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RESUMO
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Direitos Humanos na Contemporaneidade: problemas e experiências de pesquisa
INTRODUÇÃO
O acesso à justiça pode ser classificado como o mais básico dos direitos humanos,
por meio do qual se possibilita acessar uma gama de outros direitos. Tradicionalmente,
convencionou-se o que acesso seria por intermédio do Poder Judiciário, por essa razão, é
comum pensar nessa instituição quando se fala em acesso à justiça. O pensamento, embora
não seja equivocado, é incompleto, pois não considera outros meios de acesso à justiça.
Nas últimas décadas o sistema judiciário brasileiro passou por diversas mudanças,
todas voltadas para facilitar acesso ao Poder Judiciário. As reformas processuais contribuí-
ram para consolidar uma concepção de acesso ao Judiciário como sinônimo de acesso à
justiça. A criação de mecanismos de franca acessibilidade à máquina judiciária, tais como
a assistência judiciária gratuita, juizados especiais e a concessão dos benefícios da justiça
gratuita, dentre outros - inegavelmente deram corpo ao princípio inafastabilidade da jurisdi-
ção, aproximando o cidadão do Judiciário, mas, não necessariamente da justiça. Explica-
se: o cidadão consegue levar sua causa ao juiz, mas não obtém o bem da vida pretendido
em tempo razoável.
Relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam uma alta taxa de conges-
tionamento na via judicial. É inegável, pois, que o crescimento da litigiosidade representa um
maior acesso aos balcões do Judiciário. O atual congestionamento, porém, denuncia que
esse acesso não significa garantir justiça, pois o atraso demasiado na entrega da prestação
jurisdicional termina por, não raramente, invalidar os benefícios que ao provimento judicial
competia oferecer.
A ineficiência e insuficiência da jurisdição estatal têm sido objetos de debates entre
juristas e sociólogos. O iminente, senão já efetivado, colapso do aparelho judiciário expôs a
necessidade de se refletir sobre o sistema de tutela jurídica focado na jurisdição concentrada
e repressiva como único modo de fazer justiça.
Questiona-se, assim, o alcance da expressão acesso à justiça e até mesmo do sentido
de jurisdição. A distribuição da justiça não deve ser vista como uma exclusividade do Poder
Judiciário. É preciso torná-la mais democrática, com a participação de outros atores no cená-
rio jurídico, possibilitando que as partes acessem o bem da vida por vias céleres e seguras.
Nesse contexto, a adoção de políticas públicas de desjudicialização tem se mostrado
uma forma eficaz de realização do direito na medida em que se permite o acesso ao sistema
jurídico. O termo é um neologismo da língua portuguesa, ainda não expresso nos dicionários
pátrios, mas amplamente utilizado em textos jurídicos para explicar o deslocamento de vá-
rios procedimentos antes concentrados na figura do Estado-Juiz para outras esferas como
a administrativa, dando maior efetividade ao direito de acesso à justiça.
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A desjudicialização permite a atuação de novos agentes, órgãos e instâncias na con-
secução da efetivação da justiça, bem como autoriza a utilização de outros instrumentos na
realização do direito. Com esse viés pluralista e democrático, mais adequado às necessi-
dades da sociedade contemporânea, vislumbra-se um novo modelo de jurisdição, não mais
concentrada no Poder Judiciário, mas compartilhada com outros atores do cenário jurídico
- a partir da releitura e atualização do conceito de acesso à justiça.
Essa inflexão no sistema de tutela jurídica dos direitos subjetivos alinha-se com uma
nova concepção de acesso à justiça, consubstanciada no acesso à ordem jurídica justa, ou
seja, a oferta de uma solução justa, jurídica, adequada e eficiente, e não necessariamente
imposta pelo juiz. Para isso, todavia, é preciso quebrar paradigmas. Superar o apego ao
tradicional e vetusto sistema jurisdicional e dar boas-vindas aos novos meios de fazer justiça
é uma medida que se impõe.
Em relação aos aspectos metodológicos, a pesquisa é descritiva e explicativa quanto
aos fins e bibliográfica e documental quanto aos meios de investigação. Primeiramente, anali-
sa-se o conceito de acesso à justiça, sua matriz internacional e consagração como um direito
humano, bem como sua internalização como direito fundamental elencado na Constituição
Federal de 1988. Em seguida, busca-se demonstrar a necessidade de se repensar a con-
cepção tradicional de acesso à justiça e de jurisdição estatal a partir da exposição da crise
da Justiça. Ato contínuo, apresentam-se as políticas públicas de desjudicialização como
forma de superação do monopólio estatal na distribuição da justiça e da concepção vetusta
de acesso ao Judiciário, o que dá sustentação a uma jurisdição compartilhada, moderna,
democrática e participativa, capaz de conduzir ao acesso da ordem jurídica justa.
DESENVOLVIMENTO
Como sinônimo de acesso aos tribunais, o direito de acesso à justiça foi sacraliza-
do como direito humano em tratados, pactos e convenções internacionais. A Declaração
Universal dos Direitos do Homem dispõe expressamente que “todo homem tem direito a
receber, dos tribunais nacionais competentes, remédio efetivo para os atos que violem os
direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei” (ONU, 1948).
Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa
Rica (1969), que estabeleceu que:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um
prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal
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formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações
de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (OEA, 1969).
O direito de acesso à justiça também foi erigido como direito humano pela Convenção
Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (1950)
e pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966).
Em todos esses instrumentos internacionais o acesso à justiça é retratado na forma
expressa de direito de acesso ao Judiciário. Somente com a publicação dos estudos de
Cappelletti e Garth nos idos de 1960 a 1970 é que se começa a ampliar o conceito de acesso
à justiça (ALMEIDA, 2012).
Deveras, é a partir da segunda metade do século XX que se passa a dar maior im-
portância às questões que envolvem o acesso à justiça, bem como maior significação
ao seu conceito.
No Brasil, desde as Ordenações Filipinas de 1603, já se esboçava alguma preocupação
com a representação em juízo dos pobres. O embrião da assistência judiciária demorou a
se desenvolver e chegar ao porte que hoje se conhece. O histórico da assistência judiciária
representa apenas um capítulo na história do acesso à justiça estatal no Brasil.
A Constituição de 1934 foi a primeira a cunhar a expressão “assistência judiciária” em
seu texto, prevendo a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos. O instituto foi mantido
nas Constituições posteriores, com exceção da de 1937. Moreira (1993, p. 207, grifo do autor)
chama atenção para o fato curioso de a Constituição de 1934 ter concedido um “benefício
específico antes mesmo de inscrever nesse plano a franquia genérica”. Isso porque o direito
de acesso à justiça estatal só foi constitucionalizado a partir da Constituição de 1946.
O §4º, do art. 141, da Constituição de 1946 previa que “a lei não poderá excluir da
apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual” (BRASIL, 1946). Estava
estabelecido o princípio inafastabilidade do controle jurisdicional, também denominado di-
reito de ação, repetido nas constituições posteriores, tendo sofrido uma redução com o Ato
Institucional nº 06/68, que “restringiu a garantia da inafastabilidade, vedando a jurisdição
sobre os atos praticados pelo comando da revolução” (MOURA, 2007, não paginado).
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, adotou a justiça como um valor nor-
teador do Estado Democrático. No preâmbulo da Constituição Federal, considerado “uma
proclamação de princípios, que tem o objetivo de mostrar as diretrizes políticas, filosóficas,
e ideológicas do Estado que acabou de ser criado” (BULOS, 2011, p. 118), ficou assentado
que se tratava da criação de um:
Bulos (2011, p. 339) refere-se ao direito de acesso à justiça como princípio da inafasta-
bilidade do controle judicial e apresenta outras denominações dadas ao princípio: “princípio
da inafastabilidade do controle judicial, princípio da inafastabilidade da jurisdição, principio
do acesso à justiça, princípio da ubiquidade da Justiça, princípio da tutela jurisdicional, ou,
ainda, princípio do direito de ação”.
Percebe-se, assim, a tradição de se tomar acesso ao Judiciário como sinônimo de
acesso à justiça. O reducionismo conceitual somado à ideia ultrapassada de que o Judiciário
é panaceia para todos os males sociais e à concentração da distribuição da justiça nas mãos
do Estado- Juiz, resulta na falta de efetivação do direito de acesso à justiça.
1 Taxa de Congestionamento é o indicador que mede o percentual de casos que permaneceram pendentes de solução ao final do
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ano-base, em relação ao que tramitou (soma dos pendentes e dos baixados).
2 De acordo com o relatório 2020, “As despesas totais do Poder Judiciário ultrapassaram pela primeira vez na série histórica o patamar
de R$ 100,00 bilhões, o que representou crescimento de 2,6% em relação ao último ano. Esse crescimento foi ocasionado, especial-
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mente, em razão da variação na rubrica das despesas com pessoal (2,2%)” (BRASIL, 2020, pag. 257).
3 Como visto, a redução da taxa de congestionamento, no ano de 2019, foi de 2,7%, ao passo que o orçamento para o Poder Judiciário,
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no mesmo período, aumentou em 2,6%.
4 Mancuso (2011) exemplifica citando como de passagem obrigatória pelo crivo judicial os casos que resultem em ações rescisórias; de
anulação de casamento; de controle de constitucionalidade; de anulação de sentença arbitral; homologação de sentença estrangeira;
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e de modo geral as que exigirem conhecimento amplo e exauriente.
5 Medidas desjudicializadoras nem sempre são vistas com bons olhos por todos, especialmente os advogados. Em parecer solicita-
do pelas entidades de classe dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo, quanto à compatibilidade entre a função de
mediador e a atividade notarial e registral, Campilongo (2013, 4) consignou que monopólio da jurisdição e representação judicial de
interesses “não se confundem nem podem limitar as amplas possibilidades de acesso à ordem jurídica justa. Os juízes já se deram
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conta dessa realidade insofismável; os advogados, ainda não”.
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6 A pesquisa pode ser consultada na página eletrônica do CNB (2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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