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Diário da República, 1.

ª série

N.º 111 9 de junho de 2023 Pág. 11

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2023

Sumário: As declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com res-
peito pelo disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), e 357.º, n.º 1, al. b), do Código de
Processo Penal, podem ser valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em
audiência de julgamento.

Processo n.º 660/19.9PBOER.L1-A.S1

(Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência)

Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I.

1 — O arguido AA interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão


do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 03.11.2020, por se encontrar em oposição com
acórdão do mesmo tribunal proferido em 20.03.2018.
Por acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 02.12.2021, foi julgada verificada a oposição
de julgados determinando-se o respetivo prosseguimento (art. 441.º/1, in fine, Código de Processo
Penal, diploma a que pertencem as normas citadas sem outra menção).
Notificados os sujeitos processuais interessados, apresentaram alegações o arguido e o
Ministério Público (art. 442.º/1), cujas conclusões se transcrevem:

Arguido AA:

«1 — Os autos de declaração só poderão ser valorados quando lidos ou reproduzidos em


sede de audiência e nos termos dos artigos 356.º e 357.º do CPP.
2 — E, como declara Santos Cabral, juiz-conselheiro, com a leitura e reprodução em audiência de
julgamento das declarações prestadas pelo arguido na fase de inquérito ou instrução, encontramo-
-nos perante “uma declaração que é uma opção de vontade do arguido efetuada com todas as
garantias processuais”
3 — Desta forma, as declarações do arguido serão perspetivadas num ponto de vista global,
considerando-se que, ao serem valoradas na sua totalidade, será reconhecida uma maior dignidade
do arguido enquanto sujeito processual.
4 — Face ao exposto, a declaração realizada pelo arguido, no decurso do processo, só pode
ser valorada e ponderada pelo juiz, independentemente da fase em que esta foi proferida desde
que lidas ou reproduzidas em julgamento.
5 — O legislador optou por não criar um entrave ao princípio da investigação, mas para isso
só permitiu a sua valoração, em sede de julgamento, se reproduzidas ou lidas as declarações
anteriores do arguido.
6 — A garantia do direito de defesa do arguido no exercício do princípio do contraditório ape-
nas poderá ser plenamente exercido mediante a leitura ou audição em audiência das declarações
prestadas pelo arguido, pois desse modo é dado conhecimento aos sujeitos processuais dos meios
de prova elegíveis para a formação da convicção do tribunal, possibilitando o debate e confronto
indispensável à boa decisão e à decisão justa.
7 — Dai já ter sido declarada inconstitucional por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 5, conjugado
com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, a norma extraída dos artigos 355.º, n.os 1 e 2,
e 356.º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, todos do Código de Processo
Penal, na interpretação segundo a qual podem valer em julgamento as declarações do arguido a
que se refere o artigo357.º, n.º 1, alínea b), do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua
reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em ata. (cf. Ac. n.º 770/2020 da
3.ª secção de 21.12.2020).
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Termos em que somos do entendimento que deve ser fixada jurisprudência no sentido
seguinte:

Não constando dos autos que o tribunal tenha procedido à leitura ou reprodução em audiên-
cia das declarações do arguido prestadas perante autoridade judiciária, existe valoração de prova
que não foi produzida ou examinada na audiência, incorrendo violação do disposto no artigo 355.º,
n.º 1, do CPP, integrando as mesmas prova proibida, sendo a consequência processual inerente
a da exclusão dessa prova do conjunto das que foram valoradas na fundamentação da matéria de
facto levada a cabo na decisão recorrida».

Ministério Público:

«1) A regra prevista no n.º 1 do art. 355.º é a da observância, em julgamento, da imediação e


do contraditório, princípios com assento constitucional.
2) A tais princípios subjaz o reconhecimento de que o contacto directo com os intervenien-
tes processuais, enquanto declarantes ou depoentes, permite ao tribunal, de forma privilegiada,
apreender as suas emoções, dúvidas, hesitações e certezas.
3) O n.º 2 do art. 355.º contém uma excepção àquela regra e permite a valoração da prova prévia
ao julgamento, concretamente, de provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização
ou audição sejam permitidas nos termos dos artigos 356.º e 357.º
4) O art. 357.º n.º 1 do CPP foi profundamente alterado pela Lei n.º 20/2013, de 21/02, ao
permitir, sem qualquer limitação, na al. b), a reprodução e leitura das declarações do arguido
prestadas perante autoridade judiciária, com assistência por defensor e desde que aquele tenha
sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º, do
mesmo código.
5) A Proposta de Lei n.º 77/XII alicerça a alteração daquela norma — al. b) do n.º 1, do
art. 357.º — no facto de a quase total indisponibilidade de utilização superveniente das declara-
ções prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento, decorrente da redacção da norma
vigente, conduzir, em muitos casos, a situações de indignação e incompreensão dos cidadãos
quanto ao sistema de justiça.
6) O auto de declarações do arguido perante autoridade judiciária, desde que assistido por
defensor e informado nos termos e para os efeitos do artigo 141.º n.º 4 alínea b) do CPP, é um dos
autos cuja leitura é permitida.
7) Uma vez que a leitura das aludidas declarações do arguido se integra na ressalva do n.º 2
do art. 355.º, há que concluir que se está perante uma excepção à regra de que só valem em julga-
mento, para o efeito de formação da convicção do tribunal, as provas que tiverem sido produzidas
ou examinadas em audiência.
8) O entendimento de que, mesmo não tendo sido produzidas ou examinadas em audiência,
tais declarações valem para o efeito de formação da convicção do tribunal, infere-se ainda do n.º 1
do art. 357.º, quando estabelece que a reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas
pelo arguido “só é permitida”.
9) A “permissão” de se proceder à leitura dos autos ali mencionados traduz-se numa faculdade
e não numa obrigação, se assim fosse o legislador tê-lo-ia dito expressamente.
10) Sendo uma mera faculdade, a ausência de leitura dessas declarações não pode ter como
consequência que essa prova não possa valer em julgamento.
11) Não decorrendo, implícita ou expressamente da lei, a obrigatoriedade da leitura de tais
declarações, outra solução levaria a uma contradição manifesta com o art. 355.º n.º 2, do CPP,
donde decorre que as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição
em audiência sejam permitidas, valem em julgamento ainda que não tenham sido produzidas ou
examinadas em audiência.
12) A solução adoptada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 770/2020, de 21/12, a
pretexto do respeito pleno pelo arguido e da sua vontade, acarreta uma total e inadmissível des-
responsabilização processual do arguido.
13) Nada impede que o próprio arguido requeira ao tribunal que proceda à leitura das suas
declarações no julgamento e, portanto, no exercício do seu direito de audiência, é-lhe sempre
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conferida a possibilidade de esclarecer, contextualizar e completar as afirmações que produziu no


interrogatório podendo o mesmo explicitar quaisquer contradições em que possa ter incorrido.
14) Não proceder à leitura das declarações do arguido não contende com o seu direito ao silêncio
e de não se autoincriminar já que, da mesma forma que acontece se forem lidas, tais declarações
não têm o valor de confissão e estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova.
15) A prestação de declarações em interrogatório perante autoridade judiciária é rodeada de
um conjunto de exigências e mecanismos legais que permitem ao arguido agir processualmente e
garantir o exercício do contraditório.
16) O auto de declarações encontra-se junto ao processo e o seu conteúdo é do conhecimento
do arguido e do seu defensor, sabendo os mesmos, desde o interrogatório, que estas poderão
ser utilizadas como meio de prova, pelo que não existe qualquer deslealdade processual na sua
utilização.
17) As declarações do arguido não constituem uma antecipação parcial da audiência de julga-
mento na medida em que constituem, ao mesmo tempo, um meio de defesa e um meio de prova.
18) Poder tomar em conta, para efeitos de convicção do tribunal, as declarações prestadas
em interrogatório sem que os autos que as integram sejam lidos e examinados em audiência, não
comprime o princípio da imediação, oralidade, contraditório e publicidade porque o arguido, estando
presente, pode responder a perguntas, esclarecer factos e até mesmo negar ou contrariar aquilo
que disse no interrogatório e, caso esteja ausente, pode o seu defensor requerer a leitura das suas
declarações.
19) O art. 355.º n.º 1 do CPP visa apenas evitar que concorram para a formação da convicção
do tribunal provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenien-
tes, com respeito pelo princípio do contraditório.
20) Em conformidade, deve ser fixada jurisprudência no sentido de que, nos termos dos arti-
gos 355.º, 357.º n.º 1, alínea b) e 141.º e 143.º do CPP, não é necessário a reprodução ou leitura,
em audiência de julgamento, de declarações anteriormente prestadas por arguido, em interrogatório
perante autoridade judiciária, como condição da sua validade para poderem ser utilizadas para
efeito de convicção do tribunal».

Colhidos os vistos e reunido o Pleno dos juízes das Secções Criminais, cumpre decidir.

II — Fundamentação

A. Oposição de julgados
1 — É entendimento uniforme neste Supremo Tribunal de Justiça que o acórdão preliminar
proferido pela composição que em conferência decidiu afirmativamente a questão da oposição de
julgados não vincula o Pleno das Secções Criminais, impondo-se reapreciar essa questão.
2 — O arguido tem legitimidade e interesse em agir, porquanto a decisão recorrida negou
provimento ao recurso que interpôs da condenação proferida em primeira instância, pela prática
de um crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos arts 131.º, 22.º e 23 do CP, num caso
em que o tribunal de 1.ª instância valorou as declarações que prestou em 1.º interrogatório judicial
de arguido detido, sem que conste da ata da audiência de julgamento que as declarações tenham
sido reproduzidas ou lidas em audiência.
3 — Em tema de tempestividade do recurso, importa considerar que o acórdão recorrido foi
proferido em 03.11.2020; interposto recurso para o TC, a decisão aí proferida transitou em julgado
no dia 10.02.2021 (pedido de informação de 15.04.2021 referência...59; informação de 20.04.2021,
referência...57). O presente recurso deu entrada em 04.03.2021 (certidão referência...57), pelo que
a sua interposição ocorreu dentro do prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão
recorrido (art. 438.º/1).
4 — No requerimento de interposição do recurso o recorrente identificou o acórdão com o
qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento) e mencionou o lugar da
publicação. Quanto ao trânsito em julgado do acórdão fundamento, consta dos autos que transitou
em julgado no dia 07.11.2018 (certidão de 19.08.2021, referência...11).
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5 — Vejamos o percurso argumentativo dos acórdãos — recorrido e fundamento — para aferir


da oposição. Referiu-se no acórdão preliminar:

«11 — A questão de direito a que os acórdãos deram resposta é a da exigência, ou não,


da reprodução ou leitura, em audiência de julgamento, de declarações anteriormente feitas pelo
arguido em primeiro interrogatório de arguido detido, perante autoridade judiciária, JI ou M.º P.º,
como condição da sua validade para poderem ser utilizadas para o efeito da convicção do tribunal.
Não resta dúvida: ambos os acórdãos apreciaram a mesma questão jurídica e a resposta dada, a
decisão, foi antagónica.
11.1 — No Acórdão fundamento decidiu-se: «[...] existindo valoração de prova que não foi
produzida ou examinada na audiência, ocorre violação do disposto no artigo 355.º, n.º 1, do CPP,
integrando as mesmas prova proibida, sendo a consequência processual inerente a da exclusão
dessa prova do conjunto das que foram valoradas na fundamentação da matéria de facto levada
a cabo na decisão recorrida». «[...] Declarar a nulidade da sentença recorrida, por utilização na
formação da convicção do julgador de prova de valoração proibida, impondo-se a prolação de nova
sentença que exclua como meio de prova as declarações prestadas pelo arguido perante magistrado
do Ministério Público no decurso do inquérito e, em conformidade, reconfigure a matéria de facto
e respectiva matéria de direito».
11.2 — No acórdão recorrido: «Não reconhecemos, assim, qualquer ofensa aos princípios
constitucionais do contraditório, da imediação e da oralidade, pelo facto de o tribunal ter valorado
no acórdão as declarações prestadas pelo arguido em 1.º interrogatório judicial, com respeito pelo
art.141.º, CPP, não tendo as mesmas sido lidas em audiência, quando o arguido prestou declara-
ções em audiência e teve oportunidade de se pronunciar sobre tudo o que constava do processo,
nomeadamente sobre as versões que foi apresentando desde o início dos autos. Foi respeitado,
pois, o disposto no art. 355.º, CPP, não tendo sido valorada prova proibida».

6 — Do acabado de transcrever dos acórdãos — recorrido e fundamento — não resta dúvida


que apreciaram a mesma questão jurídica. As normas citadas no percurso argumentativo dos acór-
dãos tinham à data da respetiva prolação a mesma redação pelo que ambos os acórdãos foram
proferidos no domínio da mesma legislação.
7 — A situação de facto é idêntica nos acórdãos em confronto. No acórdão recorrido estão
em causa declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial de arguido detido (art. 141.º),
enquanto no acórdão fundamento declarações prestadas em primeiro interrogatório não judicial
de arguido detido, mas essa diversidade não tem relevância no caso, em vista da questão a que
urge dar resposta, a da necessidade de reprodução ou leitura em audiência das declarações
prestadas pelo arguido, observadas as formalidades legalmente prescritas no interrogatório de
arguido detido (arts. 141.º/4/b e 143.º/2). É que as declarações prestadas em primeiro interroga-
tório — judicial ou não judicial — de arguido detido, desde que prestadas e obtidas com estrito
respeito pelo formalismo legal, como é o caso, podem ser utilizadas nas fases subsequentes do
processo quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária (arts. 357.º/1/b, 1.º/b, 141.º /4/b
e 143.º/2), independentemente, pois, de serem prestados perante o JI ou o M.º P.º. A conclusão
já poderia ser diversa se estivesse em questão um hipotético maior ou menor valor de uma des-
sas declarações, se é fundado um critério de avaliação diferenciado, questão que não está em
discussão.
8 — Nos processos onde foram proferidos os acórdãos recorrido e fundamento, as decisões
proferidas em 1.ª instância valoraram declarações prestadas pelos arguidos em primeiros inter-
rogatórios, sem que na audiência de julgamento tenham sido reproduzidas ou lidas; enquanto o
acórdão recorrido decidiu que essa prova não é proibida, o acórdão fundamento taxou-a de proi-
bida. Assim, os acórdãos são conflituantes pois afirmam soluções opostas e incompatíveis a partir
de idêntica situação de facto com base nas mesmas normas jurídicas. Finalmente a questão da
validade da prova foi em ambos os acórdãos questão expressamente abordada e decidida, pelo
que as decisões em oposição são expressas. Verifica-se, assim, uma oposição de julgados que
legitima a interposição do presente recurso para fixação de jurisprudência.
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B. Princípios
9 — O processo criminal português tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento
subordinada ao princípio do contraditório (art. 32.º/5, CRP). A todos é assegurado que a causa
em que intervenham é decidida mediante processo equitativo (art. 20.º/4, CRP). Num processo
de estrutura acusatória, a audiência de julgamento, em especial a produção de prova que nele se
realiza, assume um lugar central no processo penal, «princípio de dominância do processo por
uma audiência de julgamento pública, oral, contraditória e imediata» (J F D
«Por onde vai o Processo Penal Português: por estradas ou por veredas?» in As Conferências do
Centro de Estudos Judiciários, 2014, p. 68).
10 — Regra basilar do nosso processo penal em matéria de produção de prova em audiência
de julgamento é a de que a prova suscetível de fundar a convicção do julgador só pode ser a que
é realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória:
imediação, oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova (J D C ,
O regime processual de leitura de declarações, RPCC, ano 7, Fasc. 3, p. 405-6). Essa regra, con-
sagrada no art. 355.º/1, dita a proibição de valoração de prova não produzida em audiência. Regra
que consente exceções (art. 355.º/2), uma delas consta do artigo 357.º cuja epígrafe, alterada pela
Lei n.º 20/2013, diz sugestivamente «[r]eprodução ou leitura permitidas de declarações do arguido».

C. Breve resenha da evolução legislativa


11 — Na vigência da versão inicial do CPP a transmissibilidade probatória para o julgamento
das declarações processuais prestadas pelo arguido nas fases preliminares do processo era mais
restrita; a possibilidade de leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido era residual.
Podia ocorrer a solicitação do arguido, independentemente da entidade perante a qual tivessem sido
prestadas (art. 357.º/1/a). Fora esse caso, apenas podiam ser lidas as feitas perante o juiz, desde
que se verificassem contradições ou discrepâncias sensíveis entre elas e as feitas em audiência
que não pudessem ser esclarecidas de outro modo (art. 357.º/1/b, na redação vigente até à revi-
são de 2007). Daí resultava que o silêncio do arguido em audiência ou a realização da audiência
sem a sua presença inviabilizavam a possibilidade de leitura de declarações anteriormente feitas,
pois sem declarações do arguido em audiência não havia discrepância, nem contradição (ac. STJ
de 26.06.1991, CJ, XVII, Tomo 3, p. 34, P P A , Comentário do CPP,
2008, p. 899, M J A , «Direito ao silêncio e leitura, em audiência, das declarações
do arguido», Sub Judice, n.º 4, 1992, p. 25). Constituía então jurisprudência pacífica do STJ que
a valoração de declarações anteriormente prestadas pelo arguido, nos casos em que tal era per-
mitido, exigia como condição de validade a sua leitura em audiência de julgamento, (v.g. ac. de
13.12.2000, Proc. n.º 2752/2000 — 3.ª Secção, SASTJ, 2000, p. 235, ac. STJ de 27.06.2007, Proc.
n.º 1226/07 — 3.ª Secção, CJ STJ, Tomo II 2007, p. 35, M G , Código de Processo Penal,
2002, p. 684), entendimento também incontroverso na doutrina (G M S , Pro-
cesso Penal, III, 2000, p. 254 e 257, P P A , ob. cit. p. 899, 900). G
M S é muito claro e perentório «como temos vindo a repetir insistentemente, só a
prova produzida ou examinada em audiência pode ser utilizada para a decisão [...]. O tribunal tem
à sua disposição os autos em que se documentam os actos processuais praticados anteriormente,
mas não pode utilizá-los para efeitos da decisão se não forem lidos na audiência».
12 — A alteração de 2007 consistiu em revogar a exigência de as contradições ou discre-
pâncias entre as declarações prestadas em audiência e as feitas em inquérito serem sensíveis e
que não pudessem ser esclarecidas de outro modo, alteração que se revelou consensual, pois a
anterior exigência introduzia um grau de incerteza que nem o recurso a juízos probabilísticos podia
ultrapassar, daí resultando exclusões de leitura. A norma neste segmento (art. 357.º/1/ b), passou
a dispor a partir da revisão de 2007: «a leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido
só é permitida [...] quando, tendo sido feitas perante o juiz, houver contradições ou discrepâncias
entre elas e as feitas em audiência». Remetendo-se o arguido em audiência ao silêncio, continuou
a ser pacífico o entendimento de que tal inviabilizava a possibilidade de leitura de declarações
anteriores, salvaguardando-se um peculiar e abrangente direito do arguido ao apagamento do que
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anteriormente dissera (P D M , Comentário Judiciário do Código de Processo Penal,


2022, Tomo IV, p. 625, § 7) o que contrastava com o regime das escutas telefónicas, onde, com a
ressalva das conversações com o defensor (art. 187.º/5), todas as declarações do arguido podem
ser valoradas.
13 — Posteriormente às alterações de 2007, que reforçaram as garantias de defesa no
primeiro interrogatório (judicial e não judicial) de arguido detido (arts.141.º/6 e 143.º/2), come-
çou a ganhar corpo a crítica ao direito ao apagamento que o regime normativo, em vigor desde
o início da vigência do CPP, permitia, sendo corrente, e aqui não curamos saber se correto,
o exemplo de que o arguido confessava em 1.º interrogatório para beneficiar de medida de
coação menos grave, em resultado da confissão ou admissão dos factos, sabendo que pos-
teriormente podia inutilizar a confissão remetendo-se ao silêncio na audiência de julgamento.
Respaldo a essa crítica encontra-se na monografia de P D M , A prova do crime
e o que se disse antes do julgamento, (publicada em 2011, mas objeto de discussão pública
em novembro de 2010).
14 — Não é este o local nem o momento para indagações aprofundadas, mas havia algum
equívoco da parte de quem assacava ao arguido falta de lealdade processual. Há um «corte»
entre o estatuto processual do arguido e qualquer dever de lealdade e colaboração com a justiça
em matéria atinente à culpa (J F D , Direito Processual Penal, 1974, p. 450).
Sendo o princípio da lealdade processual um princípio básico do processo penal democrático e
abrangendo a atuação de todo e qualquer dos seus sujeitos é porém indiscutível também que
ele se dirige em primeira linha e fundamentalmente à ação da acusação e muito especialmente
ao Ministério Público e não do arguido e do seu defensor (J F D , «Revi-
sitação de algumas ideias-mestras da teoria das proibições de prova em processo penal», RLJ,
146.º, p. 11; J F D ;N B , Direito Processual Penal; Os Sujeitos
Processuais, 2022, p. 133/134). Esse não era o caso do arguido que prevalecendo-se da solu-
ção normativa vigente até às alterações de 2013, confessava em 1.º interrogatório e inutilizava
a confissão remetendo-se ao silêncio em julgamento. A circunstância de essa solução legislativa
poder potenciar ou mesmo convidar o arguido a «dar o dito por não dito» não autoriza a censura
que alguns faziam recair sobre o arguido. Bem vistas as coisas, o que merecia reparo não era
o arguido, mas a solução normativa que possibilitava ou mesmo encorajava o aludido compor-
tamento.
15 — Foi neste contexto que nasceu e se desenvolveu o que veio a ser a alteração legislativa
de 2013. A iniciativa legislativa, Proposta de Lei 77/XII/1 (disponível em https://www.parlamento.pt/
ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=37090), teve, entre o mais, o propó-
sito de pôr cobro a esta situação. A motivação da proposta de alteração ao articulado do CPP,
na parte que nos ocupa, era «[...] a possibilidade de, salvaguardados os direitos de defesa do
arguido, designadamente o direito ao silêncio, as declarações que o arguido presta nas fases
preliminares do processo serem utilizadas na fase de julgamento». E a razão adiantada foi que
«[a] quase total indisponibilidade de utilização superveniente das declarações prestadas pelo
arguido nas fases anteriores ao julgamento tem conduzido, em muitos casos, a situações gerado-
ras de indignação social e incompreensão dos cidadãos quanto ao sistema de justiça». Segundo
a Proposta «[i]mpunha-se, portanto, uma alteração ao nível da disponibilidade, para utilização
superveniente, das declarações prestadas pelo arguido nas fases anteriores ao julgamento, devi-
damente acompanhadas de um reforço das garantias processuais. Assim, esta disponibilidade
de utilização, para além de só ser possível quanto a declarações prestadas perante autoridade
judiciária, é acompanhada da correspondente consolidação das garantias de defesa do arguido
enquanto sujeito processual, designadamente quanto aos procedimentos de interrogatório, por
forma a assegurar o efetivo exercício desses direitos, máxime o direito ao silêncio». E, finalmente,
«[a] fiabilidade que devem merecer tais declarações, enquanto suscetíveis de serem utilizadas
como prova em fase de julgamento, impõe que sejam documentadas através de registo áudio
visual ou áudio, só sendo permitida a documentação por outra forma quando aqueles meios não
estiverem disponíveis».
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16 — A Proposta de alteração era a seguinte (em itálico as alterações):

Artigo 357.º

Reprodução ou leitura permitidas de declarações do arguido

1 — A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo


só é permitida:

a) [...];
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o
arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do
artigo 141.º

2 — As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência


não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º

17 — A redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, e ainda vigente, veio a consagrar a utiliza-
bilidade das declarações prestadas pelo arguido nas fases preliminares do processo (arts. 141.º,
143.º e 144.º/1/2) nos seguintes termos (realce a negrito dos trechos alterados):

Artigo 357.º

Reprodução ou leitura permitidas de declarações do arguido

1 — A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo


só é permitida:

a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido
prestadas; ou
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido
tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º

2 — As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em


audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º
3 — É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 a 9 do artigo anterior.

18 — Do que antecede resulta que o legislador de 2013 deixou cair a anterior exigência
quando houver contradições ou discrepância entre elas e as feitas em audiência (redação anterior
do art. 357.º/1/b). A inovação da alteração de 2013 foi a de alargar os casos de possibilidade de
reprodução ou leitura, quer diminuindo as exigências para ela ocorrer, quer possibilitando a utiliza-
bilidade de declarações anteriores, passando a permitir, o que antes estava vedado: a reprodução
ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo, sem a sua solicitação e
mesmo contra a sua vontade, quando preenchidos os requisitos enunciados pelo legislador (a)
«tenham sido feitas perante autoridade judiciária», (b) «com assistência de defensor» e (c) «o
arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do
artigo 141.º» (art. 357.º/1/b), mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em
audiência de julgamento. O legislador de 2013 veio também dizer, inovatoriamente, no n.º 2, que
«[a]s declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não
valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º». O legislador não se bastou
com a estatuição de que as declarações anteriormente prestadas pelo arguido não valem como
confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º, reforçou e esclareceu que as declarações
anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confis-
são o que é relevante em termos interpretativos. Isto no seguimento da Proposta que enfatizava
«[a]s declarações que, nos termos legais, possam e venham a ser utilizadas em julgamento, estão
sujeitas à livre apreciação da prova, assim se autonomizando da figura da confissão prevista no
artigo 344.º» (itálico da nossa responsabilidade). E ainda «A fiabilidade que devem merecer tais
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declarações, enquanto suscetíveis de serem utilizadas como prova em fase de julgamento, impõe
que sejam documentadas através de registo áudio visual ou áudio, só sendo permitida a documen-
tação por outra forma quando aqueles meios não estiverem disponíveis».
19 — Para garantir a fiabilidade dessa prova na audiência de julgamento o legislador de 2013,
aditou ao art. 141.º, um n.º 7 do seguinte teor: «[o] interrogatório do arguido é efetuado, em regra,
através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente
estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução
integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando aqueles meios não estiverem dis-
poníveis, o que deverá ficar a constar do auto». O remate no cuidado em manter a obrigação de
reprodução ou leitura é a alteração da epígrafe do art. 357.º pela Lei n.º 20/2013, onde se passou
a dizer sugestivamente «[r]eprodução ou leitura permitidas de declarações do arguido». Se o legis-
lador tivesse querido romper com o regime da reprodução ou leitura teria consagrado de modo
inequívoco a dispensa de reprodução ou leitura e não o fez.
20 — A partir desta alteração, com aplicação direta no caso, passaram a poder ser utilizadas
as declarações anteriores do arguido no processo quando feitas perante autoridade judiciária
com assistência de defensor e o arguido informado pelo juiz (art. 141.º/4/b) ou Ministério Público
(art. 143.º/1/2) «[d]e que não exercendo o direito ao silêncio [nesse interrogatório] as declarações
que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não
preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova»
(arts. 141.º/4/b, e 357.º/1/b). O mesmo ocorre com os interrogatórios de arguido preso e os de
arguido em liberdade feitos no inquérito pelo magistrado do M.º P.º, pessoalmente e sem delegação,
(art. 144.º/2, in fine) e na instrução pelo JI (art. 144.º/1).
21 — A consequência da alteração legislativa foi a de que prestando o arguido declarações nas
fases preliminares do processo, com respeito do disposto nos arts. 141.º/4/b, e 357.º/1/b), prescinde
voluntariamente do direito ao silêncio e, como consequência, — na expressão da Proposta —,
prescinde do seu controlo sobre o que disse já que essas declarações podem ser utilizadas e
valoradas como prova em audiência de julgamento. Numa outra formulação, o exercício do direito
ao silêncio por parte do arguido em audiência de julgamento, continuando a ser um direito indis-
cutível, deixou de ter a consequência pregressa de inviabilizar a possibilidade de valoração das
declarações prestadas na fase preliminar do processo. Na parte que ao caso interessa foi esta e
só esta a alteração de 2013.
22 — A revisão de 2013 e principalmente a alteração em questão foi precedida de amplo
e vivo debate. A discussão centrou-se na sua legitimidade constitucional. Na «Consulta» sobre
a iniciativa legislativa o Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais, da FDUL, afirmava «5. A
necessidade de novas alterações ao CPP só pode ser sentida, segundo cremos, por quem se
proponha contrariar o sentido da Reforma de 2007». Neste mesmo sentido se pronunciou também
P S M (A questão do aproveitamento probatório das declarações processuais do
arguido anteriores ao julgamento). Discutiu-se a alteração do paradigma, a constitucionalidade
da alteração legislativa (Parecer de 20.12.2011 da Ordem dos Advogados), o direito ao silêncio, o
princípio da não auto-incriminação, a imediação e a oralidade, mas ninguém questionou que a essa
prova tinha necessariamente de ser reproduzida ou lida em audiência, pois essa obrigação era e
continuava isenta de dúvida. Estava tão claramente pressuposta a continuidade da obrigação de
leitura perante o texto da Proposta, com articulado idêntico ao que veio a ser consagrado na Lei,
que essa não foi questão debatida. Exemplo deste entendimento e intencionalidade, G
M S «Notas avulsas sobre as propostas de reforma das leis penais», ROA, ano 72,
II/III, abril — setembro, 2012, p. 531) dizia que «a proposta de alteração alarga a leitura às declara-
ções prestadas anteriormente quer perante juiz quer perante o Ministério Público e quer o arguido
preste declarações em audiência ou não. Trata-se de uma extensão, embora muito importante, do
actual regime do art. 357.º, al. b)».

D. Reprodução ou leitura em audiência


23 — O entendimento do acórdão recorrido foi no sentido de que «as declarações do arguido em
1.º interrogatório podem ser reproduzidas ou lidas, como prevê o art. 357, CPP, após as alterações
introduzidas pela Lei n.º 20/2013», mas que não é «exigível a efectiva leitura dessas declarações
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em audiência» e que «tal não viola os princípios do contraditório, da imediação e da oralidade». «É


esse, parece-nos, o sentido útil da alteração legislativa protagonizada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de
fevereiro, que deu nova redação ao artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do Cód. Proc. Penal». E concluiu
«Foi respeitado, pois, o disposto no art.355, CPP, não tendo sido valorada prova proibida». Este
entendimento apareceu poucos anos após a revisão de 2013, inicialmente em decisões dos Tribu-
nais da Relação (v.g. acórdãos TRP 14.09.2016 e 13.07.2022, TRE 07.02.2017. TRL 20.11.2019,
disponíveis em www.dgsi.pt) chegando a ter acolhimento no STJ (acórdão de 27.01.2021, acessível
em www.dgsi.pt).
24 — O acórdão fundamento depois de considerar que «[...] dos autos não consta que tenha o
tribunal recorrido procedido à leitura ou reprodução em audiência das aludidas declarações do arguido
perante o magistrado do Ministério Público (admissível ao abrigo do estabelecido no artigo 257.º,
n.º 1, alínea b) do CPP) pelo que, existindo valoração de prova que não foi produzida ou examinada
na audiência, ocorre violação do disposto no art. 355.º, n.º 1, do CPP, integrando as mesmas prova
proibida, sendo a consequência processual inerente a da exclusão dessa prova do conjunto das que
foram valoradas na fundamentação da matéria de facto levada a cabo na decisão recorrida. [...]»
acabou por «declarar a nulidade da sentença recorrida, por utilização na formação da convicção do
julgador de prova de valoração proibida, impondo-se a prolação de nova sentença que exclua como
meio de prova as declarações prestadas pelo arguido perante magistrado do Ministério Público
[...]». Este tem sido o entendimento maioritário, expresso ou implícito, nos Tribunais da Relação
(acórdãos TRC de 04.02.2015, 15.03.2017, 05.05.2021; TRP de 12.10.2016, 27.06.2018, TRL de
19.07.2017, 30.05.2019, 03.03.2021, disponíveis em www.dgsi.pt) e STJ (acórdãos de 09.07.2015,
06.10.2016, 23.06.2022, disponíveis em www.dgsi.pt e ac. 04.10.2018, SASTJ).
25 — A corrente em que se insere o acórdão recorrido invoca vários fundamentos para afirmar
a dispensa de leitura:

(a) As declarações do arguido constam dos autos e são equiparadas a documento pelo que
podem ser valorados sem reprodução ou leitura em audiência;
(b) O paralelo com as declarações para memória futura e a possibilidade de convocar, por
maioria de razão, a jurisprudência fixada no acórdão do Pleno do Supremo Tribunal de Justiça
n.º 8/2017, de 11-10-2017, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 21-11-2017;
(c) O arguido conhece as declarações que prestou e a valoração sem leitura não viola prin-
cípios constitucionais.

26 — A argumentação no sentido de que as declarações do arguido em 1.º interrogatório,


prestadas com todas as garantias de defesa, constam dos autos e são equiparadas a documento
dado que a lei processual adota uma noção ampla de documento (art. 164.º/1), considerando como
tal toda a declaração merece dois curtos apontamentos. As declarações do arguido (reduzidas a
auto) constituem um documento no sentido exposto naquele dispositivo, mas daí não deriva que lhe
seja aplicável o regime relativo à prova documental, pois trata-se originariamente de declarações
do arguido prestadas no processo e por isso submetidas pelo legislador a um específico regime
processual penal nos artigos 355.º e 357.º Outro entendimento representa uma patente e inadmis-
sível troca de etiquetas. Quanto às «todas as garantias de defesa», poder o juiz permitir durante
o interrogatório que se suscitem pedidos de esclarecimento das respostas dadas pelo arguido e
findo o interrogatório, poder a defesa requerer ao juiz que formule ao arguido as perguntas que
entender relevantes para a descoberta da verdade (art. 141.º/6), o que ocorre no interrogatório, é
um arremedo de contraditório numa fase inquisitória, exigido pelas garantias de defesa, mas não
equivale ao figurino do contraditório previsto para a audiência de julgamento, pelo que a afirmação
de que nesse caso as declarações são prestadas em 1.º interrogatório com todas as garantias de
defesa não é rigorosa. Acresce que a relevância das perguntas é decidida pelo juiz por despacho
irrecorrível. Não é comparável o contraditório que ocorre em 1.º interrogatório e o que se verifica
em audiência de julgamento.
27 — O paralelo com as declarações para memória futura e a possibilidade de convocar, por
maioria de razão, a jurisprudência fixada no acórdão do Pleno do Supremo Tribunal de Justiça
n.º 8/2017, de 11-10-2017, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 21-11-2017 — «as decla-
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rações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal,
não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas
em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos
termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código — o
que fazem o acórdão do TRL de 06.02.2019, e o acórdão do STJ de 27.01.2021 (ambos disponíveis
http://www.dgsi.pt), também não é procedente. A decisão que fixa jurisprudência tem eficácia no
processo, não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, devendo estes funda-
mentar as divergências relativas à jurisprudência fixada (art. 445.º/1/2). Acontece que a questão
jurídica posta nestes autos é diversa da que foi decidida no acórdão do Pleno do Supremo Tribunal
de Justiça n.º 8/2017, nem se descortina qualquer paralelismo. Enquanto no acórdão do Pleno do
Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2017, estava em causa a reprodução ou leitura em audiência de
declarações da ofendida tomadas nos termos do art. 271.º, no caso estão em causa declarações
prestadas em 1.º interrogatório pelo arguido. São diversos os sujeitos processuais, é diversa a
constelação normativa aplicável, no caso das declarações do arguido os arts. 355.º, 357.º e 141.º,
nas declarações para memória futura da vítima os arts. 271.º, 355.º e 356.º
28 — Além disso, há uma diferença radical que obsta a qualquer paralelismo e que tem a ver
com o desenho da estrutura processual que recebe as declarações. As declarações para memória
futura são prestadas perante um tribunal, naquilo que é uma produção antecipada de prova (M
J A , Direito Processual Penal, 2022, p. 213 e 214), com a finalidade de ser utilizada em
julgamento, enquanto as declarações anteriores do arguido, prestadas nas fases preliminares do
processo, são prestadas em interrogatório que não é uma antecipação da audiência, nem como tal
pode ser visto, nem está funcionalmente dirigido em primeira linha à utilização futura em julgamento,
com um princípio de contraditório incipiente de meros «pedidos de esclarecimento das respostas
dadas pelo arguido» (art. 141.º/6) em momento processual que, em regra, o objeto do processo apa-
rece delineado a traço grosso. Enquanto na tomada de declarações para memória futura ocorre uma
verdadeira antecipação de prova segundo o figurino vigente em audiência de julgamento, o mesmo
não se verifica nas declarações prestadas no interrogatório de arguido. Na verdade, o figurino das
declarações para memória futura é mais dialético que o interrogatório, tem mesmo um contraditório
mais vincado e direto do que o consagrado para a própria audiência de julgamento, pois a letra da
lei permite um contrainterrogatório direto da pessoa que presta depoimento — podendo em seguida
o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem,
formular perguntas adicionais art. 271.º/5 —, e não mediado pelo juiz, como ocorre em audiência
de julgamento (art. 346.º/1, 347.º/1, 349.º). Depois estão em causa declarações do arguido que tem
um estatuto garantístico (art. 32.º/1, CRP) diverso da vítima, ofendido ou assistente.
29 — A favor da dispensa de reprodução ou leitura afirma-se também que o arguido mais do
que qualquer outro sujeito processual sabe o que disse pelo que essa leitura será inútil. Esta pers-
petiva peca por simplista e não responde à nossa questão que é a de saber qual o regime legal e
não, de modo imediato, a de ser fundada a solução legislativa. De qualquer modo importa referir
que não raro os momentos das declarações são de grande pressão e ansiedade não se podendo
dar por adquirido que o arguido saiba ao certo o que disse, tanto mais que as audiências podem
decorrer vários meses ou anos depois. Por outro lado, temos de encarar com realismo o que é a
defesa de muitos arguidos.
30 — O desenho legislativo em processo penal é consabidamente exigente em face dos
interesses antagónicos de difícil ou impossível concordância que nele se fazem sentir. E neste
desenho não se acautelam só os interesses do arguido, mas também da acusação, no fundo a
realização da justiça. Não sendo processualmente admissível a produção privada de uma prova,
com a atual gravação o tribunal só se inteira dela se ela se produzir em audiência. Pensemos num
julgamento com júri e a reprodução de declarações em privado… Depois, como também hoje todos
começamos a ter plena consciência, a reprodução não substituindo a imediação dos depoimentos
ao vivo é algo mais que a leitura da declaração reduzida a escrito. Se é verdade que o escrito, nas
certeiras palavras de G M S , não ruboriza, a reprodução vale mais que a
leitura (S O eS , A proteção de testemunhas no processo penal, 2007, p. 245) e
fornece um sem número de elementos relevantes, quer no sentido dos interesses da acusação quer
da defesa. Importa que o tribunal do julgamento saiba como é que foi realizado o interrogatório e
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como respondeu o arguido. Finalmente não é despicienda a dimensão do princípio da publicidade


da audiência de julgamento na realização da justiça. Sendo as provas reproduzidas em audiência
e exercido o saudável contraditório evitam-se muitos equívocos.
31 — Voltemos à argumentação que dá como adquirido que não é exigível a reprodução ou
leitura das declarações em audiência ancorando-se para tal em que é esse o sentido útil da alte-
ração legislativa protagonizada pela Lei n.º 20/2013, e que não se violam os princípios do contra-
ditório, da imediação e da oralidade. A questão posta no recurso interposto da decisão proferida
em 1.ª instância era, em primeira linha, a de saber qual a solução normativa gizada pelo legislador
ordinário. Sabendo-se que o legislador tem um grau apreciável de conformação das concretas
soluções normativas com o limite de que tal seja consentido pela Constituição, a circunstância de
a solução normativa a que chegou a decisão recorrida — as declarações prestadas pelo arguido
nas fases preliminares do processo podem ser valoradas sem a respetiva reprodução ou leitura
em audiência — poder não ser inconstitucional, o que no mínimo não é líquido pois o TC nos
acórdãos 770/2020 e 125/2022, julgou essa solução normativa inconstitucional, não conduz a que
essa solução normativa seja a que o legislador consagrou. E a nossa questão é a da conformidade
das interpretações divergentes com a solução legislativa ordinária fornecida pelo CPP. Admitindo
que determinada solução seja conforme à Constituição, pertence ao aludido grau de liberdade do
legislador ordinário a faculdade de consagrar outra quer no sentido das garantias de defesa quer no
sentido do reforço das possibilidades da acusação, desde que também conforme a Constituição. Ora
afirmando o TC a inconstitucionalidade da norma que admite a valoração de declarações, prestadas
pelo arguido nas fases preliminares do processo, sem a respetiva reprodução ou leitura, a impo-
sição da obrigação da sua reprodução ou leitura, por parte do legislador ordinário, como condição
de poderem ser valoradas, não sofre de inconstitucionalidade. Sendo assim, o legislador ordinário
tinha legitimidade para consagrar a sua utilizabilidade e a obrigação de reprodução ou leitura como
condição da sua valoração. Por sua vez o aplicador da lei, sendo ela conforme a Constituição, tem
de acatar o ditame legal. A exigência de reprodução ou leitura não é um fetiche do legislador.
32 — O sentido útil da alteração legislativa que o acórdão recorrido descortinou na Lei
n.º 20/2013, vai ao arrepio quer da literalidade da constelação normativa relevante (arts 141.º,
142.º, 355.º e 357.º), quer do propósito expresso pelo legislador na Proposta, quer da interpretação
que desse propósito fizeram os muitos intervenientes na discussão dessa alteração legislativa.
Restringindo-nos à questão a que nos é pedida resposta, a literalidade da norma, reforçada pelo
seu elemento histórico indicam, de modo claro e inequívoco, no sentido de que, segundo o regime
normativo vigente, as declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só podem ser
valoradas quando feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido
tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do art. 141,
exigindo-se, complementarmente, que a reprodução ou leitura ocorra na audiência de julgamento.
Só podem ser reproduzidas ou lidas as declarações obtidas com respeito pela lei de processo e
a leitura não é uma mera faculdade, mas uma obrigação quando o tribunal tem em vista a sua
utilização como prova.
33 — O art. 357.º insere-se no capítulo III (da produção da prova) do Título II (da audiência)
cuja regra seminal enunciada no art. 355.º/1) é «[n]ão valem em julgamento, nomeadamente para
o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas
ou examinadas em audiência». Regra que comporta a exceção, constante do n.º 2 da norma, de
que valem em julgamento «as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou
audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes». Quanto a declarações
do arguido só é permitida «[a] reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido
no processo a) a sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tive-
rem sido prestadas; ou b) quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária cumpridos os
requisitos dos artigos 141.º/4/b, e 357.º/1/b).
34 — Do jogo da regra (art. 355.º/1) e da exceção (arts. 355.º/2, 357.º/1/b, e 141.º/4/b) resulta
que as declarações feitas pelo arguido nas fases preliminares do processo apenas podem ser
valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento. O enunciado
verbal da exceção deve ser lido na sua completude, assim a possibilidade de valoração, recai sobre
as provas contidas em atos processuais cuja visualização ou audição em audiência seja permitida,
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nos termos dos artigos seguintes. A prova em causa é admissível, mas como prova pré-constituída
só pode ser adquirida validamente depois de reproduzida em audiência (art. 357.º/1/b). Se o legis-
lador dedica toda uma norma à reprodução ou leitura permitidas de declarações do arguido (cuja
epígrafe — do artigo 357.º —, não por mero acaso, foi também alterada pela L 20/2013) torna-se
claro que essas declarações só podem ser valoradas como prova desde que reproduzidas em
audiência, entendimento pacífico deste STJ até 2017 e da doutrina (além do já referido, P
P A , Comentário do Código de Processo Penal, 2.ªed. 2008, p. 899, S
O S , «A Centralidade do Julgamento na Economia do Processo», RPCC, 28, janei-
ro — abril, 2018, p. 54). A proibição de valoração de declarações não reproduzidas ou lidas resulta
tão clara da constelação normativa que autores como M J A (Direito Processual
Penal, 2022, p. 214-215) e G M S (Direito Processual Penal Português,
2014, p. 243) dedicam-lhe uma breve referência. O M (Código de Processo Penal,
3.ª edição, 2021, p. 1098 e 1099) é perentório no sentido de que a valoração de declarações do
arguido não lidas na audiência constitui violação do disposto no n.º 1 do artigo 355.º, inquinando
a sentença de vício que determina a prolação de nova decisão. P D M (Comentário
Judiciário do Código de Processo Penal, IV, anotação aos arts. 355.º e 357, p. 579 a 581, 588,
593 624 a 628), centrando a sua atenção na constitucionalidade da valoração sem reprodução ou
leitura acaba por sustentar como solução legal ordinária, como a melhor prática, a possibilidade
de valoração sem reprodução em audiência.
35 — A alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013 no art. 141.º/4/b — [o juiz informa o arguido]
de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no
processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de jul-
gamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova — não pode ser vista isoladamente, como
parece ser o entendimento do acórdão recorrido, mas no contexto de um propósito legislativo
reformador e deve ser lida no contexto das alterações introduzidas e considerar a sistemática do
diploma onde se inseriu. A meia alteração do art. 141.º só ganha sentido e por isso tem de ser lida
em conjugação com a ocorrida no art. 357.º, pois só assim temos uma alteração com sentido e
ambas devem ser lidas no contexto sistemático do CPP.
36 — Conhecido o propósito do legislador de 2013, só podia ter sido escolhido para acolher
as alterações a norma que regula as exceções à regra do art. 355.º As declarações do arguido que
não podem ser reproduzidas também não podem ser valoradas. E as que podem ser reproduzidas,
para poderem ser validamente valoradas, precisam de ser reproduzidas em audiência. A reprodu-
ção ou leitura não é, como o incauto intérprete desconhecedor do lastro histórico da norma pode
ser tentado a concluir, uma mera faculdade; a permissão de reprodução ou leitura significa que
só aquelas declarações cuja reprodução ou leitura é permitida podem, depois de reproduzidas ou
lidas em audiência, ser valoradas como prova. A reprodução/leitura em audiência é condição da
possibilidade e validade da valoração. Acresce, como exigência de outra natureza, a consignação
em ata da reprodução ou leitura (arts. 357.º/3 e 356.º/9).
37 — A novidade de 2013 em matéria de leitura de declarações anteriormente prestadas é a
de que o silêncio do arguido em audiência de julgamento não obsta, como até aí acontecia, a que
elas possam ser valoradas, obviamente, depois de lidas ou reproduzidas. E a obrigatoriedade de
leitura era tão indiscutível que não foi tópico de debate. Não há confusão possível entre acabar com
a regra da intransmissibilidade das declarações prestadas nas fases preliminares do processo — o
que fez o legislador de 2013 — e a valoração como prova dessas declarações sem reprodução ou
leitura em audiência; são realidades processuais distintas que não podem ser confundidas.
38 — Este foi também o entendimento de J F D (ob. cit. 2014, p. 67,
68) quando se pronunciou, já na vigência da Lei n.º 20/2013, sobre os problemas que mereceram
a atenção do legislador ao identificar como um deles «o do valor em audiência de declarações
produzidas pelo arguido na fase de inquérito». Mas se dúvidas restassem quanto ao sentido da sua
afirmação elas dissipam-se quando afirma «[m]ais significativa [...] terá sido a que tem a ver com os
arts 356.º, n.os 3 e 4 e 357.º do Código de Processo Penal, relativos às restrições feitas à leitura em
julgamento e consequente valoração judicial de anteriores declarações do arguido. O regime agora
instaurado conduz a que deixe de ser proibida aquela leitura no caso de as declarações terem sido
proferidas não perante o juiz, mas perante o magistrado do Ministério Público».
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39 — Quando se rompe com a regra antecedente conhece o legislador a exigência de ser claro.
O legislador foi muito claro no propósito de acabar com a inutilizabilidade das declarações anteriores
em consequência do silêncio em audiência, já quanto à dispensa da reprodução ou leitura nada
disse, bem ao contrário deu indicações, que julgamos inequívocas, no sentido da continuação do
regime anterior fazendo as alterações que reputou pertinentes na norma que exige a reprodução,
tendo ainda o cuidado de atualizar de modo condizente a epígrafe da norma.

E. Conclusão

40 — A afirmação de que a regra do n.º 1 do artigo 355.º, do CPP, «não valem em julgamento,
nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tive-
rem sido produzidas ou examinadas em audiência»], cede, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito,
«quando estão em causa as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou
audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes», não pode esquecer
que os arts. 141.º, 143.º, 355.º e 357.º, em matéria de utilizabilidade de declarações prestadas em
inquérito são uma constelação normativa que o intérprete não pode considerar de modo desgarrado.
O legislador de 2013 manteve a regra do art. 355.º/1, apenas alargou o âmbito da exceção, permi-
tida no n.º 2 do art. 255.º, no novo 357.º/2, na expressão de M J A (2022, p. 214)
há aqui um alargamento manifesto dos casos em que as declarações do arguido podem ser repro-
duzidas ou lidas na audiência de julgamento. Sabia o legislador que ao alargar a exceção estava
ao mesmo tempo a alargar as possibilidades da acusação e a estreitar a oralidade e a imediação,
propósito confessado na exposição de motivos. Tendo ele consciência de que sempre que alargar
ou estreitar a consistência de um direito fundamental processualmente relevante está inversamente
a estreitar ou alargar a consistência de direitos fundamentais conflituantes (J F
D , 2014, p. 52), a opção legislativa de tentar minorar até onde é possível a falta de imediação e
oralidade é congruente com a manutenção da obrigação de reprodução ou leitura.
41 — A reprodução ou leitura apenas da parte reputada relevante das declarações satisfaz
obviamente o desígnio legislativo. Aceita-se como possível limite à obrigação de reprodução ou
leitura das declarações a aceitação livre, inequívoca e esclarecida do seu conteúdo por parte do
arguido e a subsequente renúncia, por parte de todos os sujeitos processuais, a essa reprodução
ou leitura, sem que tal signifique obstáculo à sua valoração como prova.
42 — Abrir a porta para que o tribunal aceda, fora da audiência de julgamento e à revelia e sem
o concurso dos demais sujeitos processuais, nomeadamente acusação e defesa, às declarações do
arguido, naquilo que já foi apodado de produção privada de prova, e possa valorar as declarações
para o efeito da decisão, constitui uma guinada na direção do inquisitório, numa fase processual
dominada pelo contraditório, e consequente enfraquecimento do contraditório, dado que este impõe
a produção das provas dialeticamente em audiência (art. 32.º/5, CRP).
Só o acentuar das exigências da descoberta da verdade e da realização do interesse punitivo
do Estado pelo legislador em 2013 abriu a porta a que essas declarações também pudessem ser
utilizáveis como prova em julgamento, desde que lidas ou reproduzidas em audiência. Se antes já
era obrigatória a leitura, com a nova funcionalidade permitida pelas alterações de 2013, por maio-
ria de razão ela se justifica. Só a exigência da leitura/reprodução se adequa ao processo justo e
equitativo.

43 — Na fundamentação da convicção, o tribunal de 1.ª instância valorou como prova as decla-


rações prestadas pelo arguido nas fases preliminares do processo, sem que as tenha reproduzido
ou lido em audiência. O arguido recorreu, mas o Tribunal da Relação decidiu a possibilidade de
valorar a prova por declarações do arguido feitas nas fases preliminares do processo sem a neces-
sidade de reprodução ou leitura em audiência. Face à jurisprudência que vai ser fixada (art. 445.º/1),
impõe-se a prolação de nova decisão pelo TRL.
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III — Decisão

Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Fixar a seguinte jurisprudência uniformizadora:

As declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com respeito pelo
disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), e 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, podem
ser valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento;

b) Julgar procedente o presente recurso extraordinário, revogando o acórdão recorrido no


segmento em que validou a valoração de declarações do arguido prestadas no inquérito sem a
respetiva reprodução ou leitura em audiência de julgamento;
c) Ordenar o cumprimento do art. 444.º, do Código de Processo Penal.

Sem tributação.

Supremo Tribunal de Justiça, 04.05.2023. — António Gama (relator) — Sénio Alves — Ana
Maria Barata de Brito — Orlando Manuel Jorge Gonçalves — Maria do Carmo Silva Dias — Pedro
Branquinho Ferreira Dias — Leonor do Rosário Mesquita Furtado — Ernesto Carlos dos Reis Vaz
Pereira — Agostinho Soares Torres (com declaração em anexo) — José Eduardo Miranda San-
tos Sapateiro — Helena Moniz — Nuno António Gonçalves — Paulo Jorge Fonseca Ferreira da
Cunha — Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida — Eduardo Almeida Loureiro — Teresa de
Almeida (com voto de vencida) — António Latas (com o voto de vencido anexo) — José Luís Lopes
da Mota (com declaração de voto de vencido).

***

Processo n.º 660/19.9PBOER.L1-A.S1

(Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência)

Declaração de voto:

Votei a decisão e seus fundamentos mas considero que, face ao referido no ponto 41 do pro-
jecto, seria preferível que a alínea a) do dispositivo tivesse uma redacção que reflectisse melhor
o conteúdo clarificador daquele.
Assim, proporia a seguinte redacção da alínea a) do dispositivo:

“a) As declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com
respeito pelo disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b, e 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo
Penal, podem ser valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em audiência de
julgamento, sem prejuízo da dispensa por todos os sujeitos processuais, dessa reprodução
ou leitura.”

Agostinho Torres

***

Declaração de voto

O n.º 2 do artigo 355.º do CPP contém as exceções à regra de proibição de valoração da prova não
produzida ou examinada em audiência, regra essa que materializa o princípio da imediação da prova.
O texto da norma contém uma cláusula geral de exceção: “as provas contidas em atos pro-
cessuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos arts.
seguintes”.
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A suscetibilidade de valoração encontra-se, assim e do meu ponto de vista, dependente de as


provas em causa integrarem o conjunto daquelas cuja leitura é permitida e não da efetiva leitura.
Por sua vez, o art. 357.º, em particular, a alínea b) do seu n.º 2, estabelece que a leitura das
declarações do arguido só é permitida, além do caso da alínea a) (no exclusivo interesse e a solici-
tação do arguido, prestadas perante qualquer entidade e, naturalmente, sem advertência), quando:

— tiverem sido prestadas perante autoridade judiciária;


— com assistência de defensor;
— informado “de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão
ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações
em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova”.

Note-se que o n.º 7, do art. 141.º estabelece como regra o interrogatório do arguido é efetuado
através de registo áudio ou audiovisual.
Ou seja,

— querendo prestar declarações, o arguido é informado da possibilidade de utilização no


processo, mesmo que se remeta ao silêncio, e da sujeição à livre apreciação da prova;
— verificadas estas condições, passa a ser permitida a, em regra, audição ou visualização e,
residualmente, leitura em audiência, devendo tal permissão constar da acta, nos termos do n.º 9
do art. 356.º;
— verificada a permissão de “leitura” e cumprida a respetiva consignação em acta, a prova
pode ser valorada, nos termos do art. 355.º

A autonomização do tratamento das declarações prestadas pelo arguido, no quadro das exce-
ções ao princípio da imediação da prova, tem como fundamento a necessidade de respeito pelo
quadro de garantias constitucionais do seu estatuto processual penal, especialmente, do direito ao
silêncio. Mantendo intacto o direito aos silêncio, de que o arguido pode fazer uso quando quiser,
o legislador permitiu o não apagamento de declarações por aquele prestadas em determinadas
condições e mediante a advertência da possibilidade de valoração.
Contudo, o regime não apresenta diferenças substanciais, nem mesmo relevantes, relativa-
mente ao regime do art. 256.º
O que se compreende, considerando, por ex., a exceção relativa às declarações para memó-
ria futura que pode representar uma compressão de mais elevado grau dos direitos de defesa: a
ausência do assistente ou da testemunha em julgamento, com contraditório necessariamente limi-
tado face ao conhecimento global da prova entretanto produzida, o ambiente informal e reservado,
o afastamento de presença física da defesa no espaço da inquirição, constituem elementos que
diminuem a posição do arguido.
No caso das declarações do arguido, na quase generalidade das situações, ele estará em
julgamento para as contextualizar, referenciar a circunstâncias, alegar a sua invalidade, comple-
mentar.
A lei não impõe a leitura das declarações.
Aliás. tais declarações não são novidade para o arguido, o respetivo acesso (leitura, audição,
visualização) mostra-se, permanentemente, disponível e pode exercer o direito de solicitar a leitura.

4 de maio de 2023. — Teresa de Almeida.

***

Voto de vencido

1 — Não subscrevo a presente fixação de jurisprudência, não obstante a ampla maioria que a
decide, por se me afigurar que a exigência de leitura das declarações do arguido a se que reporta
o artigo 357.º n.º 1 b) CPP, sem qualquer limitação, acolhe interpretação jurídica que não tenho
por clara nos seus fundamentos, dado que o n.º 2 do artigo 355.º exceciona as provas contidas em
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atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas nos termos
dos artigos seguintes, entre as quais se contam aquelas declarações.
Ou seja, parafraseando parcialmente o AFJ 8/2017, numa interpretação literal e conjugada dos
artigos 355.º e 357.º n.º 1 b), do CPP, pode concluir-se que sendo a leitura das declarações prestadas
perante autoridade judiciária expressamente permitida pela alínea b) do n.º 1 do artigo 357.º, nos
termos aí previstos, situação que se integra na ressalva do n.º 2 do artigo 355.º, está-se perante
uma exceção à regra do n.º 1 deste mesmo art. 355.º Assim, mesmo não tendo sido produzida ou
examinada em audiência, tal prova poderá ser valorada para o efeito de formação da convicção do
tribunal, porque estão em causa declarações do arguido que, nos termos do n.º 2 do artigo 357.º,
podem ser lidas sem outros condicionalismos, para além dos respeitantes ao momento da prestação
das declarações perante autoridade judiciária (141.º n.º 4).
Diferentemente, o n.º 1 do artigo 357.º apenas admite que sejam valoradas declarações do
arguido, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas, se tais declarações forem
reproduzidas ou lidas a solicitação do arguido, o que traduz opção legislativa clara no sentido de
aquela hipótese ser abrangida pela regra geral do art. 355.º e não pela exceção do seu n.º 2.
Por outro lado, a obrigatoriedade de leitura das declarações do arguido em audiência em
qualquer hipótese, e não apenas nos casos de ausência do arguido, mesmo contra a vontade
deste (na formulação do dispositivo), apesar de o arguido, que é obrigatoriamente representado
por advogado em audiência, poder tomar a iniciativa de requerer com toda a amplitude a leitura ou
reprodução em audiência das suas declarações anteriormente prestadas, parece-me — em linha
com a argumentação do voto de vencido conjunto aposto no Acórdão do Tribunal Constitucional
n.º 770/2020 — estarmos perante solução marcadamente paternalista que contraria, na sua essên-
cia, a consideração do arguido como verdadeiro sujeito processual.
Por último, parecem-me claramente desproporcionadas as consequências desta solução
do ponto de vista da celeridade processual e do regular decurso da audiência de julgamento,
particularmente sentidas nos processos de maior complexidade e volume, designadamente nos
casos de grande número de arguidos, pois é lição da prática judiciária que a reprodução ou leitura
daquelas declarações do arguido tenderá a ser feita de forma exaustiva, na generalidade dos casos,
para acautelar eventuais nulidades.

António Latas

***

Proc. 660/19.9PBOER.L1-A.S1

DECLARAÇÃO DE VOTO

O auto de declarações (ou gravação) deve ser apresentado em audiência e a produção da prova
nele contida, mediante leitura ou audição, só pode ter lugar se for permitida (art. 355.º do CPP).
A utilização ou exame das declarações a que se refere o art. 357.º, n.º 1, al. b), do CPP implica
necessariamente a sua leitura ou audição pelos sujeitos processuais que o pretendam ou devam
fazer, na totalidade ou em parte, para que se possa trazer à discussão o seu conteúdo e permitir
ao arguido que as confirme, altere, complete ou esclareça, no pleno exercício dos seus direitos
processuais, com total realização do contraditório. O conhecimento do conteúdo das declarações em
audiência, onde deve ser produzida e examinada toda a prova, pode ser obtido por várias formas,
assegurando o tribunal a sua integridade e disponibilidade e fazendo constar em ata a permissão
de leitura ou audição e a sua justificação legal, condição de validade e eficácia da prova (art. 356.º,
n.º 9, e 357.º, n.º 3).
A obrigação de ler (ou ouvir) há de justificar-se pela sua necessidade, na dinâmica da produção
de prova em julgamento, permitida que seja a leitura, e não por imposição legal de leitura. Imposição
que não resulta da lei e que pode traduzir-se em formalidade rígida, excessiva ou desnecessária
(casos de macroprocessos, com declarações várias prestadas durante vários dias, que devessem
ser lidas ou reproduzidas em audiência, em cumprimento de mera formalidade, sem justificação
concreta).
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O que a lei visa é assegurar a imediação e o contraditório em audiência sobre este meio de
prova previamente constituído e o respeito pelo processo equitativo, em todas as suas dimensões.
Daí que, na sua formulação, se limite a dizer que a reprodução ou leitura de declarações anterior-
mente feitas pelo arguido no processo “só é permitida” nas condições referidas na alínea b) do
n.º 1 do artigo 357.º do CPP.
Como referi no voto de vencido no AFJ n.º 8/2017 (DR, Série I, 21.11.2017), a propósito da
leitura de declarações para memória futura (art. 356.º do CPP), a lei não diz quem deve ler, a quem
o tribunal deve mandar ler, o quê e de que modo; defendi que equivale à “leitura” o “dar a ler”,
o facultar a leitura aos demais sujeitos processuais, e a indicação de que o meio de prova será
utilizado para a decisão (citando, a este propósito, norma do art. 511.º do CPP italiano, que julgo
poder ter-se como implícita no nosso sistema, na falta de regulamentação expressa e completa e
em harmonia com idênticos princípios). Não me parecem relevantes as diferenças de regime de
produção das declarações e do estatuto de quem as profere, para efeitos do artigo 355.º, que as
equipara e as sujeita a idênticas condições (obrigatórias) para que possam ser valoradas como
prova. Sendo certo que a leitura (audição) sempre será obrigatória para o tribunal, para que possa
valorar o seu conteúdo e formar a sua convicção.
Assim, concordando em que as declarações podem ser valoradas como prova desde que lidas
ou reproduzidas em audiência de julgamento, parece-me que, na concretização desta afirmação,
se deveria esclarecer ou interpretar esta conclusão no sentido de que podem ser valoradas como
prova desde que, durante o julgamento, sendo permitida a leitura ou audição e observado o disposto
no artigo 356.º, n.º 9, do CPP, sejam lidas ou ouvidas pelo tribunal e dadas a ler ou proporcionada
a sua leitura ou audição aos demais sujeitos processuais.

José Luís Lopes da Mota


116533878

www.dre.pt

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