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42 filosofia / epistemologia

• Nº 5 • V. 2 • CULTURA HOMEOPÁTICA

Homeopatia e seus paradigmas:


semiótico, vitalista e fragmentário

Paulo Rosenbaum*
OUT-DEZ

Abstract
42-60 • 2003 •

Resumo
O autor aborda a evolução do pensamento homeopático através The author discusses the evolution of homeopathic thought
de suas vertentes paradigmáticas. A primeira analisa como o through its paradigmatic points of view. The first analysis how
pensamento hahnemanniano foi redimensionado por the hahnemannian thought was redimensioned for later
comentaristas posteriores e seus impactos e desdobramentos. commentarists and which are their impacts and developments.
O autor então propõe que a homeopatia trabalha com uma The author so proposes that homeopathy deals with a known
P.

episteme já conhecida: o paradigma indiciário ou semiótico. episteme: the paradigm indiciary or semiotic. It’s clear that
Fica claro que a semiologia homeopática sempre usou este homeopathic semiology always used this resource to notice the
recurso para perceber a fenomenologia da singularidade, phenomenology of singularity, through modalities apparently
através das modalidades aparentemente pouco relevantes para a not relevant to the science of diseases, and then apply its art.
ciência das doenças, e com isso aplicar sua arte. Fica claro It’s clear also that the paradigm of vitalist hermeneutic is
também que o paradigma da hermenêutica vitalista é fundamental to sustain logically the method.
fundamental para dar sustentação lógica ao método. At the end, he formulates the hypothesis that homeopathy also
Ao final formula a hipótese de que a homeopatia também se sustains itself in a third pillar: the fragmentary paradigm, what
sustenta em um terceiro ponto: o paradigma fragmentário, is enunciated as vital to the comprehension of what happens in
enunciado como vital para a compreensão do que se passa na homeopathic epistemology. As homeopathic doctors deal with
epistemologia homeopática. Como os médicos homeopatas fragments (the materia medica) that really don’t make sense as
lidam com fragmentos (as matérias médicas) que não fazem a totality, since the experimentations are only collections of
sentido como totalidade, pois as experimentações são apenas different subjects, and as these fragments have to fit in a totality
coletâneas de sujeitos distintos, e como devem se encaixar em – that is the patient – most part of the fragments are only links
uma totalidade – que é o paciente – e a maior parte destes on a lost unit, or at least disarticulated, anything remains unless
fragmentos são apenas os elos de uma unidade perdida, ou ao elaborating qualitative synthesis.
menos desarticulada, nada nos resta a não ser elaborar sínteses It means that the spaces for capturing the sense that us,
qualitativas. symbolic animals – as states Cassirer – do to the interaction
Ou seja, os espaços de captura de sentido com que nós, animais body-environment-mind. Parts of several subjects idiosyncra-
simbólicos – como quer Cassirer – fazemos da interação sies – collected on provings and applied on therapeutic – served
corpo-meio-mente. Partes de idiossincrasias de vários sujeitos to, touching thematic groups, affect the so-called substantial
– coletados nas provings e aplicados na terapêutica – nos compound, making it re-signify its being there. In order to do
serviriam para, tocando agrupamentos temáticos, afetar o that, of course, is necessary to possess oneself: the epimeleia, or
chamado composto substancial, fazendo com que este re- occupying of oneself.
signifique seu estar aí. Para poder fazer isto, claro, há que entrar
na posse de si mesmo: a epimeleia, o ocupar-se de si mesmo. Keywords
Homeopathy. Epistemology, Homeopathic philosy, Hermeneu-
Palavras-chave tic. Vitalism. Semiology.
Homeopatia. Epistemologia, Filosofia Homeopática,
Hermenêutica.Vitalismo. Semiologia.

* Médico homeopata em São Paulo. Mestre e doutorando em Medicina, pelo Depto. de Medicina Preventiva da USP. Diretor
do Depto. Científico da Escola de Homeopatia. Editor da Revista Cultura Homeopática.
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Neste caso estaríamos tentados a indagar quais

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D-us está no particular
Aby Warburg destes mostraram traços verdadeiros e quais estariam
apenas reeditando seus autores e teses prediletas.
Cada médico vivencia a prática homeopática a Perguntamos já sabendo que a precisão desta
partir de certas premissas e perspectivas individuais. resposta tem significado menor, uma vez que Samuel
Estas, por sua vez, podem definir alguns perfis para Hahnemann (1755-1843) efetivamente atravessou
aqueles que a exercem. Neste caso, há os que se várias fases. A indagação que nos faremos doravante é
contentam com pouco, assim como os que buscam nada literalmente de outra natureza: será um dia possível,
menos do que a perfeição terapêutica. Existem também através de um esforço multicêntrico, superar a demanda
aqueles cujo déficit de curiosidade impede a percepção pelo impasse, pela cesura autofágica e sobretudo pela
do significado de temas, que, aliás, nada têm de perifé- falsa polarização entre o excesso de tradição e os
ricos e que na verdade alcançam o coração do método. tentâmens de modernização acrítica que até aqui

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Em função de um vício pedagógico infelizmente predominaram na história recente do movimento
ainda recorrente na educação médica o foco quase obses- homeopático? Temo que ainda não tenhamos amadu-
sivo de muitos está limitado a estabelecer o controle recido para tanto.

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das lesões anatômicas. É impossível deixar de mencionar Vivemos num meio cercado de mitologemas e tão
também aqueles que se denominam hiperpragmáticos. fortalecido pelas tradições orais que se tornou quase
Na verdade, facilmente se convenceram de um limite tão impossível estabelecer uma base consensual para uma
apriorístico para a arte homeopática que se reservaram única homeopatia. Existem, isto sim, homeopatias de
o direito de estabelecer fronteiras clínicas muito diversos matizes.
demarcadas para o que a homeopatia pode ou não tratar. Contudo, o que cabe aqui é ressaltar qual é o
O resultado é que a reduzem a uma positividade fundamento epistêmico que pauta a nossa perspectiva.
estrutural tão esquemática que fica muito difícil E é neste sentido que preferimos dar prioridade para um
compreender qual seu verdadeiro papel na terapêutica. gênero de prática: a homeopatia como medicina do
O diagnóstico pode enfim ser esboçado: o que eles têm sujeito. Devemos advertir que este enfoque é mais do
em comum é a “prática de uma homeopatia agnóstica”1, que uma tendência em desuso. Para muitos, vale dizer
Diante de seu ceticismo fica-se sem saber afinal se a para a maioria dos praticantes da arte, é certamente
prática homeopática pode ser de fato a responsável pouco auspicioso, especialmente em uma era de
pelos resultados que produz ou afirma produzir. enormes avanços da pesquisa básica homeopática,
Não importa o gênero de homeopata, o que nos retrilhar a velha e desgastada questão da antropologia
parece inegável é que a homeopatia como ciência en- médica.Vale dizer, falar de aspectos como o sofrimento
frenta uma crise ainda subestimada pela maioria de seus representado na angústia existencial, usar os sintomas
protagonistas. Há apenas certa consensualidade quan- incomuns como base para uma semiologia médica,
do se trata de reconhecer que a institucionalização da entender o sujeito em sua permanente tensão entre
homeopatia está caminhando adiante no mundo. E cer- imanência e transcendência. Ainda mais se estes forem
tamente avançamos! Resta-nos avaliar: em qual direção? elementos que respaldam o esteio dos procedimentos
E só então definir quais os passos que devemos dar. terapêuticos. Enfim, pensar na saúde como um conceito
A novidade é que o movimento homeopático em permanente re-significação. Passar a cogitá-la como
rompeu este novo século invadido por uma crise grande saúde.
endógena que inspira cuidados distintos daqueles dos Muitos assinalam que a homeopatia deve guiar-
séculos anteriores. Não só um tratamento historio- se pelo que a evidencia: resultados. Não que seja
gráfico inovador e criativo, mas verdadeira redefinição exatamente incorreto afirmar isso. Todavia, a pesquisa
de pauta. Isso porque esta crise tomou uma proporção que desejamos, e que para nós deve nortear o método
existencial, já que estranhamente a maior parte das para aprimorá-la, demanda outra ordem de investigação,
contradições da homeopatia permaneceu incólume. remete-nos à pluralidade metodológica e à necessidade
Este impasse era, até certo ponto, previsível. Decorre de de nos fazer entender como uma outra lógica clínica.
fatores que ultrapassam o escopo deste artigo. Contudo, Para isso, valeria a pena esboçar um pequeno
pelo menos um deles é evidente: a enorme profusão de enredo dos anéis epistêmicos que nos conduziu às
intérpretes para o conjunto da obra hahnemanniana. homeopatias de hoje. Teríamos então que retomar os

1. Expressão sugerida pelo Prof. Dr José Ricardo Ayres, em comunicação pessoal.


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laços históricos que deram base para a homeopatia


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cativa: Hahnemann quer atualizar seu empirismo numa


como uma medicina do sujeito. agenda que é diária e individual e onde o inusitado pode
ser um fator decisivo. Cada caso só pode ser conhecido
Sintomas na homeopatia: o indiciário a partir dos imprevisíveis conteúdos revelados ali, na
Como nos relatam os historiadores, a medicina, hora. Há um método, mas a imprecisão é contabilizada,
strictu sensu, começa com a arte hipocrática e uma das pertence a ele. Não deixa de ser um contraste emble-
razões disso está no fato de que o pai da medicina mático: entra como mais um ingrediente no conflito
ocidental baseou praticamente toda a sua semiologia entre racionalistas e empíricos.
na técnica observacional. Mas, afinal, que técnica era Enquanto o anatomista Morgagni acumula casos
esta? Sabe-se que Hipócrates usava a velha idéia de autopsiados que permitem que ele estabeleça uma lei
Empédocles de estabelecer contraste entre sãos e não genérica de que sintomas são sempre escravos das
sãos, priorizando percepções advindas dos sintomas e lesões, Hahnemann estará disposto a relativizar este
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sinais como indícios que modulariam as primeiras axioma e afirmar que nem sempre é assim: quando se
histórias clínicas. trata do sujeito nada se pode antecipar com precisão.
Com o treino, os sintomas nos induziram a falar Muito menos prognosticar a priori.
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de algo que todavia poderíamos nunca ter presenciado Diante desse retrato, tanto historiadores como
ou visto antes. Cultuamos o aprendizado da arte médicos – por mais teóricos que estes desejariam ser,
diagnóstica e prognóstica, seja numa fase primitiva como insiste o autor italiano Carlo Ginzburg2 – depen-
como caçadores em buscas de pistas mudas para dem de elementos analógicos para concluir, e geralmente
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dominar as presas ou em outra etapa, usando as acabam capturando e compreendendo a realidade a


habilidades cognitivas, sensoriais e intuitivas para partir dos dados indiretos, indiciários, conjeturais,
perscrutar o conhecimento clínico a partir de pistas atualizados na experiência e observação imediatas.
faladas. A origem de nossa natureza mental conjetural, Este autor afirma que, por isso mesmo, nem a
portanto, tem a mesmíssima raiz. história nem a medicina conseguiram se tornar ciências
Na clínica ou em outros gêneros de investigação galileanas. O método experimental que preconizava
o uso de dados marginais para interpretar a rede matematização dos fenômenos e sua reprodutibilidade
fenomenológica, vale dizer, as pistas acessórias e linear simplesmente não poderia ter sua aplicabilidade
sintomas adventícios, não implica que se possa garantida em algumas disciplinas, especialmente as que
determinar algo sem que se tenha tido necessariamente cuidam de unidades e não de coleções.
a experiência vivencial daquele fenômeno. Não se pode Grosso modo, enquanto a positividade da ciência
conhecer antecipadamente qual será o desfecho sem evoca a generalização para definir os universais, a
nunca tê-lo presenciado antes. Hahnemann enfatiza medicina deseja, ou melhor, é forçada já que não pode
muito isso e anuncia uma medicina de base experimen- ensejar nada diferente, a enfrentar o desafio de conhecer
tal para escapar justamente do apriorismo sistemático, o particular. Se o individuum est ineffabile poder-se-ia
de uma medicina baseada em teorias que retirara o concluir que do individual nada se pode falar. E se o
sujeito de cena. evento histórico de uma vida é de fato um unicum tanto
Mas a medicina buscava exatamente o conhe- nos registros documentais como nos eventos que
cimento de experiências acumuladas: reconhecer a caracterizam a patologia, só se pode tornar este registro
realidade para descobrir pistas de eventos não direta- estritamente “científico” com um enorme esforço de
mente experimentados pelo observador. O célebre abstração e mesmo assim afrontando as características
aforismo que enunciava a meta de Giovanni Morgagni constitutivas positivistas do conceito ainda hege-
(1682-1771) – “conhecer antes de ver” – não poderia mônico de ciência.
ser mais explícito. A natureza da homeopatia não Por outro lado Ginzburg nos relata como
contradita exatamente esta busca de inferir as causas Sigmund Freud (1856-1939) limitou-se a resvalar neste
pelos seus efeitos. Disto depende a aplicação da Lei dos achado. O criador da psicanálise demonstrou enorme
Semelhantes na matéria médica e desta a observação interesse num crítico de arte italiano chamado Morelli3.
dos pacientes. Mas reina aqui uma diferença signifi- Tratava-se do médico Giovanni Morelli, que propunha

2. Comunicação pessoal feita pela Prof. Dra. Madel T. Luz durante o Sinapih, Rio de Janeiro, 2002.
3. Que na época assinava seus artigos sob o pseudônimo de Ivan Lermolieff.
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uma lógica investigacional inovadora para analisar e da semiologia médica, foram treinados na observação dos

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identificar obras de arte4. Morelli tornou-se, progres- sintomas aparentemente superficiais, muitos deles
sivamente, crítico e perito em autenticação de telas indetectáveis aos olhos dos leigos e clínicos sem poder
famosas. Mestres da pintura como Ticciano e Botticelli arguto de observação. Infelizmente, Ginzburg comete uma
estão entre os autores que, de obras classificadas como elisão importante e não menciona Hahnemann.Pois deveria.
“sem autoria” ou de “autoria duvidosa”, passaram por A idéia de se reconstituir uma certa totalidade a partir de
uma certificação. Graças aos seus diagnósticos basea- fragmentos aparentemente dispersos não só faz parte da
dos em refugos da observação, uma antiga arte estava teoria médica montada por ele, como é, talvez, sua principal
sendo modelada sob um novo paradigma. contribuição para a medicina.
Ainda segundo Ginzburg, Morelli parece contar Quando Hahnemann monta seu sistema, cabe
inicialmente apenas com seu “olho clínico”, direcio- ressaltar que ele não estava somente preocupado com
nando sua perspicácia não mais para a composição do os sinais visíveis potencialmente desencadeáveis

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todo – que, por definição, age como dissipador de através das substâncias medicinais. Começa a se ocupar
autorias – mas muito mais para a minúcia. Enfoca com a totalidade das manifestações, tais como vivências,
refugos reveladores que os detalhes ocultam, ocupando- sonhos, sensações e toda sorte de sintomas subjetivos,

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se basicamente dos rastros vestigiais que passam obtidas a partir do medicamento. Sua semiologia é, para
desapercebidos nas generalizações. Eis aqui o modelo emprestar uma expressão da propedêutica cirúrgica,“a
epistemológico semiótico ou indiciário. céu aberto”. Por isso mesmo consegue para sua matéria
No caso da análise artística relatada por Morelli médica uma miríade de novos sintomas: objetivos,
significava a valorização de detalhes expurgados da constitucionais e especialmente os sintomas mentais.
observação quase distraída do senso comum: forma das Incorpora toda sorte de sintomas subjetivos, usual-
orelhas, detalhes anatômicos das unhas, minúsculos mente desprezados pela semiologia. Funda um novo
reflexos nos olhos, densidade dos cabelos, sombras e modelo de história clínica.Ataca a episteme que colocava
mímica facial. Este rastreamento da minúcia, das a nosos como o principal objeto da terapêutica. O que
marginalidades compostas, que são afinal constitutivas, significa dizer: sacode o edifício que teve, e ainda tem,
permitiu-lhe a formulação de hipóteses embasadas para papel central de toda terapêutica, o arcabouço mesmo
perscrutar a autoria de muitas obras, antes dadas como da medicina tipificadora ocidental.
irremediavelmente indecifráveis. Aqui chegamos a algo verdadeiramente revolu-
Freud chega a fazer anotações sobre Morelli, cionário. Eis o embrião de uma de suas principais rup-
insinuando que ali estava um elemento de rara impor- turas epistemológicas. O que ele nos diz significa “não
tância e relativamente pouco explorado enquanto às tipificações” e ao mesmo tempo “que se busquem os
recurso metodológico. Sinteticamente: o todo só pode- sintomas imprevisíveis”. Por que faz isso? Teria ele
ria ser adequadamente identificado e analisado sob a percebido a pouca abrangência dos sintomas tomados
perspectiva da trama fragmentária das partes5. Num somente como confirmações dos quadros anátomo-
método interpretativo baseado em resíduos, não se deve clínicos? Ou desconfia da eficiência da terapêutica sob a
buscar as características mais vistosas ou facilmente direção semiológica empreendida até então?
imitáveis, mas traços periféricos reveladores. Esta é a O que Hahnemann prenuncia é o conceito de
nossa deixa para tentar correlacionar aquilo que susceptibilidade inespecífica, somente formulado
doravante será chamado de paradigma indiciário com a oficialmente quase um século depois. Ou seja, descobre
descoberta da valorização dos detalhes nos sintomas, a importância semiológica-terapêutica dos sintomas
vale dizer, das particularidades como guias vestigiais modalizados. Outorga primazia ao rarefeito da clínica.
para a elucidação da totalidade presente. Desvela as manifestações que expressam os distúrbios
Tais dados marginais, segundo Ginzburg, aproxi- de forma imprecisa. Em outras palavras, descobre o valor
maram os métodos de Morelli, Freud e do personagem do inesperado, da estranha fenomenologia do impre-
Sherlock Holmes, criado por Conan Doyle. Os três, dotados visível presente nas enfermidades naturais.

4. Segundo Gizsburg, Morelli, Conan Doyle e Freud, todos médicos, têm em comum a tentativa de ressignificar suas buscas em
medicina ao tentar encontrar nos detalhes as particularidades que elucidam os autores dos fenômenos produzidos, sejam
sintomas clínicos, sinais ou marcas nas telas.
5. Neste sentido, o Departamento Científico da Escola de Homeopatia, junto com o Departamento de História e Filosofia, têm
chamado esta tendência de Paradigma Fragmentário.
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Redundante dizer o grau de inovação dessa Um outro aspecto é que o vitalismo será sempre
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proposta. Passa a incorporar essa orientação como parte objeto de investigação em função da sua grande
indissociável do método. A partir desta diretriz, é natu- proximidade com as questões levantadas pela epistemo-
ral deduzir que não se pode mais prescrever baseando- logia homeopática. No entanto, uma aproximação nossa
se semiologicamente nos quadros sindrômicos pre- com o vitalismo será, fundamentalmente, a de um
visíveis. Ou seja, acompanhando o raciocínio hahne- levantamento hermenêutico: qual é o texto e quais são
manniano, os sintomas patognomônicos das doenças o contexto e o núcleo das proposições vitalistas? Onde
não podem mais ser tomados como os únicos guias e em quais circunstâncias esses textos se encaixam
semiológicos para a terapêutica. A não ser que estes naquilo que se propõe a homeopatia enquanto medicina
sintomas tenham uma nota pessoal, vale dizer aqueles do sujeito?
que apresentam características idiossincrásicas. Esta análise deveria sempre incluir a análise de
Hahnemann ouve atentamente o sujeito em sua uma certa totalidade; ou seja, deve-se necessariamente
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narrativa, anota detalhes pouco comuns nas histórias considerar a totalidade hermenêutica composta pelos
clínicas. Tratam-se daqueles “refugos”sintomatológicos elementos isolados do sofrimento humano individual,
usualmente desprezíveis, na melhor das hipóteses o que só endossa o valor da hermenêutica vitalista para
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“sintomas vagos e subjetivos”.O que importava para uma a homeopatia.


clínica pautada nos nomes das doenças se a vertigem A hermenêutica filosófica tem sido uma das
fazia o sujeito reclinar-se para a direita com frio, se nos correntes que mais sistematiza o problema do sujeito.
sonhos aparecem sensações de queda, se a transpiração Nela estão contempladas as próprias questões do
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produz êxtase, se junto com a dor de cabeça surgisse um humano, além do problema da subjetividade e da
desesperado desejo de limão ou ainda se as crises de intersubjetividade, claramente enunciadas nos pilares
ansiedade eclodissem pontualmente às 17 horas? Estes da linguagem filosófica da hermenêutica. Quanto mais
acabaram por se transformar em meros sintomas se delega poder para que a tecnologia identifique e corrija
parasitas da ocupação médica. certo pedaço de disfunção, buscando elementos para
Nenhum clínico anterior valorizou ou transcre- dar a direção técnica a fazer, menor será a dimensão
veu os sintomas dos pacientes com tal cuidado. A interpretativa na medicina. Ou seja, quanto mais a
diferença é que H. sabia aplicá-los na prática6. medicina estiver sendo baseada em evidências, menos a
hermenêutica estará presente na ação médica. Por outro
Adentrando a medicina do sujeito: paradigma lado, há uma fronteira para esta autolimitação8 do
da hermenêutica vitalista7 método.
Toda atitude de resgatar a questão do sujeito tem Por mais tecnológica ou sofisticada que seja uma
que necessariamente passar pela questão de qual é o terapêutica, o impacto da imagem do paciente sobre o
significado da técnica e da ciência. O que nos levou ao médico é inexorável. Chegam até ele o sofrimento, toda
excessivo tecnicismo biomédico, que está ligado, por a trama da relação transferencial, a mímica da dor, da
uma penetração social bastante significativa, a boa parte angústia, do alívio. E tudo isso, em maior ou menor escala,
dos problemas contemporâneos da aplicação da produzindo maior ou menor interferência, afeta decisiva-
medicina. A homeopatia é uma prática terapêutica mente a arte médica, incluindo condutas e terapêuticas.
válida. É claro que existem várias formas de se aproximar E esta variabilidade de estados enfermos pode ser
desse objeto de estudo. A própria biomedicina deseja testemunhada em qualquer tipo de clínica: dos hospitais
se aproximar das discussões de como inserir o sujeito aos ambulatórios, das neoplasias às enfermidades
nos seus estudos (WHO, Geneve, 1988). psicossomáticas. Numa cultura em que a consulta ainda

6. A verdade é que mesmo os melhores médicos de outros períodos, incluindo os que registravam histórias clínicas bem
completas como, por exemplo, Sydenham, não sabiam como tratar o material oriundo de anamneses minuciosas.
7. Trata-se de uma versão abreviada do projeto de doutorado desenvolvido no Departamento de Medicina Preventiva da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, iniciado em agosto de 2002, sob a orientação do
Prof. Dr. José Ricardo C. M. Ayres.
8. A alegoria usada por Gadamer, inspirada na “Dialética do Esclarecimento”, de Adorno e Horkheimer, é a do retorno de Ulisses:
Este retorno fundamentalmente refere-se à privação, em sua célebre odisséia de volta à Grécia, de todo tipo de influências “desviantes”
e externalidades. Ou seja, este limite autoimposto pela razão, pelo método, seria algo que tira de cena algumas questões que são
fundamentais para o humano. A aplicação da hermenêutica permite resgatar enfim a dignidade do conhecimento.
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está mediada pelo contato inter-humano, o interprete O enfoque hermenêutico permite-nos conhecer

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estará sempre presente. aspectos distintos da homeopatia desde os sintomas,
Quanto mais a biomedicina se autoriza que a sua repertorização, a interpretação das narrativas e das
decisão seja tomada por dados a priori baseados na queixas clínicas, a objetivação da terapêutica dentro da
biotecnologia, mais ela isola o elemento de apreensão relação médico-paciente, tornando a análise de um caso
hermenêutica da realidade individual do enfermo. como um evento único de encontro entre terapeuta e
Portanto quanto mais a medicina for baseada em paciente.
evidências, menos hermenêutica ela será. Por outro lado A hermenêutica não é, portanto, somente mais
na terapêutica homeopática dá-se exatamente o contrá- uma disciplina auxiliar, que proveria um importante
rio, ou seja, a medicina do sujeito caracteriza-se por um arcabouço metodológico para várias outras ciências.Vai
movimento de interpretação da trajetória do sujeito. A ao coração da filosofia, que não é somente o estudo do
totalidade9 deste paciente é então vista tanto do ponto pensamento lógico e o método para inquiri-lo, mas uma

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de vista histórico retrospectivo como prospectivo. Nela, perseguição sistemática à lógica do diálogo.
não há nenhum dado que pode ganhar sentido isolada- O caráter “fusional” de duas subjetividades
mente. As manifestações locais, as febres, os sintomas, produz então um impacto de extrema importância nas

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as síndromes e até a própria entidade clínica sejam relações humanas e nas filosofias. E o instrumento que
agudas ou crônicas, lesionais ou funcionais, fazem realiza esta tarefa é a linguagem:
apenas uma parte de um contexto muito mais complexo
de traços fragmentários que se costuram: a própria A linguagem foi tematizada como um mundo
biografia do sujeito enfermo. de signos cujo modelo foi fornecido pelo
Portanto nos resta tematizar a questão da palavra sucesso científico das linguagens simbólicas
e da linguagem10. São elas que nos colocam em sintonia que foram desenvolvidas pela matemática.
e interlocução com áreas como a saúde mental. São elas (Gadamer, 1996)
que nos despertam para a importância das avaliações
qualitativistas da vida dos sujeitos tratados. Aspectos Em primeiro lugar a hermenêutica coloca que a
que vêm recolocando na ordem do dia estas questões, única forma válida de conhecimento é aquele construído
retomadas para ressignificar aspectos como cuidar e tal qual as ciências naturais. A tese que Gadamer vai
escutar como elementos básicos para promover a defender é a de que a verdade não é necessariamente
compreensão dos pacientes. A recuperação da narrativa sinônimo de método. A aplicação da hermenêutica
como acesso ao sofrimento transformou-se então em permite resgatar enfim a dignidade do conhecimento.
um elemento vital para a medicina de uma forma geral. Precisamente aquela realidade que não se resume à
Trata-se precisamente daquela realidade que não mecânica da aplicação do método científico das ciências
se resume à mecânica da aplicação do método científico naturais ao humano. Para os fatos humanos só essa
das ciências naturais ao humano. Para os fatos humanos, crítica já seria alguma coisa importante para se pensar
só essa crítica já seria alguma coisa importante para se no estudo dos caminhos de validação de uma deter-
pensar no estudo dos caminhos de validação de uma minada prática que justamente se apóia na perspectiva
determinada prática que justamente se apóia na pers- desta subjetividade. Como é o caso da medicina e muito
pectiva desta subjetividade. Como é o caso da medicina particularmente o da medicina homeopática. Podemos
e muito particularmente o da medicina homeopática que nos concentrar bem em um destes aspectos, como, por
se orienta pelo vitalismo. E o vitalismo, o que é? exemplo, pensar o vitalismo como uma hermenêutica.
O vitalismo é uma certa leitura do mundo. Que Nesse sentido, o vitalismo é uma certa leitura do
motivações éticas estavam presentes então e como nós mundo. Que motivações éticas estavam presentes então
como intérpretes nos colocaríamos numa perspectiva e como nós, como interpretes, nos colocaríamos numa
hermenêutica, hoje. Capturar o vitalismo com certos perspectiva hermenêutica, hoje. Capturar o vitalismo
valores e juízos colocados demanda investigá-lo minu- então, que é uma interpretação do mundo com certos
ciosamente e esta é uma das diretrizes para o futuro. valores e juízos colocados, demanda investigá-lo: como

9. Esta totalidade será doravante tratada como a totalidade hermenêutica pois se trata de uma totalidade processual e relacional.
Ou seja, aquela que permite uma aplicação prática e que nos faz identificar uma área de problematização
10. Para Gadamer “Em nosso século o pensamento filosófico deu novos passos ao perceber que não é somente razão e pensamento
que estão no centro da filosofia, mas a própria linguagem. (Gadamer , 1996)
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seria o vitalismo hoje, como é operacionalizado e, muito


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Nosso veículo entretanto é outro. Agimos com


mais especificamente, o que é e qual seria o alcance do fármacos sobre uma vitalidade que está contaminada
vitalismo homeopático? A resposta não é única nem por metáforas obsedantes11. Vitalidade que, uma vez
simples, mas evoca um aspecto que está... aliviada, libera-se como que para poder se dedicar ao
provável atributo máximo de saúde: a epimeleia. Permi-
...para além da medicina futura, tindo que as pessoas enfim restaurem a necessidade de
o paradigma fragmentário. “ocuparem-se de si mesmos”12.
Do que falamos sabemos. Cada sinal excita uma Numa outra polaridade é um equívoco ainda mais
novíssima fisiologia dos sentimentos e sensações, nos reducionista afirmar que nossos medicamentos esti-
dá sentido. O que sabemos é porque falamos. mulam ou modulam a resposta imune. Além da falta de
O que a homeopatia pode oferecer para as pessoas evidências consistentes para tal afirmação, preferimos
não está coberto por nenhuma outra arte terapêutica imaginar que os medicamentos agem porque também
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conhecida. Nós podemos proporcionar ao paciente um entre outros fatores além de interferirem no eixo neuro-
suporte distinto dos demais. Não se trata de classificá- imunoendócrino agem muito mais e primordialmente
la como melhor ou como a única que se ocupa do que é sobre a totalidade que se auto-adjetiva com sensações
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digno de tratar. Sua principal virtude, a marca de exclusi- e percepções, e que uma vez traduzidas e nomeadas pelo
vidade, está enraizada em duas premissas: na aceitação sujeito tratado, permite curá-las ou paliá-las. Não
de que a normalidade pode não ser a mera ausência de prometemos que patologias possam ser extintas,
sintomas, e no caráter qualitativo-analógico de seus apenas observamos muito nitidamente quão abran-
P.

procedimentos. Além disso, sabemos que invaria- gentes podem ser as adaptações e homeostases cria-
velmente sintomas ocultam meta-significados. Isto tivas que cada individualidade tratada é capaz de fazer.
significa que nós não deveríamos estar buscando a mera Se isso nos coloca como uma interface aceita pela
extinção dos sintomas, mas sim tentando compreender biomedicina ou não, trata-se, agora, de um problema um
melhor a parceria destes com o sujeito e suas represen- tanto menos prioritário do que nos séculos precedentes.
tações pessoais. Trata-se, portanto, de uma peculiari- Nosso maior problema com a contemporanei-
dade de nosso cotidiano: estabelecer a aferição minu- dade, contudo, é saber fazer de nosso ofício um trabalho
ciosa de sintomas e seus significados particulares para constante de autocrítica. Nosso compromisso maior na
cada sujeito. pedagogia é privilegiar as novas gerações de homeopatas
Toda nossa diferença pode estar na criatividade sob a perspectiva de renovar o ensino e dar mais consis-
com que os pacientes encontram respostas individuais tência e respeitabilidade para a teoria homeopática.
a partir dos medicamentos prescritos. A contraprova Nossa responsabilidade clínica primeva é atender
empírica está representada na enorme gama de pessoas sujeitos que requerem tratamento oferecendo-lhes
portadoras de síndromes médicas inexplicáveis, suporte, solidariedade e cura.
tratadas por homeopatas todos os dias em centenas de Além disso, atendemos exigências que estão além
países, de forma relativamente exitosa, mesmo quando das pressupostas pelo senso comum: sabemos de
não se estabelece um diagnóstico nosológico preciso. E aspectos cruciais, mas infelizmente ainda totalmente
este é um fiel retrato do realismo da clínica e que ocorre ignotos para a medicina convencional. Este dado só faz
com uma freqüência ainda não mensurada. Por outro aumentar nossa responsabilidade. E isso não nos torna
lado, desvanecendo novamente o equívoco dos que menos clínicos, pelo contrário. Coloca-nos em um estado
querem estabelecer paralelos e comparações precárias fronteiriço que nos permite examinar com muito mais
com a psicanálise, não atuamos sobre o inconsciente acurácia aspectos verdadeiramente essenciais para
mediante palavras. Verdade que rapport e as relações conhecer a saúde humana.
transferenciais estão na agenda de nossa imagem de A medicina vem gerando estudos epidemio-
médicos que lograram preservar quase intacta a hoje lógicos cujo eixo primário gira não só sobre a questão
desgastada relação entre médico e paciente. proteção versus risco. Há uma epidemiologia emergente

11. Expressão usada para designar os conteúdos mentais inconscientes, persistentes e muitas vezes injustificáveis, na biografia do
indivíduo, os quais revelam-se através do estudo das palavras e dos temas expressos nas consultas, textos, cartas, desenhos e
representações, enfim em qualquer material produzido pelo sujeito.
12. Masi Elizalde propõe algo análogo ao afirmar que além da objetivação das metáforas um dos indícios de melhora do paciente é
que ele tenha tempo, priorize ou disponibilize seus recursos para estudar-se. (Comunicação pessoal, 2001)
Paulo Rosenbaum 49

que vem apostando na qualidade como subsídio funda- não soubemos resolver nossas irregularidades estatís-

CULTURA HOMEOPÁTICA • V. 2 • Nº 5 •
mental para acompanhar qualquer coeficiente de confir- ticas. Mas, sobretudo, e principalmente, porque jamais
mação empírica. Mesmo assim, parte significativa da soubemos apresentar os alicerçamentos epistemoló-
comunidade homeopática persiste em um erro histó- gicos sob o rigor desejado. Menos ainda construir as
rico e, sobretudo, estratégico de pensar que o conheci- alianças apropriadas. Jamais os eixos de nossa episteme
mento homeopático somente poderá ser validado sob foram apresentados como idéias claras e distintas.
o cientificismo da positividade mensurável e quantita- Fica sendo necessário então um encaminha-
tivista. Eis aqui mais um alimento para o ceticismo e mento mais consistente da questão: ou atendemos a
uma noção atestadamente ingênua de progresso. coerência redirecionando nossa energia para aprofun-
Ao mesmo tempo, num inusitado paradoxo, dar o estudo de nossas insuficiências como um meio de
médicos convencionais e parcela da própria comuni- interlocução produtiva, ou rendemo-nos à força das
dade científica mostram-se cada vez mais fascinados abstrações propagadas como monopólio metodológico

OUT-DEZ
pela metodologia operativa da qualidade implementada da biomedicina – agora sob a denominação de medicina
pelos homeopatas, em suas vidas clínicas. baseada em evidências – e aceitamos de vez que a
Recentemente argumentando com o pesquisador homeopatia reduz-se, isto sim, a uma neofarmacologia.

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francês Jacques Benveniste sobre qual sua hipótese para Com efeito, há um abismo tremendo entre as
explicar a ação das doses sobre a totalidade do sujeito, expectativas de uma homeopatia que quer se fazer
pude atestar a extensão do descrédito de nossas convic- entender como ela é de fato e a esperança da biomedicina
ções frente aos que fazem pesquisa básica. Isso nos fez de que a homeopatia possa corrigir alguns dos gaps de
rever a urgência de buscar formular melhor nossas sua alegada insuficiência epistemológica. Não seria
dúvidas e necessidades aos que pesquisam. Mostrando, espantoso imaginar que uma sugestão poderia ser, por
por exemplo, que se o unicismo tem os resultados que exemplo, a eliminação do fator individual de sua semio-
tem não é porque adota um organotropismo primitivo logia. Mas então, perguntam-nos, que homeopatia
ou admite que há uma ação específica e altamente restaria desse expurgo? Qual segmento da positividade
especializada sinalizada por cada substância terapêu- homeopática estaria sendo validado?
tica em contato com o sujeito, mas sim porque um sinal Precisamos desenvolver então a capacidade para
medicamentoso bem identificado despertou na vita- conviver de modo relativamente sereno com a impre-
lidade a capacidade de se reinventar. cisão inerente a um modelo que é centrado no sujeito.
E então nos deparamos com o inexorável dilema: Resta saber se nós homeopatas vamos permanecer
devemos ou não colocar a filosofia no front do movi- apostando em nosso próprio ofício que é, ao mesmo
mento homeopático? tempo, impreciso e racional. Como afirma Madel Luz,
Pensamos que não há muita escolha. Chegou a com completa razão, a ciência é um discurso. Mais
vez de um certo pragmatismo na defesa da filosofia especificamente uma colagem de discursos. O discurso
aplicada que está além dos habituais argumentos que nos tem sustentado historicamente é que somos,
defensivos. Encaremos apenas como um fato inexorável por excelência, uma medicina que não se limita a levar
que a medicina precisa se repensar e a filosofia homeo- “em consideração” o sujeito.
pática deve se fazer ouvir neste diálogo. É inegável o O sujeito é a única razão pela qual buscamos um
problema gerado por uma razão tecnológica acrítica que discurso que privilegia as qualidades e as singularidades
é indiscriminadamente aplicada às ciências da saúde. de cada ser tratado. Ele é inclusive, a única razão pelo
Se quisermos buscar interlocuções mais especializadas qual buscamos, contrariando as epistemes exclusi-
é fundamental colocar a teoria homeopática sob o vamente quantitativistas, estabelecer modos peculiares
estatuto epistemológico que ela merece. de encarar saúde e enfermidade. O sujeito, em sua
Por outro lado, não há mais como sustentar uma multiplicidade de formas, constituições, tempera-
doutrina homeopática autoritária e implacável, que mentos, tendências, sensações, predisposições e
reage mal às contradições e aferra-se às repetições sensibilidades é a matéria de sua própria pauta. O sujeito,
textuais como a melhor, vale dizer, a única estratégia. é enfim, heterodoxo, instável, inapreensível, e finalmente
A doutrina deveria limitar-se apenas a elucidar os imprevisível.
referenciais constitutivos de um método. Pois bem: o que são as idiossincrasias: reações
Uma psicanálise do movimento homeopático imprevisíveis. Não fossem as idiossincrasias não haveria
revelaria quase imediatamente que, se há uma parcela a suscetibilidade, como nos esclareceu o homeopata
da ciência que ainda nos ignora, não é somente porque americano James Tyler Kent (1849-1916), e com isso a
50 Homeopatia e seus paradigmas: semiótico, vitalista e fragmentário

homeopatia não poderia se fiar no sistema arquitetado


• Nº 5 • V. 2 • CULTURA HOMEOPÁTICA

perceber seu progresso como descontínuo. Melhora-


por Hahnemann. Afirmamos tudo isso com um propó- mos e pioramos sempre. O importante deveria ser o
sito específico: o de reafirmar certo teor de contradição diálogo permanente, o tempo processual.
entre a aspiração de uma previsibilidade e a prática da Apesar das desconfianças, a elucidação intersub-
homeopatia como medicina do sujeito. Hahnemann jetivamente validada das doses infinitesimais nunca
aspirava uma homeopatia que se assemelhasse ao esteve tão próxima, senão de certa consensualidade, mas
método matemático, é preciso consentir que essa é uma de uma ampla convergência favorável. A rigor estamos
referência idônea. muito próximos de um momento raro e tremendamente
Mas a própria matematização do mundo cien- esperado pela comunidade homeopática: a validação de
tífico – atributo da ciência galileana – não é possível em sua plausibilidade biológica. E esta pode ser uma questão
medicina, como admitiram epistemólogos da estirpe de de menos de uma década. Será de fato um evento
Canguilhem – pelo fato simples de que sempre tratamos importante e histórico. Ainda assim, como vimos acima,
OUT-DEZ

de um sujeito, que é único, irrepetível. Não se pode persistirá uma enorme distância entre este tão esperado
estudá-lo como uma coleção: não fosse este “detalhe” a anúncio e a assimilação da homeopatia como uma
homeopatia estaria repleta de munição epidemiológica medicina do sujeito.
42-60 • 2003 •

para se fazer ouvir e dizer: nós curamos tal patologia, Quando o argumento, como ouvimos recente-
destruímos tais moléstias, esteio das argumentações mente, é de que todas as homeopatias acabam tendo, ao
que representam o ideário da medicina para as evidências. final, os mesmíssimos resultados, urge saber o que é que
Quando aceitamos algumas premissas homeopáticas foi mensurado nestas comparações. Resultados seme-
P.

fundamentais, pois presentes no núcleo duro de lhantes em quais aspectos da patologia? Em quais
sustentação epistêmico, somos, afinal obrigados a aspectos da cura? Aliás, há muito não se produz algo
admitir que a homeopatia é, de certa forma, uma arte que discuta o que é que se quer ver curado. As várias
imprecisa. Mas o que é necessário enfatizar imediata- homeopatias simplesmente não podem ter os mesmos
mente é que ela não é menos séria por isso. resultados, pois aferem, fundamentalmente, aspectos
A diversidade de métodos e a pluralidade de vozes distintos da vida humana. A homeopatia, como medicina
são vitais para construir e preencher os hiatos da do sujeito, não se caracteriza como mais uma subespe-
epistemologia homeopática. Deve haver espaço para o cialidade da arte médica. Mas é sim o próprio espelho de
debate crítico, interlocução criativa e polarizações sua identidade original: a busca do texto original que
inteligentes com outros modos de pensar e praticar a chamamos de sujeito, em contextos variáveis; e sua
homeopatia. Mas não se pode esquecer que quando se aplicação terapêutica a partir daqueles processos
promete que a homeopatia está na seara do matema- verbais relatados nas experimentações. Retoma, por
tizável, da previsibilidade e até da evidência estatística, exemplo, o papel central do cuidado e da integralidade
é necessário ir além do discurso e produzir compro- do atendimento, remete a busca de uma medicina
vações nesta linguagem. Provas que até agora não foram baseada em narrativas.
apresentadas de forma consistente e intersubjeti-
vamente validada, como atestam as várias publicações “Na medida que os médicos homeopatas
mundiais que resvalam no tema. lidam com fragmentos (as matérias médicas)
A medicina homeopática como medicina do que de fato não fazem sentido como
sujeito é o fruto de permanente trabalho de gerações de totalidade, pois as experimentações são
comentaristas de Hahnemann. Um trabalho que tem apenas coletâneas de sujeitos distintos – e
sido árduo, minucioso, onde nada tem valor peremp- como estes devem se encaixar em uma
tório, definitivo ou certificador. É necessário que o totalidade, que é o paciente – e a maior parte
campo homeopático se compreenda na diversidade e destes fragmentos são apenas os elos de uma
não mais lute contra ela. Todas as correntes podem ter unidade perdida, ou ao menos desarticulada,
assertividade, podem ou não ter a eficácia prometida. nada nos resta a não ser elaborar sínteses
Mas tenham elas ou não tais possibilidades é preciso qualitativas. Tratam-se de reduções
percebê-las como produtos, nuances de interpretações conscientes que permitem operacionalizar a
do método. Tudo para optar pela sobriedade analítica e técnica. O registro dos processos verbais
constatar que nenhuma é necessariamente a melhor. A coletados dos experimentadores nos oferece
história da homeopatia, aliás, é pródiga em descobertas as partes necessárias para contrastar com a
que “superam todas as outras”. Destarte, é preferível linguagem dos pacientes.”13
Paulo Rosenbaum 51

O problema deste que bem poderia ser chamado epistemologia complexa no qual o paradigma frag-

CULTURA HOMEOPÁTICA • V. 2 • Nº 5 •
de paradigma fragmentário é como operacionalizá-lo: mentário (Fragmen – Lasca, Estilhaço, Pedaço) é a
se de um lado estamos trabalhando com fragmentos na razão instrumental que permite operacionalizar o sig-
semiologia, na patogenesia e até na montagem do nificado dos nossos micro-nichos. Ou seja, os espaços
mosaico, quando nos propomos a acompanhar a de captura de sentido com que nós, animais simbólicos
“trajetória da atitude vital” voltamos a enfocar uma certa – como quer Ernst Cassirer – fazemos da interação
totalidade funcional unificada. O esforço de adaptação corpo-meio-mente. Partes de idiossincrasias de vários
sígnica que cada um de nós faz para buscar estar melhor. sujeitos – coletados nas provings e aplicados na
Ou seja a partir de meros indícios – pois não há totalidade terapêutica – nos serviriam para, tocando agrupa-
medicamentosa – mudamos a direção interpretativa dos mentos temáticos, afetar o chamado composto subs-
significados, e sabemos isso como? tancial e fazendo com que este re-signifique seu estar
aí. Para poder fazer isso, claro, há que entrar na posse

OUT-DEZ
Pela linguagem de si mesmo: a epimeleia14, o ocupar-se de si mesmo.
Então devemos pensar num conceito do tipo Mas este é o nosso próximo tema.

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13. ROSENBAUM, P. In KENT, J.T. Matéria Médica. op. cit. pág. XIV
14. FOUCAULT, M. La Hermenéutica Del Sujeto. Fondo de Cultura Economica, México, 2002 .

Referências bibliográficas
CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem. Martins Fontes, São Paulo, 2001.
COULTER, H. L. Divided legacy. 2ª ed. Richmond, North Atlantic Books, 1982. 4 vols.
HEMPEL, Ch, J. Organon of the Specific Homeopathy. W. Radde. New York. 1853
KENT, J. T Materia Medica. Ed. Luz-Menescal. Rio de Janeiro, 2002
KENT, J. T. Lectures on homeopathic philosophy. Memorial Edition. Chicago, Ehrhart & Karl, 1929.
KING, W.H. History of homeopathy and its institutions in America. New York, The Lewis Publishing Company, 1905. 4v.
MURE, B. L’ homeopathie pure. Revu, Augmenté et Mis en Ordre par Sophie Liet. Paris, J.-B. Bailliére, 1882.
ROSENBAUM, P. Miasmas. Roca, São Paulo, 1998.
______ Medicine of the subject, 40 lessons in unicist homeopathic practice: based on clinical teaching at the research clinic of the Escola
Paulista de Homeopatia - 2002-2003. In Print.
TREUHERZ, F. The Origins of Kent’s Philosophy. Journal of the American Institute of Homoeopathy vol 77. Nº 4, 1983.

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