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João Botelho aborda Álvaro Cunhal

Marta Pinho Alves

Em O Jovem Cunhal, João Botelho lidou com vários textos e combinou-os, entreteceu-
os. Talvez os textos mais óbvios fossem os que Álvaro Cunhal escreveu, em particular a
sua obra ficcional assinada com o pseudónimo Manuel Tiago, alguns deles adaptados ao
cinema (como Até Amanhã, Camaradas, por Joaquim Leitão ou Cinco Dias, Cinco
Noites, por José Fonseca e Costa). Esses textos literários são mencionados em pequenos
segmentos encenados, mas estes segmentos são esparsos, episódicos.

Botelho declara no título do filme que este é um filme sobre a juventude de Cunhal.
Como disse a propósito do filme “os anos de formação de um grande resistente são
impolutos e não suscitam polémica”. A figura de Álvaro Cunhal é complexa, Botelho
não se compromete inteiramente com ela, quer abordar uma dimensão que entende
como consensual. O relato não é feito a partir do ponto de vista de Cunhal, nem a partir
das personagens ficcionais que este cria. A tónica dominante do filme constrói-se a
partir de interpretações, que resultaram de investigação sobre o autor desenvolvida por
académicos, e das leituras e intuições de Botelho que daí decorre.

O texto que domina o relato, e é dito pelos atores João Pedro Vaz e Margarida Vilanova,
configura uma espécie de aula que dá a conhecer o protagonista, uma interpretação que,
não obstante pretender mostrar a construção de um herói, nunca o mitifica (aliás, o filme
abre com uma citação de Álvaro Cunhal que afirma que sempre rejeitou a sua
mitificação). A opção por uma mise-en-scène e uma construção narrativa aparentemente
mais distantes do realismo cinemático convencional, é o que funciona para uma maior
aproximação à verdade.

João Botelho recorda frequentemente esta ideia que aqui se expressa de forma clara. A
sua ideia de realismo passa por mostrar o artifício. Na sua conceção, quanto mais o
cinema se esforça para nos parecer dizer as coisas tal como aconteceram, mais este se
distancia da verdade. Cinema é mentira, é ilusão, e deve ser mostrado como se constrói
essa ilusão. Frequentemente, Botelho recorre à encenação de breves trechos das obras
literárias, mas não permite ao espectador a supressão da descrença, nunca lhe autoriza a
entrada na diegese.

Em várias entrevistas em que João Botelho vai discorrendo sobre o seu trabalho – este é
atualmente o principal analista do seu cinema – salienta a estreita relação do cinema
com as outras artes. A propósito de Só acredito num deus que saiba dançar (exposição e
instalação da autoria de João Botelho), o cineasta declarou “prezo a relação com as
outras artes, porque o cinema é também feito das outras artes” e podemos acrescentar,
com os outros media. Não temos oportunidade aqui para discutir conceptualmente o que
significa arte e o que significa medium, nem para debater os pontos de encontro entre as
formas de expressão e a sua parafernália. Mas assumindo que é mais ou menos pacífico
que falamos de fenómenos similares quando usamos os conceitos interarte e
intermedialidade, estamos, no cinema de Botelho e, em O Jovem Cunhal, em particular,
neste domínio.
O dispositivo da escrita do filme (e da sua leitura pelo espectador) mistura recolha e
exposição de material de arquivo e fontes históricas, encenação, literatura,
intermedialidade, palavra e performance. Combina-se o texto dito pelos atores – e,
como tal, o texto, em primeira instância, que tem uma intenção discursiva –, com a
performance de quem diz, que acentua alguns elementos, que o interpreta, o coloca
numa determinada cadência, com o ecrã em pano de fundo, que enquadra, de modo
didático, pedagógico, a informação que vai sendo transmitida pelos atores, neste caso
enquadrando o ambiente histórico e político, em que se movia o protagonista Jovem
Cunhal, e novas imagens que se sobrepõem às outras camadas de sentido.

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