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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

ANO LECTIVO 2019/2020


DIREITO PENAL II – SUBTURMAS 4, 5, 11 E 14

Resolução de Casos Práticos – Proposta(1)

Tipicidade Subjectiva

Erro e casos análogos

1) A, regressando embriagado de um jantar a altas horas da noite, pretende voltar para


casa no seu automóvel, mas dirige-se para outro carro, de modelo diferente, sem reparar
que não é o seu. No momento em que tenta abrir a fechadura é surpreendido por uma
autoridade policial. Quid juris?
O problema descrito na hipótese sugere a prática de um crime de furto, p.e.p. no artigo
203.º do Código Penal, por A., ao tentar abrir a fechadura de um carro que não é o seu.
Em primeiro lugar, releva afirmar que está em causa uma acção – comportamento
humano voluntário – e que não se suscitam problemas de imputação objectiva. Com efeito,
A criou um risco proibido, e esse risco veio a concretizar-se no resultado.
Quanto à imputação subjectiva, a situação enunciada suscita a questão da vinculação
psicológica do agente ao resultado, traduzida pelo dolo. Objecto do dolo são os elementos do
tipo objectivo, que deverão ser considerados pelo agente do ponto de vista do elemento
cognitivo e do elemento volitivo (princípio da congruência).
Na hipótese descrita, A está em erro sobre o objecto porque não representa um elemento
essencial do tipo: o carácter alheio da coisa (artigo 203.º do Código Penal). Encontramo-nos
diante de um erro ignorância, previsto no artigo 16.º, número 1 do Código Penal.
Explicitando, o agente ignora que o objecto da sua acção é alheio. Como se intui, para
podermos afirmar, genericamente, que o agente “quer” furtar o carro, é indispensável que
represente que esse objecto não lhe pertence. Assim, o referido preceito determina a exclusão

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O presente documento apresenta meras propostas de resolução dos casos práticos, e não dispensa a frequência
às aulas teóricas e a consulta dos manuais de referência.

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do dolo do tipo, ficando contudo ressalvada a punibilidade a título negligente (artigo 16.º,
número 3 CP).
No entanto, nos termos dos artigos 13.º e 15.º do Código Penal, a negligência só será
punível quando haja expressa previsão, o que não ocorre no caso do furto.
Poder-se-ia ainda equacionar a relevância de uma acção livre na causa (artigo 20.º,
número 4 do código Penal), traduzida pela circunstância de o agente se ter voluntariamente
colocado na situação de embriaguez para não conseguir distinguir os carros e, desse modo,
praticar o furto. Todavia, não dispondo de quaisquer dados que sustentem essa conclusão,
impõe-se afastar este cenário. Assim, o agente não seria punido.

2) B quer furtar o computador portátil do seu colega C, exteriormente idêntico ao seu,


mas com tecnologia de última geração no interior. Todavia, engana-se e acaba por levar
o seu. Quid juris?
Acha-se indiciada a prática de um crime de furto (artigo 203.º do Código Penal), por
B, no que respeita ao comportamento de subtrair o computador. Havendo acção, releva
questionar a existência de tipicidade objectiva. Aplicando a teoria do risco, constataríamos,
desde logo, que num juízo ex ante, ainda seria possível defender que o agente criou um risco
proibido. De facto, apenas ex post se comprova que o computador subtraído não é
propriedade de terceiro, mas do agente. Seja como for, em sede de concretização do risco no
resultado, impunha-se reconhecer que não se verificou qualquer lesão do bem jurídico
propriedade, pelo que se excluiria a punição a título de crime doloso consumado.
Especialmente relevante se manifesta, neste caso, a circunstância de o agente se
encontrar em erro: atribui uma qualidade ao objecto que ele não tem, e que é elemento
essencial do facto típico. Efectivamente, para se verificar um furto, é necessário que o objecto
da acção corresponda a uma coisa móvel alheia (artigo 203.º do Código Penal). Na presente
hipótese, B supõe tratar-se de uma coisa móvel alheia, o que não se verifica. Assim, o erro
do agente é um erro-suposição: B supõe que o computador possui uma qualidade essencial

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para o tornar passível de furto. Dito de outro modo, B julga estar a levar o computador de C,
que seria um objecto típico do furto, por não lhe pertencer. Por esse motivo, nada obsta à
afirmação de um dolo directo de furto, já que o agente representa e quer subtrair uma coisa
móvel que encara como alheia. O erro-suposição segue, em princípio, o regime da tentativa
impossível. Com efeito, a acção do agente dirige-se a um objecto inexistente para efeitos do
preenchimento do tipo de crime em causa: um bem próprio não é susceptível de furto pelo
proprietário
Isto dito, importa verificar se a tentativa é punível no tipo de crime em causa, devendo,
nos termos do artigo 23.º, número 1 do CP, ao crime consumado corresponder uma pena
superior a 3 anos – o que não acontece (artigo 203.º, número 1 do CP: “até três anos”). Há
ainda que verificar se existe previsão especial de punibilidade por tentativa, o que se observa
no artigo 203.º, número 2 do Código Penal. Consequentemente, esta disposição diz-nos que,
em regra, as tentativas de furto simples são puníveis. Contudo, estamos perante uma tentativa
impossível, pelo que importará aferir da respectiva punibilidade, ao abrigo do disposto no
artigo 23.º, número 3 do Código Penal. Pelos dados da hipótese, nada nos leva a crer que seja
manifesta a inexistência do objecto. Em consequência, esta tentativa será punível.

3) D pretende matar o ruidoso cão do seu vizinho E e, assim que anoitece, coloca-se à
janela com a arma apontada, à espera que o cão saia de casa. No momento em que vê
um vulto baixinho sair, dispara. No entanto, não se tratava do cão, mas do próprio E,
que andava de gatas à procura de um botão de punho que perdera nessa tarde e que
vem a ter morte imediata. Quid juris?
O caso descrito suscita a discussão da eventual punibilidade de dois crimes diferentes:
homicídio (artigo 131.º do Código Penal) – a morte do vizinho; e dano (artigo 212.º do
Código Penal) – a desejada morte do cão.
No que respeita ao homicídio de E, D praticou uma acção penalmente relevante, por se
tratar de um comportamento humano voluntário. Para além disso, criou um risco, sendo esse

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risco proibido e tendo conhecido concretização no resultado. Como vimos, E acabou por
morrer na sequência do tiro disparado por D.
No que respeita à tipicidade subjectiva, o agente ignora um elemento essencial do tipo,
que é a qualidade de “pessoa” do objecto da sua acção. Como sabemos, o homicídio só pode
ter por objecto uma pessoa. Deste modo, D encontra-se numa situação de erro sobre a pessoa,
que será relevante pelo facto de se tratar de um requisito essencial para a observância do tipo
de homicídio. Consequentemente, tal erro-ignorância permitirá excluir o dolo do tipo nos
termos do artigo 16.º, número 1 do Código Penal. Todavia, importa não esquecer a previsão
do artigo 16.º, número 3 do Código Penal, que ressalva a punibilidade a título negligente. Por
este motivo, impunha-se verificar, in casu, se D tinha actuado de forma negligente.
Concluindo-se em sentido afirmativo, D responderia a título de homicídio negligente (artigo
137.º do CP). Caso contrário, afastar-se-ia a punibilidade quanto a este crime.
No que se refere ao crime de dano, parece-nos que a descrição da hipótese sugere que
o cão nunca terá estado em perigo, porque não teria saído de casa. Equivale isto a considerar
que a vontade de D, quanto ao cão, não terá tido expressão em quaisquer actos de execução,
susceptíveis de colocar o animal em perigo. Desse modo, não haveria fundamento para punir
D apenas pelas suas intenções relativamente ao cão.

4) F quer furtar o gato de G, mas engana-se e subtrai o gato de H, que é muito parecido.
Quid juris?
No cenário descrito, importará analisar a responsabilidade penal de F, pela
circunstância de ter subtraído o gato de H, à luz do crime de furto (artigo 203.º do Código
Penal).
Observa-se, inequivocamente, um comportamento humano voluntário, permitindo
afirmar a existência de uma acção penalmente relevante. Paralelamente, diremos que o agente
criou um risco, sendo tal risco proibido, e tendo conhecido concretização no resultado
produzido.

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A propósito da imputação subjectiva, encontramo-nos, nesta hipótese, perante um erro


sobre a identidade do objecto, já que F pretende furtar o gato de G, mas subtrai o de H (error
in persona vel objecto). Quer dizer, o dolo de F dirige-se ao gato de G. No entanto, o elemento
relevante para o tipo de crime em causa – o furto (artigo 203.º do Código Penal) – prescinde
completamente da concreta identidade do objecto. Deste modo, o tipo de furto encontra-se
preenchido desde que o objecto subtraído seja uma coisa móvel alheia – o que, neste caso, se
verifica: tanto o gato de G como o gato de H são coisas móveis alheias. Por isso, este erro é
perfeitamente irrelevante para a exclusão do dolo do tipo, sendo F punido por furto
consumado (artigo 203.º do Código Penal).

5) I pretende partir o vidro da janela de J. Atira uma pedra, mas, por falta de pontaria,
acerta em L que está na varanda do lado direito e que nem sequer tinha visto. Quid
juris?
Atendendo à descrição enunciada, importa explicitar que teremos que analisar a
responsabilidade penal de I, relativamente a dois possíveis crimes: dano (artigo 212.º, n.º 1
do Código Penal), no que respeita à sua pretensão de partir o vidro da janela, e ofensa à
integridade física (artigo 143.º do Código Penal), no que concerne ao facto de a pedra ter
acertado em L.
Quanto ao crime de dano, afirma-se, inequivocamente, a existência de comportamento
humano voluntário e, nesse sentido, de uma acção penalmente relevante. Importa, por isso,
proceder à análise da tipicidade.
Em termos objectivos, o agente criou um risco proibido para o bem jurídico. Porém, o
risco concretizado no resultado não corresponde ao perigo típico criado pelo agente. Numa
formulação alternativa: o risco que produziu o resultado típico é oriundo da conduta do
agente mas, de acordo com a representação e vontade de D, o risco típico criado seria o risco
de dano e não de ofensa à integridade física.
Perante estas constatações, diremos que o caso descrito parece corresponder às
chamadas situações de erro na execução, em que o agente não provoca o risco que

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inicialmente tinha previsto, acabando por desencadear um processo que conduz a uma lesão
diferente da que pretendia causar. Trata-se de um contexto comummente designado como
aberratio ictus vel impetus, caracterizado pela ocorrência de um erro na execução que produz
um resultado distinto do projectado pelo agente. Neste concreto cenário, não se verifica uma
identidade típica de objectos: sugere-se a lesão típica de dois crimes distintos. De facto, na
nossa hipótese, estaremos a olhar para uma ofensa à integridade física (em relação a L) e um
dano – relativamente à janela.
No que concerne ao dano, teremos, no máximo, uma tentativa. Existe desvalor da acção
– observou-se um perigo concreto de atingir a janela, e sua actuação revela dolo directo
(artigo 14.º, número 1 do Código Penal). No entanto, por falta de pontaria, não logrou
produzir o resultado correspondente ao perigo criado. Releva, por isso, averiguar da
respectiva previsão de punibilidade, já que a pena consagrada para o crime consumado não é
superior a três anos (artigos 23.º, número 1 e 212.º, número 1 do Código Penal). No entanto,
o artigo 212.º, número 2 do Código Penal prevê a punibilidade da tentativa de dano, o que
viabiliza a responsabilidade penal do agente a este título.
Relativamente à ofensa da integridade física, constata-se uma acção penalmente
relevante que, como vimos, adveio da criação de um risco proibido que se concretizou no
resultado. Todavia, I nem teria visto L, quando atirou a pedra para atingir a janela. Isto dito,
em termos de imputação subjectiva, concluiríamos que o agente não chegou a representar a
possibilidade de realização do facto típico, actuando com negligência inconsciente (artigo
15.º, alínea b), do Código Penal). Consequentemente, e uma vez que o artigo 148.º do Código
Penal prevê o crime de ofensa à integridade física negligente, I poderia ser punido por este
crime.

E quid juris se I acertar no canário que está na varanda do lado esquerdo e que nem
sequer tinha visto?

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Partindo deste cenário, analisaremos a responsabilidade penal de I, relativamente a dois


possíveis crimes de dano (artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal) – partir o vidro da janela e
acertar no canário.
Quanto ao primeiro crime de dano, afirma-se, inequivocamente, a existência de
comportamento humano voluntário e, nesse sentido, de uma acção penalmente relevante.
Importa, por isso, proceder à análise da tipicidade.
De um ponto de vista objectivo, o agente criou um risco proibido para o bem jurídico.
Todavia, relativamente ao resultado atingido, diremos que se observa novamente um erro na
execução ou uma aberratio ictus. Com efeito, E dirigira a sua acção para atingir a janela e, a
final, acertou no canário. Aqui, haverá uma identidade típica de objecto, já que os crimes em
causa são dois crimes de dano: um tendo por objecto a janela, outro o canário.
Consequentemente, a propósito deste primeiro crime, não se verificando a
concretização do risco no resultado, resta a avaliação da responsabilidade do agente pelo
crime tentado. Vimos que existiu desvalor objectivo da acção e, quanto ao desvalor
subjectivo, afirmar-se-á o dolo directo de dano (artigo 14.º, número 1 do Código Penal). A
punibilidade desta tentativa depende então dos requisitos do artigo 23.º, número 1 do Código
Penal ou, em alternativa, de uma previsão expressa a esse respeito. Efectivamente, atendendo
ao disposto no artigo 212.º, número 2 do Código Penal, concluiremos que I responderia a
título de tentativa de dano.
Concentrando-nos por ora na acção relativa ao canário, constata-se um comportamento
humano voluntário, que criou um risco proibido para o bem jurídico, tendo tal risco
conhecido concretização no resultado. Nos termos sublinhados, a pedra atingiu o canário. Tal
como anteriormente referido, o agente pretendia atingir a janela, sendo que nem sequer tinha
visto o canário que acabou por ser objecto da sua acção. Desta maneira, de um ponto de vista
subjectivo, o agente actuou com negligência inconsciente (artigo 15.º, alínea b) do Código
Penal). Ora, a punibilidade a título negligente depende de uma previsão expressa que, no caso
do crime de dano não se observa. Por esse motivo, a responsabilidade de I será, quanto a este
ponto, negada.

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A este respeito, cumpre sublinhar que, em casos de aberratio ictus com identidade
típica de objecto, se discute se o agente deverá ser punido em concurso (tentativa de crime
projectado e crime consumado negligente) ou se, pelo contrário, se deverá equiparar esta
situação ao caso do erro sobre a identidade do objecto, e punir o agente por um único crime
doloso.
Neste contexto, afirma-se que a solução do concurso (teoria da concretização) poderá
redundar, muitas vezes, na não punibilidade do agente. Pense-se nas situações em que a
tentativa não esteja prevista, ou não seja punível por outra qualquer razão.
A doutrina dominante tem entendido, ainda assim, que a punição em concurso será a
mais adequada, já que nas hipóteses de aberratio ictus se observa, tipicamente, a criação de
dois perigos autónomos que merecem tutela penal. Deste modo, importaria demonstrar, para
sustentar este entendimento, que teria havido criação de perigo de dano quanto à janela,
paralelamente ao risco criado para o canário, que conheceu concretização no resultado
proibido.

6) M quer afastar de uma competição hípica o seu rival desportivo N. Assim, dispara
para atingir N ou o cavalo deste. Quid juris se atingir o cavaleiro?
A hipótese obriga à análise da actuação de M à luz do crime de homicídio (artigo 131.º
do Código Penal) e dano (artigo 212.º do Código Penal).
Quanto à actuação dirigida ao cavaleiro, do ponto de vista da acção e da tipicidade
objectiva, não se observam problemas de maior. Existe comportamento humano voluntário e
comprova-se a criação de um risco proibido, materializado no resultado.
Subjectivamente, a situação descrita configura um caso de dolo alternativo, já que o
agente representa e deseja lesar ou o cavalo ou o cavaleiro, sendo indiferente atingir um ou
o outro resultado. Neste sentido, diremos que o agente revela dolo directo de homicídio,
representando e querendo atingir o cavaleiro. Por esse motivo, seria possível punir o agente
pela prática de um crime de homicídio doloso consumado (artigo 131.º, n.º 1 do Código
Penal).

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Quanto ao cavalo, constata-se a existência de uma acção penalmente relevante,


correspondendo à criação de um risco proibido. Porém, esse risco não se concretizou no
resultado, já que o disparo atingiu o cavaleiro. Negando-se a concretização do risco no
resultado, sempre cumpriria aferir da responsabilidade do agente a título de crime tentado.
Neste âmbito, haveria desde logo que confirmar a existência de um desvalor objectivo da
acção, isto é, a prática de actos de execução que colocassem o cavalo em risco. De um ponto
de vista subjectivo, haveria dolo directo (artigo 14.º, número 1 do Código Penal), tendo em
conta que M representou e quis atingir o animal.
Constatando-se a punibilidade da tentativa do crime de dano (artigo 212.º, n.º 2 do
Código Penal), o agente poderia ser também punido a esse título.
A propósito dos casos de dolo alternativo, FIGUEIREDO DIAS sublinha que o agente
conta com ambas as possibilidades, e conforma-se com elas. Por esse motivo, o seu dolo deve
ser afirmado quanto ao tipo objectivo realmente preenchido pela conduta. No caso,
equivalerá isto a afirmar que, sendo atingido o cavaleiro, o agente responderá por homicídio,
nos termos do artigo 131.º do Código Penal.
Em alternativa, tem alguma doutrina sugerido a possibilidade de punir o agente pela
tentativa do crime mais grave, caso esse não seja o crime consumado. No entanto, tal posição
não determinaria uma solução distinta da anterior, já que o resultado típico ocorrido – acertar
na pessoa em vez de no animal – constitui o crime mais grave. Dito de outro modo: uma vez
que o agente acertou no cavaleiro, impõe-se concluir que praticou o crime mais grave. Nestas
hipóteses, também esta perspectiva doutrinária defende a punição a título doloso consumado,
visto que não teria qualquer cabimento falar num mero crime tentado.
De acordo com MARIA FERNANDA PALMA, poderia ainda defender-se a solução de
punibilidade por dois crimes dolosos: um na forma tentada (dano – 212.º do Código Penal) e
outro na forma consumada (homicídio – 131.º do Código Penal), como inicialmente sugerido.

Quid juris se atingir o cavalo?

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A hipótese obriga à análise da actuação de M à luz do crime de homicídio (artigo 131.º


do Código Penal) e dano (artigo 212.º do Código Penal).
Quanto à actuação dirigida ao cavaleiro, do ponto de vista da acção, não se observa
qualquer problema, já que existe comportamento humano voluntário. Porém, no que
concerne à imputação objectiva, impõe-se concluir que o risco proibido criado não se
concretizou no resultado, visto que o disparo atingiu o cavalo. Resta, por isso, averiguar da
possibilidade de punir o agente pela tentativa.
No que respeita ao desvalor objectivo da acção, afirmámos a criação de um risco
proibido, que entendemos apto a configurar um acto de execução do crime de homicídio. Em
termos subjectivos, a situação descrita configura um caso de dolo alternativo, já que o agente
representa e deseja lesar ou o cavalo ou o cavaleiro, sendo indiferente atingir um ou o outro
resultado. Neste sentido, diremos que o agente revela dolo directo de homicídio,
representando e querendo atingir o cavaleiro.
Nesta sequência, haveria ainda que aferir da punibilidade desta tentativa, ao abrigo do
disposto no artigo 23.º, n.º 1, do Código Penal, devidamente articulado com o artigo 131.º do
mesmo diploma. Haveria, por isso, responsabilidade a título de tentativa de homicídio.
Quanto ao cavalo, constata-se a existência de uma acção penalmente relevante,
correspondendo à criação de um risco proibido. Para além disso, revela-se viável concluir
pela imputação objectiva do resultado à conduta, tendo em conta que o disparo atingiu o
cavalo. De um ponto de vista subjectivo, haveria dolo directo (artigo 14.º, número 1 do
Código Penal), tendo em conta que M representou e quis atingir o animal.
Assim sendo, o agente seria punido pela prática de um crime de dano consumado, a
título de dolo.
Em relação ao cavalo, e adoptando a formulação de MARIA FERNANDA PALMA haveria
punição por crime de dano doloso (artigo 212.º, número 2 do Código Penal), e tentativa de
homicídio (artigos 131.º e 23.º, n.º 1 do Código Penal).

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Se tal solução parece adequada à primeira vista, importa não negligenciar a doutrina
típica nesses casos. Conforme vimos, admite apenas, nesta sede, a punição por um único
crime doloso. Na verdade, o perigo só teria sido concretizado num dos resultados típicos (a
morte do cavalo).
Finalmente, cumpre referir a solução que defende a punição por tentativa do crime mais
grave, quando não sendo esse o consumado. Segundo este critério, diríamos que M
responderia por uma tentativa de homicídio dolosa (artigos 131.º e 23.º, n.º 1 do Código
Penal), mesmo tendo atingido o cavalo.

7) O lança P de uma ponte sobre o Tejo para que este morra afogado. Todavia, P cai
sobre um barco que vinha a passar e morre com o embate. Quid juris?
Atendendo ao referido supra, impõe-se enquadrar a actuação de O à luz do crime de
homicídio (artigo 131.º do Código Penal). Em termos de comportamento penalmente
relevante, não se identificam quaisquer problemas.
No que se refere à tipicidade, dúvidas não restam de que o agente criou um risco
proibido. No entanto, o enunciado sugere uma situação de erro sobre o processo causal, em
que o agente consegue atingir o seu objectivo (no caso, matar P),de uma forma diferente da
inicialmente concebida. É exactamente neste ponto que o erro sobre o processo causal se
distingue da aberratio ictus: nesta, o agente não consegue produzir o resultado almejado.
Conforme se verificará, este cenário assume relevância tanto de um ponto de vista de
tipicidade objectiva como subjectiva
Releva, assim, abordar a problemática relativa à extensão o dolo. Sinteticamente,
cumpre saber se o dolo deverá abarcar o concreto processo causal que desembocará na
produção do resultado típico. A doutrina tradicional responde afirmativamente a esta questão,
sugerindo que a técnica estaria em saber se o resultado traduziria a ocorrência de um desvio
essencial. Nestes termos, entendia-se que se o concreto desvio fosse previsível, integraria o
respectivo dolo e o agente seria punido por crime doloso consumado; ao invés, tratando-se

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de um desvio completamente imprevisível, o dolo seria excluído e salvaguardar-se-ia a


punição a título negligente.
Apesar da intuitiva razoabilidade desta construção, importa lembrar que o dolo não se
reconduz a previsibilidade, mas sim a previsão efectiva. Para haver dolo, o agente tem de,
pelo menos, prever como possível a verificação do resultado. Impõe-se, aqui, uma previsão
efectiva, uma acção “dirigida” à produção desse resultado. Por esse motivo, refere PUPPE que
quando o processo causal se desenvolve de forma completamente imprevisível, não haverá,
desde logo, imputação objectiva, pelo que o erro sobre o processo causal seria um problema
de tipicidade objectiva e não de imputação subjectiva.
Para ROXIN, diferentemente, a essência do dolo está no plano do agente.
Consequentemente, o resultado poderá ser imputado a título doloso se ainda for uma
concretização do plano desse mesmo agente. ROXIN indica que assim acontecerá, via regra,
nos crimes de execução livre e não nos de execução vinculada.
Por seu turno, MARIA FERNANDA PALMA sublinha que nas hipóteses de processos com
risco intenso e consequências incontroláveis, não haverá verdadeiramente erro. Nesses casos
– afirma a autora –, o agente representa simultaneamente a verificação de múltiplos riscos,
sendo tais perigos concretização do risco inicialmente criado.
Daqui tende a concluir que o dolo não tem que abarcar o processo causal, bastando que
o agente represente os elementos da imputação objectiva – criação do risco proibido e
resultado como concretização desse risco – para que o crime seja imputável a título doloso.
Neste cenário, parece possível afirmar que O representa os pressupostos de imputação
objectiva, concebendo que mesmo que P não morresse por afogamento, poderia morrer por
uma outra causa, igualmente provável. Assim, dir-se-á que haverá imputação objectiva do
resultado morte de P ao comportamento de O.

8) Q envenena R, pensando tê-lo morto. Para que o seu crime não seja descoberto,
resolve então simular um acidente de automóvel: coloca R num carro e atira-o
ribanceira abaixo. R morre na explosão. Quid juris?

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Acha-se indiciada a prática de um crime de homicídio (artigo 131.º do Código Penal),


através de um comportamento penalmente relevante de Q, composto por duas acções – uma
correspondente à morte por envenenamento e outra correspondente ao acidente de
automóvel.
Temos, evidentemente, um acção penalmente relevante, observando-se a criação de um
risco proibido e a concretização do risco no resultado. O agente criou um risco para a vida
da vítima, que veio a morrer.
A nível subjectivo observa-se, na situação descrita, um caso de falta de actualidade do
dolo do tipo, no momento da prática do acto que produz o resultado lesivo do bem jurídico.
Estamos, assim, perante o problema genérico do dolus generalis. Em suma: no momento em
que o agente actua de forma dolosa, não produz o resultado típico; e na altura em que obtém
o resultado típico, não actua dolosamente.
A este respeito, a doutrina maioritária entende que o dolo, abarcando todo o processo
desencadeado pelo infractor, sustenta a punibilidade por um crime único, doloso e
consumado – no caso, homicídio doloso consumado (artigo 131.º do Código Penal).
Sugere STRATENWERTH a mesma solução, mas apenas quando o acto subsequente de
encobrimento tivesse sido inicialmente previsto. No mesmo sentido parece pronunciar-se
MARIA FERNANDA PALMA, ao considerar que importaria indagar da unidade de decisão na
sequência das duas acções. Isto é, se às duas acções empreendidas correspondesse apenas
uma decisão, o dolo abarcaria ainda este erro, que se revelaria não essencial.
ROXIN, por seu turno, socorre-se dos diferentes tipos de dolo para justificar variados
tipos de punição. Para este autor, se o agente actuar apenas com dolo eventual – de homicídio,
no caso –, não faria sentido imputar, a título de dolo, todo o processo ocorrido. Tal hipótese
ficará limitada aos casos em que se observe dolo directo (artigo 14.º, número 1 do Código
Penal).
De acordo com a concepção de FIGUEIREDO DIAS, haveria que indagar se o risco que
se concretiza no resultado poderia ainda reconduzir-se ao quadro de riscos criados pela
primeira actuação. Concluindo-se em sentido afirmativo, achar-se-ia justificada a

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punibilidade por crime doloso consumado. Caso contrário, restaria apenas articular uma
tentativa e um crime doloso consumado.
Efectivamente, a alternativa de punibilidade será então recorrer ao concurso efectivo e
catalogar a primeira actuação aqui descrita como tentativa de homicídio, e a segunda como
homicídio negligente. Como vimos, a acção que contém o dolo do tipo não determina o
resultado típico, produzindo-se tal resultado através daquela actuação subsequente que não é
tipicamente dolosa.
Seja como for, alguma doutrina pronuncia-se no sentido da desconsideração da figura
do dolus generalis. Em rigor, afirmá-la implica sempre uma ficção de dolo relativa ao
segundo momento. Havendo duas acções, o dolo não poderá ser único e geral, a não ser em
casos muito pontuais.
Retomando a hipótese em análise, diríamos que de acordo com Maria Fernanda Palma,
não poderíamos concluir por um dolo que abrangesse as duas actuações, já que apenas após
o primeiro crime decidiu o agente encobrir o “homicídio”. No mesmo sentido nos parece
apontar o critério sugerido por Figueiredo Dias, visto que o risco concretizado no resultado
não se inclui no quadro de riscos criados pela primeira actuação. Deste modo, apenas restaria
a punibilidade do agente por uma tentativa de homicídio (artigo 23.º, n.º 1 e 131.º do Código
Penal) e um crime de homicídio negligente (artigo 137.º do Código Penal).

9) S anestesia T para, em seguida, o matar por enforcamento, simulando o seu suicídio.


No entanto, T, sem que S se aperceba, morre logo com a anestesia. Quid juris?
Acha-se indiciada a prática de um crime de homicídio (artigo 131.º do Código Penal),
através de um comportamento penalmente relevante de Q, composto por duas acções – uma
correspondente à anestesia ministrada a T, outra correspondente ao enforcamento.
Verifica-se, assim, uma acção penalmente relevante, observando-se a criação de um
risco proibido e a concretização do risco no resultado. O agente criou um risco para a vida
da vítima, que veio a morrer.

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Subjectivamente, a situação descrita parece referir-se, uma vez mais, a um problema


de actualidade do dolo. Na presente hipótese observa-se, em concreto, uma consumação
antecipada do crime. Em coerência com o que anteriormente se explicou, estaria aqui em
causa a prática de um crime de homicídio (artigo 131.º do Código Penal).
No entanto, não choca aqui considerar a punição por um único homicídio consumado,
desde logo porque o primeiro acto – aquele que, de facto, produziu a morte – é já um acto de
execução em relação ao segundo comportamento (artigo 22.º, número 2, alínea c) do Código
Penal), encontrando-se ambos perfeitamente articulados entre si. Nestas situações, parece
legítimo fazer menção ao dolus generalis. Efectivamente, visto que o agente ainda pratica a
segunda actuação (encobrir o corpo) haverá ainda margem para afirmar que o dolo homicida
se achava integrado na conduta do agente ab initio, possibilitando a punição por crime doloso
consumado.

10) U pretende ofender a integridade física de V e agride-o violentamente à beira de


uma escadaria. V desequilibra-se, cai pelas escadas abaixo e bate com a cabeça na aresta
de um degrau, tendo morte imediata. Quid juris?
Considerando os factos relatados, impunha-se analisar o comportamento de U, pelo
facto de ter agredido violentamente V, à luz do preenchimento dos tipos de crime de ofensa
à integridade física (artigo 143.º do Código Penal) e homicídio (artigo 131.º do Código
Penal).
Em primeiro lugar, observa-se uma acção penalmente relevante, correspondente a um
comportamento humano voluntário. De um ponto de vista de tipicidade, a situação
mencionada obriga à ponderação de um cenário de crime agravado pelo resultado, nos termos
do artigo 18.º do Código Penal (crime preterintencional). Com efeito, na sequência da
agressão a V, U acaba por matá-lo, ainda que essa não tenha sido a sua intenção inicial.
Constata-se, por isso, uma certa ausência de conexão objectiva e subjectiva, na medida em
que poderíamos considerar que o risco proibido inicialmente criado era apenas um risco de

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ofensa à integridade física, sendo que o risco que se concretizou no resultado foi um risco de
morte.
Estaríamos, em tese – e analisando cada um dos eventos separadamente –, perante uma
hipótese de concurso efectivo entre os crimes de homicídio (artigo 131.º do Código Penal) e
ofensa à integridade física (artigo 143.º do Código Penal). Por esse motivo, refere-se
tipicamente que a previsão do artigo 18.º do Código Penal constitui uma excepção ao regime
do concurso.
A figura da agravação pelo resultado parte do versare in re ilícita que, por seu turno,
se traduz na convicção de que quem actua ilicitamente assume todas as consequências do
acto que pratica. Impõe-se, contudo, uma limitação em nome do princípio da culpa, exigindo-
se não só uma clara relação de imputação objectiva, como também de imputação subjectiva.
Equivale isto a afirmar, por um lado, que o resultado morte só poderá ser imputado ao
agente se houver uma certa conexão de risco entre as duas situações, sendo previsível o
segundo resultado na sequência da primeira actuação. No fundo, exige-se que no conjunto de
riscos inicialmente criados pelo agente ainda se encontre alguma conexão com o risco mais
grave ulteriormente verificado. Aqui, parece previsível que uma agressão à beira da escada
possa vir a resultar na morte da vítima. Assim, diremos que o requisito objectivo se encontra
assegurado.
É no que toca ao requisito subjectivo que se afigura necessário atender à previsão da
parte final do artigo 18.º do Código Penal. Se bem virmos, do artigo 147.º do Código Penal
parece resultar que deverá haver dolo em relação ao primeiro resultado e negligência em
relação ao segundo. Todavia, esta exigência não se revela essencial. Em rigor, fala-nos o
artigo 18.º do Código Penal em “pelo menos, negligência”, admitindo a existência de dolo
em relação ao segundo resultado.
Esta ressalva encontra-se expressamente prevista para os cenários em que o segundo
resultado não configura um tipo de crime autónomo e, como tal, poderia passar incólume.
Para evitar tal hipótese, redigiu-se o artigo 18.º do Código Penal nestes precisos termos.

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Assim, no nosso caso importaria recorrer aos artigos 147.º e 18.º do Código Penal, para
sustentar que a ofensa à integridade física de V seria agravada pelo resultado morte, havendo,
quanto a nós, apenas negligência em relação ao segundo desfecho.

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Dolo eventual VS. negligência consciente

X pretendia roubar Z. Inicialmente, começou por planear o estrangulamento de


Z com um cinto até que este perdesse a consciência, para que depois lhe pudesse subtrair
os bens pretendidos. Todavia, como sabia que o estrangulamento pode, em certas
circunstâncias, provocar a morte, resolveu então bater-lhe na cabeça com um saco de
areia para, desse modo, o colocar em estado de inconsciência. Durante a execução do
facto, no entanto, o saco de areia rebentou e Z procurou resistir, envolvendo-se numa
luta com X. Nessa altura, X recorreu ao cinto que, por acaso, tinha levado e usou-o até
que Z ficasse imobilizado. Em seguida, apoderou-se dos bens de Z. Só depois lhe surgiu
a dúvida de saber se Z ainda estaria vivo e tentou reanimá-lo através dos procedimentos
habituais, mas inutilmente, uma vez que este tinha morrido sem que ele desse conta. A
que título subjectivo é a morte de Z imputável a X?

Segundo a descrição da hipótese, impunha-se averiguar a responsabilidade penal de X,


quanto a Z, pela circunstância de o ter estrangulado com o cinto. Encontra-se, nestes termos,
indiciada a prática de um crime de homicídio (artigo 131.º do Código Penal). Apesar do
enunciado apontar directamente para a resolução do problema em sede de tipicidade
subjectiva, diremos desde já que estamos perante uma acção, constatando-se ainda que o
risco proibido criado conheceu concretização no resultado ocorrido.
No contexto da imputação subjectiva, a questão suscitada incita-nos a reflectir acerca
das fronteiras entre o dolo eventual e a negligência consciente, que traduzem formas distintas
de conceber a imputação subjectiva e que nem sempre surgem facilmente distinguíveis. Dado
o diferente regime de punibilidade, importa decidir num sentido ou noutro.
Como se sabe, o dolo é constituído por dois elementos: o elemento volitivo e o
elemento cognitivo, que se traduzem comummente, pelo representar e pelo querer. Na sua
forma mais intensa – o dolo directo – o agente representa e deseja a produção do resultado
típico, orientando toda a sua acção nesse sentido.

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Na negligência inconsciente, contrariamente, o agente nem chega a representar a


possibilidade de verificação do resultado típico, ocorrendo este por efeito da violação do
dever de cuidado que recaía sobre o agente.
Aceitemos então que dolo directo e negligência inconsciente se situam nos antípodas
das concepções de tipicidade subjectiva. Existe, contudo, invariavelmente, uma zona
intermédia que reclama uma caracterização segura do dolo eventual e da negligência
consciente (artigos 14.º, número 3, e artigo 15.º, alínea b) do Código Penal).
Um critério apontado terá sido o da teoria cognitiva da probabilidade, que assentava
tal distinção com base no elemento cognitivo. Porém, esta proposta contraria expressamente
o texto legal, que indica negligência consciente e dolo eventual como traduzindo a mesma
intensidade do elemento cognitivo.
Posteriormente, foram apresentadas a fórmula positiva de Frank e a fórmula
hipotética de Frank. A primeira reconduzia o dolo à aceitação do resultado típico e a
negligência à confiança na não produção desse resultado – fórmula positiva; a segunda
recorria a um juízo hipotético que consistia em indagar o seguinte: se os agentes soubessem
que tal resultado se iria produzir, teriam actuado?
Como se intui, tais fórmulas revelaram-se -se insuficiente, admitindo soluções de
casos perfeitamente inadequadas.
Nesse sentido, FIGUEIREDO DIAS remete-nos para o critério da seriedade do risco,
defendendo que se tal risco for sério haverá dolo eventual e não apenas negligência. Afasta-
se, assim, a relevância da confiança, remetendo o problema para o próprio risco de produção
do resultado típico. PUPPE aproxima-se desta concepção, afirmando como critério relevante
a circunstância de saber se o risco pelo agente representado deverá ser levado a sério.
Com a mesma ideia, embora com uma formulação distinta, surge ROXIN afirmando
que se o agente confiar normativamente, com fundamento razoável, na não produção do
resultado, haverá negligência consciente e não dolo eventual. Dito de outro modo, cumpriria
distinguir os casos de decisão pela lesão do bem jurídico daqueles em que o agente confia,

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de um ponto de vista normativamente atendível, na não produção do resultado típico.


Ressalva, contudo, diferença entre confiança e esperança.
Segundo MARIA FERNANDA PALMA, o critério determinante prende-se com a
sobrevalorização dos interesses do agente em detrimento da protecção do bem jurídico. No
fundo, haveria que questionar se a actuação do agente revela que este conferiu primazia ao
seu intuito lesivo, ainda que tal implicasse a colocação em risco do bem jurídico.
O recurso a estes critérios obrigar-nos-ia a perguntar, no caso em análise, se, por um
lado, o assaltante tinha razões, – e efectivamente confiava, na não produção do resultado ou
se tomou a sério o risco de matar o Z – que era, como se viu, um risco sério. No que concerne
à confiança, não parece haver razão nenhuma para afirmar que X teria motivos, indícios ou
condições para acreditar que o resultado morte não se produziria. Concomitantemente, parece
o agente ter considerado, ainda que anteriormente, que se tratava de um risco sério, o que nos
inclina para a solução do dolo eventual. Do mesmo modo, de um ponto de vista de um juízo
de ponderação, o agente parece ter conferido primazia ao interesse na prossecução do objecto
de consumar o crime inicialmente pretendido.
Apesar disso, importa atender a alguns indícios que se retiram da relevância indirecta
das teorias da probabilidade e que nos poderão fornecer, com maior acuidade, os traços do
caso em estudo.
Desde logo importa verificar se foram tomadas medidas tendentes a evitar o resultado
– neste caso, X tentou reanimar Z, embora debalde; paralelamente, impera questionar o grau
de probabilidade de produção do resultado – aqui, era relativamente elevado, já que a maioria
das pessoas, se tiver um cinto ao pescoço e alguém a apertá-lo, tem tendência a deixar de
respirar; finalmente, cumpre aludir ao contexto motivacional do agente – que, na nossa
hipótese inclina inegavelmente para o dolo eventual, já que X considerou mais importante
furtar os bens a Z do que evitar o riso de produção da morte da vítima.
Nesta hipótese, e apesar de terem sido tomadas medidas posteriores de precaução,
parece adequado encarar a actuação do agente como imbuída de dolo eventual e não de

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negligência. Haveria imputação subjectiva a título de dolo eventual e como tal, o agente seria
punido por homicídio simples doloso consumado (artigo 131.º do Código Penal).

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