crian­ lexemas de modo funcional.
ça ou ao adolescente. De fato, sendo o léxico um conjunto aberto que os Há dois fatores básicos e serem considerados: 19) a maior ou menor 1
indivíduos levam longos anos para adquirir (diversamente dos demais freqüência das palavras no uso lingüístico; 2?) o encadeamento de sentido
domínios da língua: o sistema fonológico, o morfosintático), o falante e/ou de forma segundo um modelo paradigmático. A ügação em cadeia
não-adulto ainda está numa das etapas ascendentes de aquisição do voca­ dentro da memória, deve pautar-se por esses fatores. De um lado, deve
bulário; a rigor, se considerarmos o léxico da língua na sua totalidade haver uma forma de acesso rápido às palavras mais freqüentes, aquelas
(o que constitui uma utopia), qualquer indivíduo, mesmo o adulto, estará que compõem as listas dos vocábulos mais freqüentes de uma língua (os
sempre aprendendo novos elementos léxicos, pois o tesouro vocabular 100 mais freqüentes, os 1.000 mais freqüentes). Com relação às palavras
da língua se expande continuamente. Por outro lado, o acervo léxico instrumentais como as preposições, por exemplo, de altíssima freqüência,
arquivado- na memória de um indivíduo, há de ser sensivelmente seme­ aliás, é possível que elas estejam estocadas em áreas diferentes das palavras
lhante àquele existente na memória de outro falante da mesma língua. de conteúdo lexical e que estejam ordenadas paradigmaticamente segundo
Essa semelhança é garantida pelo fato de a criança, o adolescente e o indi­ a sua função gramatical. Em português a preposição de, por exemplo,
víduo adulto aprenderem novas palavras e novas denotações e conotações é a segunda palavra mais freqüente em qualquer corpus do nosso idioma.
de uma palavra conhecida, através da interação social com outros indi­ Deve, portanto, ter um acesso ultra-rápido na rede neuronal da memória.
víduos, ou com o produto de outras mentes, representantes da mesma
comunidade lingüística. Ora, é imprescindível que essas novas incorpora­ Uma rede semântica é composta da integração estruturada de vários
ções se façam de maneira organizada e não sejam uma mera estocagem campos léxicos. Um campo léxico integra uma rede semântica juntamente
de engramas que se vão empilhando nos neurônios do cérebro. com muitos outros campos léxicos. As palavras nucleares dentro de um
Um indivíduo médio deverá possuir um repertório léxico substancial campo léxico provavelmente são as palavras mais freqüentes dentre as
ao atingir a idade adulta (20.000, 40.000, 50.000 lexemas?).18 Além palavras de conteúdo léxico. Podem também constituir os primitivos
desses milhares de lexemas, deve-se considerar a multiplicação dos mesmos léxicos de uma língua, sendo por isso, as primeiras palavras significativas
determinada pelo fenômeno da polissemia. De fato, são muito numerosas que um indivíduo aprendería.
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Proponho a seguir, um modelo de rede semântica e de alguns dos Trata-se da rede em que se situa o campo léxico de luz.
seus campos léxicos integrados em ca. eia. Evidentemente este modelo
baseia-se nas articulações léxicas existentes no idioma português, como Nesta representação gráfica a palavra nuclear de um campo léxico
patrimônio que nos foi legado e como práxis atual. está representada no interior de uma elipse. O campo léxico de luz foi
Segue-se uma explicação do modelo gráfico. numerado 1; os demais seguem a numeração natural. Neste modelo há
dezessete campos léxicos estruturados em rede.
Os vetores comunicam as cadeias associativas e os mini-circuitos
no interior da rede, conectando partes da rede entre si. Evidentemente
R E D E S E M Â N T IC A E CAM PO L É X IC O D E L U Z nem o campo léxico 1 (CL1) ao qual se dedicou maior atenção, nem os
outros dezesseis campos aqui estruturados (CL2, CL3, . . . ) estão comple­
tos. Foi feita uma tentativa de organizar exaustivamente o CL1, dando-se
uma descrição sumária dos demais campos léxicos.-
As bolinhas representam o nó sêmico, isto é, o núcleo de significação
e/ou forma que une duas ou mais palavras. Por ex.: num dos nós sêmicos
que envolve luz confluem os vetores: luminoso, iluminar, iluminação,ilumi­
nado. Outro nó sêmico está em circuito com outro campo léxico (CL2):
raio. Dos nós sêmicos do CL2 emanam: radioso, radiante, irradiar, irradia­
ção. Esse feixe de signos está em correlação indireta com luz, formando
um circuito, através do vetor que estabelece a associação sintagmática
entre raio e luz (ex. : raio de luz). Há circuitos parciais no interior da rede
ligando partes do sistema. A conecção foi representada assim: -Cf.
o CL9 < onda luminosa> se comunica com reflexo, reflexão, refração;
cintilação, cintilar com estrela (CL13); brilhar (CL5) com fulgurar (CL6):
são sinônimos. Quando as palavras têm uma relação de tipo sinonímico,
tal relação está expressa pelo sinal =. Assim: no CL4 claro = alvo, mani­
festo, evidente, preciso, distinto.
Os campos léxicos (2 a 17) foram explorados superficialmente. Em
todos eles figura um nó sêmico do qual parte uma linha pontilhada. Essa
linha pontilhada representa a possibilidade de conexão com outro, ou
outros campos léxicos; também se pode imaginar outros nós sêmicos
virtuais com os quais ocorrería o mesmo.

I. A associação entre os signos se estabelece de duas formas básicas:


A) por contigüidade, similaridade; B) por oposição de contrários. No
interior de cada um desses processos psicolingüísticos existem variedades
distintas. Não haverá tempo, nem espaço, para tratar do item B); aí se
induiriam as associações dos contrários, como os antônimos, por exemplo.
Assim este modelo de rede semântica que inclui o campo léxico de luz
devería incluir os campos léxicos dos contrários, a saber: sombra, penum­
bra, opacidade, frio, escuridão, noite, etc. para ser completo.
Lexicologia — 143
142 —Filologia e linguística
3?) SN = N + Adj
Relativamente à associação por contigüidade, similaridade (A), foco luminoso; raio luminoso; onda luminosa; fogo ardente; luz fu l­
pode-se postular os seguintes casos: gurante

1. paradigmática 4?) SN + SV:


associação de significante. a significante, isto é, uma família de A luz r-brilha
cognatos que tem uma raiz comum: queimar, queimada, queimação; Xilumina O fogo queima
raio, radioso, radiante, irradiar, irradiação.
No caso das associações sintagmáticas elas se estabelecem ao nível
2. paradigmática do s^gno total, isto é, do lexema. Mas aqui já estamos transpondo o limiar
associação de significados, isto é, entre sinônimos de uma palavra. do léxico e atingindo a sua faixa de conexão com a gramática.
Ex.: claro — distinto — preciso — evidente — manifesto; brilhar — Não referi o problema da estocagem e funcionamento das regras
fulgurar - luzir; brilho - fulgor, etc.
gramaticais na memória porque meu tópico era o léxico. Por certo, porém,
existirá um sistema neuronal de uma certa forma parecido. Contudo,
3. paradigmática acredito que a “memória léxica” e a “memória gramatical” estejam não
associação entre os signos léxicos considerados tanto na sua face de só estruturadas mentalmente de forma diversa, mas creio até que em
significante como na face de significado, isto é: o signo total. Asso­ áreas diferentes do cérebro, ainda que possam ser contíguas. Creio ainda
ciações dessa natureza subdividem-se em três tipos diversos: que a área do cérebro reservada para a “memória léxica” seja substancial­
mente maior que a da “memória gramatical” .

a) aquelas que derivam do código lingüístico como em fogo —fogos


(de artifício);
b) aquelas que resultam da experiência da realidade e do mundo dos
fenômenos (o M 1 de Popper) portanto, de natureza extra-lingüís-
tica como em: luz —fogo, chama, claridade, sol, lua, etc.
c) aquelas que derivam do domínio da cultura (o M 3 de Popper),
em virtude da qual certas noções e os seus designata apresentam-
NOTAS
se espontaneamente associados no espírito do falante: luz —
(artificial) abajur, lustre, luminária; luz - reflexão, refração, onda
luminosa. 1 Do alemão “Wòrter und Sachen” . O pioneiro desses estudos foi H. Schuchardt
(Romanischen Etymologien, 1899). Uma verdadeira escola desenvolveu-se nesse
domínio da Romanística.
II. Além das associações de cunho paradigmático, ocorrem outras, as 3 Além dos trabalhos pioneiros de Gilliéron, os trabalhos etnõlingliísticos de Jaberg
associações sintagmáticas. Essas associações resultam da combinatória e Jud (a partir de 1928), os de Rohlfs (esp. Dtferenciaciòn lixica de las lenguas
freqüente entre lexemas, segundo algumas matrizes gramaticais básicas: románicas, orig. alemão: 1954), os de Manuel Alvar no domínio hispânico, os de
Paiva Boléo no domínio português.
3 Apud Geckeler, Sem ântica estructural y teoria dei campo lixico, p. 206.
1?) V + SN: acender a luz, apagar a luz, em itir luz; 4 Cf. M. T. C. Biderman, Teoria Linguística, p. 155-157.
5 Semântica E structuraly Teoria dei Campo Léxico, p. 208.
6 La m ithode en lexicologia, p. 36.
2?) SN = N+det (prep+N): luz do sol raio 7 “ Science and Linguistics” , p. 5.
\ da lua feix e ^ de luz 8 Cf. Language, Thought and R eality.
9 A p u d Geckeler, op. c it, p. 197-199.
A

144 — Filologia e lingüística Lexicologia — 145

Whorf, B. L., Language, Thought and R eality (org. de J. Cairol). Cambridge, Mass.,
10 "Objective Knowledge” , apud J. Eccles, O conhecim ento do cérebro, p. 202 e 1965.
segs. Whorf, B. L., “Science and Linguistics” , in Readings in Social Psychology. Nova
11 O conhecim ento do cérebro, 1979, p. 205-207. York, Henry Holt and Company, 1958, p. 1-9.
12 Cf. o “Southwestem Project” relatado no livro H. Hoijer (org.), Language in
Culture. The American Anthropologist. VoL 56, n? 6, parte 2, mem. n? 79,
Chicago, 1954. Cf. também os dois livros citados na nota seguinte..
13 Saporta & Bastian (orgs.), Psychoiinguistics. New York, Holt, Rinehart and Wins-
ton, 1961, p. 480-492.
Maccoby, Newcomb & Hartley, Readings in Social Psychology. 1959, p. 9-18. OBÍGINAL
14 “The verbal loop-hypothesis: conventional figures” (1964). | CENTRAL CÓPIAS |
15 Cf. também o capítulo 14, “ Language and Thought” , in Clark & Clark, Psycho­
logy and Language, p. 515-558. CLCK-CEFD-CECÁ
1* Memória humana, 976, p. 7 3.
12 Id.. ib., p. 75.
8 Os grandes dicionários de uma língua contêm de 200.000 a 500.000 verbetes, in­
cluindo-se aí todo o patrimônio vocabular de língua: palavras raras e desusadas,
vocábulos técnicos e científicos, toponímicos, antroponímicos, etc.

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