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Introdução – Sumários

18/19-11-2021 – Aulas teóricas

3.3.3 Da técnica legislativa e a segurança jurídica

Já aludimos, ao iniciar as nossas considerações a respeito da distinção entre ius


strictum e ius aequum que, para oferecer segurança à convivência humana, as
leis devem ser claras e precisas na sua formulação. Deste modo as leis devem
ter as suas finalidades bem delimitadas, sem disfarces, sendo os seus conceitos
e conteúdos bem definidos e determinados. Neste sentido podemos referir, como
exemplos: o artigo 122.º que define quem é menor com a consequência de não
ter capacidade de exercício (artigo 123.º), ou o artigo 130.º que diz quem é
maior e o artigo 138.º que nos explica quem, apesar de ser maior, beneficia de
medidas de acompanhamento, enunciando o artigo 140.º, n.º 1, as finalidades
destas medidas, ou o artigo 204.º que define as coisas imóveis, ou o artigo 220.º
que determina que um negócio que não observa a forma legal é nulo, ou o artigo
256, n.º 1, que diz que um negócio celebrado sob coacção moral é a anulável,
ou o artigo 1305.º, de quem também já falámos, que circunscreve o conteúdo
do direito da propriedade.

Mas muitas vezes, a lei recorre a conceitos que não apresentam um conteúdo
definido ou determinado, e aqui temos os conceitos jurídicos indeterminados e
as cláusulas gerais que encontramos em inúmeros preceitos legais. Em virtude
disso poderá parecer que a lei quer desmentir a necessidade de clareza no que
respeita a conteúdo ou finalidade da norma e que desconsidera a exigência da
precisão quanto ao objectivo das suas formulações, gerando deste modo a ideia
de minar ou subverter a segurança jurídica que deve garantir em primeiro lugar.

Mas ainda antes de analisarmos conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas


gerais, devemos ter em conta que, como tudo, qualquer língua está sujeita à
evolução de modo que as palavras usadas pelas leis também acompanham a
evolução linguística geral que acaba por influir no seu sentido e também afecta
o seu conteúdo, mudando o significado dos conceitos. Basta ler um texto antigo
para nos apercebermos como, além da grafia antiquada, entretanto também o
uso linguístico mudou, como o sentido de um conceito é agora diferente de uma
acepção anterior1. Deste modo, a indeterminação é o resultado da evolução a
que a língua está sujeita. Este fenómeno, porém, é perfeitamente diferente

1
Por isso, os textos antigos muitas vezes são acompanhados por um glossário que nos explica o
significado das palavras com significados mudados ou até fora de uso.
daquele em que a lei emprega, logo à partida, conceitos jurídicos sem o conteúdo
bem definido quando recorre a conceitos jurídicos indeterminados ou a cláusulas
gerais.

3.3.3.1 Os conceitos jurídicos indeterminados

Os conceitos jurídicos indeterminados apresentam-nos à partida um conteúdo


objectivo, mas indeterminado. Este conteúdo passa a ser determinado (definido)
mais tarde, istro é, na altura da solução de um caso concreto.

a) Aqui há muitos exemplos que podemos aduzir: assim, os três conceitos


empregues no artigo 127.º, n.º 1, alínea b) [negócio da “vida corrente” do menor,
estando ao alcance da sua “capacidade natural”, implicando despesas de
“pequena importância”]; as “concepções dominantes no comércio jurídico”
(artigo 253.º, n.º 2); a “ordem pública” (artigos 280.º, n.º 2, e 281.º) ; o “fim
económico e social” do direito (artigo 334.º); o “bom pai da família” (artigos
146.º, n.º 1, 487.º, n.º 2, e 1446.º); o “animal de companhia” (artigo 483.º-A,
n.º 3); a “prudência normal” (artigo 621.º); o “bem da família” (artigo 1671.º,
n.º 2); o “superior interesse da criança”, aliás definido por terceiros (artigo
1794.º); “razões manifestas de equidade” (artigo 2016.º, n.º 3); além de muito
mais outros tais como “ser essencial”, ser “de interesse público”; “violência”,
“casos absolutamente excepcionais”, “fundamentação pertinente”, etc. Mas o
“campeão” dos conceitos jurídicos indeterminados é o “terceiro” que é utilizado
em inúmeros preceitos legais e de uma longa lista mencionamos como exemplos
apenas os artigos 243.º, n.º 3; 254.º, n. 2; 256.º; 266.º, n.º 1; 291.º; 686.º, n.º
1); 1711.º, n.º 1; etc. Há, todavia, circunstâncias em que a lei não pode deixar
de o concretizar sob pena de pôr em causa a segurança jurídica. Neste contexto
é da maior relevância a definição legal do terceiro pelo artigo 5.º, n. º 4, do
Código do Registo Predial2.

Podemos acrescentar que aos conceitos indeterminados pertencem também os


conceitos gradativos (exemplos: a “pequena importância”, referida no artigo
127.º, n.º 1, alínea b), a “culpa grave” ou “mera culpa”, relevantes entre outros
para a aplicação dos artigos 494.º e 496.º.

b) Também pertence aqui a “boa fé”, um conceito que exprime um princípio que
norteia toda ordem jurídica e que perpassa designadamente todo o articulado do
Código Civil, sendo a boa fé entendida como um padrão ou norma de conduta
(ver a este respeito os artigos 227.º, 334.º, 762.º, etc. em que a lei estabelece
diretrizes gerais a concretizar nos casos concretos que o juiz deve decidir). Assim
entendido, o conceito da boa fé é uma regra de conduta, uma norma de

2
“Terceiros, para efeitos do registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum
direitos incompatíveis entre si” e não quaisquer outras pessoas ou outros adquirentes.
comportamento (Treu und Glauben) e como tal é um critério normativo. Falamos
da boa fé objectiva.

Contudo, o conceito da boa fé tem ainda um outro sentido, e aqui falamos da


boa fé subjectiva que corresponde a um estado de espírito de uma pessoa como
saber ou ignorar, ter ou não ter conhecimento, confiar ou acreditar (gutgläubig
ou bösgläubig). Como as percepções subjectivas, em relação a um mesmo facto
ou situação, podem ser diferentes a lei não deixa para todos os casos o conteúdo
do critério da boa fé completamente em aberto para ele ser concretizado apenas
ex post na resolução de um caso concreto, mas – à semelhança do que sucedeu
com o conceito de terceiro a que a lei atribuiu no artigo 5.º, n.º 4, do Código do
Registo Predial um conteúdo determinado para o tornar “operacional” – sente a
necessidade de clarificar a boa fé subjectiva logo de acordo com os contextos e
a atitude subjectiva e mental em que o acto a avaliar vai ser praticado. A este
respeito podemos ver nos exemplos seguintes: artigo 892.º (a lei não define),
artigo 291.º, n.º 3 (a lei define), artigo 243.º, n.º 2 (a lei define, embora num
sentido diferente do artigo 291.º, n.º 3) e o artigo 119.º, n.º 3, onde a lei a
define pela negativa, ou seja, pela má fé)3.

3.3.3.2 As cláusulas gerais

Diferente são as cláusulas gerais. À semelhança do que acontece com os


conceitos jurídicos indeterminados também as cláusulas gerais só acabam por
ser concretizadas na solução de um caso concreto. Mas ao contrário daqueles as
cláusulas gerais incluem concepções ou reflexões que têm uma conotação
valorativa (subjectiva). Por exemplo: as “injúrias graves” (que o artigo 4.º da Lei
do Divórcio de 1910 contava entre as causas do divórcio), a “violação culposa
dos deveres conjugais” (que pela sua gravidade ou reiteração comprometia a
vida em comum, assim o artigo 1779.º do Código Civil, na redação de 1977,
entretanto revogado), os “bons costumes” (artigos 280.º e 281.º, em que a lei,
excepcionalmente, juridifica a moral, ou seja, os valores morais positivos gerais,
vigentes na sociedade), a “justa causa” (artigo 1170.º, n.º 2), a “violação culposa
dos deveres para com os filhos” (artigo 1915.º, n.º 1). A cláusula da justa causa
tem grande relevância do âmbito do direito do trabalho, nomeadamente quando
se quer fundamentar um despedimento com a invocação de uma “justa causa”
devida a um comportamento do trabalhador.

Nem sempre é fácil dizer se uma dada formulação legal deve ser considerada um
conceito jurídico indeterminado ou uma cláusula geral (como sucede em relação
aos “bons costumes”, um conceito em que se reflectem concepções morais, mas

3
Pode ler-se a este respeito Raúl GUICHARD, À volta do princípio da boa fé, Revista de Ciências
Empresariais e Jurídicas, N.º 26, 2015, pp. 33-87.
ainda económicas, sociais, o sentir relativo à justiça, concepções que evoluem e
se modificam, como já sabemos.

3.3.3.3 Da inevitabilidade do recurso a conceitos jurídicos indeterminados e


cláusulas gerais

Atendendo à impossibilidade de prever com alguma precisão a grande variedade


dos casos concretos que podem ocorrer, a utilização por parte do legislador de
conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais é inevitável. Além disso, e
isto é um factor muito importante, mediante o recurso a conceitos jurídicos
indeterminados e cláusulas gerais consegue-se adaptar o conteúdo do texto das
normas legais à evolução e a novas realidades que a lei deve acompanhar (v.g.,
as “concepções dominantes no comércio jurídico”), estando deste modo a lei
sempre actualizada e em sintonia com a evolução e a realidade social que visa
ordenar. Deste modo, os conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais
conferem um grau apreciável de flexibilidade ao julgador na aplicação actualizada
da lei, mas ao mesmo tempo introduzem alguma insegurança ao dificultar a
previsibilidade das decisões judiciais (ou administrativas), pois os contornos das
cláusulas podem revelar-se fluídos e os seus conteúdos esbatem-se.

Sobretudo em períodos de rápida mudança social (ou de crise social) as cláusulas


e os conceitos referidos – se, por um lado, conferem um grande grau de
flexibilidade à aplicação das leis ao permitir a adaptação da sua rigidez normativa
a novas realidades – introduzem, por outro lado, alguma insegurança e dificultam
a previsibilidade das decisões judiciais. Todavia, o maior perigo que encerram é
a sua utilização baseada em critérios políticos e ideológicos e não de justiça
(como, aliás, no passado já sucedeu em larga escala [basta lembrar os conceitos
de “bons costumes” ou “inimigo do povo” ou o “espírito do MFA”4]). Com o
recurso a conceitos indeterminados e cláusulas gerais o legislador confia – tem
que confiar – que nas suas decisões os tribunais os saibam aplicar de forma justa.

3.3.3.4 Assim podemos tirar algumas conclusões quanto aos fins do direito:

É fundamental que as normas jurídicas aceitam e protegem a liberdade: cada


homem tem direito a um máximo da liberdade (pessoal e económica) que é
conciliável com a idêntica liberdade dos outros. E, sobretudo, cada homem tem
em relação a qualquer outro homem com que vive em sociedade o direito de ser
respeitado quanto à sua dignidade pessoal e quanto à sua vida, saúde e
integridade física e mental. Neste aspecto há perfeita reciprocidade.

Atendendo aos elementos da justiça, deve haver procedimentos criteriosos e


equilibrados na aquisição (atribuição) e protecção dos bens. Quer dizer, a

4
Movimento das Forças Armadas que está na origem da Revolução democrática de 1974.
distribuição legítima dos bens em resultado da justiça comutativa (do ut des) é
de aceitar. Os direitos adquiridos legitimamente (isto é, de acordo com a ordem
jurídica) devem ser acatados. Neste sentido, a ordem jurídica protege o
adquirido, havendo naturalmente quem adquiriu mais e quem adquiriu menos.
No que respeita à justiça contributiva, deve haver igualdade da obrigação e
proporcionalidade na prestação das contribuições. Por fim, é de respeitar e
cumprir o princípio da justiça distributiva a favor dos realmente necessitados.

De acordo com as exigências da justiça distributiva (e justiça social) a cada


homem deve ser garantido o mínimo de existência (todos – e isto vale desde já
para deficientes, vítimas de guerras, pessoas com origens desfavorecidas,
espécies desconsideradas, etc. – têm o direito a uma vida humana digna,
simplesmente devido à sua condição de ser humano). Portanto, é preciso criar
quadros legais que abarquem estas situações de desfavor para que a justiça
possa funcionar. Os desfavorecidos devem beneficiar, atendendo ao seu grau de
necessidade, de uma redistribuição diferenciada dos bens. Por outro lado, sempre
que possível devem existir, e devem ser estimuladas (!), oportunidades para que
os desfavorecidos possam libertar-se da sua condição.

A ordem jurídica deve ser transparente, minimamente estável (sem medidas de


retroactividade) e perceptível e as decisões dos órgãos da justiça devem ser
previsíveis. Deve haver a garantia de que a aplicação estrita das normas jurídicas
é efectivamente o caso normal. A credibilidade e eficácia do direito dependem do
aparelho de coerção do Estado e da independência e isenção dos tribunais que
fazem cumprir as leis.

Por fim acrescenta-se ainda um aspecto que, embora não seja jurídico, é de
grande importância: as leis devem também ter em conta a eficiência económica
das suas normas com o objetivo de uma alocação optimizada dos recursos para
evitar o desperdício de meios, sendo certo, todavia, que a eficiência económica
não é um critério de justiça e ainda menos equivale à justiça nem a garante 5. A
explicação é simples: não se pode submeter o homem a raciocínios económicos
ou de eficiência económica.

4. O Estado e o Direito

[4.1 Noção e elementos do Estado Moderno

Como sabemos é o Estado que decide se uma norma de conduta é juridificada, tendo
deste modo a natureza de uma norma jurídica; por isso, a fonte do Direito é estadual.
Em princípio o Estado moderno e soberano cria o Direito e neste sentido possui o

5
Esta problemática é objecto da chamada “análise económica do Direito”, uma doutrina que foi
desenvolvida – a partir dos ensinamentos do sociólogo e economista italiano Alfredo Pareto –
sobretudo nos Estados Unidos da América e ganhou adeptos também na Europa.

A matéria, colocada entre […] foi leccionada nas aulas práticas.
respectivo monopólio. Quanto ao direito cujas fontes não são estaduais, isto é o direito
internacional, é, todavia, novamente o Estado quem decide se e em que medida este
direito vigora na sua ordem jurídica interna. A este respeito o artigo 8.º da Constituição
da República tem nos seus números 1 a 4 soluções diferenciadas em atenção à origem
destas normas internacionais.

Na medida em que o Estado é criador do Direito dispõe de recursos para que as suas
normas sejam observadas, servindo-se para o efeito dos meios de coação necessários
(órgãos administrativos, policiais e judiciais). A este respeito o Estado tem o monopólio
do poder para impor as leis. Assim, passamos a referir em termos breves as funções do
Estado moderno e, neste contexto, devemos distinguir primeiro os conceitos de:

a) “Nação”: uma comunidade assente na convivência de homens pertencentes à mesma


etnia, ligados pela mesma língua e pelas mesmas tradições com que se imprime à nação
um carácter particular que a individualiza;

b) “Povo”: como conceito geral, não tem um sentido unívoco; como conceito no nosso
contexto significa o conjunto das pessoas ligadas ao seu Estado pelo vínculo jurídico da
nacionalidade [cidadãos ou nacionais]; o vínculo da nacionalidade não depende do
pressuposto de os cidadãos pertencerem à mesma etnia [= nação] de modo que um
Estado não precisa de ser etnicamente homogéneo6;

c) “População”: é um conceito que se refere tão-só a todos os residentes no território


de um Estado, sendo eles nacionais ou não;

d) “Território”: o território corresponde ao espaço delimitado por fronteiras, em que o


Estado exerce o seu poder político e se rege pelas suas leis, aplicáveis e executadas por
autoridade própria. O território abrange o solo e subsolo e espaço aéreo, bem como o
mar territorial se o Estado tiver costa marítima (por exemplo, Portugal tem uma área
marítima substancialmente maior do que o seu território continental).

e) “Poder político”: significa capacidade para instituir órgãos e, com autonomia e


autoridade, exercer no território sobre o povo jurisdição, detendo meios coercivos
capazes de impor a execução de normas jurídicas por si criadas.

Dito isto, podemos dizer que os elementos do Estado moderno são: o povo, o território7
e o poder político. Para o exercício do seu poder o Estado necessita de estruturas
administrativas eficazes. Esta necessidade fez com que surgisse um funcionalismo
público profissionalizado que se desenvolveu em simultâneo com o advento do Estado
moderno, sendo a sua criação incentivada pelo poder político8.

6
Não obstante este facto, notamos que a partir da Revolução Francesa de 1789 e depois da 1.ª
Grande Guerra (1914-1918) e, novamente, depois da 2.ª Grande Guerra (1939-1945) procurou-
se em muitos Estados alcançar uma homogeneização étnica dos nacionais com efeitos nefastos
para as minorias étnicas atingidas pelas medidas correspondentes, ou seja, expulsões (=
“limpezas étnicas”), assimilações forçadas e proibições do uso das línguas minoritárias.
7
Por mais exíguo que seja, veja-se, por exemplo, o Estado do Vaticano.
8
Como nos mostra, por exemplo, a instituição da Universidade Estatal de Nápoles pelo rei e
imperador Frederico II em 1224, destinada a formar os quadros administrativos para o Reino da
A soberania não é um elemento essencial do Estado como o provam os Estados
federados, em que os Estados que compõem a Federação mantêm todos os elementos
essenciais que os caraterizam como Estados9.

Falta ainda ressalvar que não se poderá confundir o conceito de Estado com o conceito
de estado, pois este último define hoje as condições das pessoas, por exemplo, o estado
civil, familiar ou social ou insolvente.

4.2 Evolução do Estado moderno (resenha sumária)

A evolução do Estado moderno, enquanto organização política em termos distintos da


sociedade que reside num determinado território, começa a formar-se – abstraindo do
Reino da Sicília sob os reis Roger II e Frederico II nos séculos XII e XIII –
nomeadamente a partir da época do Renascimento (séculos XIV-XVI), quer dizer, no
período da transição da Idade Média para o Tempo Moderno, com o Estado monárquico
a assumir formas absolutistas e/ou paternalistas. Neste último caso “polícia” tinha
funções administrativas, coercivas e sociais, isto é, de providência social (temos a
chamada “boa polícia”), havia da parte do poder monárquico uma preocupação com as
condições de vida e a felicidade dos súbditos, assumindo o Estado funções tutelares.

Depois da Revolução Francesa de 1789 dá-se a evolução para o Estado de Direito liberal,
em que o próprio Estado – devido à separação dos poderes (legislativo, executivo e
judicativo) – fica submetido às leis. As tarefas do Estado ficam limitadas à esfera política,
à manutenção da ordem pública e à garantia da segurança jurídica; os cidadãos têm
direitos de defesa (= os direitos, liberdades e garantias como direitos fundamentais)
contra o Estado que, em princípio, não interfere nas suas atividades económicas, aliás
na altura de dimensões bastante comedidas. Na realidade, porém, estas interferências
verificaram-se: as esferas políticas e económicas sempre se misturaram e nunca houve
uma delimitação estanque.

Ao Estado de Direito liberal segue-se o Estado de Direito social em que surgem os direitos
de protecção social dos cidadãos que complementam os direitos fundamentais e
intensificam-se as intervenções do Estado nas atividades económicas que, entretanto,
devido à industrialização, alcançaram grandes dimensões.

O Estado de Direito social, por sua vez, evolui depois para o Estado social ou de bem-
estar ou de providência social, empenhado na realização da “justiça social” que
corresponde, como alguém diz, a uma “utopia concreta” e uma “tarefa eterna”, com o
perigo de o homem livre ser encaminhado no sentido do homem tutelado, adquirindo
um estatuto de menoridade permanente face a um Estado( [omni)sapiente e

Sicília (que abrangia também o Sul da Itália onde se situa Nápoles). Em comparação: a primeira
universidade espanhola em Salamanca foi fundada em 1218.
9
Por exemplo, o Brasil, o México, os Estados Unidos da América do Norte, o Canadá, a Suíça
(Confederação Helvética), a Áustria, a Alemanha, a República Checa, etc. Convém esclarecer que
os Estados federados apresentam – nos que respeita às competências próprias dos Estados que
os integram e as competências concedidas à federação – grandes diferenças entre si.
(todo)previdente, correndo-se o risco de o Estado social se transformar numa
“democracia de favores” como variante moderna do clientelismo.

4.3 As funções do Estado Moderno

As funções do Estado consistem em garantir, a partir das suas estruturas, a paz social
interna e a segurança externa bem como em legislar e fazer cumprir as leis. O conceito
de Estado não coincide com o de Direito, é do Estado que emana o Direito10.

De forma sintética, podemos dizer que o Estado possui as seguintes funções:

a) A função política: cabe e compete ao Governo no exercício desta função, definir e


prosseguir os interesses da colectividade, tomando as decisões que na prossecução
destes fins em cada momento se considerarem mais acertadas, seja em matéria de
direitos económicos e sociais, no acesso a cargos e funções públicas entre outras.

b) A função legislativa: que consiste na criação de actos legislativos segundo regras e


procedimentos definidos constitucionalmente. Os actos legislativos são as leis, os
decretos-leis, os decretos e os decretos legislativos regionais.

c) A função jurisdicional: que é exercida pelos Tribunais, enquanto órgãos de soberania,


a quem compete administrar a justiça em nome do povo, assegurar a defesa dos direitos
e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade
democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

d) A função administrativa: executada pelos órgãos administrativos do Estado, actuando


no interesse público, prosseguindo o bem comum e satisfazendo as necessidades da
coletividade de acordo com a política e legislação pré-determinada.]

4.4 Os direitos subjectivos públicos

Como vimos, na sequência do nascimento do Estado de Direito liberal passou a


haver o controlo judicial das leis e da sua aplicação e, muito hesitantemente,
também dos actos da Administração. O cidadão possui direitos subjectivos
públicos que pode invocar contra o Estado para se defender, ou para exigir um
determinado comportamento a que correspondem deveres do Estado, ou ao pôr
limites ao exercício dos poderes do Estado. Na medida em que qualquer cidadão
está submetido ao poder do Estado existe uma relação geral de poder
(allgemeines Gewaltverhältnis) entre o Estado e o cidadão (indivíduo) que está
sujeito, subordinado, ao seu poder, quer dizer, o chamado poder de império do
Estado (a “publica potestas”).

Ao mesmo tempo surgem também relações especiais de poder (besondere


Gewaltverhältnisse) entre o Estado e seus cidadãos que resultam de relações
10
Como já referimos (ver Sumário das aulas de 29/30-9, sob ← ponto 2.1.3, nota de pé de página
26) foi Hans Kelsen que defendeu a identidade entre Estado e Direito.
específicas e diferenciadas entre o Estado e seus cidadãos. A este respeito
distinguem-se vários estados de relacionamento:

a) o “status passivus”: compreende os deveres do indivíduo para com o Estado,


como por exemplo, prestar serviço militar ou social ou pagar impostos;

b) o “status activus”: o direito de participar na vida do Estado, como por exemplo


através de eleições ou por via de acesso a cargos públicos;

c) o “status negativus”: direitos de defesa contra o Estado, em primeiro lugar, os


direitos fundamentais, os direitos, liberdades e garantias;

d) o “status positivus”: direitos do indivíduo à proteção pelo Estado, como por


exemplo, as múltiplas prestações sociais que são devidas, o apoio judiciário, entre
outras.

Da relação geral de poder bem como das várias relações especiais de poder
resultam para o cidadão direitos subjectivos públicos diferenciados e obrigações
específicas face ao Estado e também obrigações do Estado em relação aos seus
cidadãos. Quer dizer quando falamos de direitos subjectivos públicos estamos em
face de relações entre cidadãos (indivíduos) e o Estado (ou outras entidades que
fazem parte da organização estadual). → Estas relações são reguladas pelo
direito público.

Em contrapartida temos os direitos subjectivos privados. Aqui estamos perante


as relações entre particulares estabelecidas regularmente entre eles em pé de
igualdade por via de contratos onde temos um equilíbrio de poder e de que
resultam os seus direitos e obrigações. → Estas relações são reguladas pelo
direito privado.

Do exposto vemos que estamos perante dois tipos de relações essencialmente


diferentes entre si: nas relações com o Estado (com o seu poder de império), os
cidadãos estão, regularmente, numa situação de inferioridade, por outro lado,
nas relações entre particulares (com o seu equilíbrio de poder) estes encontram-
se normalmente numa posição de igualdade. Assim, numa apreciação geral, o
direito público tem uma estrutura vertical (Estado ↓ cidadão) enquanto o direito
privado nos apresenta uma estrutura horizontal (indivíduo particular ↔ indivíduo
particular.

A partir daí – direitos subjectivos públicos versus direitos subjectivos privados –


torna-se fácil perceber as grandes linhas estruturantes do sistema jurídico.

Na verdade, quando até agora temos falado do Direito, isto é de todo o direito
objectivo e das suas normas como um conjunto comum, vimos apenas o mare
magnum, o mar imenso das leis e das normas que o enchem e ficámos ainda a
saber que é este direito objectivo que reconhece ou atribui às pessoas os seus
direitos subjectivos e que estabelece as correspondentes obrigações e agora
podemos precisar que os direitos subjectivos atribuídos ou reconhecidos ou são
direitos subjectivos públicos ou são direitos subjectivos privados.

5. Os ramos de Direito

Todavia, temos que diferenciar: O sistema jurídico está estruturado ou


sistematizado precisamente em função das diferentes relações jurídicas (e os
direitos subjectivos), públicas ou privadas, que acabamos de referir. Por isso,
olhando a partir daí para todo o conjunto do direito objectivo e procurando
sistematizá-lo chegamos, numa primeira abordagem, à summa divisio entre o
direito privado, que visa as relações jurídicas privadas, e o direito público,
destinado a regular relações jurídicas sem natureza privada ou particular.

Temos assim o direito objectivo como o conjunto das normas jurídicas em geral
dividido entre Direito Privado (direito subjectivo/obrigações privadas) e Direito
Público (direito subjectivo/obrigações públicas).

Por sua vez, tanto o direito privado e como o direito público encontram-se
divididos em vários ramos.

5.1 Ramos de Direito Público

Os vários ramos do direito público são, designadamente:

a) O Direito Constitucional ou Político: relacionado com o poder político como


“elemento do Estado moderno”. A Constituição é, antes de tudo, o estatuto
organizatório do Estado e seus órgãos de soberania com as suas competências
específicas e define as relações entre estas bem como as relações (as relações
de poder) entre os cidadãos e o seu Estado; ela estabelece as traves mestres do
ordenamento jurídico da comunidade, não sendo essencial que contenha direitos
fundamentais.

b) O Direito Administrativo: disciplina a organização e as competências da vasta


actividade da Administração Pública. Na medida em que são juridificadas cada
vez mais relações sociais as competências da Administração, sobretudo as da
administração social, alargam-se contínua e significativamente.

c) O Direito Fiscal: destina-se, em primeiro lugar, à obtenção de receitas públicas


mas serve também para intervir nas actividades económicas, ou com incentivos
fiscais relativamente a certas actividades económicas ou investimentos que se
pretendem favorecer ou com agravamentos para influenciar comportamentos de
consumo que se querem penalizar; mas também serve, nomeadamente por meio
do imposto sobre os rendimentos e do imposto sucessório, para fins de
(re)distribuição de benefícios e patrimónios; aliás, a realização da justiça
distributiva depende da capacidade financeira do Estado como efeito da justiça
contributiva por via dos impostos.

d) O Direito Penal (ou direito criminal): destina-se à defesa de bens e valores


fundamentais da comunidade; estando baseado no mais estrito princípio da
legalidade (nullum crimen sine lege), ao tipificar (pré-definir) com precisão
legalmente os crimes, como condutas reprováveis que lesam os bens e valores
fundamentas, prevê também as sanções (as penas) correspondentes e determina
as medidas de segurança que se mostrem inevitáveis, sendo estas sanções e
medidas de segurança igualmente pré-definidas pela lei (nulla poena sine lege).
A doutrina moderna defende que o direito penal, além de punir o autor de um
crime, tem também uma função de ressocialização para evitar a sua
estigmatização social perpétua; de resto, a punição do criminoso não elimina o
próprio crime e os seus efeitos nefastos, mas constitui uma satisfação para a
vítima e tem (ou pode ter) também um efeito preventivo para dissuadir outros
potenciais infratores de cometerem crimes.

e) O Direito Internacional Público: regula as relações jurídicas entre os Estados


soberanos e demais entidades soberanas11 e as organizações internacionais. Ao
contrário do que sucede com o direito em geral que tem como fonte um legislador
estadual o Direito Internacional Público tem fontes supraestaduais12. As normas
do direito Internacional Público são coercíveis, por exemplo, mediante a aplicação
de sanções, embargos ou, como recurso último baseado num mandato das
Nações Unidas, com a guerra contra o infractor. Contudo, a coercibilidade
depende, atendendo ao sujeito infractor em questão, em parte considerável, das
posições de força/poder do infractor em relação a quem o pretende punir. Sendo
assim, o Direito Internacional Público é forte quando se trata de punir infractores
fracos.

Acrescenta-se ainda, neste seguimento, que os tratados internacionais


celebrados entre a Santa Sé (o Papa surge-nos como caput da Igreja Católica) e
os Estados chamam-se concordatas. O direito da Igreja Católica Romana, isto é,
da igreja latina, pois não abrange as igrejas orientais, está consagrado no Codex
Iuris Canonici de 1983 e regula a organização da Igreja e aplica-se ao “Povo de
Deus” cuja justa ordem social procura construir tendo fins religiosos.

11
Por exemplo, a Soberana Ordem de Malta e a Santa Sé. Contudo, nem todos os sujeitos de
Direito Internacional Público reconhecem estas entidades neste sentido. – O Estado de Vaticano
é um sujeito de direito internacional público próprio.
12
Pertencem aqui Convenções, o Costume internacional, que tem grande relevância sobretudo
no direito marítimo, Tratados, a Carta das Nações Unidas, os Princípios Gerais de Direito comuns
às nações civilizadas, os Princípios de Direito Internacional Geral.
Finalmente, falta referir a União Europeia que não é uma Federação, uma vez
que é composta por Estados soberanos, mas um fenómeno sui generis assente
numa base contratual entre vários Estados soberanos que passou a ser sujeito
do Direito Internacional Público. O Direito Comunitário, baseado nos contratos
celebrados entre os soberanos Estados-Membros da União, tem uma relevância
cada vez mais crescente para o direito interno dos seus Estados-Membros na
medida em que prevalece sobre as leis nacionais desde que se mantenha dentro
dos limites contratuais em que assenta.

f) O Direito Processual: há quem entenda que o direito processual está fora da


dicotomia direito público versus direito privado.

Para o efeito, distingue-se, dentro do corpo do direito objectivo, entre o direito


material, o chamado direito substantivo, que reconhece ou atribui os direitos
subjectivos e estabelece as correspondentes obrigações, e o direito processual,
o chamado direito adjectivo.

O direito processual destina-se a garantir e efectivar a defesa dos direitos


subjectivos e o cumprimento das obrigações. Para o efeito devem ser observadas
as respectivas regras processuais formais tanto pelas entidades públicas
(tribunais, órgãos administrativos) como pelas partes interessadas que se lhes
dirigem (por meio de actos processuais como acções, requerimentos,
apresentações, recursos, etc.). As regras processuais formais, como por exemplo
quanto a prazos, provas, etc., destinam-se a garantir o tratamento igual das
partes interessadas perante os tribunais e a administração e visam evitar
arbitrariedades.

Em certa sintonia com os vários códigos que consagram o direito material


(substantivo), temos os vários códigos processuais (civil, penal, administrativo e
fiscal, de trabalho) e, entre eles, os códigos registrais. Por exemplo, ao Código
Civil como direito substantivo ou material corresponde o Código de Processo Civil
como direito adjectivo ou formal. O Código de Processo Civil é um “código -
padrão” e tem relevância na medida em que é uma referência para as outras leis
processuais.

O direito formal, processual ou adjectivo, está ao serviço do direito material ou


substantivo e tira daí o seu sentido útil, tendo deste modo uma função
subordinada; mas daí não resulta de modo nenhum que o direito processual seja
menos relevante ou inferior em comparação com o direito material. Enquanto o
direito objectivo, substantivo ou material, atribui ou reconhece os direitos
subjectivos e estabelece as respectivas obrigações, a violação dos direitos ou o
não cumprimento das obrigações tem como consequência a afirmação (ou
imposição ou realização) do direito objectivo e dos direitos subjectivos bem como
as obrigações nele baseados através de um processo judicial segundo as regras
processuais, ou seja, do direito formal.

f) O Direito Internacional Público: regula as relações jurídicas entre os Estados


soberanos e demais entidades soberanas13 e as organizações internacionais. Ao
contrário do que sucede com o direito em geral que tem como fonte um legislador
estadual o Direito Internacional Público tem fontes supraestaduais14. As normas
do direito Internacional Público são coercíveis, por exemplo, mediante a aplicação
de sanções, embargos ou, como recurso último baseado num mandato das
Nações Unidas, com a guerra contra o infractor. Contudo, a coercibilidade
depende, atendendo ao sujeito infractor em questão, em parte considerável, das
posições de força/poder do infractor em relação a quem o pretende punir. Sendo
assim, o Direito Internacional Público é forte quando se trata de punir infractores
fracos.

Acrescenta-se ainda, neste seguimento, que os tratados internacionais


celebrados entre a Santa Sé (o Papa surge-nos como caput da Igreja Católica) e
os Estados chamam-se concordatas. O direito da Igreja Católica Romana, isto é,
latina, pois não abrange as igrejas orientais, está consagrado no Codex Iuris
Canonici de 1983 e regula a organização da Igreja e aplica-se ao “Povo de Deus”
cuja justa ordem social procura construir tendo fins religiosos.

Finalmente, falta referir a União Europeia que não é uma Federação, uma vez
que é composta por Estados soberanos, mas um fenómeno sui generis assente
numa base contratual entre vários Estados soberanos que passou a ser sujeito
do Direito Internacional Público. O Direito Comunitário, baseado nos contratos
celebrados entre os soberanos Estados-Membros da União, tem uma relevância
cada vez mais crescente para o direito interno dos seus Estados-Membros na
medida em que prevalece sobre as leis nacionais desde que se mantenha dentro
dos limites contratuais em que assenta.

5.2 Ramos de Direito Privado

Os vários ramos do direito privado são:

a) O Direito Civil: inicialmente, direito privado e direito civil eram idênticos e as


suas designações eram sinónimas. O direito civil tem a sua origem no direito

13
Por exemplo, a Soberana Ordem de Malta e a Santa Sé. Contudo, nem todos os sujeitos de
Direito Internacional Público reconhecem estas entidades neste sentido. – O Estado de Vaticano
é – ao lado e diferente da Santa Sé – um sujeito de direito internacional público próprio.
14
Pertencem aqui Convenções, o Costume internacional, que tem grande relevância sobretudo
no direito marítimo, Tratados, a Carta das Nações Unidas, os Princípios Gerais de Direito comuns
às nações civilizadas, os Princípios de Direito Internacional Geral.
romano, designadamente no Corpus Iuris Civilis (533/534) do Imperador do
Império Romano Oriental Justinianus. O Corpus Iuris Civilis é, ao lado da Bíblia,
o livro mais relevante no mundo ocidental. O Direito Civil é hoje um ramo do
direito privado, mas continua a consagrar, como direito privado comum, as regras
fundamentais para todo o direito privado, ou seja, todos os vários direitos
privados especiais que, ao longo do tempo e em sintonia com a evolução
económica e social, se vieram a diferenciar do direito civil. A fonte principal do
Direito Civil é o Código Civil, contudo, ao lado deste, existem leis civis
complementares muito relevantes cuja matéria, todavia, o legislador (ainda) não
quis integrar no Código como, por exemplo, o regime das cláusulas contratuais
gerais ou a legislação que pretende proteger quem viva em união de facto ou o
regime do arrendamento rural ou o direito real de habitação periódica. A
estrutura do Código Civil obedece a critérios jurídico-sistemáticos que o
pretendem tornar praticável e por isso, exceptuado o direito da família, não se
baseia nas realidades sociais (instituições). Nas suas linhas essenciais segue a
sistematização adoptada pelo Bürgerliches Gesetzbuch alemão (BGB) de 1900
que, por seu lado, é, além das suas raízes germânicas, tanto no seu conteúdo
como na sua estrutura, devedor do Corpus Iuris Civilis. Há numerosos conceitos,
institutos e soluções do direito romano que encontramos no BGB donde passaram
para o Código Civil português. Este é, tal como o BGB, dividido em cinco Livros
(ver infra → ponto 5.4).

b) O Direito Comercial: este ramo de direito foi o primeiro a autonomizar-se


dentro do direito privado ao lado do direito civil na sequência das relações
comerciais que se foram estabelecendo na idade média15. Ainda hoje muitos
termos e conceitos do direito comercial mantêm a sua origem italiana. Durante
longos séculos existiu dentro do direito privado a dicotomia entre o direito civil e
o direito comercial.

c) O Direito do Trabalho: surgiu com a industrialização na segunda metade do


século XIX e a sua relevância evidencia-se pelo facto de a maior parte da
população trabalhar por conta de outrem, estando assim numa situação
dependente em relação ao dador do trabalho. Apesar de pertencer ao direito
privado – as relações laborais têm a sua origem na autonomia privada das partes
que celebram os contratos individuais de trabalho – ele é caracterizado por um
forte intervencionismo da administração pública com o objectivo de garantir


No que respeita à sistematização do Corpus Iuris Civilis e sua relevância como exemplo para as
legislações civis posteriores segue um Anexo a este Sumário, tendo este Anexo fins meramente
informativos.
15
Por exemplo a partir das cidades de Veneza e Génova e das cidades da Liga Hanseática ou
ainda devido à expansão marítima.
condições de trabalho condignas com vista à proteção do trabalhador como a
parte contratual mais fraca.

d) O Direito Económico: compreende as leis de direito privado compreendidas e


abarcadas pelo critério amplo da economicidade. Neste sentido integra, por
exemplo, o direito comercial, o direito do trabalho, o direito industrial e das
sociedades ou o direito da concorrência.

e) O Direito do Desporto: este ramo de direito encontra-se em fase de


autonomização e compreende as regras desportivas estabelecidas pelas
associações nacionais e internacionais e cujo desrespeito pelos praticantes (por
exemplo mediante o recurso ao “doping”) é sancionado autonomamente pelas
próprias instâncias desportivas. Neste ramo do direito privado, cuja importância
social e, sobretudo, económica é cada vez maior, há muitas situações duvidosas
na medida em que o controlo das multifacetadas (e nem sempre transparentes)
actividades das poderosas organizações desportivas por parte das instâncias
estaduais – caso exista – é incipiente.

f) O Direito Internacional Privado: ao contrário do que sucede com o direito


internacional público, não regula relações jurídicas. Quando está em causa a
solução de um caso em que intervêm nacionais de vários Estados (por exemplo
um português tem em França um acidente que lesiona um turco ou duas pessoas
com nacionalidades diferentes querem casar) limita-se a remeter para o direito
privado do Estado que considera competente para a solução do caso. Com esta
remissão fica resolvido o conflito entre várias leis potencialmente aplicáveis (no
caso do acidente as leis portuguesa, francesa ou turca).

5.3 Alusão aos critérios de delimitação entre Direito Público e Privado

Para concluir a análise dos vários ramos de Direito, cumpre ainda aflorar, e
apenas aflorar, os critérios de delimitação para saber se uma dada relação
pertence, ou é regulada, pelo Direito Público ou pelo Direito Privado.

Nas relações entre particulares estamos, normalmente, e como dissemos,


perante uma situação em que os intervenientes estão num patamar de igualdade
(de poder) e aplica-se às suas relações o direito privado. Estamos em face de
uma estrutura horizontal.

Nas relações entre o Estado (ou outras entidades públicas) e o cidadão existe,
por regra, uma estrutura vertical (de desigualdade, visto o Estado estar munido
de um poder de autoridade, um poder de império, a publica potestas, que se
impõe ao cidadão) e aplica-se o direito público.

Todavia, há relações entre as entidades públicas e os particulares em que a


situação aparece duvidosa.
Para sabermos qual é, nessas situações, o ramo de direito competente para
regular a situação a doutrina desenvolveu várias posições que são referidas
sucintamente:

(1) temos a teoria dos interesses (a mais antiga, já vem referida nos textos
romanos16; a relação pertence ao direito público ou privado conforme o interesse
[único ou prevalecente] em questão ser público ou privado);

(2) a teoria da supra-ordenação – infra-ordenação (a relação é regulada pelo


direito público visto o cidadão se encontrar numa situação de inferioridade face
aos poderes estaduais);

(3) a teoria que atende ao critério da posição dos sujeitos na relação (se as
normas em causa são invocáveis igualmente por todos, tendo assim de aplicação
geral, e utilizáveis por todos, sendo eles particulares ou entidades públicas, a
relação pertence ao direito privado; se, pelo contrário, as normas conferem
prerrogativas ou competências próprias apenas de entidades públicas, quer dizer
quando se trata de um exercício de poder público, com autoridade pública, a
relação pertence ao direito público).

5.4 Estrutura e sistematização do Código Civil

[Temos de forma genérica quanto à estrutura e sistematização do Código Civil o


seguinte modelo:

(I) O Livro I, tem a Parte Geral dividida em dois Títulos, sendo certo que a matéria
do Título I “Das leis, sua interpretação e aplicação” bem podia ter sido regulada
numa lei autónoma, uma Lei de Introdução, uma vez que contém regras que vão
para muito além do Direito Privado e Civil.

O Título I está subdividido em três capítulos e aqui encontramos, no Capítulo I,


as “Fontes do direito” e no Capítulo II as regras no que respeita à “Vigência,
interpretação e aplicação das leis” [sendo a matéria destes dois capítulos objecto
da nossa disciplina de Introdução ao Direito, uma vez que neles se estabelecem
as regras comuns para todo o direito] e no Capítulo III aparece-nos o Direito
Internacional Privado a respeito dos “Direitos de estrangeiros e conflitos de leis”).
Há muitas ordens jurídicas que regulam a matéria abrangida pelo Título I do Livro
I (Parte geral) em leis autónomas, fora de um Código Civil.

É o Título II com a epígrafe “Das relações jurídicas” que, no fundo, é a verdadeira


Parte geral do Código. É aqui que encontramos as regras comuns que valem para

16
Publicum ius est quoad statum rei Romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem
spectat.

Esta matéria colocada entre […], essencialmente descritiva, mas importante, não foi leccionada
nas aulas teóricas, mas ensinado devidamente nas aulas práticas.
todos os restantes livros e também para todo o direito privado. Este Título II está
subdividido em quatro Subtítulos de acordo com os elementos da relação jurídica,
ou seja, “Das pessoas”, “Das coisas”, “Dos factos jurídicos” e “Do exercício e da
tutela dos direitos”. Contudo, é de mencionar que em Março de 2017 o legislador
entendeu oportuno acrescentar no Título II um Subtítulo Ia com a epígrafe “Dos
animais”.

O conteúdo do Título II constitui a matéria da disciplina de Teoria Geral do Direito


Civil (que é a disciplina nuclear do Curso de Direito);

(II) o Livro II, o Direito das Obrigações, também está subdividido em dois títulos,
ou seja, “Das obrigações em geral” e “Dos contratos em especial”. Esta divisão
obedece à mesma lógica que preside à inserção de uma parte geral na
codificação: no título I temos regras comuns para todas as obrigações, inclusive
dos contratos em especial que são regulados nos 16 capítulos que compõem o
título II, sendo o contrato de compra e venda o mais importante. O direito das
obrigações refere-se a direitos relativos (ver o artigo 397.º que define a obrigação
como um vínculo jurídico entre as partes);

(III) o Livro III, o Direito das Coisas, regula sucessivamente em cinco títulos a
posse, a propriedade e os direitos reais limitados (usufruto, uso e habitação, o
direito de superfície, e as servidões prediais). O direito da propriedade é um
direito sobre uma coisa própria enquanto os direitos reais limitados são direitos
sobre uma coisa alheia. Estão em causa direitos absolutos, direitos de domínio
sobre uma coisa;

(IV) o Livro IV, o Direito da Família, tem primeiro um título I com disposições
gerais e nos quatro títulos subsequentes regula o casamento (a sua celebração,
os seus efeitos e a sua dissolução), a filiação (o seu estabelecimento e os seus
efeitos), a adopção (seus pressupostos e efeitos) e os alimentos (determina quem
deles carece e quem é obrigado para os prestar). O direito da família é um direito
institucional (= assenta na instituição social “família”, já referida) em que temos,
em consequência da Concordata celebrado em 2004 entre o Estado Português e
a Santa Sé, ainda a particularidade da aplicação do Direito Canónico (quanto à
celebração, validade e dissolução [por dispensa papal]) aos casamentos
celebrados catolicamente;

(V) o Livro V, o Direito das Sucessões, regula o destino do património e das


relações patrimoniais depois da morte do seu titular. A sucessão pode ser
deferida ou por lei (aqui a sucessão legal é legítima ou legitimária [que destina
parte dos bens obrigatoriamente aos herdeiros forçados]) ou por negócio jurídico
(por testamento ou, muito excepcionalmente, por contrato, estando ambos
condicionados pelos limites rígidos estabelecidos pela sucessão legitimária).]
6. A norma jurídica e os factos jurídicos
Nas matérias leccionadas até agora vimos como os homens na sua convivência
com os outros estão inseridos na ordem jurídica com a summa divisio em direito
público e privado, cada um com deles os seus ramos, sendo a finalidade do direito
a realização da justiça e a efectivação da segurança.
Os vários ramos, por sua vez, incluem os vários códigos (ou leis) que, por seu
lado, são constituídos ou compostos por livros, títulos, capítulos, secções, etc. e,
finalmente, por unidades normativas que os concretizam: são os artigos (com os
seus números e alíneas) ou os §§ de um código (ou de uma lei) que dizem o que
vale.

6.1 Noção de norma jurídica


Neste sentido as normas jurídicas têm como objectivo primordial orientar e
regulamentar as condutas humanas. Contudo, nem todas as normas têm esta
função, pois existem normas que se limitam a consagrar definições legais (ou
noções) de conceitos jurídicos17, a definir regras de interpretação e aplicação das
leis18, ou a revogar outras normas19, ou a consagrar sanções jurídicas20. Não
obstante, em geral e como dissemos, a norma jurídica orienta e regula condutas
humanas – ela funciona quase como um comando – e assim é um critério para a
avaliação e resolução de casos concretos que ocorreram.

6.2 Características
6.2.1 As normas são gerais e abstractas.

a) Gerais porque não se dirigem a ninguém em particular, a nenhuma pessoa


individualmente considerada, mas antes a todas as pessoas ou categorias de
pessoas que possam estar na posição21 ou situação que as normas regulam.

A norma exprime uma regra geral, não tendo um destinatário individualizado,


determinado (geral é o contrário de individual). A norma visa as pessoas em
geral, ou seja, uma categoria abstracta de pessoas22. Generalidade não é o
mesmo que pluralidade, por exemplo, uma multidão. Aqui temos circunstâncias
individualizadoras, um conjunto de indivíduos. Uma categoria abstracta de
pessoas pode abranger uma só pessoa quando ela desempenha um cargo, uma

17
Cf. os artigos 1.º, n.º 2, 397.º, 402.º, 464.º, 666.º, 712.º, 874.º, 1251.º, 2039.º, etc. todos
do Código Civil.
18
Cf. os artigos 9.º a 13.º do Código Civil.
19
Ver artigo 7.º.
20
Cf. os artigos 483.º, n. 1; 798.º ou também 334.º.
21
Por isso se diz que, ainda que a norma apenas se aplique a uma pessoa, ela não se dirige nem
foi redigida para essa pessoa individualmente considerada, mas antes tendo em atenção à posição
ou cargo que a dita ocupa.
22
Cf. a redacção do artigo 483.º que refere: “Aquele que …”, isto é, qualquer um.
função pública (officium), por exemplo, o Presidente da República ou o Primeiro
Ministro ou o Chefe do Estado Geral das Forças Armadas, ou o Presidente do
Conselho de Estado.

b) Abstractas porque não versam sobre casos concretos ou específicos, mas


antes sobre um tipo ou categoria de situações, abstractamente indicadas e
desenhadas na norma. A norma é abstracta (abstracto contrapõe-se ao concreto)
e aqui temos de distinguir:

ba) É regulado um número indeterminado de situações que já existem e/ou de


situações que ainda podem vir a concretizar-se. Temos, por exemplo, as leis que
ordenam a limpeza de terrenos em estado de abandono ou não cultivados como
medida de prevenção contra incêndios florestais. Está em causa uma categoria
de casos. Estas leis ou normas podem perfeitamente aplicar-se a situações
oriundas do passado.

bb) São estabelecidas regras para orientar quaisquer condutas humanas e estas
normas, logicamente, só podem referir-se a comportamentos presentes ou
ocorrentes no futuro, mas não a comportamentos ou condutas já ocorridas no
passado. No caso das condutas humanas a norma, além de abstracta, ainda é
hipotética, pois só se aplica se os casos previstos pela hipótese legal realmente
se venham a verificar, como por exemplo, só se efectivamente ocorrer um
comportamento ilícito e culposo previsto no artigo 483.º, a norma será
aplicável23. Ao contrário do que sucede com situações criadas, não é possível
orientar ou prever condutas já verificadas (é logicamente impossível).

6.2.2 O princípio da igualdade ou da aplicação igual das normas


Só sendo a norma geral e abstrata é garantido o princípio da igualdade, quer
dizer, é garantido o tratamento igual de todos pela lei e perante a lei.

Uma lei, uma norma, não pode ser individual e concreta. Uma norma que visa
uma situação específica ou um sujeito determinado não tem a característica da
generalidade mesmo que, formalmente, possa ter sido redigido em termos gerais
e abstractos. As leis limitadas ao caso individual são inconstitucionais por violação
do princípio da igualdade. Deste modo, não se pode dissimular um acto individual
e concreto, ou seja, um acto administrativo, por meio de uma formulação que é
redigida – como uma lei – em termos gerais e abstractos. Aqui estamos perante
um disfarce pelo qual – além da violação do princípio da igualdade – é violado o
princípio da separação dos poderes. Com este procedimento o legislador, por

23
Portanto, é necessário que se verifique em concreto a situação nela descrita de forma abstracta,
pois de outra maneira ela não será nunca aplicável. Um outro exemplo dá-nos o artigo 798.º do
Código Civil, num contrato, o devedor apenas se torna responsável pelo prejuízo que causar ao
credor se tiver faltado culposamente ao cumprimento da obrigação a que se encontrava adstrito.
exemplo, o Governo “resolve” o caso por meio de um decreto-lei, e invade as
competências da Administração.

Contudo, uma norma, ao ser criada, pode ter sido motivada perfeitamente por
um caso individual e concreto que acaba por contemplar, mas ao mesmo tempo,
a sua previsão, sendo formulada em termos gerais e abstractos, alcança também
outros casos da mesma categoria que no futuro podem vir a suceder. Nestas
circunstâncias o caso individual e concreto desperta o legislador para a
necessidade de regular este tipo de casos. Agora já não se trata de uma lei
limitada a um único caso individual e concreto e nenhuma violação dos princípios
da igualdade e da separação dos poderes aconteceu.

Ler: J. Baptista Machado, pp. 50-52, (63-65), 65-77, 92/93; Ángel Latorre, pp.
207-249. Como leitura meramente informativa segue um Anexo a respeito da
sistematização do Corpus Iuris Civilis.

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