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Estratégias para alcançar um desenvolvimento infantil integral

Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis


(EBBS): em defesa da primeira infância como agenda
prioritária e pilar do desenvolvimento pleno e saudável
dos cidadãos brasileiros
Strategy Healthy Brasileirinhas and Brasileirinhos (EBBS): in defense of Early Childhood as a priority
agenda and as a pillar of full and healthy development of Brazilian citizens

Liliane Penelloi

Resumo Abstract
Apresenta-se a contribuição da Estratégia Brasileirinhas e Brasi- It is presented the contribution of Strategy Healthy Brasileirinhas
leirinhos Saudáveis – ( EBBS) para construção da Política Nacio- and Brasileirinhos (EBBS) for construction of the National
nal de Atenção Integral à Saúde da Criança ( PNAISC) - iniciativa Policy fort the Health Care of the Child (PNAISC) - an initiative
desenvolvida entre a Coordenação Geral de Saúde da Criança e developed between the General Coordination for Child Health
Aleitamento Materno (CGSCAM)/ DAPES/SAS/Ministério da Saúde and Breastfeeding (CGSCAM)/DAPE/SAS/Ministry of Health and
e o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, Criança e Adolescente the National Institute of Women´s, Children´s and Adolescents´
Fernandes Figueira /Fiocruz. A EBBS defende o fortalecimento da Health Fernandes Figueira/Fiocruz. The EBBS advocates the
agenda nacional que vincula produção de saúde, vida com qua- strengthening of the national agenda that links the health
lidade e cidadania ao desenvolvimento infantil pleno e saudável production, life quality and citizenship to the full and healthy child
na primeira infância. Apresenta suas bases conceituais como a development in early childhood. It presents its conceptual basis
do ambiente facilitador à vida com este objetivo. Sobre os deter- as that of the enabling environment to life with this goal. On the
minantes sociais de saúde considera-se a perspectiva de seu im- social determinants of health, it is considered the perspective
pacto sobre o cuidado /cuidador da criança, vulnerabilidades e of its impact on the care/caregiver of the child, vulnerabilities
potencialidades para um mundo sustentável. Atualmente a EBBS and potentialities for a sustainable world. Currently, the EBBS is
dedica-se à formação dos consultores estaduais de saúde da dedicated to the training of state consultants for child’s health
criança vinculados à CGSCAM, destacando como eixos principais linked to CGSCAM, highlighting as main lines the mapping work of
o trabalho de cartografia dos recursos locais, fortalecimento de local resources, strengthening of groups and transmission of care.
grupalidades e transmissão do cuidado. A apresentação de situa- The presentation of challenging situations experienced by child
ções desafiadoras experimentadas pelos profissionais de saúde health professionals in their territories are discussed in person and
da criança em seus territórios são discutidas presencialmente e à remotely via distance learning platform with continued support to
distância via Plataforma EAD com suporte continuado ao trabalho work, strengthening the inter-federative pact for the formulation
fortalecendo o pacto interfederativo pela formulação e implanta- and implementation of the PNAISC in national territory.
ção da PNAISC em território nacional.
Keywords: Public Policy and Early Childhood; Child development
Palavras-chave: Política Pública e Primeira Infância; Desenvolvi- and citizenship; care and life-enabling environment
mento infantil e cidadania; cuidado e ambiente facilitador à vida

i
Liliane Penello (lpenello@gmail.com) é médica psiquiatra, Mestre em Saúde
Pública (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz)e Coordena-
dora Técnica Nacional da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis.

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Introdução do governo federal, capitaneada pela Área da Saúde,


destacando esse vínculo especial entre o crescimen-

A
Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos to pessoal e o social, pautado no desenvolvimento
Saudáveis – Primeiros passos para o De- infantil pleno e saudável e na importância da Primei-
senvolvimento Nacional (EBBS) surge no ce- ra Infância (no Brasil, do nascimento aos 6 anos, ou
nário nacional como fruto de uma parceria entre o seja, aproximadamente vinte milhões de crianças),
Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz no reconhecendo-a como um tempo diferenciado, mas
ano de 2007. Nesse período, o Ministério da Saúde não encerrado, na produção de saúde e vida com
construía o MAIS SAÚDE10, um programa estratégi- qualidade. As repercussões das vivências deste pe-
co, apresentando um conjunto de diretrizes defini- ríodo da vida e sua presença no mundo adulto, no
das em sete grandes eixos para suas ações. O eixo aqui e agora de nossas capacidades e (ainda) as
voltado à Promoção da Saúde, reconhecido por suas habilidades em realização, de criarmos vínculos, in-
formulações e práticas exitosas – abrigadas no cor- teragirmos e enfrentarmos desafios pessoais e cole-
po da Política Nacional de Atenção Básica com a Es- tivos, num mundo que clama por sustentabilidade e
tratégia Saúde da Família6 – nos convocou à reflexão cuidado, tornou-se o cerne da defesa aguerrida des-
e construção de uma oferta que consideramos de ta agenda: favorecer a infância saudável é favorecer
fato estratégica, dirigida à atenção integral à saúde um mundo sustentável para todos!
da criança. Essa proposta considerava a importân-
cia da explicitação em termos de política pública da
relação entre o crescimento e desenvolvimento de Aportes teórico-conceituais para a formulação
uma nação e de cada um de seus cidadãos. Trata- da EBBS: uma construção desafiadora
va-se da defesa de uma agenda potente no âmbito O conceito de saúde com o qual trabalhamos

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diz respeito diretamente à vida que é fruída com va as oportunidades na vida de uma pessoa e
liberdade, criatividade e felicidade, e não apenas à a possibilidade de gozar de boa saúde, já que
inexistência de doenças e agravos. Devemos a Do- afeta a aquisição de competências, a educa-
nald W. Winnicott23, pediatra e psicanalista inglês, ção e as oportunidades de trabalho.25
uma reflexão que tem nos balizado ao questionar- As pesquisas e a observação atenta desta
se sobre o que versa a vida. Diz o autor: “podemos etapa precoce do desenvolvimento nos mostra que
curar nosso paciente e nada saber sobre o que lhe o bebê não existe como ser isolado, dependendo
permite continuar vivendo... para nós (profissionais completamente do outro para a continuidade de
de saúde) é de suma importância reconhecer aber- sua existência humana: seu caminho rumo à inde-
tamente que a ausência de doença psiconeurótica pendência, sua vivência feliz, e não só a sobrevi-
pode ser saúde, mas não é vida”. Esses aspectos, vência, também dependerá de como esse processo
comumente trabalhados pelos profissionais da área de tornar-se outra pessoa, vai se desenrolar. Edgar
de saúde mental, ganham reforço com as contribui- Morin13 nos recorda que não há indivíduos no co-
ções de John Bowlby. Ambos, em meados do século meço. O singular é uma feliz produção social.
passado (1951), participam da segunda sessão da Reafirma-se, assim, para nós, profissionais de
Comissão de Especialistas em Saúde Mental da Or- saúde, quão fundamental é essa função cuidadora,
ganização Mundial da Saúde (OMS), cujo relatório que nos inclui neste “investimento”; o que define
apresenta esta compreensão: para a EBBS a perspectiva de trabalhar o cuidado
o mais importante princípio a longo prazo com os cuidadores envolvidos nessa grande rede
para o trabalho futuro da OMS, na promoção de sustentação ao desenvolvimento da sociedade
da saúde mental, em contraste com o trata- brasileira – focada nos pequenos brasileiros e bra-
mento de distúrbios psiquiátricos, é o estímu- sileiras, compreendendo o cuidado como eixo do
lo à incorporação no trabalho de saúde pú- que denominamos “ambiente facilitador à vida”17,
blica da responsabilidade pela promoção da e seu reconhecimento e aprimoramento no âmbito
saúde física e mental da comunidade.24 do Sistema Único de Saúde (SUS).
Esta constatação evolui para a explicitação de O cuidado que aqui nos referimos tem tam-
que não há como falar de promoção de saúde sem bém um apelo para além das ações tecnicamente
associá-la a um conjunto de determinantes e a mo- bem executadas, e até mesmo calorosas ou acolhe-
mentos e etapas da vida, quando surgem janelas doras, por parte dos cuidadores. Trouxemos de Leo-
de oportunidade para investimentos de toda ordem nardo Boff a compreensão do cuidado essencial:
com a expectativa de potencializar os possíveis re- é aquela condição prévia que permite um ser
tornos, como mostra o Relatório da Comissão de vir à existência. É o orientador antecipado de
Determinantes Sociais da Saúde da OMS: nossas ações na missão de cuidadores de
Investir nos primeiros anos de vida é uma das todo o ser como seres éticos e responsáveis,
medidas que permitirá com maior probabili- garantindo a sustentabilidade necessária à
dade a redução das desigualdades em saúde nossa Casa Comum e à nossa vida.1
no espaço de uma geração… O desenvolvi- Seguindo a perspectiva ecológica para que o
mento da primeira infância, em particular o desenvolvimento sustentável realmente aconteça,
desenvolvimento físico, socioemocional e lin- especialmente quando entra o fator humano ca-
güístico-cognitivo, determina de forma decisi- paz de intervir nos processos naturais, não basta

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o funcionamento mecânico dos processos de inter- cia dos seres humanos em melhores condições,
dependência e inclusão na busca por um ecossiste- afirma Terra20 que:
ma estável. Faz-se mister que as políticas públicas Tais momentos críticos ocorrem nos primei-
considerem uma outra realidade a se compor com ros anos acompanhadas de uma extraordi-
a sustentabilidade: o cuidado. nária plasticidade cerebral e com formação
O destaque feito a esses conceitos e ideias intensa de trilhões de novas conexões entre
articulados em uma proposta estratégica tem os 100 bilhões de neurônios do cérebro hu-
como objetivo contribuir para a compreensão da mano, sempre em relação com os estímulos
importância da Primeira Infância desenvolvida, vi- ambientais. Em nenhum outro momento do
vida e experimentada em sua plenitude, com direi- ciclo de vida irá acontecer uma situação tão
tos garantidos, incluído neles, as brincadeiras, os dinâmica, mostrando inclusive a relação en-
momentos lúdicos e criativos, e sua relação com tre os fatores psíquicos e sua base material.
a saúde de cada qual e da sociedade à qual se vin- Há o reconhecimento, portanto, de que o am-
culam. Ao aproximarmos esta visão do campo da biente que envolve e inclui o bebê no início da vida
Saúde Coletiva, temos o claro objetivo de fortalecer tem papel estimulante fundamental. Reconhece-se
o que todos nós, profissionais de saúde, sabemos: também que muito precocemente esse “ambiente
não existe produção de saúde apartada dos afe- facilitador”23 coincide com a pessoa de seu cuida-
tos assim como não existe saúde apartada de um dor, quase sempre a mãe, com a oferta de seu cor-
sistema de garantia de direitos democraticamente po, seu psiquismo, suas fantasias e desejos, sua
constituídos, e de políticas públicas, elas mesmas inserção social, histórica e cultural para além do
cuidadoras e favorecedoras à vida com qualidade e aporte genético. E, ainda, os fatores determinantes
bem-estar de seus cidadãos e cidadãs! de saúde, apresentados em leque em uma pers-
Da mesma forma, continuando neste caminho pectiva que vai dos proximais aos intermediários e
de aproximação do conjunto de fatores produtores e distais, no Modelo de Dahlgreen e Whitehead (cita-
promotores de saúde, quando falamos, por exemplo, dos por Pellegrini Filho)16 e que impactam esse cui-
em apego seguro2, nos referimos às chances am- dador em suas singularidades, vulnerabilidades e
pliadas de sucesso para o desenvolvimento pleno riscos – impactam também o bebê que por ele está
do bebê, relacionado ao estabelecimento de vínculo sendo cuidado.
de confiança entre ele e seu cuidador, o que favore- Essa complexa caminhada do desenvolvimen-
cerá o sucesso de sua conexão com o mundo. Essa to humano, e certamente o enfrentamento das ini-
assertiva, reforçada pela produção neurocientífica quidades nesta trajetória, nos mobiliza à proposi-
das últimas décadas nos aponta não só a heredita- ção de ações que gerem as condições necessárias
riedade, mas, principalmente, sua interação com o para sustentar o desenvolvimento infantil em sua
ambiente circundante para que as experiências do plena potência. Temos importantíssimas contribui-
bebê sejam potencializadas e seja exitoso o seu pro- ções de pesquisadores laureados pelo Nobel que
cesso de crescimento e desenvolvimento. atuam no campo do Desenvolvimento Emocional
Retomando as contribuições das neurociên- Primitivo, como Mustard14 e Heckman6, que defen-
cias, quando se referem a momentos críticos em dem cada dólar investido em Programas e Políticas
que são organizadas as funções e competências voltadas para a Primeiríssima Infância, na perspec-
importantes para o desempenho e a sobrevivên- tiva mais efetiva da luta por equidade favorecendo

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a redução da proporção das populações que vivem famílias pobres e a famílias de melhor con-
na pobreza, melhores condições de acesso à edu- dição econômica impactando negativamen-
cação formal, saúde e renda, redução da violência, te o desenvolvimento infantil e comprome-
maior estabilidade social, qualificação do capital tendo não só o futuro das pessoas, mas de
humano, maiores e melhores oportunidades de in- nações inteiras.
serção na economia do conhecimento, sucesso no Quando o foco é o Brasil, ficamos no 77º lu-
caminho civilizatório e capacidade de gerar susten- gar de um ranking de 179 países. Um exemplo que
tabilidade à biosfera para as populações futuras. esclarece esta posição é a taxa de mortalidade de
Alguns exemplos de iniquidades em nosso recém-nascidos em comunidades cariocas apre-
país, com sérias repercussões sobre o ambiente sentar-se 50% mais alta que a de bebês de famí-
familiar, especialmente para mulheres e crianças, lias mais ricas. Constata-se, assim, que também
se deve ao fato de que um quarto destas famílias nas metrópoles o problema é muito grave. Sobre a
vive de um salário feminino. Em artigo publicado no morte de mulheres relacionada à gravidez, nossa
jornal O Globo, de 2 de maio 2010, Rosiska Darcy situação piora: ficamos em 82º lugar no ranking.
de Oliveira traz à tona temas tangenciados e confi- São imensos os desafios a enfrentar, mesmo
denciados na sociedade, como as escolhas sobre a considerando tantos esforços presentes em inicia-
maternidade, as condições da gravidez e do parto, tivas como a Rede Cegonha18, o Plano Brasil Sem
as leis que tolhem ou propiciam liberdades, o temor Miséria12 e o Programa Brasil Carinhoso, além dos
atávico da violência sexual. Afirma a autora: “todas avanços do Bolsa-Família11, na esfera do governo
essas questões tornadas realidade para o corpo fe- federal, com suas pactuações interfederativas.
minino afligem as mulheres, uma vez que elas sa- O compromisso brasileiro com suas metas de
bem habitar um corpo cujo destino é desdobrar-se crescimento e desenvolvimento, tanto em pactua-
em outros”. E vivem, na realidade, o acúmulo de ções nacionais quanto internacionais como as es-
tarefas e funções cuidadoras, em meio a grande so- tabelecidas com a ONU voltadas para os Objetivos
lidão. Ainda segundo a articulista, respeito e escu- de Desenvolvimento do Milênio, produziram resul-
ta é o que aspiram as mulheres para que possam, tados ao atingirmos o ODM 4, redução da Mortali-
efetivamente, contribuir com reformas moderniza- dade Infantil, pelo menos três anos antes da data
doras de estruturas de acolhimento. pactuada (2012/2015). Infelizmente, em relação
Recentemente, em maio de 2015, foram veicu- ao ODM 5, redução da mortalidade materna, todos
lados na imprensa alguns resultados do estudo “O os esforços geraram diminuição significativa, mas
Bem-Estar das Mães do Mundo 2015”, sobre a de- ainda longe de taxas aceitáveis.
sigualdade social e seu impacto na área da Saúde, No caso da mortalidade de mulheres rela-
realizado pela ONG Save the Children3, com dados cionadas à gravidez, tanto quanto na mortalidade
colhidos por várias instituições que reuniram infor- neonatal precoce destacam-se sérias questões pe-
mações sobre saúde materna, mortalidade infantil, rinatais a serem enfrentadas. Ou seja, vinculadas
educação, renda per capita, dentre outros itens. ao pré-natal, parto e puerpério, ofertas pouco qua-
Uma radiografia mundial sobre o bem-estar lificadas das informações fundamentais sobre esse
de mães e bebês observa que: momento da vida da mulher, muito sensível à cultura
permanece uma distância absurda entre a e ao meio ambiente em que vive, as condições de
qualidade de serviços de Saúde oferecida a acesso aos serviços, a não articulação entre eles, o

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não entrosamento entre equipes ou a falta de trei- os seis anos, suas famílias e cuidadores, no âm-
namento das mesmas, a não revisão sistemática bito da Fundação Oswaldo Cruz, por meio de seu
dos óbitos nas unidades de saúde, acabam gerando Instituto Nacional de Atenção à Mulher, à Criança e
inúmeras intervenções que se afastam do parto hu- ao Adolescente Fernandes Figueira com o apoio do
manizado, com cesáreas desnecessárias, complica- Ministério da Saúde.
ções como infecções e hemorragias, e aumento de Segundo Temporão e Penello19, foram elen-
prematuridade dos bebês. Se não bastasse, somam- cados alguns dos principais atores e participantes
se questões legais que levam a mulher a buscar a governamentais e não governamentais para cons-
interrupção da gravidez nos casos não previstos, em trução compartilhada desta iniciativa. A Portaria
condições adversas, longe do sistema de saúde e MS/GM 2.395, de 07/10/2009, formaliza essas
com altas percentagens de morbidade. aspirações e as apresenta como cuidados priori-
Todas essas razões nos alertam não só para tários enfatizando o acompanhamento do desen-
a manutenção de iniciativas como as citadas até volvimento infantil com maior atenção ao início da
aqui, mas também para outras que ainda venham de vida da criança e designa parte desses atores,
a contribuir para mudanças efetivas deste cenário. havendo posteriormente uma ampliação do grupo
Precisamos estar atentos ao que Muñoz Jimenez21 de trabalho que contribuiu com a formulação e es-
coloca com propriedade: truturação da EBBS. Foram considerados, àquela
não se pode negar as capacidades que a in- altura, os marcos legais, institucionais, recomenda-
fância tem para colaborar no desenho dos ções teóricas e técnicas internacionais e nacionais,
seus direitos, na hora de desenvolvê-los nos e experiências exitosas para além da área da saú-
diversos âmbitos da vida cotidiana, onde vive, de para a construção da Estratégia. Esses marcos
“convive” ou “mal vive” [...] a melhor forma de abrigavam ações dirigidas à criança em um campo
proteger a infância é promovendo sua partici- em que a saúde estava incluída como terreno fértil
pação plena na vida social de suas famílias, para incremento de iniciativas voltadas para os as-
ruas, bairros, cidades, escolas. pectos do desenvolvimento emocional, com espe-
Tantas e tão importantes ações, pertencentes cial atenção aos primeiros anos de vida.
a diferentes segmentos e áreas, parecem demandar O caminho percorrido durante o processo de
do Estado brasileiro uma instância única para articu- implantação da EBBS, na Fase 1 (Piloto), pode ser
lação, avaliação, monitoramento, recomendações e mais bem conhecido com a leitura do livro O Futuro
alterações necessárias a este campo de Atenção, de Hoje5. Lá são apresentadas e discutidas as ações
fato produzindo uma agenda intersetorial com provi- realizadas com práticas diferenciadas pelas condi-
são orçamentária adequada e suficiente. ções e peculiaridades locais e pela escolha estraté-
gica dos municípios que a compõem – envolvendo
o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CO-
EBBS: uma trajetória estratégica NASS), o Conselho Nacional das Secretarias Muni-
Cenários como esses estimularam o reconhe- cipais de Saúde (CONASEMS), governantes dos âm-
cimento da importância da criação de uma inicia- bitos federal, estadual, municipal e representantes
tiva estratégica como a EBBS com o objetivo de da sociedade civil. Foi construído, inclusive, um ins-
fortalecer, ampliar, potencializar e construir novas trumento de pactuação entre os gestores, para for-
ofertas de cuidados em saúde para as crianças até malização da implantação da estratégia-piloto. Os

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seis municípios participantes desta pesquisa-inter- • Aumento do protagonismo das famílias na


venção foram: Araripina e Santa Filomena, ambos produção de cuidado, considerando sua de-
no Sertão do Araripe em Pernambuco, Campo Gran- terminação social.
de (MS), Florianópolis (SC), Rio Branco (AC) e Rio • Desenvolvimento do trabalho intersetorial en-
de Janeiro (RJ). Foi possível avaliar o processo de tre diferentes atores e serviços governamen-
implantação da EBBS nessas localidades por meio tais e não-governamentais.
de Pesquisa Avaliativa de quarta-geração coorde- • Aumento do compartilhamento das decisões
nada por equipe do Instituto Nacional de Saúde da entre os profissionais da atenção e da gestão.
Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Fi- • Aumento do compartilhamento de práticas de
gueira/Fiocruz10 que nos balizou no processo nego- cuidado e Ativação de coletivos voltados para
ciado de construção de um modelo lógico, produto produção de ações de planejamento familiar,
valioso desta iniciativa, apresentando-se também gestação, parto, puerpério e desenvolvimento
como oferta qualificada e disponível para apro- infantil até os seis anos.
priação em experiências assemelhadas. Vale notar A experiência bem-sucedida do projeto piloto
que o modelo tem como princípios mais destaca- possibilitou a contribuição da EBBS na construção
dos: ambiente facilitador à vida, sinergia, inovação da proposta de formulação da Política Nacional de
e intersetorialidade. As diretrizes apontam para o Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC), Fase
fomento às iniciativas locais, fortalecimento de 2 do projeto, conduzida pela Coordenação Geral de
vínculos, grupalidades e cogestão. Surgem como Saúde da Criança e Aleitamento Materno do Minis-
dispositivos fundamentais, os apoiadores matricial tério da Saúde com a ativa participação dos esta-
e local, o encontro de apoiadores e os grupos exe- dos, capitais e DF. Percebeu-se a importância de
cutivos locais e nacionais. E a pesquisa avaliativa se lançar mão do apoio institucional para favoreci-
indicou que, desses, os que mais caracterizaram a mento deste movimento de aproximação num terri-
fase de implantação da EBBS nos municípios foram tório continental como o brasileiro. E foram então
respectivamente a intersetorialidade e o fortaleci- contratados, como consultores da saúde da crian-
mento de vínculos, sendo a articulação das ações ça nos Estados, aqueles que desempenhariam na
a estratégia mais utilizada. Há uma referência es- localidade esta função, definindo-se um por Estado.
pecial aos novos modos de gestão do cuidado que Mas também aí percebeu-se a necessidade de um
comportam a inclusão dos afetos, visando à promo- trabalho de alinhamento conceitual e operacional,
ção de um ambiente facilitador à vida ao cotidiano de gestão, para o suporte às ações dos coordena-
das redes de atenção à mulher e à criança de zero dores nos territórios. As diferenças locais, as ques-
a 6 anos. Foram apresentados como efeitos espe- tões técnicas e políticas a serem manejadas de-
rados da implantação da EBBS: mandavam uma solução ousada para contemplar
• Articulação de políticas e adequação de ações os objetivos delineados e os resultados desejados.
ao contexto local para o cuidado integral da Surgiu então a proposta de um arranjo que
primeira infância. definiu três grandes eixos, voltados para a constru-
• Mudança nas práticas de gestão e cuidado/ ção da PNAISC, tendo como foco o trabalho de arti-
produção de novas práticas a partir da inclu- culação desses atores no país: os Eixos de Forma-
são do tema ambiente facilitador ao desenvol- ção, de Gestão e de Pesquisa. Para cada um deles
vimento infantil. foi constituída uma equipe. No caso da Formação, a

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EBBS se encarregou, com as coordenações técnica de mentalidades (desafio), ampliação das rodas de
e executiva, e com a tutoria. conversa, contrato vinculado à demanda operativa
O processo formativo estrutura-se, assim, a do grupo e caixa de ferramentas conceituais (ofer-
partir de três eixos conceituais: o método cartográfi- tas teóricas).
co, as tecnologias grupais e relacionais e a ética do Sobre o Cuidado (Eixo 3) tivemos a oportuni-
cuidado na área da saúde. Sobre o Eixo 1, Cartogra- dade de discuti-lo em momento anterior, podendo
fia, compreendemos como Passos e Barros (2010)15: afirmá-lo como princípio que permeia todo o pro-
um modo de (re)conhecer dada realidade com ca- cesso de formação.
ráter exploratório, implicando no acompanhamento E quanto às Ferramentas utilizadas para
do processo de constituição do próprio percurso que atingir os objetivos almejados, nesta formulação
se vai traçar. E isso não pode acontecer “sem uma construtivista, lança-se mão de recursos tais como
imersão no plano da experiência”, pois “conhecer o trabalho com textos, palestras, rodas de conversa
caminho de constituição de dado objeto, equivale a e técnicas grupais com relatos de experiências e
caminhar com esse objeto, constituir esse próprio discussões sobre situações de difícil manejo ge-
caminho, constituir-se no caminho”. A função Apoia- radoras de impasses – associando aos encontros
dor, nesta compreensão, tem o sentido especial de presenciais, a utilização da plataforma Moodle de
partícipe do cenário em constituição, exigindo atitu- ensino a distância, criando um laboratório de práti-
des que se alternam em presença, implicação e re- cas inovadoras.
serva, como nos apresenta Figueiredo5. A Política Nacional de Atenção Integral à Saú-
A cartografia, enriquecida pelas informações de da Criança, após ter sido apresentada e aprova-
levantadas, e pela sensibilização dos atores do da pelo Conselho Nacional de Saúde e à Comissão
campo, com a participação do apoiador, permite Intergestores Tripartite (CIT), aguarda neste momen-
um retrato mais bem delineado dos equipamentos to sua publicação em Portaria do Gabinete do Minis-
e recursos locais, assim como a formulação de um tro da Saúde do Brasil. Ela considera as diferenças
Plano Territorial mais bem desenhado e negociado regionais brasileiras, a expressão cultural de suas
do ponto de vista de sua execução para atenção necessidades e demandas de saúde com a oferta
integral à saúde da criança. e articulação local dos serviços e suas possibili-
Já a aposta nas grupalidades (Eixo 2) conside- dades de interação com outras áreas favorecendo
ra uma série de elementos que, juntos, favorecerão arranjos inovadores. Ela oferta princípios, diretrizes
as decisões necessariamente compartilhadas, for- e dispositivos que vinculam atribuições e ações di-
talecendo o processo de cogestão em implantação ferenciadas nos sete eixos que a compõem e que
ou em andamento, funcionando como ambiente fa- abrigam todos os níveis de atenção. Ela reconhece
cilitador aos movimentos instituintes e analisador e defende o trabalho intersetorial com todos os seus
destes e dos espaços instituídos. A metodologia Ba- desafios. Mas há algo que a diferencia e que aponta
lint-Paidéia foi bastante utilizada neste trabalho4, fo- para seu potencial inovador: a mudança de menta-
mentando a construção de: espaços potenciais de lidade que transparece em seu texto quando avan-
troca, compartilhamento de experiências, inserção ça com a questão da integralidade e a compreen-
(inclusão) das diferenças, novas experimentações são da provisão para a saúde da criança incluindo
(construção em Grupo), mobilização e corresponsa- a saúde mental. Ela se propõe a trabalhar com o
bilidade com protagonismo dos sujeitos, mudança desenvolvimento pleno da criança que inclui o de-

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senvolvimento emocional no estabelecimento das


bases para uma vida saudável. Afirma Winnicott22
que prover para uma criança é questão de prover o
ambiente que facilite sua saúde mental individual e
o desenvolvimento emocional. O que inclui os adul-
tos cuidadores, aliás, muito bem representados na
constituição e alinhamento da PNAISC. Talvez o me-
lhor exemplo seja sua busca de articulação com as
ações da Rede Cegonha na interface com a saúde
das mulheres, e de suas redes também. O período
da vida de que trata a Rede Cegonha, já se sabe,
vale ouro. Outro exemplo valioso da perspectiva de
provisão ofertada pela política é a convicção de tra-
balhar conteúdos como a empatia na formação de
seus profissionais desenvolvendo habilidades e ca-
pacidades que ampliam a possibilidade de sintonia
nas ações: não se cuida de bebês e de crianças pe-
quenas sem uma identificação com elas, sem per-
ceber, de alguma forma, do que necessitam para
além da compreensão intelectual.
Então, para finalizar, podemos afirmar que há
no corpo da Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde da Criança, uma abertura, uma possibili-
dade nova, traduzida em princípios, diretrizes e es-
tratégias, com ofertas no âmbito do cuidado, que
indicam a expectativa dos bons encontros na reali-
dade que aproxima a Atenção da Gestão e da Pes-
quisa, considerando a possibilidade cada vez mais
concreta da existência de profissionais com tempo,
inclinação e disposição para, quase como as mães,
saberem o que a criança precisa.

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