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14/04/2023, 00:13 ConJur - Intimidade e vida privada: passado, presente e futuro

OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL

Intimidade e vida privada: passado, presente e


futuro
7 de janeiro de 2023, 8h00

Por Ilton Norberto Robl Filho

01. Estimadas leitoras e caros leitores, feliz 2023! É uma alegria, porém também uma
responsabilidade, escrever a primeira coluna deste ano do Observatório Constitucional, que
completa dez anos de publicação semanal. Trata-se de projeto editorial de fôlego, devendo
parabenizar os professores André Rufino do Vale e Fábio Quintas pela coordenação do
expediente. Para alguns, as datas e a marcação do tempo não se revestem de grandes
significados, sendo, por exemplo, apenas a contagem daquilo que já transcorreu ou a
indicação de um período que virá. De outro lado, os momentos de transição, como os que
vivemos hoje, com o advento de um novo ano civil e com as modificações nas práticas
estatais brasileiras para a observância da democracia constitucional, são situações que
impõem reflexão sobre o passado, análise acerca do presente e planejamento para o futuro.
Nesse cenário, retomarei um tema que tratei originalmente há cerca de 15 anos [1], mas que
contém desafios para o presente e o futuro: a intimidade e a vida privada.

02. A intimidade e a vida privada são fenômenos importantes e


complexos nas sociedades moderna e contemporânea, tendo
examinado Hannah Arendt as principais características, nos
seguintes termos: "O que hoje chamamos de privado é um
círculo de intimidade cujos primórdios podemos encontrar nos
últimos períodos da civilização romana, (...) mas cujas
peculiaridades, multiformidade e variedade eram certamente
desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna" [2]. Nesse contexto, as
relações entre o público e privado foram modificadas, pois, de um lado, a "presença de
outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e
de nós mesmos", porém, de outra banda, "a intimidade de uma vida privada plenamente
desenvolvida (...) sempre intensifica e enriquece grandemente toda a escala de emoções
subjetivas e sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia
da realidade do mundo" [3].
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Em síntese, existe uma gradativa valorização do espaço privado, em virtude do seu papel
no desenvolvimento da personalidade humana, permitindo assim a vivência de experiências
individuais, próprias e íntimas. Por sua vez, a exposição da intimidade e da vida privada é
questão bastante complexa, visto que a "intimidade não pode ser trazida à tona da mesma
forma que as questões públicas", no entanto não "se quer dizer que todas as questões
íntimas devam, necessariamente, ser escondidas de todos e somente vividas pelo indivíduo"
[4].

03. No plano do direito constitucional positivo contemporâneo, o constituinte originário


brasileiro positivou com precisão o direito fundamental à intimidade e à vida privada, no
artigo 5º, X, Constituição Federal, além de o poder reformador incorporar expressamente o
direito fundamental à proteção de dados pessoais, por meio da Emenda Constitucional nº
115/2022. Ainda, as instituições da sociedade civil e a jurisdição constitucional
desempenham papéis de destaque nessa seara. Na Ação Direita de Inconstitucionalidade
(ADI) nº 6.649, sendo relator o ministro Gilmar Mendes e legitimado ativo o Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, foi impugnado o Decreto 10.046/2019, o qual
extrapolou o poder regulamentar da Presidência da República, violando a proteção de
dados pessoais, a intimidade e a vida privada das pessoas naturais, pois promovia o
compartilhamento e a integração de informações pessoais sem as devidas cautelas. À
época, em conjunto com relevantes advogadas como Estela Aranha e Lucia Maria Teixeira
Costa e com o saudoso amigo e brilhante jurista Danilo Doneda, redigimos a petição
inicial, demonstrando a "violação direta aos artigos 1º, inciso III e 5º, caput, e incisos X,
XII e LXXII da Constituição Federal, os quais asseguram, respectivamente a dignidade da
pessoa humana; a inviolabilidade da intimidade, da privacidade e da vida privada" [5].

O voto do ministro Gilmar Mendes, na ADI nº 6649, enfrentou e resolveu a controvérsia


constitucional com proficiência, apontando a) os dilemas da intimidade e da vida privada
na era digital, b) que a jurisdição constitucional brasileira encontra-se atenta aos ataques
contemporâneos à intimidade e à vida privada e c) "que a disciplina jurídica do
processamento e da utilização de dados pessoais acaba por afetar o sistema de proteção de
garantias individuais como um todo", devendo ocorrer "uma releitura de mecanismos
clássicos de defesa das liberdades públicas" [6]. Na rica solução da questão, por meio de
interpretação conforme à Constituição, determinou-se que o compartilhamento de dados
pessoais entre órgãos e a administração pública pressupõe propósitos legítimos, específicos
e explícitos, restando limitado ao mínimo necessário.

04. Apesar de importantes avanços no tratamento da temática pelo legislador, pelo poder
reformador constitucional e pela jurisdição constitucional brasileira, são diversas as

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questões que precisam ser revistas ou enfrentadas sobre a intimidade e a vida privada na era
digital. Vejamos algumas.

O direito ao esquecimento surge originariamente no mundo pré-digital [7], levando em


consideração especialmente a exposição de pessoas naturais pela televisão. Infelizmente, a
jurisdição constitucional brasileira recentemente analisou o direito ao esquecimento, a
partir de um caso analógico (programa de televisão que expôs novamente, em 2004, o
homicídio ocorrido na década de cinquenta do século passado), no Recurso Extraordinário
nº 1.010.606/RJ [8]. O contexto analógico é bastante diverso da vida atual mediada pela
tecnologia digital, em virtude de inúmeras razões. Em primeiro lugar, as pessoas naturais
interagem com frequência, nos âmbitos pessoal e profissional, por meio de aplicativos,
redes sociais e demais instrumentos digitais, inexistindo essa intensidade de comunicação e
de compartilhamento anteriormente. Em segundo lugar, a quantidade de informações e de
dados pessoais armazenados, em arquivos e bancos de dados públicos e privados, é enorme,
podendo impactar em quase todas as dimensões da existência humana e social. Em terceiro
lugar, o desenvolvimento da personalidade dos seres humanos acontece com a utilização
dos instrumentos digitais.

Nesse novo tempo, o que era válido, no mundo quase que exclusivamente analógico,
não pode permanecer sem alterações, impondo-se o exercício de uma hermenêutica
constitucional renovada com a ampliação do âmbito de proteção de direitos fundamentais já
fixados, como o direito à intimidade e à vida privada [9]. Por sua vez, o Supremo Tribunal
Federal fixou o Tema 876 sobre o direito ao esquecimento, no Recurso Extraordinário nº
1.010.606/RJ, contudo a primeira parte da tese é preocupante, tendo a seguinte redação: "É
incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim
entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos
ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social —
analógicos ou digitais" [10] [11]. O rótulo do direito ao esquecimento, por boa parte da
literatura especializada, é utilizado de maneira ampla para uma série de dimensões do
desenvolvimento da personalidade, na sociedade digital. Desse modo, não é jurídica,
constitucional e socialmente possível compreender e aceitar a incompatibilidade desse
direito com a Constituição Federal brasileira de forma tão ampla, já que diversas dimensões
do direito ao esquecimento são adotadas no direito estrangeiro e brasileiro [12].

Assim, uma interpretação restritiva da incompatibilidade do direito ao esquecimento com a


Constituição Federal, para fins do Tema 876, é necessária, possuindo também guarida esse
entendimento na segunda parte da tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal: "Eventuais
excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser
analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os
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relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral —


e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível".

05. A questão da publicidade de informações pessoais e públicas continua muito atual, na


tutela do direito fundamental à intimidade e à vida privada, nos marcos do Estado
Democrático de Direito. O governo federal brasileiro anterior determinou o sigilo de até
cem anos, para uma série de informações que são públicas, logo não se amoldam ao
disposto no artigo 31, Lei Federal nº 12.527/2011. Dessa forma, corretamente o atual
governo federal determinou à Controladoria Geral da União a reavaliação da concessão
desse acesso restrito, buscando verificar a adequada aplicação da Lei de Acesso à
Informação e a prevalência de questões públicas e de Estado em diversos assuntos cobertos
por esses sigilos [13]. Situação diametralmente oposta sobre o resguardo versa sobre o
direito à extimidade, o qual pode ser definido como o poder ou a faculdade "de usufruir,
propositivamente, de informações da própria intimidade em ambientes de sociabilidade,
por meio da sua exposição voluntária, sem a intenção consciente de tornar a informação
veiculada pública, visando à emancipação e/ou ao empoderamento" [14].

Conforme defendi outrora, a intimidade é elemento central e paradoxal da vida privada e da


vida em geral das pessoas naturais, ocorrendo muitas vezes a divulgação voluntária de
informações pessoais pelo próprio titular. Isso não significa que a intimidade perdeu sua
força, e sim que aspectos centrais da vida privada representam os principais elementos da
personalidade humana [15]. Pelo exposto, faz todo o sentido proteger o direito à
extimidade, nos moldos descritos acima, concretizando na era digital a autodeterminação
das pessoas humanas. Mesmo reconhecendo a existência da extimidade, o alerta de
Francisco Balaguer Callejón sobre a banalização da exposição da intimidade é essencial:
"La escasa preocupación de los nativos digitales por su derecho a la intimidad se explica
en gran medida porque han sido 'dopados' muy tempranamente por las compañías
tecnológicas, con aplicaciones que están destinadas justamente a la exhibición pública"
[16].

06. A intimidade e a vida privada residem no coração do constitucionalismo, possuindo


novos e velhos dilemas e necessitando de aprofundamento o debate na esfera pública e na
comunidade jurídica.

[1] Dentre os trabalhos acadêmicos, cf. ROBL FILHO, Ilton Norberto. Direito, Intimidade
e Vida Privada: Paradoxos Jurídicos e Sociais na Sociedade Pós-Moralista e
Hipermoderna. Curitiba: Juruá, 2010.
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[2] ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução: Roberto Raposo, 10ª ed., Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 48.

[3] ARENDT, Hannah. A Condição Humana, p. 60.

[4] ROBL FILHO, Ilton Norberto. Direito, Intimidade e Vida privada, p. 62.

[5] CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, Petição


Inicial da ADI nº. 6649/DF, assinada em 18/12/2020.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADI nº. 6649/DF, voto do relator min. Gilmar
Mendes, 15/09/2022.

[7] Acerca das realidades física e virtual, cf. CALLEJÓN, Francisco Balaguer Callejón. La
Constitución del Algoritmo. Zaragoza: Fundación Manuel Giménez Abad, 2022, p. 60-65.

[8] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Recurso Extraordinário nº. 1.010.606/RJ,


relator ministro Dias Toffoli, julgamento em 11/2/2021.

[9] Nesse sentido, cf. CELESTE, Edoardo. Digital Constitutionalism: The Role of
Internet Bills of Rights. New York, 2023, pp. 189-191.

[10] Sobre o julgamento, cf. SARLET, Ingo Wolfgang. STF e direito ao esquecimento:
julgamento a ser esquecido ou comemorado? Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2021-mar-05/direitos-fundamentais-stf-direito-esquecimento-
julgamento-esquecido-ou-comemorado. Acesso em: 6/1/2023.

[11] Agradeço e registro os profícuos debates sobre o tema, na disciplina de


constitucionalismo digital com meus alunos e alunas do mestrado e doutorado do IDP, e
especialmente as considerações sobre o julgado feitas pelo agora mestre em direito
constitucional Alisson Possa.

[12] Sobre o reconhecimento no direito nacional, cf. SARLET, Ingo Wolfgang; FERREIRA
NETO, Arthur M. O Direito ao "Esquecimento" na Sociedade da Informação. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 130-155.

[13] "Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e
com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às
liberdades e garantias individuais. § 1º. As informações pessoais, a que se refere este artigo,
relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I - terão seu acesso restrito,
independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a
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contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que
elas se referirem; e II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante
de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem".

[14] BOLESINA, I.; GERVASONI, T. A. A Proteção do Direito Fundamental à Privacidade


na Era Digital e a Responsabilidade Civil por Violação do Direito à Extimidade. Novos
Estudos Jurí­dicos, Itajaí­(SC), v. 27, n. 1, p. 99, 2022.

[15] ROBL FILHO, Ilton Norberto. Direito, Intimidade e Vida privada, p. 124-174.

[16] CALLEJÓN, Francisco Balaguer Callejón. La Constitución del Algoritmo, p. 46.

Ilton Norberto Robl Filho é professor da Faculdade de Direito da UFPR e do IDP, líder do
grupo de pesquisa Democracia Constitucional, Novos Autoritarismos e Constitucionalismo
Digital no IDP, membro do CCons-UFPR e sócio do escritório de advocacia Marrafon,
Robl e Grandinetti.

Revista Consultor Jurídico, 7 de janeiro de 2023, 8h00

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