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EDUCAÇÃO E SOCIEDADE SOB A ÓTICA DE ÉMILE DURKHEIM

EDUCATION AND SOCIETY UNDER EMILE DURKHEIM'S OPTICS Introdução


É preciso sentir a necessidade da experiência, da
observação, ou seja, a necessidade de sair de nós
Igor Gonzaga Lopes próprios para aceder à escola das coisas, se as queremos
conhecer e compreender.
Jéssica Abadia Ferreira
Émile Durkheim
Universidade Federal de Goiás - UFG
Elisângela Gregório de Sousa
Instituto Federal - Campus de Urutaí Ao tomar a sociedade e a educação como objeto de estudo, levantamos as
seguintes indagações: quais as relações entre as teorias sociológicas de Durkheim e a
Resumo educação na sociedade moderna? Qual o papel fundante atribuído à educação, na busca
As possíveis leituras de um clássico indicam os fundamentos de origem da Escola
Moderna, cuja institucionalização é pensada sob a égide de um contrato social. Postulam de “soluções” para o contexto da sociedade burguesa moderna? A obra Educação e
os princípios de uma moral laica – uma nova ética – capaz de institucionalizar a estrutura Sociologia (1973) de Émile Durkheim se estrutura em quatro capítulos e tem como foco
da sociedade e da educação. Tal entendimento alicerça a institucionalização da escola no
processo de socialização de indivíduos para uma sociedade moderna. principal refletir sobre as relações entre sociedade, indivíduo e educação. Nesse extrato,
Palavras-chave: Émile Durkheim. Educação. Sociedade. Contrato Social. Escola interessa-nos diretamente compreender a finalidade da escola moderna, tomada como
Moderna.
uma instituição que contribui para o desenvolvimento da sociedade, tal como preconiza
Abstract Durkheim no contexto do século XIX, lançando âncoras para a modernidade do século
Possible readings of a classic indicate the grounds of the origin of the Modern School,
whose institutionalization is thought under the aegis of a social contract. They postulate XX.
the principles of a secular moral - a new ethic - able to institutionalize the structure of É nessa interlocução que teceremos nesse artigo, algumas reflexões acerca da
society and education. Such an understanding founded the school in institutionalization
of individuals’ socialization process for a modern society. Sociedade e da Educação, tais como almejadas por Durkheim, tendo como pano de fundo
o empenho do autor em demarcar o campo científico da Sociologia moderna. Para efeito
Keywords: Emile Durkheim. Education. Society. Social Contract. Modern School.
metodológico, organizamos o presente estudo em seis subtemas, no sentido de melhor
visualizar os desdobramentos das leituras realizadas, a partir dos fundamentos do autor e
alguns de seus intérpretes.

O autor imerso nos dilemas e questões do seu contexto

Revista COCAR, Belém, V.11. N.21, p. 302 a 321 – Jan./Jul. 2017 ISSN: 2237-0315 Revista COCAR, Belém, V.11. N.21, p. 302 a 321 – Jan./Jul. 2017 ISSN: 2237-0315
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Segundo Galter e Manchope (2003), o sociólogo francês Émile Durkheim (1858 Sua crença no alinhamento da sociedade com os modos de educação do indivíduo
-1917) se tornou um dos mais expressivos pensadores da história, cuja metodologia evidencia a preocupação em pensar uma escola compatível com o que a sociedade
sociológica, elaborada para explicar a sociedade e a educação, serviu de referência a preconiza. Concretamente, enxerga a possibilidade de uma educação realizada em
diversos pesquisadores e cientistas sociais ulteriores. Durkheim construiu sua obra em espaços institucionalizados, compreendidos como instituições, tais como: familiar,
um histórico influenciado por grandes embates: posterior à Revolução Francesa (1789- domiciliar e escolar. Para o autor, a educação do ser social, no sentido lato, ocorre no seio
1799), cujas promessas não se efetivaram numa sociedade burguesa igualitária, e de instituições, sendo a família e a escola células fundamentais na irradiação dos
vivenciando os efeitos da Revolução Industrial (transição para novos processos de princípios de formação do indivíduo.
manufatura no período entre 1760 a 1820 e 1840), assim, elaborou sua teoria sociológica Dessa forma, percebe-se que para Durkheim (2013), as questões morais sempre
em meio a uma sociedade profundamente marcada por mudanças, em um contexto estão interligadas com a vida do indivíduo em sociedade. A respeito disso, o autor
conturbado e complexo. vislumbra um novo contrato social, em que
Ao dialogar com filósofos e pensadores contemporâneos, exercitou a dúvida no
Antes de tudo, se existe hoje um fato historicamente estabelecido, é o fato de
sentido de constituir um status para a ciência sociológica, desconstruindo hegemonias, que a moral cultiva estreitas relações com a natureza das sociedades, visto que,
como já mostramos antes, ela muda quando as sociedades mudam. Isto
especialmente ao questionar a forma como as mudanças e os eventos sociais eram significa, portanto, que a moral resulta da vida em comum. De fato, e a
sociedade que nos faz sair de nós mesmos, que nos obriga a considerar
explicados e interpretados por distintos campos do conhecimento, dentre eles a filosofia interesses diferentes dos nossos, que nos ensinou a dominar os nossos ímpetos
e a história. Ao formular um novo contrato social, possibilitou a consolidação da e instintos, a sujeitá-los a leis, a nos reprimir, privar, sacrificar, subordinar os
nossos fins pessoais a fins mais elevados. Foi a sociedade que instituiu nas
Sociologia enquanto ciência empírica, comprovada por meio da observação, da indução nossas consciências todo o sistema de representação que alimenta em nós a
ideia e o sentimento da regra e da disciplina, tanto internas quanto externas.
e da experimentação. Foi assim que adquirimos o poder de resistir a nós mesmos, ou seja, o domínio
sobre as nossas vontades, um dos traços marcantes da fisionomia humana,
Segundo Lucena (2010), o perfil acadêmico e profissional de Durkheim revelou- desenvolvido à medida que nos tornamos mais plenamente humanos
(DURKHEIM, 2013, p.59).
se distinto dos de outros pensadores consagrados à época. Ocupou-se da cátedra do ensino
do Colégio d’Epinal e no Liceu, em Paris, e depois estudou filosofia na Escola Normal Essa visão de Durkheim determina uma compreensão a respeito da estrutura e
Superior de Paris. Foi professor de ofício, tornando-se pioneiro em sistematizar a funcionalidade, considerando assim que a sociedade moderna preconizada pela burguesia
Sociologia da Educação, compromisso que assumiu e estabeleceu ao compreender que a europeia busca um ordenamento na estrutura, e esse fator é indispensável para assim
manutenção de valores de uma dada sociedade ocorreria mediante formas pensar uma educação que garanta um desenvolvimento do indivíduo. Contudo, Durkheim
institucionalizadas de ensino que desenvolvessem nas crianças e jovens caminhos que os compreende a educação como uma
conduzissem à socialização almejada pela sociedade vigente.

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Ação exercida nas crianças pelos pais e professores. Esta ação é constante e adolescentes. É a esta relação que Durkheim denomina como educação. Mediante esse
geral. Não há nenhum período na vida social e nem mesmo, por assim dizer,
nenhum momento do dia em que as novas gerações não estejam em contato processo educativo, o indivíduo passa a internalizar normas sociais, adquirindo
com os mais velhos e, por conseguinte, não recebam a influência educadora
destes últimos. Isto porque esta influência não é sentida somente nos instantes concepções de moralidade, ética e identidade social, compreendendo seu papel, enquanto
bastante curtos em que os pais ou professores compartilham, de modo
consciente e através de um ensino propriamente dito, os resultados de suas ser social.
experiências com aqueles que nasceram depois deles. Existe uma educação
inconsciente e incessante. Através do nosso exemplo, das palavras que Teoria de Émile Durkheim
dizemos e dos atos que executamos, fabricamos a alma dos nossos filhos de
modo constante (DURKHEIM, 2013, p.75). Ao analisar a teoria de Durkheim sobre a educação, Setton (2005) destaca que um
Nesse sentido, a educação consiste em fazer com que os indivíduos sigam uma de seus pressupostos básicos era crer em um aperfeiçoamento da humanidade, em que
disciplina, normas, padrões que são estabelecidos, formando os indivíduos, e tornando- consequentemente todos os seres estavam pré-dispostos a evoluírem em diversas esferas
os cientes das normas que devem orientar a conduta de cada um. Dessa forma, Lucena de atuação, como no meio político, econômico, científico, dentre outros. Nessa
(2010) nos ajuda a compreender que a educação busca criar no homem um ser novo. No perspectiva, Durkheim (2013) assevera que
entanto, ao elucidar os aspectos que constituem um ser social, Severino (2012) enfatiza Para definir a educação é necessário considerar os sistemas educativos que
existem ou existiram, aproximá-los, destrinchar as características que lhes são
que comuns. O conjunto dessas características constituirá a definição que
procuramos. Determinamos já, de passagem, dois elementos. Para que haja
O ser humano se instaura no agir que desenvolve como sujeito social. Daí o educação, é necessário termos em presença uma geração de adultos e uma
mote contemporâneo de que o homem é aquilo que ele mesmo se faz; seu ser geração de jovens, e uma ação exercida pelos primeiros sobre os segundos.
é seu devir histórico; cuja consistência se dá pelo conjunto de seu agir ao longo Resta-nos definir a natureza desta ação. Não há sociedade onde o sistema
do tempo e no espaço social. A ação circunscreve e determina o que o homem educativo não apresente um duplo aspecto: é, ao mesmo tempo, uno e múltiplo
é, e aquilo em que ele vai tornando (SEVERINO, 2012, p.68). (DURKHEIM, 2003, p.49).

Para Durkheim, o processo de socialização ocorre ao longo de toda a vida de cada Ao mesmo tempo, afirma Plaisance (2004) que, em sua teoria, Durkheim também
indivíduo, sendo que sua personalidade também passa a ser condizente com a sociedade ressaltava que a vida em sociedade não se resumia a um mero somatório de indivíduos;
em que vive, e ainda destaca que há diferentes níveis de desenvolvimento e valores na verdade, esse processo se dava em âmbito de complexidade. Nessa conjuntura, se
culturais implicados em cada sociedade, sendo, portanto, impossível que uma educação afirmava o método positivo, que contribuiu de modo eficaz para a própria construção dos
universalizada se torne eficiente, pois ela é aplicável somente à realidade pela qual foi saberes das Ciências Sociais através da observação, indução e experimentação,
criada. instaurando uma nova forma de se observar a sociedade por meio das inter-relações entre
É assim que em Educação e Sociologia o autor afirma que a influência das coisas os fenômenos sociais.
sobre os homens é muito grande, além de ressaltar que a ação dos membros de uma É nessa perspectiva que Galter e Manchope (2003) expõem que Durkheim, ao
geração sobre os outros, difere da que os adultos exercem sobre as crianças e os considerar o ambiente conturbado em que vivia, passou a analisar a ordem social,

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encontrando como centro de seu estudo a moral fragilizada da sociedade como autorregulador que, por ser específico, demanda um sistema de educação de igual teor
responsável por todas as mazelas daquele tempo. Ao considerar essa base, passou, então, singular.
a formular novas concepções que viessem a apontar novos caminhos, pois compreendia Assim, para Davies (1996), Durkheim propõe que, para que se entenda qual a
que uma sociedade com valores morais enrijecidos poderia enfrentar crises político- forma de educação possa vir a ser condizente com dada sociedade, é preciso que se analise
econômicas com maior facilidade. sua demanda, bem como a construção de um comparativo entre adultos e crianças,
Para Durkheim, afirma Setton (2005), a própria essência de cada indivíduo se definindo quais mecanismos são utilizados para que se proponha uma dada situação de
traduz em um movimento contínuo, mutável e, ao refletir sobre tal afirmação, ressalta que diferenciação e níveis de submissão.
não há uma educação ideal que se encaixe a todos os homens, ao contrário, analisando a A educação das crianças estaria, assim, pautada em padrões exigidos pela
história da humanidade, propõe a destruição da proposição de uma educação universal. sociedade em que vivem, regidas por níveis de desenvolvimento intelectual e físico que
Pode-se, então, compreender, segundo Lucena (2010), que se tornam indispensáveis para uma relação saudável. Em consonância com esta
abordagem, Galter e Manchope (2003) explanam o caráter da diferenciação de Durkheim
Durkheim entende que o indivíduo nasce da sociedade, e não a sociedade nasce
do indivíduo. O primado da sociedade sobre o indivíduo tem pelo menos dois quanto à própria consciência dos indivíduos, como sendo:
sentidos, que no fundo nada tem de paradoxal. O primeiro é o da prioridade
histórica das sociedades em que os indivíduos se assemelham uns aos outros e constituído de todos os estados mentais que não se relacionam senão conosco
estão, por assim dizer, perdidos do todo, com relação àquelas sociedades cujos mesmo e com os acontecimentos de nossa vida pessoal; aquele que poderia se
membros adquiriram ao mesmo tempo consciência da sua responsabilidade e chamar de ser individual. O outro, um sistema de ideias, sentimentos e hábitos,
da capacidade que têm de exprimi-la. O segundo, baseado numa prioridade que exprimem em nós, não a nossa individualidade, mas o grupo ou os grupos
diferentes de que fazemos parte; tais são as crenças religiosas e as práticas
lógica de explicação dos fenômenos sociais. Se a solidariedade mecânica
morais, as tradições nacionais ou profissionais, as opiniões coletivas de toda
precedeu a solidariedade orgânica, não se pode, com efeito, explicar os
espécie. Seu conjunto forma o ser social. Aí melhor se revela a importância e
fenômenos da diferenciação social e da solidariedade orgânica a partir dos
a fecundidade do trabalho educativo. Seu fim, portanto, é organizar e constituir
indivíduos. A consciência da individualidade não pode existir antes da
solidariedade orgânica e da divisão do trabalho. A busca racional do aumento o ser social em cada um de nós (GALTER E MANCHOPE, 2003, p.7).
da produção não pode explicar a diferenciação social, pois está pressupõe tal
diferenciação social (LUCENA, 2010, p.10). A análise expressa na citação acima em reforçar que para Durkheim, a
compreensão da complexidade da educação se eleva a níveis ainda maiores, ao considerar
Com base e em consonância com Durkheim, Galter e Manchope (2003) ressaltam
que os sistemas educativos de dada sociedade são múltiplos, na mesma medida em que
que um sistema de educação universal não pode ser replicado em quaisquer locais, pois
seus meios se diversificam, constatando assim uma diversidade de abordagens
há de se considerar que não somente as diferenças culturais causam impactos em uma
pedagógicas em cada sociedade. E, no cerne de cada uma delas, são criados ideais que
sociedade e suas relações, como o próprio nível de desenvolvimento pelo qual
dizem respeito a esferas intelectuais, morais e físicas, concebendo que cada sociedade
desempenham e a especificidade de cada sociedade lhe assegura um caráter
denota um ideal particular.

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Isso permite-nos compreender que a sociedade, na medida de seu Além disso, segundo Davies (1996), a abordagem de Durkheim se estende ainda
desenvolvimento, passou a criar valores como honra, cientificidade, moralidade, culto a a considerar que a moralidade é moldável conforme a sociedade em que se insere,
divindades, dentre outros, mas o desenvolvimento do ser social em si, não é inato; a expressada mediante fórmulas únicas de coletividade; a moralidade estaria assim, presa a
sociedade cria, assim, meios para o domínio de determinados dilemas e ao mesmo tempo conjuntos particulares de consciências permeadas pelo objetivo a que se destina e o nível
a ordem para a subordinação a determinados fins. de crença e comprometimento de dado povo na análise de tais condutas.
Nesse contexto, entende-se que a educação cumpre um importante papel no
A relação indivíduo e sociedade
desenvolvimento ou mesmo na própria construção de um caminho totalmente novo para
A visão dicotômica entre indivíduo e sociedade é fundamental nas Ciências
uma sociedade, pois, ao compreender que o cumprimento de normas está diretamente
Sociais, e é de onde a Sociologia se desenvolve e se concretiza como ciência, ou seja,
ligado a um sentimento de pertença tendo como centro as disciplinas interna e externa, na
tenta explicar a realidade, dedicando-se sistematicamente ao comportamento social dos
medida em que surgem novas gerações, torna-se imprescindível a formação da
grupos e as interações humanas. Para Durkheim (2013), essa relação está pautada na
consciência de cada novo indivíduo, agregando valores pertinentes à dada realidade.
inseparabilidade indivíduo e sociedade, pois :
Durkheim credita à educação a função de formação dos seres sociais, homem e
em cada um de nós, pode-se dizer, existem dois seres que, embora sejam
inseparáveis – a não ser por abstração –, não deixam de ser distintos. Um é sociedade, as quais possuem uma relação de interdependência. Nesta compreensão,
composto de todos os estados mentais que dizem respeito apenas a nós mesmos
e aos acontecimentos de nossa vida pessoal: é o que se poderia chamar de ser Galter e Manchope (2003) afirmam que a sociedade é posta tal como uma tábula rasa e
individual. O outro é um sistema de ideias, sentimentos e hábitos que
exprimem em nós não a nossa personalidade, mas sim o grupo ou os grupos
no surgimento de cada nova geração passa-se a perceber a necessidade de que se instruam
diferentes dos quais fazemos parte; tais como as crenças religiosas, as crenças seus indivíduos a aprimorar suas concepções até então imersas em um campo natural,
e práticas morais, as tradições nacionais ou profissionais e as opiniões coletivas
de todo tipo. Este conjunto forma o ser social. Constituir este ser em cada um de primitivo, que deixa de ser social e passa a compreender relações da vida social e moral.
nós é o objetivo da educação (DURKHEIM, 2013, p.54).
Nesta concepção, Setton (2005) reforça a influência do meio social no individual:
Nessa perspectiva, Galter e Manchope (2003) comentam que a moral é algo que, O agente social para Durkheim é visto como um organismo em que os instintos
segundo a análise de Durkheim, denota os meios para orientar os indivíduos a comportar e os desejos infinitos devem deixar de ser regulados naturalmente. Uma
educação normativa e moral deveria assentar a unidade entre indivíduo e
em diversas ocasiões. Dessa forma, a moral é concebida como um cumprimento de sociedade, ambos concebidos como duas faces de uma mesma realidade. Mais
do que isso, o sucesso desse processo educacional seria caracterizado pela
normas, a obrigação por respeitar leis vigentes, de modo a conduzir o pensamento de cada construção de um ser social totalmente identificado com os valores societários.
Nesse sentido, existiria uma total correspondência entre ator e sistema social
indivíduo a uma finalidade que ultrapassa sua natureza individual e se direciona ao campo (SETTON, 2005, p.338).
social, o pensamento e a realização de ações voltadas ao grupo, ou seja, os indivíduos
experimentam o prazer de agir, mediados por aquilo que é socialmente difundido, aceito
e então cumprido por meio da razão.

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Para Setton (2005) a interiorização de comportamento social não ocorre de forma Dos muitos aspectos que compõem a abordagem sociológica de Émile
Durkheim relativas à educação, o que mais se destaca é a consideração
impositiva; na verdade, compreende que esta é mais uma fase para que se alcance a obrigatória de uma relação estreita entre as determinações individuais e as
construções sociais, donde resulta, antes de tudo, uma clara ascendência dos
liberdade dos indivíduos, exercendo ainda, influência direta na vida de cada um deles. aspectos sociais sobre os individuais, ou seja, a um desenvolvimento
(GALTER E MANCHOPE, 2003, p.9).
Para Durkheim, tal campo de influências também se diferencia ao se compreender
as instituições responsáveis por seu processo de desenvolvimento, sendo a família Ao estender a compreensão do campo da moral e da ética, refletindo em caminho
responsável por ensinamentos do campo privado e doméstico, ou seja, meios similar ao exposto por Galter e Manchope (2003), Setton (2005) ressalta que, na
interiorizados, enquanto que a escola, em um âmbito complementar e, muitas vezes em compreensão de Durkheim, a escola se torna a grande ferramenta para a formação de
uma esfera amplificada, tem a responsabilidade de desenvolver a maturidade moral e ética consciências e personalidades. A concepção de Durkheim sobre a educação se tornou um
dos indivíduos, tornando-os comprometidos com a vivência em sociedade. meio de tamanha importância que se difundiu dentre vários sociólogos:

Educação: o caminho para o desenvolvimento A repercussão das proposições socializadoras de Durkheim pode ser observada
nas contribuições de outros sociólogos que se debruçaram sobre o mesmo
Conforme aponta Lopes (2007), a sociologia estruturalista e sistêmica de tema. É possível identificar que grande parte das abordagens culturais e
funcionalistas da socialização acentuam essa característica essencial á
Durkheim, conhecidamente pautada no fato social, aborda a educação inspirada na formação dos indivíduos, pois a entendem como a incorporação das maneiras
de ser de um grupo, uma visão de mundo e uma relação como futuro, em outras
própria sociologia geral. Analisa que se estabelece uma relação de mútua influência entre palavras, a interiorização incondicional de valores, normas e disposições
sociais que fazem do indivíduo um ser socialmente identificável (SETTON,
a sociedade e a educação, sendo que a sociedade se utiliza da educação para a promoção 2005, p.39).
de valores e comprometimento com a vida social, enquanto a educação exprime as
Plaisance (2004) destaca que Durkheim também trouxe diversos apontamentos no
particularidades da sociedade em que se centra, e passa a perpetuar suas concepções do
sentido de distinguir as funções da família e da escola no processo de socialização. Estas
bem coletivo.
esferas, por muitas vezes, podem apresentar situações heterogêneas e, consequentemente,
Durkheim compreende que à educação não interessa a desnaturalização dos
conflitantes, pois além de se centrarem nas formas como o indivíduo possa vir a
sujeitos, mas na verdade lhes fornece ferramentas para que se tornem humanos em
interiorizar sua adaptação, também estabelecem um contexto social específico que,
plenitude, com consciência e o mais alto aprimoramento. Mas ao mesmo tempo cabe a
igualmente deve ser analisado, para que seja garantido seu pleno desenvolvimento.
cada um o esforço necessário para que alcance dado patamar de desenvolvimento. A
Plaisance (2004) relata ainda que, para Durkheim, a sobrevivência de uma
educação somente como é posta, sem que haja o devido engajamento, não conseguiria
sociedade se pauta em sua homogeneidade, suas condições de existência e esferas de
por si só transformar uma sociedade. Neste ponto, Galter e Manchope (2003) salientam
valores, representações, atitudes e normas, que necessitam renovar-se continuamente e,
que

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na base desta questão, o autor direciona novamente a educação como ferramenta que visa Segundo Davies (1996), na visão de Durkheim, a educação é uma estrutura
assegurar tais objetivos. moralizante a serviço da sociedade, e deve, sobretudo, ser distanciada de qualquer
Davies (1996) reforça a distinção proposta anteriormente, ao enfatizar que a conduta de parâmetro religioso, pois para ele, somente a moral laica pode proporcionar
análise de Durkheim se pauta de modo abstrato, sendo que o ser individual está voltado ao homem a qualidade exata de formação civilizadora por se pautar sumariamente na
ao âmbito interno de cada indivíduo, considerando estados mentais, emocionais, dentre razão.
outros, enquanto que o ser social está voltado para os hábitos que denotam o grupo pelo
Descompassos atuais
qual cada sujeito se identifica e gera a relação de pertença, tendo por fim a necessidade
Ao trazer essa literatura clássica para os dias atuais, pode-se perceber o quanto a
de que todo ser individual venha a se tornar também um ser social.
educação tem um papel importante para a sociedade, e como ambas se intercruzam. A
Ainda para Davies (1996), Durkheim também aborda o papel do professor que,
respeito disso, Durkheim (2013) enaltece que:
sobretudo, deve ser capaz de acreditar na importância de suas atividades, na grandeza de
ser um educador, pois estando ele no lugar de direcionamento da moralidade, torna-se o sejam os fins que ela [a educação] busca ou os meios que ela emprega, são
sempre necessidades sociais que ela satisfaz e ideias e sentimentos coletivos
próprio porta-voz dos ensinamentos e valores de sua sociedade. que ela expressa. Sem dúvida, o próprio indivíduo sai ganhando com este
mecanismo. Nós já não admitimos claramente que aquilo que temos de melhor
Plaisance (2004) ressalta que além do importante papel que o educador cumpre,
é devido à educação? E aquilo que temos de melhor é de origem social
cabe também a ele a responsabilidade e a capacidade de compreender a singularidade (DURKHEIM, 2013, p.118).

presente em cada criança e traçar meios para favorecer seu desenvolvimento. Ao considerar os frutos das contribuições de Durkheim para a própria
Na concepção de Plaisance (2004), há diferentes níveis de desenvolvimento das fundamentação da Sociologia enquanto ciência, Lopes (2007) aponta que se pode
sociedades; da mesma forma, cada um dos indivíduos que nela está inserido possuem perceber que diversos apontamentos seguem norteando grandes pensadores em diversas
capacidades diferentes de desenvolvimento em diversas esferas ; educador deve então, localidades.
estar apto a reconhecer dificuldades de aprendizagem, dentre outros fatores, que poderiam Segundo Lopes (2007), até meados da década de 60, as instituições familiares e
vir a comprometer o desempenho de cada aluno, evitando assim percentuais negativos de escolares eram tidas em âmbitos separados e, por vezes, compreendidas como cada uma
falhas no processo educativo. ocupando uma função em particular, cumprindo assim, funções complementares.
Lopes (2007) reflete que o educador passa a ser incumbido da responsabilidade Nesse sentido, para Galter e Manchope (2003), à família caberia o papel da
de propiciar a cada criança a conduta pautada na cidadania, que, como apontado por afetividade, a responsabilidade pela transmissão de valores tradicionais do privado, o
Durkheim, deve ser permeada por rígido acompanhamento, ao demonstrar patrimônio e a herança cultural do mais íntimo elemento de suas relações.
comportamentos e atitudes inaptas ao convívio social, utilizando assim a disciplina.

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Já à escola, comentam Galter e Manchope (2003), se situam todas as relações ações de ambos se tornam superficiais e novos padrões de relações sociais começam a ser
externas que tangem não somente ao saber científico mas a própria conduta em sociedade, desenvolvidos.
no que diz respeito à civilidade, formação profissional e reflexões éticas e de moralidade Afirma Lopes (2007) que nesta nova conjuntura social, há um maior
que acabam por transmitir a ela o fato de assumir maior responsabilidade do que a própria distanciamento no âmbito das relações, que se traduzem na formação acentuada de grupos
família no amadurecimento e desenvolvimento de capacidades de crianças e jovens. que, no entanto, são cada vez menores em quantidade de membros, refletindo também
Conforme Setton (2005), em uma proposta atual que pode também ser observada um grau elevado de dificuldade de aproximação e construção de laços afetivos.
no Brasil, passa a surgir uma cultura de massa voltada para a difusão de propostas de Ainda Lopes (2007) pontua que havendo novas formas de atuação para promover
socialização que desfazem o distanciamento entre escola e família, assumindo ambas as maior sentimento de pertença por parte da família e da escola, a construção de uma
instituições a responsabilidade pedagógica, na medida em que os próprios sujeitos sociedade civilizada se enaltece, pois, precavidos contra a rigidez ou sistemas que
também passam a assumir maiores responsabilidades na construção de suas identidades, moldam personalidades, os jovens dos tempos atuais acabam por se desinteressar por
tanto no campo individual como social. meios que não condizem com as propostas que anseiam em campos de diversidade e
Para Setton (2005), há a necessidade de uma revisão de propostas, sendo, portanto, busca contínua por autonomia.
observada uma pluralidade de projetos educativos que se tornam de suma importância Para Lucena (2010), a educação assegura a diversidade, permitindo
para atender a especificidades postas pelo próprio Durkheim, ao constatar níveis de especializações. A especialização do trabalho provoca nas crianças sobre um primeiro
desenvolvimento singulares de cada indivíduo. fundo de ideias e de sentimentos comuns. Com efeito, a educação é para a sociedade o
A questão que Lopes (2007) coloca neste âmbito seria relacionada às implicações meio pela qual ela prepara, no íntimo das crianças, as condições essenciais da própria
que os novos rumos desta cultura ainda pouco conhecida possa vir a desencadear, pois os existência. Se a sociedade não estiver sempre presente e vigilante, para obrigar a ação
próprios meios de socialização passam também a ser revistos, ou seja, não cabe somente pedagógica a exercer-se em sentido social, essa se porá a serviço de interesses particulares
à escola ou á família a transmissão de informações. Em tempos atuais, a Internet, e a grande alma da pátria se dividirá, esfacelando-se numa multidão incoerente de
preponderante e altamente acessível, condensa aprendizados formais e informais e a pequenas almas fragmentárias, em conflito umas com as outras.
própria percepção que os indivíduos têm de mundo sofre com a ausência de clareza. É assim que Durkheim afirma que é preciso que a educação assegure uma
comunidade de ideias e sentimentos, sem a qual nenhuma sociedade sobrevive.
Ao mesmo passo, para Galter e Manchope (2003), a notada disciplina proposta Com efeito, admitindo que a educação seja função social, não pode os Estado dela
se desinteressar. Tudo o que é educação deve ser submetido a sua influência. Isto
por Durkheim como base para a formação socializadora não consegue refletir tamanha não quer dizer que o Estado deva monopolizar o ensino. O fato de deixar abrir
escolas que não sejam as suas, não se segue o fato de que deva tornar-se estranho
imponência em tempos atuais, pois com famílias e sistemas educacionais fragilizados, ao que nelas venha a passar. A educação privada deve estar sob seu juízo e
fiscalização (LUCENA, 2010, p.306).
passa a se perceber a difusão de valores e condutas heterogêneos; como consequência, as

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A educação, entende Durkheim, é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as aprimoramento contínuo, pela busca de conhecimento e ampliação de visão de mundo que,
gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social, tendo por objetivo muitas vezes, é influenciada por meios externos à escola ou à família.
suscitar e desenvolver a capacidade da criança. Informações difusas e desenvolvimento heterogêneo têm se tornado a grande
marca da sociedade atual: são as experiências individuais que assumem dada
Considerações finais
complexidade em alguns pontos, mas que, paradigmaticamente em outros, se tornam
Os postulados de Durkheim têm sua atualidade e importância no sentido de
superficiais, vindo a conduzir repertórios que fogem até mesmo do controle familiar.
compreender a organização e o argumento da centralidade que constitui a escola na
Uma nova maneira de ver o mundo deve, assim, ser posta enaltecendo a
atualidade. Na compreensão da relação mútua entre escola e sociedade que se
individualidade, a criatividade e a construção de valores. Nota-se que ocorre nesse
complementam e servem, portanto, para a formação da civilidade e das condutas de
processo a gradativa queda dos valores do ser social frente ao ser individual. E a escola e
moralidade, ética e potencialidades profissionais.
a família, permanecendo como instituições cristalizadas que visam punir a formação de
Nesse ínterim, ressalta-se que essa análise sobre a contribuição para o
subjetividades, passam a resultar assim em acúmulos de fracassos.
desenvolvimento da sociedade pautado em uma escola moderna, ganha destaque ao
Observa-se a necessidade de que se estabeleçam meios para que se alcance uma
elucidar o sociólogo Durkheim, pois este foi um teórico que despertou interesse em busca
harmonia entre a condução da permanência da moral social e de valores éticos para que
de uma educação, ao seu modo de ver, de qualidade e organização. Sendo assim, através
não sejam desenvolvidas formas de puro egocentrismo, aliadas ao reconhecimento e
deste artigo se compreende a teoria de Durkheim, a relação entre indivíduo e sociedade,
incentivo ao desenvolvimento de subjetividades não egocêntricas, criatividade, dentre
uma nova interpretação da moral social e os caminhos atuais de uma teoria que se faz tão
outros valores culturais.
presente em pleno século XXI.
Em suma, é preciso que o sistema educacional permaneça sendo o centro de uma
A rigidez proposta em tempos anteriores, pautada na disciplina, já não consegue
educação socializadora como em grande parte do que é proposto por Durkheim, no que
abarcar os parâmetros de condutas pelos quais os meios de difusão de informações atuais
diz respeito a um aprimoramento contínuo da sociedade, ao reconhecimento de
incidem na vida dos jovens; no caso da internet e da televisão, torna-se notório o
singularidades e á maior busca por conhecimento; apesar disso, condutas altamente
descompasso e, por consequência, o distanciamento entre os agentes tradicionais e os
reguladoras já não se tornam caminhos para o desenvolvimento da consciência coletiva.
modelos de referências que vêm sendo reproduzidos na atualidade.
Torna-se imprescindível que tanto a escola quanto a família possam revelar-se como
A singularidade trazida por Durkheim ganha ainda mais força, pois se torna
totalidades humanas que venham a desenvolver propostas qualitativas, que abordem a
imprescindível que os educadores reconheçam a avidez de seus alunos por terem suas
harmonia racional e efetiva, para a promoção contínua de autonomia e de uma sociedade
singularidades reconhecidas e, ao mesmo passo, reconhecer a igual necessidade por
justa.

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Destarte, percebe-se que Durkheim não usou a educação como forma de instituir
Sobre os autores
um novo modelo de sociedade, mas problematizou de forma coerente a estrutura e o
funcionamento da sociedade. É onde fica nítido que ele faz uma perene leitura de mundo, Igor Gonzaga Lopes
Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Goiás. E-mail:
pois consegue fazer uma leitura de mundo que perpassa um século. Hoje ainda nos
igorgonzaga1@hotmail.com
deparamos com tais questionamentos.
Jéssica Abadia Ferreira
Mestranda em História pela Universidade Federal de Goiás.
Referências
Elisângela Gregório de Sousa
DAVIES, Brian. Bernstein, Durkheim e a sociologia da educação na Inglaterra. Mestranda em Biologia pelo Instituto Federal - Campus de Urutaí
Cadernos de Pesquisa, n.120. Nova Jersey, 1996.
Recebido em: 25/04/2017
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Lisboa, Portugal: Edições 70 Ltda., 2013.
Tradução: Nuno Garcia Lopes. Aceito para publicação em: 12/05/2017

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sociológico de Max Weber e a Educação. sociológico de Max Weber e a Educação.
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O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO DE MAX WEBER E A EDUCAÇÃO

José Augusto Medeiros Silva1


Wellington Lima Amorim2 1. O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO DE MAX WEBER

A Sociologia de Max Weber, não concebe a sociedade como tão-somente


Resumo: O presente trabalho se propõe apresentar uma revisão bibliográfica
sucinta sobre o pensamento sociológico de Max Weber, focando suas concepções “coisa” superficial, que impõe compulsoriamente a maneira de agir das pessoas,
sobre “ação social”, sua sociologia “compreensiva”, as relações do sujeito com a mas sim, a soma de suas relações interpessoais. Discorda que fatos sociais sejam
comunidade/ Sociedade, os diversos tipos de educação, suas finalidades e sua
influência no processo de ascensão social. uma coisa em si, ou melhor, ele defende que os mesmos, podem ser vistos de
maneiras diferentes, dependendo do olhar de cada indivíduo tem sobre eles.
Palavras-chave: Max Weber. Sociologia. Educação. Segundo ele, os valores são socializados e internalizados de formas diferentes,
dependendo da relação do indivíduo com o meio social.
Abstract: This paper intends to present a concise approach on the sociological
thought of Max Weber, focusing on his views on "social action", his sociology A realidade na concepção de Weber é “o encontro entre homens e os
"comprehensive", the relations of the subject community, in society, the types of valores aos quais eles se vinculam e os quais se articulam de modos distintos no
education , its purposes and its influence in the process of social ascent.
plano subjetivo”. A Sociologia weberiana baseia-se na concepção de “ação social” e
Key-words: Max Weber, Sociology, Education no postulado de que a sociologia é uma “ciência compreensiva”. Weber, não trabalha
com fato social, mas com categoria social (ação) com a origem no indivíduo e afirma
INTRODUÇÃO
que toda ação social do indivíduo tem como princípio a liberdade. A ação social, se
constitui o marco inicial para a definição da sociologia compreensiva de Weber, que
Max Weber, expressa seu pensamento sociológico a partir das relações do
para ele, “ocorre quando um indivíduo leva os outros em consideração no momento
indivíduo com o meio social, destacando que para ele a sociedade não se constitui
de tomar uma atitude, de praticar uma ação”. Rodrigues (Apud. Weber (1913),
em apenas “coisa”, ou um mecanismo, mas que fundamenta-se na concepção de
define:
“ação social”, e ainda, na crença de que a sociologia é uma “ciência compreensiva”.
Ele aponta que a Educação é o elemento essencial na formação intelectual e dos Por “ação” (incluindo a omissão e a tolerância) entendemos sempre um
comportamento compreensível com relação a “objetos”, isto é, um
indivíduos, com destaque para os aspectos religiososos, familiares, e a Educação comportamento especificado ou caracterizado por um sentido (subjetivo)
política especializada. Para isto, no primeiro capítulo iremos analisar brevemente o “real” ou “mental”, mesmo que ele não seja quase percebido. [...] A ação que
especificamente tem importância para a sociologia compreensiva é, em
pensamento sociológico de Max Weber, para em seguida verificar as implicações de particular, um comportamento que: 1. está relacionado ao sentido subjetivo
pensando daquele que age com referência ao comportamento dos outros; 2.
suas análises na Educação. Está codeterminado no seu decurso por esta referência significativa e,
portanto, 3. Pode ser explicado pela compreensão a partir deste sentido
mental (subjetivo). (WEBER, 1913 apud RODRIGUES, 2001, 54).

Segundo Rodrigues (2001), Quando nossa ação é pautada na racionalidade,


naturalmente esperamos que os outros também procedam da mesma forma, para

1 Mestrando em Educação – UFMA - E-mail: augustosm28@hotmail.com podermos avaliar nossas possibilidades de conduzirmos nossos objetivos até o fim:
2 Dr. em Ciências Humanas – UFSC – E-mail: wellington.amorim@gmail.com
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O agir em comunidade também pode se fundamentar na expectativa de que


os outros dêem determinado peso a certos valores e crenças, ou então na
expectativa de que os outros se comportem de um modo regular, na média
dos comportamentos geralmente usados para aquela situação. Ou, ainda, É através dos passos metodológicos expressos que a “ação social” racional
de que se comportem de modo emotivo, irracional. (RODRIGUES, 2001, relacionada aos fins é utilizada. Isto ocorre, para que se possa avaliar sua
58).
abrangência prática, em comparação aos fins propostos por quem pratica a ação.
No entanto, agir em sociedade é diferentemente do agir em comunidade. A
ação social é um conceito mais bem definido. E o agir em comunidade são as
2. WEBER E A EDUCAÇÃO
expectativas que se fundamentam nas normas sociais em vigor. Portanto, segundo o
autor, a ação social racional constituinte da relação fins/comportamento – “é aquela
As reflexões de Weber sobre a educação pode ser compreendida no âmbito
que se orienta por meios tidos como adequados (subjetivamente) para obter fins
de sua Sociologia Política e de sua Sociologia da Religião e que influenciaram
determinados, fins estes tidos como indiscutíveis pelo indivíduo (subjetivamente)”.
decididamente no modo de vida das pessoas. A Educação é, segundo Weber, o
As ações subjetivas podem ser das seguintes formas:
instrumento que propicia ao homem a preparação necessária para o exercício de
a. Ação racional que refere-se aos fins (é a ação praticada como
atividades funcionais adequadas às exigência das mudanças ocasionadas pela
investimento com o objetivo de obter ganhos);
racionalização que o homem irá se deparar socialmente.
b. Ação em função de valores (questão de ordem, de valor, orienta-se
O fundamento da racionalidade, da submissão à lei, e da preparação de
pelos valores familiares ou pelo modo como os incorporamos à nossa
indivíduos para gerenciar as atividades burocráticas do estado foi lentamente se
hierarquia de valores);
difundindo. Na constituição do Estado e do capitalismo moderno, esses elementos
c. Ação tradicional relacionada aos atos rotineiros (é a ação praticada
são indissociáveis. Por isso Weber enfatiza dois aspectos: o primeiro, a constituição
cotidianamente);
pautada no Direito Racional (um dos sustentáculos do processo de racionalização da
d) Ação afetiva (tipo de comportamento no qual somos irracionais). Nesta
vida), e o segundo, a constituição da Administração Racional (embasada no modelo
ação não consideramos os fins pretendidos, nem tão pouco procuramos
burocrático).
métodos mais adequados para tal fim. (RODRIGUES, 2001, 58). Logo,
A Educação, para Weber, na medida em que a sociedade se racionaliza
Weber (1913, apud RODRIGUES, 2001, 56), sistematiza um dos mais
historicamente, não é mais, a preparação para que o indivíduo compreenda seu
importantes métodos de investigação das Ciências Sociais:
papel no conjunto harmônico do contexto social. E nem é vista como meio de
libertação. Torna-se o meio determinante de estratificação social, uma forma distinta
“1. Construa um tipo ideal “puro” (Weber construía inúmeras formas de ação
social, de dominação política etc). O tipo é uma construção mental feita na onde busca-se obter privilégios sociais.
mente do investigador, a partir da vários exemplos históricos. Ele é um
exagero de perfeição que nunca será achado na prática; A Educação sistemática, na análise de Weber, tornou-se um “conjunto” de
2. Olhe o mundo social que o cerca, esta teia inesgotável de eventos e
processos, e selecione dele o aspecto a ser investigado (não dá prá ser conteúdos e regras direcionadas para a qualificação de pessoas que
tudo, tem que ser uma coisa de cada vez); demonstrassem reais possibilidades de gerenciar o Estado, as empresas e a
3. Comparar o mundo social empírico com o tipo “ideal” que você construiu
Mas note bem: ideal aqui não significa “desejado”, não significa “idealizado”, política, de maneira “Racional”. Um dos pressupostos básicos na formação do
como por exemplo idealizar o que seria uma “sociedade perfeita”.
4. À medida que você descreve o quanto a realidade se aproxima ou se Estado moderno é a constituição de uma administração burocrática racional. Esse
distancia do tipo “puro” que você construiu, essa realidade se apresenta a
você, se revela em seu caráter mais complexo; os comportamentos vêm à “processo” só ocorreu na sua totalidade no Ocidente, com a substituição gradual de
luz revelando a racionalidade e a irracionalidade que os tornou
possíveis”. (WEBER, 1913, apud RODRIGUES, 2001, 56).
3 4
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trabalhadores sem qualificação, por trabalhadores qualificados, e com orientação 3. Transmitir conhecimento especializado (pedagogia do treinamento: que
política fundamentada em normas racionais. ocorre com a racionalização da vida social, o aumento do processo de
O Oriente, segundo Weber, surge como modelo da Administração irracional, burocratização do aparelho estatal, dominação política e do
pois esteve baseada na concepção de que a conduta moral do Imperador, dos corporativismo capitalista privado. Neste processo, a educação deixa
funcionários, bem como, das competências e habilidades adquiridas por seus gradualmente de ter como objetivo a formação do homem para o exercício
conhecimentos superiores em literatura, bastariam para governar. De acordo Weber da cidadania no contexto social mas para formar o especialista funcional
(1982), a racionalização e a burocratização mudaram o jeito de educar, ou melhor, que o capital precisa). (WEBER, 1982, p.482).
mudou a posição social de vários indivíduos, o reconhecimento e o acesso aos bens Weber constatou que, a preferência de utilização do tipo de Educação pelas
materiais. Educar na forma da racionalização tornou-se essencial para o Estado que diversas organizações políticas, variava de acordo com a época. Os tipos de
necessita se respaldar no Direito nacional e na burocracia, para que a empresa Educação mencionados pelo autor expõe as desigualdades peculiares às
capitalista, que se fundamenta no lucro, e na relação custo/benefício, necessita para sociedades capitalistas a partir da coexistência da educação racional-legal, da
alcançar este fim, de profissionais especializados. Rodrigues (2001), define: Educação carismática e da Educação que visa à formação do homem culto.
Segundo Weber (1982), a discussão sobre as finalidades da Educação é relevante
Mais que profissionais da empresa ou da administração pública, o para toda a sociedade. Enfatiza que a formação do homem culto versus a formação
capitalismo e o Estado capitalista forjaram um novo homem: um homem
racional, tendencialmente livre de concepções mágicas, para o qual não do especialista é um fato real nas sociedades capitalistas, na proporção em que a
existe mais lugar reservado à obediência que não seja a obediência ao
direito racional. Para este homem, o mundo perdeu o encantamento. Não é burocratização abrange setores públicos e privados da sociedade, conferindo maior
mais o mundo do sobrenatural e dos desígnios de Deus ou dos
imperadores. É o mundo do império da lei e da razão. Educar num mundo
importância ao ensino.
assim, certamente não é o mesmo que educar antes dessa grande De acordo com Gonzalez (2000), no que se refere às finalidades da
transformação, provocada pelo advento do capitalismo moderno.
(RODRIGUES, 2001, 65-66). Educação, Weber afirmou que não pretendia criar uma tipologia sociológica dos fins
e meios pedagógicos, mas, apenas, se propunha fazer algumas considerações a
A Educação, segundo o modelo ideal weberiano, (WEBER, 1982). é respeito do tema:
socialmente conduzida a três tipos de finalidades:
Historicamente, os dois pólos opostos no campo das finalidades da
1. Despertar o carisma (não estabelece exatamente uma pedagogia, pelo educação são: despertar o carisma, isto é, qualidades heróicas e dons
mágicos, e transmitir o conhecimento especializado. O primeiro tipo
fato de não se destinar a pessoas simples, mas tão-somente àquelas com corresponde à estrutura carismática do domínio, o segundo corresponde à
estrutura (moderna) de domínio, racional e burocrático. Os dois tipos não se
capacidade de demonstrar qualidades excepcionais: características dos opõem, sem ter conexões entre si (WEBER, 1982, p.482).
heróis guerreiros da antiguidade e do mundo medieval, que eram
educados para adquirir uma “nova alma”, renascer); No sistema feudal, a classe social dominante desenvolvia um sistema

2. Preparar o aluno para uma conduta de vida (Weber chama de pedagogia educacional adequado ao seu padrão de vida social. Nesse modelo de Educação,

do cultivo, pois propõe-se a formar o homem culto, cujo ideal de cultura era valorizado os bens artísticos e culturais, dentre os quais destacam-se: a música,

seja condicionado ao meio social para o qual está sendo preparado, as artes plásticas e a literatura. A propriedade desses bens se constituía o divisor

implicando sua preparação para algumas formas de comportamento); entre a classe dominante e a dominada. Diferentemente, no sistema capitalista a
dominação tem um “caráter racional-legal” através do qual a dominação apresenta
sua força maior, verificando a necessidade de funcionários qualificados. “Toda a
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SILVA, José Augusto Medeiros. AMORIM, Wellington Lima. Estudo de Caso: O pensamento SILVA, José Augusto Medeiros. AMORIM, Wellington Lima. Estudo de Caso: O pensamento
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burocracia busca aumentar a superioridade dos que são profissionalmente Para Weber (1997), a Educação é um recurso que promove a seleção social
informados, mantendo secretos os seus conhecimentos e intenções” (WEBER, e possui fins diferentes de acordo com a forma de dominação existente numa
1997, p.269). referida sociedade. Vale ressaltar que a dominação ocorre em diferentes instituições,
Nas burocracias onde os títulos educacionais representam “prestígio social” inclusive na escola. A esse respeito, o autor esclareceu que
e são usados quase sempre como proveito econômico. “Naturalmente, essas
certidões ou diplomas fortalecem o 'elemento estamental' na posição do funcionário” O âmbito da influência com caráter de dominação sobre as relações sociais
e os fenômenos culturais é muito maior do que parece à primeira vista. Por
(WEBER,1982, p.233). Nos dias atuais, o diploma teria o valor equivalente a exemplo, é a dominação que se exerce na escola que se reflete nas formas
de linguagem oral e escrita consideradas ortodoxas. Os dialetos que
ascensão familiar no passado. A Educação se constitui exatamente um dos meios funcionam como linguagem oficial das associações políticas autocéfalas,
usados pelos indivíduos que exercem cargos hierarquicamente de maior posição portanto, de seus regentes, vieram a ser formas ortodoxas de linguagem
oral e escrita e levaram às separações „nacionais‟ (por exemplo, entre a
para propiciar crescimento e manutenção de seu status. Alemanha e a Holanda). Mas a dominação exercida pelos pais e pela escola
estende-se para muito além da influência sobre aqueles bens culturais
Em complemento aos referidos aspectos, Weber salientou que a Educação é (aparentemente apenas) formais até a formação do caráter dos jovens e
com isso dos homens (WEBER, 1997 p.172).
um importante instrumento na “seleção social” por proporcionar o sucesso do
indivíduo. Para ele, a seleção dos indivíduos, no tocante às chances de viver e de
Na citação acima, Weber, credita a instituição famíliar o importante papel no
sobreviver, existem tanto no meio “das comunidades como fora delas”. Todavia, a
processo de socialização das crianças. Em “Economia e Sociedade”, (1910/1921)
ajuda da Educação neste processo não é devidamente reconhecida por ele em
ao referir-se às formas de Educação familiar e dos direitos subjetivos, menciona a
razão de não se constituir “uma exclusividade das ações educativas”. Para Gonzalez
importância da família no processo educacional das crianças e dos jovens. Ele dá
(2000), [...] a originalidade da relação efetuada pelo autor entre Educação e seleção
ênfase ao fato de que as classes médias repudiavam o divórcio, por tributar ao
social deve-se ao fato de ele ter reconhecido que:
mesmo as dificuldades que a dissolução familiar causava à Educação de sua prole.
Para ele, o aperfeiçoamento da cultura contribuía para aumentar a responsabilidade
a) Existem relações associativas nas quais a admissão se dá em virtude de
determinadas qualificações específicas dos indivíduos, que são examinadas dos pais no tocante à proteção dos filhos. Assim, acaba por justificar a tese de que a
e precisam do consentimento dos demais membros. Esse processo seletivo
nos diversos tipos de associação, inclusive na educação; Educação não se limita à escola.
b) A obtenção de vantagens econômicas leva os indivíduos a limitá-la a um
grupo reduzido de pessoas, pois quanto mais reduzido é o grupo de
A grande contribuição de Weber está em sua abordagem, quando enfatiza
pessoas pertencentes a uma associação que lhes possibilita “legitimações” que a Educação é o instrumento necessário para um processo amplo de
e “conexões” economicamente aproveitáveis, maior é o prestígio social de
seus membros; socialização. Em Weber existe um conceito amplo de Educação que engloba: a
c) A ação social, quando assume a forma de uma relação associativa,
constitui uma “corporação”. A monopolização de uma “profissão” ocorre a educação religiosa, a educação familiar, a educação carismática, a educação
partir de um grupo de pessoas que adquire direitos plenos sobre ela. Os
referidos direitos em relação à profissão são adquiridos mediante a filosófica, a educação literária, a educação política e a educação especializada.
preparação de acordo com as normas da profissão, a comprovação da
qualificação e a prestação de determinados serviços em determinados
Scaff (1973) denomina Weber de “educador político”. Para este autor, Weber
períodos de carência; reconheceu que a escola poderia transformar o conhecimento em poder. Entretanto,
d) A educação religiosa contribui para o êxito na seleção social. Essa
interpretação de Weber pode ser ilustrada com a sua afirmação de que há que se destacar ser esse um aspecto contraditório aos pressupostos
algumas religiões, o calvinismo e pietismo, foram as produtoras da cultura
do capitalismo. (GONZALEZ, 2000, 335). epistemológicos weberianos, principalmente se for levado em consideração a
separação das esferas científicas e políticas.

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SILVA, José Augusto Medeiros. AMORIM, Wellington Lima. Estudo de Caso: O pensamento SILVA, José Augusto Medeiros. AMORIM, Wellington Lima. Estudo de Caso: O pensamento
sociológico de Max Weber e a Educação. sociológico de Max Weber e a Educação.
Revista Interdisciplinar Científica Aplicada, Blumenau, v.6, n.1, p.100-110, Tri I. 2012. Revista Interdisciplinar Científica Aplicada, Blumenau, v.6, n.1, p.100-110, Tri I. 2012.
ISSN 1980-7031 ISSN 1980-7031

Sendo assim, observa-se que contraditoriamente aos princípios os literatos. É necessário salientar que o autor analisou a Educação inclusive em
democráticos, a Educação permite a formação de uma classe privilegiada, cujos espaços formais, dos literatos chineses e de seus escritos sobre a Universidade.
membros, além das vantagens econômicas, adquirem vantagens sociais – o Nestes, expôs, seu posicionamento sobre a conduta que deveria nortear a ação do
monopólio de determinados postos hierárquicos (salário compatível com a posição docente, destacando que o espaço da Universidade, a seu ver, não se constitui local
social e não com o trabalho que se realiza). Weber previu o acirramento da apropriado para expor seus pontos de vista pessoais. Na área pedagógica, o ponto
polarização das qualificações com o desenvolvimento do capitalismo e em nenhum de vista de Weber é que o professor não deve emitir julgamentos, evitando assim,
momento emitiu julgamento a esse respeito. Isso leva a crer que, para ele, era que seus conceitos pessoais influenciem na formação dos alunos.
racional a existência de uma Educação segmentada. Segundo Rodrigues (2001), Marx via no capitalismo a escravidão do ser
Para Rodrigues (2001) Weber, no texto sobre “Os rumos da Educação”, humano por meio da alienação do trabalho, e na Educação a possibilidade de
expressa seu desconsolo, da mesma forma da “depressão intelectual” que expressa emancipação. Em Weber se observa que a pedagogia do treinamento é imposta
com relação entre a racionalização e a liberdade quando submentidos ao pleno pela racionalização da vida, com a finalidade de criar diversas possibilidades de
desenvolvimento da especialização, burocratização e a racionalização da vida. Pois, desenvolvimento de competências e habilidades, para a obtenção de poder e
segundo ele, além de minimizar uma formação humanística de caráter mais integral, dinheiro. A racionalização segundo o autor é implacável e impossível de ser vencida,
a Educação racionalizada (pedagogia do treinamento), continua a ser usada como bem como, a Educação especializada e a lógica do treinamento.
mecanismo de ascensão social e de consecução de status pessoal. CONCLUSÃO
Weber (1906), ao expressar sua desilusão sobre o capitalismo afirma que o
mesmo reduzia tudo, inclusive a Educação, à mera busca por riqueza material e O presente estudo realizou uma analise panorâmica dos principais pontos e
ascensão social. Para Gonzalez (Apud. Lerena 1983), Cultura e Educação são os principais conceitos necessários para a compreensão do pensamento sociológico
analisadas por Weber como mecanismos que contribuem para manutenção de uma de Max Weber. Ou seja, não teve a pretensão de abranger em sua totalidade todos
situação de dominação – seja mediante o costume, a dominação tradicional, o os conceitos que envolvem a Educação e pensamento weberiano. Tratou ainda,
aparato racional-legal, a dominação burocrática, ou pela influência pessoal, sobre as relações do indivíduo com o seu meio e a forma como a Educação se
dominação carismática. A educação segundo Weber, é um dos imensos campos dos processa, influenciando a ascensão social, bem como alertando sobre os diversos
processos de socialização, porém, em sua teoria sociológica existe uma conjunção dispositivos de controle social. Conclui-se assim, que a Educação pode contribuir
dos dois termos, pelo fato de não limitar a instrução dada pela instituição escolar. para o conhecimento da realidade e sua transformação, bem como, com certa
Com este olhar, Weber compreendeu a especificidade dos diferentes ressalva e pessimismo, próprio do pensamento de Weber, a possibilidade da
sistemas educacionais. Corroborou, desta forma, para substanciar as abordagens emancipação do homem como protagonista e sujeito da história.
dos sociólogos da Educação ao focar os diversos sistemas que promovem a
socialização dos indivíduos. Assim, o autor verificou como ocorre o processo REFERÊNCIAS
educativo em ambientes não formais (fora da escola), da maneira que descreveu em
relação à educação religiosa dos católicos e dos protestantes em A Ética. GONZALEZ, Wânia R. C. Educação e desencantamento do mundo:
contribuições de Max Weber para a Sociologia da Educação. 2000, 335 f. Tese
A abrangência de sua abordagem o levou a considerar como agentes
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio
educativos, além dos professores, os sacerdotes, os pais, os guerreiros, os filósofos, de Janeiro, Rio de Janeiro.

9 10
SILVA, José Augusto Medeiros. AMORIM, Wellington Lima. Estudo de Caso: O pensamento Revista HISTEDBR On-line Artigo
sociológico de Max Weber e a Educação.
Revista Interdisciplinar Científica Aplicada, Blumenau, v.6, n.1, p.100-110, Tri I. 2012.
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EDUCAÇÃO E ALIENAÇÃO EM MARX: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO-
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LERENA, Carlos. Weber y el desencanto, o la razon desactivada. In: -. Reprimir
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RODRIGUES, Alberto Tosi. Sociologia da Educação. 6. ed. Rio de Janeiro: RESUMO: A educação, em Marx, não teve um tratamento específico, devendo ser
lamparina, 2001. compreendido no conjunto de suas idéias. Pretendemos pontuar algumas questões acerca
das idéias econômicas de Marx e seus desdobramentos no campo educacional, a partir de
SCAFF, Lawrence A . Max Weber‟s politics and political education. The American dois textos principais: Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 e Crítica da Educação
Political Science, (67): 128-141, 1973. e do Ensino. A partir de uma abordagem histórica, visa discutir o conceito de alienação e
suas conseqüências no campo educacional. A idéia de alienação consiste em um mundo do
WEBER, Max. Estado Nacional y política econômica. In:______, Escritos políticos I, fetiche, do manipulado, da falsa realidade e da aparência, em contraposição ao mundo da
México: Folios, 1982. essência. Nesta relação, o processo de ensino-aprendizagem não esteve alheio.

________________. Ensaios de Sociologia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, Palavras-Chave: Capitalismo. Alienação. Educação. Economia política
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Representação Política em Weber. RIC@. Revista interdisciplinar científica METHODOLOGICAL CONTRIBUTION TO THINK EDUCATION HISTORY
aplicada, v. 2, p. 1-16, 2008.
ABSTRACT: Educational issue, in Marx, did not have a specific treatment, thus it should
CARDOSO, Mateus Ramos ; AMORIM, W. L. . A guerra dos deuses e a educação be understood in the set of its ideas. Our objective was to point out some issues referring to
contemporânea. Leonardo Pós (Santa Catarina), v. 5, p. 121-126, 2011. economic relations and their dissection in the educational field from two main writings:
Philosophical and Economical Manuscript from 1844, and Critic of Teaching and
Education. From a historical approach, this paper objective is discussing the alienation
concept and its consequences in the educational field, and approaching the role of the
teachers and students. Alienation produces a world of fetish, of the handled, a false reality
and appearance, in contrast to the world of essence. In this context, the teaching-learning
process was not absent.

Key-words: Capitalism. Alienation. Education. Political Economy

Introdução

A questão da alienação ocupou importante espaço no conjunto das idéias de Marx,


sobretudo a partir da formulação do método do materialismo histórico, ao explicitar as
transformações sociais ocorridas ao longo da história. Fruto de décadas de estudos, as
idéias de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), produziram um profundo
impacto nos mais diferentes setores da atividade humana ao longo do século XX. É certo
que ambos partiram das formulações das principais correntes de pensamento de sua época,
especialmente da economia política, a partir de Adam Smith e David Ricardo, do
socialismo utópico de Fourier, Saint Simon, Owen e Cabet, da dialética de Hegel e da
filosofia materialista de Ludwig Feuerbach.
Neste artigo objetivamos discutir a idéia de alienação a partir de dois importantes
textos: Manuscritos Econômico-Filosóficos, de 1844 e sua e Crítica da Educação e do
Ensino. Inicialmente iremos tratar sobre a formulação da idéia de alienação, questão

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aprofundada por Marx, em contraposição as teses da economia política, para então Nos manuscritos, Marx inicia seus estudos macroeconômicos de Marx, partindo da
compreender seus reflexos no campo educacional. Não pretendemos responder a todas seguinte tese: Para compreender o desenvolvimento histórico da sociedade humana, não é
estas indagações, mas, na condição de professor de História da Educação no Brasil, o Estado, como dizia Hegel, ponto de partida, mas a sociedade burguesa, a economia
buscamos referenciais na historiografia e seus reflexos na contemporaneidade, no sentido política, a ciência da sociedade burguesa. Diferente da concepção da economia política
de compreender os desafios colocados aos profissionais da área, na atualidade. clássica, o capitalismo, segundo Marx, não consiste em uma coisa, um conjunto de
máquinas, equipamentos ou terras, mas é uma relação social constituída historicamente,
Os Manuscritos e a Economia Política caracterizada pela compra e venda da força de trabalho, uma relação entre proprietários dos
Marx desenvolveu sua concepção materialista da história, afirmando que o modo meios de produção e o proprietário da força de trabalho. Nesta relação, o homem tornou-se
de produção material de uma sociedade constitui o fator determinante da organização uma mercadoria, pois “A máquina adapta-se a fraqueza do homem para fazê-lo uma
política e das representações intelectuais de uma época. Foi nos Manuscritos, que Marx fez máquina” (p.151).
suas primeiras incursões no tratamento da economia, tendo por base os termos e categorias
elaboradas pela economia política clássica, especialmente a partir de Adam Smith, como: o A questão da alienação
lucro, harmonia social, divisão do trabalho, propriedade privada, mas, com outros
propósitos. Adotando, como eixo da análise, a contradição entre propriedade privada e Marx desenvolveu sua análise sobre a dinâmica do capitalismo formulando um
trabalho, Marx conclui que a economia política toma inteiramente partido em favor da aspecto de natureza filosófica ao falar da "alienação", do "fetichismo da mercadoria" e da
propriedade privada, considerando que a idéia de trabalho, formulada pela economia "reificação". O capitalismo produz a alienação do homem afastando-se de si mesmo e dos
clássica não é o trabalho em geral, mas o trabalho alienado, isto é, o trabalho submetido ao outros homens na medida em que seu corpo, seu espírito, e seus amigos lhe são afastados.
capital, que “Instituiu uma guerra entre os homens: a guerra pela concorrência” (MARX, Durante todo o dia são trabalhadores, porém não têm clareza do que fazem ao se
1982 p.78). Concordando com Florestan Fernandes (1989, p. 119), Marx, nos manuscritos depararem com as mercadorias produzidas. As mercadorias não lhes aparecem como
“retirou o método da economia política do reino da mistificação e da fetichização” objetos feitos por eles, mas sim na forma de mercadoria, pois no mercado elas ganham
iniciando o processo da inversão da dialética hegeliana, ao desvendar as origens da vida própria, e eles, os trabalhadores, se tornam objetos que seguem as regras do mercado.
propriedade privada, do trabalho alienado, suas causas e efeitos. Se não as consumirem não existem são "excluídos do mercado".
Adam Smith (1723-1790) em A Riqueza das Nações: uma investigação sobre a
natureza e as causas da riqueza das nações (1776), descreve detalhadamente a divisão do Segundo a noção marxista de realidade concreta, a realidade das coisas não se
trabalho, considerando a cooperação, a liberdade econômica, a concorrência e a divisão do apresenta imediatamente ao homem tal qual elas são. Karel Kosik (1986), em Dialética do
trabalho, inatas no indivíduo, como molas propulsoras do progresso David Ricardo (1772- concreto, denomina este fenômeno como pseudoconcreticidade, fenômeno que mostra
1823), nos Princípios da Economia Política e de Tributação indica, a necessidade de parcialmente a realidade, escondendo nela, uma essência a ser desvendada, portanto “[...]
formulação de regras para o comportamento do sistema econômico, visando garantir a taxa pesquisar o fenômeno é desvendar a essência oculta” (Kosik,p.13). Nesta perspectiva, para
de lucros para o produtor, crescimento do país e salários justos. Em Thomas Robert Marx, a relação entre os homens produtores, que se estabelece no "capitalismo", resume-se
Malthus (1766-1834), por sua vez, no Ensaio sobre o Princípio da População, formulando em uma relação social entre produtores. Tal relação não aparece dessa forma, mas é vista
a lei da população, enfatiza a necessidade do controle da explosão populacional e suas como uma relação em que os produtores não existem e a relação se dá entre os produtos de
repercussões na qualidade do consumo. John Stuart Mill (1806-1873), em Princípios da seus trabalhos. Nesta relação entre coisas, aparece aos olhos de todos no "capitalismo"
Economia Política, finalmente aponta a necessidade de uma intervenção estatal na como uma relação de entes, quase que uma relação social entre entes vivos, chamada de
regulação das leis de mercado. "fetichismo da mercadoria", em que cada produto do trabalho humano é fetichizado, ganha
vida e se põe diante do seu produtoriv.
Sobre a obra
Os Manuscritos Econômico-Filosóficosii de 1844 estão divididos em três partes Marx inicia sua análise apontando a alienação como o fato econômico principal
principais. No primeiro, refere-se ao salário do trabalho, lucro do capital, renda da terra, e de sua época, a partir da seguinte questão:
trabalho alienado. No segundo, privilegia a discussão acerca da propriedade privada.
Finalmente no terceiro, aborda as relações entre propriedade privada e trabalho, O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz,
propriedade privada e comunismo e dinheiro, encerrando com a crítica da dialética e da quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador
filosofia de Hegel e a fenomenologiaiii. Tomando como ponto de partida a linguagem e torna-se uma mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de
categorias da economia política clássica, como propriedade privada, separação do trabalho, bens produz. Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em
capital, renda, terra, Marx examina esses conceitos e suas conseqüências, na compreensão proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não
produz apenas mercadoria; produz-se também a si mesmo e ao
das relações econômicas, sociais e políticas entre as classes. O procedimento de Marx foi
trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção
refazer a análise destes conceitos, procurando as relações entre homem-natureza, homem- com que produz bens (Manuscritos Econômico-Filosóficos, P.111).
sociedade e homem-ciência e a indústria emergente, esclarecimentos essenciais para
demonstrar os equívocos metodológicos do idealismo. O termo alienação advém do pensamento de Hegel, mas sua raiz também está em
Ludwig Feuerbach, que formulou uma teoria do paradoxo da alienação humana a partir da

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religião. Em Hegel, este é um processo essencial pelo qual a consciência é ingênua e acaba Toda a auto-alienação do homem de si e da natureza aparece na relação
se convencendo de que há um mundo independente, teoria desenvolvida na obra que ele confere a si e à natureza com outros homens diferentes dele. Dai
Fenomenologia do Espírito (1807). que a auto-alienação religiosa apareça necessariamente na relação do
A alienação em Marx é entendida como a relação contraditória do trabalhador com leigo com o sacerdote ou também, já que aqui se trata do mundo
o produto de seu trabalho e a relação do trabalhador ao ato de produção, um processo de intelectual como um mediador, etc. No mundo efetivo, prático a auto-
alienação só pode aparecer através da relação efetivamente real, prática
objetivação, tornando o homem estranho a si mesmo, aos outros homens e ao ambiente em com outros homens”((MARX, 2002, p. 160).
que vive: “A apropriação surge como alienação, e a alienação como apropriação” (Marx,
2002, p.122). Ele não pertence à natureza, aos deuses, mas a alguém distinto do
trabalhador, ou seja, ao capitalista. O trabalhador ao fabricar uma mercadoria, ele se torna Educação e alienação
uma, reduzindo-o em instrumento de riqueza de outros homens. O homem, ao produzir
uma mercadoria, ele mesmo se torna uma mercadoria, reduzindo-o a uma coisa. Vimos que o processo de alienação tem sua origem, em Marx na divisão do
Concordando com a economia política, reafirma o trabalho como fundamento de toda trabalho, que se desenvolve quanto menor é a tarefa atribuída a cada indivíduo. É a partir
a riqueza e de toda a propriedade, porém se realiza na sua forma alienada, isto é, no regime desta perspectiva que a especialização do trabalho realizado pelo professor e aluno pode
da propriedade privada: “O trabalho é tratado pela economia política como uma coisa, uma ser compreendida. Como vimos, a divisão do trabalho surge na sociedade como parte de
abstração” (idem, p. 77). A alienação do trabalho é considerada como a mãe de todas as um complexo que inclui divisões de classes, trocas e propriedade privada. A alienação
outras alienações cabendo ao homem passar do entendimento de alienação para o aparece sempre que a divisão do trabalho é o princípio operacional da organização
entendimento de práxis. Portanto, a propriedade privada é fruto do trabalho alienado. econômica. Diante desta análise, podemos afirmar que a escola se caracteriza como uma
fábrica? Se a afirmação for verdadeira, quais os produtos realizados no espaço escolar que
O trabalhador põe a sua vida no objeto; porém agora ele já não lhe podem comprovar tal afirmação? Para encontrarmos tais evidências, partimos de duas
pertence mas sim ao objeto. Quanto maior a sua atividade, mais o dimensões principais: o professor e o aluno.
trabalhador se encontra objeto. Assim, quanto maior é o produto, Nesta lógica, o professor, um trabalhador comum, cujos produtos são, num sentido,
mais ele fica diminuído. Quanto mais valor o trabalhador cria, seus alunos mas na situação em que trabalha, o que faz simplesmente afirma o caráter
mais sem valor e mais desprezível se torna. Quanto mais refinado desses alunos como produtos capitalistas. As relações sociais do aluno e professor são,
é o produto mais desfigurado o trabalhador (idem, 2002 p. 112). assim, correlacionadas internamente, havendo uma contradição inerente no caso, porque
um professor não é apenas um produtor, mas também um empregado daqueles que desejam
A sociedade burguesa, causa e conseqüência do trabalho alienado, aparece como a reproduzir a sociedade, isto é seu status quo. Alguns professores se consideram como
ordem da desumanização e da alienação, pois está fundamentada na defesa exclusiva da membros da burguesia, mesmo os professores que se consideram como proletários podem
propriedade privada. As relações humanas tornaram-se relação entre coisas, entre envolver-se em ações que são contrárias aos seus interesses. Talvez seja devido a esse tipo
mercadorias: “A propriedade torna para si um objeto estranho e não-humano” (p. 141). A de contradições que a situação de sala de aula é vista, com freqüência, como de conflito.
busca do lucro, a concorrência, a disputa como os únicos elos que ligam os homens. Vejamos:
Segundo Marx, a partir de uma determinação do próprio sistema cuja dinâmica cria
condições para a sua manutenção. Marx inverte a dialética hegeliana, indicando que o Vê-se o que a burguesia e o Estado fizeram pela educação e a instrução
verdadeiro motor da história não pode ser as idéias ou as teorias, mas a atividade humana da classe trabalhadora. Por sorte, as condições em que vive esta classe
objetiva, isto é, o trabalho. Esta tese marca o seu rompimento definitivo com o idealismo, asseguram-lhe uma formação prática, que não só substitui toda a
culminando com a publicação da Ideologia Alemã (1845). incoerência escolar, mas ainda neutraliza o efeito pernicioso das idéias
O trabalhador sempre sai perdendo em sua relação com o capitalista, em todas as religiosas confusas de que está revestido o ensino – e é isto mesmo que
situações possíveis e imagináveis do ponto de vista da economia como o crescimento, o coloca os operários à frente do movimento de toda a Inglaterra. A
salário, a produção, etc. MARX (2002), considera que “A propriedade privada tornou-nos miséria não ensina apenas o homem a orar, mas ainda muito mais: a
estúpidos e parciais, alienando todos os nossos sentidos, na busca do ter”. A concorrência é pensar e a agir (MARX & ENGELS. Crítica da Educação e do Ensino,
a lei causadora da miséria da concentração de capitais e da ruína dos pequenos capitalistas. p. 69).
“O trabalhador põe a sua vida no objeto; porém agora ele já não lhe pertence mas sim ao
objeto. Quanto maior a sua atividade, mais o trabalhador se encontra objeto. Assim, quanto Marx argumenta que é da natureza do homem produzir objetos nos quais ele se
maior é o produto, mais ele fica diminuído” (idem p. 112). reflete, porém esses objetos lhe são tomados pela lógica da produção vigente. Ele é incapaz
A análise desse sistema forjadora de consciência explicita a condução de um de ser dono do produto de seu trabalho, e se torna estranho à sua própria criação, que o
modelo econômico que começava a ser questionado em função de suas contradições, como enfrenta como algo hostil e alheio. Essa alienação do homem e seu produto também
a estratificação social, a má distribuição de riquezas, a exploração e os demais fatores que implicam a sua alienação em relação aos outros homens. A precondição da existência é o
objetificam o trabalho e alienam o homem de si mesmo, no que Marx chamou de processo trabalho, mas no capitalismo o próprio trabalho transformou-se numa mercadoria:
de auto-alienação humana. Vejamos:
É assim que os operários são postos à parte e desprezados pela classe no
poder no plano moral, como o são nos planos físico e intelectual. O

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único interesse que ainda se tem por eles manifesta-se pela lei, que lhes políticas das sociedades de classes: o proletariado deve agir ainda nas
deita a mão assim que se aproximam demasiado da burguesia; tal como condições materiais da sociedade onde vive e produz, utilizando meios
para com os animais despidos de razão, só se utiliza com eles um único políticos, quando só dispõe de seu das suas idéias e dos seus princípios,
meio de educação: o chicote, a força brutal que não convence, mas que nascidos do seu meio material de vida e de produção, para orientar a
só intimida (Marx, 1979, p. 71). evolução social no sentido dos interesses socialistas – de classe em
primeiro lugar, portanto ainda políticos, sem classe em seguida. Nestas
Professores e alunos, no interior da ordem capitalista, são considerados em termos condições, o marxismo origina primeiramente uma luta de idéias, e é
daquilo que podem produzir, e, portanto, as produções consideradas como valiosas são neste domínio ideológico que se delimita em primeiro lugar, e mais
aquelas que podem ser avaliadas com facilidade. Muitos alunos sofrem as pressões das radicalmente, em relação às formas de pensamento da burguesia e das
notas, pontos, exames, qualificações. O processo envolvido na atribuição de notas e classes dominantes que a precederam (idem, p. 21-22).
avaliação influencia também os professores, afetando suas relações, a maneira pela qual
lecionam e o próprio currículo. Os professores podem ser considerados ao mesmo tempo
No trabalho alienado, o produto do Homem existe fora dele, independentemente,
como trabalhadores e como mercadorias em produção. Dentro da escola, o aluno tem
como alguma coisa alheia a ele e que se torna um poder em si mesmo, que o enfrenta. O
também um potencial de trabalho. Ao trocar o produto de seu trabalho por objetos na
aluno não tem controle sobre o que ele faz, ou o que é feito do produto. O "conhecimento"
forma de pontos, notas, ou diplomas e certificados, podemos compará-los aos salários, ou
cresce em poder na medida em que os alunos gastam o que dele dispõem, e até adquire
recompensa.
qualidades, devidamente modificadas, que o estudante perde. Os alunos podem perder
A atividade dos alunos na escola, portanto, é uma relação e expressão da atividade
confiança e se considerarem como simples "apêndices" de seus produtos; assim,
na sociedade. Como outros trabalhadores, o aluno tem necessidade de objetos para realizar
gradualmente, o "conhecimento" começa a controlar os produtores. A propriedade privada
seus poderes, mas não dispõe da oportunidade de adquirir esses objetos. Nesse processo, os
é a expressão material do trabalho alienado.
alunos são transformados em produtos ou mercadorias a serem vendidas no mercado. Os
O cerne da crítica à educação burguesa, parti da alienação do processo de produção
alunos são categorizados apenas em termos de certas características que os estudantes
e da fragmentação da atividade do homem e do estranhamento do próprio homem.
ideais devem ter: interesse, disciplina, capacidade, inteligência:
Diferente da concepção da economia política clássica, o capitalismo,
Uma sociedade, cuja condição sine qua non é reproduzir num pólo a
segundo Marx, não consiste em uma coisa, um conjunto de máquinas,
miséria e no outro a riqueza, produz forçosamente também, dum lado, a
equipamentos ou terras, mas é uma relação social constituída
civilização e, do outro, a bestialidade: «Segundo Storch, o médico
historicamente, caracterizada pela compra e venda da força de trabalho,
«produz» a saúde (mas também as doenças), os professores e os
uma relação entre proprietários dos meios de produção e o proprietário
escritores as luzes mas também o obscurantismo (idem, p. 11).
da força de trabalho. O homem tornou-se uma mercadoria: A máquina
adapta-se à fraqueza do homem para fazê-lo uma máquina (idem, p.
A divisão do trabalho, no interior da produção capitalista, deu-se ao separar o 151).
trabalho manual do trabalho intelectual, implicando todas as suas contradições, como o
acesso ao trabalho assalariado, tempo livre e a um tipo de educação. Na sociedade da mercadoria, o trabalho é coercivo não devido à sua natureza,
mas devido às condições históricas sob as quais é realizado. Nas condições da economia
Uma outra conseqüência do capitalismo é separar a arte da técnica, capitalista, a troca de mercadorias consiste no fenômeno mais banal e elementar, cuja
abstraindo-a cada vez mais da produção coletiva, para dela fazer uma
produção é realizada em circunstâncias tão alienadoras que o trabalho e a atividade criativa
questão individual. Carece então de todos os meios materiais: praticada
em amadorismo, mergulha no esquecimento ou na insignificância;
do homem torna-se um processo de desumanização. Para Kosik (p. 78), o homem vive
tornada venal sucumbe às negociatas burguesas (idem, p.19). constantemente entre a autenticidade e a não-autenticidade, devendo haver cotidianamente
um esforço intelectual para libertar-se de uma existência que não lhe pertence, mas que lhe
é imposta pelas relações de produção.
O produto do trabalhador, o conhecimento, é, com freqüência estranho aos Historicamente, as limitações intelectuais, da classe operária, foram impostas
estudantes, que não o podem usar, é, com freqüência demasiado limitado, especializado, pelas condições do trabalho industrial, exigindo um componente subversivo para que o
não relacionado, abstrato. O aluno não tem controle sobre o que ele faz, ou o que é feito do trabalhador, no interior das contradições da ordem burguesa, alcance sua consciência:
produto. O "conhecimento" cresce em poder na medida em que os alunos gastam o que
dele dispõem, e até adquire qualidades, devidamente modificadas, que o estudante perde. O desenvolvimento intelectual de classe é a conseqüência direta da
situação econômica do operário, e esta é das mais complexas, porque
Os alunos podem perder confiança e se considerarem como simples "apêndices" de seus evolui nas contradições, nos altos e baixos dos ciclos de crise e de
produtos. Assim, gradualmente, o "conhecimento" começa a controlar os produtores. A prosperidade, com fases revolucionárias ou contra-revolucionárias. O
propriedade privada é a expressão material do trabalho alienado: marxismo afirma, todavia que «a grande indústria faz amadurecer as
contradições e antagonismos da forma capitalista do processo de
É por isso que Marx e Engels estigmatizam de forma mais categórica as produção, ou seja, ao mesmo tempo em que os elementos, de formação e
manifestações intelectuais do que as formas econômicas e mesmo

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de consciência, os elementos subversivos da velha sociedade (idem, p.


34). CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação burguesa ignora a sensibilidade do aluno, interessada exclusivamente Como vimos, a questão educacional em Marx, é considerada a partir de sua
pela suas capacidade de produção, impondo a ela uma concepção do trabalho produtivo: produção material, ao expor as conseqüências sociais decorrentes do emprego da ma-
quinaria no processo produtivo. A fragilização física e intelectual do trabalhador frente ao
Quando Marx afirma que a educação deve partir da prática e da capital, é um dos seus principais efeitos, sobretudo a partir do processo de divisão do
sensibilidade própria da criança, «os sentidos práticos, e sobretudo o trabalho imposto pela máquina. A incorporação de mulheres e crianças à produção, a
nariz e a boca, sendo os primeiros órgãos com os quais a criança julga o precarização das condições de trabalho, dos salários, causada pela grande oferta de força
mundo», não faz mais do que retomar a crítica de Fourier a qualquer
ensino da «civilização»: «A escola-coloca a teoria antes da prática.
de trabalho, produziu um quadro de miséria material e moral para os trabalhadores. O
Todos os sistemas civilizados caem neste erro: não sabendo seduzir a homem, não sendo o fim da economia burguesa, torna-se instrumento de produção, tratado
criança para o trabalho, são obrigados a deixá-la em férias até aos 6 ou 7 como máquina, submetido às relações sociais opressoras, alienando a verdadeira
anos, idade que ela deveria ter utilizado para se tornar um hábil prático; necessidade humana. Nesta perspectiva, a escola, enquanto espaço de vivência, ainda está
depois, aos 7 anos, querem iniciá-la na teoria, nos estudos, em longe de se tornar um espaço de humanização. No campo educacional, o professor também
conhecimentos cujo desejo ninguém nela despertou.(idem, p.37). é um trabalhador comum, e seus alunos na lógica capitalista acabam sendo transformados
em mero produto capitalista. Muitas vezes o professor não é apenas um produtor, mas
No interior da sociedade capitalista a burocracia tornou-se instrumento de também um empregado daqueles que desejam reproduzir a sociedade, isto é seu status
dominação das classes exploradas, em que o pensar e o decidir são privilégios de um quo.
grupo. A burocracia visa controlar o trabalho e as formas de pensar, cuja característica Finalmente, cabe lembrar que alguns professores se consideram como membros
principal é o segredo, o mistério como uma atividade fechada. Idolatra a autoridade e da classe socialmente privilegiada, por outro lado, mesmo os professores que se
exalta regras rígidas, conservando tradições. A abertura de espírito ou das mentalidades consideram como proletários podem envolver-se em ações que são contrárias aos seus
em relação ao Estado aparece conseqüentemente como uma traição deste mistério, apesar interesses, como resultado do processo de alienação que este está sendo submetido,
de a autoridade se tornar o princípio do seu saber, e a idolatria da autoridade ser o seu tornando o profissional da educação estranho a si mesmo, aos outros indivíduos, aquilo
espírito. Nesta passagem, verificamos a crítica de Marx as origens da escola burguesa, que produz e ao ambiente em que vive. Talvez seja devido a esse tipo de contradições que
em seu aspecto economicista da educação e do indivíduo: a situação de sala de aula é vista, com freqüência, como espaço de tensão e conflito, pois
nem sempre os problemas e desafios que habitam o universo do aluno, são os mesmos que
Muitos rapazes que freqüentaram a escola durante as 150 horas prescritas, habitam o universo dos professores.
encontram-se exactamente no mesmo estado, ao cabo de 6 meses da sua
estadia na fábrica, do que no ponto de partida; esqueceram naturalmente
tudo o que tinham aprendido antes. Noutras empresas de estampagem
sobre algodão, a freqüência da escola depende totalmente das exigências
do trabalho na empresa. O número de horas obrigatórias é aí satisfeito em
cada período de 6 meses por prestações de 3 a 4 horas de cada vez,
Notas
disseminadas por todo o semestre. A criança, por exemplo, vai à escola i
Mestre em Educação/UEM. Doutorando em História e Filosofia da Educação/UNICAMP. Membro do
um dia das 8 às 11 da manhã, outro dia da 1 às 4 da tarde, depois durante
Grupo de pesquisa HISTEDBR, GT-Cascavel. Professor do Colegiado de Pedagogia, UNIOESTE, Cascavel,
toda uma série de dias para aí voltar em seguida das 3 às 6 horas da tarde Pr. Endereço: Rua Romário Martins, 654, Bairro Pioneiros Catarinenses CEP: 85805-410. Fone: (45) 3326-
durante 3 ou 4 dias seguidos ou durante uma semana. Desaparece de novo 8853 - E-mail: jcsilva@unioeste.br
três semanas ou um mês, depois volta durante algumas horas em certos
dias de folga, quando por acaso o patrão não precisa dela. A criança passa ii
Esta obra consiste nos primeiros estudos, das análises pré-marxistas, que antecederam e sustentaram a
assim da escola para a fábrica e da fábrica para a escola, até que se atinja elaboração da obra O Capital e retoma passagens economia política clássica, particularmente de Adam Smith
o total das 150 horas (MARX, 2002, p. 68). e David Ricardo. Sobre isso ver D. McLELLAN. A concepção materislita da história. In. HOBSBAWM, Eric
J. História do Marxismo V. 1: O marxismo no tempo de Marx.
Neste processo, o homem é alienado da natureza, de si mesmo e da humanidade, ii
As formulações dos Manuscritos tiveram importantes subsídios dos estudos de Engels em A Situação da
e que esses aspectos estão relacionados entre si, em que o trabalho se torna não a satisfação Classe Operária na Inglaterra em 1844, obra em que descreve os efeitos do trabalho na indústria, no
de uma necessidade, mas apenas o meio para a satisfação de outras necessidades, que não trabalhador. Marx problematiza a propriedade privada. Para ele a economia clássica não aprofundou
lhe pertence. A vida do trabalhador se torna, para ele, apenas o meio que lhe permite suficientemente os estudos sobre sua origem, devendo ser, segundo Marx, ponto de partida de todas as outras
existir. Em outros termos, o sujeito humano se torna o objeto de seus próprios produtos. análises. Os manuscritos são um rigoroso exame das teses da economia política, sendo seu encontro com
Visto a essa luz, o capital é o ego alienado do homem. Marx acusa a economia política de economia Política ao desmistificar as teses da economia clássica, ao considerar a mercadoria como a célula
econômica da sociedade burguesa, cuja tese, foi melhor detalhada no volume 1 do livro O Capital.
ser a ciência da riqueza, da renúncia, da privação do ar puro, “[...] comer, beber, comprar
livros, ir ao teatro, ou al baile, ao bar, quanto menos cada um pensar, amar, teorizar, cantar, iv
Tal fenômeno pode ser observado hoje em dia, como por exemplo, a segmentação cada vez maior da
pintar, poetar, etc”. (idem , p.151-152). produção e a alienação ligada a esta, cuja relação é ditada pelas regras do mercado, e não da própria

Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.19, p.101 - 110, set. 2005 - ISSN: 1676-2584 108 Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.19, p.101 - 110, set. 2005 - ISSN: 1676-2584 109
Revista HISTEDBR On-line Artigo

produção comandada por qualquer inteligência humana. Além disso, na medida em que o "capitalismo" cria
tecnologias que ampliam a segmentação da produção, mais e mais cada homem se desconecta do que faz na
vida cotidiana, se torna alienado do que produz e, portanto, alienado de si mesmo, alienado do que é, ou seja,
não se reconhece como um trabalhador que, utilizando sua inteligência e criatividade, produziu algo. ESCOLA, EDUCAÇÃO E TRABALHO NA CONCEPÇÃO DE ANTONIO
Transformado em mercadoria, o produto torna-se mais importante do que o homem que a criou. Estamos
então diante do fetiche da mercadoria ganhando vida e importância na sociedade. Diante deste fenômeno, o GRAMSCI
homem não significa nada perante a sociedade.

FORTUNATO, Sarita Aparecida de Oliveira.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Eixo Temático: Didática: Cultura, Currículo e Saberes
FERNANDES, F. (Org.) Marx & Engels: história. São Paulo: Ática, 1989. 496p. Agência Financiadora: Não contou com financiamento
D. McLELLAN. A concepção materialista da história. In: HOBSBAWM, Eric J. História Resumo
do Marxismo: O marxismo no tempo de Marx. PP. 67-89 V. 1: Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982. 443p. Este texto aborda os fundamentos epistemológicos de educação e de escola em Antonio
Gramsci. Busca trazer uma coletânea de idéias deste autor tendo como “pano de fundo” a
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. 230p. concepção de hegemonia, bem como colocar em evidência a proposta da escola do trabalho
na perspectiva do poder dos trabalhadores traçada por Gramsci. Tem como objetivo principal
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2002. 198p. fornecer subsídios teórico-práticos ao debate sobre hegemonia na visão educativa, ou seja,
com foco na educação escolar. A história da humanidade mostra que tanto a situação de
____________ O capital. Vol. I. São Paulo: Difel, 1985. 289p. passividade das massas como a vontade coletiva que leva um grupo à ação, não é o resultado
de uma simples somatória de desejos e comportamentos individuais orientado por um
____________ Para a crítica da economia política do capital: o rendimento e suas determinado interesse, mas, tem como pressuposto a existência de uma cultura coletiva. O
fontes. São Paulo: Nova Cultural, 2000 (Col. Os Pensadores). 351p. alicerce sobre o qual se constrói a ação organizada é constituído de valores, de idéias, de um
conjunto de percepções, de práticas e vivências coletivas cuja inter-relação tece no dia a dia
___________ Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville. uma identidade e uma visão de mundo comum à maior parte dos indivíduos que compõem um
Lisboa, Portugal: Moraes Editores, 1978. 255p. agrupamento social. Portanto, estudar de que forma a hegemonia está presente no contexto da
escola através do trabalho desenvolvido por seus profissionais, desencadeia a necessidade da
SMITH, A. A riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. Vol. busca pela compreensão das relações humanas que se dão no interior da escola. Para tanto,
1 São Paulo: Nova Cultural, 1985.415p. este estudo pautou-se na perspectiva traçada por Gramsci no que diz respeito às características
da escola e do trabalho humano em desvendar os mecanismos de sua produção, reprodução e
superação, como também, em evidenciar, entre eles, os que constituem a base sobre a qual irá
ser construída a identidade da classe trabalhadora e sua capacidade de se tornar classe
dirigente.

Palavras-chave: Educação. Trabalho. Hegemonia. Escola.


.

Introdução

A vivência do cotidiano faz com que as situações particulares, as crenças, às imagens,


os valores, as categorias, as interpretações dos acontecimentos históricos ou das relações de
poder presentes na sociedade, e até a própria linguagem, se articulem e desenvolvam
expressões que reúnem as vontades dispersas dos indivíduos e sirvam de base para sua
comunicação e prática diárias.

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9467 9468

Neste enfoque, a história da humanidade mostra que tanto a situação de passividade concepção de mundo, possui uma linha de conduta moral, contribui com idéias e opiniões.
das massas como a vontade coletiva que leva um grupo à ação, não são o resultado de uma Tudo isso leva a um caminho que direciona para manter ou para modificar uma visão de
simples somatória de desejos e comportamentos individuais orientado por um determinado mundo, portanto promove novas maneiras de pensar.
interesse. O alicerce sobre o qual se constrói a ação organizada é constituído de valores, de De acordo com Gennari (1997), baseando nos escritos de Gramsci, coloca que todos
idéias, de um conjunto de percepções, de práticas e vivências coletivas cuja inter-relação tece os seres humanos mesmo não sendo filósofos profissionais e não desempenhando na
no dia a dia uma identidade e uma visão de mundo comum à maior parte dos indivíduos que sociedade a função de intelectuais, pensam a realidade que os rodeia e as relações que nelas se
compõem aquele agrupamento social. fazem presentes pelo menos a partir dos limites e das características da “filosofia espontânea”.
Portanto, estudar de que forma a hegemonia1 está presente na escola através do A filosofia espontânea, que é o único instrumento teórico com o qual o povo simples
trabalho desenvolvido, na perspectiva traçada por Gramsci, significa penetrar num ambiente interpreta o passado e o presente, orienta sua ação cotidiana e projeta seus anseios para o
dinâmico onde a solidez das crenças populares é um elemento indispensável para a futuro, reúne de forma acrítica, desordenada e contraditória uma mistura de elementos que
manutenção, o aprimoramento ou a superação de uma ordem social. Isto implica em delinear incorporam os mais variados aspectos das concepções de mundo, presentes e passadas, de
as características da escola, do trabalho humano, em desvendar os mecanismos de sua todos os setores sociais.
produção, reprodução e superação em evidenciar, entre eles, os que constituem a base sobre a Aspectos esses, que incluem desde as formas e expressões mais primitivas da vida em
qual irá ser construída a identidade da classe trabalhadora e sua capacidade de se tornar classe sociedade aos mais modernos princípios das ciências, dos preconceitos que foram se
dirigente. desenvolvendo a nível local, até mesmo alguns traços dos grandes sistemas filosóficos
Essa tarefa, que não é fácil, porém torna-se indispensável na busca de estudar a passados e contemporâneos, mesclando assim, ao mesmo tempo, convites implícitos à
realidade não só para compreendê-la, mas, sobretudo, para transformá-la. resignação e à paciência com estímulos a tomar consciência de que os acontecimentos têm
uma explicação racional.
Hegemonia e visão de mundo

O pressuposto da análise gramsciana sobre hegemonia e trabalho está na constatação Assim, se é verdade que podemos encontrar elementos característicos na concepção
da vida e do ser humano de cada camada social, é também verdade que estes
de que “não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual”. elementos não constituem um todo estático, imóvel, ao contrário, transformam-se e
enriquecem-se continuamente apropriando-se de aspectos das ciências e das
Neste sentido, todo ser humano, levando em consideração sua complexa subjetividade, opiniões filosóficas que penetram nos costumes da época. O resultado dessa
apropriação é refletido diretamente na linguagem dos indivíduos ou dos
é um artista, um homem que possui gostos, um filósofo, é aquele que participa de uma agrupamentos humanos, e a partir dela é possível avaliar a maior ou menor
complexidade de suas concepções de mundo. (GENNARI, 1997, p.4)
1
Do livro: Gramsci e o Brasil de SECCO, L. (2002), a palavra hegemonia, do grego gegemoniya (direção), já
era de amplo uso no movimento socialista europeu, no início do século XX, principalmente entre os russos. O
termo foi utilizado na historiografia cientificista do século XIX, que valorizava a história política e diplomática, As concepções de mundo, por sua vez, nascem, consolidam-se e desenvolvem-se a
a essa utilização se estendeu à própria linguagem diplomática, embora fosse de origem militar: hegemonia
significava, entre os gregos antigos, a direção suprema dos chefes dos exércitos, os egemónes (condutores). No partir do entrelaçar-se das relações nas quais os indivíduos, ou os agrupamentos humanos, já
universo conceptual do marxismo contemporâneo, é geralmente entendida como capacidade de uma classe, uma
fração ou conjunto de frações de classe, um grupo social ou mesmo um partido tem de dirigir outros segmentos estão inseridos (é o caso, por exemplo, do ambiente familiar, do peso das tradições locais, da
sociais e eventualmente oprimir ou liquidar aqueles que não aceitam pacificamente a sua direção. A hegemonia
gramsciana é, por isso, um tipo de direção consensual sobre os que aceitam ou consentem, e inclui uma realidade política, econômica e cultural do lugar onde o indivíduo nasceu e na qual foi
dimensão coercitiva sobre os que se recusam, ou seja, os que extrapolam os meios de oposição considerados
legítimos pelo grupo hegemônico. Em Gramsci, a hegemonia oscila entre dois sentidos: direção consensual ou
formado), e das que eles tecem e desenvolvem na sociedade.
exercício legitimado da força por meio do consenso. Entretanto, a hegemonia não se resume a uma dominação Isto significa que toda concepção de mundo é ao mesmo tempo expressão das relações
ideológica ou mesmo política, mas se refere à relação orgânica que um grupo político mantém com uma classe
fundamental (o que, em linguagem gramsciana, significa uma classe que exerce uma função decisiva no mundo de produção dominantes num dado agrupamento humano e da ordem por elas estabelecida, de
da produção material).
9469 9470

um determinado grau de reflexão pessoal e coletiva sobre a realidade por elas criada, e um dos O exercício da hegemonia assume conotações diferentes a partir do modo como os
grupos sociais se relacionam e exercem suas funções com base na organização do
fatores que a cada momento tende a consolidar, atualizar ou superar os limites dessa ordem. Estado e do papel mais ou menos coercitivo e intervencionista da sociedade política,
e ainda do processo de conscientização política das classes dominadas; a hegemonia
Ou seja, para Gramsci, ““o ser humano deve ser concebido como bloco histórico de elementos é uma relação ativa, cambiante, evidenciando os conflitos sociais, os modos de
pensar e agir que se expressam na vivência política; conforme se desenvolvem e se
puramente individuais e subjetivos e de elementos de massa objetivos ou materiais com os inter-relacionam as forças em luta, tem-se o fortalecimento das relações de domínio,
quais o indivíduo tece uma relação ativa”.2 o equilíbrio entre coerção e consenso ou a ampliação da participação política e da
organização da sociedade civil. (SCHLESENER, 2001 , p. 19)
Portanto, o núcleo a partir do qual se formam e desenvolvem-se as concepções de
mundo é constituído pelas relações sociais de produção existentes na sociedade. Relações que,
Nesta concepção, a hegemonia é o exercício do poder por meio do equilíbrio entre a
por sua vez, são os pilares de uma ordem que deve ser fortalecida, transformada, ou
dominação e a coerção, considerando também o equilíbrio entre direção e consenso. Assim,
simplesmente, aprimorada por parte dos setores dominantes de uma sociedade. Para que esta
Gramsci dá importância à sociedade civil (escola, igreja, universidades, sindicatos, partidos
mesma ordem ganhe estabilidade, é fundamental que seus valores, categorias e representações
políticos, meios de comunicação, entre outros) para a construção de uma consciência crítica,
organizem e orientem a vida cotidiana das massas populares, alimentem sua percepção dos
levando a classe trabalhadora a formar um senso ativo a partir de um amplo debate.
processos e acontecimentos históricos, tornem-se senso comum, levem a elaboração de
Gramsci defende a moral de compromissos e não a de princípios. A moral de
normas de conduta e à formação de uma vontade coletiva conformada e integrada a partir das
compromissos é aquela construída nas relações históricas, onde o homem age e ao mesmo
necessidades dos próprios grupos dominantes.
tempo é responsável em responder suas questões. Segundo a concepção gramsciana, em
Assim colocado, pode-se afirmar que a visão de mundo que é gestada e desenvolvida a
determinados momentos é preciso abstrair os acontecimentos de forma didática, mas sem
partir desses elementos não impede que indivíduos e agrupamentos humanos incorporem a ela
perder de vista a forma dialética de explicar os fatos.
seus afetos, paixões, interesses individuais e coletivos, anseios, sua leitura peculiar dos
A luta por uma nova hegemonia é também uma luta por uma nova forma de pensar.
acontecimentos e das próprias relações presentes na sociedade. (GENNARI, 1997)
Romper com o modo homogêneo de pensar (aquele onde os indivíduos e as massas populares
Considerando que a visão de mundo é construída num movimento contraditório entre
pensam o cotidiano e sua intervenção na sociedade nos limites traçados pelos valores,
coerção imposta pelas necessidades de sobrevivência, e que, consequentemente, gera no
categorias e representações elaboradas pela concepção de mundo das classes dominantes), é
homem sentimentos de impotência, medo, submissão ou até de dívida de gratidão, a busca de
um dos objetivos essenciais de luta pela formação de um consenso ativo3 da classe
liberdade se faz constante, com o intuito primeiro de reafirmar a subjetividade dos indivíduos
trabalhadora, na medida em que a ação dessa classe e as particularidades de sua visão de
negada pela ordem dominante. Ainda assim, não se pode esquecer que esse conjunto de
mundo construam uma ameaça às bases de sustentação do sistema vigente, contrariando o
percepções e vivências particulares, apesar de serem expressão da subjetividade dos
consenso passivo4.
indivíduos e gerarem práticas de resistência, são elaboradas a partir de uma personalidade
educada culturalmente pelas relações sociais que os rodeiam e que, portanto, por si só, não
levam à destruição da ordem vigente à qual tendem a conformar-se a partir do momento em
Escola, educação e trabalho: o pensamento gramsciano
que são parcialmente superadas as razões que lhes deram origem. (GENNARI, 1997, p. 24)
Contribuindo para uma melhor compreensão sobre o assunto, Schlesener (2001), ao
abordar a questão da hegemonia na visão de Gramsci, afirma que:
3
Consenso ativo é criado a partir do debate efetivo das idéias e do convencimento coletivo em relação ao debate,
discussão. Supera os limites da discussão parlamentar (aquela que já está decidida e não debatida).
4
Consenso passivo, segundo Gramsci, é aquele que vem de cima para baixo, restando somente cumprir a ordem
2
Cadernos do Cárcere, p. 1338. imposta.
9471 9472

A educação, processo de formação do homem na sociedade capitalista se faz no relação orgânica, produzida por interação e não por justaposição. Da mesma forma a relação
processo de convivência social, ensinando e aprendendo, não só na escola, mas, sobretudo, na do homem com a natureza se dá pelo trabalho e pela técnica, além do conhecimento industrial
vida. Conforme o pensamento gramsciano a educação é um processo contínuo e a escola uma se faz presente o conhecimento filosófico e científico, a técnica é a expressão desse
via fundamental para a realização de uma educação humana que considere a disciplina no conhecimento.
agir, onde o indivíduo aprende na medida em que faz escolhas. E essas escolhas o modificam No seu livro “Concepção Dialética da História” (1995, p. 39 -50), Antonio Gramsci
e modificam outras coisas. faz uma diferença entre individualidade e personalidade. Onde esta se constrói pela
De acordo com Schlesener (2002), o problema da escola era um dos problemas consciência e pelo agir do homem a partir das circunstâncias, através da tomada de
essenciais da sociedade italiana e precisava ser enfrentado com profundidade pelo Partido consciência das relações do que o limita ou o liberta. Assim, a ética em Gramsci, diz respeito
Socialista. Coloca a autora, considerando os estudos de Gramsci, que uma das medidas para a à compreensão da relação da formação do indivíduo no percurso da própria ética na política,
solução do problema da escola seria minimizar a participação do Estado na condução da ou seja, os princípios são postos a partir do envolvimento do sujeito no contexto social, num
política escolar, instaurando mecanismo do concurso para a admissão de funcionários compromisso constante com a sociedade.
administrativos, ou melhor, realizando uma reforma do sistema administrativo. Então, neste contexto, se tem uma outra idéia de educação, entendendo que a educação
se faz no foco de duas leituras: a leitura da sociedade política e a leitura da sociedade civil.
Para Gramsci essas leituras são um conjunto de dois espaços do Estado. No ponto de vista
É importante salientar que não se tratava de estimular a iniciativa privada na
educação, visto que Gramsci questionava as pretensões do clero de aproveitar a liberal, a sociedade política e civil são separadas, e para Gramsci não há essa divisão, pois ele
proposta de liberdade de ensino para ampliar seu domínio no campo do ensino
escolar. (SCHLESENER, 2002, p.68) fala que o Estado é o principal educador.
Sendo assim, de acordo com a visão gramsciana, a educação, no âmbito da sociedade
Dado este enfoque, Gramsci propôs a “escola do trabalho”, uma proposta de escola política, se faz pela coerção, e, no âmbito da sociedade civil, a educação se faz pela cultura,
que formasse a nova geração de produtores, ou melhor, a preparação de técnicos que não escolas, família, universidades, entre outros. Diante disso, Gramsci defende uma escola do
fossem apenas executores mecânicos, mas que dominassem a sua arte ao adquirir o saber trabalho e não uma escola burguesa. Afirma que economia e política estão sempre
sobre a técnica, seus limites e possibilidades. relacionadas. A educação, portanto, tem que ter o vínculo com a prática, se fazer a partir da
ação e da compreensão mais abrangente de mundo (processo histórico).
Dado este enfoque, faz-se necessário afirmar que num processo de organização
A escola do trabalho defendida por Gramsci tinha características especiais: supunha
não só a formação para o trabalho, mas a possibilidade da elaboração de uma cultura política (estrutura do Estado), o conhecimento é poder porque modifica, e a hegemonia
autônoma, bem diversa da cultura burguesa. Para os trabalhadores, o desejo de
aprender surgia de uma concepção de mundo que a própria vida lhes ensinava e que intelectual é a luta por uma nova ordem social. Possuindo assim, como núcleos de discussão,
eles sentiam necessidade de esclarecer para atuá-la concretamente. (SCHLESENER,
2002, p.69)
a análise das sociedades política e civil, onde a Escola se faz presente em ação e decisão para
a formação humana.
Nosella (1992) contribui dizendo que o interesse de Gramsci para as questões culturais
Neste sentido, a escola deveria contribuir para a concretização de uma unidade viva
formativas era motivado e orientado pela objetiva preocupação de preparar os quadros
entre teoria e prática, elemento este que a escola burguesa, pela sua característica e função na
dirigentes que haveriam de governar o novo Estado Proletário. Pensava então, em formar
sociedade capitalista, não podia proporcionar aos trabalhadores. No entanto, a escola deveria
pessoas de visão ampla, complexa, porque governar é uma função difícil.
respeitar a individualidade do aluno no sentido de que ela é fruto de uma interação entre
indivíduos e a entre estes com a natureza. Analisando este contexto, se faz presente uma
9473 9474

Ainda sobre a formação cultural das massas, abre-se a polêmica em defender as Indica que a aprendizagem ocorre notadamente graças a um esforço espontâneo e
autônomo do discente, onde o professor exerce apenas a função de guia amigável,
atividades formativo-culturais para o proletariado5 em geral, mas Gramsci rejeita a idéia de tal como ocorre ou deveria ocorrer na universidade. (GRAMSCI in HISTORIA &
PERSPECTIVAS, 1991 p. 154).
formá-lo dentro de uma cultura abstrata, enciclopédica, burguesa, que efetivamente confunde
as mentes trabalhadoras e dispersa sua ação. (NOSELLA, 1992, p.15) Entende-se que para
É por este caminho, entretanto, que ao incorporar as experiências e vivências
Gramsci todos os esforços para a concretização da sociedade comunista seriam válidos de
cotidianas na escola e na educação em geral, que o homem começa a romper co sua
forma que no devir histórico passaria de uma condição de desigualdade social para um estado
integração, ativa ou passiva, à ordem dominante. Seria essencial então fazer-lhe perceber que
de igualdade de condições, sem distinção de classes, sem diferenças entre governantes e
somente transformando o mundo que o rodeia e as relações que nele estão presentes, ele (o
governados, já que tal sociedade caminhava para uma situação onde todos estariam
homem) venha a potencializar e desenvolver sua própria individualidade. Em outras palavras,
capacitados para serem dirigentes.
trata-se de fazer com que o indivíduo tome consciência de que a sua individualidade só pode
Gramsci destaca ainda que a escola unitária deveria ser organizada de forma que
se realizar na medida em que sua ação altera as relações com o mundo externo, alcançando,
tivesse vida coletiva diurna e noturna, onde o estudo fosse feito coletivamente, sob a
progressivamente, níveis cada vez mais amplos superando o estágio individual.
assistência dos professores e dos melhores alunos, mesmo nos momentos de estudo
De fato, ao considerar as relações com o mundo num equilíbrio à sua individualidade,
individual. Destaca também que na última fase da escola unitária, a mesma seria concebida
o homem interpreta tais relações através do bom senso implícito nas formas de defesa e
como decisiva, e também como tendência de criar valores fundamentais do humanismo, da
resistência frente à ordem dominante. E como afirma Gennari:
autodisciplina intelectual e da autonomia moral necessárias à posterior especialização, seja ela
de caráter científico (estudos universitários), ou de caráter imediatamente prático-produtivo
(indústria, burocracia, organização comercial, etc). (GRAMSCI in HISTORIA & [...] a percepção primária da exploração e dos nexos de causalidade dos
acontecimentos históricos, apenas constituem o núcleo sadio do senso comum, por si
PERSPECTIVAS, 1991). só, não reúnem condições suficientes para levar a classe trabalhadora a romper com
Assim, o estudo e o aprendizado dos métodos criativos na ciência e na vida devem sua situação de subalternidade. (GENNARI, 1997, p. 36)

começar nesta última fase da escola e não deve ser monopólio da universidade ou ser deixado
ao acaso da vida prática, devendo contribuir para desenvolver a responsabilidade autônoma Assim sendo, na percepção de Gramsci sobre o proletariado, o mesmo necessita de
nos indivíduos, portanto, deve ser uma escola criativa. Gramsci explicita que escola criativa uma escola humanista, culta, ativa, aberta, livre como o melhor espírito Renascentista. Uma
vem a ser o coroamento da escola ativa sendo que na primeira fase tende-se a disciplinar, e escola que dê à criança a possibilidade de se formar, de se tornar homem, de adquirir critérios
também a nivelar, a obter certa espécie de conformismo que pode ser chamado de dinâmico; gerais necessários para o desenvolvimento do caráter. Uma escola de liberdade e livre
na fase criativa, sobre a base já atingida da coletivização, do tipo social, tende-se a expandir a iniciativa e não uma escola de escravidão e de mecanicidade. (GRAMSCI, in NOSELLA,
personalidade, tornada autônoma e responsável, mas com uma consciência moral e social 1992, p. 20).
sólida e homogênea.
Desta forma escola criativa não significa escola de inventores e descobridores, ela
indica uma fase e um método de investigação e de conhecimento, e não um
programa predeterminado que obrigue a inovação e à originalidade a todo custo.

5
Proletariado é uma das duas principais classes sociais do capitalismo. De acordo com TUMOLO, (2002),
tendo em vista duas das contradições básicas do movimento do capital, a saber, a concorrência intercapitalista –
expressão da divisão social do trabalho no capitalismo – e a contradição entre duas classes sociais fundamentais,
burguesia e proletariado – materializada na divisão do trabalho na empresa capitalista -, o desenvolvimento das
forças produtivas se torna o fator decisivo e fundamental no processo de produção capitalista.
9475 9476

Concluindo foram editados. No Brasil, aproximadamente desde 1975, é que houve uma grande procura
pelas obras de Gramsci, ele se tornou referência na historiografia, pedagogia, religião,
Muito se tem discutido sobre os estudos e escritos de Antonio Gramsci atualmente, jornalismo, estudos literários etc. Mas, em 1965 a Editora Civilização Brasileira lançou o
que, com toda a certeza, vêm esclarecer conceitos bastante complexos sobre hegemonia, primeiro volume dos Cadernos do Cárcere. A tradução foi feita por Carlos Nelson Coutinho
trabalho intelectual, sociedade civil, Estado, entre muitos outros. As contribuições desse autor com base no original italiano: II Materialismo Storico e la Filosofia di Benedetto Croce da
são de extrema relevância para o meio acadêmico e para os profissionais da educação. Editora Einaudi.
Tentou-se através deste artigo, abrir questões para o debate contínuo sobre o assunto Antonio Gramsci, sem dúvida, é hoje um clássico não só do marxismo, mas do
explanado, que, resumidamente não teve a pretensão de se esgotar aqui. A abertura para essas pensamento político, pois revelou, através de sua luta política um projeto de sociedade
leituras e discussões, de um modo geral, aponta para uma forma de compreender a educação baseado na filosofia da práxis humana, contribuindo, ao longo de sua trajetória, com sua
numa direção de emancipação social, cultural, política e econômica. crítica real à filosofia e visão de mundo burguesas. Também, deixou marcadamente forte a
Entretanto, não é difícil perceber que um tema recorrente nessas discussões é a questão vontade (social) de consolidar a hegemonia de uma nova ordem social, na qual já vinha sendo
do conhecimento e sua relação com a educação política. E, de certa forma, Gramsci escreve a construído um novo homem coletivo capaz de gerir a sociedade em todos os seus aspectos e
história das “classes subalternas”, uma história que vai na “contramão” da história burguesa. de intervir diretamente nela, com todo a sua força política.
O autor acredita que o antagonismo de classes pode ser superado se o intelectual orgânico E para finalizar, Gramsci disse não à lógica do lucro, da competição, da obsessão pela
agir, e, na sua ação crítica, a transformação pode ser feita. posse e pelo consumo, elementos esses próprios do individualismo burguês, e disse sim à
Gramsci dá ênfase ao intelectual moderno, pois o mesmo está ligado ao processo solidariedade, ao atendimento às necessidades de todos e priorizou a escola e a educação
hegemônico de emancipação humana, na medida da reflexão e compromisso com a ação, em popular como via de conhecimento significativo, útil à sociedade e à formação humana em
contra partida ao intelectual tradicional que trabalha a teoria sem a prática. Portanto, geral.
questiona-se: Quais são os limites máximos da acepção de um intelectual? Assim, pode-se
afirmar, considerando a concepção gramsciana, que todos os homens são intelectuais, mas REFERÊNCIAS

nem todos desempenham na sociedade a função de intelectuais.


ANTUNES, R. (org.) A dialética do trabalho. Escritos de Marx e Engels. São Paulo:
Nos seus escritos Gramsci sempre retorna à organicidade, a qual é interpretada como Expressão Popular, 2004.
movimento, relação dinâmico-crítica. Neste contexto, a escola é vista como a via para a
GENNARI, E. Senso comum e bom senso na construção do poder dos trabalhadores.
formação do processo de pensar, mas um pensar crítico, que, consequentemente, NEP: Núcleo de Educação Popular. São Paulo, 1997.
proporcionará uma formação crítica/humanitária.
GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 10 ed. Rio
Ao propor a escola do trabalho, Gramsci reforça a escola de qualidade para todos e de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
afirma que ainda a cultura e a escola é um privilégio para poucos e esse quadro precisa,
GRAMSCI, A. Caderno 12 – Documento Especial In Historia & Perspectivas nº. 5.
urgentemente, ser mudado. Todos os jovens deveriam ser iguais em relação à cultura e o Uberlândia – U.F. Uberlândia, 1991.
Estado não deve pagar com o dinheiro de todos a escola para os medíocres, filhos dos
MARX, K. Salário, preço e lucro. Trad. Paulo Ferreira Leite. 4 ed. São Paulo: Centauro,
abastados, enquanto exclui os inteligentes e capazes, filhos dos proletários. 2002.
A recepção das idéias de Gramsci consolidou-se de fato, de acordo com Secco (2002),
NOSELLA, P. A escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
na conjuntura que se abriu nos meados dos anos sessenta, quando os primeiros livros do autor
9477

SECCO, L. Gramsci e o Brasil: recepção e difusão de suas idéias.

SCHLESENER, A. H. Hegemonia e cultura: Gramsci. 2. ed. Curitiba: UFPR, 2001.

SCHLESENER, A. Revolução e cultura em Gramsci. Curitiba: UFPR, 2002.


BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS
TUMOLO, P. S. Trabalho, vida social e capital na virada do milênio: apontamentos de
interpretação. Educação & Sociedade, n. 82. Campinas: CEDES, 2003. DESIGUALDADES SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL

FERREIRA, Walace1 - UERJ

RESUMO:
Pierre Bourdieu é, sem duvida, um dos grandes sociólogos do século XX, reconhecido interna-
cionalmente, e um dos grandes pensadores contemporâneos a abordar a questão da educação
de forma tão relevante. Neste artigo apresentamos sua teoria acerca da educação nas socieda-
des modernas, em que aparece uma considerável relação entre o papel da escola e a reprodu-
ção e legitimação das desigualdades sociais no contexto do capitalismo. Em seguida, propomos
uma reflexão sobre alguns aspetos da desigualdade social brasileira à luz da teoria de Bourdieu,
de maneira a estimular o leitor a ter um pensamento mais cuidadoso e crítico sobre a educação
e o seu papel.
PALAVRAS-CHAVE: Bourdieu - Concepção crítica - Desigualdade social no Brasil - Papel da edu-
cação.

ABSTRACT:
Pierre Bourdieu is, without doubt, one of the great sociologists of the twentieth century, recog-
nized internationally, and one of the greatest contemporary thinkers to address the issue of e-
ducation. This article presents the theory of Bourdieu on education in modern societies, in which
appears a significant relationship between the school and the role of reproduction and legitima-
tion of social inequalities in the context of capitalism. Then we propose a reflection on some
aspects of Brazilian social inequality in the light of Bourdieu's theory, so as to encourage the
reader to a more careful and critical thinking about education and its role.
KEYWORDS: Bourdieu - Critical conception - Social inequality in Brazil - The role of education.

“Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produ-
ção ou a sua construção”.

1
Professor Substituto de Sociologia no CAp-UERJ; Doutorando em Sociologia no IESP/UERJ. Email:
walaceuerj@yahoo.com.br

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 46


SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
escolhas ou aspirações individuais não deri- ticas culturais ou linguísticas de seu meio
Paulo Freire.
vam de cálculos ou planejamentos, são, familiar, teriam maior probabilidade de obter
INTRODUÇÃO sociais, identificando os traços invisíveis que
antes, produtos da relação entre um habitus o sucesso escolar. Em suas pesquisas na
não podemos notar através de um simples
Este artigo propõe uma análise sobre a e as pressões e estímulos de uma conjuntu- França, Bourdieu procurou demonstrar que
olhar de senso comum.
teoria de um dos mais influentes pensado- ra (SETTON, 2002). existe relação entre a cultura e as desigual-
res das ciências humanas no século XX, Pi- Bourdieu elabora, desse modo, um sis- dades escolares. Ou seja, a escola pressu-
É através dos seus habitus que os in-
erre Bourdieu, no que se refere exatamente tema teórico voltado a mostrar como as põe certas competências que são, de fato,
divíduos elaboram suas trajetórias e assegu-
à área em que mais contribuiu: a educação condições de participação social dos indiví- adquiridas na esfera familiar e no meio soci-
ram a reprodução social. Esta reprodução,
nas sociedades modernas. Na concepção do duos baseiam-se na herança social, que se al do indivíduo. Utilizando-se do conceito de
no entanto, não pode se realizar sem a sutil
autor, aparecem relevantes aspectos sobre reproduz constantemente numa determina- “violência simbólica”, o autor busca desven-
ação dos agentes e das instituições, preser-
a relação entre herança familiar, sobretudo da sociedade - a qual ele chama de estrutu- dar os mecanismos que fazem com que os
vando as funções sociais por uma forma de
cultural, e desempenho escolar; além de se ra estruturante. Ou seja, a sociedade seria sujeitos aceitem com naturalidade as repre-
dominação simbólica exercida sobre os indi-
estabelecer uma considerável relação entre uma estrutura estruturante na medida em sentações e as ideias dominantes, coorde-
víduos e com a adesão deles. Dessa manei-
o papel da escola e a reprodução e legitima- que suas mais profundas relações estão nadas pela burguesia. A violência simbólica,
ra, um dos primeiros e mais importantes
ção das desigualdades sociais no contexto constantemente sendo reestruturadas a na sua visão, seria desenvolvida pelas insti-
conceitos utilizados por Bourdieu é o de
do capitalismo. partir das ações dos seus indivíduos. Assim, tuições e pelos agentes que as põem em
habitus, que é determinado pela posição
o acúmulo dos bens simbólicos, dentre eles prática e sobre a qual se apoiaria o exercício
Partindo dessas questões teóricas, a- social do indivíduo na sociedade, posição
a educação, concentra-se nas estruturas do da autoridade (VASCONCELLOS, 2002).
bordadas nas primeiras quatro partes deste esta que lhe permite pensar, ver e agir nas
pensamento dos indivíduos, e também nas
artigo, procuramos trazer alguns aspetos da mais variadas situações. O habitus traduz, Seria através da transmissão da cultu-
manifestações externalizadas por suas ações
desigualdade social brasileira, especialmente dessa forma, estilos de vida, julgamentos ra escolar, a partir especialmente do ambi-
(BOURDIEU, 1989).
aquela que atinge a esfera educacional, de políticos, morais e estéticos, além de ser ente da escola, com suas regras, valores e
maneira a estabelecer uma reflexão dessas É importante dizer que a relação de in- também um meio de ação que permite criar padrões de comportamento, que a classe
desigualdades à luz da teoria crítica bourdi- terdependência entre o conceito de habitus ou desenvolver estratégias individuais ou dominante revelaria a sua violência simbóli-
esiana. Essas reflexões aparecem na parte e o conceito de campo é condição para seu coletivas (BOURDIEU, 1989). ca sobre alunos das classes populares. Isso
cinco e na conclusão deste artigo, que não pleno entendimento. O conceito de “campo” ocorreria a partir de conteúdos, programas,
Outro conceito muito importante do
pretende fazer uma análise profunda acerca em Bourdieu representa um espaço marca- métodos de trabalho e de avaliação, rela-
autor para a finalidade deste artigo consiste
dessa relação e nem sequer a explanação do pela dominação e pelos conflitos. Como ções pedagógicas, práticas linguísticas e
no de “capital cultural”, bastante utilizado
de qualquer verdade numa área polemizada exemplo, podemos citar o campo jornalísti- temáticas abordadas. Com isso, a violência
nos seus trabalhos sobre escolaridade. O
teoricamente e recheada de pesquisas apro- co, o campo literário, o campo educacional, simbólica se mostraria eficaz, no sentido de
capital cultural refere-se, pois, aos dispositi-
fundadas, mas apenas levar o leitor a um dentre muitos outros. Cada campo teria, explicar a adesão dos dominados pela cultu-
vos técnicos e simbólicos adquiridos pelos
pensamento mais cuidadoso sobre a educa- segundo Bourdieu, uma certa autonomia, ra imposta pelas classes dominantes, na
sujeitos no meio social. É o conjunto de
ção e o seu papel nas sociedades modernas. possuindo suas próprias regras de organiza- qual se aceitam regras, sanções, regras de
diplomas, nível de conhecimento geral, ex-
ção e de hierarquia social. Dentro desses direito ou morais e práticas linguísticas.
periências com teatro, artes, idiomas e boas
espaços limitados, os indivíduos atuariam
1. O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO DE PIERRE maneiras (BOURDIEU, 1998). Este conceito
segundo seu capital social, ou seja, as pos-
BOURDIEU E O LUGAR DA EDUCAÇÃO distingue-se de outros dois também de su-
sibilidades que possuem de acordo com a 2. O PENSAMENTO EDUCACIONAL ANTE-
ma importância, o “capital econômico” e o
Elaborando, obra por obra, um sistema rede de contatos da qual fazem parte. CEDENTE À BOURDIEU
“capital social”, sendo o capital econômico
completo de análise das relações sociais, Ou seja, a teoria praxiológica, ao fugir relacionado às posses financeiras e os bens Bourdieu teve o mérito de formular, a
Bourdieu desenvolveu uma sociologia que dos determinismos das práticas, pressupõe portados pelo sujeito, enquanto o capital partir dos anos 60, uma resposta original,
trouxe relevante reflexão crítica em torno uma relação dialética entre sujeito e socie- social vincula-se às redes de relações sociais abrangente e bem fundamentada, teórica e
das estruturas sociais. Para ele, o papel do dade, uma relação de mão dupla entre habi- que este sujeito possui com outros agentes. empiricamente, para o problema das desi-
sociólogo, enquanto um pesquisador atento tus individual e a estrutura de um campo, gualdades escolares, especialmente no foco
das interlocuções sociais, seria o de desven- Segundo Bourdieu, os estudantes de
socialmente determinado. Segundo esse de suas observações. Daí seu paradigma
dar o que se passa por trás das estruturas classe média ou da alta burguesia, pela pro-
ponto de vista, as ações, comportamentos, romper com a forma de se abordar as ques-
ximidade com a cultura “erudita”, pelas prá-
BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 47 BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 48
SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
tões referentes à educação até então sidade, da primeira geração beneficiada pela chances são desiguais. Alguns estariam nu- lizados (MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA,
(MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002). forte expansão do sistema educacional no ma condição mais favorável do que outros 2002).
pós-guerra. Essa geração, reunida em seto- para atenderem às exigências, muitas vezes
Até meados do século XX, predomina- Assim sendo, cada ser passa a ser ca-
res mais amplos do que as tradicionais elites implícitas e subliminares, da escola. Ao sub-
va, nas Ciências Sociais, uma visão extre- racterizado por uma bagagem socialmente
escolarizadas, se viu frustrada em suas ex- linhar que a cultura escolar é a cultura do-
mamente otimista, de inspiração funcionalis- herdada. Essa bagagem inclui, por um lado,
pectativas de mobilidade social através da minante dissimulada, Bourdieu abre cami-
tai, que atribuía à escolarização um papel certos componentes objetivos, externos ao
escola, devido à desvalorização dos títulos nho para uma análise mais crítica do currí-
central no duplo processo de superação do sujeito, e que podem ser postos a serviço
escolares que acompanhou a massificação culo, dos métodos pedagógicos e da avalia-
atraso econômico, do autoritarismo e dos do sucesso escolar. Fazem parte dessa pri-
do ensino na Europa. ção escolar, pois os conteúdos curriculares
privilégios, associados às sociedades tradi- meira categoria o capital econômico, toma-
seriam selecionados em função dos conhe-
cionais, e de construção de uma nova socie- Diante dessa crise do paradigma fun- do em termos dos bens e serviços a que ele
cimentos, dos valores, e dos interesses das
dade. Esta seria justa, baseada na merito- cionalista, Bourdieu propôs, nos anos 60, dá acesso, o capital social, cuja importância
classes dominantes. Como diz o autor:
cracia; moderna, centrada na razão e nos outra maneira de se pensar a questão. Os se dá pelo conjunto de relacionamentos
conhecimentos científicos; e democrática, dados que apontavam a forte relação entre É provável por um efeito de inércia sociais influentes mantidos pela família, a-
fundamentada na autonomia individual. Su- desempenho escolar e origem social e que, cultural que continuamos tomando lém do capital cultural institucionalizado,
punha-se que por meio da escola - mesmo em última instância, negavam o paradigma o sistema escolar como um fator de formado basicamente por títulos escolares.
pública e gratuita - seria resolvido o proble- funcionalista, transformaram-se nos elemen- mobilidade social, segundo a ideo- As referências culturais, os conhecimentos
logia da escola libertadora, quando,
ma do acesso à educação, garantindo, des- tos de sustentação da nova teoria. Onde se considerados legítimos e o domínio maior ou
ao contrário, tudo tende a mostrar
sa maneira, a igualdade de oportunidades via igualdade de oportunidades, meritocra- que ele é um dos fatores mais efi-
menor da língua culta, trazidos de casa por
entre todos os cidadãos. cia e justiça social, Bourdieu passou a ver cazes de conservação social, pois certas crianças, facilitariam o aprendizado
reprodução e legitimação das desigualdades fornece a aparência de legitimidade escolar, na medida em que funcionariam
O que ocorreu, todavia, nos anos 60,
sociais. A educação perderia o papel, que às desigualdades sociais, e sanciona como uma ponte entre o mundo familiar e a
foi uma crise profunda dessa concepção de
lhe fora atribuído, de instância transforma- a herança cultural e o dom social cultura escolar.
escola e uma reinterpretação radical do pa-
dora e democratizadora e passaria a ser tratado como dom natural
pel dos sistemas de ensino. Abandona-se o (BOURDIEU, 1998, p. 41). Desse modo, é muito importante sali-
vista como uma das principais instituições
otimismo das décadas anteriores, em favor entarmos a percepção bourdiesiana de que
por meio da qual se mantêm e se legitimam
de uma postura bem mais pessimista. Em a educação escolar, no caso das crianças
os privilégios sociais. Uma das teses centrais
primeiro lugar, tem-se, a partir do final dos O indivíduo, em Bourdieu, é um ator oriundas de meios culturalmente favoreci-
da sua Sociologia da Educação é a de que
anos 50, a divulgação de uma série de socialmente configurado em seus mínimos dos, seria uma espécie de continuação da
os alunos não são indivíduos abstratos que
grandes pesquisas quantitativas patrocina- detalhes. Os gostos mais íntimos, as prefe- educação familiar, enquanto, para as outras
competem em condições relativamente i-
das pelos governos inglês, americano e rências, as aptidões, as posturas corporais, crianças, significaria algo estranho, distante,
gualitárias na escola, mas atores socialmen-
francês (Aritmética Política inglesa, Relatório a entonação de voz, as aspirações relativas ou mesmo ameaçador. Nesse tom, a avalia-
te constituídos que traz incorporada, em
Coleman - EUA, Estudos do INED - França) ao futuro profissional, tudo seria socialmen- ção escolar vai muito além de uma simples
larga medida, uma bagagem social e cultu-
que, em resumo, mostraram, de forma cla- te constituído. A partir de sua formação ini- verificação de aprendizagem, incluindo um
ral diferenciada e mais ou menos rentável
ra, o peso da origem social sobre os desti- cial, em um ambiente social e familiar, os verdadeiro julgamento cultural e até mesmo
no mercado escolar (MARTINS NOGUEIRA;
nos escolares. A partir deles, tornou-se im- quais correspondem a uma posição específi- moral dos alunos. Como diz o autor:
NOGUEIRA, 2002).
perativo reconhecer que o desempenho es- ca na estrutura social, os sujeitos incorpora- Na verdade, cada família transmite
colar não dependia, tão simplesmente, dos Decorrente desta abordagem, Bourdi- riam um conjunto de disposições para a a seus filhos, mais por vias indiretas
dons individuais, mas também da origem eu lança a concepção de que a escola não é ação típica dessa posição - um habitus fami- que diretas, um certo capital cultu-
social dos alunos, sua classe, etnia, sexo, neutra. Formalmente, ela efetivamente tra- liar ou de classe - que passaria a conduzi-los ral e um certo ethos, sistema de va-
local de moradia, dentre outros aspectos de taria a todos de modo igual, na medida em ao longo do tempo e nos mais variados am- lores implícitos e profundamente in-
ordem social. Em segundo lugar, a mudança que todos assistiriam às mesmas aulas, se- bientes de ação. Já a estrutura social se teriorizados, que contribui para de-
no olhar sobre a educação nos anos 60 es- riam submetidos às mesmas formas de ava- finir, entre outras coisas, as atitudes
perpetuaria, porque estes próprios sujeitos
teve relacionada a efeitos inesperados da liação, obedeceriam às mesmas regras e, face ao capital cultural e à institui-
tenderiam a atualizá-la ao agir de acordo ção escolar. A herança cultural, que
massificação do ensino. Os anos 60 marcam portanto, teriam as mesmas chances. Con- com o conjunto de disposições típicas da difere, sob dois aspectos, segundo
a chegada, ao ensino secundário e à Univer- tudo, Bourdieu mostra que, na prática, as posição estrutural na qual eles foram socia- as classes sociais, é a responsável
BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 49 BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 50
SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
pela diferença inicial das crianças ne pela caracterização genealógica que a diferentemente do dinheiro ou de um título
da experiência escolar e, conse- constitui. Pelo contrário, é produto do traba- de nobreza, mas se adquire de uma forma
quentemente, pelas taxas de êxito Por fim, o estado institucionalizado é
lho de instauração e manutenção que é ne- totalmente dissimulada e inconsciente. Co-
(BOURDIEU, 1998, p. 42). um tipo de forma de objetivação que é pre-
cessário para produzir e reproduzir relações mo diz: “Não pode ser acumulado para além
ciso ser colocado à parte, uma vez que con-
Salienta-se que essas exigências só duráveis e úteis, com vistas a proporcionar das capacidades de apropriação de um a-
fere ao capital cultural propriedades intei-
podem ser plenamente atendidas por quem lucros materiais ou simbólicos. A rede de gente singular; depaupera e morre com seu
ramente originais. Segundo diz:
foi previamente socializado nesses mesmos ligações é o produto de estratégias de in- portador, com suas capacidades biológicas,
valores. Pode ser na família, ou também vestimento social consciente ou inconscien- sua memória, etc” (BOURDIEU, 1998, p. Ao conferir ao capital cultural pos-
através do contato pessoal com amigos e temente orientadas para a instituição ou a 75). suído por determinado agente um
reprodução de relações sociais. Nela se es- reconhecimento institucional, o cer-
outros parentes que possuam familiaridade Já no estado objetivado, aparecem sob tificado escolar permite, além disso,
com o sistema educacional. Vê-se, neste tabelecem sentimentos de reconhecimento,
a forma de bens culturais, como quadros, a comparação entre os diplomados
caso, a importância do capital social como de respeito, amizade, dentre outros. Estabe- e, até mesmo, sua ‘permuta’ (subs-
livros, dicionários, instrumentos e máquinas.
um instrumento de acumulação do capital lecem-se também garantias institucionaliza- tituindo-os uns pelos outros na su-
O capital cultural, no estado objetivado,
cultural. Com isso, o capital econômico e o das, como direitos. Tudo isso, constituído a cessão); permite também estabele-
detém um certo número de propriedades
social funcionariam, na maior parte das ve- partir das trocas executadas pelos seus cer taxas de convertibilidade entre o
que se define apenas em sua relação com o
zes, apenas como meios auxiliares na acu- membros, tais como palavras e presentes. capital cultural e o capital econômi-
capital cultural em sua forma incorporada.
mulação do capital cultural. Como assegura o autor: co, garantindo o valor em dinheiro
Como diz: de determinado capital escolar
A troca transforma as coisas troca- (BOURDIEU, 1998, p. 79).
O capital cultural no estado objeti-
das em signos de reconhecimento
3. O CAPITAL SOCIAL E O CAPITAL CULTURAL vado apresenta-se com todas as
e, mediante o reconhecimento mú-
NA EDUCAÇÃO
aparências de um universo autôno-
tuo e o reconhecimento da inclusão
mo e coerente que, apesar de ser o 4. O INVESTIMENTO NA EDUCAÇÃO DE
no grupo que ela implica, produz o
Retomando o conceito de capital soci- produto da ação histórica, tem suas ACORDO COM A CLASSE SOCIAL
grupo e determina ao mesmo tem-
al, este consiste num conjunto de recursos po os seus limites, isto é, os limites
próprias leis, transcendentes às
atuais ou potenciais ligados à posse de uma vontades individuais, e que perma- Bourdieu distingue três conjuntos de
além dos quais a troca constitutiva, disposições e de estratégias de investimento
rede durável de relações mais ou menos nece irredutível, por isso mesmo,
comércio, comensalidade, casamen-
institucionalizadas de inter-conhecimento e àquilo que cada agente ou mesmo escolar os quais seriam adotados tendenci-
to, não pode ocorrer. Cada membro
o conjunto dos agentes pode se a- almente pelas classes populares, classes
de inter-reconhecimento. Em outras pala- do grupo encontra-se assim instituí-
propriar (BOURDIEU, 1998, p. 78). médias (ou pequena burguesia) e pelas eli-
vras, representa a vinculação a um grupo, do como guardião dos limites do
como conjunto de agentes que não somente grupo (BOURDIEU, 1998, p. 68). tes (MARTINS NOGUEIRA; NOGUEIRA,
são dotados de propriedades comuns, mas 2002).
E quanto à sua existência, diz:
também são unidos por ligações permanen- O primeiro desses grupos, pobre em
tes e úteis. Essas ligações, entretanto, são Já quanto ao capital cultural incorpo- É preciso não esquecer, todavia, capital econômico e cultural, tenderia a in-
irredutíveis às relações objetivas de proxi- rado à realidade escolar, distinguem-se três que ele só existe e subsiste como
vestir de modo moderado no sistema de
formas sob as quais o capital cultural pode capital ativo e atuante, de forma
midade no espaço geográfico ou no espaço ensino. Seria um investimento relativamente
subsistir: no estado incorporado, no estado material e simbólica, na condição de
econômico e social, uma vez que são funda- ser apropriado pelos agentes e utili- baixo, o que se explicaria por várias razões.
das em trocas inseparavelmente materiais e objetivado e no estado institucionalizado Em primeiro lugar, devido à percepção, a
zado como arma e objeto às lutas
simbólicas cuja instauração e perpetuação (BOURDIEU, 1998). partir dos exemplos acumulados, de que as
que se travam no campo da produ-
supõem o reconhecimento dessa proximida- No estado incorporado, o capital cultu- ção cultural (campo artístico, cientí- chances de sucesso são reduzidas, na medi-
de pelos agentes participantes (BOURDIEU, ral aparece sob a forma de disposições du- fico, etc.) e, para além desses, no da em que faltariam os recursos econômi-
1998). ráveis no organismo do próprio indivíduo. É campo das classes sociais, onde os cos, sociais e, sobretudo, culturais necessá-
um ter que se tornou ser, uma propriedade agentes obtêm benefícios propor- rios para um bom desempenho escolar. Isso
Importante destacarmos que a exis- cionais ao domínio que possuem
tência de uma rede de relações não é exa- que se fez corpo e tornou-se parte integran- tornaria o retorno do investimento muito
desse capital objetivado, portanto,
tamente um dado natural, como é o caso do te da pessoa, um habitus. Este capital não incerto e, portanto, o risco muito alto. Essa
na medida de seu capital incorpora-
grupo familiar, por exemplo, o qual se defi- pode ser transmitido instantaneamente, do (BOURDIEU, 1998, p. 78). incerteza e esse risco seriam ainda maiores

BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 51 BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 52
SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
pelo fato de que o retorno do investimento rem o sucesso escolar. As famílias desse ria necessário observar, também, que a pelos séculos e pelas últimas décadas a par-
escolar é dado no longo prazo, sendo que grupo social já possuiriam um volume razo- tendência maior ou menor ao investimento tir, sobretudo, da reprodução de classes.
essas famílias estariam, em função de sua ável de capitais que lhes permitiriam apostar escolar estaria relacionada com a trajetória Nesse sentido, a contribuição crítica de
condição socioeconômica, menos prepara- no mercado escolar sem correr tantos ris- ascendente ou descendente da fração de Bourdieu pode ser de extrema relevância
das para suportar os custos econômicos cos. Para Bourdieu, no entanto, o compor- classe média em questão. Nesse sentido, os para uma análise da realidade brasileira. As
dessa espera. Seria um pesado fardo, por tamento das famílias das classes médias não grupos ascendentes seriam os que deposita- elites sempre desenvolveram mecanismos
exemplo, o adiamento da entrada dos filhos pode ser explicado apenas pelas chances riam maiores esperanças na escolarização que lhes assegurassem a permanência nas
no mercado de trabalho, fator necessário comparativamente superiores de seus filhos. de seus filhos. posições de origem ascendente. A própria
para se adquirir a qualificação exigida para Seria necessário considerar, igualmente, as circulação dentro da estrutura social brasilei-
Por fim, Bourdieu se refere às elites
altas funções. expectativas quanto ao futuro, sustentadas ra não foi capaz de reduzir em grandes es-
econômicas. Esses grupos investiriam pesa-
por esses grupos sociais. Originárias, em calas a desigualdade que o século XX her-
Acrescenta-se a isso o fato de que o damente na escola, porém, de uma forma
grande parte, das camadas populares e ten- dou do passado escravista. Não se pode
retorno alcançado com os títulos escolares bem mais descontraída do que as classes
do ascendido às classes médias por meio da negar que pobres e negros tiveram mobili-
depende, parcialmente, como já foi dito médias. Isso se deveria, por um lado, ao
escolarização, as famílias de classe média dade entre gerações, mas isso foi muito
anteriormente, da posse de recursos eco- fato de que o sucesso escolar no caso des-
nutririam esperanças de continuarem sua mais caracterizado por uma passagem da
nômicos e sociais passíveis de serem mobili- sas famílias é tido como algo natural, que
ascensão social, agora, em direção às elites. área rural para o meio urbano, do que pro-
zados para potencializar o valor dos títulos. não depende de um grande esforço de mo-
priamente representou consideráveis ganhos
No caso dessas famílias, nas quais esses Todas as condutas das classes médias bilização familiar. As condições objetivas,
em relação à hierarquia social (RIBEIRO,
recursos são reduzidos. Segundo Bourdieu, poderiam ser entendidas, dessa maneira, tais como a posse de um volume expressivo
2007).
nessas famílias, de um modo geral, a vida como parte de um esforço mais amplo com de capitais econômicos, sociais e culturais,
escolar dos filhos não seria acompanhada vistas a criar condições favoráveis à ascen- tornariam o fracasso escolar bastante im- O modelo rural, formador da socieda-
de modo muito sistemático e nem haveria são social. Nessas classes sociais seria nor- provável. Ademais, as elites estariam livres de brasileira, tinha como fortes traços a
uma cobrança intensiva em relação ao su- mal evidenciar determinadas disposições de da luta pela ascensão social. Elas já ocupam desigualdade, que aparecia na concentração
cesso escolar. As aspirações escolares desse renunciarem aos prazeres imediatos, em as posições dominantes, não dependendo, de terras, nas influências econômicas e polí-
grupo seriam moderadas, esperando dos benefício do seu projeto de futuro, especi- portanto, do sucesso escolar dos filhos para ticas e no despreparo de grande parte dos
filhos que eles estudassem apenas o sufici- almente dos filhos. Sacrificariam a compra ascender socialmente. trabalhadores. Foi exatamente essa popula-
ente para se manter. Esse estágio de edu- de bens materiais e viagens, por exemplo, ção desprivilegiada do Brasil rural aquela
Em relação às elites, importante sali-
cação já significaria, na maioria dos casos, o de modo a investirem na boa escolarização que mais sofreu com os efeitos do rápido
entar que Bourdieu contrasta as frações
alcance de uma escolarização superior à dos dos seus filhos. processo de industrialização e urbanização.
mais ricas em capital cultural com aquelas
pais. Essas famílias tenderiam, assim, a pri- Muitos de seus filhos foram viver nas cida-
Além disso, a classe média tenderia a mais ricas em capital econômico. As primei-
vilegiar as carreiras escolares mais curtas, des, mas sentiram na pele o peso da ori-
controlar a fecundidade, desenvolvendo a ras seriam propensas a um investimento
que dão acesso mais rapidamente à inser- gem, seja través do preconceito da origem
estratégia de concentrar os recursos num escolar mais intenso, visando o acesso às
ção profissional. Um investimento numa racial, seja através do preconceito da falta
número reduzido de filhos. Embora, de um carreiras mais longas e prestigiosas do sis-
carreira mais longa só seria feito nos casos de conhecimentos técnicos para se empre-
modo geral, possa se falar que a aspiração tema de ensino. Já as frações mais ricas em
em que a criança apresentasse, precoce- garem nos novos ramos fabris existentes
por ascensão social, que caracteriza as clas- capital econômico tenderiam a buscar na
mente, resultados escolares excepcional- (RIBEIRO, 2007).
ses médias, conduz à tendência de se inves- escola, principalmente, uma certificação que
mente positivos, capazes de justificar a a-
tir fortemente na escolarização dos filhos, legitimaria o acesso às posições de controle Abaixo, tabela que mostra a distribui-
posta arriscada no investimento escolar.
não se pode esquecer que o grau em que já garantidas pelo capital econômico. ção do rendimento segundo a cor em 1999
Já as classes médias - ou pequena isso ocorre dependeria do peso relativo dos e 2009, demonstrando como os negros se-
burguesia, segundo a expressão de Bourdi- capitais em cada uma das frações da classe guem, no período atual, em consideráveis
eu -, tenderiam a investir pesada e sistema- média. As frações mais providas de capital 5. BREVE REFLEXÃO DAS DESIGUALDADES desvantagens econômicas em relação aos
ticamente na escolarização dos filhos. Esse econômico - ao contrário das que possuem SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL À LUZ DE brancos e como a riqueza no Brasil segue
comportamento se explicaria, em primeiro quase que exclusivamente capital cultural - BOURDIEU concentrada em benefício de pequenos gru-
lugar, pelas chances objetivamente superio- tenderiam a não conceder uma prioridade A história do Brasil mostra como as pos.
res dos filhos das classes médias alcança- tão acentuada ao investimento escolar. Se- desigualdades sociais foram se reproduzindo Além disso, o crescimento do sistema
BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 53 BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 54
SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
educacional, ao longo do século XX, tam- universalização do ensino nesta faixa etária. a maior parte da população desprovida eco- privilegiada da população durante boa parte
bém foi bastante lento. Nas décadas de A educação, dessa maneira, permaneceu nomicamente e que vinha da área rural para do século passado (RIBEIRO, 2007).
1960 e 1970, para se ter uma ideia - perío- como fonte de acesso à reduzida parcela a área urbana não conseguiu ingressar no
Vejamos dados atuais, que mostram menos
do considerado como o auge da industriali- privilegiada da população durante boa parte sistema escolar básico. Apenas mais recen-
negros (pretos e pardos) no ensino superior,
zação -, as universidades e as escolas de do século passado (RIBEIRO, 2007). temente, a partir da década de 1990, pu-
se comparados aos brancos. Ou seja, a edu-
nível secundário (atual ensino médio), cres- demos verificar um efetivo aumento do en-
Vejamos dados atuais, que mostram cação superior continua consideravelmente
ceram mais que o ensino básico. Com isso, sino básico no Brasil, caminhando para a
menos negros (pretos e pardos) no ensino segregada em favor de grupos racialmente
a maior parte da população desprovida eco- universalização do ensino nesta faixa etária.
superior, se comparados aos brancos. Ou definidos e de condições econômicas deter-
nomicamente e que vinha da área rural para A educação, dessa maneira, permaneceu
seja, a educação superior continua conside- minadas:
a área urbana não conseguiu ingressar no como fonte de acesso à reduzida parcela
ravelmente segregada em favor de grupos
sistema escolar básico. Apenas mais recen-
racialmente definidos e de condições eco-
temente, a partir da década de 1990, pu- Tabela 2:
nômicas determinadas:
demos verificar um efetivo aumento do en-
sino básico no Brasil, caminhando para a

Tabela 1:

Disponível em:
<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/06/29/brancos-ganham-duas-vezes-mais-que-
negros-e-dominam-ensino-superior-no-pais-mostra-censo-2010.htm>.

culturais. Os hábitos cultivados pelas elites


Fonte: IBGE. Disponível em: http://picasaweb.google.com/lh/photo/ Numa linguagem bourdiesiana, a vio-
acabaram se envolvendo com a ideia de que
srV_B5CqtR1tCkPbIEjb5Q?feat=embedwebsite>. lência simbólica presente na estrutura social
estes seriam os melhores hábitos, e os esti-
brasileira a dividiu em classes bem defini-
los de vida dessa classe marcou profunda-
das, sustentando-as segundo o preconceito
mente os principais espaços de interação
e a segregação. Nesta sociedade, o poder
social no país.
do considerado como o auge da industriali- simbólico do capital econômico sempre e-
Além disso, o crescimento do sistema
zação -, as universidades e as escolas de xerceu considerável poder que se espalhou Nesse contexto, a educação foi se de-
educacional, ao longo do século XX, tam-
nível secundário (atual ensino médio), cres- para os demais campos de vínculos sociais, senvolvendo, inicialmente, como fonte de
bém foi bastante lento. Nas décadas de
ceram mais que o ensino básico. Com isso, tais como relações profissionais, políticas e acesso aos membros dessas elites, que nela
1960 e 1970, para se ter uma ideia - perío-
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SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
viram a possibilidade de ganhos de status e e que a educação apresentaria pouca força educação permanece bastante viva na lite- teoria para pensarmos a educação e o seu
aquisição de um capital cultural que se jun- para alterar. ratura pedagógica, nas políticas públicas e real papel transformador nas sociedades mo-
taria ao capital econômico já portado por no inconsciente coletivo. No Brasil, a educa- dernas. Sem nos prendermos a uma cadeia
É com isso que podemos propor uma
suas famílias. Com o avanço das taxas de ção, enquanto potencializadora de transfor- pessimista, mas procurando nos desprender
leitura reflexiva acerca dos projetos de a-
escolarização, hoje em dia a educação no mação, continua em destaque, especialmen- dela, alguma reflexão certamente poderá nos
ções afirmativas que vêm sendo implemen-
Brasil de qualidade, a despeito dos projetos te nos círculos públicos que envolvem os ajudar a melhorar nossa atuação enquanto
tados no Brasil, já que têm se configurado
de universalização da alfabetização, é privi- debates políticos. Defende-se que através profissionais da educação.
como as principais políticas voltadas para a
légio de poucos que podem efetivamente do crescimento educacional o país poderá
redução das desigualdades raciais. Até que
arcar com seus altos custos. gerar uma massa mais consciente politica-
ponto as ações afirmativasii, ao darem maior
mente, mais qualificada profissionalmente e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Assim sendo, o capital cultural, indis- possibilidade de acesso a cargos, empregos
mais avançada moralmente. Entretanto, o BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação.
pensável para uma boa evolução na apren- e vagas nas universidades – através das
que os debates políticos não mostram são Petrópolis: Vozes, 1998.
dizagem e no aprimoramento do conheci- cotas universitárias –, efetivamente serão
os limites da própria educação dentro de
mento acerca do mundo a nossa volta, aca- capazes de reduzir as desigualdades que ______________. O Poder Simbólico. Rio
uma sociedade hierarquizada, do ponto de
ba por vincular-se diretamente às posses acometem grupos segregados, como a i- de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A,
vista de vários capitais indispensáveis para
provenientes das condições de classe. Isso mensa população negra? Embora a preten- 1989.
os efeitos pretendidos através do investi-
explica boa parte da relação proporcional- são seja dar um suporte aos beneficiados,
mento em educação. ______________. Pierre Bourdieu: So-
mente crescente entre a condição de renda ligando-os ao capital econômico, cultural e
per capita dos estudantes e o avanço nas social das elites, será necessário que as No século XX, pouco depois do fim da ciologia. ORTIZ, Renato (org.). São Paulo:
transições escolares, e a manutenção das pessoas beneficiadas consigam transmitir abolição, foram chegando propostas e ideias Ática, 1983.
desigualdades educacionais no país. Portan- aos seus filhos os mesmos capitais necessá- de modernização ao país, mas junto houve a MARTINS NOGUEIRA, Cláudio Marques;
to, a partir destas desigualdades, explica-se rios para chegarem aos patamares alcança- persistência de uma complexa teia de tradi- NOGUEIRA, Maria Alice. "A sociologia da
como que, num país de fortes gradações de dos pelos pais sem a necessidade da mesma cionalismo político, social e econômico, que educação de Pierre Bourdieu: Limites e con-
qualidade escolar, as desigualdades de ren- reserva de vagas. persiste até hoje em nossas vidas, tecendo tribuições". In: Revista Educação e Soci-
da e de cor persistem consideravelmente, um país contraditório: rico porém desigual. A edade, vol. 23, nº 78, Campinas, 2002.
Nesse sentido, Bourdieu nos permite
mesmo após termos verificado um aumento educação aparece no seio dessas contradi-
pensar que as atuais políticas de justiça RIBEIRO, Carlos Antônio Costa. Estrutura
considerável no acesso à educação, em to- ções, haja vista as desigualdades que acom-
social podem estar apenas tentando ajustar de classe e mobilidade social no Brasil.
das as faixas, nos últimos anos. panham o seu processo. As melhores escolas
a estrutura social existente, em busca de Bauru, SO: Edusc, 2007.
normalmente são pagas, e são quase que
Vinculado a esses dois tipos de aportes justiça e redução das desigualdades, mas
exclusivamente acessíveis às classes médias e SETTON, Maria da Graça Jacintho. "A teoria
sociológicos – o capital econômico e o capi- sem alterar a estrutura que gerou as pró-
altas. Seus alunos, em grande medida, tra- do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura
tal cultural – podemos nos inspirar em prias desigualdades. Assim sendo, o Brasil
zem consigo toda uma conjunção de capitais contemporânea". In: Revista Brasileira de
Bourdieu para identificarmos a forte presen- pode estar mantendo as mesmas desigual-
indispensáveis para o sucesso educacional. Educação, nº 20, Maio/Jun/Jul/Ago, 2002.
ça, no Brasil, do capital social. Este aporte, dades que historicamente apresentou, ape-
Por outro lado, o ensino público geralmente
caracterizado pelas redes de contatos esta- nas reduzindo-as um pouco, porém sob o VASCONCELLOS, Maria Drosila. "Pierre
apresenta uma série de problemas, desde a
belecidas pelos agentes da estrutura social, manto das políticas de igualização e da pre- Bourdieu: a herança sociológica". In: Edu-
falta de infraestrutura adequada, até a má
foi e continua sendo aspecto de relevante ocupação com os índices de melhorias soci- cação & Sociedade, vol. 23, nº 78, abril,
remuneração do corpo docente. No momento
centralidade para a manutenção das desi- ais que não transformariam a sua estrutura Campinas, 2002.
de concorrer às vagas dos melhores cursos e
gualdades de classe. As redes sociais das efetivamente desigual.
nas melhores faculdades, os indivíduos mais
pessoas com capital econômico e capital
bem preparados levam vantagens, contes-
cultural intensos são mais amplas e mais VIEIRA DA COSTA, Andréa Lopes. Ação
CONCLUSÃO tando a aparente e enganosa igualdade meri-
articuladas do que daqueles que detém me- Afirmativa e o Combate as Desigualda-
tocrática de oportunidades.
nores capitais desses tipos. Aí atua a violên- Apesar de os trabalhos de Bourdieu des Raciais no Brasil: Em busca do Ca-
cia simbólica que acomete a sociedade bra- terem revelado as limitações da educação, Aceitemos ou não a leitura de Bourdieu minho das Pedras. Tese de Doutorado,
sileira, reestruturando uma realidade desi- enquanto portadora de um papel revolucio- para analisar as questões atuais do Brasil, IUPERJ: 2005.
gual em seus aspectos de classe e de raça, nário, devemos ressalvar que a crença na podemos, sem sombra de dúvidas, usar sua

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SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL
Revista do Laboratório de
Estudos da Violência da Ano 2011 – Edição 7 – Junho/2011 – ISSN 1983-2192
UNESP/Marília

DISCIPLINA, CONTROLE SOCIAL E EDUCAÇÃO


ESCOLAR: UM BREVE ESTUDO À LUZ DO
PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT1
i
Émile Durkheim foi um dos expoentes do fun-
cionalismo. A educação, segundo Durkheim,
transmitiria valores morais que integram a soci-
edade, sendo a coesão social o aspecto de sua CRUZ, Priscila Aparecida Silva. 2
maior preocupação. O autor destaca a função
uniformizadora e diferenciadora da educação: de
FREITAS, Silvane Aparecida de.3
um lado, visando a integração do indivíduo no
contexto social, transmitindo valores e desenvol-
vendo atitudes comuns; de outro lado, a educa-
ção diferenciadora, respondendo à divisão social
Resumo: Nosso intuito neste artigo é apresentar as análises de Foucault referentes à
do trabalho e reforçando-a. No Brasil, este para-
digma do consenso influenciou especialmente a formação da sociedade disciplinar, no sentido de favorecer o entendimento do
obra de Fernando Azevedo, sociólogo inspirado funcionamento das suas formas de vigilância e punição em nossa sociedade, sendo o
na teoria durkheimiana. Azevedo foi o pioneiro foco principal, a escola e suas relações de controle e vigilância. A pesquisa bibliográfica,
da Escola Nova, movimento que nas primeiras ora realizada, tem como referencial teórico Michel Foucault e outros autores que
décadas do século XX defendia a universalização
da escola pública, laica e gratuita. Segundo de- avaliam a questão do poder disciplinar na formação da instituição escolar moderna. As
fendia, os sistemas educativos variam de acordo reflexões sobre os resultados desta pesquisa bibliográfica visam a melhor compreensão
com as formas de sociedade, só sendo compre- dos mecanismos de exercício do poder disciplinar, frequentemente, utilizados na
endidos, pois, em função do todo. Assim, ele Instituição Escolar e permitem inferir como esses mecanismos exercem o controle
destaca o papel socializador da educação, seu
caráter coercitivo, sua importância para a inte- social, político e ideológico no contexto da uma sociedade como a atual, atravessada
gração social e as relações entre mudança social por interesses diversos e quase sempre contraditórios.
e educacional. No Brasil em que viveu, marcado
pela emergência da sociedade urbano-industrial, Palavras-chave: Poder disciplinar. Sociedade disciplinar. Controle social. Instituição
uma de suas grandes preocupações foi o ajus- Escolar
tamento da educação às novas condições histó-
rico-sociais.
ii
Ótimo estudo sobre as ações afirmativas, Cf.
VIEIRA DA COSTA, Andréa Lopes. Ação Afir-
mativa e o Combate as Desigualdades Ra- Introdução
ciais no Brasil: Em busca do Caminho das
Pedras. Tese de Doutorado, IUPERJ: 2005. Vivemos em uma sociedade de vigilância, em que a cada momento nos damos
conta de que estamos sendo controlados e avaliados. Por vezes, essa vigilância é tão
mascarada ou tão natural e cotidiana que sequer notamos a sua presença. A disciplina é
um mecanismo utilizado para garantir o controle dos indivíduos que compõem
determinada sociedade. As instituições, em geral, adotam os mecanismos disciplinares
1
O texto ora apresentado é parte reformulada de uma pesquisa apoiada pelo CNPQ, intitulada: “O PODER
DISCIPLINAR E A VIOLÊNCIA NAS INSTITUIÇÕES ESCOLARES: um estudo à luz do pensamento de Michel
Foucault e Áurea Guimarães.”
2
Discente do Curso de Direito na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíba.
Bolsista PIBIC/CNPQ, autora da pesquisa intitulada “O PODER DISCIPLINAR E A VIOLÊNCIA NAS
INSTITUIÇÕES ESCOLARES: um estudo à luz do pensamento de Michel Foucault e Áurea Guimarães.” E-mail:
BOURDIEU E EDUCAÇÃO: CONCEPÇÃO CRÍTICA PARA PENSAR AS DESIGUALDADES 59 priscarola@hotmail.com
3
SOCIOEDUCACIONAIS NO BRASIL Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista de Assis. Docente dos cursos de Pedagogia, Ciências Sociais e
Especialização em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade Universitária de Paranaíbanos.
E-mail: silvaneafreitas@hotmail.com

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Revista LEVS/UNESP-Marília | Ano 2011 – Edição 7 Junho/2011 – ISSN 1983-2192 DISCIPLINA, CONTROLE SOCIAL E EDUCAÇÃO ESCOLAR: UM BREVE ESTUDO
À LUZ DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

para garantir a vigilância, o controle, a maior produtividade e desempenho de seus Diante do exposto, neste estudo, refletiremos sobre as correlações entre saber e
integrantes. Estando as instituições escolares inseridas no contexto sócio cultural, poder, vigilância e penalidade que constituem a sociedade disciplinar. Nesta
estão impregnadas deste mesmo mecanismo disciplinar de controle social. perspectiva, entende-se que a disciplinarização e o rigor da sua aplicação, como umas
das formas de se manifestar o saber, buscando entender a visão foucaultiana do poder
Michel Foucault observou e teorizou esse fenômeno social, denominando-o
disciplinar e suas relações de força, as quais podem se constituir por meio da
de sociedades disciplinares, o qual situou-se entre os séculos XVIII e XIX, atingindo
disciplinarização do espaço, tempo e corpos.
seu ápice no começo do século XX, época em que os sujeitos (soldados, alunos,
trabalhadores) eram disciplinarizados com o intuito de que se tornassem dóceis e Nosso intuito neste artigo é apresentar as análises de Foucault referentes à
produtivos. formação da sociedade disciplinar, compreendendo o funcionamento das suas formas
de vigilância e punição em nossa sociedade, sendo o foco principal, a escola e suas
A obra de Foucault foi sistematizada por alguns estudiosos e pelo próprio
relações de controle e vigilância.
Foucault, segundo três diferentes ênfases metodológicas, denominadas arqueologia,
genealogia e ética, sendo comum essa forma de sistematização. Sobre essa Conhecer estas disciplinas e seus mecanismos de controle poderá nos permitir
sistematização, Salma Tannus Muchail (2004, p. 9) acrescenta: o entendimento da submissão da instituição escolar a diversas normas disciplinares e a
Os estudiosos de Foucault como ele próprio, reconhecem, com certo obediência dos alunos. É importante refletirmos sobre o fato de que a força do poder e
consenso, uma repartição possível dessa trajetória em três momentos. o olhar vigilante expresso pelas hierarquias podem ser um meio hábil para gerar o
O primeiro conhecido como da „arqueologia‟, é voltado comportamento dócil do educando e do educador, sendo que pode haver uma razão
principalmente para questões relativas à constituição dos saberes e de cunho político e social diretamente interessada nesse comportamento disciplinado.
inclui os principais livros publicados na década de 1960 [...]. O
segundo momento, conhecido como período da „genealogia‟, é A pesquisa em desenvolvimento é de cunho qualitativo, baseada em uma
centrado sobre questões relativas aos mecanismos do poder e inclui revisão bibliográfica e levantamentos de textos teóricos relacionados em análises de
os principais livros da década de 1970 [...]. O terceiro momento trata textos que tratam a questão do pensamento de Michel Foucault e Áurea Guimarães,
de questões relativas à constituição do sujeito ético. verificando-se, primeiramente, como o poder disciplinar age na instituição escolar, para
então compreender como este pode ser um fator gerador da violência, segundo estes
Foucault utiliza a genealogia como um instrumento metodológico que une estudiosos.
estudos buscando o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais,
acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização
desse saber nas táticas atuais. (FOUCAULT, 2002, p. 13).
A formação da sociedade disciplinar
Usando dessa genealogia, Michel Foucault (2002, p. 19) questiona “a Foucault, no ano de 1966, em seu livro intitulado As palavras e as coisas, traça o
instituição e os efeitos de saber e de poder no discurso científico”. Desse modo, ele percurso histórico dos discursos que formaram os saberes verdadeiros. Analisando
considera interessante determinar quais são os diferentes dispositivos de poder desde o Renascimento até a Modernidade, Foucault procura compreender como
exercidos na sociedade. Em relação ao “saber-poder”, Foucault admite que o poder ocorreu a formação dos saberes do homem em nossa Modernidade e como esses
produz saber, logo, define que estes estão diretamente implicados, sendo que não há saberes formaram as ciências humanas.
relação de poder sem constituição direta de um campo do saber, nem saber que não
suponha ou não constitua, simultaneamente, relações de poder. No século XIX, período conhecido como Modernidade, Foucault sugere que
houve uma mudança considerável na ordem do saber, ocasionado numa
Especialmente no livro “Vigiar e Punir: nascimento das prisões” de Foucault “redistribuição geral da epistémê” (FOUCAULT, 2002, p. 477), resultando no
(publicada no ano de 1975), a questão do poder e de seus dispositivos é aparecimento do homem como objeto “empírico de conhecimento, abrindo assim, a
problematizada, constituindo, assim, o assunto principal dessa pesquisa, que versará possibilidade para a constituição das ciências humanas.” (NERY, 2008.p.7).
sobre a disciplina utilizada na sociedade moderna para o controle da atividade e da
composição das forças, para obtenção de maior eficiência e para o controle social com Nesse sentido, Foucault (2002, p.476) anota que as ciências humanas
regulamentação das práticas punitivas da instituição escolar.

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À LUZ DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

[...] não aparecem quando sob o efeito de algum racionalismo exercício do poder o mesmo lugar da formação do saber. Segundo DAHLBERG apud
premente, de algum problema científico não resolvido, de algum SANTANA (2007, p.117),
interesse prático, decidiu-se fazer passar o homem [...] para o campo
dos objetos científicos [...], elas aparecem no dia em que o homem se [...] Foucault desafia a crença de que o poder oprime os indivíduos,
constituiu na cultura ocidental, ao mesmo tempo como o que é enquanto o conhecimento os liberta. Em vez disso, os dois estão
necessário pensar e que se deve saber. intimamente envolvidos. O conhecimento, ou o que seja definido
como conhecimento legítimo, é um produto do poder, mas depois
Destarte, as ciências empíricas da modernidade (compreendidas pela biologia, age como um instrumento do poder, desempenhando um papel
filologia e economia), conquistaram um espaço que tornou possível o surgimento das fundamental na formação e constituição de disciplinas.
ciências humanas e que esses fossem objeto de representação do homem,
Foucault (2003a), durante suas análises referentes ao poder, chega a concluir
compreendendo esse homem como ser que vive, comunica e trabalha. Dessa forma, o
que o poder em si só não existe, mas existem práticas e relações de poder, e estas
homem deixa de ser somente objeto do conhecimento e assume também a posição de
podem ser notadas em diversas (ou todas) as práticas sociais. O poder disciplinar é
sujeito do conhecimento. Nesse sentido, buscamos em Foucault a afirmação de que
fruto da sociedade moderna, está microfisicamente espalhado pela sociedade, meio a
[...] as ciências humanas, com efeito, endereçam-se ao homem, na relações de forças, sendo constituído de formas diversas e em todos os lados. Foucault
medida em que ele vive, em que fala, em que produz. É como ser (2003a, p.89) conclui que o “poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é
vivo que ele cresce, que tem funções e necessidades, que vê abrir-se certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica
um espaço cujas coordenadas móveis ele articula em si mesmo, de um complexa numa sociedade determinada.”
modo geral, sua existência corporal fá-lo entrecruzar, de parte a parte,
com ser vivo, produzindo objetos e utensílios, trocando aquilo que Foucault aponta que o poder reprime e exclui os indivíduos, sendo esse seu
tem necessidade, organizando toda uma rede de circulação ao longo aspecto negativo, contudo, os sujeitos submetidos ao poder produzem e criam mais, e
do qual perpassa o que ele pode consumir e em que ele próprio se esse seria seu aspecto positivo, que é justamente ser produtivo, sendo assim, o autor
acha definido como elemento de troca, aparece ele em sua existência nota que o poder apresenta um grande potencial criador. Nesse sentido, Machado
imediatamente imbricado com os outros; enfim, porque tem uma (1985, p.XVI) completa, afirmando que “o poder possui uma eficácia produtiva, uma
linguagem, pode constituir em si um universo simbólico, em cujo
riqueza estratégica, uma positividade. É justamente esse aspecto que explica o fato de
interior se relaciona com seu passado, com coisas, com outrem, a
que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para
partir do qual, pode imediatamente construir alguma coisa com um
saber (particularmente esse saber que tem de si mesmo e do qual as aprimorá-lo, adestrá-lo.”
ciências humanas desenham uma das formas possíveis). Uma das grandes constatações de Michel Foucault, segundo Machado (1985, p.
(FOUCAULT, 2002. p.477).
XIX), seria a de que “o poder é produtor da individualidade”, sendo a disciplina o meio
Com relação ao saber, o homem moderno torna-se o objeto e o sujeito do para a criação de sujeitos individualistas. Dessa forma, a disciplina seria “a técnica
conhecimento das ciências humanas, e, em relação ao poder, ele torna-se fruto das específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e
relações de disciplina e esse novo comportamento disciplinar o distingue na sociedade como instrumentos de seu exercício.” (FOUCAULT, 2008, p.143). Desse modo, pode-
moderna. Os saberes construídos na Modernidade são normativos e usados para a se dizer que o indivíduo moderno é fruto das relações de poder-saber, sendo o poder
construção do poder disciplinar. O sujeito moderno, para ser útil, dócil e produtivo, disciplinar produtor desse indivíduo.
necessita ser disciplinado, daí a necessidade das normas disciplinadoras na constituição
do sujeito moderno.

O poder-saber está articulado ao “poder de extrair dos indivíduos um saber, e


de extrair um saber sobre esses indivíduos ao olhar já controlados.” (FOUCAULT,
2003b, p.121). Para Machado (1985), não há relação de poder sem constituição direta
de um campo de saber, nem saber que não suponha ou não constitua,
simultaneamente, relações de poder, sendo assim, pode-se afirmar que o poder produz
saber e saber produz poder, por estar diretamente implicados. Sendo o lugar de

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À LUZ DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

A poder disciplinar na escola qualificar o indivíduo, não interessando o que ele fez, mas o que é,
será ou possa ser. As punições são da ordem do exercício, implicando
Não são apenas os prisioneiros que são tratados como crianças, mas
o aprendizado intensificado, multiplicado, repetido, em suma, punir é
as crianças como prisioneiras. As crianças sofrem uma infantilização
exercitar. (GUIMARÃES, 2003b, p.86).
que não é delas. Nesse sentido, é verdade que as escolas se parecem
um pouco com as prisões. (FOUCAULT, 1985, p.73). Na escola, assim como nas demais instituições disciplinares, a punição ocorre
por meio de micropenalidades, que dizem respeito aos desvios quanto ao tempo,
hábito, gestos, comportamento, corpo, sexualidade e discurso.
Sabe-se que na sua obra Vigiar e Punir (2008), Foucault se preocupa em estudar
O corretivo para a redução dos „desvios‟ dar-se-ia pela aplicação do
a questão das instituições penais, sendo seu foco principal o estudo do poder e da nova
castigo disciplinar. As punições são muitas da ordem do exercício, do
tecnologia de controle dos corpos que incidia sobre os prisioneiros, surgida a partir do aprendizado intensificado, multiplicado, repetido, do que a vingança
século XVIII. No estudo, ele se refere ao esquadrinhamento disciplinar da sociedade, da lei ultrajada [...] O sistema operante no treinamento escolar é o da
que consistia em um controle minucioso sobre a vida, os movimentos, o corpo do gratificação- sanção. (GUIMARÃES, 2003b, p. 27).
indivíduo. Durante suas análises, Foucault notou que esse tipo de controle disciplinar
não era exclusivo das prisões, e sim permeava várias instituições, como as fábricas, O controle minucioso dos alunos ocorre por meio do esquadrinhamento do
exércitos, hospitais e escolas. tempo, espaço, atividades e corpo. O controle de todos esses movimentos garante que
os indivíduos saiam da escola com uma docilidade e utilidade ideal ao mundo
Nas escolas, assim como diversas outras instituições, o controle disciplinar é capitalista.
mantido e exercitado. O estudo de Foucault nos permite analisar a escola como um
espaço de produção de disciplina e saber, onde esse é instaurado e aceito. Podemos O corpo entra numa “mecânica do poder” que “o esquadrinha, o desarticula e o
dizer que na escola, “ser disciplinado” compensa, pois nessa instituição, fica claro o recompõe.” (FOUCAULT, 2008, p.119). Essa anatomia política do corpo permite que
jogo de recompensas e honras. Esse jogo de premiações ao bom aluno disciplinado seja retirada toda a sua força produtiva e diminuída toda a sua força no âmbito de
tem dois efeitos, que são distribuir os estudantes conforme suas habilidades e seu manifestação política. Com isso, o indivíduo tona-se útil economicamente e dócil
comportamento e exercer sobre os alunos o mesmo modelo, para que todos sejam politicamente. Nesse sentido, Foucault (apud GUIMARÃES, 2003 b, p.34) argumenta:
dóceis e úteis. Na escola, todos têm que se parecer. Na escola, o controle de mínimas parcelas da vida e do corpo dos
O poder disciplinar não coage em sentido direto, mas atinge seus estudantes, por meio das práticas disciplinares, oferece todo um
objetivos através da imposição de uma conformidade que deve ser conjunto de saber, de dados, de receitas que permitem o controle e
atingida. Em suma, ele normaliza, ou seja, molda os indivíduos na utilização dos indivíduos que configuram o ambiente escolar.
direção de uma norma particular, uma norma sendo o padrão de certo
Foucault nos apresenta quatro tipos de organização disciplinar do indivíduo:
tipo. A disciplina determina o que é normal e, depois, desenvolve
celular, orgânica, genética e combinatória. A organização escolar consiste em colocar
medidas e práticas para avaliar se os indivíduos são normais e para
moldá-los segundo uma norma. (DAHLBERG apud SANTANA,
cada aluno num lugar específico, cada aluno tem a sua carteira e cada carteira, um
2007, p.121). aluno. Significa preencher toda a sala de aula de modo organizado e que possa assim,
vigiar o comportamento de cada aluno, rompendo com todo o tipo de comportamento
O novo modelo punitivo, não previa somente a punição do indivíduo, mas seu dito perigoso para o bom andamento da aula. Os lugares estabelecidos e individuais
“adestramento”. Não se importava mais punir por punir, mas punir para ensinar. permitem que todos os alunos sejam controlados e que todos produzam de forma
Todos os alunos da escola deveriam atender ao modelo estabelecido, toda igual.
desvirtualização da regra deveria ser punida, para se aprender a sempre se fazer o
correto. Nas escolas do século XVII, os alunos também estavam aglomerados
e o professor chamava um deles por alguns minutos, ensinava-lhe
No regime da sociedade disciplinar como a nossa, a punição, ao algo, mandava-o de volta, chamava outro etc. Um ensino coletivo
discriminar os comportamentos dos indivíduos, passa a diferenciá-los, dado simultaneamente a todos os alunos implica uma distribuição
a hierarquizá-los em termos de uma conformidade a ser seguida, ou espacial. A disciplina é antes de tudo, a análise do espaço.
seja, a punição não objetiva sancionar a infração, mas controlar, (FOUCAULT, 1985, p.106).

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À LUZ DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

O espaço organizado em sala de aula permitiu que a escola se tornasse uma Na escola, ser constantemente observado e anotado passa a ser um meio de
“máquina de ensinar”, de vigiar e premiar. A escola consiste na aplicação do “quadro – dominação e um mecanismo produtor de individualidades. A criação de um arquivo
vivo”, que visa transformar uma multidão inútil, perigosa e confusa, numa multidão documentário da vida do estudante permitiu a entrada do indivíduo num novo campo
útil e organizada. de saber e o poder disciplinar passa a recair sobre o corpo do indivíduo em situação
escolar.
Na escola, a organização orgânica ou simplesmente o controle das atividades se
dá pelo rigor das técnicas e horários. O uso calculado do tempo e o rigor com que as Os efeitos do poder disciplinar multiplicam-se na rede escolar em decorrência
atividades devem ser desenvolvidas caracterizam o total uso do tempo, como se esse do maior acúmulo de conhecimentos adquiridos sobre o aluno a partir da sua entrada
fosse inesgotável. A utilização do tempo, na escola, é intensificada, cada horário é nesse novo campo do saber.
ocupado por uma atividade determinada, seguindo um ritmo que permita que o
[...] a escola foi a instituição moderna mais poderosa, ampla,
processo de aprendizagem seja acelerado.
disseminada e minuciosa a proceder a íntima articulação entre o poder
A organização das gêneses consiste em elencar os alunos e as atividades em e o saber, de modo a fazer dos saberes a correria (ao mesmo tempo)
séries específicas e diferentes entre si. Essas séries de atividades vão da mais simples à transmissora e legitimadora dos poderes que estão ativos nas
sociedades modernas e que instituíram e continuam instituindo o
mais complexa, sendo marcada, em cada série, um tempo final. Em cada final, uma
sujeito.(VEIGA-NETO, 2007, p. 114).
prova é aplicada ao aluno, procurando indicar quem é apto a avançar para a série
seguinte. A constituição desse novo saber sobre a vida do estudante foi possibilitada
graças às práticas disciplinares, sendo a vigilância seu suporte básico. A escola, como
O tempo disciplinar impõe-se à pratica pedagógica organizando séries
separadas umas das outras por provas graduadas, especificando as demais instituições disciplinares, produz poder, sendo pela vigilância que esse poder
programas e exercícios de dificuldade crescente,„qualificando os passa a se organizar em multiplicidade, de forma automática e anônima, atuando
indivíduos de acordo com a maneira como percorreram essas séries.‟ diretamente na vida dos que nela estão inseridos, fazendo funcionar assim, uma “rede
(GUIMARÃES,2003b, p.32). de relações”.

As séries diferenciadas possibilitam o controle de todas as atividades A comunicação dos estudantes se dá num sentido vertical, causando a reunião
desenvolvidas pelo aluno, bem como o castigo e correções necessários a cada um. E sem comunicação, produzindo assim, o isolamento. Em contrapartida, hábitos de
garante também que todo o tempo do aluno se transforme em tempo de produção. A sociabilidade também são produzidos, já que a escola exige que os alunos participem
organização combinatória, também denominada de composição de forças trata-se de de exercícios úteis à coletividade, como a execução de bons hábitos. “Cria-se também a
compor forças para obter um aparelho eficiente. Consiste em ajustar o corpo ao tempo individualização, causando ruptura de qualquer relação que não seja controlada pelo
do outro e extrair dessa junção a maior quantidade de força possível, obtendo assim, poder ou ordenada de acordo com a hierarquia.” (FOUCAULT, apud GUIMARÃES,
um ótimo resultado. Desse modo, pode-se obter a força de um aluno tanto 2003b, p.36).
isoladamente quanto coletividade, já que o sucesso de uma tarefa depende tanto de um
A existência de exames na escola é outro indicador desse tipo de poder. O
quanto de todos e o fracasso de um compromete o sucesso de todos.
exame, como já falado, faz de cada estudante um caso particular, sendo esse caso
Para que isso ocorra, o comando das operações deve ser claro e preciso. As descrito, analisado, comparado, classificado e constantemente retreinado e
ordens não têm que ser explicadas e muito menos contestadas, o que importa é atender normalizado. “[...] um caso que ao mesmo tempo constitui-se um objeto para o
aos sinais e reagir instantaneamente a ele. Nada e ninguém deve interromper o conhecimento e uma tomada para o poder.” (FOUCAULT, 2008, p.159). O exame é
andamento das atividades, uma prática disciplinar que normaliza ao mesmo tempo em que vigia, ele permite
qualificar, classificar, vigiar e punir, combinando técnicas da hierarquia que vigia e da
[...] poucas palavras, nenhuma explicação, silêncio total, só
sanção que busca normalizar.
interrompido por sinais: sonos, palmas, gestos, olhares dos mestres.
O aluno deve aprender o código dos sinais e atender O exame estabelece uma visibilidade do aluno que permite que esses sejam
automaticamente a cada um deles, legitimando a técnica de comando constantemente sancionados e individualizados, o que explica que em sociedades
e a moral de obediência. (GUIMARÃES, 2003b, p. 34). disciplinares, essa técnica seja constantemente ritualizada e renovada. Segundo

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À LUZ DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

Foucault (2008, p.155), o exame permite que o professor, ao mesmo tempo em que mudam-se apenas as fachadas, mas os objetivos de formar pessoas para atender ao
transmite seu saber, levante um campo de conhecimento sobre seu aluno. Enquanto a modo de produção continuam os mesmos. Nota-se isso, quando inúmeras novas
prova terminava validando um aprendizado adquirido, o exame comporta uma práticas pedagógicas estão surgindo, onde o sujeito dessas ações são os alunos e nunca
constante troca de saberes, permitindo a passagem de saberes do mestre ao aluno, mas os que pensam nessas, entendendo-se que o aluno seja apenas o receptor dessas idéias,
retirando do aluno saberes que somente pertence e se destinam ao mestre. Foucault mas nunca seu formulador.
assim diz:
[...] essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão,
O exame é a vigilância permanente, classificatória, que permite apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada
distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por e reconduzida por um todo compacto conjunto de práticas como a
conseguinte, utilizá-los ao máximo. Através do exame, a pedagogia [...] mas ela é também reconduzida, mais profundamente
individualidade torna-se um elemento pertinente para o exercício do sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade.
poder. (FOUCAULT, 1989, p.107) Como é valorizado, distribuído, repartido e, de certo modo, atribuído.
(FOUCAULT, 2006, p.17).
Foucault (2008, p.155) aponta para o fato de que todo esse conhecimento
adquirido sobre o aluno faz com que a escola torne-se o local de elaboração da Para Michel Foucault e Áurea Guimarães, a escola, ao dividir os conhecimentos
pedagogia, supondo um mecanismo que liga a formação do saber ao exercício do em séries, salienta as disparidades individuais, recompensando os que se sujeitam a
poder. A era da escola “examinatória” marca, assim, o início da pedagogia funcionando movimentos adequados que a escola impõe e punindo e excluindo os alunos que
como ciência, no sentido tradicional do termo. apresentarem comportamento distinto ao imposto. O atual modelo pedagógico
permite analisar os indivíduos nas suas peculiaridades, buscando tornar todos
O exame proporciona a possibilidade de consolidar o estudante como objeto
igualmente submetidos às regras, vigiando-os constantemente. As punições não
descritível, segundo seus saberes formais, de conteúdos disciplinares, mantendo toda a
buscam extinguir os infratores, mas diferenciá-los e distingui-los, separando-os em
sua evolução escolar, de domínio de conteúdos/assuntos científicos específicos sobre
grupos distintos, fechados e restritos de indivíduos.
um saber e olhar permanente e permite a formação de descrição de grupos, por meio
de um sistema comparativo. A aplicação de exames não garante que o aluno tenha de A escola passa assim a se constituir num observatório político, num mecanismo
fato aprendido, já que na sociedade disciplinar, o “acerto” é digno de recompensa, que permite conhecer toda a vida dos discentes por meio dos docentes e demais
neste sistema de troca e recompensa ininterrupto, nota-se que o aluno, sujeito da membros pertencentes à escola – diretores, coordenadores, funcionários e até mesmo
avaliação, busca por diversas vezes, aprender para obter essa gratificação, encontrada pelos próprios estudantes. A punição na escola torna-se aceitável, legítima e natural.
na escola como nota. O fim do aprendizado torna-se, então, a nota e não o Pode-se dizer que para Foucault, o poder de educar não é muito diferente do de punir.
conhecimento de fato. A escola, com seus mecanismos disciplinares, levam as pessoas a aceitarem o poder de
serem punidas e também de punir.
[...] esse conhecimento transmitido leva o aluno à necessidade de
decorá-lo para solucionar seu problema imediato que é a nota que A vigilância, a punição, os horários e as demais técnicas disciplinares além de
será “dada” pelo professor. A „prova‟ transformou-se, em muitos moldar corpos, procura neutralizar possíveis movimentos de contrapoder, sendo esses
casos, em um meio de aterrorizar o aluno/a, além de se tornar uma
movimentos representados na escola por vandalismo, depredação, motins e demais
questão secundária, diante da preocupação maior que é a nota.
atos indisciplinares. A escola impede, assim, que movimentos contra o poder se
(CARVALHO, 2007, p.39).
instaurem e resultem numa forma mais vasta de manifestação.
Para Foucault (2008, p.155), a instituição escolar tornou-se uma espécie de
Se as depredações acusam os descontentamentos e críticas a toda a
dispositivo de exame continuado, que acompanha toda dimensão de ensino. Áurea
instituição escolar, tenta-se impedi-las exercendo uma vigilância
Guimarães (2003b, p.37) menciona que as normas pedagógicas são mecanismos constante no comportamento dos indivíduos e estabelecendo o
eficazes para marcar, “solidificar os desvios” e reforçar a imagem do aluno padrão ideal de atitudes perante a escola, com o objetivo, dessa
compreendido como “problemático”. Partindo ainda das análises de Foucault, a autora forma, de evitar que as indisciplinas se transformem em armas contra
(2003b) preocupa-se com o fato de que a escola sempre exerceu sua função de forma as estruturas já estabelecidas. (GUIMARÃES, 2003b, p.41).
individualista, independente do período a ser vivido, com o decorrer dos tempos,

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À LUZ DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

A pedagogia da escola atual cria a possibilidade de esquadrinhar Contudo, apesar de produzir saber, o poder disciplinar, com todos os seus
comportamentos e estabelecer sobre eles uma rígida vigilância. As regras disciplinares artifícios de controle e submissão, cria indivíduos que toleram toda prática exercida
visam ao controle do espaço, tempo e corpo, assim, cria indivíduos submissos, peças sobre eles. Assim, o conhecimento transmitido nessa “escola disciplinar” serve para
fundamentais para a manutenção do sistema social assim como está, pois, como construir uma peça de engrenagem para a máquina capitalista. Com isso, a escola não
Foucault (1985, p.188) mesmo comenta, esse tipo de poder é uma das grandes tem buscado formar indivíduos críticos, ela sempre exerceu sua função de forma
invenções da burguesia e foi instrumento fundamental para o capitalismo industrial e egoísta, sem se preocupar com o período vivido, pois é normal que se mudem os
do formato de sociedade que lhe é correspondente. professores ou as arquiteturas da escola, mas o intuito de formar massas de manobra
para o mundo capitalista permanece. O aluno não é parte fundante da escola, ele tem
sido apenas receptor de suas idéias, mas nunca formulador.
Considerações finais A escola ensina seres acorrentados, que ao saírem dela, deverão aprender a
Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, pensar, mas como? Se o professor ensina conceitos que, por vezes, não pertencem à
com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam sua realidade, e nessa irrealidade, o aluno vai pra casa e não consegue fazer sequer uma
com as prisões ? (FOUCAULT, 2008,p.187). união entre escola e vida, dar sentido social ao que aprende, tornam-se indivíduos que
O poder disciplinar teve início no século XIX, período compreendido por aceitam, sem nenhum questionamento, os saberes e a verdade constituída.
Modernidade. O início dessa nova era disciplinar é marcada por uma nova forma de Com todo esse cenário, pode-se inferir que a escola serve para formar
administrar os corpos. A punição que antes era entendida como forma de agredir ou indivíduos, transmitir “conhecimentos” aceitos, prontos. No entanto, está longe de ser
humilhar alguém, agora passa a ser vista como forma de moldar corpos, educando-os. educativa, de formar indivíduos pensantes e livres, produtores de novas e mais
O controle disciplinar, por meio de suas técnicas de controle e adestramento, foi adequadas regras disciplinares. A escola tem servido unicamente ao sistema capitalista,
mantido e aceito em diversas instituições disciplinares. está despreocupada em formar pessoas que irão lutar contra as situações injustas em
A escola, entendida como instituição disciplinar que “fabrica” indivíduos dóceis que vivem. A escola “se diz democrática, mas não o é; diz que prepara para a vida, mas
e úteis para o sistema capitalista, é uma das instituições que mais exercita e mantêm o não o faz; é lugar do novo, mas propaga o velho.” (GUIMARÃES, 1996a, p.25). Ela é
controle disciplinar. Foucault nos oferece estudos que permite analisar a escola como lugar do novo porque recebe crianças e adolescentes, no entanto, não sabem como agir
um espaço que produz saber e poder, onde a disciplina seria essencial para a formação com esse novo, propagando um conhecimento velho, já instituído, que não visa à
do saber das ciências humanas. As práticas pedagógicas da sociedade disciplinar reflexão/ transformação do estabelecido.
possibilitam que os corpos sejam vigiados constantemente e que comportamentos Deve-se pensar “fazer escola” de outra forma, pois “na luta contra o poder
sejam diariamente estabelecidos. disciplinar, não é em direção ao velho direito da soberania que se deve marchar, mas na
O poder disciplinar, assim como apregoado por Foucault, em diversas direção de um novo direito antidisciplinar, e, ao mesmo tempo, liberado do principio
passagens de sua obra cita, produz saber. A sua eficácia está no fato desse não conter da soberania.” (FOUCAULT, 1985, p.190). No entanto, o papel do “novo educador”
apenas aspectos negativos, que reprime e penaliza, mas positivos. A disciplina foi deve ser o de lutar contra as amarras do poder, tentando formar indivíduos críticos e
fundamental para o desenvolvimento dos estudos das ciências humanas, pensantes, pois a sociedade atual é complexa e atravessada por interesses diversos,
exigente de sujeitos conscientes, assim como apregoado por Foucault (1985, p.151), o
Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por papel do intelectual não é dar conselhos, mas sim, mostrar aos interessados, o que está
meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento [...], acontecendo, alertá-los da maquinaria em que estão envolvidos, formando, assim,
se apenas se exercesse de modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele pessoas abertas para a mudança. Foucault (2011, p.15) alerta que “não há relação de
é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo - como se poder sem resistência [...] toda relação de poder implica, portanto, ao menos de forma
começa a conhecer - e também a nível de saber. O poder, longe de
virtual, uma estratégia de luta.” Assim, que a escola possa, enfim, provocar e ser a
impedir o saber, o produz. [...]. O enraizamento do poder, as
mudança, contribuindo para uma sociedade nova, mais condizente com as exigências
dificuldades que se enfrenta para desprender dele vêm de todos estes
vínculos. (FOUCAULT, 1989, p. 148-149).
atuais.

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Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2003 a educação no Brasil, representada pelo educador e filósofo Paulo Freire. Acreditamos
que a pedagogia crítica, voltada à superação de ilusões confortadoras e das
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Melo Machado e Eduardo Jardim Moraes. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003b educandos a tornarem-se sujeitos questionadores e reflexivos frente à sociedade
dominadora em que estamos inseridos. No pensamento freiriano, a educação crítica
_________. A Ordem do Discurso: Aula inaugural do Collège De France, busca a libertação dos indivíduos e os auxilia na luta pelos seus direitos enquanto
promulgada em 12 de Dezembro de 1970. 14ª edição. Trad. Laura Fraga de Almeida cidadãos, para que haja uma sociedade mais justa e democrática. Paulo Freire e
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MACHADO, Roberto. Por uma Genealogia do Poder. In: FOUCAULT, M. Gramsci, John Dewey, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, entre outros. Estes teóricos
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NERY, Sergio. A Disciplina nas organizações empresariais- Um estudo à luz do
A presente pesquisa tem como objetivo apresentar a perspectiva crítica de
pensamento de Michel Foucault. 2008.93 f.. Dissertação (Mestrado em Filosofia)-
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. educação no Brasil, representada pelo educador e filósofo Paulo Freire. Essa

SANTANA, Maria Silvia Rosa; SANTANA, Isael José. Modernidade e Pós corrente teórica visa de modo geral, expor como se manifestam as relações de
Modernidade: uma breve análise sob o enfoque da educação. Pesquisa em educação: poder e desigualdade econômica, social e política em suas complexidades, bem
política, sociedade e tecnologia. Org. Doracina Aparecida de Castro Araújo; Ademilson
como problematizá-las em espaços educacionais formais e não-formais.
Batista Paes... [et al.]. Campo Grande: UNIDERP, 2007.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, A educação crítica busca realizar conexões entre as práticas educacionais e
2007. culturais e a luta pela justiça social e econômica, direitos humanos e uma sociedade
democrática, para que se possa ampliar as compreensões críticas e as práticas
libertadoras, com o objetivo de buscar transformações sociais e pessoais

36
49
progressistas (TEITELBAUM, 2011). Tal atitude implica uma postura voltada à transmissão de conhecimento instrumental para a sociedade existente. Na visão do
ruptura com as ilusões confortadoras, as quais carregam como pressuposto que os mundo tradicional, as escolas são simplesmente locais de instrução” (GIROUX,
modos em que a nossa sociedade e seus aparatos educacionais estão atualmente 1997, p.148). Além disso, os teóricos educacionais críticos argumentam que a teoria
organizados podem levar à justiça social. Além disso, uma compreensão mais tradicional suprime questões importantes com relação ao conhecimento, dominação
robusta da pedagogia crítica baseia-se cada vez mais na percepção da importância e poder, sendo que a escola não oferece oportunidades de fortalecimento próprio e
das inúmeras dinâmicas que sustentam as relações de exploração e dominação em social na sociedade como um todo.
nossas sociedades. Apple, Au e Gandin (2011) a respeito da cultura de dominação,
Sobre o contraste de pensamento entre os intelectuais críticos em relação aos
comentam que temas nos quais se remete à política de redistribuição (processos e
teóricos tradicionais, Giroux (1997, p.148) expõe que,
dinâmicas econômicas de exploração) e à política do reconhecimento – lutas
culturais contra a dominação e lutas pela identidade, precisam ser consideradas em [...] os educadores críticos fornecem argumentos teóricos e
enormes volumes de evidências empíricas para sugerir que as
conjunto. escolas são, na verdade, agências de reprodução social,
econômica e cultural. Na melhor das hipóteses, o ensino escola
Este estudo, ao apresentar o pensamento freiriano acerca de uma pedagogia público oferece mobilidade individual limitada aos membros da
classe trabalhadora e outros grupos oprimidos, mas, em última
crítica, busca contribuir para que haja uma educação voltada à libertação do sujeito análise, as escolas públicas são instrumentos poderosos para a
reprodução de relações capitalistas de produção e de ideologias
das amarras dominantes da sociedade vigente, e ao pleno exercício de seus direitos
legitimadoras da vida cotidiana.
enquanto cidadãos, buscando uma sociedade mais justa, igualitária e
Para esta nova visão da sociedade e da educação, as instituições escolares
conseqüentemente democrática. A pesquisa está dividida em três partes. No
são analisadas dentro da linguagem crítica e da dominação.
primeiro momento, caracterizaremos de modo geral a pedagogia crítica de Freire.
Em seguida, discutiremos alguns conceitos chaves de sua teoria como Dentre as diversas correntes educacionais críticas, desenvolvidas a partir de
emancipação, problematização e diálogo. No terceiro momento, apresuuuentaremos um processo histórico, por meio de diversos intelectuais, encontramos no Brasil a
a criticidade e a conscientização como aspectos indispensáveis para a superação da pedagogia crítica e libertadora de Paulo Freire. Sua teoria educacional desenvolve a
alienação do sujeito-aluno. idéia de que as formas tradicionais de educação funcionam basicamente para
objetivar e alienar grupos oprimidos. Freire explorou a natureza reprodutora da
2 A PEDAGOGIA CRÍTICA DE PAULO FREIRE
cultura dominante, tendo analisado sistematicamente como ela funciona por meio de
Como resposta crítica ao que pode ser chamado genericamente de discurso práticas sociais e textos específicos. Essa cultura objetiva cumprir a função de
da teoria e prática educacional tradicional, surge na Inglaterra e nos Estados Unidos, produzir e preservar uma “cultura do silêncio” (GIROUX, 1997, p.148).
há mais de uma década, uma nova visão de observar a sociedade e educação. A A pedagogia crítica de Freire pauta-se na capacitação dos estudantes e
questão central em torno da qual ela desenvolveu sua crítica à escolarização de professores a desenvolverem uma compreensão crítica consciente de sua relação
modelo tradicional é: Como tornar significativa a educação de forma a torná-la crítica com o mundo. De acordo com Au (2011) essa pedagogia ao desenvolver a
e emancipadora? conscientização do sujeito, auxilia na capacitação de professores e alunos a se
tornarem pessoas cada vez mais conscientes de seu contexto e de sua condição
A maioria dos críticos radicais concorda que os teóricos tradicionalistas
enquanto ser humano.
educacionais ignoram esta questão, pois reproduzem e legitimam as ideologias
Henry Giroux baseou seus estudos na perspectiva freiriana de educação e
capitalistas. Podemos enxergar isso claramente no discurso positivista, onde tomam
alega que “a obra de Paulo Freire continua a representar uma alternativa
como preocupações mais importantes, “o domínio das técnicas pedagógicas e a

37 38
teoricamente renovadora e politicamente viável para o atual impasse na teoria e dominação subjetiva e objetiva, assim como uma luta em prol de “formas de
prática educacional” (GIROUX, 1997, p.145). Freire descartou as ideias conhecimento, habilidades e relações sociais que promovam as condições para a
emancipadoras em suas versões de filosofia seculares religiosas encontradas no emancipação social e, portanto, a auto-emancipação” (GIROUX, 1997, p. 146). A
pensamento burguês e integrou de maneira crítica em seu trabalho o legado do educação voltada ao olhar de Freire torna-se uma forma de ação que une as
pensamento radical, unindo a linguagem crítica com a linguagem da possibilidade. linguagens da crítica e da possibilidade, além de representar a necessidade de um
comprometimento por parte dos educadores em tornar o político mais pedagógico,
2.1 A EMANCIPAÇÃO EM PAULO FREIRE ou seja, tornar a reflexão e ação crítica partes de um projeto social que não inclua
apenas as formas de opressão, mas também desenvolva uma fé profunda
Utilizando a linguagem crítica, Freire construiu uma teoria de educação
permanente na luta para a superação das injustiças sociais na busca da
baseada no relacionamento entre teoria crítica radical e os imperativos do
humanização da própria vida.
comprometimento e luta radical. A partir de suas experiências realizadas na América
Latina, África e América do Norte, ele produziu um discurso acerca da compreensão Tais aspectos moldam o caráter libertador da pedagogia de Freire, o qual se
da complexidade da dominação. Neste caso, ele argumenta que a dominação não mantém sobre a afirmação de que retirar do sujeito a sua consciência e remover o
se reduz somente a uma forma de domínio de classe, rejeitando a ideia de que seu direito de transformar o mundo, é opressivo. Para que se possa alcançar uma
existe apenas uma forma universal de opressão. Desse modo, ele reconhece as educação autenticamente libertadora, é necessária uma ação consciente a fim de
diversas formas de sofrimento dentro de diferentes campos sociais que se referem a transformar a realidade em que nos encontramos. Au (2011, p.251) elucida que,
maneiras particulares de dominação, e conseqüentemente, formas diversas de lutas
[...] a pedagogia libertadora de Freire [...] gira em torno de uma idéia
e resistências coletivas (GIROUX, 1997). central de „práxis‟1 (ação consciente) em que os estudantes e
professores tornam-se sujeitos que sabem ver a realidade, refletir
Ao reconhecer que, as formas de dominação não são redutíveis à opressão criticamente sobre a realidade e assumir uma ação transformadora
para mudar essa realidade.
de classes, Freire alega que a sociedade tem uma multiplicidade de relações
Para que a práxis seja desenvolvida, Freire toma como ponto de partida duas
contraditórias nas quais os grupos sociais podem lutar e se organizar. Vale ressaltar
diferentes abordagens: a problematização e o diálogo, os quais se configuram como
que a dominação é mais do que simples imposição de um poder arbitrário de um
condições indispensáveis para o exercício da liberdade. Na perspectiva freiriana, a
grupo sobre o outro. Sobre essa questão, Giroux (1997, p.146) expõe que para
problematização,
Freire,
[...] é o processo em que estudantes e professores fazem perguntas
[...] a lógica da dominação representa uma combinação das práticas críticas acerca do mundo em que vivem, sobre as realidades
materiais e ideológicas, históricas e contemporâneas que nunca tem materiais que ambos experimentam cotidianamente e em que
sucesso total, sempre incorporam contradições, e estão sempre refletem sobre quais ações eles podem realizar para mudar essas
sendo disputadas dentro das relações assimétricas de poder. condições materiais. (AU, 2011, p. 251)
Subjacente à linguagem crítica de Freire, há uma compreensão de que a O diálogo é outro ponto central na pedagogia crítica e libertadora de Freire.
história nunca é predeterminada. Assim como as ações dos homens e mulheres são Em termos gerais, para o autor, o diálogo é parte da história do desenvolvimento da
limitadas pelas pressões a que são submetidos, eles também criam estas pressões consciência humana, sendo ele o momento em que os seres humanos se encontram
e as possibilidades que podem decorrer de seu questionamento (GIROUX, 1997). para refletir sobre a realidade. Pelo fato do diálogo acarretar uma reflexão ativa com

A prática educacional na visão de Paulo Freire representa um discurso teórico 1


De acordo com o Dicionário Paulo Freire, a práxis “pode ser compreendida como a estreita relação
que se estabelece entre um modo de interpretar a realidade e a vida e a consequente prática que
cujos interesses se formam em torno de uma luta contra todas as formas de
decorre desta compreensão levando a uma ação transformadora”. (ROSSATO, 2010, p.325).

39 40
relação a outros seres humanos, ele é fundamentalmente social, exigindo um uma nova sociedade realizando uma tarefa humanística e histórica, libertando a si
pensamento crítico. mesmos e aos opressores (MOREIRA, 2010).

O diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro que se A educação sozinha não tem condições de construir uma sociedade
solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a
ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de emancipada. A exclusão social, a globalização econômica e as políticas neoliberais
depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se excludentes, consolidam um capitalismo que amplia a capacidade de produção de
simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes.
(FREIRE, 1987, p. 45). mercadorias, acúmulo de capital e geração de riquezas nas mãos de um grupo
Deste modo, quando estamos em um diálogo, não podemos “depositar” as minoritário - os opressores/dominadores. Nesse sentido, a educação “deve exercitar
nossas ideias em outras pessoas, pois se assim for, estaremos tratando-as como processos de emancipação individual e coletiva, estimulando e possibilitando a
objetos,como seres manipuláveis. Aprender por intermédio do diálogo significa intervenção no mundo a partir de um sonho ético-político da superação da realidade
“nomear o mundo juntamente com os outros, em um ato social, processo que, por injusta”. (MOREIRA, 2010, p. 146).
sua vez, o ajuda a entendê-lo por contra própria” (AU, 2011, p.252). A concepção de
A emancipação defendida por Freire contempla também o chamado
diálogo de Paulo Freire, também se encaixa na relação particular entre alunos e
multiculturalismo, onde o direito de ser diferente numa sociedade dita democrática,
professores, assim ingressam em uma relação dialógica em que ambos aprendem,
também deve propiciar o diálogo crítico entre as inúmeras culturas, com vistas à
onde o fluxo de conhecimento corre em ambas as direções.
ampliação e a consolidação dos processos emancipatórios.
No modelo pedagógico crítico e libertador de Freire, alunos e professores não
são totalmente “iguais” no sentido de que sua relação seja totalmente raso. O
2.2 A CRITICIDADE E A CONSCIENTIZAÇÃO: ASPECTOS INDISPENSÁVEIS
professor mantém sua autoridade e direcionamento no processo de aprendizagem,
PARA A SUPERAÇÃO DA ALIENAÇÃO
mas essa autoridade não é autoritária. Essa compreensão requer que não sejamos
completamente laissez-faire, nem autoritários ou ditatoriais. Em vez disso, os
Uma das principais denúncias que Freire realiza constantemente em toda a
educadores libertários devem ser radicalmente democráticos em sua pedagogia, o
sua obra, é a alienação em que se encontram os indivíduos na sociedade capitalista.
que se traduz em ser ao mesmo tempo responsável e diretivo na sala de aula,
Este conceito é entendido como “a perda da condição de sujeito na sociedade”
respeitando os direitos e as capacidades dos estudantes a chegarem às suas
(KIELING, 2010, p.33). Perda esta, que se efetiva nos processos históricos, nos
próprias conclusões (AU, 2011).
quais reduzem as pessoas a condições desumanas de vida e à exploração que
A emancipação humana tratada por Freire deve ser efetivada por meio da diminuem a capacidade dos homens de ser mais. Desse modo, a alienação para
práxis, na luta a favor da libertação das pessoas que tem suas vidas desumanizadas Freire, só tem razão de ser no seu enfrentamento prático e emancipatório.
pela opressão e pela dominação social. Na escola, os indivíduos recebem uma educação baseada na consciência
ingênua, e para Freire, este é o maior problema do aprendizado na escola. O que
Esse processo emancipatório decorre de uma intencionalidade política
fazer então, para superar a alienação dos estudantes? O autor nos traz aspectos
assumida por aqueles que são comprometidos com a transformação das condições
indispensáveis, para que o educador crítico trabalhe com seus educandos, de modo
de vida e de existência dos oprimidos, contrariando o pessimismo e fatalismo
a fazer acontecer essa superação.
autoritário defendidos pela era pós-moderna. Em Pedagogia do Oprimido Freire
De acordo com Moreira (2010) um destes aspectos é a criticidade, que para
defende uma pedagogia para homens e mulheres se emanciparem mediante a uma
Freire é a capacidade que o educando e o educador tem para refletirem criticamente
luta pela libertação, que só faz sentido se os oprimidos buscarem a reconstrução de
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a realidade na qual estão inseridos, possibilitando a constatação, o conhecimento e A partir da criticidade, surge a conscientização, outro conceito central na
a intervenção para transformá-la. Seu objetivo principal é fazer com que os pedagogia de Freire. O homem, inicialmente ocupa uma posição ingênua diante da
indivíduos das classes oprimidas possam pensar certo e se constituírem como realidade observada, e então, ao adotar uma posição crítica frente à essa realidade,
sujeitos históricos e sociais que pensem de modo crítico, opinem, tenham sonhos e chega à conscientização.
dêem sugestões. Em Pedagogia do Oprimido, Freire concebe o pensar certo como De acordo com Freitas (2010), a conscientização compreendida como um
primeira condição para superar a curiosidade ingênua, construindo um processo de critização das relações consciência-mundo torna-se condição essencial
conhecimento crítico como base para a práxis transformadora. Assim, o pensar certo para o comprometimento humano frente ao contexto histórico-social. É por meio da
é o pensar crítico que deve fundamentar a pedagogia libertadora, que conscientização que os sujeitos assumem seu compromisso histórico no processo
“problematizando as condições da existência humana no mundo, desafia para a luta de fazer e refazer o mundo. A partir disso, Freire (1979, p.15) alerta que,
e a busca da superação das condições de vida desumanizadoras” (MOREIRA, 2010, [...] esta tomada de consciência não é ainda a conscientização,
porque esta consiste no desenvolvimento crítico da tomada de
p.97). consciência. A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a
esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a
Desse modo, a ação e reflexão oportunizam o diálogo e o debate sobre o uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível
e na qual o homem assume uma posição epistemológica.
mundo. O pensar certo, portanto, é o pensar crítico que deve fundamentar uma
A conscientização exige um engajamento da ação transformadora, que
pedagogia da libertação, que problematizando as condições de vida da existência
prepare os homens no plano da ação para a luta contra os obstáculos à sua
humana, desafia para a luta e a busca das condições de vida desumanizadoras. O
humanização. (FREIRE, 1987). Para tanto, “a conscientização não pode existir fora
educador necessário para esse projeto deve possuir uma posição de sujeito e não
da “práxis”, ou melhor, sem o ato ação – reflexão” (FREIRE, 1979, p.15). Esta
de simples objeto da história. Ele precisa defender de maneira coerente, um
unidade dialética constitui o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza
processo de libertação que favoreça a “vocação ontológica do ser humano de ser
os homens. Assim, a conscientização não está baseada sobre a consciência de um
mais”. (MOREIRA, 2010, p.97). O educador também deve refletir e aperfeiçoar
lado, e o mundo de outro, muito pelo contrário, ela está baseada na relação
continuadamente sua prática educativa por meio de um diálogo intenso e aberto com
consciência-mundo. Nas palavras do autor,
os educandos e uma análise crítica da realidade que busca formar “pessoas críticas,
de raciocínio rápido, com sentido de risco, curiosas, indagadoras”. (FREIRE, 2000, [...] tomando esta relação como objeto de sua reflexão crítica, os
homens esclarecerão as dimensões obscuras que resultam de sua
p.45).
aproximação com o mundo. A criação da nova realidade [...], não
pode esgotar o processo da conscientização. A nova realidade deve
De acordo com Moreira (2010, p. 98), esses educandos tomar-se como objeto de uma nova reflexão crítica. Considerar a
nova realidade como algo que não possa ser tocado representa uma
[...] devem ser capazes de realizar uma leitura de mundo que lhes atitude tão ingênua e reacionária como afirmar que a antiga realidade
permita compreender e denunciar a realidade opressora e anunciar a é intocável. (FREIRE, 1979, p. 15 e 16).
sua superação, com a construção de um novo projeto de sociedade e
mundo a ser efetivado pela ação política. Uma educação que visa desenvolver a tomada de consciência e atitude

A ação transformadora da sociedade enquanto um exercício constante de crítica, à qual o homem decide e escolhe, liberta-o em lugar de submetê-lo, de

criticidade em direção à práxis política consolida-se em práticas educativas que domesticá-lo, de adaptá-lo, como faz com muita freqüência a educação vigente num

despertam a curiosidade epistemológica dos educandos e contribuem para a grande número de países do mundo, educação que tende a ajustar o indivíduo à

construção de uma nova sociedade em favor dos indivíduos e classes oprimidas. sociedade, em lugar de promovê-lo. Quanto mais o homem refletir sobre a realidade
“sobre sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido,
pronto a intervir na realidade para mudá-la”. (FREIRE, 1979, p.19).
43 44
Implicando na inserção crítica na realidade que se desmistifica, a educador se veja como um sujeito histórico e faça com que seus educandos também
conscientização é mais do que uma tomada de consciência. Por esse motivo, ela é se vejam como produtos e produtores de sua própria história, tornando-os capazes
um projeto irrealizável pela direita, que por natureza, não pode ser utópica. Não há de criticar, refletir e analisar sua real condição dentro da sociedade, chegando assim
conscientização popular sem uma denúncia radical das estruturas de dominação e à conscientização de forma a superar a alienação frente aos problemas,
sem o anúncio de uma nova realidade a ser criada em função dos interesses das desigualdades e injustiças sociais, buscando sua emancipação enquanto sujeito.
classes dominantes.
Considerações Finais
A escola, sendo um aparelho ideológico do Estado, tem como função
reproduzir e manter a ideologia e a ordem vigente. Isso nos leva a dizer que a escola Ao longo da pesquisa, buscamos apresentar a perspectiva crítica de
mantém os alunos apenas no nível superficial da realidade, não chegando a uma educação no Brasil, representada por Paulo Freire. Desse modo, consideramos que
compreensão crítica profunda sobre o que torna sua realidade tal como ela é. A as formas tradicionais de educação funcionam para dominar e alienar grupos
respeito da consciência crítica não abordada no sistema educacional em geral, oprimidos na sociedade. No entanto, como alternativa de superar esse modelo
Freire aponta que, tradicional de ensino, a pedagogia crítica elaborada por Freire, pode auxiliar na
superação e no combate a essas formas opressoras e reprodutoras da cultura
[...] o domínio escolar das palavras só quer que os alunos descrevam
as coisas, não que as compreendam Assim, quanto mais se dominante.
distingue descrição de compreensão, mais se controla a consciência
dos alunos. [...]. Esse tipo de consciência crítica dos alunos seria um Por meio dessa pedagogia, é possível capacitar professores e estudantes a
desafio ideológico à classe dominante. Quanto mais essa dicotomia
entre ler palavras e ler realidade se exerce na escola, mais nos desenvolverem uma compreensão consciente sobre sua relação com o mundo e sua
convencemos de que nossa tarefa, na escola ou na faculdade, é
apenas trabalhar com conceitos, apenas trabalhar com textos que condição enquanto ser humano. O diálogo e a problematização, configuram-se como
falam sobre conceitos. Porém, na medida em que estamos sendo condições essenciais no pensamento freiriano, para o exercício da emancipação e
treinados numa vigorosa dicotomia entre o mundo das palavras e o
mundo real, trabalhar com conceitos escritos num texto significa da transformação social.
obrigatoriamente dicotomizar o texto do contexto. (FREIRE, 1986,
p.85) Em suma, a pedagogia crítica abre caminhos e possibilidades para o sujeito
Uma pedagogia dicotomizada como essa, diminui o poder do estudo conhecer e exercer a liberdade, tornando-se apto a construí-la responsavelmente
intelectual que ajude na transformação da realidade. A escola, reproduzindo os buscando a igualdade social, a garantia de seus direitos, o respeito à dignidade
interesses da classe dominante, tornará o homem cada vez mais, escravo de sua humana, o fim das injustiças sociais e da opressão.
própria condição, isto é, um objeto ou meramente uma “coisa”, contribuindo para as
permanentes injustiças e desigualdades sociais. A conscientização neste caso seria
um elemento essencial para a libertação dos sujeitos, tornando-os críticos
conscientes de seu papel em busca de uma sociedade igualitária que preserve a
liberdade.

Considerando tais aspectos que moldam o caráter libertador da pedagogia de


Paulo Freire, é papel do educador progressista, trabalhar com seus educandos de
modo que haja um processo dialógico e problematizador, com buscas à superação
de uma educação tradicional baseada na alienação dos indivíduos. É preciso que o

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REFERÊNCIAS Seção Temática Heleieth Saffioti
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mulheres, antes compreendidas como uma diferenciação genética e não como resultado
KIELING, J.F. Alienação. IN: REDIN, E.; STRECK, D.R.; ZITKOSKI, J.J. (Org.).
de um processo de construção das desigualdades, provocou uma significativa reestruturação
Dicionário Paulo Freire. 2 ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2010. da tradição do pensamento vigente. O gênero transformou-se numa categoria de grande
valor heurístico, seja na desconstrução dessa tradição tida como “cega ao gênero”, seja na
MOREIRA, C.E. Criticidade. IN: REDIN, E.;STRECK, D.R.;ZITKOSKI, J.J. (Org.). reconstrução teórica a partir do enfoque nas “experiências concretas das mulheres nas culturas,
Dicionário Paulo Freire. 2 ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2010. na sociedade e na história” (Seyla BENHABIB; Druscilla CORNELL, 1987, p. 7).
Uma das principais críticas partilhadas pelas feministas à época era da manutenção
ROSSATO, R. Práxis. IN: REDIN, E.; STRECK, D.R.; ZITKOSKI, J.J. (Org.). de uma ciência a serviço dos dominantes que se justificava pelas noções de objetividade,
Dicionário Paulo Freire. 2 ed.Belo Horizonte: Autêntica, 2010. racionalidade e universalidade do saber científico, como salienta Ilana Löwy:
TEITELBAUM, Kenneth. Recuperando a memória coletiva: os passados da apresentar os conhecimentos produzidos num dado momento – desde aurora do
período moderno –, num dado local (Europa, e mais tarde a América do Norte), por
educação crítica. In: APPLE, Michael W; AU, Wayne; GANDIN, Luís A. Educação indivíduos dotados por uma identidade social específica (machos, membros das classes
crítica: análise internacional. Porto Alegre: Artmed, 2011. dominantes) como o único saber, objetivo universalmente válido, de modo a excluir
qualquer outro ponto de vista (o das mulheres, dos pobres, das pessoas “de cor”, de países
não ocidentais) possibilitou que se consolidasse a hegemonia material e ideológica dos
dominantes (LÖWY, 2009, p. 42).

Assim, assistimos nos últimos quarenta anos a difusão do pensamento feminista junto
com uma renovação das teses e categorias que explicam o lugar que as mulheres ocupam
na sociedade e na construção do pensamento. Nesse cenário ganha força a epistemologia
feminista que propunha um feminist standpoint ou situated knowledge (Donna HARAWAY, 1995),
ou seja, um “conhecimento situado” que é produzido por indivíduos que tomam posição por
um certo mundo e recusam outros, destacando a articulação entre o posicionamento social e
político das(os) pesquisadoras(es) para a formulação da teoria.
Os estudos sobre as mulheres foram fundamentais para que essa perspectiva se difundisse,
não apenas porque houve o questionamento dos pesquisadores enquanto sujeitos universais,
mas também porque trouxe a agência dos sujeitos pesquisados (no caso as mulheres) para a
perspectiva analítica.
No interior desse debate contemporâneo é importante relembrarmos as teorias clássicas
dos estudos de gênero que formaram a nossa base para que pudéssemos questionar hoje
tanto o papel do pesquisador e da pesquisa quanto a necessidade de pensarmos as diferentes
relações sociais de forma articulada (interseccionalidade, consubstancialidade e nó). Dessa
forma, não tem como não retomar Heleieth Saffioti.
Heleieth Saffioti foi uma socióloga marxista, pesquisadora e defensora dos direitos das
mulheres. Ao longo de toda a sua trajetória pessoal e profissional articulou teoria e prática como
dimensões indissociáveis.

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Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(1): e76777
DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n176777 1
DANIELE CORDEIRO MOTTA E ELAINE MAURICIO BEZERRA A FORÇA DE HELEIETH SAFFIOTI 50 ANOS DEPOIS

São inúmeras as suas pesquisas sobre a condição feminina que puseram em xeque propiciou a adoção de noções como ‘repartição por sexo’ e ‘categorias de sexo’ que surgiam
as análises que não consideravam as mulheres como sujeitas da sociedade e da história. como ideias inovadoras no contexto europeu e que eram novidade no Brasil. No entanto, as
Dedicou-se a entender as desigualdades de gênero na sociedade brasileira e para isso autoras destacam que, ao introduzir uma perspectiva comparativa entre homens e mulheres,
analisou o papel das mulheres no mundo do trabalho, elaborando pesquisas sobre empregadas Saffioti diferenciava-se dos primeiros estudos sobre a condição feminina que a tratava como uma
domésticas, professoras primárias e trabalhadoras da indústria têxtil (SAFFIOTI, 1978, 1981, 2013). categoria específica à parte, prenunciando, assim, “o espaço analítico que seria posteriormente
Sua primeira obra, intitulada A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, é ocupado pelo conceito de ‘gênero’.” (GUIMARÃES; HIRATA, 2021, p. 5). Saffioti também transcende
marco para os estudos de gênero no Brasil, pois inaugurou a tradição de olhar para as mulheres os achados das pioneiras francesas, em especial, no que diz respeito ao tema do trabalho
como sujeitas da história. Podemos tratá-la como uma cânone do pensamento feminista no país, doméstico. Por outro lado, uma das principais referências para a escrita de A mulher na sociedade
tendo influenciado toda uma geração de mulheres militantes. Escrita no final da década de de classes, foi a teórica feminista estadunidense Betty Friedan que inspirou os argumentos que
1960, portanto em plena ditadura militar, foi publicada pela primeira vez em 1969 e é uma obra ampliaram a explicação sobre como se dá a combinação entre exploração e opressão feminina
de extensa importância para refletirmos sobre o papel das mulheres na sociedade brasileira. no ‘capitalismo desenvolvido’, além de servir de base para sua crítica à psicanálise.
No ano de 2019, essa publicação completou meio século e nos reunimos para ‘femenagear’ a Por fim, as autoras destacam o protagonismo de Heleieth Saffioti no cenário internacional
autora e retomar a importância da sua contribuição. Com esse intuito, buscamos diálogo com e como ela exerceu um importante papel de intermediadora e de construtora de “pontes entre
importantes intelectuais que se propõem a debater com Heleieth Saffioti, reler sua obra pioneira a academia e o marxismo brasileiros e o debate internacional no campo dos estudos sobre a
e refletir sobre sua importância cinquenta anos depois. mulher.” (GUIMARÃES; HIRATA, 2021, p. 9). Isso é perceptível com a publicação da edição inglesa
No entanto, a importância de sua contribuição não se limita apenas a uma obra, mas a de A mulher na sociedade de classe pela Monthly Review que ganhou vários tratamentos no
toda uma vida de pesquisa. Heleieth Saffioti foi uma intelectual que transitou entre o marxismo mundo anglófono, mas, também, pelas releituras contemporâneas, chegando a ser considerado
e o feminismo, trazendo uma inovadora leitura sobre a imbricação entre o capitalismo e o um dos 36 livros produzidos fora dos Estados Unidos e da Europa fundamentais para a história
patriarcado e, mais tarde, inseriu nessa simbiose também o racismo. global do pensamento social.
Nas décadas de 1970 e 1980, ganhou relevância nas suas pesquisas o trabalho das Em uma mesma linha de análise sobre o impacto da obra que inaugura os estudos
mulheres, abrindo um caminho para a análise da presença feminina no mercado de trabalho, de gênero no Brasil, o artigo de Bila Sorj e Anna Bárbara Araujo, “A mulher na sociedade de
que posteriormente seria percorrido por muitas outras intelectuais. Destacam-se nas suas análises classes: um clássico dos estudos de gênero”, faz uma análise sobre a recepção do livro e da
as pesquisas sobre as trabalhadoras domésticas, professoras primárias e as costureiras, entre obra de Heleieth Saffioti nas Ciências Sociais brasileiras, interpretando-a a partir da área de
seus principais trabalhos temos: Profissionalização feminina: professoras primárias e operárias estudos de gênero e feminista no país. O artigo oferece uma análise bibliométrica longitudinal
(1969); Do artesanal ao industrial: a exploração da mulher (1981); Mulher brasileira: opressão das referências feitas por artigos publicados em oito periódicos e que estão distribuídos entre
e exploração (1984). revistas ‘generalistas’ e ‘feministas’. Mesmo reconhecendo que tal classificação é passível de
É no final dos anos de 1980, no seu livro O poder do macho (SAFFIOTI, 1987), que a críticas, esse recurso permitiu analisar se a obra de Saffioti ficou “restrita ao campo dos estudos
autora formula a ideia da simbiose entre patriarcado, racismo e capitalismo, marcando um salto especializados ou se penetrou o chamado mainstream da produção acadêmica das Ciências
teórico-metodológico em Heleieth Saffioti que, a partir de então, não desvincula a imbricação Humanas e Sociais.” (SORJ, ARAUJO, 2021, p. 2).
de gênero, raça e classe em nenhuma de suas análises. Com a publicação da primeira edição Um dos apontamentos de Sorj e Araujo é que a recepção das contribuições teóricas de
de seu livro Gênero, patriarcado e violência, em 2004, a autora amadurece a análise das Heleieth Saffioti ao longo desses cinquenta anos reflete e explica o próprio desenvolvimento do
articulações e chega à formulação do nó frouxo de gênero, raça/etnia e classe (SAFFIOTI, 2015). campo dos estudos de gênero no país. Desse modo, podemos entender que os deslocamentos
Sua contribuição sobre o tema da violência de gênero extrapola seus textos e coloca teórico-analíticos e as mudanças nos temas de pesquisa existentes na trajetória da autora
Heleieth Saffioti no campo da atuação política, onde ficou marcada pela luta por políticas sinalizam um movimento mais amplo de consolidação dos estudos de gênero e feministas no
públicas para as mulheres. Suas pesquisas sobre o tema fundamentam e dão corpo para a Brasil. Porém, a análise deixa explícita que, embora pioneira, Saffioti permanece como uma
criação dessas políticas. Sobre esse tema destacamos os seguintes textos da autora: “Já se autora marginal no mainstream das Ciências Sociais brasileiras e seu reconhecimento restringe-se
mete a colher em briga de marido e mulher” (2000); “Contribuições feministas para o estudo da ao campo dos estudos de gênero.
violência de gênero” (2001); “Violência contra a mulher e violência doméstica” (2002); “Violência O texto “Notas sobre A mulher na sociedade de classes” de Carla Cristina Garcia faz uma
doméstica: questão de polícia e da sociedade” (2002). leitura da obra que auxilia as(os) leitoras(es) a se ambientarem ao contexto intelectual e político
A contribuição de Heleieth Saffioti para os estudos de gênero é marcante em várias áreas em que Heleieth escrevia e mostra os diálogos que a autora trava na obra, além de algumas das
do conhecimento, tratando de diversos temas de fundamental importância. A presente seção interpretações acerca de suas teses que surgiram ao longo desse meio século da publicação
temática não pretende dar conta de toda a obra da autora, mas situar sua imensidão no campo de seu livro. O texto apresenta a vinculação da autora ao marxismo e a especificidade da
dos estudos de gênero. sua leitura para a reflexão sobre as mulheres nas sociedades capitalistas, mostrando que para
Heleieth a questão da mulher é vista como uma das manifestações da estrutura de classes.
Revisitando A mulher na sociedade de classes: Carla Cristina Garcia também analisa a influência de Viola Klein nesse livro de Heleieth Saffioti
renovados olhares sobre suas contribuições e, a partir da análise dos papéis sociais de Klein, reflete sobre a concepção de gênero de
Saffioti. Segundo a autora do artigo, para Saffioti, o conceito de gênero não se resume a uma
teóricas e políticas categoria analítica, visto que é também uma categoria histórica, na qual os vários elementos
A seção temática que apresentamos está dividida em duas grandes partes. A primeira estão inseridos, “como tempo e espaço, símbolos culturais, organizações e instituições sociais,
traz textos que dialogam diretamente com A mulher na sociedade de classes, aportando novas a gramática sexual, as relações entre os sujeitos” (GARCIA, 2021, p. 8). Por fim, a autora faz
visões sobre o impacto, a recepção e as reflexões que a obra trouxe. E a segunda faz um uma reflexão sobre a sexualidade das mulheres e os mitos que são elaborados em torno dessa
diálogo com outros temas que Heleieth Saffioti tratou e que nos ajuda a refletir e a compreender temática, avaliando como as instituições tradicionais e a moralidade influenciam na vida das
as relações de dominação contemporâneas. mulheres.
A seção começa com um artigo escrito por Nadya Araujo Guimarães e Helena Sumiko Esse primeiro momento da seção temática é fechado com o texto de Natalia Pietra Méndez
Hirata, “A mulher na sociedade de classes: inspirações e impactos internacionais”, que analisa a (2021), “A mulher na sociedade de classes: contribuições para uma historiografia feminista”, no
incursão da autora nas obras pioneiras sobre o tema das mulheres e o trabalho na Europa e nos qual apresenta os diálogos de Heleieth Saffioti tanto com o campo feminista quanto com os
Estados Unidos, bem como a circulação da obra no cenário internacional. As autoras destacam conhecidos clássicos do pensamento brasileiro, inserindo-a no debate sobre a interpretação do
a maestria de Heleieth Saffioti ao trazer para o Brasil a produção intelectual europeia de ponta, Brasil, analisando sobretudo a parte II do livro, intitulada “Evolução da condição da mulher no
dadas as dificuldades da época e a forma lenta com que se estabeleciam as conexões Brasil”. A autora do artigo coloca Saffioti como uma contribuição histórica, não apenas porque
acadêmicas, especialmente para quem escrevia uma tese restrita às cidades de Araraquara e foi uma mulher que fez história, trazendo uma novidade metodológica dentro do ambiente
São Paulo. acadêmico, ao colocar a questão das mulheres no centro do debate junto com classe e
A afinidade das reflexões trazidas por Saffioti com os primeiros trabalhos franceses sobre raça, mas também porque questionou algumas teses consagradas para a análise do Brasil.
a condição da mulher demonstra o profícuo diálogo dela com as teóricas daquele país. Isso Heleieth evidenciou, dessa forma, a necessidade de relacionar os processos históricos com as
relações entre os sexos. Natalia ainda ressalta a importância da pesquisa nas fontes históricas

Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(1): e76777 Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(1): e76777
2 DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n176777 DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n176777
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DANIELE CORDEIRO MOTTA E ELAINE MAURICIO BEZERRA A FORÇA DE HELEIETH SAFFIOTI 50 ANOS DEPOIS

que Heleieth se debruçou e a insere como uma autora importante para o questionamento dos feministas, nas duas últimas décadas, ficando circunscrita a alguns grupos da área dos
saberes tradicionais, que explicitou o papel das mulheres na história. Por fim, Méndez coloca estudos de gênero. No entanto, percebemos que, cada vez mais, jovens intelectuais, algumas
Saffioti como uma contribuição para a historiografia das mulheres no Brasil mesmo não sendo presentes nesta publicação, vêm retomando seus conceitos e fazendo novas análises da sua
historiadora. obra (Fernanda Maria Caldeira de AZEVEDO, 2016; Elaine BEZERRA, 2013; Renata GONÇALVES,
O texto de Isis Táboas (2021) abre um segundo momento da seção temática. O artigo 2013; Samantha Camacam de MORAES, 2020; Daniele MOTTA, 2018; Viviane Modda OLIVEIRA,
“Apontamentos materialistas à interseccionalidade” dialoga com a obra de Heleieth Saffioti a 2019; Letícia RIBEIRO, 2020) o que tem colocado Heleieth na cena novamente. Por outro lado,
partir da sua contribuição para os debates da articulação das relações sociais de gênero, percebemos uma presença marcante de Saffioti e dos seus conceitos também no interior dos
raça e classe sem hierarquização. O texto faz uma leitura sobre interseccionalidade, mais movimentos sociais, não apenas os feministas. Um exemplo disso são os Cursos de Realidade
especificamente à leitura de Kimberlé Crenshaw, comparando-a ao que a autora chama de Brasileira1 organizados inicialmente pelo Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras
leitura materialista. Isis faz uma leitura cuidadosa sobre o surgimento da interseccionalidade, Rurais Sem Terra (MST), mas que, atualmente, é replicado em vários estados do país por diversas
situando que a ideia já estava presente em teorias do século XIX, além de remontar os casos organizações sociais, dentre as quais destaca-se a Consulta Popular. Nessas iniciativas, obra
assumidos por Kimberlé Crenshaw que ficaram conhecidos pelo uso da interseccionalidade A mulher na sociedade de classes é a base sobre a questão das mulheres na formação social
como um argumento para explicitar a invisibilidade das demandas das mulheres negras e a brasileira.
necessária luta por justiça social que leve em consideração as questões de gênero e raça Mesmo com certo apagamento de suas contribuições, suas reflexões mostram uma
de maneira articulada. Isis reconhece a importância da perspectiva interseccional para o preocupação com a articulação dos aspectos da diversidade social, com as formações histórico-
feminismo latino-americano, mas traz um questionamento à tal noção. A autora traz quatro estruturais, fazendo uma contribuição que olha para a realidade de forma não fragmentada.
questões para a perspectiva de Kimberlé Crenshaw incluindo Heleieth Saffioti como um dos Desde seu primeiro livro, aqui rememorado, a autora já demonstrava preocupar-se com as
expoentes do que chama de leitura feminista materialista. Ao seu lado coloca outras autoras articulações de gênero, raça e classe; preocupação que ganhou corpo ao longo dos anos e a
importantes no campo dos estudos de gênero: Mirla Cisne, Helena Hirata e Danièle Kergoat, fez chegar na formulação do “nó frouxo”. Ferramenta analítica ainda pouco lembrada (realidade
explicitando as polêmicas que cercam o debate sobre a articulação das categorias. Por fim, a que vem sendo transformada) para o debate contemporâneo das intersecções.
autora aponta a leitura de Heleieth Saffioti sobre o nó de gênero, raça e classe e suas diferenças Além de retomar meio século da sua obra pioneira em 2019, o ano de 2020 marcou dez
com a interseccionalidade. anos de seu falecimento. Trazemos a memória de Heleieth Saffioti a partir desta seção temática
O texto de Maria Lucia da Silveira e Tatau Godinho (2021), “Diálogos sobre a obra de para que possamos retomar seus textos e levar adiante seu legado, assumindo um compromisso
Heleieth Saffioti e o feminismo de esquerda”, traz uma elaboração do desenvolvimento dos com a pesquisa e a luta feminista, em que Heleieth é, sem dúvida, uma referência e uma
conceitos de Heleieth Saffioti e os tensionamentos que causaram para pensarmos o movimento inspiração.
feminista, destacando, de um lado, o papel pioneiro da obra A mulher na sociedade de classes A retomada da obra de Heleieth Saffioti mostra-se necessária diante do cenário político
e apontando, por outro lado, alguns pontos de dissonância de sua trajetória intelectual. As que estamos vivendo, de rápida perda de direitos antes garantidos e de retrocesso no debate
autoras ressaltam a ousadia de Heleieth por trazer à tona a importância do olhar para a questão democrático e científico, em que o atual governo federal é um dos principais difusores de uma
das mulheres na compreensão da sociedade, em um momento em que tais questionamentos narrativa antifeminista e mistificadora das relações de gênero. A pauta das mulheres foi mais
ainda eram bastante hostilizados. Isso faz com que as autoras entendem já nessa primeira obra uma vez colocada no debate da moralidade, circunscritas a seu papel na família (que inclusive
de Heleieth uma valorização do feminismo na teoria e na prática. Elas colocam, ainda, que aparece no nome da secretaria comandada pela Ministra Damares Alves), da maternidade, da
para as militantes da esquerda, a publicação de A mulher na sociedade de classes foi uma casa.
referência fundamental para se debater e aprofundar a vinculação da dominação das mulheres A afirmação feita por Heleieth na primeira publicação do livro (cinquenta anos atrás)
ao capitalismo. No entanto, ainda que reconheçam a importância da autora, no que elas de que não era feminista foi uma das questões debatidas nos artigos presentes nesta seção
entendem ser um primeiro momento de sua trajetória intelectual, quando se debruçou sobre a temática. Sabemos que se dizer feminista naquele momento era algo pejorativo, mas que, ao
relação das mulheres no mundo do trabalho, apontam certo distanciamento dela das lutas que longo dos anos, foi sendo transformado conforme a luta das mulheres avançava. O discurso
se desenvolviam no processo de organização das mulheres trabalhadoras no Brasil no mesmo conservador que emerge em torno da questão da família e afeta diretamente as mulheres é
período em que escrevia. Um dos pontos marcantes do artigo é, justamente, quando as autoras uma reação as transformações que vivemos nos últimos anos, em decorrência da atuação das
destacam a atuação de Heleieth Saffioti no combate à violência contra as mulheres. Segundo mulheres nos diversos campos. Flávia Biroli coloca essas questões nos seguintes termos:
elas, o tema da violência levou a autora a muitos caminhos de atuação, possibilitando o vínculo
os sentidos do feminino e do masculino estão sendo recodificados. As relações de
entre a teoria e a luta pela implantação de políticas públicas voltadas para as mulheres. É com gênero sofreram transformações na vida afetiva, no universo familiar, nas relações de
o olhar para esse momento da trajetória de Saffioti que as autoras do artigo ousam dizer que trabalho remunerado e na política. Não existe igualdade nesses espaços, o machismo
ela se tornou a pensadora do feminismo brasileiro de maior destaque no tema da violência e a homofobia não foram superados, mas os movimentos feministas, LGBT e antirracistas
desde o final dos anos 1980, ressaltando não apenas sua importância histórica, mas também a têm sido capazes de impor suas pautas ao debate público, ampliando as controvérsias
atualidade de sua contribuição. onde antes predominavam silêncio e naturalização. (BIROLI, 2018, p. 205).
O último texto da seção temática apresenta um resgate histórico da relação de Heleieth
O feminismo é um dos movimentos que mais cresce e é perceptível que alcançou um
Saffioti com o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Universidade Federal
grau de enraizamento importante nas últimas décadas, saindo dos círculos restritos da academia
da Bahia (UFBA). Maíra Kubík Mano e Cecilia Sardenberg (2021) trazem um relato sensível e
e das organizações feministas. Está no campo e na cidade, nas escolas, nas redes sociais,
afetuoso para homenagear a ‘madrinha do NEIM’, cuja contribuição foi fundamental para o
ampliou a presença entre as mais jovens e tem se constituído por meio de movimentos e redes
crescimento e desenvolvimento do Núcleo e influenciou as várias gerações de pesquisadoras
internacionais. Quando Heleieth Saffioti escreveu seu livro (aqui rememorado) o país passava
associadas. Elas apresentam suas próprias trajetórias para estabelecer um encontro da primeira
pela ditadura militar e as mulheres estavam lutando por democracia (pela via armada, na
(Cecilia) com a terceira geração (Maíra) de pesquisadoras, numa ‘conversa a três’ com Heleieth
clandestinidade, no exílio e nas organizações populares). Hoje, ao mesmo tempo que cresce
Saffioti, que tem como fio condutor a obra A mulher na sociedade de classes. O entrelaçamento
o debate e as reivindicações das mulheres, aumenta, também, o ataque às pautas feministas,
desse encontro tem como ponto comum a articulação entre construção teórica e prática
como a ideologia de gênero, escola sem partido, estatuto do nascituro, a Portaria nº 2.282/2020
política como indissociável, representada na trajetória de Saffioti e que também está presente
(que dificulta a realização do aborto em casos previstos na lei), entre outros.
na história do NEIM e na das suas pesquisadoras. Heleieth Saffioti permanece viva e seus aportes
Essa obra de Heleieth nos revela, ainda, que o entendimento do mito, enquanto mecanismo
seguem inspirando as novas pesquisadoras feministas, mesmo que sua presença física já não se
construído pela sociedade para justificar o lugar de subordinação das mulheres, permite-nos
faça mais entre nós.
outra análise da realidade. Além disso, A mulher na sociedade de classes é importante para
A contribuição de Heleieth Saffioti para o demonstrar que o ideal da mulher benevolente, que se dedica à família por amor e se restringe

feminismo na atualidade 1
Há uma iniciativa intitulada Brasil: Realidade e Revolução, baseada nesses cursos de realidade brasileira, que
está sendo realizado no formato virtual, cujo módulo sobre patriarcado e racismo tem Heleieth Saffioti como uma
Mesmo com toda a importância que sua obra tem, o legado teórico de Heleieth Saffioti das referências principais. Conheça o conteúdo do curso da Consulta Popular em https://sites.google.com/view/
passou por um momento de ‘esquecimento’ em alguns círculos da academia e dos movimentos brasil-realidade-revolucao.

Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(1): e76777 Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(1): e76777
4 DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n176777 DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n176777
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DANIELE CORDEIRO MOTTA E ELAINE MAURICIO BEZERRA A FORÇA DE HELEIETH SAFFIOTI 50 ANOS DEPOIS

ao espaço doméstico é um mito! Recentemente vimos esses mitos ressurgirem na cena, quando MÉNDEZ, Natalia Pietra. “A mulher na sociedade de classes: contribuições para uma historiografia
a grande mídia exaltou Michele Temer, então primeira-dama do Brasil, como uma mulher ‘bela, feminista”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e76728, 2021.
recatada e do lar’. Não foi coincidência, entretanto, que o movimento de mulheres no Brasil foi o
que fez as maiores manifestações desde a deposição da presidenta Dilma, como o Fora Cunha, MORAES, Samantha Camacam de. O feminismo marxista de Heleieth Saffioti: contribuições
o #EleNão e o #HaddadeManuSim.2 à educação escolar. 2020. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar) –
Vivemos o momento da renovação dos mitos, muito próximo dos que Heleieth trabalhou Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Araraquara, SP, Brasil.
no seu livro de 1969. Pensando a sociedade contemporânea, alguns mitos em torno da mulher
MOTTA, Daniele. “Desvendando Heleieth Saffioti”. Lutas Sociais, v. 22, n. 40, p. 149-160, jan./
renascem para tentar tirar a nossa voz da história, para tentar enclausurar a nossa narrativa.
jun. 2018. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/46662. Acesso em
Heleieth Saffioti nos alertou: “É deles [dos mitos] que a sociedade costuma lançar mão para
21/08/2020.
impedir ou retardar a emancipação de uma categoria social que se impõe a tarefa da
libertação” (2013, p. 179). OLIVEIRA, Viviane Modda. Revisitando Heleieth Saffioti: a construção de um conceito de
Nos últimos anos, a relação entre homens e mulheres se alterou significativamente, Patriarcado. 2019. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Sociologia) – Universidade
transformando não apenas as disputas em torno da luta por direitos, mas também o próprio Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil.
cotidiano das pessoas. Observa-se, portanto, que estudar, falar e organizar as demandas em
torno das desigualdades de gênero causa profundo incômodo e retomar Saffioti é parte dessa RIBEIRO, Letícia de Souza. Diálogos entre Heleieth I. B. Saffioti e Daniil B. Elkonin: uma contribuição
disputa e desse incômodo, trazendo uma perspectiva crítica que não se preocupa apenas à análise histórico-cultural da idade pré-escolar. 2020. Mestrado (Programa de Pós-Graduação
com o que muitos chamam de identitarismo das mulheres, mas com uma desconstrução das em Educação Escolar) – Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista,
hierarquias e desigualdades sociais. E se Heleieth nos ensinou que as relações estão enoveladas, Araraquara, SP, Brasil.
entendemos que a luta feminista adquire um potencial revolucionário se aliada com a luta
anticapitalista e antirracista. Sigamos na luta! Boa leitura! SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São Paulo: Editora
Expressão Popular, 2013 [1969].
Referências SAFFIOTI, Heleieth. Do artesanal ao industrial: a exploração da mulher. São Paulo: Editora
AZEVEDO, Fernanda Maria Caldeira de. “O conceito de patriarcado nas análises teóricas das Hucitec, 1981.
ciências sociais: uma contribuição feminista”. Revista Três […] Pontos, Belo Horizonte, v. 13, n. 1,
p. 12-20, jan./jun. 2016. Disponível em https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/ SAFFIOTI, Heleieth. Emprego doméstico e capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1978.
article/view/3386. Acesso em 29/08/2020.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular;
BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, Fundação Perseu Abramo, 2015 [2004].
2018.
SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.
BENHABIB, Seyla; CORNELL, Druscilla. “Introdução: além da política do gênero”. In: BENHABIB,
Seyla; CORNELL, Druscilla (Orgs.). Feminismo como crítica da modernidade: releitura dos SILVEIRA, Maria Lucia da; GODINHO, Tatau. “Diálogos sobre a obra de Heleieth Saffioti e o
pensadores contemporâneos do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos feminismo de esquerda”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e76772, 2021.
Tempos, 1987. p. 7-22. SORJ, Bila; ARAUJO, Anna Bárbara. “A mulher na sociedade de classes: um clássico dos estudos
BEZERRA, Elaine. “A originalidade do pensamento de Heleieth Saffioti na análise crítica sobre de gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e76729, 2021.
a condição da mulher na sociedade capitalista”. Revista Lutas Sociais, São Paulo, v. 17, TÁBOAS, Ísis Dantas Menezes Zornoff. “Apontamentos materialistas à interseccionalidade”. Revista
n. 31, p. 170-173, jul./dez. 2013. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/ Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e76725, 2021.
view/25734/18368. Acesso em 29/08/2020.

GARCIA, Carla Cristina. “Notas sobre A mulher na sociedade de classes”. Revista Estudos Daniele Cordeiro Motta (daniele.motta@ifsp.edu.br) é graduada em Ciências Sociais
Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e76731, 2021. pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008) e mestra em Sociologia pela
GONÇALVES, Renata. “O pioneirismo de A mulher na sociedade de classes”. In: SAFFIOTI, Heleieth. Universidade Estadual de Campinas (2012). Com experiência em projeto de extensão de
A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013. p. 11-25. acompanhamento de grupos de catadoras e catadores de materiais recicláveis. É doutora em
Ciências Sociais na Área de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (2017).
GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena Sumiko. “A mulher na sociedade de classes: inspirações Atualmente é professora de Sociologia do IFSP, campus de Capivari.
e impactos internacionais”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e71394, 2021.
Elaine Mauricio Bezerra (elainemauriciobezerra@gmail.com) é doutora em Ciências
HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, com estágio sanduíche no Programa
perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 5, p. 7-41, jul./dez. 1995. Universitario de Estudios de Género (PUEG) da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM).

LÖWY, Ilana. “Gênero e ciência”. In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; LE DOARÉ, Hélène;
SENOTIER, Danièle (Orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p.
40-44.

MANO, Maíra Kubík Taveira; SARDENBERG, Cecilia Maria Bacellar. “Heleieth e as diferentes
gerações de feministas do NEIM/UFBA”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1,
e72559, 2021.

2
É importante notar que o movimento de mulheres na América Latina tem dado demonstrações de força como as
mobilizações que aconteceram na Argentina em 2018, o Ni una a menos, e a onda de protestos no Chile em 2019
que viralizou um vídeo com inúmeras mulheres fazendo uma intervenção El violador eres tu. Além disso, no ano de
2017 foi chamada pelas mulheres negras estadunidenses uma greve internacional de mulheres no dia 8 de março,
que teve repercussões em diversos lugares do mundo, inclusive no Brasil.

Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(1): e76777 Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(1): e76777
6 DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n176777 DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n176777
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DANIELE CORDEIRO MOTTA E ELAINE MAURICIO BEZERRA

COMO CITAR ESSE ARTIGO DE ACORDO COM AS NORMAS DA REVISTA

MOTTA, Daniele Cordeiro; BEZERRA, Elaine Mauricio. “A força de Heleieth Saffioti 50 anos depois”. Revista Estudos
Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e76777, 2021.

CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA

As autoras contribuíram igualmente na redação e, junto com Renata Cristina Gonçalves dos Santos,
organizaram a Seção Temática.

FINANCIAMENTO

Não se aplica.

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM

Não se aplica.

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

Não se aplica.

CONFLITO DE INTERESSES

Não se aplica.

LICENÇA DE USO

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HISTÓRICO

Recebido em 29/08/2020
Reapresentado em 20/10/2020
Aprovado em 09/11/2020

Errata
Neste artigo na contribuição da autoria, na página 8

Onde se lia:

As autoras contribuíram igualmente.

Leia-se:

As autoras contribuíram igualmente na redação e, junto com Renata Cristina Gonçalves dos
Santos, organizaram a Seção Temática.

Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(1): e76777


8 DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n176777

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