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A Curva Climática está Apenas no Início de sua Subida

Frederico Seifert dos Santos

Este artigo não está focado em destrinchar os impactos sociais e


econômicos sobre a crise do coronavírus, dado que estamos inundados de
informação sobre eles. O objetivo aqui é desmistificar a comparação automática
que vem sendo feita entre a pandemia e uma eventual crise climática, como se
a primeira fosse um “simulado” em menor medida da última. O motivo é simples:
na verdade, a situação atual já é um aspecto da emergência climática.
O Relatório de Riscos Globais para 2020 (com dados levantados em
2019), do Fórum Econômico Mundial, colocava o risco de “doenças infecciosas”
em uma modesta décima posição em seu ranking de impactos. Na listagem de
probabilidade de ocorrência, tal risco nem aparecia no top 10. Os riscos
climáticos aparecem no topo de ambas as tabelas: em probabilidade, os riscos
de eventos extremos e de falha na ação para a crise climática ocupam as duas
primeiras posições; em impacto, a incapacidade de gerir tal crise fica em folga
no topo.
É possível utilizar essa abordagem para ressaltar a magnitude da
intensificação dos impactos climáticos que vivenciaremos no futuro: se uma
doença infectocontagiosa, que mal aparece na lista de principais riscos
econômicos, já deve nos colocar na pior crise desde 1929 , imaginem o que pode
ocorrer caso a falha de agir frente às mudanças do clima pode gerar? Mas essa
análise superficial esconde a relação substancial entre as duas crises.
Em primeiro lugar, precisamos riscar a esotérica hipótese de que a crise
é “um recado da natureza” e serve de aviso para a questão do clima. O
desenvolvimento de vírus e outros agentes patogênicos (para os humanos) faz
parte dos ciclos naturais e o fato deles estarem se acelerando, sim, merece uma
atenção especial pois se deve a nossa espécie. Ademais, esse argumento
embute a ideia que somos corpos estranhos ao planeta e que a natureza busca
nos descartar, o que não é o caso. O fato de não termos a melhor relação
possível com o meio ambiente não significa que não somos parte dele, mas que
precisamos repensar o nosso modelo de civilização.

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Adicionalmente, a pandemia amplifica situações já existentes. Termos
grupos sociais tão mais afetados expõe a desigualdade do sistema que vivemos,
a qual comprovadamente só vem crescendo em quase todos os países ao longo
das últimas décadas. Outra constatação factual é a relação entre o supracitado
surgimento de doenças infecciosas, de maior ou menor periculosidade, de modo
recorrente e com intervalos cada vez menores e a deterioração ambiental
promovida por nós – desmatamento, derretimento do permafrost, comércio de
animais exóticos, etc.
Portanto, não podemos entender essa crise como um fim em si mesma.
A pandemia e seus impactos em cascata já são a consequência de uma crise
maior e multidimensional – ambiental, social e econômica: a crise climática, que
deve se manifestar mais frequentemente e de forma cada vez mais intensa.
Todos os impactos ambientais gerados pelo nosso modelo econômico – que
metonimicamente chamamos de “crise climática” dada a amplitude de eventos
que a causam e as multifacetadas consequências que apresenta – se
converterão em mais impactos. Serão mais doenças, eventos extremos, redução
de produtividade agrícola, diminuição na disponibilidade de insumos e, enfim,
efeitos de magnitudes que nunca lidamos no passado.
Esse momento deve, então, ser utilizado não apenas para intervenções
pontuais, como estratégias de saúde contingenciais ou, menos ainda, em uma
realocação no uso de recursos que deixe desamparada a gestão do clima. Há,
claro, de se refazer a ressalva que estamos no período agudo de uma crise e
realmente necessitamos lançar mão de ações emergenciais e de uma
reorganização do orçamento escasso dos diferentes níveis de governo. Mas
deve haver em conjunto um planejamento de longo prazo mais bem pensando,
articulado entre as nações e, principalmente, posto em prática para evitar novas
situações similares e relacionadas e também mitigar seus efeitos caso ocorram.
Por exemplo, o investimento prévio em saúde pública de qualidade e sua
preparação para situações extremas tem se mostrado um diferencial no
desempenho de regiões em lidar com o vírus. De igual forma, investimentos
presentes na mitigação às mudanças climáticas (redução de emissões), na
adaptação aos seus efeitos (com infraestrutura mais resiliente e de atenção a

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populações mais vulneráveis) e na coordenação global para que isto ocorra de
modo amplo no mundo terão igualmente impactos futuros na nossa capacidade
de lidar com a intensificação da crise climática. Trazendo novamente o caso da
saúde humana, esses investimentos “ambientais” terão efeitos também em
reduzir casos de doenças crônicas respiratórias, evitando o surgimento de novas
epidemias, entre outras benesses.
Há alguns sinais positivos nesse sentido. O reforçado engajamento da
sociedade civil e do setor privado a despeito de sinais contraditórios de alguns
governos mostram que se pode avançar em buscar soluções para crises. Além
disso, vê-se uma pressão maior por decisões de investimento mais sustentáveis
não só de governo, mas de investidores individuais e institucionais. É o caso das
instituições financeiras, que vêm estabelecendo compromissos cada vez mais
fortes para a promoção de uma economia sustentável.
Essa última citação é de particular importância, pois essas entidades são
responsáveis em maior ou menor medida pelo financiamento de todas as
atividades produtivas, e merece uma análise um pouco mais detalhada. Há uma
mudança visível na abordagem das instituições financeiras em relação ao clima:
não apenas querem entender como o impactam, como também como este as
afetam. Isso é importante pois não há mensagem mais forte para uma instituição
focada no lucro do que a quantificação das possíveis perdas. Não à toa, vimos
o surgimento de iniciativas como a Task-force on Climate-related Financial
Disclosures (TCFD) e uma adesão cada vez maior a grandes compromissos
como os Princípios para o Investimento Responsável (PRI) e Princípios para
Responsabilidade Bancária (PRB). Essas iniciativas podem promover mudanças
estruturais e não apenas conjunturais – e, provavelmente, de vida curta –, como
a redução atual das emissões de gases de efeito estufa.
Por outro lado, estas mesmas instituições precisam avançar muito diante
da face social de uma crise, dado que alguns dos grupos mais afetados pela
redução da atividade econômica, como empreendedores individuais e micros e
pequenas empresas, têm tido enormes dificuldades para acessar crédito e
mesmo vendo-o mais caro. Ou seja, precisam corresponder também nos
momentos imediatos que são mais necessárias e em aspectos diretamente

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relacionados ao coração de seu negócio.
Outros efeitos benéficos da crise vêm em outras áreas que vinham sendo
atacadas nos últimos tempos: a valorização da ciência e do jornalismo
profissional, que serão instrumentos necessários para a sensibilização e
implementação de planos para a crise climática. Por outro lado, devemos ter
cuidado com esses ganhos. Os períodos de crise anteriores geraram melhoras
apenas de curto prazo, com tudo voltando ao “normal” ou mesmo piorando pouco
depois. Ademais, é preciso ter cuidado para evitar a captura desta agenda por
poucos agentes que, posteriormente, podem cooptá-la para o simples interesse
de geração de lucros, reduzindo-a a um disfarce seguir o business as usual.
Precisamos entender que a pandemia desvenda apenas a ponta do
iceberg. Estamos apenas iniciando a curva de impactos da crise ambiental e
parte de sua solução para alguns de seus efeitos pode até envolver momentos
de isolamento, mas sua superação dependerá, principalmente, da cooperação
entre pessoas, instituições e países.

Referências Bibliográficas

The Global Risks Report 2020. World Economic Forum, 2020. Disponível em: <
https://www3.weforum.org/docs/WEF_Global_Risk_Report_2020.pdf >. Acesso
em: 08 de outubro de 2022.
Pandemia de coronavírus mergulha a economia no desconhecido. El Pais, 2020.
Disponível em: < https://brasil.elpais.com/economia/2020-03-15/pandemia-do-
coronavirus-mergulha-a-economia-no-desconhecido.html >. Acesso em: 08 de
outubro de 2022.
Bancos elevam juros e restringem negociação com a crise do coronavírus.
Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/bancos-
elevam-juros-e-restringem-negociacao-com-a-crise-do-
virus.shtml?utm_source=linkedin&utm_medium=social&utm_campaign=lifolha
>. Acesso em: 08 de outubro de 2022.

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