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desenvolvimento-pleno

Publicado em NOVA ESCOLA 05 de Agosto | 2020

Competências do século 21

A importância das habilidades


socioemocionais para o
desenvolvimento pleno
Fomos formados em uma cultura moldada pela cognição tradicional, mas ela
é suficiente para preparar as crianças para um mundo volátil, incerto,
complexo e ambíguo?
Mozart Neves Ramos

Crédito: Getty Images

Na minha vida inteira de 36 anos como professor, o mundo girava em torno de uma lógica na qual as
socioemocionais não faziam parte. Sou engenheiro de formação. Venho de um mundo de números e
equações em que a cultura era muito moldada pela cognição tradicional. Nas primeiras vezes que ouvi
falar das competências socioemocionais não acreditava no impacto delas no ensino e aprendizagem.

Conforme fui estudando o tema, fui retomando na memória episódios da minha experiência como
professor universitário. Tive alunos esforçados, estudiosos, mas que muitas vezes não planejavam
adequadamente o problema a ser resolvido numa prova, e partiam logo para as equações que
eventualmente levariam a resposta certa. Um nível de criticidade muito baixo.

Lembro-me de uma prova em que pedia para que a turma calculasse a massa de um corpo que seria
posteriormente empregadoem uma reação química. O aluno aplicou a fórmula corretamente, mas não
entendia porque o resultado encontrado parecia absurdo. A resposta que chegou era que a massa do
corpo seria de 2 toneladas! Por 20 minutos – um tempo que poderia estar usando para se dedicar aos
outros exercícios da prova – ele não parava de me perguntar se a resposta era aquela. Como professor
não procurava interferir nesses casos, mas dessa vez não aguentei e perguntei para ele: você conhece
alguém que pesa 2 toneladas? Ele parou, pensou e disse: é verdade, professor, cometi algum erro!
Simplesmente deixou de fazer uma conversão de unidades

Naquela época eu não entendia muito bem o que era aquilo que muitas vezes impedia estes alunos de
desbravarem aprendizagens e confiarem em si mesmos. Eu demorei para descobrir que faltava a estes
alunos o desenvolvimento de algumas competências tais como a conscienciosidade (capacidade de se
planejar, organizar, autogestão) e pensamento crítico. Ou seja, antes de ir direto para as fórmulas, o
aluno deve pensar, procurar entender o problema, ter uma visão crítica de como deve resolvê-lo e aí sim
empregar as ferramentas adequadas para uma solução correta.

As tão faladas socioemocionais


Mesmo que elas estejam sendo comentadas em diversas discussões educacionais, ainda hoje as pessoas
não estão muito seguras do impacto das competências socioemocionais, seja na aprendizagem escolar,
ou mesmo, para o desenvolvimento pessoal e social. Parte disso porque existe uma ideia errônea de que
precisamos escolher entre as competências socioemocionais e as cognitivas, que elas competem entre si.
Muito pelo contrário, costumo dizer que as socioemocionais são catalisadoras do processo cognitivo.
Pessoas com socioemocionais mais desenvolvidas vão não somente bem em proficiência escolar, mas em
todos os demais aspectos da vida humana. E isso se torna cada vez mais relevante em um mundo cada
vez mais volátil, incerto, complexo e ambíguo (o chamado mundo VUCA). Hoje ter um diploma de nível
superior é apenas ponto de partida, vamos precisar aprender ao longo de toda a vida!

Agora com a pandemia, há uma tendência maior de valorização das competências socioemocionais.
Afinal, os alunos precisam exercer habilidades como abertura ao novo (que se desdobra em curiosidade
para aprender, imaginação criativa e interesse artístico), consciência ou autogestão (determinação,
organização, foco, persistência e responsabilidade), extroversão ou engajamento com os outros
(iniciativa social, assertividade e entusiasmo), amabilidade (empatia, respeito e confiança) e estabilidade
ou resiliência emocional (tolerância ao estresse, autoconfiança e tolerância à frustração). Isso porque só
disponibilizar o conhecimento não é suficiente para garantir a aprendizagem no ensino remoto. No
retorno presencial, também precisaremos colocar essas habilidades em prática.

Apesar disso, não podemos associar que apenas em situações excepcionais – como é o caso da crise
sanitária causada pela covid-19 – as socioemocionais são importantes. Elas são determinantes para se
viver no século 21. Não foi à toa que a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabeleceu 10
competências gerais que todos os estudantes devem desenvolver ao longo de toda a Educação Básica.

Um estudo sobre o impacto das competências socioemocionais na aprendizagem (veja o estudo na


íntegra clicando aqui - em inglês), acompanhou 213 escolas que empregaram as socioemocionais no seu
dia a dia entre 1955 e 2007. O estudo contou com 270.034 estudantes (entre 5 e 18 anos) e encontrou
uma correlação entre programas que usam as competências e o rendimento médio escolar. Numa escala
de 1 a 100, um aluno que se encontra na posição 50ª em relação à turma pode avançar até a posição 27ª
sendo exposto às aprendizagens socioemocionais.

Outros estudos vão mais além, mostrando o impacto dessas competências na vida pessoal e social. Por
exemplo, um estudo feito por James Heckman, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2000, revelou
que crianças que tiveram as habilidades sócio-emocionais trabalhadas na primeira infância têm 44% mais
chances de concluir o Ensino Médio, 35% menos de chance de irem presos até os 40 anos e ganham três
vezes mais do que a renda média das que não desenvolveram as socioemocionais. O fato é: quanto mais
desenvolvidas ainda mais na primeira infância, melhores são resultados sociais e pessoais.

Garantindo o pleno desenvolvimento das crianças


O artigo 205 da Constituição Federal Brasileira aponta que a Educação é um direito que visa “ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho”. É o mesmo princípio do artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). O
desenvolvimento pleno para a cidadania e mundo do trabalho não é só cognitivo, mas também
socioemocional. Em algum momento você pode desenvolver mais um do que outro, mas são
competências que andam juntas e se complementam.

Por isso, costumo dizer que 2020 não será um ano perdido porque nunca desenvolvemos, por exemplo,
tanta resiliência emocional, criatividade e pensamento digital. As competências cognitivas podem ser
recuperadas a médio prazo, como o próprio Conselho Nacional de Educação sugere com a integração
dos currículos de 2020 com 2021 (leia o parecer do Conselho aqui). Tudo que estamos aprendendendo
certamente nos ajudará no desenvolvimento sócio emocional daqui pra frente.

Nunca imaginamos viver uma escola remota, mas foi preciso nos reinventar no isolamento social. Pego o
meu próprio caso pra fazer de exemplo: até março, eu era muito resistente para fazer uma simples
chamada de vídeo ou mexer com ferramentas do tipo. Hoje, uso o Zoom, Google Meets e outras tantas
ferramentas e me sinto à vontade. Se você me perguntar se prefiro dar uma palestra presencial ou
virtual, vou responder que prefiro a presencial porque a atenção que os olhares dedicam, a reação do
público e a interação casual pós-evento são elementos que não temos da mesma forma no online. Mas é
preciso abertura para o novo para viver em um mundo em constante transformação.

Nesse contexto, aquele aluno que é brilhante, mas só estuda sozinho e não sabe trabalhar em grupo, vai
ter dificuldade de se adaptar ou mesmo não vai se adaptar em um mundo VUCA. Por isso, é muito
importante ter desenvolvido as socioemocionais ao longo da sua trajetória formativa. Os resultados,
como disse, são melhores não só na aprendizagem, mas também para viver melhor. Não é à toa que tem
se tornado comum em discursos de empresas dizer que o mercado contrata pelo cognitivo e demite pelo
socioemocional. Nem sempre o conhecimento pelo conhecimento tem um papel tão importante se não
soubemos como aplicá-lo na prática.

Mozart Neves Ramos é titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados
da Universidade de São Paulo (USP) – Ribeirão Preto e membro do Conselho Nacional de Educação.
Engenheiro químico de formação, possui doutorado e pós-doutorado na área, além de grande trajetória
no Ensino Superior. Foi professor, pró-reitor acadêmico e reitor da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Foi diretor de articulação e inovação do Instituto Ayrton Senna. Foi eleito pela Revista Época
como uma das 100 pessoas mais influentes do Brasil em 2008, também foi considerado Educador
Internacional do Ano, em 2005, pela IBC Cambridge. Mozart atuou como secretário de Educação de
Pernambuco, foi presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed) e
presidente-executivo do Todos Pela Educação. Também é autor dos títulos “Educação brasileira: uma
agenda inadiável”, “Educação sustentável” e “Sem Educação não haverá futuro”.

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