Você está na página 1de 6

https://24.sapo.

pt/atualidade/artigos/arrendamento-forcado-como-pode-avancar-uma-
medida-que-nunca-ninguem-teve-coragem-para-aplicar

O que propõe o Governo quanto ao arrendamento forçado?

Na secção do programa Mais Habitação referente ao "Arrendamento Obrigatório de Casas


Devolutas", lê-se o seguinte:

Objetivo
O Estado pode mobilizar património devoluto, por razões de interesse público, através do
arrendamento por entidades publicas, com o respetivo pagamento de renda ao senhorio.

Não é aplicável a situações como:

1. casas de férias;

2. casas de emigrantes ou de pessoas deslocadas por razões de saúde e razões


profissionais ou formativas;

3. casas cujos proprietários estão num equipamento social como um lar ou estão a
prestar cuidados permanentes como cuidadores informais.

O arrendamento forçado, termo já hoje existente na lei, pressupõe a existência de um prévio


dever legal de dar uso ao imóvel. Isto é: os deveres dos proprietários são, por si, restrições ao
direito de propriedade.

Esse dever está consagrado na lei desde 2014 (vg. artigo 14.º, n.º 2, alínea a) da Lei n.º
31/2014, de 30 de maio).

Pretende-se, antes de mais, dar um incentivo a essa utilização. Assim, na proposta formulada, o
primeiro passo é, nos casos em que se identifique que determinada casa está devoluta (e não
cabendo nas exceções referidas) e sempre que exista procura para um imóvel com aquelas
características, propor-se, em primeiro lugar, que o proprietário possa celebrar livremente um
contrato de arrendamento do imóvel com o IHRU, estabelecendo-se livremente as condições
de tal contrato.

Caso o proprietário não queira arrendar ao Estado, será dado um prazo formal para dar uso ao
imóvel. Só findo este prazo é que o Estado pode arrendar o imóvel de forma obrigatória,
considerando o interesse público que concretamente seja determinado – quer por força do
incumprimento do dever de utilização do imóvel pelo seu proprietário, quer pela função social
da habitação e dever de utilização, princípios também consagrados nos artigos 4.º e 5.º da Lei
de Bases da Habitação.
Arrendamento forçado não é novo — aliás, já era lei

"O DIREITO À PROPRIEDADE PRIVADA NÃO É UM DIREITO ABSOLUTO. E HÁ QUEM DEFENDA, E


A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL TEM ENTENDIDO ISSO TAL COMO MUITA
DOUTRINA, QUE O DIREITO À PROPRIEDADE PRIVADA TEM UMA FINALIDADE SOCIAL"

O arrendamento compulsivo pode ser uma medida controversa, passível de ser considerada,
como descreve Miguel Prata Roque, “uma restrição excessiva e, portanto, desproporcionada do
direito de propriedade privada”. Mas nem por isso, defende o também professor associado na
FDUL, inconstitucional.

“Em primeiro lugar, o direito à propriedade privada não é um direito absoluto. E há quem
defenda, e a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido isso tal como muita
doutrina, que o direito à propriedade privada tem uma finalidade social”, explica ao SAPO24.
“Todos nós, enquanto comunidade, reconhecemos o direito à propriedade dos outros porque
entendemos que esta deve ter um objetivo que é favorável a toda a comunidade. Isso chama-
se o ‘fim social da propriedade privada’”, continua.

Ora, seguindo essa lógica de bem comum, “o que isto significa é que não faz muito sentido que
eu tenha muito património e que nem eu nem a comunidade o utilize”, argumenta Prata
Roque, que dá o exemplo de quem opta por destruir o seu prédio porque lhe apetece. “É muito
discutível a ideia de se isso ainda está na esfera de proteção do direito à propriedade privada,
porque se destruo um bem que existe, no fundo, estou a impedir que outras pessoas o
utilizem” continua. A seu ver, portanto, a leitura mais correta a ter é a de que a “Constituição
protege a propriedade privada, mas só na medida em que ela tem uma finalidade social, em
que ela possa também contribuir para o bem-estar, para o progresso da sociedade”.

Além disso, o ex-assessor do Gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional recorda que já


existe legislação que permite o arrendamento compulsivo, como o Regime Jurídico do
Arrendamento Urbano — entretanto atualizado em 2016 — , que desde 1985 prevê a
possibilidade de posse administrativa por parte das câmaras municipais de casas que estão
arrendadas em que os senhores não realizam obras, obrigando-os a fazê-lo a cobrar-lhes esse
serviço.

“Essa legislação existe há muitos anos, foi alvo de muita contestação nos tribunais, por parte
de senhorios, e foi sempre considerada constitucional”, explica, admitindo que “uma coisa é a
uma câmara municipal fazer obras na casa que pertence a alguém e depois solicitar a cobrança
dessas despesas, outra coisa diferente é tomar posse para arrendar, ou seja, para obrigar a
pessoa a tolerar a presença de um terceiro numa casa que é sua”.

Além disso, o Regime da Reabilitação Urbana, datado de 2009, já previa desde uma atualização
de 2019, a situação de arrendamento forçado no seu artigo 59.º, tal como o artigo 161.º
do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial.

No entender de Miguel Prata Roque, a questão em causa — e o que motivou maior


polémica — centra-se no objeto da medida: os prédios devolutos. De acordo com uma lei
datada de 2006, “considera-se devoluto o prédio urbano ou a fracção autónoma que durante
um ano se encontre desocupada, sendo indícios de desocupação a inexistência de contratos
em vigor com empresas de telecomunicações, de fornecimento de água, gás e electricidade e a
inexistência de facturação relativa a consumos de água, gás, electricidade e telecomunicações”.
“NÃO É O FACTO DE EU COMPRAR UMA CASA E TER ESSA CASA QUE SÓ UTILIZO UMA VEZ POR
ANO OU QUE SÓ LÁ VOU DE DOIS EM DOIS ANOS QUE TORNA ESSA CASA SUJEITA A ESTE
REGIME DO GOVERNO”

A mais recente atualização a este diploma, feita em 2019, abrange ainda este conceito a
prédios onde se verifique “a existência cumulativa de consumos baixos de água e eletricidade,
considerando-se como tal os consumos cuja faturação relativa não exceda, em cada ano,
consumos superiores a 7 m3, para a água, e de 35 kWh, para a eletricidade”, assim como “a
situação de desocupação do imóvel, atestada por vistoria realizada (...)”.

“Não é o facto de eu comprar uma casa e ter essa casa que só utilizo uma vez por ano ou que
só lá vou de dois em dois anos que torna essa casa sujeita a este regime do Governo”, frisa
Prata Roque, acrescentando que o projeto “não faz referência a prédios não utilizados”.
Resumindo, nem todos os prédios com parca utilização são devolutos, mas todos os prédios
devolutos têm parca (ou nenhuma) utilização.

O que está em causa então, explica o constitucionalista, é uma “discussão ideológica” e não
necessariamente constitucional. “Se o objetivo é aplicar só a prédios devolutos, parece-me que
a razoabilidade, ou seja, a justa medida da restrição, está logo à partida bastante bastante
protegida — porque o próprio conceito de prédio devoluto já vem restringir muito quais são as
casas que podem ser não alvo desse regime”, defende.

“DESDE QUE A PESSOA CEDA ESSA CASA A UM FAMILIAR OU QUE UTILIZE ESSA COM ALGUM
GRAU DE HABITUALIDADE, A NORMA DIFICILMENTE SE LHE APLICARÁ”

No entanto, Prata Roque não descarta que tal medida vá afetar bastantes proprietários,
especialmente aqueles que compram casa com uma lógica de aforro. “Há muita gente hoje que
tem dinheiro disponível, e como esse dinheiro no banco não rende, compra uma casa na
expectativa especulativa de que a casa se valorize com a passagem do tempo”, afirma, dando o
exemplo de alguém que compra um imóvel com a pretensão de vendê-lo na velhice para
suportar os custos no fim de vida.

Essas pessoas, diz “serão eventualmente prejudicadas”, mas, no seu entender, é uma questão
“fácil de resolver”. “Desde que essa pessoa ceda essa casa a um familiar ou que utilize essa
com algum grau de habitualidade, a norma dificilmente se lhe aplicará”, aconselha.

Face à potencial contestação da constitucionalidade desta medida, o professor da FDUL


recorda que há duas hipóteses em cima da mesa.

Na primeira, tendo o Governo maioria absoluta na Assembleia da República, a lei deverá


passar; todavia, “um décimo dos deputados, ou seja, 23, pode requerer fiscalização da
constitucionalidade da norma” ao Tribunal Constitucional. No entanto, esta opção parece ser
inviável por dois motivos. Primeiro, porque tal “não inviabiliza a entrada em vigor imediata do
diploma” após aprovação por maioria. “O Tribunal Constitucional muitas vezes demora um ano,
um ano e meio, para decidir a fiscalização sucessiva abstrata, o que significa que estaríamos
vários meses, se não alguns anos, com a norma em vigor”, explica Prata Roque.

Além disso, essa fiscalização sucessiva depende em quase todos os cenários do assentimento
do PSD. De momento apenas a Iniciativa Liberal e o Chega manifestaram vontade de
potencialmente requerer essa fiscalização sucessiva, mas os dois partidos juntos só chegam aos
20 deputados e não é crível que recebam apoio à esquerda. “Isto passaria sempre por uma
decisão do PSD”, adianta Prata Roque.
“É NORMAL QUE O PRESIDENTE DA REPÚBLICA TAMBÉM QUEIRA QUE O TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL SE PRONUNCIE SOBRE ESSA EVENTUAL INCONSTITUCIONALIDADE".

A outra hipótese, bem mais tangível, passa pela atuação do Presidente da República, que
“também pode requerer a fiscalização preventiva antes da lei entrar em vigor. Na sua opinião,
Miguel Prata Roque tem “quase a certeza” que Marcelo Rebelo de Sousa o vai fazer, “tendo em
conta a postura que tem adotado recentemente”. “O professor Marcelo Rebelo de Sousa neste
segundo mandato mudou a estratégia que tinha no primeiro, em que nunca enviava diplomas
ao Tribunal Constitucional. Agora envia sempre que há uma lei que causa dúvidas
relativamente à constitucionalidade”, justifica o professor da FDUL.

É por isso que, “face a este burburinho“ causado pelo arrendamento forçado, “é normal que o
Presidente da República também queira que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre essa
eventual inconstitucionalidade".

Arrendamento forçado já existe, mas ninguém “tem coragem para aplicá-lo”

Quer seja uma medida constitucional ou não, há ainda uma outra questão em cima da mesa: é
se o Estado é sequer capaz de implementar um plano desta natureza, já que mais de um em
cada 10 alojamentos em Portugal está desocupado.

Segundo os Censos de 2021, dos 5.970.677 ”alojamentos familiares clássicos que constituíam o
parque habitacional” de Portugal nesse ano, 723.215 alojamentos estavam vagos, 12,1% do
total. De acordo com a terminologia utilizada no estudo, é considerado vago o “alojamento
familiar desocupado e que está disponível para venda, arrendamento, demolição ou outra
situação no momento de referência”.

"TENHO MUITAS DÚVIDAS QUE A QUESTÃO DOS ARRENDAMENTOS FEITOS


OBRIGATORIAMENTE TENHA UM IMPACTO REAL NA RESOLUÇÃO DO PROBLEMA DA
HABITAÇÃO. (...) NÃO NOS PODEMOS ESQUECER QUE TEMOS UM ESTADO, QUE É O MAIOR
PROPRIETÁRIO DO PAÍS, QUE MAL CONHECE O SEU PRÓPRIO PATRIMÓNIO."

Destes, 348.097 foram comunicados como estando vagos, mas disponíveis “para venda ou
arrendamento”, sendo que os outros 375.118 estavam vagos “por outros motivos”, não
especificados. Pode assumir-se ser necessário estabelecer uma margem de erro, já que o
conceito de “alojamento vago” usado neste estudo pode não corresponder exatamente ao de
“prédio devoluto” que está na lei.

“Eu tenho muitas dúvidas que a questão dos arrendamentos feitos obrigatoriamente tenha um
impacto real na resolução do problema da habitação”, comenta José Diogo Marques, advogado
associado da Cuatrecasas e com especialização em imobiliário e urbanismo. “Não nos podemos
esquecer que temos um Estado, que é o maior proprietário do país, que mal conhece o seu
próprio património. Tenho alguma dificuldade em perceber como é que esse mesmo Estado vai
conseguir perceber em que situação estão os imóveis devolutos e vai ter meios para conseguir
implementar esta obrigatoriedade. Tenho sérias dúvidas que isso seja exequível”, afirma.

De resto, a apresentação do plano Mais Habitação foi omissa quanto à forma como o Governo
vai implementar a medida, tal como a própria proposta já disponibilizada, não se sabendo que
instrumentos o Estado vai utilizar para visar os proprietários.

Miguel Prata Roque lembra que “o decreto-lei que fixa o regime dos prédios devolutos
determina que as câmaras devem fazer um levantamento anual de quais são os prédios
devolutos na sua circunscrição”. Ou seja, “há já um dever de existir esse levantamento”, até
porque “autarquias de proximidade é que têm capacidade para saber se determinado prédio
tem uma casa com tijolos nas janelas e está vedada ou não”. Agora, outra questão é se “as
câmaras municipais cumprem essa função”, sublinha.

“NÃO SE PERCEBE MUITO BEM COMO É QUE O ESTADO QUER FAZER UMA POLÍTICA DE
HABITAÇÃO ATRAVÉS DE LEIS DE ÂMBITO NACIONAL E NÃO CONTAR MUITO COM OS
MUNICÍPIOS QUANTO À FORMA COMO ESSAS LEIS E MEDIDAS VÃO SER IMPLEMENTADAS.”

O papel que o poder municipal pode dar ao central para fazer esta verificação desemboca
noutra das críticas que têm sido levantadas ao Governo, nomeadamente pelos próprios
autarcas. “Ao fim de sete anos de inação, de propostas vãs, de promessas nunca concretizadas,
de medidas legislativas inócuas, eis que o Governo, sem ouvir as autarquias, decidiu avocar,
por confisco, a política de habitação”, comunicou Rui Moreira, tendo mais recentemente
acusado o executivo de "centralismo absoluto".

Para José Diogo Marques, os municípios são “os grandes desaparecidos em combate” no que
toca ao programa Mais Habitação. “Não se percebe muito bem como é que o Estado quer fazer
uma política de habitação através de leis de âmbito nacional e não contar muito com os
municípios quanto à forma como essas leis e medidas vão ser implementadas”, atira, frisando
que, sem municípios, o Estado “não tem como ajustar as necessidades às medidas”.

Além disso, o advogado realça que o arrendamento forçado nunca poderá ser uma solução
viável para este problema, já que, apesar de estar previsto na lei há mais de 10 anos, “nunca
ninguém conseguiu nem teve coragem para aplicar isso”, já que “é inaplicável na prática”
devido, entre outros fatores, à morosidade dos tribunais.

Paralelamente, Miguel Prata Roque refere que os critérios aplicados para implementado o
arrendamento forçado “podem ser controlados e que podem ser impugnados em tribunal".
“Por exemplo, se uma casa minha estiver nessas listas de prédios devolutos que as câmaras
municipais devem manter, eu posso — e já podia fazer isso antes do Governo tomar estas
decisões — ir a um tribunal administrativo e pedir ao tribunal que condene a Câmara
Municipal a retirar esse prédio da lista de prédios devolutos. Portanto, os proprietários têm
sempre a possibilidade de contestar e impugnar, quer perante o próprio Governo, quer perante
a Câmara Municipal, quer nos tribunais”, lembra.

“PARECE QUE NÃO SE PENSOU COMPLETAMENTE EM TODOS OS EFEITOS COLATERAIS QUE VÃO
RESULTAR DESTAS MEDIDAS E DA SUA APLICABILIDADE”

É por isso que, para José Diogo Marques, medidas como esta não são suficientes para resolver
o problema da habitação em Portugal. “O Governo confrontou-se com uma realidade que é
inequívoca, de que há uma crise séria de habitação —  e que, aliás, não se limita a Portugal —,
e decidiu tomar as medidas que fossem mais rapidamente implementáveis”, começa por dizer
o advogado. “A ideia que me dá, olhando para as medidas, é que se fez uma espécie
de brainstorming de 'coisas que podem fazer com que se aumente a oferta, coisas que podem
fazer reduzir a procura’, e dessa lista depois resultou este conjunto de medidas”, continua.

O problema, a seu ver, é que, mesmo que haja “algum impacto na resolução do problema da
habitação”, à primeira vista, “parece que não se pensou completamente em todos os efeitos
colaterais que vão resultar destas medidas e da sua aplicabilidade”. Para que o arrendamento
forçado pudesse ser uma opção exequível, a seu ver, seria necessária “uma reforma da
administração, do Estado, do modo como funcionam os tribunais”. “Sem isso, quaisquer
medidas que se tomem vão ser um pouco como pensos rápidos”, conclui.

https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/lei/2006-34578375

http://bdjur.almedina.net/citem.php?field=item_id&value=1727957

Artigo 59.º - Arrendamento forçado

       1 - Após a conclusão das obras realizadas pela câmara municipal nos termos do
disposto no n.º 4 do artigo 55.º, se o proprietário, no prazo de 20 dias, não proceder ao
ressarcimento integral das despesas incorridas pela entidade gestora, ou, no mesmo
prazo, não propuser outra forma alternativa de extinção da dívida, nomeadamente a dação
em cumprimento ou em função do cumprimento, ou ainda a consignação de rendimentos
do imóvel, nos termos da lei, pode a entidade gestora optar, em alternativa à cobrança
judicial da dívida em processo de execução fiscal, pelo arrendamento forçado, nos termos
previstos no RJUE..
       2 - (Revogado.)
       3 - O arrendamento previsto neste artigo não afasta o disposto no n.º 3 do artigo 73.º
       4 - (Revogado.)

Você também pode gostar