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História

Qual a validade de tratarmos aqui do conceito de História quando aparentemente essa é a


primeira coisa que o professor aprende durante seus anos na universidade? Na verdade, os
significados da História estão em constante mutação e é preciso que o professor leve a
reflexão em torno dessa constante mudança para a sala de aula, fornecendo instrumentos
para que seus estudantes possam compreender a complexidade da História e a dificuldade de
se responder à pergunta “O que é História?”. Essa pergunta não é nova, e cada corrente de
pensamento procura dar sua própria resposta. Por isso, não é possível oferecer uma definição
fechada para esse conceito. O mais importante é estabelecer as linhas gerais do debate em
torno da natureza da História.

Desde os iluministas, com sua visão da História como progresso da humanidade, passando
pelos “positivistas”, ou historiadores da escola metódica, que viam a História como a tradução
objetiva da verdade, do fato, até a Nova História, que prefere não oferecer uma explicação
única para a questão, todo historiador se defronta com o problema inicial de definir seu
próprio ofício. Essa questão passa muitas vezes pela definição ou não da História como ciência,
o que oferece dificuldades, pois desde o século xix, até hoje, a própria definição de ciência está
em constante mutação.

Nesse debate, existem aqueles, como o historiador brasileiro Ciro Flamarion Cardoso, que
defendem a cientificidade da História. Segundo ele, os principais argumentos contra essa
cientificidade vêm da crença de que a História se ocupa de acontecimentos únicos, que não
são passíveis de lei, ao contrário da ciência. Mas para Flamarion, desde o materialismo
histórico e Annales, a História deixou de estar voltada para fatos singulares e passou a
abranger estruturas globais sujeitas a regularidades, como a vida econômica e as estruturas
sociais e culturais.

Por outro lado, historiadores adeptos da Nova História Cultural, abordagem criada no final do
século xx a partir da perspectiva cultural da Nova História francesa, defendem a proximidade
da História com a Arte, com a ficção, e não com a ciência. Entre esses, talvez o mais polêmico
seja Hayden White. Para ele, a História é um gênero da literatura. Ele valoriza a escrita e a
narrativa historiográfica e deita por terra a cientificidade da História.

No entanto, não basta discutirmos o caráter científico da História para construirmos nossa
concepção da disciplina. Um dos trabalhos clássicos sobre a questão é o do historiador inglês
E. H. Carr, Que é História?. Carr não oferece uma resposta absoluta, pois para ele a definição
da História depende da visão que cada um tem de sua própria sociedade e do tempo em que
vive. Uma de suas maiores preocupações gira em torno do fato histórico, inclusive
diferenciando fato e fato histórico: para ele, o que separa um acontecimento qualquer
(qualquer pessoa atravessando o riacho italiano Rubicão) de um fato histórico (Júlio César
atravessando o riacho Rubicão) é a importância que o historiador dá a um fato e não a outro.
Ou seja, um fato só se torna fato histórico mediante a interpretação do historiador. Assim, o
ditado de que o fato fala por si, para Carr é incorreto: os fatos só falam quando questionados
pelo historiador. Nesse sentido, o sangue vivo da História seria a interpretação e não o fato. E
a interpretação, por sua vez, seria oriunda da relação entre o historiador e os fatos. Apesar de
ter escrito sua obra em 1961, as concepções de Carr sobre a História são ainda bastante atuais.
Também Paul Veyne, em sua obra Como se escreve a História, escrita na década de 1970 e de
grande circularidade no Brasil, se coloca a mesma pergunta: O que é História?. Não chega
também a oferecer uma definição para a História, mas afirma o que, para ele, ela não é: a
História não é uma ciência, não tem método e não explica. Para Veyne, História é narrativa, só
que com personagens reais. E mesmo que baseada em fatos e documentos, não pode alcançar
o realmente acontecido devido à natureza parcial dos documentos e dos fatos.

Mas Veyne não chega a dizer que História e ficção são a mesma coisa. Para ele, a diferença é
que a História se preocupa com a verdade, enquanto o romance se preocupa com a beleza.
Nesse sentido, a História teria como assunto só o que realmente aconteceu. Mas, com exceção
desse ponto, a visão de Veyne da História é bastante relativista: tudo é história, então, para
definir os fatos a serem trabalhados, a escolha e o critério do historiador são indispensáveis. A
História é subjetiva porque, como tudo é história, a História termina sendo o que foi escolhido
pelo historiador.

Além de procurarem definir História, os historiadores se preocupam também com conceitos


atrelados a ela, como fato histórico, tempo e historicidade. Podemos observar algumas dessas
preocupações presentes na Nova História, em pensadores como Jacques Le Goff. Ele
questiona, por exemplo, a historicidade, termo que diz respeito a uma qualidade que os
homens de determinado período compartilham uns com os outros, uma função comum a
todos que pertencem ao mesmo tempo. O conceito de historicidade indica o próprio pertencer
de cada indivíduo a seu tempo, e existe para toda a espécie humana. Logo, não há sociedades
sem história e a própria história tem uma História, visto que o ato de contar, descrever e
analisar o passado depende da sociedade e do período de cada contador. Tudo na História
deve ser pensado em seu tempo, isto é, a historicidade. O que nos leva à questão do tempo
na História. Antes de tudo, concordarmos com Vavy Pacheco quando ela afirma que a função
da História é fornecer explicações para as sociedades humanas, sobre suas origens e as
transformações pelas quais estas passam. Essas explicações, por mais diversas que sejam, são
feitas sempre sobre uma base comum, o tempo, a temporalidade. Essa definição está atrelada
ao pensamento de Marc Bloch, para quem a História é a ciência dos Homens no tempo. E se
tal definição de Marc Bloch não é consenso (visto que muitos discordam da cientificidade da
História), pelo menos tem o mérito de incluir o tempo, esse sim, indispensável a qualquer
definição de História.

A concepção de História de Marc Bloch é uma das mais influentes do século xx. Ele foi
fundador da Escola de Annales e valorizava intensamente a interdisciplinaridade e a
aproximação da História das outras ciências humanas, como a Economia e a Sociologia.
Acreditava que a História não era uma ciência qualquer, pois tratava de narração e descrição,
enquanto a maioria das ciências tratava de classificação e análise. Mas isso não o impediu de
defender a validade científica da História e de defini-la como a ciência do Homem no tempo.
Para ele, a verdade era um dos princípios fundamentais da História, algo que o historiador
deveria sempre procurar identificar. Caberia, assim, ao historiador a tarefa de julgar os fatos,
tentando alcançar a verdade. Fica mais fácil compreendermos sua postura quando observamos
um exemplo famoso dado por ele: se o vizinho da esquerda afirma que duas vezes dois são
quatro e o vizinho da direita afirma que duas vezes dois são cinco, não podemos concluir que
são quatro e meio. Em outras palavras, não devemos buscar meio-termo com a verdade.
Peguemos também a visão daquele que é considerado hoje um dos maiores historiadores
vivos, Eric Hobsbawm. Materialista histórico em um momento em que as tendências da
História parecem se voltar cada vez mais para a Linguística e a Teoria Literária, a importância
de Hobsbawm no cenário historiográfico mundial demonstra o alcance de sua visão, por meio
da qual a História tem sentido e função políticas. Para ele, o passado e a História podem e são
usados para legitimar ações do presente, ações políticas de diferentes cunhos, nacionalistas,
étnicos etc. E nesse caso o historiador não pode se furtar a criticar seus maus usos. Para isso, é
fundamental a percepção da diferença entre fato e ficção.

De Ranke, com sua História objetiva, até Hayden White, que considera a História um gênero
literário, vai uma grande distância: a distância histórica propriamente dita, visto que Ranke
escreveu sua obra no final do século xix e White, no final do século xx. Assim, o próprio
conceito de História é histórico, algo que muda com o passar do tempo, e como tal precisa ser
constantemente revisto. Isso não quer dizer que temos necessariamente de concordar com
White porque somos seus contemporâneos. A obra de Hobsbawm nos mostra isso, que há algo
talvez de mais imutável na natureza da História, ainda que as interpretações mudem
constantemente.

Para a pergunta “o que é História?” não existe uma resposta fechada ou simples, e muitos são
os historiadores que têm contribuições a dar. E todos os professores e historiadores devem
procurar responder a essa pergunta. Se concordarmos com Bloch sobre o fato de que a
História situa a Humanidade no tempo, dando referências às ações dos indivíduos, e com
Hobsbawm, que defende o papel político do historiador, iremos entender que o professor de
História tem papel político dos mais importantes em nossa sociedade, papel ao qual não pode
se furtar, mas que muitas vezes não percebe, o de formador de consciências. Segundo Jaime
Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky, em História na sala de aula, um dos papéis do professor é
servir de intermediário entre o patrimônio histórico da humanidade e o universo cultural do
aluno, que integra esse patrimônio. Tal percepção corrobora a afirmação de Leandro Karnal,
na mesma obra, acerca dos métodos didáticos em uma sala de aula de História: uma aula pode
ser ultrapassada mesmo contando com os mais modernos recursos didáticos. Mas também
pode ser inovadora só com professor, giz e quadro negro. Pois o que conta é a concepção de
História possuída pelo professor. Assim, o primeiro passo para a reciclagem, a capacitação, a
renovação do profissional de História é a definição por ele de sua concepção da história.

Ver também

Arqueologia; Ciência; Discurso; Fonte Histórica; História Oral; Historiografia; Iconografia;


Iluminismo; Interdisciplinaridade; Memória; Mentalidades; Pós-modernidade; Pré-história;
Relativismo Cultural; Tempo.

Sugestões de leitura

BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

BORGES, Vavy Pacheco. O que é História. São Paulo: Brasiliense. 1981.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1992.
CARR, E. H. Que é História? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 5. ed. São Paulo:
Contexto, 2003.

HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

HUGUES-WARRINGTON, Marnie. 50 grandes pensadores da História. São Paulo: Contexto,


2002.

KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo:
Contexto, 2003.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1994.

PINSKY, Jaime (org.). O ensino de História e a criação do fato. 11. ed. São Paulo: Contexto,
2004.

VEYNE, Paul. Como se escreve a História e Foucault revoluciona a História. Brasília: Ed. UnB,
1998.

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