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Jurisprudência do Tribunal Constitucional

ACÓRDÃO N.º 129/07


Processo n.º 707/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
 
 
 
Acordam no Tribunal Constitucional
 
 
 
1.            A. recorre para este Tribunal do acórdão da Relação de Lisboa, impugnando a
conformidade constitucional da norma constante do artigo 40º do Código de Processo
Penal, quando aplicada no sentido "de que a circunstância de a juíza-presidente do
colectivo intervir em julgamento, depois de ter procedido ao primeiro interrogatório do
arguido e lhe ter decretado prisão preventiva, bem como a circunstância de a juíza-
adjunta do mesmo colectivo intervir no julgamento, quando, em fase de inquérito,
procedeu ao reexame da prisão preventiva, mantendo-a, e já após a acusação, indeferiu
um pedido de alteração dessa medida de coacção, não violam as garantias de defesa do
arguido", regra que, em seu entender, está em desconformidade com os n.ºs 1 e 5 do
artigo 32º da Constituição.
 
Admitido o recurso, concluiu o recorrente a sua alegação nos seguintes termos:
 
I.              A M.ma Juiz Presidente do Tribunal Colectivo, ao presidir ao
primeiro interrogatório judicial e decidir a prisão preventiva, como
medida coactiva a aplicar ao caso, conheceu dos factos indiciários que o
arguido vinha denunciado. Analisou-os e valorou-os.
II.            Da mesma forma a M.ma Juíza Adjunta deste Tribunal
Colectivo, reexaminou os pressupostos de facto e de direito que foi
necessário tomar em conta, valorou-os e decidiu pela manutenção da
medida coactiva mais gravosa: prisão preventiva.
III.           Posteriormente, a mesma M.ma Juiz decidiu do requerimento
de alteração da medida de coacção apresentado pelo arguido, quando já

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estava formulada a acusação, quando existiam no processo todos os
elementos que é possível carrear sobre a autoria dos crimes imputados
ao arguido. Tomou em conta os factos trazidos pelo arguido no seu
requerimento e articulou-os com os factos existentes no processo:
“Todavia dos autos resulta, outrossim...” (sic.) e noutra parte, o mesmo
despacho remete para “os depoimentos de fls. 4 e 5 dos autos, de B. e
C., ...“ (sic.)
IV.          As M.mas Juizes não se limitaram a praticar, no processo,
actos de mero expediente. Ao invés, tomaram conhecimento de
elementos fulcrais dos autos e praticaram actos materiais no processo.
V.           Sobre ambas as M.mas Juízes recaem fortes suspeições de
independência (imparcialidade) quando é sabido que ambas já
formularam juízos de valor sobre a factologia nuclear do processo.
VI.          A intervenção do Juiz que, em sede de inquérito ou instrução,
não se traduza na realização de meros actos de expediente e implique
uma tomada de decisão, com valoração dos indícios recolhidos,
designadamente aplicando prisão preventiva ao arguido, fica impedido
de participar no julgamento e, se o fizer, verifica-se uma nulidade
insanável determinante da anulação do julgamento
VII.        Com o n.° 5, do art. 32.°, da CRP, o que se pretende é que o
arguido a ser submetido a julgamento, tenha um julgamento
independente e imparcial.
VIII.       Para decretar qualquer medida de coacção, o julgador tem de
fazer uma avaliação/valoração dos actos de investigação já realizados e
dos indícios já recolhidos para optar e determinar qual a gravidade da
medida a decretar. Nessa medida, formula um juízo ainda que
provisório, que perdurará na sua mente e que tornará mais difícil, ainda
que involuntariamente, estar disponível (mente aberta) para uma
inversão dos elementos que a prova efectuada em julgamento permita
coligir e para efectuar o bom controlo dos fundamentos da ideia de
condenar (ainda que involuntariamente).
IX.          No espírito dos julgadores perdurará, ainda que por acto
involuntário seu, um contacto anteriormente travado com a realidade
que vai julgar; ainda que não por acto voluntário do julgador, o arguido
(defesa) fica à partida em situação de inferioridade/desigualdade face à
acusação, logo no início do julgamento (por isso, o arguido suscitou
desde logo o incidente de impedimento).

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X.           O reexame da medida deve legitimar o impedimento da
intervenção do juiz no processo — reanalisar ou reavaliar,
reiteradamente, os indícios antes do julgamento, mais não é do que
criar, em relação a esses factos e valoração respectiva, uma memória,
ainda que involuntária, mas que se vai traduzir em desigualdade de
armas na audiência de discussão e julgamento.
XI.          Tomando por base os actos praticados pela M.ma Juiz Adjunta
pode, seguramente, dizer-se que ela fica com uma convicção de tal
modo arreigada quanto a esses aspectos do processo que,
objectivamente, e sem prejuízo da independência interior que for capaz
de preservar, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e
imparcialidade na fase do julgamento.
XII.        O julgamento independente e imparcial é, também, uma
dimensão do princípio das garantias de defesa, consagrado no art. 32°,
n.º 1, da CRP.
XIII.       O preceito ínsito no art. 40°, do CPP, ao permitir o
entendimento (restritivo) de que apenas o Juiz que no inquérito ou
instrução tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva
do arguido está impedido de participar no julgamento é inconstitucional
por violação do disposto nos art. 32°, n.º 5 e 1, da Constituição de
República e ainda a de que a sua aplicação, apenas com esse âmbito, é
de recusar, por inconstitucional.
XIV.      Disposições violadas: arts. 40°, 41º, 119° e 122° do C.
Processo Penal; art. 32°, nº 1 e nº 5, da CRP;
art. 6°, nº 1 da Conv. Europeia dos Direitos do Homem.
termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em
consequência, ser apreciada e declarada com força obrigatória geral, a
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40.°, do CPP,
na parte em que permite a intervenção no julgamento, do juiz que
decretou a prisão preventiva,
na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que
manteve e posteriormente indeferiu, a alteração dessa mesma medida
coactiva de prisão preventiva e
na parte em que permite a intervenção no julgamento de um tribunal
colectivo composto pelo juiz que, findo o primeiro interrogatório
judicial, decretou a prisão preventiva (juiz presidente desse mesmo
colectivo) e, simultaneamente, pela juiz que lhe manteve e

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posteriormente indeferiu essa mesma medida coactiva de prisão
preventiva.
tudo com as consequências legais.
 
O representante do Ministério Público apresentou alegação em que concluiu:
 
Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1. A norma do artigo 40º do Código de Processo Penal não é
inconstitucional quando interpretada no sentido de permitir a
intervenção no julgamento de juiz que na fase inicial do inquérito
procedeu ao interrogatório judicial do arguido detido, tendo-lhe
aplicado a medida de coacção de prisão preventiva.
2. Já o é, porém, por violar as garantias de defesa do artigo 32º, nºs 1 e
5 da Constituição, na interpretação em que permite a intervenção de juiz
que na fase de inquérito, em momento imediatamente antecedente ao da
formulação de acusação, manteve a medida de prisão preventiva, tendo
posteriormente, a requerimento do arguido, tomado idêntica posição,
analisando os autos e os indícios recolhidos, em data próxima da do
inicio do julgamento.
3.  Termos em que deverá o presente recurso proceder parcialmente.
 
 
2.            Cumpre decidir.
 
2.1.        É impugnada a norma que se contém no artigo 40º do Código de Processo
Penal, resultante da alteração introduzia pelo artigo 134º da Lei de Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na redacção resultante da Lei n.º 3/99 de 13 de
Janeiro, com a seguinte redacção:
 
Artigo 40.º
(Impedimento por participação em processo)
 
Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de
revisão relativo a uma decisão que tiver proferido
ou em que tiver participado ou no julgamento de
um processo a cujo debate instrutório tiver
presidido ou em que, no inquérito ou na instrução,

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tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão
preventiva do arguido.
 
 
O Tribunal recorrido retirou do preceito e aplicou na decisão uma norma segundo a
qual podem simultaneamente intervir no tribunal colectivo que procedeu ao julgamento
o juiz que, durante o inquérito, aplicou ao arguido a prisão preventiva e, ainda um outro
juiz que, durante o inquérito, e depois da acusação, manteve a medida. É, no essencial,
esta a norma impugnada, contida no 40º do Código de Processo Penal e aplicada no
sentido "de que a circunstância de a juíza-presidente do colectivo intervir em
julgamento, depois de ter procedido ao primeiro interrogatório do arguido e lhe ter
decretado prisão preventiva, bem como a circunstância de a juíza-adjunta do mesmo
colectivo intervir no julgamento, quando, em fase de inquérito, procedeu ao reexame da
prisão preventiva, mantendo-a, e já após a acusação, indeferiu um pedido de alteração
dessa medida de coacção não violam as garantias de defesa do arguido".
 
2.2.        A Relação de Lisboa decidiu a questão que lhe foi suscitada da seguinte forma:
 
As questões suscitadas pelo recorrente são duas:
a) A da constitucionalidade do art. 40 do Código Processo Penal;
b) A nulidade do julgamento.
Segundo o recorrente o art. 40º do Código Processo Penal, ao permitir o
entendimento de que apenas o juiz que no inquérito ou instrução tiver
aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido está
impedido de participar no julgamento, é inconstitucional por violação
do disposto nos art. 32º, n.º 5 e n.º 1 da Constituição.
No caso, como vimos, a Ex.ma juíza presidente procedeu ao primeiro
interrogatório judicial do arguido e no seu final decidiu aplicar-lhe a
medida de coacção de prisão preventiva. Não teve outra intervenção
antes da fase de julgamento.
A Ex.ma juíza adjunta, procedeu, ainda em fase de inquérito, a um
reexame dos pressupostos da prisão preventiva, nos termos do art. 213º
do Código Processo Penal, mantendo-a; depois apreciou requerimento
apresentado pelo arguido, visando a alteração da medida de coacção de
prisão preventiva, que indeferiu, mantendo-o em prisão preventiva.
Do exposto se conclui que nem a Ex.ma juíza presidente do colectivo
nem a Ex.ma juíza adjunta aplicaram e posteriormente mantiveram

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prisão preventiva do arguido em fase de inquérito ou em instrução. Com
efeito a Ex.ma juíza presidente aplicou ao arguido a medida de coacção
de prisão preventiva, em inquérito, não mais sendo chamada a
pronunciar-se nos autos sobre tal medida coactiva,  e a Ex.ma juíza
adjunta manteve a prisão preventiva em inquérito, depois de ter
reapreciado os seus pressupostos e pronunciou-se, já após o
encerramento do inquérito, sobre requerimento apresentado pelo
arguido visando a sua revogação, requerimento que indeferiu, pelo
que não aplicou sequer a medida de prisão preventiva.  Não se mostra,
assim, violado o artigo 40º, do Código de Processo Penal, ou dito de
outro modo, não se verificam os requisitos exigidos nesse dispositivo
legal para declarar impedida qualquer das Ex.mas juízas que constituem
o tribunal colectivo que procede ao julgamento. Bem andou pois, pelo
menos de um ponto de vista estritamente processual penal, a decisão
recorrida ao indeferir os deduzidos impedimentos por participação em
processo.
O arguido reconhece esta realidade, mas não se conforma, pois, no seu
modo de ver, a intervenção do juiz que, em fase de inquérito ou
instrução, não se traduza na realização de meros actos de expediente e
implique uma tomada de decisão, com valoração dos indícios
recolhidos, designadamente aplicando prisão preventiva ao arguido,
deve desencadear impedimento de participar no julgamento. É este
entendimento restritivo que quer ver seguido, sustentando que de outro
modo se viola o art. 32º n.º1 e 2 da Constituição. Segundo o recorrente
como as Ex.mas juízas não se limitaram a praticar, no processo, actos
de mero expediente, antes tomaram conhecimento de elementos fulcrais
dos autos e praticaram actos materiais no processo, sobre ambas
recaem fortes suspeitas de independência (imparcialidade) quando é
sabido que ambas formularam juízos de valor sobre a factologia
nuclear do processo. Os juízos, ainda que provisórios, que formularam
perdurarão na sua mente, ficando o arguido à partida em situação de
inferioridade/desigualdade face à acusação, fica inexoravelmente
comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do
julgamento. Ora o julgamento independente e imparcial é, também,
uma dimensão do princípio das garantias de defesa, consagrado no
art.32 º, n.º1 da Constituição.

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Importa, assim, decidir se a concreta aplicação do art 40º do Código
Processo Penal ofende a Constituição ou o art. 6º n.º l da CEDH.
Dispõe o art. 32º da Constituição:
1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo
o recurso.
(...)
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de
julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao
princípio do contraditório
Artigo 6 da CEDH [direito a julgamento justo]
1. Na determinação dos seus direitos e obrigações civis ou de qualquer
acusação criminal contra si, qualquer pessoa tem direito a um
julgamento e audiência pública dentro de um prazo razoável por um
tribunal independente e imparcial estabelecido por lei (...).
A fórmula da primeira parte do n.º l do art. 32 da Constituição não
traduz uma norma meramente programática. O preceito deve ser
interpretado — o art. l6º da Constituição a tanto obriga - à luz do
denominado processo equitativo, na designação da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem e do Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos ou do due process of law, na fórmula da
jurisprudência norte-americana, envolvendo como aspectos
fundamentais a consideração do arguido, como sujeito processual a
quem devem ser assegurados todas as possibilidades de contrariar a
acusação, a independência e imparcialidade do juiz ou tribunal e a
lealdade do procedimento.
No que ao n.º 5 respeita, cumpre dizer, no essencial, que a estrutura
acusatória do processo significa o reconhecimento do arguido como
sujeito processual a quem é garantida efectiva liberdade de actuação
para exercer a sua defesa face à acusação que fixa o objecto do processo
e é deduzida por entidade independente do tribunal que decide a causa.
Cabendo no caso, já que não se trata de crimes particulares, a acusação
ao Ministério Público, art. 283º do Código Processo Penal, sujeito
processual distinto do tribunal, art. 10º e segts. e 48 e segts. do Código
Processo Penal, não vislumbramos a violação do princípio do
contraditório: a acusação que fixa o objecto do processo foi deduzida
por entidade autónoma e totalmente independente do tribunal. Há uma
separação absoluta entre a entidade que acusou e a que julga. As

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Ex.mas juízas não carrearam para os autos elementos de prova
susceptíveis de serem utilizados pela acusação, nem sequer dissentiram
da medida de coacção — para mais grave — requerida pelo Ministério
Público. A intervenção da Ex.mas juízas ocorreu numa veste
garantística dos direitos do arguido.
A questão suscitada pelo recorrente parece-nos que se situa com mais
propriedade no âmbito da imparcialidade.
Dispõe o artigo 40º do Código de Processo Penal que “nenhum juiz
pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão
que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um
processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no
inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a
prisão preventiva do arguido.”
Já vimos que a actuação concreta das Ex.mas juízas não chega a
preencher a previsão do art. 40º do Código Processo Penal,
ficando aquém daquilo que o legislador estabeleceu como limite a partir
do qual, fundada e objectivamente, há impedimento legalmente
tipificado. Por outro lado o recorrente não lança mão do instituto da
recusa do art. 43º n.º 2 do Código Processo Penal, sabido que pode
constituir fundamento de recusa a intervenção do juiz em fases
anteriores do mesmo processo fora dos casos do art. 40º quando correr
o risco de ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave,
adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.  Nem alega
violação da dimensão subjectiva do dever de imparcialidade, v.g.
qualquer afirmação produzida pelas Ex.mas juízas susceptível de ser
interpretada como pré-juízo desfavorável em violação do dever de
neutralidade. Não resulta dos autos que as Ex.mas juízas fizeram v.g.
uso indevido dos elementos a que tiveram acesso nas suas intervenções
anteriores à fase de julgamento no processo, v.g. que a Ex.ma juíza
presidente se tenha prevalecido contra o legalmente estabelecido das
declarações que ouviu ao arguido no primeiro interrogatório.
O recorrente tem todo o cuidado em situar a questão que suscita a nível
objectivo, no entendimento que faz dos dispositivos constitucionais. Se
esse foi o caminho escolhido pelo arguido podemos concluir que não
vislumbrou fundamento subjectivo para suspeitar da sua imparcialidade.
De outro modo o arguido teria deitado mão do incidente de recusa.

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É conhecida a história legislativa do art. 40º do Código Processo Penal.
A redacção inicial foi declarada inconstitucional, com força obrigatória
geral, na parte em que permitia a intervenção no julgamento do juiz
que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão
preventiva do arguido, por violação do art. 32º n.º 5 da Constituição,
pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/98, DR I-A série, de
20 de Março de 1998. Logo de seguida a Lei n. 59/98, de 25 de Agosto,
introduziu na versão originária a alternativa final — ou em que tiver
aplicado e posteriormente mantido prisão preventiva do arguido. Por
sua vez a Lei 3/99, de 13 de Janeiro, aditou a expressão no inquérito ou
na instrução, visando assim, como esclarece Maia Gonçalves, clarificar
o que já antes se afigurava óbvio, pois que o juiz do julgamento não
toma posição sobre prova indiciária. Solução contrária conduziria ao
absurdo de o juiz do julgamento ter de mudar pelo menos
trimestralmente por via da aplicação do art. 2l3º n.º l do Código
Processo Penal.
A alteração legislativa teve em vista sanar o vício de
inconstitucionalidade declarado pelo Tribunal Constitucional tendo o
legislador ponderado na solução legislativa os pronunciamentos da
jurisprudência constitucional seguindo o caminho aberto pela
jurisprudência do Tribunal Constitucional. Acontece que da génese
legislativa do actual preceito, fez o recorrente tábua rasa, batendo na
tecla já reparada pelo legislador, como se ela ainda estivesse gasta.
A questão aqui posta - saber se viola o artigo 32° n.°s 1 e 5 da
Constituição, a interpretação do artigo 40° do Código de Processo
Penal, que permita a intervenção no julgamento da juíza que, na fase
inicial do inquérito, procedeu ao interrogatório inicial do arguido e
decretou a prisão preventiva desse arguido; saber se viola o artigo 32°
n.°s 1 e 5 da Constituição, a interpretação do artigo 40° do Código de
Processo Penal que permita a intervenção no julgamento de outra juíza
que em cumprimento do disposto no art. 213° do Código Processo
Penal procedeu ao reexame da prisão preventiva mantendo-a e já após a
acusação indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção -
não é nova mas recorrente e simétrica àquela que foi colocada e
respondida nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 338/99 e
297/2003:

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Como se acentua no Acórdão n.º 135/88, do Tribunal
Constitucional, in ATC, 11º vol., p. 945 e segs. a independência dos
juízes é, antes do mais, uma responsabilidade que terá a “dimensão” ou
a “densidade” da fortaleza de ânimo do carácter e da personalidade
moral de cada juiz. Esta é a vertente subjectiva da imparcialidade, o que
se presume segundo o entendimento do TEDH, até que algo indicie o
contrário. Isto não invalida a necessidade de existir um quadro legal que
“promova” e facilite aquela “independência vocacional”, garantindo a
imparcialidade do julgador e assegurando a confiança geral, a confiança
do público naquela imparcialidade. Neste último sentido fala-se de
imparcialidade objectiva. Nesta perspectiva o que se impõe indagar é se
o juiz em virtude de considerações de carácter orgânico ou funcional
não apresenta qualquer pré-juízo ou preconceito em relação à matéria a
decidir.
A jurisprudência do TEDH sobre o art. 6 n.º l da CEDH reflecte a
exigência de um juiz imparcial não apenas numa perspectiva subjectiva,
mas também numa visão objectiva. Como se refere no Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 297/2003, deve ser ponderado e avaliado o
tipo concreto de intervenção do julgador na fase do inquérito, relevando
a sua dimensão (garantística, ou não) e a fase em que ela ocorre. Daí
que não releve toda e qualquer intervenção no inquérito. Como se disse
no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 935/96, a solução de estender
o impedimento do artigo 40º do Código de Processo Penal a todos os
actos isolados susceptíveis de serem praticados pelo juiz de instrução na
fase preliminar do processo penal, como no caso presente pretende o
recorrente, apresentar-se-ia, na generalidade dos casos, totalmente
inadequada e desnecessária, em virtude de muitos deles não colocarem
minimamente em causa as garantias de independência e de
imparcialidade do tribunal, ínsitos no princípio da acusação, consagrado
no artigo 32º, n.º 5 da lei fundamental. Exemplificando: ordenar o
contraditório para a admissão de assistente, proferir despacho a admitir
o ofendido a intervir como assistente, será que contaminam a
imparcialidade do juiz que os profere de modo a impedir a sua
intervenção no julgamento?
Dos sucessivos pronunciamentos do Tribunal Constitucional sobre esta
questão há uma linha de raciocínio que se mantém, deles se retirando
com interesse para o caso que, é do tipo e frequência da intervenção que

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o julgador teve, na fase do inquérito, com especial relevância do
momento em que. dentro dessa fase, ela ocorreu (o mesmo acto pode
ser valorado de modo diverso consoante o desenvolvimento da
investigação), que há-de resultar o juízo sobre a isenção, imparcialidade
e objectividade do juiz enquanto julgador.
Refere o Acórdão 297/03 que, na vigência da versão originária do artigo
40º do Código Processo Penal, também o Acórdão n.º 338/99 (inédito),
se debruçou sobre questão idêntica à que nos ocupa nos autos, estando
em causa uma interpretação da norma constante daquele preceito legal
em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que,
presidindo ao primeiro interrogatório dos arguidos, lhes decretou a
prisão preventiva. Esse acórdão salienta, desde logo, a diferença
substancial entre esse caso e o que determinara a declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art. 40º do Código
Processo Penal, no Acórdão n.º 186/98 - neste último estava em causa
uma dupla intervenção  sucessiva do juiz na fase de inquérito e, no caso
do Acórdão 339/99, uma intervenção isolada  - evidenciando que tal
acórdão expressamente alerta “para a relevância da circunstância,
entendida como decisiva na sua própria lógica argumentativa, de a
intervenção do juiz na fase de inquérito não ser uma intervenção
esporádica ou isolada, mas ser, pelo contrário, uma intervenção
reiterada ou repetida”  e “de o juiz não se ter limitado a, findo o
primeiro interrogatório judicial do arguido, decretar a respectiva
prisão preventiva”, mas “ter, em data posterior, já bem próximo da
data da acusação, confirmado essa mesma prisão preventiva”.
Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que “não
é qualquer intervenção na fase de inquérito por parte do juiz que
depois há-de participar no julgamento que é apta a justificadamente
pôr em causa a sua independência e imparcialidade - ou a confiança
do arguido e do público nessa mesma independência e
imparcialidade - em termos de dever considerar-se que a norma que a
permita é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32º n.º 5
da Constituição”, Acórdão n.º 338/99. Acompanhando o Acórdão do
Tribunal Constitucional 297/2003 diremos que o acervo jurisprudencial
do Tribunal Constitucional sobre a matéria permite identificar uma
orientação clara e firme (em especial, a partir do Acórdão n.º 935/96, se
não já do Acórdão n.º 114/95) sobre os imperativos constitucionais em

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matéria de impedimentos do julgador, decorrentes do princípio do
acusatório, em processo penal, assente em critérios que mantêm plena
validade e, por isso, devem, também aqui, ser aplicados.
Questiona o recorrente, a dimensão normativa do artigo 40º do CPP que
no despacho impugnado indeferiu a verificação de impedimento por
intervenção anterior no processo - a Ex.ma Juíza presidente decretou a
prisão preventiva após primeiro interrogatório; a Ex.ma juíza adjunta
em cumprimento do disposto no art. 213º do Código Processo Penal
procedeu ao reexame da prisão preventiva mantendo-a e já após a
acusação indeferiu um pedido de alteração - importando saber se tal
viola as garantias de independência, imparcialidade e objectividade do
julgador, asseguradas pelo princípio constitucional que impõe a
estrutura acusatória no processo criminal. Como vimos a resposta que o
Tribunal Constitucional tem vindo a dar a situações similares é
negativa, foi negativa nos Acórdão 297/03 e no Acórdão 338/99.
Negativa tem sido também a resposta do TEDH. O TEDH tem
procurado estabelecer que não é qualquer acto ou decisão tomada em
momento anterior ao do julgamento por parte do juiz de julgamento que
tem a virtualidade para fazer surgir uma legítima desconfiança na sua
imparcialidade no acto de julgar. Tem entendido este Tribunal que o
envolvimento em decisões pré-julgamento não justifica só por si o
receio quanto à imparcialidade. As respostas positivas do TEDH,
declarando que há violação do art. 6º n.º l, aconteceram em casos
excepcionais: no caso Piersach  o presidente do tribunal criminal belga
que julgou o arguido tinha a certa altura sido promotor público e
membro do departamento que tinha investigado o caso do requerente e
iniciado a acção judicial contra ele. Nos casos De Haan e Castilio
Algar porque os juízes nestes casos estavam não meramente a tratar de
procedimentos em diferentes fases, mas eram efectivamente solicitados
a rever as suas próprias decisões.
A este propósito cumpre lembrar que o TEDH no caso Saraiva de
Carvalho c. Portugal entendeu não estar em causa o princípio da
imparcialidade, nem no sentido objectivo nem subjectivo, quando o
mesmo juiz produz o despacho de pronúncia e integra o julgamento —
como acontecia nas querelas no Código de Processo Penal de 1929 a
que se reporta o caso — pois o juiz não praticou acto de instrução. Se
isso era formalmente assim, o certo é que na vigência do anterior

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Código de Processo Penal era a pronúncia que delimitava o objecto do
processo tendo o juiz amplos poderes podendo inclusive pronunciar por
crime mais grave que o constante da acusação.
Negativa também será a nossa resposta no caso:
Quanto à única intervenção da Ex.ma juíza presidente em inquérito —
ouviu o arguido em primeiro interrogatório decretando a sua prisão
preventiva — é patente que ocorreu numa fase embrionária do
processo, sendo um pré-juízo, a roçar quase o preconceito, sustentar que
logo aí a Ex.ma juíza formulou uma convicção segura sobre a
culpabilidade do arguido. Perdoe-se-nos a franqueza tal entendimento
demonstra fundamentalmente um desconhecimento das finalidades do
processo penal, do que é o inquérito e o julgamento, dos pressupostos
de aplicação de medida de coacção e da decisão final, da apreciação
crítica da prova e dos deveres acrescidos de fundamentação, como
adiante iremos realçar. A sua intervenção teve um condão
garantístico, apreciou indícios tendo em vista a aplicação de medida de
coacção. Trata-se, no entanto, de uma avaliação perfunctória e que, ao
ser realizada numa fase inicial do inquérito - consideravelmente
afastada do momento do julgamento - e sem repetições, é insusceptível
de afectar a imparcialidade do julgador, como se decidiu no citado
Acórdão n.º 338/99, e não mais teve contacto com o inquérito que
decorreu sob a direcção do Ministério Público.
A Ex.ma juíza adjunta limitou-se a verificar se os pressupostos que
determinaram a prisão preventiva se tinham alterado ou se mantinham e
depois apreciou, indeferindo requerimento do arguido, para alteração da
medida de coacção. Não deixa de ser curioso – simplesmente curioso –
que o primeiro desses despachos, proferido em 13.12.2005 mereceu do
arguido a seguinte consideração: não revela especial esforço na
ponderação da alteração da medida aplicada, limitando-se
displicentemente a juntar uma adição de frases feitas e
estereotipadas, cfr. fl. 76. Se assim foi, parece-nos que o recorrente, em
vez de se preocupar com a contaminação das julgadoras derivada
do contacto com o inquérito, devia antes, perante esse fugaz e
displicente contacto - são as suas palavras - ter reagido contra esses
despachos em sede de inquérito. Como o não fez, parece-nos que em
julgamento, se a coerência é aquilo que julgamos, só pode ter motivos

13
de contentamento pois a Ex.ma juíza adjunta não terá um conhecimento
aprofundado do inquérito.
Como facilmente se intui a questão é diversa, até porque o inquérito,
todo o inquérito está acessível às Ex.mas juízas. O que as Ex.mas juízas
fizeram e decidiram em inquérito é diverso do que vão ter que decidir
em julgamento, não tendo o menor ponto de contacto. Recorrendo aos
dizeres do Acórdão 297/2003 do Tribunal Constitucional, as
intervenções processuais das julgadoras na fase de inquérito não as
converteram em órgão de acusação, nem pela sua frequência,
intensidade ou relevância, as conduzem a pré-juízos ou pré-
compreensões sobre a culpabilidade do arguido que firam a sua
objectividade e isenção.
Aqui é que bate o ponto. Os mais distraídos ainda não se deram conta
que a intervenção do juiz de instrução criminal no inquérito obedece
hoje a paradigma diverso do consagrado no Código de Processo Penal
de 1929. Acompanhamos, assim, a posição de F. Dias que reconduz
esta questão, quando não está em causa o respeito do contraditório, ao
instituto da recusa e da escusa. A sua crítica ao entendimento do
Tribunal Constitucional parece-nos correcta. Refere ele reportando-se à
revisão de 1998 que a AR tendo aceite a alteração do art. 43º
simultaneamente alterou o texto do art. 40°, no sentido de considerar o
juiz impedido  de intervir «no julgamento de um processo (...) em que
tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do
arguido».
E continua isto significa, a meus olhos, uma pobre
tentativa — impossível — de todos contentar: com a redacção do
art. 43° reafirma-se a boa doutrina de considerar a intervenção
anterior do juiz relativa a actos isolados no quadro das recusas e
escusas, não nos impedimentos; com a nova redacção do art. 10°
pretende salvar-se, em todo o caso, a jurisprudência (errada, em meu
parecer, como salientei) do Tribunal Constitucional em matéria de
efeito da intervenção judicial na prisão preventiva. O quadro daqui
resultante é teleologicamente contraditório e racionalmente
insustentável. E tanto mais o é quanto, suponho, ficará definitivamente
por se compreender porque fique impedido o juiz que
aplique e mantenha a prisão preventiva do arguido, mas já não o que
só a aplique (mas não a mantenha, inclusivamente porque o incidente

14
não chega a ser suscitado) ou o que só a mantenha (mas não a tenha
aplicado....); como definitivamente ficará por compreender, atento o
fundamento político-criminal subjacente, porque haja o impedimento
de valer relativamente à prisão preventiva mas não já, por exemplo, à
obrigação de permanência na habitação. O que tudo só mostra uma
vez mais, em meu juízo, como em matéria de legislação penal nunca é
de bom conselho e rendimento tersiversar sobre proposições
político- criminais básicas em favor de compromissos que nem
respeitam as finalidades do processo penal, nem as exigências da sua
concordância prática. (...) a prática pelo juiz de instrução de actos
isolados não deve constituir causa de impedimento, mas tão só, como
previa a lei anterior e a proposta de revisão tornou claro, motivo de
eventual suspeição. E isto porque só a decisão que o juiz de instrução
tome afinal  — a de pronunciar ou não pronunciar o
arguido — contende directa e necessariamente com o objecto do
processo, por isso que também a pronúncia serve para limitar e fixar
os poderes de cognição do tribunal de julgamento. Só um mecanismo
como o da suspeição (...) responde satisfatoriamente — por que
depende de uma avaliação das circunstâncias concretas da intervenção
do juiz de instrução num momento anterior ao julgamento — à razão
de ser da não intervenção daquele no julgamento: a garantia da
imparcialidade e da objectividade da decisão final, a garantia, afinal,
que está mesmo no cerne da acusação.
Por mais que me esforce, continua a não conseguir divisar que
«direitos liberdades e garantias» do arguido serão de outro modo mais
justamente defendidos, face à tensão em que estes têm de existir e à
composição em que têm de entrar com as necessidades de realização
do ius puniendi estadual e com as exigências da sua eficiência e
efectividade num processo justo e equitativo. Em vão continuo a
perguntar-me que sentido garantístico para as liberdades do arguido
pode ter que um juiz de instrução que aplique e mantenha na fase de
inquérito uma prisão preventiva requerida pelo Ministério
Público (...) fique automaticamente impedido de participar no futuro
julgamento. Como continuo a pensar que afirmar que o juiz fica deste
modo  (...) preso a pré- juízos constitui um prejuízo tão grande, pelo
menos, como pretender que o juiz do julgamento ficará agarrado ao

15
pré-juízo que lhe advém do facto de já outro juiz, o de instrução, ter
pronunciado o arguido.
No fundo — e aqui julgo eu divisar o essencial e o mais
preocupante -, uma solução que veja em toda e qualquer intervenção
do juiz de instrução causa de impedimento mal encobrirá a atribuição
àquele de um papel que o Código, na formulação de 1987,
intencionalmente decidiu não lhe conferir: um papel que vai muito
para além do que lhe é fixado no art. l7º e se mostra mesmo, a diversos
títulos, com ele incompatível. Uma solução, esta, dizendo-o franca e
abertamente, que deixaria a descoberto um outro modelo de juiz de
instrução, através do qual se lograria dar razão ao velho e gasto
requisitório da submissão hierárquica e funcional, no processo, do
Ministério Público ao juiz de instrução; e que constituiria uma via
ínvia (...) de subverter o modelo e a estrutura basicamente acusatórias
do processo penal português.
Finalmente dizer que qualquer intervenção do juiz em sede de inquérito,
que não se traduza em actos de mero expediente contraria e põe em
causa a imparcialidade do juiz é amalgamar realidades distintas, quão
distintas são as finalidades do inquérito e do julgamento e
finalisticamente diversas as intervenções que ocorrem numa e noutra
fase. São diversos os papeis do juiz de instrução criminal e do juiz do
julgamento E ter olhos e teimar em não querer ver que hoje existe um
reforço das garantias do arguido contra uma possível contaminação do
juiz do julgamento, em consequência de intervenções pontuais em
inquérito, realidade nem sempre ponderada ou simplesmente esquecida,
mesmo nas decisões do Tribunal Constitucional, como realça F. Dias. É
que hoje não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de
formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem
sido produzidas ou examinadas em audiência, art. 354º n.º l do Código
Processo Penal. As declarações que o arguido presta em primeiro
interrogatório não são um meio de prova. A produção da prova, que
deva servir para fundar a convicção do julgador, tem de ser realizada na
audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura
acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da
contraditoriedade na produção dessa prova. Por outro lado o juiz tem de
motivar a sua convicção não valendo hoje a sua íntima convicção, pelo
que o arguido está a coberto das puras subjectividades dos julgadores. O

16
art. 374° n.º 2 do Código Processo Penal, não se basta com a simples
enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, exigindo
ainda a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal.
Não basta mostrar os meios de prova através do seu elenco é preciso
demonstrar por que razão se chegou a determinado resultado. E nessa
tarefa importa ter presente que o paradigma da íntima
convicção,  relativamente ao qual com propriedade se podia dizer
— não escutando  [o juiz] senão os ditames da consciência— que a
culpa estava na cabeça do juiz, está felizmente ultrapassado, sendo
incompatível com o figurino que a nossa Constituição desenhou ao
processo penal. Hoje vigora o sistema da livre apreciação da prova, art.
127° do Código Processo Penal, que pressupõe e exige uma indicação
dos meios de prova e um complementar exame crítico, de modo a que
permita avaliar o porquê da decisão e o processo lógico mental que
possibilitou a decisão da matéria de facto. A motivação da decisão do
tribunal não é nem pode ser mais um acto de fé, um puro exercício
de íntima convicção. A convicção tem de ser uma demonstração feita
com absoluto respeito pelas regras e princípios legais pertinentes em
sede de prova, de acordo com as regras da experiência e da lógica. Em
conclusão na motivação tem o juiz de explicar por que considerou
provados uns factos e não provados outros, em termos claros e precisos,
enfim de prestar as devidas contas.
Neste contexto e com esta exigência o perigo de contaminação é
reduzido. E não se vislumbra no caso concreto.
Em conclusão: não viola o artigo 32º n.ºs 1 e 5 da Constituição, a
interpretação do artigo 40º do Código de Processo Penal, que permita a
intervenção no julgamento da juíza que, na fase inicial do inquérito,
procedeu ao interrogatório inicial do arguido e decretou a prisão
preventiva desse arguido, nem a interpretação do mesmo artigo 40º que
permita a intervenção no julgamento de outra juíza que em
cumprimento do disposto no art. 213º do Código Processo Penal
procedeu ao reexame da prisão preventiva mantendo-a e já após a
acusação indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção,
nem se verifica nulidade insanável.
 
 

17
2.3.        A questão que nos ocupa tem sido estudada a propósito do dever de
imparcialidade que, por força do princípio retirado do artigo 32º da Constituição,
marca especialmente a actividade dos tribunais criminais.
A verdade, porém, é que a imparcialidade dos tribunais é uma exigência não apenas
contida no artigo 32º da Constituição, mas uma decorrência do Estado de direito
democrático (artigo 2º), na medida em que se inscreve na garantia universal de defesa
dos direitos e interesses legalmente protegidos, através de um órgão de soberania com
competência para administrar a justiça (artigo 202º n.º 1 Constituição). Ora, neste dever
genérico de imparcialidade do tribunal inclui-se uma exigência
de não suspeição subjectiva do juiz; a actividade do juiz não pode apresentar-se
contaminada por circunstâncias geradoras de desconfiança quanto à sua imparcialidade.
Todavia, do citado artigo 32º retira-se, para além disto, uma exigência de
imparcialidade objectiva do tribunal, decorrente da estrutura acusatória do processo
penal, circunstância que impede que o juiz do julgamento esteja envolvido na actividade
instrutória, quer carreando para os autos elementos de prova susceptíveis de serem
utilizados pela acusação, quer envolvendo-se em actos que possam significar dirigir a
investigação. Esta exigência de imparcialidade objectiva do juiz, justifica-se do ponto
de vista das garantias da defesa, é certo, mas igualmente pela necessidade de
proporcionar ao juiz as condições de isenção requeridas pelo exercício das suas funções.
Assim se explica que seja confiado ao próprio juiz o dever de se declarar impedido, a
par de se permitir aos restantes sujeitos processuais a iniciativa de suscitar no processo o
reconhecimento do impedimento do juiz (artigo 41º do Código de Processo Penal).
É no domínio desta exigência que se coloca a questão suscitada pelo recorrente, que
acusa a Relação de Lisboa de ter aplicado uma norma inconstitucional, retirada do 40º
do Código de Processo Penal, segundo a qual podem simultaneamente intervir no
tribunal colectivo que procedeu ao julgamento uma juíza que, durante o inquérito,
aplicou ao arguido a prisão preventiva e, ainda, uma outra juíza que durante o inquérito,
e depois da acusação, manteve a medida, norma essa que ofenderia o artigo 32° n.ºs 1 e
5 da Constituição.
 
2.4.        O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria, conforme
amplamente refere a Relação de Lisboa na decisão em causa.
Começou por entender (Acórdão n.º 186/98, in DR I-A de 20 de Março de 1998) que o
artigo 40º do Código de Processo Penal, na sua anterior versão, na parte em que
permitia a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e
posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, era inconstitucional por
violação do artigo 32º nº 5 da Constituição da República.

18
Para justificar o juízo de inconstitucionalidade, o citado Acórdão n.º 186/98, recorrendo
fundamentalmente ao texto de um dos três acórdãos invocados como fundamento para o
pedido de generalização então apreciado, o Acórdão nº 935/96 (Diário da República, II
Série, de  11 de Dezembro de 1996), considerou que “ao consagrar o nº 5 do artigo 32º
da Constituição uma tal garantia –  a garantia do processo criminal de tipo acusatório
–, o que, pois, a lei fundamental pretende assegurar é que a entidade que julga (o juiz)
não tenha funções de investigação e acusação: esta última tarefa há-de ser levada a
efeito por uma outra entidade (em regra, o Ministério Público); e, no julgamento do
feito penal, há-de o juiz mover-se dentro dos limites postos pela acusação”. Salientou-
se que, como se sabe, o que está em causa é a garantia de um “julgamento independente
e imparcial”, e que essa independência e imparcialidade há-de ser traduzida em regras
que também a tornem acessível à comunidade em geral, como forma de garantir a
confiança social na administração da justiça.
Assim sendo, e considerando ainda que o impedimento previsto no artigo 40º, na parte
relevante, se destinava a evitar que, no julgamento, o juiz pudesse ser influenciado pelo
conhecimento anteriormente adquirido sobre os factos em causa no processo, entendeu-
se não respeitar os princípios constitucionais acima indicados uma norma que permitisse
a participação, no julgamento, de um juiz que interviera na fase do inquérito de forma
particularmente intensa. Considerou-se como tal a intervenção que se traduziu em
decretar a prisão preventiva, findo o interrogatório judicial do arguido e, em, já na fase
final do inquérito, “já bem perto da data da acusação, confirm[ar] a prisão preventiva.
Ora, aplicada nesta dupla dimensão”, decidiu-se, “a norma do artigo 40º do Código
de Processo Penal infringe claramente o princípio da imparcialidade objectiva do juiz,
ínsito no princípio do acusatório, constante do nº 5 do artigo 32º da
Constituição” (transcrição feita pelo acórdão nº 186/98 do acórdão nº 935/96).
No Acórdão n.º 29/99 (Diário da República, II Série, de  12 de Março de 1999), julgou-
se não inconstitucional “a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na
versão dada pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, quando interpretada no
sentido de não prescrever sempre o impedimento de intervenção no julgamento do juiz
que determinou, anteriormente, a manutenção da prisão preventiva aplicada ao
arguido, ao abrigo do disposto no artigo 213º do mesmo Código”.
Estava então em causa a manutenção da prisão preventiva decretada por outro juiz “no
segundo reexame trimestral, após a dedução da acusação na fase final do inquérito”,
que se entendeu que “não conduz, por si só, a essa intensa convicção de que o crime foi
praticado nem exige, constitucionalmente, pelo seu grau, a criação de obstáculos
formais a que, por essa via, se produzam pré-juízos relativamente à culpabilidade do
arguido”.

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No Acórdão nº 338/99 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), julgou-se não
inconstitucional a norma, contida na mesma versão do artigo 40º, “quando interpretado
no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, findo o primeiro
interrogatório judicial do arguido detido, decretou a prisão preventiva, não tendo tido
ulteriormente qualquer outra intervenção no decurso do inquérito”.
O Acórdão n.º 423/2000 (Diário da República, II Série, de  20 de Novembro de 2000),
tomando já como referência a redacção dada ao artigo 40º pelo Decreto-Lei nº 58/95, de
25 de Agosto,  julgou não inconstitucional a norma dele constante “quando
interpretado no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, findo o
primeiro interrogatório judicial do arguido detido, determinou a respectiva libertação,
mediante a adopção de medidas de coacção não privativas da liberdade, medidas de
coacção que posteriormente manteve no momento em que recebeu a acusação e
marcou o dia para o julgamento”.
Frisando que nos anteriores acórdãos se tinha entendido “repetidamente” que “um juízo
de inconstitucionalidade da norma que permita a intervenção no julgamento do juiz
que participou numa fase anterior, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição,
pressupõe que as intervenções do juiz - pela sua frequência, intensidade ou relevância -
sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as
condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança
geral sobre essa mesma imparcialidade e independência”, observou-se que “a simples
decisão pela manutenção do quadro existente em termos de medidas de coacção, no
momento do recebimento da acusação, não é suficiente para, por si só ou em
conjugação com a intervenção anterior, conduzir à formulação de uma dúvida séria,
razoável, objectiva sobre as condições de isenção e imparcialidade do juiz ou a gerar
uma desconfiança geral da comunidade sobre essa mesma isenção e imparcialidade,
termos em que não se verifica a alegada violação inconstitucionalidade.”
Mais recentemente, no Acórdão n.º 297/2003 (DR II Série de 3 de Outubro de 2003), o
Tribunal manteve o entendimento de julgar não inconstitucional a norma do
mencionado artigo 40º do Código de Processo Penal interpretada no sentido de permitir
a intervenção em julgamento do juiz que, no início do inquérito, interrogou os arguidos
que lhe são apresentados detidos e decretou prisão preventiva desses arguidos,
autorizando no mesmo dia uma busca domiciliária. Neste acórdão, sublinhando que as
duas intervenções do juiz – interrogatório do arguido e autorização da busca – tiveram
uma função predominantemente garantística que visaram assegurar a tutela dos direitos
fundamentais dos arguidos, o Tribunal ponderou:
 
 
Em suma, as intervenções processuais do julgador na fase de inquérito
nem o converteram em órgão de acusação, nem pela sua frequência,
intensidade ou relevância, o conduzem a pré-juízos ou pré-

20
compreensões sobre a culpabilidade dos arguidos que firam a sua
objectividade e isenção.
O artigo 40º do Código de Processo Penal, na interpretação que levou o
acórdão recorrido à recusa da sua aplicação, e em contrário do aí
decidido, não ofende, pois, o artigo 32º, n.ºs 1 e 5 da Constituição.
 
2.5.        Pode, portanto, concluir-se que o Tribunal Constitucional tem mantido o
entendimento de que a prática de actos isolados durante o inquérito não constitui, em
princípio, causa de quebra objectiva da imparcialidade do juiz, determinante do seu
impedimento no julgamento.
O recorrente baseia a acusação de inconstitucionalidade da norma em circunstâncias
objectivas que nada têm a ver com a pessoa das juízas envolvidas, e nunca suscitou o
incidente previsto no artigo 43º do Código de Processo Penal, que permite recusar a
intervenção de um juiz quando houver desconfiança quanto à sua imparcialidade. É, em
seu entender, o exercício da actividade de juiz na fase anterior do processo que
determina o impedimento, na medida em que a juíza-presidente procedeu ao primeiro
interrogatório do arguido, decretando prisão preventiva, e uma juíza-adjunta, em fase de
inquérito, procedeu ao reexame da prisão preventiva, mantendo-a, e já após a acusação,
indeferiu um pedido de alteração dessa medida de coacção.
Sustenta, portanto, que a prática de determinados actos gera, automaticamente, o
impedimento.
Mas esse não é, como se viu, o entendimento que o Tribunal tem perfilhado.
Uma das juízas procedeu ao primeiro interrogatório do arguido que lhe foi apresentado
detido. Na sequência dessa diligência, e mediante prévia promoção do representante do
Ministério Público no Tribunal de Mirandela no mesmo sentido, determinou a prisão
preventiva do arguido. Não voltou a ter intervenção no inquérito. Não pode, nos termos
já expostos, julgar-se quebrada a sua imparcialidade.
A segunda juíza procedeu à reapreciação oficiosa da prisão preventiva aplicada ao
arguido (13 de  Dezembro de 2005) concluindo "que se mantêm inalterados os
pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação da medida de coacção",
razão pela qual determinou "que o arguido continue a aguardar os ulteriores termos do
processo  sujeito à medida de prisão preventiva". Em 13 de Janeiro de 2006 o arguido
apresentou um requerimento a solicitar a revisão da medida de prisão preventiva. A
juíza apreciou o requerimento e indeferiu-o. Ora, estas intervenções  não indiciam que a
juíza se tivesse envolvido na actividade instrutória, carreando para os autos elementos
de prova susceptíveis de serem utilizados pela acusação, ou envolvendo-se em actos que
possam significar dirigir a investigação; ao invés, tiveram uma função

21
predominantemente garantística, visando assegurar a tutela dos direitos fundamentais do
arguido e não podem ter-se como geradores da quebra do dever de imparcialidade que
impende sobre o julgador.
Mas o caso em análise apresenta, ainda, um lado curioso e original: é que são duas as
juízas que, integrando o colectivo que procedeu ao julgamento do recorrente, praticaram
actos jurisdicionais durante o inquérito. Ora, se isoladamente consideradas, nenhuma
das juízas se pode considerar impedida de participar no julgamento, que dizer de um
tribunal colectivo em que ambas participam, e que, portanto, dois dos seus três
elementos praticaram os ditos actos?
A resposta não poderá deixar de ser negativa: os impedimentos não se somam, porque
obviamente atingem um determinado juiz e é isoladamente em relação a cada juiz, a
cada elemento do tribunal colectivo, que deve aferir-se da existência das circunstâncias
impeditivas de participação no julgamento.
Conclui-se, portanto, pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação.
 
3.            Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar
inconstitucional a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na versão
resultante da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro, enquanto interpretada no sentido
de permitir a intervenção simultânea, no julgamento, de juiz que, findo o primeiro
interrogatório judicial do arguido detido, decretou a sua prisão preventiva e de juiz que,
no decorrer do inquérito, manteve a prisão preventiva e, posteriormente à
acusação, indeferiu o pedido da sua revogação.
Consequentemente, nega-se provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida
quanto à questão de inconstitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício
 
 
 
 

22
ACÓRDÃO N.º 212/91
 
Processo n.º 85/89
1ª Secção
Relator: Conselheiro Monteiro Diniz
 
 
 
Acordam em plenário no Tribunal Constitucional:
 
I – A questão
 
1 - O Ministério Público deduziu acusação contra A. imputando-lhe, em
autoria material, a prática de um crime de furto qualificado previsto e punido pelo artigo
297.º, n.º 2, alíneas e) e d) e n.º 3, do Código Penal.
 
Pese embora o facto de em abstracto, o limite máximo da pena aplicável ser
de 10 anos de prisão, o que determinaria, em princípio, a intervenção do tribunal
colectivo no respectivo julgamento [artigo 14.º, n.º2, alínea b), do Código de Processo
Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro], naquele requerimento
acusatório, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, n.º 3, do mesmo Código, e tomando-se
em conta o diminuto valor dos bens furtados e o facto de o arguido não ter antecedentes
criminais, manifestou o Ministério Público o entendimento de não dever ser aplicada em

23
concreto pena de prisão superior a três anos, razão pela qual o julgamento haveria de se
fazer apenas com a intervenção do tribunal singular.
 
2 - Todavia, o Senhor Juiz do 6.º Juízo Correccional da Comarca de Lisboa
ao qual os autos foram distribuídos rejeitou, com fundamento em inconstitucionalidade
a aplicação das normas do artigo 16.º, n.ºs 3 e 4, daquele diploma legal, suportando-se
para tanto, além de outras, nas considerações seguintes:
 
" (...) o preceito legal em análise, ao permitir subtrair ao juiz a sua reservada
competência, concentrando no M.º.P.º. os poderes acusatório e decisório, viola os arts.
205.º, 206.º, 208.º, 224.º, n.º 1 e 32.º. n.º 5, todos da Constituição da República.
Por outro lado, entendemos que com o referido art. 16.º, n.ºs 3 e 4 é atingido
o princípio da igualdade dos cidadãos (art. 13.º da Constituição).
Na realidade, ao conceder ao M.º P.º o poder de fixar o limite da pena
máxima, impedindo consequentemente a valoração e aplicação da lei penal violada pelo
tribunal (órgão independente) sem essa restrição, está-se a dar ao M.º P.º um
instrumento susceptível de propiciar situações de desigualdade perante a lei, situação de
uma certa 'impunidade' selectiva conforme o critério pessoal do M.º P.º baseado em
meras convicções subjectivas, beneficiando uns e não beneficiando outros.
(...) Ora, o juiz, com a regulamentação do preceito em causa, condena de
acordo com a lei concreta do M.º P.º e não de acordo com a lei geral e abstracta (igual
para todos), o que de modo algum preserva o referido princípio da igualdade, já que o
juiz, se o M.º P.º o quiser, está impedido de aplicar a lei geral.
Em conclusão – também aquela norma contraria o consagrado no art. 13.º da
Constituição da República, permitindo a institucionalização das maiores desigualdades".
 
3 - Deste despacho, em obediência ao disposto nos artigos 280.º, n.ºs 1,
alínea a) e 2 da Constituição [280.º, n.ºs 1, alínea a) e 3, na versão introduzida pela Lei
Constitucional 1/89, de 8 de Julho] e 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 3, da Lei n.º 28/62,
de 15 de Novembro, trouxe o Ministério Publico recurso a este Tribunal.
 
Nas alegações depois produzidas pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto,
formulou-se o seguinte quadro de conclusões:
 
1.º - As normas constantes dos n.ºs 3 e 4 do artigo 16.º do Código de
Processo Penal de 1987 não implicam qualquer usurpação da função jurisdicional por
parte do Ministério Público, qualquer extravasamento da competência constitucional do

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Ministério Público, qualquer violação das garantias de defesa do arguido,
designadamente por ofensa do princípio do juiz natural, qualquer violação do princípio
acusatório e qualquer violação do principio da igualdade;
 
2.º - Deve, assim, julgar-se que as mesmas não ofendem os artigos 13.º, 32.º,
n.º 5, 205.º, 206.º, 208.º e 224.º da Constituição;
 
3.º - Em conformidade, deve conceder-se provimento ao recurso,
determinando-se a reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada.
 
O recorrido não ofereceu contralegação.
 
Corridos os vistos legais os autos foram apresentados a julgamento
verificando-se então a mudança de relator.
 
Cumpre agora apreciar e decidir a questão que no presente recurso se
coloca, mais concretamente a questão de saber se a norma do artigo 16.º, n.º 3 do
Código de Processo Penal, conjugada com a norma do n.º 4 do mesmo preceito, padece
ou não de inconstitucionalidade.
 
II – A fundamentação
 
1 - Tem vindo este Tribunal a decidir, por forma constante e uniforme,
como bem se extrai de uma já extensa corrente jurisprudencial (cfr. por todos os
acórdãos n.ºs 393/89, 435/89, 465/89 e 137/90, Diário da República. II série, de,
respectivamente, 14 de Setembro de 1989, 21 de Setembro de 1969, 30 de Janeiro de
1990 e 7 de Setembro de 1990) que a norma do artigo 16.º, n.º 3 do Código de Processo
Penal, conjugada com a norma do n.º 4 do mesmo preceito, não sofre de qualquer
inconstitucionalidade.
 
Há-de dizer-se que continuam inteiramente válidas e procedentes as razões
que têm servido de suporte a este entendimento jurisprudencial, não representando
assim os desenvolvimentos subsequentes, no essencial, mais do que uma reiteração
daquelas decisões, bem como da fundamentação a que elas se ancoraram.
 
Vejamos então.
 

25
O artigo 16.º do Código de Processo Penal, na parte que aqui importa
considerar, dispõe do modo seguinte:
 
3 - Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crises
previstos no artigo 14.º, n.º 2, mesmo em caso de concurso de infracções,
quando o Ministério Público, na acusação, ou em requerimento, quando for
superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser
aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou medida de
segurança de internamento por mais do que esse tempo.
 
4 - No caso previsto no número anterior, o tribunal não pode aplicar pena de
prisão ou medida de segurança de internamento superior a três anos."
 
Para a exacta compreensão da dimensão e alcance deste preceito, que
delimita a competência do tribunal singular no julgamento dos feitos-crimes, importa ter
presente a estatuição contida nos artigos 13.º e 14.º do mesmo código, que dispõem,
respectivamente, sobre a competência do tribunal do júri e sobre a competência do
tribunal colectivo.
O esquema de repartição de competências entre o tribunal do júri, o tribunal
colectivo e o tribunal singular, resultante da aplicação conjugada deste bloco normativo,
sofre uma especial e particular inflexão por interferência da assinalada regra constante
do n.º 3 do artigo 16.º: certos crimes que, em principio deveriam ser julgados pelo
tribunal colectivo, e, em alguns casos, até pelo tribunal do júri [crimes referidos no
artigo 14.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, como "crimes dolosos ou
agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa" ou como
"crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a três anos de
prisão"], serão afinal julgados pelo tribunal singular sempre que o Ministério Público
"entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou
medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo", e, nessa situação,
por força do disposto no n.º 4 do artigo 16.º, o tribunal singular ficará impedido de
aplicar pena de prisão ou medida de segurança de internamento superior a três anos.
 
A circunstância de a lei subtrair ao tribunal colectivo (e, como se viu, ao
tribunal do júri) para a cometer ao tribunal singular, a competência para o julgamento de
crimes puníveis com prisão cujo máximo excede três anos não é, em si mesmo,
inconstitucional. A questão está, porém, em saber se, através dessa alteração da regra
geral de competência e da interferência que na sua dinâmica aplicativa se cometeu ao

26
Ministério Público, não resulta violada nenhuma norma ou principio constitucional,
nomeadamente, as normas e princípios assinalados no despacho recorrido.
 
2 - Aos tribunais, órgãos de soberania com competência para administrar a
justiça em nome do povo, incube assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os
conflitos de interesses públicos e privados (artigo 205.º, da Constituição na versão
vigente, saída da Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho; artigos 205.º e 206.º da Lei
Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro).
 
Neste preceito, a que outros se poderiam associar a título puramente
acessório [os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei; as decisões dos
tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre
as de quaisquer outras entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer
outras autoridades (artigos 206.º e 208.º, da versão vigente)], reside o núcleo essencial
do princípio da reserva da função jurisdicional.
 
Mas este princípio constitucional não é minimamente afectado pela norma
do artigo 162, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Na verdade, no esquema de aplicação deste preceito, quem julga é o juiz e
não o Ministério Público; é ao juiz que pertence decidir se há ou não condenação e, em
função desse juízo, fixar depois a medida concreta da pena, para o que haverá de mover-
se dentro da moldura abstracta fixada na lei.
 
A pena que o juiz pode aplicar está definida na lei – e não apenas na lei
substantiva que define o tipo legal de crime, nas também na norma do artigo 16.º do
Código de Processo Penal, que, conjugado com o n.º 4 do mesmo preceito fixa em três
anos de prisão o limite máximo da pena aplicável - em termos de precisão e nitidez
suficientes para cumprir, a mais que uma função de garantia do arguido, as exigências
feitas ao legislador peia separação que deve existir entre os poderes (a competência)
dele e os do julgador; e, bem assim, para poder servir de fundamento normativo da
decisão a proferir pelo juiz e para possibilitar o controlo dessa mesma decisão,
impedindo o arbítrio.
 
Vale isto por dizer que a norma em causa não colide também com o
princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1 da Constituição, que, no

27
caso, traça os limites da independência do juiz (para além, naturalmente, de servir de
garantia dos direitos do arguido).
 
É certo, como assinala Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no
novo Código de Processo Penal", Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo
Código de Processo Penal dentro de Estudos Judiciários, 1988, pp. 3 e sgts. e 19 e sgts.,
que o Ministério Público, ao utilizar a faculdade concedida pelo artigo 162, n.º 3, está a
fazer "aplicação do direito" (porém, não jurisprudência), desse modo determinando, "em
certa medida, o sentido da decisão final".
 
Simplesmente, como também acentua aquele autor, qualquer acto próprio de
um sujeito processual – nomeadamente a opção de recorrer ou não recorrer – co-
determina o sentido da decisão final. E, do mesmo modo, toda a decisão tomada pelo
Ministério Público no exercício da acção penal - verbi gratia, ao decidir-se por deduzir
acusação ou arquivar o processo - é também "aplicação do direito".
 
Por outro lado, podendo dizer-se que os poderes do juiz são limitados para
além do que resulta da lei penal substantiva aplicável, quando o Ministério Público faz
uso da faculdade concedida pelo artigo 16, do Código de Processo penal., há-de
reconhecer-se, como também põe em relevo Figueiredo Dias (ob. e loc. cit.) que os
poderes dos juízes são limitados por "inúmeros outros comportamentos dos sujeitos
processuais, nomeadamente aquele em que se traduz a fixação do objecto do processo
pelo Ministério Público, ou – de uma forma ainda mais paradigmática para o caso aqui
em discussão – aquele outro que põe em funcionamento a proibição de reformatio in
peius".
 
O Ministério Público, ao usar daquela faculdade, condiciona a fixação
concreta da pena, mas ao proceder assim, actua enquanto "porta-voz que é do poder
punitivo do Estado" e "no exercício de um poder expressamente previsto na lei", não
invadindo por qualquer forma a competência do juiz ou limitando a sua independência.
 
Pode dizer-se assim, na sequência do exposto, que não se verifica qualquer
violação do disposto nos artigos 205.º, 206.º e 208.º da Constituição, invocados na
decisão recorrida.
 
3 - Nos diversos arestos do Tribunal Constitucional, integrativos da
jurisprudência a que atrás se faz alusão (cf. supra. II, 1), também se exclui que a norma

28
do artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal colidisse, por qualquer forma, com
algumas das garantias do processo criminal, consagradas no artigo 32.º da Constituição,
mais concretamente, nos seus n.ºs 7, 1 e 5, como havia sido entendido pelas
correspondentes decisões que ali foram objecto de sindicância e em parte se aduz no
despacho sob recurso.
 
Nos termos do artigo 32.º, n.º 7, do texto constitucional "nenhuma causa
pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior" o que
consubstancia o chamado princípio do juiz natural ou do juiz legal (cf. sobre esta
matéria, Figueiredo Dias "Sobre o sentido do principio jurídico-constitucional do 'juiz
natural'". Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 111.º, pp. 83 e sgts.).
 
Ao nível processual representa este principio uma emanação do princípio da
legalidade em matéria penal, tendo a ver com a independência dos tribunais perante o
poder politico e proibindo "a criação (ou a determinação) de uma competência ad hoc
(de excepção) de um certo tribunal para uma certa causa – em suma, os tribunais ad
hoc)".
 
Sendo este o sentido e o alcance do princípio do juiz natural, é manifesto
que não é ele violado pela norma sob sindicância, porquanto nela não se determina o
tribunal competente de forma arbitrária, discricionária ou discriminatória. Lançando
mão de critérios objectivos como são os critérios legais de determinação concreta da
pena, o legislador limita-se a permitir a utilização do chamado método de determinação
concreta da competência para a identificação do tribunal competente para o julgamento.
 
Este método – da determinação concreta da competência –, oposto ao
método da determinação abstracta da competência, não tem sido o tradicional entre nós,
sendo no entanto corrente em países onde igualmente se acha consagrado o princípio do
juiz natural (cf. Figueiredo Dias, Sobre os sujeitos processuais no novo Código de
Processo Penal, cit.).
 
Deste modo, só uma "desabituação da nossa doutrina e jurisprudência,
motivada pela tradição legislativa, ao chamado método de determinação concreta da
competência, pode explicar que, no artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, se
queira ver um qualquer afrontamento ao princípio do juiz natural".
 

29
Ademais, como acentua ainda Figueiredo Dias "Sobre o sentido do princípio
jurídico-constitucional do 'juiz natural", cit. "não há qualquer razão para supor que, em
julgamento que tenha lugar por força do disposto no artigo 16.º, n.º 3, perca
aplicabilidade o disposto no artigo 359.º. Quer dizer, pois, que se aí surgir uma alteração
substancial dos factos descritos na acusação – e que terão servido para o Ministério
Público proceder à determinação concreta da competência – ou na pronúncia, com
efeito agravante, isso determinará a incompetência do tribunal singular e dará lugar,
consequentemente, a um novo processo perante o tribunal colectivo ou o do júri".
 
4 - Garantindo o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição que "o processo criminal
assegurará todas as garantias de defesa”, há-de este por força ser um processo justo e
leal, não sendo admissível, em caso algum, que se encurtem de forma intolerável ou
desproporcionada as garantias de defesa.
 
Apesar de o julgamento do tribunal singular oferecer ao réu, em princípio,
menores garantias que o julgamento do tribunal colectivo (ou do tribunal do júri), desde
logo, porque aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e a possibilidade de
uma decisão menos justa, ainda assim a norma em questão não envolve um
encurtamento insuportável das garantias de defesa.
 
Na verdade, o artigo 16.º, n.º 4, do Código de Processo Penal impõe que o
tribunal singular, cuja intervenção foi determinada ao abrigo do n.º 3 do mesmo
preceito, não possa aplicar pena superior aquela que corresponde ao limite da sua
competência natural, isto é, pena com o limite máximo de três anos, razão por que não
pode falar-se assim em violação do princípio das garantias de defesa.
 
Todavia, sempre se poderá objectar que a norma em apreço, deixando ao
critério do Ministério Público a escolha do tribunal do julgamento (um tribunal singular
ou um tribunal colectivo), abre a possibilidade de uma manipulação ilegítima da
competência para julgar.
 
Mas a objecção não tem valimento.
 
Desde logo porque o Ministério Público, no domínio do processo penal, não
é uma parte empenhada, a todo o transe, na condenação do réu. Ao contrário, é um
órgão de justiça empenhado na "descoberta da verdade e na realização do direito,
obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade"

30
(cf. artigo 53.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), devendo a sua actuação pautar-se
por uma "incondicional intenção de verdade e de justiça – tão incondicional como a do
juiz".
 
Por outro lado, se as coisas assim não se passarem – o Ministério Público ao
desencadear a intervenção do tribunal singular não agiu movido por critérios de estrita
legalidade e objectividade, mas sim no propósito de submeter o réu ao julgamento de
um juiz mais severo – sempre restará ao réu o recurso para o tribunal da Relação (cf.
399.º e 427.º, conjugadas com o artigo 432.º, todos do Código de Processo Penal).
 
A tudo isto acresce – e decisivamente – que, para ajuizar da
constitucionalidade de uma dada norma legal há-de partir-se da sua correcta aplicação e
não já de uma aplicação perversa ou originada em fins anómalos e "inconfessáveis".
 
Há-de assim concluir-se no sentido de a norma do artigo 16.º, n.º 3, do
Código de Processo Penal, não colidir por qualquer forma com as garantias de defesa
asseguradas pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
 
5 - E o mesmo se poderá desde já adiantar tocantemente ao princípio da
acusação consagrado no artigo 32.º. n.º 5, da Constituição onde se prescreve que "o
processo criminal tem estrutura acusatória".
 
O sentido deste princípio é o de a entidade que investiga preliminarmente o
facto e acusa ter de ser distinta da entidade julgadora. O julgador há-de desenvolver a
sua actividade (de investigação e julgamento) dentro dos limites postos pela acusação, e
esta bem tem de ser deduzida por outro órgão, dele diferenciado (cf. Figueiredo Dias,
Direito Processual Penal, I, 1981, pp. 136 e sgts.).
 
Ora o princípio da acusação, em nada é violado pela norma do artigo 16.º,
n.º 3, do Código de Processo Penal.
 
Na verdade, como já se disse a outro propósito, é o Ministério Público quem
acusa e o juiz quem julga, cabendo a este fixar a medida concreta da pena, movendo-se
para tanto dentro da moldura abstracta fixada na lei.
 

31
Se é o Ministério Público quem fixa o se e o objecto concreto da actividade
processual do juiz, é este quem julga os factos constantes da acusação e decide sobre a
condenação ou absolvição do réu.
 
Deste modo, aquela norma em nada é desconforme a estrutura acusatória do
processo penal e ao princípio estabelecido no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
 
6 - Em conformidade com o disposto no artigo 221.º n.º 1, da Constituição
(na versão da Lei n2 1/89, de 8 de Julho), compete ao Ministério Público "representar o
Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a
lei determinar".
 
Quando o Ministério Público requer a intervenção do juiz singular para
julgar infracções que, por serem puníveis com prisão que no seu limite máximo excede
os três anos, deviam, em princípio ser julgadas pelo tribunal colectivo, está, em
verdadeira análise, a exercer a acção penal. E a exercê-la de certo modo, precisamente
manifestando o desejo da communitas civium – que ele representa – e agindo de
harmonia com critérios fixados na lei, de que ao réu não se aplique pena de prisão
superior a três anos.
 
Esta forma de procedimento do Ministério Público, do mesmo modo que
não representa qualquer invasão da esfera de competência do juiz, também não traduz
um qualquer excesso relativamente às funções que o texto constitucional comete aquela
magistratura.
 
E pode dizer-se que a norma em causa também não viola o disposto no
artigo 221.º, n.º 1 da Constituição (artigo 224.º, n.º 1, na versão da Lei Constitucional
n.º 1/82, de 30 de Setembro).
 
7 - Por fim, e também em contrário do que se sustenta no despacho
recorrido há-de dizer-se não existir qualquer violação do principio da igualdade.
 
Como bem se argumenta na alegação do Exmo. Procurador-Geral Adjunto,
a disposição legal questionada, de modo algum consente que o Ministério Público,
perante situações similares, "opte livremente pelo recurso ao tribunal singular ou ao
tribunal colectivo, consoante a sua boa ou má disposição ou a simpatia ou antipatia que
lhe inspirou o arguido".

32
 
A regra que resulta da lei é perfeitamente clara: em todos os casos em que se
afigurar objectivamente ajustada ao caso, de acordo com os critérios objectivos pré-
determinados na lei, uma pena de prisão ou uma medida de segurança de internamento
de duração não superior a três anos, o Ministério Público deve requerer a intervenção do
tribunal singular.
 
Assegura-se, deste modo, um tratamento igual para situações
objectivamente iguais, pelo que não se verifica qualquer violação do princípio da
igualdade.
 
III – A decisão
 
Nestes ternos, decide-se conceder provimento ao recurso e, em
consequência, revoga-se o despacho impugnado que deve ser reformulado em
consonância com o agora decidido sobre a questão de constitucionalidade.
 
Lisboa, 21 de Maio de 1991.
 
Antero Alves Monteiro Diniz
Alberto Tavares da Costa
António Vitorino
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves (vencida quanto à fundamentação, nos termos
da declaração de voto junta).
José Manuel Cardoso da Costa
 
 
DECLARAÇÃO DE VOTO
 
Acompanhei a decisão do acórdão. Creio, porém, que, no exame da questão
de constitucionalidade da norma do artigo 16.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, se
impõe uma interpretação conforme a Constituição, nos termos que se seguem:
 
1. O artigo 16.º do Código de Processo Penal em que se inclui a norma sob
controvérsia dispõe assim:

33
 
"Artigo 16.º
 
1. Compete ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que
por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie.
 
2. Compete também ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os
processos que respeitarem a crimes:
 
a) Previstos no Capítulo II do Título V, do Livro II do Código Penal;
 
b) De emissão de cheques sem provisão; ou
 
c) Cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for igual ou inferior a três
anos de prisão.
 
3. Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes
previstos no artigo 14.º, n.º 2, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o
Ministério Público, na acusação, ou em requerimento, quanto for superveniente o
conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de
prisão superior a três anos ou medida de segurança de internamento por mais do que
esse tempo.
 
4. No caso previsto no número anterior, o tribunal não pode aplicar pena de
prisão ou medida de internamento superior a três anos."
 
A compreensão do alcance deste preceito, que delimita a competência do
tribunal singular no julgamento dos feitos crime, haverá de ter presente o que se dispõe
nos artigos 13.º e 14.º do mesmo Código, sobre a competência do tribunal do júri e
sobre a competência do tribunal colectivo respectivamente.
 
O esquema de repartição de competências entre o tribunal do júri, o tribunal
colectivo e o tribunal singular, sofre uma particular alteração no plano da norma
constante do artigo 16.º, n.º 3 certos crimes que, em princípio, deveriam ser julgados
pelo tribunal colectivo e, em alguns casos, até pelo tribunal do júri (crimes referidos no
artigo 14.º, n.º, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, como "crimes dolosos ou
agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa" ou como

34
"crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a três anos de prisão"
serão, afinal, julgados pelo tribunal singular quando o Ministério Público "entender que
não deve ser aplicada, em concreto pena de prisão superior a três anos ou medida de
segurança de internamento por mais do que esse tempo".
 
A questão de constitucionalidade é suscitada por essa alteração da regra
geral de competência dos tribunais em matéria criminal e tendo em conta o
"protagonismo" do Ministério Público na dinâmica dessa alteração. Consiste em saber
se, assim, não resultam violados princípios ou normas constitucionais, designadamente,
o princípio da reserva da função jurisdicional e da independência dos juízes, as garantias
de defesa em processo penal, a observância dos limites funcionais da actividade do
Ministério Público e o princípio da igualdade.
 
No artigo 16.º do Código de Processo Penal combinam-se dois métodos de
determinação da competência do tribunal singular:
 
1. O método de determinação abstracta, a que se referem os enunciados dos
números 1 e 2: aqui, a lei define directamente, as atribuições do tribunal singular para o
conhecimento e decisão de certos tipos de crime ou dos crimes a que corresponda, em
abstracto, uma pena até um certo limite (três anos de prisão) Assim o que o quadro de
competências do tribunal singular abrangerá: (a) os processos que por lei não couberem
na competência dos tribunais de outra espécie, (b) os processes que respeitarem a
crimes: - (bl) previstos no Capítulo II do Titule V do Livro II do Código Penal, (b2) de
emissão de cheque sem provisão ou (b3) cuja pena máxima, abstractamente aplicável,
for igual ou inferior a três anos de prisão.
 
2. O método de determinação concreta de competência corresponde ao
enunciado do número 3 do mesmo artigo 16.º: aqui, já'' não se atende directamente ao
tipo de crime ou à pena máxima que lhe seja aplicável para efeito de determinação da
competência do tribunal: atende-se, antes, ao crime tal como é de esperar que venha a
ser definido concretamente na sentença ou à pena que previsivelmente lhe venha a ser
aplicada. Assim é que o quadro de competências do tribunal singular abrangera ainda os
processos por crimes previstos no artigo 14.º, n.º 1. (cujo julgamento compete, em
princípio, ao tribunal colectivo), quando o Ministério Publico entender que não deve ser
aplicada, em concreto, pena de prisão superior a três anos ou medida de segurança de
internamento por mais do que esse tempo.
 

35
A norma do artigo 16.º, n.º3, do Código de Processo Penal consagra,
inovatoriamente, o método de determinação concreta da competência dos tribunais de
julgamento em matéria penal e que é corrente em países onde se acha consagrado o
princípio do juiz natural, como informa Figueiredo Dias (cf. "Sobre os Sujeitos
Processuais no Novo Código Processual Penal", Jornadas de Direito Processual Penal,
1986, págs. 18-19).
 
"Neste sistema – com afirma o mesmo autor a cada tribunal singular é
concedida uma margem de competência para aplicação concreta de certas penas, de
modo que, relativamente a cada processo singular importará emitir um prévio juízo de
prognose sobre a pena esperada (pena que virá a ser aplicada). Este juízo haverá, assim,
pela própria natureza das coisas, de caber na discricionariedade vinculada, antes de tudo
do Ministério Público, ou do órgão titular da acusação penal, depois do próprio tribunal
a quem a apreciação do caso foi solicitada pela acusação".
Suscita-se, então, o problema de saber se esta especial regra de definição da
competência é ou não contrária à Constituição, se afronta normas ou princípios sobre
matéria penal e o estatuto dos juízes, ali consagrados.
 
Nos termos do artigo 16.º, n.º3, do Código do Processo Penal, o tribunal
singular tem competência para o julgamento dos crimes previstos no artigo 14.º, n.º2,
quando o Ministério Público antevê a aplicação aos mesmos crimes de uma pena cujos
limites ainda são da competência normal desse tribunal (artigo 16.º, n.º2, alínea c),
C.P.P.).
 
Mas se o juiz a quem a apreciação do caso foi solicitada pela acusação
concluir que aos feitos que lhe são submetidos corresponde uma pena de prisão superior
a três anos ou medida de segurança de internamento por mais do que esse tempo, então
há oportunidade para o conhecimento e declaração da sua incompetência (artigo 32.º, n.º
l, C.P.P.), com a devolução do caso ao tribunal colectivo para efeito de julgamento.
 
Desse modo, sempre a liberdade de julgar do tribunal prevalecerá sobre a
"óptica do Ministério Público", cabendo ao juiz determinar a concreta medida da pena a
aplicar e reavaliar os limites propostos na pretensão punitiva da acusação.
 
O que o juiz não pode é no quadro da previsão da norma do artigo 16.º, n.º
3, aplicar uma pena que ultrapasse os limites do seu normal poder punitivo (artigo 16.º,

36
n.º 4, C.P.P.). É que, aí, seria o sistema de determinação concreta da competência a
resultar numa "perda" de garantias de defesa do arguido.
 
Mas isso não significa a consagração da atribuição de uma competência
necessária do juiz singular por decisão definitiva do Ministério Público. O artigo 16.º,
n.º3, permite, antes, uma espécie de "competência móvel" (Roxin) actuada pelo
Ministério Público, e cujo exercício (ou não exercício se ordena aos limites da
competência normal do tribunal singular. É uma competência móvel no quadro das
garantias de defesa do arguido.
 
A funcionalidade desenvolvida pela norma do artigo 16.º, n.º3, do Código
de Processo Penal é, pois, a de cometer à apreciação do tribunal singular os crimes a que
se refere o artigo 14.º, n.º2, do mesmo Código, os quais, tendo embora na lei um
máximo de pena superior a três anos, se afiguram a um juízo de probabilidade do
Ministério Público, susceptíveis de uma pena concreta que ainda se recorta na margem
da competência normal do tribunal singular.
 
O legislador pretendeu, assim, uma maior eficácia da justiça criminal,
cometendo ao juiz singular o poder de julgar nos processos a que se refere o artigo 14.º,
n.º2, do Código de Processo Penal e compaginando esse poder com o que é conferido
pela norma do artigo 32.º, n.º l do mesmo Código.
 
O método de determinação concreta da competência estabelecido no artigo
16.º, n.º3, do Código de Processo Penal confere ao Ministério Público um especial
protagonismo em processo penal, mas não é contrário a Constituição.
 
Na verdade, o poder de actuação do Ministério Público, na determinação da
competência do tribunal singular – por via da pré-indicação dos limites da pena concreta
- não é discricionário nem definitivo.
 
Não é um poder discricionário, pois que se ordena aos critérios legalmente
estabelecidos para a determinação da medida da pena. E, sobretudo, não é um poder
definitivo, pois que o tribunal pode confirmar o prévio juízo do M.P. sobre os limites da
pena ou, antes, concluir pela sua incompetência (artigo 32.º, n.º l, C.P.P.).
 
E, assim, a norma do artigo 16.º, n.º3, não afastando a possibilidade de
alteração subsequente do juízo de probabilidade da pena concreta formulado pelo

37
Ministério Público, não comporta o risco de "conversão" do exercício da acção penal
em exercício da função jurisdicional.
 
Deste modo, não são infringidos quaisquer princípios ou normas
constitucionais, designadamente:
 
1. O princípio da reserva da função jurisdicional e da independência dos
juízes (artigos 205.º e 206.º da Constituição): nos termos do artigo 16.º, n.º3, do Código
de Processo Penal quem julga é o juiz e não o Ministério Público.
É ele e não este quem fixa a medida concreta da pena dentro da moldura
abstracta fixada na lei. [Cometendo-se o julgamento dos crimes a que se refere o artigo
14.º, n.º2, ao tribunal singular, não se proscreve o conhecimento e declaração oficiosa
de incompetência (artigo 32.º, n.º l, C.P.P.) - e a consequente remessa dos autos ao
tribunal colectivo - quando, segundo a convicção do juiz, haja lugar a uma pena mais
grave do que aquela que assinala os limites do seu normal poder punitivo.]
 
É também por isso que o método da determinação concreta da competência
do tribunal singular, fixado na norma do artigo 16.º, n.º3, do Código de Processo Penal
não coenvolve qualquer alargamento dos limites constitucionais das funções do
Ministério Público (C.R.P., artigo 221.º). É que, ali, o Ministério Público emite sempre
um juízo de probabilidade sobre a medida concreta da pena e é função do juiz
considerá-la não definitiva. E, pois, exc1usivamente ao juiz que cabe julgar.
 
Pela mesma razão, não se verifica também, qualquer enfrentamento
do princípio acusatório em processo penal, constitucionalmente consagrado (C.R.P., art.
32.º, n.º5). A norma do artigo 16.º, n.º3, não implica a confusão do poder de acusar no
poder de julgar.
 
2. O princípio do juiz natural ou do juiz legal (artigo 32.º, n.º7, da
Constituição): o artigo 16.º, n.º 2, do Código de Processo Penal vem consagrar o método
da determinação concreta da competência do tribunal singular, o qual não enfrenta o
princípio do juiz natural consagrado no artigo 32.º; n.º7, da Constituição, que dispõe:
"nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei
anterior".
 
Este principio, no dizer de Figueiredo Dias:
 

38
" (...) constitui (...) uma necessária garantia dos direitos das
pessoas, ligada à ordenação da administração da justiça penal, à exigência
de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da comunidade
naquela administração. É o princípio que (...) esgota o seu conteúdo de
sentido material na proibição da criação ad hoc, ou da determinação
arbitrária ou discricionária ex post facto, de um juízo competente para
apreciação de uma certa causa penal. Do que se trata sobretudo é de impedir
que motivações de ordem política ou análoga – aquilo, em suma, que
compreensivelmente se pode designar por raison d'État – conduzam a um
tratamento jurisdicional discriminatório e, por isso mesmo, incompatível
com o princípio do Estado de direito." (Cf. "Sobre o sentido do princípio
jurídico-constitucional do 'juiz natural', in: Revista de Legislação e
Jurisprudência, ano 111.º, pags. 83-84).
 
O método da determinação concreta da competência não se confunde com a
possibilidade de criação de tribunais ad hoc ou de excepção. Ordena-se, antes ao
princípio da legalidade e é contrário à ideia de "um certo tribunal para uma certa causa".
 
A atribuição de competência ao tribunal singular, nos termos do artigo 16.º,
n.º3, do Código de Processo Penal, não depende, como se demonstrou, de uma decisão
discricionária e insindicável da acusação. Não se orienta a critérios de oportunidade que
prescindam da lei nem retira ao juiz a faculdade de devolver aquela mesma competência
ao tribunal colectivo, se ele entender que, no caso, a pena a aplicar é superior a três
anos.
 
O legislador, "lançando mão de critérios objectivos, como são os critérios
legais de determinação concreta da pena, limita-se a permitir o chamado método da
determinação concreta da competência para a identificação do tribunal competente para
o julgamento" (acórdão do T.C. 137/90).
 
Confrontando a norma aqui em apreço com aquele princípio, afirma ainda
Figueiredo Dias:
 
"A verdade é que nenhuma das razões que explicam, histórica e
substancialmente, o princípio do juiz natural – proibição de tribunais de excepção e
especiais, vetos à raison d'État, como determinante da competência, e à violação do
princípio da igualdade – estão presentes na regulamentação contida no artigo 16.º, n.º2,

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do Código; regulamentação em si mesma geral, abstracta, materialmente justificada e
estranha a discriminações – tanto mais quanto é certo serem hoje os critérios de
determinação concreta da pena critérios dogmaticamente objectivados e controláveis e
de forma alguma dependentes da 'arte' de aplicação do juiz.
 
De resto: não há qualquer razão para supor que, em julgamento que tenha
lugar por força do disposto no artigo 16.º, n.º 1, perca aplicabilidade o disposto no artigo
359.º.
Quer dizer, pois, que se aí surgir uma alteração substancial dos factos
descritos na acusação – e que terão servido para o Ministério Público proceder à
determinação concreta da competência – ou na pronúncia, com efeito agravante, isso
determinará a incompetência do tribunal singular e dará lugar, consequentemente, a um
novo processo perante o tribunal colectivo ou o do júri." ["Sobre os sujeitos processuais
no novo Código de Processo Penal", O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de
Direito Processual Penal, Coimbra, 1988, págs. 18-19].
 
3. Finalmente, a sindicabilidade do juízo de prognose do Ministério Público
sobre a pena concreta a aplicar, radica desde logo, no teor meramente probabilístico
desse mesmo juízo. Ao juiz caberá sempre decidir, avaliando, em definitivo se a
moldura penal avançada pelo Ministério Publico é aquela mesma que, em sua
convicção, resulta do confronto do crime com a moldura abstracta fixada na lei.
 
A definição da competência do juiz, nos termos do artigo 16.º, n.º3, do
Código de Processo Penal, terá, necessariamente, por referência, os limites da sua
competência normal. Pelo que, nos quadros do seu exercício, não se verifica perda de
garantias de defesa do arguido nem por isso, violação do princípio da igualdade.
 
Maria da Assunção Esteves
 

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