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MITOLOGIA E TEMPOS MODERNOS

Do deus mutilado ao bombardeio do Afeganistão

Cyd Marcus

Hesíodo, um dos mais antigos poetas gregos, autor de Os trabalhos e os dias e de Teogonia, parece ter
antecipado, ainda no século VII a.C., algumas das grandes questões que desafiam a sociedade
contemporânea. A guerra movida pelos Estados Unidos contra o regime talibã do Afeganistão coloca em cena
choques de valores que a mitologia grega já conseguia antever em seus símbolos. A origem deste artigo foi
uma palestra proferida em 1999 pelo professor Cyd Marcus na Associação Pallas Athena, em São Paulo. A
palestra foi gravada e transcrita a quatro mãos pelas astrólogas Nadia Greco e Rose Villanova e depois
condensada por Constelar, mas sem perder totalmente a espontaneidade típica de uma palestra ao vivo.
Nadia Greco é autora também de todas as notas complementares.

Grécia, o país dos oráculos

No mundo grego tudo era fenômeno, tudo era interpretado, tudo era sagrado, tudo merecia atenção, tudo era
sinal. Então, acontecimentos que escapavam do real, do previsível, como eclipses, cometas, meteoros,
anomalias no nascimento, imagens que transpiram ou sangram, tudo isso também fazia parte do mundo da
profecia. As sentenças eram dadas por oráculos, centros religiosos que estavam sob a égide de um deus,
como Zeus ou Apolo. O termo oráculo aplica-se tanto à sentença em si quanto ao lugar em que ela é
enunciada. Assim, os grandes oráculos do mundo grego - Zeus e Apolo, Delfos, Olímpia, Dodona e também
Amon, no Egito - eram centros de profecias. Temos em Dodona talvez o mais antigo centro de profecias da
Grécia, onde as adivinhações eram feitas por profetisas que liam o movimento dos galhos das árvores. O
carvalho era a árvore de Zeus. Na antiguidade, no tempo em que a Europa era coberta de carvalhos, era
através desta árvore que a divindade falava, e havia a interpretação dos movimentos.

A palavra mântica (adivinhação) vem do verbo grego manesthae - ser tomado de grande furor. Por exemplo,
as sacerdotisas do deus Dionísio chamavam-se mênades por causa desta agitação. Agitavam-se muito, e a
dança delas - a coreografia dionisíaca - escapa assim do ritmo apolíneo. Apolo tem um ritmo majestoso, mas
o de Dionísio é irregular, é uma coreografia alucinada que lembra sempre transe.

Os gregos admitiam diversos tipos de mântica. Havia a dinâmica, ou por inspiração divina, onde a mântica -
isto é, a adivinhação, a profecia - pode vir por inspiração direta: o deus toma a pessoa e fala, como no caso
das pitonisas, das sibilas. Havia também a piromancia, adivinhação pelo movimento das chamas. Outra linha
era a da mântica por indução, como no caso da oomancia ou ooscopia, e havia ainda a profecia ctônica ou
por incubação. Na profecia por incubação alguém é levado a deitar e a dormir, e os sonhos poderiam libertar
o inconsciente. Baixava um intermediário divino chamado daimon, que depois toma negativamente o nome
de demônio, mas daimon é, originalmente, esse emissário divino que vinha durante o sonho para dar o
toque que depois poderia ser interpretado.

Na Grécia,
muitos
templos
funcionavam
como
centros
oraculares.

Já a necromancia, entre os gregos, era a interrogação da alma dos mortos, muito semelhante à que temos
hoje e que foi criada no século XIX. Há uma passagem na Odisséia em que Ulisses vai ao país dos Sinérios,
que fica perto da região escura dos infernos, o Hades. Ulisses vai chamar os mortos para interrogá-los, e
essa interrogação era muito comum no mundo grego. Havia uma expressão popular da interrogação da alma
dos mortos que os gregos naturalmente procuravam colocar no seu devido lugar: eram os psicagogos, quer
dizer, aqueles que atraíam e conduziam as pessoas em desespero para conversar com os que já tinham
partido.

Os psicagogos diziam conduzir e manipular as almas dos que morreram. Tinha-se um problema, chegava-se
ao psicagogo e este perguntava: você quer falar com quem?... então o psicagogo promovia uma encenação,
e o teatro nasce daí, dessa forma de necromancia: uma das grandes hipóteses da origem do teatro no
mundo grego é que ele tenha vindo exatamente dessas cerimônias que se montavam para chamar os mortos
à vida. É o que faz Ulisses na Odisséia. Ele despeja vinho, e o vinho dá essa energia. As almas tomam força
momentaneamente e falam.

Temos também a quiromancia, ou leitura das mãos. Cheir é mão, daí vem cheirurgus - cirurgião, ou seja,
aquele que trabalha com a mão. Outra variante muito importante no mundo grego é a daqueles que
movimentavam objetos. São expressões da mântica num nível popular, evidentemente. Mais tarde, Santo
Agostinho iria descer o pau nesta gente, dizendo que tais práticas são goetia, ou goeteia (magia negra).

Os escolhidos das musas

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Do deus mutilado
ao bombardeio do Afeganistão
Cyd Marcus
Início | Parte 2

Os escolhidos das musas

Havia várias formas de mântica ou delírio, um delírio divino de acordo com a natureza do deus que tomava
posse da pessoa: a mântica profética é de Apolo, a mântica erótica é de Afrodite e de Eros, a mântica ritual
ou mistérica é de Dionísio, e havia também a mântica poética, ou das Musas.

As divindades tomam posse e então o indivíduo fala, escreve, compõe, e essa é uma idéia importante. O que
nos interessa é a mântica poética das musas, que são nove e são filhas da deusa Mnemosina, a deusa da
memória. O nome Mnemosina significa algo como lembrar-se bem. Teve nove filhas. Musa vem de uma
palavra que significa guardar bem, conservar, por isso museu é um lugar onde se guardam as coisas
dignas de serem conservadas. Assim, as Musas inspiram e guardam as produções superiores que precisam
ser conservadas. A loucura, ou delírio profético produzido pelas Musas, é indispensável à criação da melhor
poesia, porque a criação poética continha para o grego um elemento que não era escolhido ou obtido, mas
dado pelo deus. Não basta ter técnica, não basta ser um hábil versejador, é preciso ter aquele algo mais que
o deus dá para ser verdadeiramente um poeta, e isto vale até hoje para nós. Esta é a distinção que a gente
faz, por exemplo, entre eloqüência e retórica: eloqüente você nasce e retórico você se torna. Retórica se
aprende, mas eloqüente você nasce - o deus assinalou.

A este dom que o deus dá e que torna o poeta verdadeiramente um poeta, e não apenas um bom técnico, o
grego dava o nome de Kidos, uma palavra que significa feito. Pode ser um feito guerreiro, excepcional.
Aquele dedo de deus que baixa em alguém; você por exemplo bate aquele recorde que nunca ninguém
bateu, aquele algo mais no esporte, na arte, na guerra. Por exemplo: Aquiles recebeu o kidos divino. Os
deuses têm o kidos eternamente. De vez em quando concedem-no momentaneamente a um mortal. Dão e
tiram, e é terrível quando acontece, pois a pessoa se sente mais ou menos assim: "pô, recebi, fui assinalado
e de repente eles tiram", é a decadência... Os deuses dão às vezes a um humano esse poder excepcional, e
é quando o humano se iguala momentaneamente ao divino. O grego dará a isso o nome de kidos, feito,
glória, algo que irá fazer com que o lembremos eternamente.

Hesíodo e
a musa -
detalhe de
pintura a
óleo
(Gustave
Moreau,
1891).
Apesar de
totalmente
fantasiosa,
a obra
preserva a
noção de o
poeta como
um
"escolhido"
da musa.

As musas inspiravam o poeta. Mnemosina, a dona da memória, estava por trás disso tudo, porque o poeta
tira do esquecimento. Os gregos diziam que o poeta e a lápide perpetuam o grande herói. As pedras, as
inscrições, estão ali para atestar quem ele foi; mas quem assinala aquele que vai viver para sempre é o
poeta. Foi o que aconteceu com Aquiles, a quem perguntaram: "queres morrer na juventude em plena
explosão do teu heroísmo, ou queres ficar por aí e ter uma morte anônima?" E Aquiles disse: "quero morrer
jovem e ser lembrado para sempre como um herói, o maior de todos". E assim foi feito: Aquiles morre,
explode no seu heroísmo e é até hoje lembrado por todos. É uma idéia com a qual podemos trabalhar. Então
a poesia tem faculdades misteriosas que dependem da graça divina, do kidos. Não é qualquer um que a
recebe, como o poeta. Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, diz que viu as Musas, e na Cosmogonia também
existe a invocação das Musas. Em Camões encontramos a mesma idéia.

Dizia-se que as Musas viviam numa montanha perto da qual havia uma fonte, a fonte de hipocreme, que
brotou quando o cavalo alado da mitologia grega, Pégasus, bateu com seus cascos nessa montanha.

Eis o cavalo como símbolo da inspiração, do psiquismo borbulhante. Por que o cavalo branco? Trata-se de
um símbolo da inspiração controlada, pois só o herói monta o cavalo. Quer dizer, Pégasus simboliza aquela
inspiração controlada, a grande inspiração, ao passo que o outro cavalo ameaçador é aquele que vem
noturno, escuro, aquele cavalo que aparece no sonho. Aqui não se fala em inspiração controlada.

A nostalgia da idade do ouro

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ao bombardeio do Afeganistão

Cyd Marcus
Início | Parte 3

A nostalgia da idade do ouro

Hesíodo coloca para nós todo o seu problema existencial, a luta com o irmão, conselhos. A literatura de
Hesíodo têm o nome de literatura sapiencial. É literatura de conselho, que aparece através de
admoestações. Todas essas obras que procuram encaminhar o leitor podem ser classificadas como um
gênero literário, a literatura sapiencial. Na Bíblia, por exemplo, encontramos dois casos de literatura
sapiencial: o Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos. Em Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo, vamos encontrar
uma profecia escatológica: Hesíodo vai falar do fim dos tempos.

Isso aparece quando o livro trata das cinco idades pelas quais passa ou passará a humanidade. Cinco idades
e cinco raças que se sucedem sempre segundo uma ordem de decadência definida. Há um metal e há uma
raça associados a cada nível, e Hesíodo começa a falar profeticamente de um tempo em que vivemos uma
idade do ouro.

O primeiro nível é a Idade do Ouro, pela qual a humanidade já teria passado. Nessa idade não havia
trabalho, não havia luta, não havia guerra, não havia distinção de sexos, ou entre deuses e humanos
(humanos são os nascidos da terra - do humus). Na Idade do Ouro vivia-se em comensalidade absoluta, os
deuses e os humanos comiam juntos, viviam bem, não havia sofrimento, a morte era um sono, não havia
moléstias, não havia nada. Havia virtude - adict. Os hindus têm os mesmos conceitos e afirmam que, nessa
primeira idade, tínhamos quatro quartos de virtude. A Idade do Ouro era a da virtude total: as pessoas,
quando morriam, transformavam-se em daimones (gênios), isto é, intermediários entre os humanos e os
divinos. É o culto dos ancestrais que aparece em todas as religiões, o culto dos mortos, da família, de toda
essa ancestralidade que fica ali intermediando, eram os daímones.
Os gregos teriam copiado os mitos hindus, que são mais antigos? Não, isso não existe, tais mitos aparecem
em períodos históricos diferentes, ou mesmo simultaneamente, mas fazendo parte de um único inconsciente
coletivo. Será que Xangô, que usa o relâmpago e o raio, vem do mito de Zeus? Será que o pessoal do
candomblé teve contato com a mitologia grega? Não, são arquétipos, são modelos que aparecem aqui, além,
agora, no Egito, e, quando estudamos todos esses mitos, notamos que tudo está relacionado.

Segundo Hesíodo, a era das grandes


realizações tecnológicas, do brilho e
das luzes não é a Idade do Ouro,
mas a do Ferro - a decadência,
portanto.

A partir da Idade do Ouro, há a passagem para uma outra era, sempre no sentido de uma degradação
progressiva: a Idade da Prata. Hesíodo diz que a prata é um metal inferior ao ouro, e aqui surge o que
Hesíodo chama de hybris - palavra que aparece muito na mitologia grega, significando descomedimento,
falta de medida, não física, mas a violência moral, o orgulho, a prepotência, a vaidade. Toda a mitologia
grega está impregnada deste conceito, da luta que temos de travar para segurar a falta de limites. Diferente
da violência física, que, em grego, é bya - força bruta, coação (o "prendo e arrebento") - hybris é o
prepotente, o inflado, o ego poderoso que não vê limites.

Na Idade da Prata, perde-se um quarto da virtude. Esta, que era de quatro quartos, desce para três quartos.
Perde-se um quarto, a virtude diminui, há menos justiça, a hybris aqui é religiosa. Na Idade da Prata, o
humus deixou de reverenciar a divindade, isto é, deixou de ver algo maior do que ele mesmo. A perda da
espiritualidade sempre se revela no mito pela perda do todo, isto é, o homem se afasta da visão do todo. O
ser espiritual é um ser que está ligado à totalidade. Quando, na Idade da Prata perdemos um quarto da
virtude, perdemos exatamente essa integração com o todo. Assim, o homem começa a perder o sentido do
seu próximo, do outro, do que está ao seu lado. É uma violência religiosa, que Hesíodo chama de adkia, falta
de justiça, ou asebeia, impiedade. Há uma perda progressiva do sentido do outro, não mais reverenciamos
algo além de nós mesmos, e isto é a perda do religioso. Não estou falando de religião institucionalizada: tal
perda, antes de ser um fato religioso, é talvez um fato social. Então, Hesíodo diz: - Não sacrificamos mais,
não reconhecemos mais a soberania dos deuses; isto é, não reconhecemos que há algo além de nós, e esta
consciência é perdida. Os que morrem continuam sendo daimones, porém inferiores.

Passamos então para uma terceira idade, a do Bronze, onde a matriz é a guerra, a violência. Os homens já
se inspiram no deus Ares, que tem o apelido de calcheu, isto é, aquele que é do bronze. Então, é o
predomínio do metal, das lanças, da guerra, da força bruta. Perdemos mais um quarto da virtude, dizem os
hindus, agora estamos só com dois quartos da totalidade inicial.

Estranhamente Hesíodo cria a Idade dos Heróis, que seriam de dois tipos: há os que só procuram a
violência, a guerra, cheios de hybris, e para esses há o inferno, vão povoar o Hades. E há os heróis da
justiça, o que leva Hesíodo a fazer a separação: os heróis da justiça são aqueles que vão fazer a guerra
certa e, quando morrem, vão para a ilha dos bem-aventurados .

E, finalmente a última idade, a do Ferro, que estamos vivendo. Hesíodo diz que, quando Prometeu rouba o
fogo dos céus e o entrega aos humanos, rebelando-se contra Zeus, este manda que Hefestos crie uma
mulher maravilhosa chamada Pandora, e que ela desça até os humanos para provocar a divisão entre o
masculino e o feminino.

A partir daí, na Idade do Ferro o humano se divide, e tal divisão trouxe a nossa perdição. E diz Hesíodo que,
nesses tempos que virão, com o fogo que Prometeu nos trouxe, vieram as grandes conquistas da tecnologia,
do poder, da racionalidade, e toda esta história começa com o conflito entre Prometeu e Zeus.

Querem o fogo? Agüentem o tranco...

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Cyd Marcus
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Querem o fogo? Agüentem o tranco...

Fizeram o fogo, isto é bíblico, e no mito grego Prometeu traz o fogo do céu dentro de um galho de figueira. A
figueira bíblica é mesma figueira de Prometeu. É a mesma coisa, é a ficus religiosa, que também vai
aparecer no budismo. Buda tem sua iluminação embaixo de uma ficus religiosa (ou seja, dá à luz uma nova
religião). Na Índia, a figueira é a árvore sob a qual os cavalos se aquietam. E qual é a proposta de Buda?
Segurar os cavalos internos. É a mesma figueira, a figueira do budismo, a figueira de Prometeu, a figueira da
Bíblia, a mesma coisa, ficus, fogo, sobrecarregar o fígado... e por isso Prometeu vai ter o fígado destruído, ou
seja, exatamente esse orgulho que nos tomou quando recebemos o fogo e que nos levou a dizer: agora
podemos tudo. Então podemos ler o mito de Prometeu em várias direções, mas uma delas é esta que
Hesíodo coloca. E ele acrescenta profecias de caráter escatológico: "Oxalá não tivesse eu que viver entre os
homens na quinta idade, melhor teria sido morrer mais cedo, ou ter nascido mais tarde, porque agora é a
Idade do Ferro, inaugurado pelo conflito entre Zeus e Prometeu, e que traz miséria, doença, velhice, morte,
incertezas."

Pandora é a mulher fatal. Então, teremos agora o trabalho, o sofrimento, teremos que pagar, e nada mais virá
da graça dos deuses. Isto é, na quinta idade, na Idade do Ferro, perdemos a graça. A quinta idade instaura
para o humano uma lei universal: temos de pagar para obter alguma coisa, e isso, trazido para dentro das
nossas vidas, é impressionante. Se você quer melhorar o corpo, vai ter de investir disciplina, trabalho; se
quer ter um país socialmente organizado, tem de pagar por isso, não é apenas acordar um dia e dizer que o
real vale uma coisa e o dólar outra...

Sempre há um pagamento, tempo, sacrifício, disciplina, e isto foi instaurado na quinta idade, quando nos
afastamos e perdemos a graça. Agora os deuses não serão mais doadores, mas protetores, na medida do
que você der a eles. Zeus disse muito claramente: daremos a vocês o que vocês derem a nós, na mesma
proporção. A profecia de Hesíodo é de que não haveria mais justiça. Ele deixou muito claro o que viria em
conseqüência da conquista nossa, a conquista do fogo. "Querem o fogo? Te-lo-ão, mas agora agüentem o
tranco..." O fogo trouxe tecnologia, racionalidade, ciência, na Bíblia está claro que comemos da árvore do
conhecimento e largamos a árvore da vida , perdemos o todo, nos separamos, e o fogo trouxe essa
separação.

Conclusão: você luta para ser alguém, para ter consciência, para não ser massa de manobra, e um dia
percebe que só pode melhorar se você arrebentar o ego, destruir a hipertrofia em que você se encontra. Esta
é uma das grandes sacadas proféticas da Bíblia e da mitologia grega. Mas resta ainda falar de Hefestos...

Ao trazer o
fogo para os
humanos,
Prometeu
inaugura uma
era de
crescente
separatividade.
Notas complementares (por Nadia Greco)

Sobre Ares, "aquele que é feito de bronze" - Os historiadores dizem que, para construir o Colosso
de Rodes, Alexandre, o Grande, mandou fundir todo o bronze existente no mundo antigo...

Sobre o simbolismo do figo - O figo é símbolo de útero. Também era símbolo da Deusa na
antiguidade e, conseqüentemente, consagrado a Vênus e utilizado em encantamentos e poções. A
primeira roupa de Adão e Eva foi uma folha de figo logo após eles terem adquirido conhecimento
(referindo-se à encarnação da alma no útero, a roupa da alma.) O figo sempre foi um símbolo
feminino e representante da yoni. Veja-se a propósito a p. 308 de The woman's encyclopedia of myths
and secrets, de Barbara G. Walker.

Pandora - A tradução do mito de Pandora em outras línguas mostra-a com um vaso, e não com uma
caixa, como em português. O vaso tem a forma de um jarro com duas alças, lembrando o útero e suas
trompas. Por isso é extremamente importante manter certos conceitos e símbolos intactos, para que
seja entendido como os antigos viam e pensavam a humanidade. Pandora é vista como uma figura
negativa, mas o que ela na verdade carrega na sua "caixa" somos nós, a geração humana. De forma
alguma este mito implica a idéia de que a mulher introduziu o mal na humanidade!

Ilha dos bem-aventurados - Na Idade dos Heróis, aqueles que lutam a "guerra certa" vão para essa
ilha, que lembra o Walhala dos Vikings.

Árvore da vida - Tem uma conotação de imortalidade.

Hefestos, o precursor da era industrial e do fascismo

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Cyd Marcus
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Hefestos, o precursor da era industrial e do fascismo

Hefestos é uma divindade grega, o deus da forja, da metalurgia, das barras incandescentes, deus dos nós,
deus que produz maravilhas em cima do fogo. Hefestos é o deus do elemento ígneo aplicado à produção de
bens materiais. Os gregos, digamos, doaram esta divindade para falar do poder de criar coisas através do
fogo, isto é, a industrialização, o progresso tecnológico e tudo mais. O que Hefestos faz ninguém tira,
ninguém rompe, ele é o deus que cria armas ofensivas e defensivas, cria robôs, é o ourives divino. Porém
Hefesto é um deus mutilado, tem um defeito nos pés, é coxo, da mesma forma como as chamas são
claudicantes. A chama vai para lá e para cá, e a ambigüidade da chama corresponde a Hefestos. O fogo
pode levar para cima ou se transformar no inferno - a tecnologia e a ciência. E mais: Hefestos tem os pés
virados para trás, mas é um deus que produz coisas maravilhosas, senhor do elemento ígneo. Ele vive nas
regiões vulcânicas, nas ilhas, domina esta força toda que está nos vulcões, é um modelo do homo faber que
viria, da futura era industrial. O grego já cantou a bola quando criou este deus.

As grandes
paradas
militares
nazistas eram
um recurso de
fascinação,
palavra que
vem de fascys,
significando
enfeixar, atar.

Mas cuidado com as maravilhas que Hefesto cria: elas nos fascinam, e a palavra fascínio vem de fascys,
que significa enfeixar, prender, atar. Todo mundo preso, atado, e desta palavra sai fascismo também. Então
é a tecnologia fascista - no sentido etimológico - que hoje manda no mundo, esta tecnologia que embasbaca,
que nos espanta, e da qual não podemos nos libertar mais. É maravilhosa e infernal ao mesmo tempo. A
tecnologia, que viria para unir, separa, e tal ambigüidade é Hefestos, um deus que cria as maravilhas que nos
levam para diante mas tem os pés voltados para trás, não esqueçam disso. Hefestos é um deus amoral,
aético, e esse é outro caráter da ciência moderna: a ética absurdamente amoral do cientista que não
questiona a maravilha que tem de produzir. Numa passagem do mito, Hefesto vai acorrentar Prometeu nas
rochas, e dizem para Hefesto - "Mas é um outro deus que você está prendendo, Prometeu é parente de
Zeus, é uma divindade..." , e Hefesto responde: "Olha, eu não quero saber disso, meu negócio é que recebi a
incumbência para prender, eu vou prender..."

Hefesto é o cientista que recebe a ordem e vai gerar aqueles horrores, átomo, bomba, clonagem e todas
estas experiências que vêm por aí, que são produzidas por absurda falta de ética. Para a ciência e a
tecnologia bastam a perfeição técnica, cientistas não entram em cogitações, a perfeição técnica também
bastava para Hefestos, maravilha. E essa maravilha prende, fascina e você não se liberta mais. Os gregos
enxergavam a tecnologia que viria, e hoje a tecnologia vai bem, obrigado, o mundo produz coisas
maravilhosas, mas a qualidade de vida piora proporcionalmente, com mais violência, mais agressão. Que
está acontecendo? Por que 62% da população americana chegaram à droga? Temos Bill Gates, o apóstolo
da nova era, temos maravilhas tecnológicas, mas isso não satisfaz, não dá tranqüilidade, não melhora, não
cura... o que está acontecendo?

Hefestos está por trás disto, os pés para trás, a sua dupla natureza, o defeito físico compensado pela
produção maravilhosa. Hefesto é o conflito do saber fazer e do saber viver. A, educação hoje está preparando
toda esta moçada para o caminho da tecnologia. Se um moleque de quatro ou cinco anos já não mexe em
computador, ele está fora. Não vai ser competitivo. Preparam-se indivíduos, mas não seres socialmente
aptos. Investe-se no indivíduo como se fosse um cavaleiro armado: computador, karatê, é isto que você quer,
seu filho tem que ser altamente competitivo, todo pai quer que ele vá ser bonzão lá na frente. Agora pergunte:
o que que ele acha do compromisso social? Zero, nenhum. Hesíodo cantou a bola das eras industriais que
viriam: cuidado com a tecnologia, ele apontou...

Perder o presente e viver de esperança

Fascismo - Mussolini, líder fascista italiano, assim como sua mulher, morreram e foram atados pelos
pés em praça pública ao término da Segunda Guerra Mundial. Os pés são símbolo do signo de
Peixes, que tem relação com a ilusão, a fascinação.

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Cyd Marcus
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Perder o presente e viver de esperança

No mito, quando a jarra que Pandora trouxe liberta todos os males, fecharam a jarra e seguraram a
esperança, e esta foi a pior coisa que Zeus poderia ter feito aos humanos, porque os humanos perderam o
presente e agora vivem sempre pensando no futuro. A maior desgraça que nos aconteceu é a Helpys grega,
viver de esperança, em vez de viver o aqui e o agora.

A noção de esquizofrenia também surge na Grécia através de um deus, Cronos, da segunda dinastia divina -
a primeira é Urano e Géia, a segunda é Cronos, que castra seu pai, Urano. Tal castração, na mitologia, tem o
nome de esquizogenia, ou seja, separação, corte; esquizo em grego é cortar, fender, separar. Assim, com
Cronos nos separamos do todo. Daí para a frente vamos perder, viemos para a matéria. Cronos inaugura a
segunda dinastia, que traz os Titãs, e é neste reino que aparecemos nós, os humanos.

O grande segredo dos deuses com relação a nós é que eles sabem que estamos sempre nos dividindo. O dia
em que aprendermos a não nos dividirmos mais, seremos deuses. Só isso. O dia em que o judeu e o árabe
perceberem que vêm do mesmo tronco semita e não se deixarem mais manipular pelos americanos, acaba a
divisão. A divisão veio exatamente com a conquista do fogo, é o preço que temos que pagar. Adquirir a luz é
o nosso processo de individuação, e você paga um preço elevadíssimo para se individualizar. Você se separa
do outro, porque o intelecto faz você passar na frente, ele não põe você em relação ao outro. O que põe
você em relação com o outro é a via espiritual.

Cyd Marcus é professor em São Paulo.

Como
Hefestos, a
sociedade
tecnológica
criou
maravilhas
a partir do
domínio do
fogo, mas
falta-lhe o
sentido
ético.

Nota sobre Hesíodo:

Provavelmente contemporâneo de Homero, o poeta grego Hesíodo parece ter vivido no século VII
a.C. Dele chegaram até nós dois longos poemas - a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias - que são
importantes fontes de informação sobre as concepções grega a respeito do mundo, da relação entre os
deuses e os homens e da evolução da sociedade. Sobre Hesíodo diz Otto Maria Carpeaux em sua
História da Literatura Ocidental, volume I (RJ, Edições O Cruzeiro, 1959):

A Teogonia revela crenças religiosas pré-homéricas: a narração das cinco idades da Humanidade, da
idade áurea até a idade do ferro, está imbuída de um pessimismo pouco homérico, e os mitos do caos,
da luta dos deuses, dos gigantes, de Prometeu e Pandora, cheiram ao terror cósmico, próprio dos
povos primitivos. Ao leitor de Hesíodo, vem-lhe à mente a tenacidade com que as camadas incultas
da população guardam as tradições religiosas, já esquecidas pelos "intelectuais". O pessimismo é o
da gente simples, laboriosa, sem esperanças de melhorar as suas condições de vida. Os Trabalhos e
os Dias (...) é uma espécie de poema didático, que estabelece normas de agricultura, de educação dos
filhos, de práticas supersticiosas na vida cotidiana. (...) camponeses que se queixam da miséria e da
opressão e cujo ideal é a honestidade, cuja esperança é a justiça. Hesíodo (...) parece representar o
pessimismo popular (...).

Longos trechos dos poemas de Hesíodo podem ser encontrados vertidos para o inglês em sites como
o Online Medieval and Classical Library, da Universidade de Berkeley.

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