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OLHA QUEM ESTÁ FALANDO

Alguém já repreendeu você por não estar prestando atenção? E você já


respondeu: “Desculpe, estava viajando“? Bem, se estava “viajando“, onde estava,
então? E como voltou?
A Terapia de Aceitação e Compromisso responde a essas perguntas ensinando a
reconhecer duas partes distintas do eu (self): o “eu pensante” e o “eu observador“. O eu
pensante é a parte de você que pensa, planeja, julga, compara, cria, imagina, visualiza,
analisa, recorda, devaneia e fantasia. Outra denominação mais comum é “mente”.
(...) o eu pensante não é assim tão fácil de controlar. Não é que não tenhamos
controle o fato é que possuímos muito menos controle do que os experts nos fazem crer.
O eu observador é fundamentalmente diferente do eu pensante. O observador é
perceptivo, mas não pensa; é a parte responsável pelo foco, pela atenção e pela
consciência. Embora possa observar ou prestar atenção aos seus pensamentos, não pode
produzi-los. Enquanto o eu pensante pensa sobre sua experiência, o eu observador
registra a experiência direta.
Quantas vezes você não estava concentrado numa tarefa e se distraiu com um
pensamento do tipo “espero não pôr tudo a perder”?
Imagine-se também admirando um pôr do sol magnífico. Há momentos em que
sua mente está tranquila, quando apenas observa o espetáculo à sua frente. Este é o eu
observador em funcionamento: observando, não pensando. Esses momentos de silêncio,
porém, duram pouco. O eu pensante cutuca: “Nossa, olha só que colorido! Isso me
lembra do que vimos nas férias do ano passado. Queria estar com a minha câmera.” Daí,
quanto mais atenção o eu observador dirige aos comentários do eu pensante, mais você
perde o contato direto com aquele pôr do sol.

PENSAMENTO VERSUS OBSERVAÇÃO

Feche os olhos por um minuto e observe o que sua mente faz. Fique alerta
diante de quaisquer pensamentos ou imagens, como se fosse um fotógrafo da vida
selvagem à espera de que um animal exótico desponte em algum ponto da
vegetação. Caso pensamentos e imagens não apareçam, continue à espreita; mais
cedo ou mais tarde algum vai dar as caras, posso garantir. Repare onde
pensamentos e imagens estão localizados em relação a você: à frente, acima, atrás,
ao seu lado ou no seu interior? Passado um minuto de exercício, abra os olhos.
Você terá experienciando dois processos distintos em andamento. Primeiro, o
pensamento- em outras palavras, surgiram pensamentos e imagens. A seguir, a
observação; ou seja, você foi capaz de perceber ou observar esses pensamentos e
imagens. Conforme esperado, esse pequeno exercício lhe deu uma noção de distância
entre você e seus pensamentos: pensamentos e imagens apareceram, depois
desapareceram novamente e você pode observar esse movimento.
O eu pensante é como uma estação de rádio sempre ligada ao fundo. Na maior
parte do tempo, ouvimos o Show da Rádio Ruína e Trevas, transmitindo histórias
negativas 24 horas por dia. Ela nos faz lembrar de coisas ruins do passado, nos adverte
sobre coisas ruins que podem acontecer no futuro e nos atualiza constantemente sobre
tudo o que há de errado conosco no presente. Vez por outra transmite algo de útil ou
alegre. Portanto, se estivermos sintonizados nessa rádio, ouvindo atentamente e, pior,
acreditando em tudo o que ouvimos, teremos uma receita infalível para o estresse e a
aflição.
Infelizmente, não há como dessintonizar essa rádio. Mesmo os mestres zen não
conseguem tal façanha. Por vezes ela vai interrompê-lo por uns poucos segundos (ou
até- muito raramente - alguns minutos). Entretanto, não temos como fazê-la parar (a não
ser que lhe causemos um curto-circuito com drogas, álcool ou neurocirurgia). Na
verdade, de modo geral, quanto mais tentamos desconectá-la, mais alto ela toca.
Existe, porém, uma abordagem alternativa. Alguma vez já percebeu que uma
rádio tocava ao fundo, mas estava tão concentrado no que fazia que não a escutava de
fato? Você conseguia ouvir a rádio tocando, mas não prestava atenção na transmissão.
Na prática das habilidades de desfusão, o objetivo final é fazer precisamente o mesmo
com nossos pensamentos. Uma vez sabendo que os pensamentos são meros grupos de
palavras, podemos tratá-los como ruído de fundo- podemos deixá-los ir e vir sem nos
fixar neles e sem sermos perturbados. A técnica do Agradeça à Sua Mente exemplifica
isso: um pensamento desagradável aparece, mas, em vez de se fixar nele, você apenas
reconhece sua presença, agradece à mente e volta sua atenção para o que estava fazendo
antes.
Assim, eis o que pretendemos alcançar com todas essas habilidades:
• Caso o eu pensante esteja transmitindo algo inútil, o eu observador não precisa
prestar atenção. Ele pode reconhecer o pensamento e voltar a atenção para a
atividade presente.
• Caso o eu pensante esteja transmitindo algo útil, O eu observador pode então
sintonizar e prestar atenção.

Repare também que deixar a estação tocar sem lhe dirigir muita atenção é
diferente de se esforçar para ignorá-la. Já ouviu uma estação e tentou não escutar? O
que aconteceu? Quanto mais você tentou não escutar mais ela o perturbou, certo?
A capacidade de deixar os pensamentos transitarem ao fundo enquanto você
mantém a atenção fixa no que está fazendo é muito útil. Suponha que esteja num evento
social e sua mente diga: “Sou tão chato! Não tenho nada para falar. Queria ir para casa!”
é bem difícil manter uma boa conversa se estiver com a atenção dirigida para tais
pensamentos. Analogamente, suponha que está aprendendo a dirigir e o eu pensante
diga: “Eu não consigo. É muito difícil. Vou bater!”
É difícil dirigir bem se o eu observador estiver fixado nesses pensamentos e não
na estrada. A técnica seguinte visa deixar que os pensamentos “fluam” enquanto você
mantém a atenção no que está fazendo. Leia primeiro as instruções, e depois faça uma
tentativa.

DEZ RESPIRAÇÕES PROFUNDAS

Inspire profundamente dez vezes, o mais lentamente possível. (Talvez você


prefira fazê-lo de olhos fechados.) Agora, se concentre nas subidas e descidas de sua
caixa torácica e no ar que entra e sai dos seus pulmões. Repare nas sensações à medida
que o ar penetra: o peito subindo, os ombros se elevando, os pulmões se inflando.
Observe o que sente quando o ar é expelido: o peito baixando, os ombros caindo, o ar
saindo pelas narinas. Concentre -se em esvaziar completamente os pulmões. Elimine
até o último resíduo de ar, sentindo-os se esvaziarem e faça uma breve pausa antes de
inspirar de novo. Enquanto inspira, repare em como sua barriga se projeta
ligeiramente para a frente.
Agora, deixe que quaisquer pensamentos e imagens circulem apenas ao fundo,
como se fossem carros passando do lado de fora de casa. Quando um novo pensamento
ou imagem aparecer, reconheça sua presença, como se estivesse cumprimentando um
motorista que passa. Ao fazer isso, mantenha sua atenção na respiração,
acompanhando o ar entrando e saindo dos pulmões. Talvez ache útil dizer para si
mesmo a palavra “pensamento” sempre que um pensamento ou imagem aparecer.
Muitos sentem que isso ajuda no seu reconhecimento e descarte. Experimente e, se for
útil, continue a prática.
De tempos em tempos, um pensamento captará sua atenção; vai “fisgá-lo” e
“arrastá-lo para longe”, levando-o a se perder no exercício. No momento em que
reconhecer que foi fisgado, dedique um segundo a perceber o que o perturbou; então,
“desprenda-se” suavemente e retome a concentração na respiração.
Leia de novo as instruções, por completo e tente o exercício.

•••••

Como foi? A maioria das pessoas é fisgada e arrastada por pensamentos durante
o exercício. É assim que eles costumam nos afetar: nos atordoam, nos desconcentrando
daquilo que fazemos.
A prática regular dessa técnica lhe ensinará três habilidades importantes: (1)
como deixar que pensamentos transitem sem se concentrar neles, (2) como reconhecer
que você foi fisgado por seus pensamentos e (3) como “se desprender”.
Ao praticar essa técnica, repare na distinção entre o eu pensante e o eu
observador. O eu observador se concentra na respiração, enquanto o pensante tagarela
ao fundo. Perceba também que essa é uma estratégia de aceitação, não de controle. Não
estamos tentado evitar ou nos livrar de pensamentos indesejados, mas simplesmente
permitindo que aconteçam, indo e vindo à vontade.
Felizmente, é uma técnica fácil de praticar, já que pode ser utilizada a qualquer
momento, em qualquer lugar. Logo, tenha como meta praticar esse exercício ao longo
do dia, quando estiver preso no trânsito, numa fila, esperando ao telefone ou por um
compromisso, durante comerciais na televisão e mesmo à noite, na cama, como a última
coisa a fazer no dia. Ou seja, sempre que tiver um tempo livre. Caso não disponha de
tempo para as dez inspirações, três ou quatro já são úteis. Pratique especialmente
quando estiver preso a pensamentos. Ao aplicar essa técnica, o número de vezes em que
você for fisgado não importa. Cada vez que perceber e se “desprender”, estará mais
qualificado numa habilidade valiosa.
Abra mão de qualquer expectativa; registre apenas os efeitos. Muitos consideram a
técnica bem relaxante, mas, por favor, não pense nela como um procedimento para
relaxar. Quando o relaxamento acontece, é só um subproduto benéfico, não o propósito
principal. É claro que você deve aproveitá-lo, mas não passe a esperar por ele, ou mais
cedo ou mais tarde vai se decepcionar.
Lanço aqui um desafio: se quiser ser de fato bom nisso, então, além de todos
esses exercícios, dedique cinco minutos, duas vezes por dia, à prática da respiração. Por
exemplo, podem ser cinco minutos logo cedo pela manhã e cinco minutos no intervalo
do almoço. Nesses dois momentos, mantenha toda a atenção na sua respiração,
permitindo que pensamentos transitem livres, como carros passando. Sempre que
perceber que sua atenção foi desviada, retome o foco tranquilamente. Além disso, se
ainda não tentou, procure dizer em silêncio a palavra “pensamento” sempre que um
aparecer. Alguns acham mesmo o procedimento muito útil, mas se esse não for o seu
caso, não se force.

Referência:
HARRIS, Russ. Liberte-se: evitando as armadilhas da procura da felicidade. Rio de
Janeiro: Agir, 2011.

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