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COLEÇÃO ESTRUTURA E FUNÇ!&Q.


ÁNTROPOLOOIA
1
f,I
NA SOCIEDADE
2 : {

1
PRIMITIVA
Orientação de :
ROBERTO AUGUSTO DA MATTA
A. R. RADCLIFFE-BROWN
e
Professor Emérito
da Universidade de Oxford .
LU IZ DE CASTRO FARIA
Prefácio dos Professores :
E. E. Evans-Pritchard
Professor de Antropologia Social
na U11iversldade de Oxford

Fred Egga11
) Professor ele Antropologia
na Vnlversidade de Chicago

Traduçcio de
)
Nathanael C. Caixeiro
J
BIBLIOTECAS
) PBSPSP

FICHA CATALOGRAFICA
\ ) (Preparada pelo Centro de Catalcgação-na-fonte do
Sindicato Naclo,ial dos Editores de Livros, GB)

Radcl!Ue-Brown, Alfred Reglnald, 1881,


Rl2o


Estrutura e função na sociedade primitiva; trad .
de Nathanael C. Caixeiro. Petrópolis, Vozes, 1973.
2'12p. (Antropologia, 2) .
Bibliogralia.
1. Antropologia social. · I. Titulo. II. Série.

o PETRÓPOLIS
73,0055 CDD-301.2 EDITORA VOZES LTDA.
1973

...li..:. ..\\e....
rnismos animais, e que elas podem ser descobertas pela
\ pesquisa científica a9equada.
Para maior elucidação do conceito é conv.eniente em-
pregarmos a analogia entre vida social e vida orgânica.
Como todas as analogias isto deve ser feito com cautela.
Capitulo IX O organismo animal é uma aglomeração de células e
fluidos intersticiais dispostos uns em relação com outros
não como um agregado, mas como um todo vivo inte-
Sobre o Conceito de Função grado. Para o bioquímico, trata-se de um sistema com-
plexamente integrado de moléculas complexas. O sistema
em Ciências Sociais ' de relações pelo qual essas unidades se relacionam é a
estrutura orgânica. Tal como os termos são empregados
aqui, o organismo não é em si a estrutura; é um acú-
Q CONCEITO DE FUNÇÃO APLJCADO A SOCIEDADES HUMANAS tpulo de unidades (células e moléculas) dispostas numa
baseia-se na analogia entr.e vida .social e vida orgânica. estrutura, isto é, numa ~-~!,i~ 9_e,_r.~l<1ç(5es; C> organismo
O reconhecimento da analogia e de alg1rn1as de suâs tem uma estrutura. Dois animais adultos da mesma es- y.
implicações não é novo. No século XlX, analogia, con- pécie e de mesmo sexo compõem-se de unidades seme- _ , {..f
ceito de função e a própria palavra aparecem freqiien- lhantes combinadas numa estrutura semelhante. A es- •\ )/j
temente na fil?sofia social e na sociologia. Tanto quanto trutura deve pois ser definida como uma série de"refã: ·~'\
sei, a primeira formulação sistemática ·aplicada ao es- çQes s:ntrn imfuJ~s. (A estrutura de uma célula é, no
tudo estritamente científico da sociedade foi a de Emile mesmo sentido, uma série de relações entre moléculas
Durkheim, em 1895 (Regles de la Métftode SociOiogiqu!)· )i complexas, e a estrutura de um átomo é uma série de
relações entre elétrons e prótons). Na medida em que
Na defini ão de Durkheim a «fun ão» de uma insti-~?' vive, o organismo mantém certa identidade de suas par-
tui ão social é a correspondência entre e a e as neces- · . ·
s·dade besoms em ranc s a or amzaç o sociãl. tes constituintes. Perde algumas de suas moléculas pela
Esta definição exige a guma precauçao. m pnme ro Li- respiração ou excreção; obtém outras pela respiração e
gar, para evitar possível ambigüidade e, em particular, absorção alimentar. Durante certo tempo suas células
constituintes não permanecem as mesmas. Mas a dispo-
a possibilidade de uma interpretação teleológica, gosta-
ria de ~ul>stituir o termo · «necessidades» pelo termo sição estrutural das unidades integrantes continua o
·~ondições necessárias de existência», ou, se empregar- mesmo. O processo pelo qual se mantém esta continui-
dade estrutural do organismo chama-se vida. O proces-
mos o termo ,necessidade», que tenha o significado gue
pr~pon.~. Pode-se notar aqui, como ponto a que volta so vital consiste das atividades e . interações . das unida-
des constituintes do organismo: as células e os órgãos
remos, que toda tentativa de aplicar este conceito d~ nos quais as células estão unidas.
função em ciências sociais implica a suposição de que.· Çomo a palavra função está sendo empregada aqui,
hd condições necessárias de existência para as socieda..: a vida do organismo é concebida como o funciemamefl10
des humanas, do mesmo modo que as há para orga-, de sua estrutur~. E' mediante a continuidade do fun-]
' Este trabalho, que se baseia nos comentários que fiz à conferência
cionamento que a continuidade da estrutura se mantém.
do Dr, Lesser na Amerlcan Anlhropological Assoclation, é reimpresso con- Se considerarmos qualquer parte cíclica do processo vi-
lorme o Amerlcan Anthropologlst, Vol. XXXVII, p. 3, 1935, onde era
acompanhado do trabalho do Dr. Lesser. tal, tal como a respiração, digestão etc., sua função é
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lo papel desempenhado, a contribuição dada à vida de que consiste de atividades e interações dos setes huma-
1todo o organismo. Tal como os lermos estão sendo em-1 nos como maividuos, e dos grupos organ1zadõs nos
pregados aqui, uma célula ou órgão tem atividade e essa \ qyais estão unid~. A vida social da comunidade é de-
fÍIÚ9â .ruJtJ.i cqmo o :Zuncionamento da estrutura social.
atividade tem uma função. E' certo que em geral fala-
mos da se<:reção do suco gástrico como «função> do A função de qualquer atividade periódica, tal como a
punição de um crime, ou uma cerimônia fúnebre, é a
f
estômago. No sentido que damos ãs palavras aqui, de-
veríamos dizer que isso é «atividade» do estômago, cuja· parte que ela desempenha na vida social como um todo
«função» é mudar as proteínas do alimento numa forma e, portanto, a contribuição que faz para a manutenção
em que estas sejam absorvidas e distribuídas aos teci- da continuidade estrutural.
dos pelo sangue. • Podemos observar que a função de Q conceito de função tal como é aqui definido imnlica,
um processo fisiológico cíclico é assim uma correspon- eois, a noção de uma estrutura constituída de uma sé-
dência entre ele e as necessidades (isto é, condições iie)' de relações entre entidades unidades sendo
necessárias de cxist~ncia) do organismo. , 'ã'CJinimuz a e da estrutura por um processo vital co~-
Se empreendemos uma investigação sistemática da titúfdo das atividades das unidades integrantes.
natureza dos organismos e da vida orgânica, três séries Se empreendermos um estudo sistemático da natureza
ele problemas se 110s apresentam. (Há, -em acréscimo, da sociedade humana e da vida social, tendo em mente
outras séries de problemas referentes á aspectos ou ca- esses conceitos, teremos diante de nós três séries de pro-
racterísticas da vida orgânica pelos quais não nos in- blemas: em primeiro lugar, problemas de morfologia
teressamos aqui). Ç) rimeiro é de morfolo ia: ue es- social - a existência de estruturas sociais, suas se-
12,,écies de · estruturas orgânicas h~? ue semelhanças e melhanças e diferenças, e modo pelo qual possam ser
varia~ões mostram?, E como podem ser classificadas? classificadas. Em segundo lugar, problemas .de fisiologia
Em segundo lugar há problemas de fisiologia: como, social: como funcionam as estruturas sociais? E, por
em era] funcionam as estruturas or ânicas e e uai or- último, problemas de desenvolvimento: como vêm a exis-
tanto a natureza do erocesso vtta}? Fina mente, proble- tir novos tipos de estrutura social?
@as de evolução ou desenvolvimento: como vêm à
existência novos tipos de organismos? Devemos notar duas importantes questões oi1de cessa
Deixando a vida orgânica e voltando à vida social, a analogia entre organismo e sociedade. Num organis-
se examinarmos uma comunidade como a tribo africana mo social é possível observar a estrutura orgânica, até
ou australiana, podemos reconhecer a existência de uma certo ponto independentemente de seu funcionamento. E',
estrutura social. Os seres humanos individuais, unidades portanto, possível organizar uma morfologia independen-
,ii:ssenciais neste caso, estão relacionados por uma se"rie te da fisiologia. Mas na sociedade humana a estrutura
Jlçfinida de relações sociais num todo integrado. A con- social como um todo só pode ser o•bservada em seu
tinuidade da estrutura social, como a da estru"fúra orgâ- funcionamento. Alguns dos aspectos da estrutura social,
nica, não é destruída pelas mudanças nas unidades. Os tais como a distribuição geográfica dos indivíduos e
indivíduos podem deixar a sociedade, por morte ou de grupos, podem ser observados diretamente, mas a maior
outro modo; outros podem entrar nela. A continuidade parte das relações sociais que na totalidade constituem
da estrutura é mantida pelo processo da vida social, a estrutura, tais como as relações de pai e filho, com-
prador e vendedor, governador e governado, não podem
• A insistência nestn forma rigorosa de terminologia é apenas em vista
da analogia a ser feita. Não fazemos objeção alguma ao emprego do
ser observados, a não ser nas atividades sociais nas
termo função em fisiologia para designar tanto a atividade de um órgão quais as relações estão funcionando. Segue-se disto que
como os resultados da atividade na manutenção da vida,

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.. ~ ir' . Ü&l&WSfffflAiU%Zr&bt z
-~------------------------------'ll'f~---------~~;-w1_, 1-"'~-..,~!~,. ~oi=•--.----,.-,..-

não se pode estabelecer uma morfologia social indepen-


dentemente de uma iisiologia social estado, distinguindo condições de eunomu:z (boa or~em,
A segunda questão é que o organismo animal nã·o mu- saúde social) de dysnomía· (desordem, doença social).
No século passado, Durkheim em sua aplicação da no-
da seu ttpo estrutural no curso da vida. O porco não
se transforma em hjpopótamo. (A evolução do animal
ção de função procurou lançar os alicerces para _uma
desde a fecundação até a maturidade não é uma altera- patologia social cientifica, com base na morfologia e
físiologia. • Em seus trabalhos, sobretudo sobre o sui-
ção cj_e tipo, visto que o processo em todos os seus es-
c[diQ e a divisão do trabalho, empenhou-se em achar
1âdtos é típico para a espécie). F;or outro lado, a so- critéríes objetivos mediante os quais pudesse julgar se
ciedade no curso de sua história pode e de fato muda dada sociedade em certo tempo é normal ou patológica,
,§eu tipo estrutural sem qualquer quebra de continuidade.
eunômica ou disnômica. Por exemplo, procurou mostrar
Ps_I:t definição aqui dada, «função» é . ~ -~n~~-~~'-!ii!º que o aumento da taxa de suicídio em muitos países
qye, determinada atividade . proporei o?ª à atividade to:al durante parte do século XIX é sintomático de condição
da qual é t;?arf~. A função de determmado costume social social disnômica ou em sua terminologia, anôrnica. Não
é a contribb~ão que este oforece à vida social total haverá talvez sociól~go que sustente tenha Durkheim si-
como o funcfonamento do sistema social total. Tal mo--\ do bem sucedido no estabelecimento de base objetiva
do de ver implica que certo sistema social (toda a es-( para a ciência da patologia social.•
trutura soclal de uma sociedade juntamente com a to-
talidade dos costumes s-o<:iais nas quais aquela estrutura\ Com relação às estruturas orgânicas podemos achar
aparece, e da qual depende para sua existência conli- { critérios estritamente objetivos mediante os quais distin-
nuada) tem. certo tipo de unidade a que podemos cha- · guir doença de saúde, patológico de normal, porque. do-
mar de unidade funcional. Podemos defini-lo como con- 1 ença é aquilo que ou ameaça de morte o organismo
dição pela ·qual todas as partes do sistema social atuam) (dissolução de sua estrutura~ ou interf~re nas at!vidades
juntas com suficiente grau de harmonia ou consistência características do tipo orgântco. As sociedades nao mor-
interna, isto é, sem ocasionar conflitos persistentes que/ rem no mesmo sentido que os animais, e, portanto, não
nem podem ser solucionados nem controlados. ' podemos definir disnomia como o que leva, se não con-
Esta idéia de unidade funcional do sistema social é, trolado, à morte de uma sociedade. Ademais, uma so-
evidentemente, uma hipótese. Mas é de molde a que, ciedade difere do organismo no sentido de que altera
para o funcionalista, vale a pena ser experimentada por seu tipo estrutural, ou pode ser absorvida como ~arte
exame sistemático dos fatos. integral de uma sociedade mais vasta. Por conseguinte,
Há outro aspecto da teoria funcional que deve ser não podemos definir disnomia como perturbação d_as
brevemente mencionado. Voltando à analogia da vida atividades usuais de um tipo social (como Durkhe1m
social e vida orgânica, reconhecemos que um organis- tentou fazer).
mo pode atuar mais ou menos eficazmente, e desse modo Voltemos, por um instante, aos gregos. Concebiam
estabelecemos uma ciência especial da patologia para eles a saúde do organismo e a eunomia da sociedade
tratar de todos os fenômenos de disfunção. Distingui- como sendo, em cada caso, condição da atuação con-
mos num -organismo o que chamamos sat1de e doença. • Correspondendo 10 ~ue aqui chamamo, dysnom/a Ourlcbelm empreg~v•
Os gregos do século V antes de Cristo pensavam que o termo anomia Canomle em franeb). Belo termo t, a meu ver, lna e-
quado, Sallde e doença, 'eunomla e dlenomla alo, lundamantalmente, ter•
se podia aplicar a mesma noção à sociedade, à cidade- m:• p!:!~~f~!nte
concordo com o principal da critica de Roger Lacombe
(La Méthode Soctologtque de Durkhelm, 1926, cap. IV) sobre a teordla
• Oposição, Isto é, antagonismo organizado e regulado, é, evidente- geral de Durkhelm da patologia social, e com a critica do enfoque e
mente, aspecto essencial de todo sistema social. Durkhelm sobre sulcldlo, apresentada por Hatbwachs em Le4 Cause, du
Suicide.
224 Estrutura e••• E 2318 - 8 225

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juma e harmoniosa de suas partes. ' Ora, isto, no que caso, porém, podemos observar e comparar movimentos
diz respeito à sociedade, é idêntico ao que M pouco espontâneos no sentido da reintegração. Temos, por
consideramos como unidade funcional ou consistência exemplo, na África e Oceânia, bem como na América o
interna de um sistema social, e sugeríamos que, quanto surgimento de novas religiões que podem ser interpre-
ao grau de unidade funcional de determinada sociedade, tadas mediante hipótese funcional como tentativas de
talvez seja passivei estabelecer um critério puramente aliviar certa co-ndição de disnomia social ocasionada pe-
objetivo. Sem dúvida, isto não pode ser feito no mo- la rápida modificação da vida social através do con-
mento; mas a ciência da sociedade humana mal saiu do tacto com a civilização branca.
berço. De modo que talvez possamos dizer que, enquan-
~
O conceito de função tal como o definimos há pouco
to ttm organ[smo atacado por doença virulenta reagi- onsfüui uma «h.ipótese de. trabalho» pela qual certos
rá, e se a reação falhar, morrerá, uma sociedade que problemas são formulados para estudo. Nenhum traba-
seja arrastada à condição de desunídade ou inconsis'- lho científico é f)Ossível sem a formulação de hipóteses
tência funcionais (o que chamamos provisoriamente de de trabalho. Duas observações se impõem aqui. Uma
disnomia) não morrerá, exceto em casos relativamente é .-que a hipótese não precisa ser assertiva dogmátiê'ã
raros ( como uma tribo australiana subjugada pela força de que tudo na vida de toda comunidade tenha função.
destrutiva do homem branco), mas continuará a lutar Exige apenas a pressuposição de que pode ter uma, · e
no sentido de uma espécie de eunomía, algo como a que vale a pena investigá-la. A segunda é que o que
saúde social, e poderá, enquanto isto, alterar seu tipo parece ser o mesmo costume social em duas sociedades
estrutural. Ao que parece, o «funcionalista» tem amplas pode ter funções diferentes nas duas. Assim, a prática
oportunidades de observar este fato atualmente, nos do celibato na Igreja Católica Romana de hoje tem fun-
povos nativos sujeitos à dominação das nações civili- ções muito diferentes em relação ao celibato na primi-
zadas, e nestas nações mesmas. ' tiva [greja Cristã. Em outras palavras, a fim de defi-
O espaço não nos permitirá discutir aqui outro as- nir determinado costume social, e, portanto, a fim de
pecto da teoria funcional, a saber, a questão sobre se tornar válidas as comparações entre os costumes de di-
a mudança de tipo social é dependente ou não da fun- ferentes povos ou épocas, é necessário considerar não
ção, isto é, das leis da fisiologia social. A meu ver, esta apenas a forma de costume, mas também sua função.
dependência existe e sua natureza poderia ser estudada Nesta base, por exemplo, a crença num Ser Supremo
na evolução das instituições legais e políticas, dos sis- na sociedade simples é algo diferente de crença seme-
temas econômicos e religiões da Europa nos últimos vin- lhante na comunidade civilizada moderna.
te e cinco séculos. Quanto às sociedades incultas de A aceitação da hipótese ou ponto de vista funcional
que se ocupa a antropologia, não é possível estudar as acima esboçados resulta no reconhecimento de grande
minúcias do longo processo de mudança do tipo. A única número de problemas para cuja solução se impõem am-
espécie de mudança qúe o antropólogo pode observar plos estudos comparados das sociedades dos tipos mais
é a desintegração das estruturas sociais. Mesmo neste diversos bem como estudos de tantas sociedades em par-
ticular quanto possível. Nos estudos de campo dos povos
• Veja-se, por exemplo, o Livro IV da Repú//1/ca de Platão.
' Para evitar mal-entendido deve-se talvez observar que esta distinção mais simples a hipótese leva, antes de tudo, a um exame
de condições sociais eunômlcas e dlsnõmlcas não nos dá uma avaliação
dessas sociedades como "boas" ou "más". Uma tribo selvagem que pra- direto da vida social da comunidade como ao funciona-
tique poligamia, canibalismo e bruxaria pode, quiçá, mostrar mais elevado mento da estrutura, e disto temos vários exemplos na bi-
grau de unidade ou consistência funcionais que os Estaúos Unidos de
1935. Este julfamento objetivo, porque assim tem de ser se quiser in-
titular-se clent fico, é algo multo diferente de qualquer julgamento so-
bliografia recente. Considerando que a função de uma ati-
bre quais sistemas sociais são melhores, mais desejáveis ou aprováveis. vidade social deve ser achada pelo exame de seus efeitos

226 227
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1
sobre os indivíduos, -estes são estudados, no individuo Indo do conteúdo ao método o Dr. Lesser parece des-
ou indivíduos médios e excepcionais. Ademais, a hipó- cobrir algum conflito entre 0 ponto de vist::i fun,cional e
tese leva a -tentativas no sentido de investigar direta- o histórico. Isto é reminiscência das tentativas feitas an- · 7
mente a consistência funcional ou unidade de um sistema tigamente no sentido de perceber um conflito. entre so-
social bem como a determinar, tanto quanto poss[veI ciologia e história. Não há conflito algum, mas, diferença.
em cada caso, a natureza dessa unidade. Tal estudo de ,--; Não há, nein pode haver conflito algum. entre a hi-
campo será obviamente diferente sob muitos aspectos pótese funcional e o parecer de que qualquer cultura,
dos estudos efetuados a partir de outros pontos de vis~ l qualquer sistema social,. sejam o resultado final de uma
ta, por exemplo, da perspectiva etnológica que dá ênfase
à difusão. Não nos cabe dizer se esse ponto de vista
\

\ série peculiar de acidentes históricos. O processo.. da evo-


lução da raça cavalar a partir de seu antepassado .de
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é melhor que o outro, mas apenas que são diferentes,
e que qualquer trabalho deve ser julgado com referência
e.inca artelhos foi uma série peculiar de acidên~es histó- ·/tJ;~
~s. Isto não conflita com a opinião "'ão f1slotog1sfa -ó
aos fins a que se propõe. de que o cavalo de hoje e todas as formas anteceden-
Se o ponto de vista aqui esboçado for tomade> como tes se conformem ou se se tenham conformado às leis
certa forma de «funcionalismo», será licito fazer algumas fisiológicas, isto é, às condições necessárias de existên-
considerações sobre o ensaio do Dr. Lesser. Menciona cia orgânica. A paleontologia e a fisiologia não estão
ele a diferença de «conteúdo» em antropologia funci~ em conflito. A «explicação» para o cavalo puro-sangue
nal e não-funcional. Do ponto de vista aqui apresen- deve ser procurada na história - como e onde. ele veio
tado, o «conteúdo» ouoojeto da antropolog1a · socTál é ''i a ser o que é. Outra «explicação» totalmente indepen-
toda a vida social de um . povo, cons1âerãâ~-s·olJ·"tõclos· 1 dente é mostrar como o cavalo vem a ser exemplificação
os seus aspec~. Por questão de conveniência é sempre especial de leis fisiológicas. Analogamente, uma «expli-
necessário ded. icar especial atenção a determinada partef cação» de determinado sistema social será súa história,
ou aspecto da vida social, mas se o funcionalismo de se soubermos o relato minucioso de como· e onde ele
fato significa alguma coisa, deveria ser um empenho veio a ser o que é. Outra «explicação» do mesmo sis-
em perceber a vida social de um povo como um todo, tema obtém-se mostrando ( como os funcionalistas ten-
como unidade funcional. tam fazer) que ele é uma ilustração especial das leis
O Dr. Lesser fala do funcionalista como aquele que da fisiologia social ou do funcionamento social. Os dois
ressalta «os aspectos psicológicos da cultura», e pre- tipos de explanação não conflitam, mas suplementam-s
sumo que ele se refere, no caso, ao reconhecimento do reciprocamente. •
> ' funcionalista de que os costumes de uma sociedade
atuam ou «funcionam» apenas através de seus efeitos A hipótese funcional está em conflito com duas posi-
na vida, isto é, nos pensamentos, sentimentos e atos dos ções sustentadas por alguns etnólogos, e .provavelmente
indivíduos. estas, sustentadas quase sempre sem formulação rigo-
O ponto de vista «funcionalista» aqui apresentado im- rosa, são a causa do antagonismo em relação. àquele
plica, portanto, que tenhamos de investigar o mais com-
• Não vejo razão alguma por que os dois tipos de estudo. - o his•
pletamente possível todos os aspectos da vida social, tór!co e o funcional - não possam ser efetuados paralelamente em
considerando-os uns em relação com os outros, e que perfeita harmonla. De fato, por catorze anos tenho ensinado tanto o
estudo histórico como geográfico de povos sob o titulo de etnologia, em
parte fundamental da tarefa é a investigação do indiví- intima associação com arqueologia, e o estudo funcional dos sistemas
sociais sob o mesmo titulo de antropologia social. Não acho que haja
duo e do modo pelo qual ele é modelado pela vida so- multas desvantagens em misturar os dois assuntos e confundi-los. Veja-
se "The Methods oi Uthuology and Social Anthropology", (Sou/11 Afrlcan
cial ou ajustado •ª ela. /ournat of Sclence, 1923, pp, 124-47).

228 229
enfoque, Uma é a. teoria «retalhos e remendosJ. da cul- tam tais generalizações e até formulam as suas próprias.
ttua, nome tomado de uma frase do Prof. Lowie ' quan- Devem, portanto, sustentar que no campo dos fenôme-
do fala daquela «caótica mistura exótica, aquela coisa nos sociais, distintamente dos fenômenos físicos e bio-
mais parecida com retalhos e remendos chamada civi- lógicos, qualquer empenho em verificar sistematicamente
lização»;' A -eoncentração da atenção naquilo que é cha- as generalizações existentes ou no sentido de descobrir
mado ~\iifusão dos traços culturais» tende a ensejar uma e verificar novas será, por algum motivo inexplicado,
concepção de cultura como uma coletânea de entidades fútil, ou, como diz o Dr. Radin, «pregar no deserto».
díspares (os chamados traços) reunidos por puro aci- Argumentar contra tal pretensão não traz proveito al-
dente· histórico e mantendo apenas relações acidentais gum, ou é mesmo impossível.
uns para com os outros. A concepção raramente é for-
mulada e mantida com rigor, mas como ponto de vista
meio inconsciente parece, de fatoi dirigir o pensamento
de muitos etnólogos. Está, evidentemente, em conflito
aberto cop a hipótese da unidade funcional dos siste-
mas sociais.
A segunda op1mao que está em conflito aberto com
a hipótese funcional é a de que não há leis sociológi-
cas importantes a descobrir, tais como os funcionalistas
estão procurando. Sei que dois ou três etnólogos de-
l
claram . sustentar esta opinião, mas achei impossível sa-
ber o que querem dizer, ou que tipo de prova (racional
ou empírica) serviria de base ao que pretendem. As
generaJizações sobre qualquer espécie de assunto são de
dois tipos: generalizações da opinião comum, e gene-
rJ!lizações. gue foram verificadas ou demonstradas por
rigo,rosa§. observações efetuadas sistematicamen,1s. Gene-
ralizações ®§te último tipo são chamadas leis cientí-
- · " ' - ~ 1 Os .que afirmam não haver leis da sociedade hu-

mana não podem sustentar que não há generalizações


sobre a sociedade humana, porque eles mesmos susten-
• Primltlvr: Society, p. 441. Um enunciado conciso deste ponto de
vista acha-se na seguinte passagem da Dra. Ruth Benedlct em "Tbe
Concept of lhe Ouardlan Splrlt ln North Amerlea" (Memotrs, Amerlcan
Anthropologlcal Assoclatlon, 29, 1923), p, 84: "Tanto quanto sabemos, ., ,!
é fato decisivo da natureza humana que o homem elabora sua cultura
a partir de elementos esparsos, combinando-os e recombinando-os; e até
que abandonemos a superstição de que o resultado é um organismo fun-
cionalmente Inter-relacionado seremos lncapa2es de perceber nossa vida
cultural obletlvamente, ou de controlar suas manifestações". Penso que
provavelmente• nem o Prof. Lowie nem a Dra. Benedlct manteriam,
atualmente, esta opinião quanto à cultura humana. ..., .. :·•

230 231
ramente cronológico, em dizer-se que sou. ou ~~guidor
do Prof. Boas ou predecessor do Prof. Malin'owski. Di-
zer que eu sou «funcionalista» parece-me qada signifi-
car claramente.
í:
j, Não há lugar para «escolas», neste sentido, nas ci-
'y)_:i,.JO .ências naturais, e considero a antropologia social como
Capítulo X v,;,· um ramo dessas ciências. Cada cientista começa a par-
tir do trabalho de seus predecessores, encontra proble-
mas que acredita significativos, e pela observação e ra--
Sobre a Estrutura Social ' ciocinio esforça-se em dar alguma contribuição para o
crescimento da teoria. A cooperação entre os cientistas
resulta do fato de que trabalham nos mesmos problemas
ou problemas aparentados. Tal cooperação não resulta
ALGUNS AMIGOS SUGERIRAM-ME QUE APROVEITASSE ESTA na formação de escolas, no sentido em que há escolas
ocasião para fazer observações sobre minha própria po- de filosofia ou de pintura. Não há lugar para ortodo-
sição em antropologia s-ocial; e visto que desde que co- xias e heterodoxias na ciência. Nada é mais pernicioso
mecei a ensinar, primeiro em Cambridge e na London na ciência do que tentativas de estabelecer adesões a
School of Economics há trinta anos, tenho sempre res- doutrinas. Tudo o que um professor pode . fazer é aju-
saltado a importância do estt1do da estrutura social, a dar o estudante a compreender e utilizar o . método ci-
sugestão feita a mim foi de que eu dissesse alguma entífico, Não cabe a ele fazer discípulos.
coisa sobre este assunto: ÇQnce11_o a antropologia soei~!- como a ci'"ci• teórico-} ê. \l .
Espero ser perdoado se começo com uma nota de natural da sociedade humana, isto é, a mvesh a ao êlos Pi
explicação pessoal. Mais de uma vez tenho sido consi- f.enômenos sociais por~~l~dos essencialmente seme han-
derado como pertencente a algo chamado Escola Fun- j.es aos empregados nas ciências físicas ·e biológicas.
cional de Antropologia Social, e atê mesmo como sendo De bom grado chamaria ao assunto de «sociologia com-
seu chefe, ,ou um de seus chefes. Esta Escola Funcional parada» se alguém quisesse. E' o assunto ·em si, e não
na realidade não existe; é um mito inventado pelo Prof. o nome, que é importante. Como os senhores sabem,
Malinowski. Ele explicou como, para citar suas pró- há etnólogos ou antropólogos que afirmam não ser pos-
prias palavras, «o magnífico titulo da Escola Funcional sível, ou pelo menos proveitoso, aplicar aos fenômenos
de Antropologia foi atribuído por mim mesmo, de certo sociais os métodos teóricos das ciências naturais. Para
modo a mim mesmo, e em grande grau fora de meu essas pessoas a antropologia social, tal como a defini,
próprio senso de irresponsabilidade». A Irresponsabili- é algo que não existe e nunca existirá. Para ~les, evi-
dade do Prof. Malinowski tem tido desastrosos resul- dentemente, minhas •observações não terão valor algum,
tados, visto que ,espalhou pela antropologia uma densa ou pelo menos o significado que pretendo.
neblina de discussão sobre «funcionalismo:.. O Prof..

~
Embora tenha eu definido antropologia sociài como o
Lowie anunciou que o principal, não o único, expoen- estudo da sociedade humana, alguns há que .a definem
te do funcionalismo no século XIX foi o Prof. Franz como o estudo da cultura. Poder-se-ia pensar que esta
Boas. Não acho que haja qualquer sentido, além do pu- diferença de definição é de mínima importância. Na
• Discurso como presidente do Royal Antbropologlcal lnstltute. Ex- realidade ela leva a duas espécies diferent~s . de, estudo,
traido do 101,rnal of the Royal Anthropo/og/cal lnslilute, Vol. LXX, 1940.

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entre às quals é dificilmente possível obter acordo na li truturas daquela espécie. Assim é que a fí$ica, 'nuclear
trata da estrutura dos átomos; a química· da. estrutura
formulação <le problemas.
Para uma definição preliminar de fenômenos sociais das moléculas; a cristalografia e a química coloidal tra-
pareçe...me sufic~ntemente claro que temos de lidar com tam dos cristais e colóides, e a anatomia e . fisiologia,
relações de associação entre organismos individuais. das estruturas do organismo. Existe, portanto, segundo
Numa colônia de abelhas existem as relações de asso- penso, lugar para um ramo da ciência natural que tenha
ciação. da rainha, as operárias e os zangões. Há asso- por primeira tarefa o descobrimento das características
c.iação de animais num rebanho, de uma gata e seus gerais dessas estruturas sociais cujas unidades consti-
f1lholes, Trata-se de fenômenos sociais; acho que nin- 1 , tuintes são seres humanos.

~
guém os chamará de fenômenos culturais. Em antropo- ~ Os fenômenos sociais constituem uma classe distinta
fogía, evidentemente interessamo-nos apenas por seres de fenômenos naturais. São todos, de um modo ou ou-
humanos, e na antropologia social, conforme a defini o ro, relacionados c-0m a existência de estruturas sociais,
que temos de investigar são as formas de associa~ãoJ eles implicados ou resultantes deles. As estruturas so-
que se ~ncontram entre os seres humanos. ciais são tão reais quanto os organismos individuais.

~
Consideremos o que são fatos observáveis e concretos organismo complexo é um conjunto de células vivas
de que se ocupa a antropologia social. Se decidimos fluidos intersticiais dispostos em certa estrutura; e a
estudar, por exemplo, os habitantes aborígines de uma ) élula viva é analogamente uma disposição estrutural de
parte da. Austrália, achamos certo número de indivíduos}; oléculas complexas. Os fenômenos fisiológicos e psi-
humanos em determinado meio natural. Podemos obser- cológicos que observamos nas vidas dos organismos não
var a conduta desses indivíduos, inclusive, evidentemente, são apenas resultado da natureza das moléculas cons-
seu modo de falar e os produtos materiais de suas ati- tituintes -ou átomos de que o organismo é feito, mas re-
vidades passadas. Não observamos uma «cultura», vis- sultado da estrutura na qual estão unidos. Também os
to que essa palavra denota nã·o uma realidade concreta, ,, !enômenos sociais que observamos em qualquer socie-
mas uma abstração, e é, em geral, empregada como dade humana não sao resultado imediato da natureza
vaga abstração. Mas a observação direta não nos re;_ dosseres humanos tomados individualmente, mas con-
vela que esses seres humanos estão relacionados por ~egüêndã"''da estrutura social pela qual est!o tinidos.
uma complexa rede de relações sociais. Emprego o ter- Observe-se que dizer que estamos estudando estru-
mo «estrutura social» para designar esta rede de rela- turas sociais não significa a mesma coisa que dizer que
ções realmente existente. Isto é o que considero meu estudamos relações sociais, tal como alguns sociólogos
dever _estudar se estiver trabalhando, não como etnólogo definem sua matéria. Determinada relação so~ial entre
o~ pstcólogo, mas como antropólogo social. Não quero duas pessoas (a menos que sejam Adão e Eva no Jar-
dizer que o estudo da estrutura social seja tudo na dim do ~den) só existe como parte de ampla rede de
antropologia social, mas considero, em sentido muito relações sociais, implicando muitas outras pessoas, e é
importante, a parte fundamental dessa ciência. esta rede que considero objeto de investigações.
Estou ciente, com efeito, de que o termo «estrutura •
f Meu parecer sobre ciência natural é que ela é a in-
vestigação sistemática da estrutura do universo tal qual
nos é revelado através dos sentidos. Há certos ramos
social» é empregado em muitos sentidos difei:entes, al-
guns deles muito vagos. Isto é infelizmente verdade
distintos e importantes da ciência, cada um dos quais quanto a muitos outros termos em geral usados pelos
trata de certa classe ou espécie de estruturas com o antropólogos. A escolha dos termos e suaSL•definições
objetivo de descobrir as características de toda~ as es- é questão de conveniência científica, mas uma. ,pas ca-

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1 5.2-22: . • :lf!'t,I J! ~

mas apenas pelo geral, pelas espécies, pelqs fatos que


racterísticâ( de certa ciência, tão logo ultrapasse o pe- se repetem. As relações concretas de Antônio, João e
riodo de formação, é a existência de termos técnicos Pedro, ou a conduta de Manuel e José podem ser lan-
que são empregados no mesmo sentido rigoroso por to- çadas em nossos apontamentos e servir de exemplifica-
dos os estudiosos dessa ciência. Segundo este critério, ção para uma descrição geral. Mas o que precisamos
lamento dizer, a antropologia social revela-se ainda ima- para fins científicos é um balanço da forma da estru-
tura..T~m-se; port~n!o, que escolher para si mesmo, para tura. Por exemplo, se numa tribo australiana observo
c~rtos te~mos, definições que pareçam as mais conve- muitos casos de procedimento das pessoas entre si que
nientes para fins de análise científica. estejam em posição de irmão da mãe e filho da irmã, é
Alguns antropólogos empregam o termo «estrutura so- a fim de que possa registrar o mais rigorosamente pos-
ciab- ~ara: designar apenas grupos sociais duráveis co- sível a forma gerar ou normal deste relacionamento,
mo nações; tribos e clãs, que mantenham continuidade abstraí da das variações de casos particulares, embora
e identidade! como grupos individuais, a despeito de levando em consideração aquelas variantes.
transformações no seu seio. O Dr. Evans-Pritchard em Esta importante distinção entre estrutura e realidade
recente e admirável livr.o sobre os nueres, prefere t~mar concreta existente, a ser observada diretamente, e forma
o termo «estrutura social> neste sentido. De fato a estrutural, como o que o pesquisador de campo descreve,
~xistência d~sses grupos sociais duráveis é aspecto 'im-
r
pode ser esclarecida talvez pela consideração da conti-
port~ntlss1mo da estrutura. Mas acho mais proveitoso nuidade da estrutura através do tempo, continuidade
mclmr. s~b ~se termo bem mais do que isto. esta que não é estática como a de um edifício, mas di-
· m r1me1ro lu ar considero como arte da estrutura nâmica, como a estrutura orgânica do corpo. vivo: ~Por
social todas às relações de pessoa a pessoa. or exem- toda a vida de um organismo sua estrutura está sendo
plo, . a.· estnttura do parentesco de qualquer sociedade sempre renovada; e de modo idêntico a vida social cons-
consiste de uma quantidade dessas relações diádicas tantemente renova sua estrutura. Assim, as relações con-
como entre pai e filho, ou irmão da mãe e filho da irml cretas de pessoas e grupos de pessoas mudam de ano
Numa tribo australiana toda a estrutura social baseia- a ano, ,ou mesmo de dia a dia. Novos membros inte-
se nu~a rede de tais relações de pessoa a pessoa, es- _gram a comunidade pelo nascimento ou imigração; ou-
tabelecida através de conexões genealógicas. tros saem por morte ou emigração. Há casamentos e
Em segundo lugar, incluo sob estrutura social a di- divórcios. Amigos podem tornar-se inimigos, ◊U inimi-
ferenciá o de indivíduos e classes or seu desem enho gos podem fazer a paz e converter-se em amigos. Mas
s9cl4.k As . posições sociais diferenciadoras e homens e enquanto a estrutura social muda deste modo, a for-
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mulheres, .chefes e comunitários, empregadores e empre- ma estrutural geral pode permanecer relativamente cons-
g~~os, são o~tros tantos determinantes das relações so- tante por período de tempo maior ou menor. Assim,
c1a1s na medida em que pertencendo a diferentes clãs se visito uma comunidade relativamente estável e a re-
ou nações. visito após dez anos, verlficarei que muitos de seus
No estudo da estrutura social a realidade concreta de membros morreram e que outros nasceram; os membros
que estamos tratando é uma série de relações realmente ainda vivos ficaram dez anos mais velhos e suas rela-
existentes, em dado lapso de tempo, que agrupa certos ções para com os outros mudaram de muitos modos.
s~res humanos. E' n!sto que podemos fazer observações Contudo, observo que as espécies de relações que posso
dtretas. Mas não é isto que pretendo descrever em sua constatar são pouquíssimo diferentes das vistas dez anos
particularidade. A ciência ( diferentemente da história ou
antes. A forma estrutural mudou pouco.
da biografia) não se interessa pelo particular, peculiar,
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236
k ,1
. Mas, por outro lado, a forma estrutural pode mudar, mo indivíduo, é um organismo biológico, aglomerado de
as vezes gradualmente, e outras vezes com relativa ra- imenso número de moléculas organizadas numa estru-
pidez, como no caso das revoluções e conquistas mili- tura complexa, dentro da qual, durante o tempo que
tares. Mas mesmo nas transformações mais revolucioná- persista, ocorrem ações e reações fisiológicas e psicoló-
rias mantém-se alguma continuidade estrutural. gicas, processos e transformações. Os sere~ . humanos
D-evo dizer algumas palavras sobre o aspecto espacial como indivíduos são objeto de ,estudo dos f1s1ólogos e
da estrutura social. E' raro que encontremos uma co- psicólogos. O ser humano co ô pessoa é um complexo
mup.idade absolutamente isolada, que não tenha contacto de relacionamentos sociais. ' cidadão da Inglaterra,
com o exterior. No presente momento da história, a marido e pai, pedreiro, ..· ibro de determinada congre-
rede de relações sociais espalha-se por todo o mundo, gação metodista, votante1êm determinado partido, mem-
sem absoluta solução de continuidade em parte alguma. bro de seu sindicato, adepto do Partido Trabalhista etc.
A~ho que isto suscita uma dificuldade que os sociólogos Note-se que cada uma dessas descrições refere-se a um
nao enfrentam: a difículdade de definir o que quer dizer relacionamento social, ou a certo lugar na estrutura so-
«sociedade», Eles em geral falam de sociedades como se cial. Note-se também que personalidade social é algo
fossem distinguíveis entídades discretas, quando, por que muda durante o curso da vida da pessoa. Como
exemplo, nos falam que a sociedade é um organismo. pessoa, o ser humano é objeto de estudo do antropó-
Será o Império Britânico urna sociedade ou um conjunto logo social. Não podemos estudar pessoas a não ser nas
de sociedades? Será sociedade uma aldeia chinesa ou condições de estrutura social, nem podemos estudar a
meramente fragmento da República da China? -estrutura social exceto em termos de pessoas que são
Se declaramos que nosso assunto é o estudo e compa- as unidades de que ela se compõe.
ração das sociedades humanas, devemos ser capazes de Se me redarguirem que indivíduo e pessoa são, afi-
dizer quais são as entidades unitárias de que tratamos. nal de contas, a mesma coisa, lembrarei que o credo
Se tomamos determinada localidade conveniente e de cristão faz a distinção: Deus são três pessoas, mas di-
tamanho apropriado, podemos -estudar o sistema estru- zer que Ele são três indivíduos é ser réu de heresia
tural tal como aparece na região, isto é, a rede de re- pela qual muitos homens foram condenados à morte.
lações que liga os habitantes entre si e com o povo de Contudo, errar na diferenciação de indivíduo e pessoa
outras regiões. Podemos assim observar, descrever e não é apenas heresia em religião; pior que isto: fonte
comparar os sistemas de estrutura social de tantas lo- de confusão na ciência.
calidades quantas desejarmos. Para ilustrar o que estou
afirmando, posso mencionar dois estudos recentes da Espero termos já definido suficientemente a matéria
Universidade de Chicago, um de uma aldeia japonesa, que considero ramo sumamente importante da ª?tro~o-
Suye Mura, pelo Dr. John Embree, e o outro de uma logia social. O método a ser adotado segue-se 1med1a-
comunidade franco-canadense, St. Denis, pelo Dr. Ho- tamente desta definição. Deve combinar um profundo
race Miner. estudo das sociedades simples (isto é, os sistemas es-
Intimamente relacionada com esta concepção de es- truturais observáveis em determinadas comunidades) com
trutura social está a concepção de «personalidade so- a comparação sistemática de muitas sociedades ( ou sis-
cial» como posição ocupada por um ser humano numa temas estruturais de tipos diferentes). A comparação é
estrutura social, o complexo formado por todas as suas indispensável. O estudo de uma sociedade única p~de
relações sociais com outros. Todo ser humano que viva fornecer materiais para estudo comparado, ou ensepr
numa sociedade é duas coisas: indivíduo e pessoa. Co- hipóteses que então precisam ser verificadas por refe-

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r~ncia a outras sociedades; não pode dar resultados de- passado e completamente rejeitada por muitos autores
monstráveis. modernos. Mas as analogias, adequadamente feitas, são
Nossa primeira tarefai evidentemente, é saber o má- ajuda importante ao pensamento cientifico e e:xiste real
ximo passivei sobre as variedades, ou diversidades de e significativa analogia entre a estrutura orgânica e
sistemas estruturais. Isto exige pesquisa de campo. Mui- a social.
tos autores de descrições etnográficas não tentam dar- Portanto, o que aqui chamo de fisiologia social trata
nos qualquer balanço sistemático da estrutura social. não apenas da estrutura social, mas de toda espécie de
Mas uns poucos antropólogos sociais, aqui e na Amé- fenômeno social. Moral, direito, boas maneiras, religião,
rica, reconhecem a importância de tais dados e seu governo e educação, tudo isto são partes do complexo
trabalho é dar-nos um acervo crescente de material para mecanismo pelo qual uma estrutura social existe e per-
nosso estudo. Ademais, suas pesquisas já não mais se dura. Se assumimos o ponto de vista estruturalista, es-
confinam ao que são chamadas «sociedades primitivas», tudamos essas coisas não abstrata ou isoladamente, mas
mas estendem-se a comunidades em regiões como a em relações diretas e indiretas com a estrutura social,
Sicília, Irlanda, Japão, Canadá e Estados Unidos. isto é, com referência ao modo pelo qual dependem das
Se porém precisarmos de uma concreta morfologia relações sociais entre pessoas e grupos de pessoas ou
comparativa das sociedades, devemos ter em mente al- as afetem.
guma espécie de classificação dos tipos de sistemas es- Aqui nada mais posso fazer senão dar ligeira ilustra-
truturais. Isto é tarefa complexa e difícil, à qual eu mes- ção do que isto significa.
mo dei atenção por trinta anos, E' o tipo de tarefa que Consideremos em primeiro lugar o estudo da lingua-
exige coopéração de muitos estudiosos e acho que posso gem. Linguagem é uma série conexa de modos de falar
contar nos dedos os que no momento se interessam pelo observados no seio de determinada comunidade. A exis-
asstmto. Todavia, creio que se faz aJgum progresso. tência de comunidades de fala bem como suas dimensões
Este trabalho, no entanto, não produz resultados espe- são aspectos da estrutura social. Há, portanto, certa re-
taculares e um livro sobre o assunto certamente não lação muito geral entre estrutura social e linguagem.
seria êxito de livraria. Mas se considerarmos as características especiais de de-
Devo lembrar que a química e a biologia não se tor- terminada linguagem - sua fonologia, morfologia e
naram ciências plenamente constituídas até que conside- mesmo, em grande grau, seu vocabulário - não ha-
rável progresso ocorresse na classificação sistemática verá conexão direta de determinação unilateral ou mú-
das coisas de que tratavam, substâncias num caso e tua entre essas e as características especiais da estrutura
plantas e animais no outro. social da comunidade no seio da qual a língua é falada.
Além deste estudo morfológico, que consiste na de- Podemos facilmente conceber que duas sociedades pos-
finição, comparação e classificação dos diversos siste- sam ter formas muito semelhantes de estrutura social e
mas estruturais, há um estudo fisiológico. O problema tipos de língua muito diferentes, ou vice-versa. A coin-
no caso é: como persistem os sistemas estruturais? cidência de determinada forma de estrutura social e cer-
1 Quais os mecanismos que mantêm viva uma rede de ta linguagem em dada comunidade é sempre resultado
!
relações sociais, e como atuam? Ao empregar os ter- de acaso histórico. Pode haver, evidentemente, intera-
mos morfologia e fisiologia, posso dar a impressão de ções indiretas e remotas entre a estrutura social e a
estar voltando à analogia entre sociedade e organismo, linguagem, mas isto seria de menor importância. Assim,
que era tão comm;n aos filósofos medievais, retomada o estudo comparado geral das linguagens pode ser
e tantas vezes mal utilizada pelos sociólogos do século proveitosamente empreendido como ramo relativamente
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independente da ciência, na qual a linguagem é consi- balho, é aspecto importante da estrutura sociàl. Ora, as
derada abstratamente a partir da estrutura social da atividades são efetuadas porque proporcionam certa es-
comuni-dade na qual é falada. pécie de «prazer», conforme sugiro que se chame, e o
Por outro fado, hã aspectos da história lingüística aspecto característico da vida social é que as atividades
especificamente relacionados com a estrutura social. Co- das pessoas proporcionem prazer a outras pessoas.
mo fenômeno estrutural pode-se tomar como exemplo o Vejamos um caso simples: quando o nativo australiano
processo pelo qual o latim. que era a lingua da pequena vai à caça, busca a carne não apenas para si mesmo,
região do Lácio, veio a ser a língua de imensa parte mas também para a esposa, os filhos, os parentes, aos
da Europa, deslocando as demais linguas itálicas, quais é de seu dever dar carne quando a tem. Assim,
etruscas e muitas línguas célticas; e o subseqüenie pro- em toda sociedade há não apenas atribuição de ativi-
cesso inverso pelo qual o latim se fragmentou em nu- dades, mas também de prazer delas resultante, e uma
merosas formas locais de fala, que em última instância espécie de maquinaria social, relativamente simples ou,
converteram-se nas diversas línguas românticas de hoje. às vezes, altamente complexa, pela qual o sistema atua.
Desse modo pois a difusã-0 da linguagem, a unifica- E' esta maquinaria, ou certos aspectos dela, que cons-
ção de comunidades separadas em comunidades de lín- titui o tema especial estudado peios economistas. In-
gua única e o processo inverso de subdivisão em comu- teressam-se eles pelos tipos e quantidades de bens
nidades de linguas diferentes, são fenômenos de estrutura produzidos, como são distribuídos (isto é, o fluxo de
social. No mesmo caso estão as sociedades que possuem pessoa a pessoa, ou de região a região), e o modo pelo
estrutura de classe e modos de falar diferentes confor- qual dispõem deles. Desse modo, as chamadas institui-
me as classes. ções econômicas são estudadas mais ou menos em com-
Consideramos em primeiro lugar a llngua, porque a pleta abstração do restante do sistema social. Este mé-
lingüística é, segundo penso, o ramo da antropologia todo proporciona, sem dúvida, proveitosos resultados,
social que mais proveitosamente pode ser estudado sem sobretudo no estudo das sociedades complexas moder-
referência à estrutura social. Há uma razão para isto. nas. A fragilidade do método aparece quando tentamos
A série de modos de falar que constituem uma lingua- aplicá-lo ao intercâmbio de bens nas chamadas socie-
gem forma de fato um sistema, e os sistemas deste dades primitivas.
tipo podem ser comparados a fim de descobrir-se seus O mecanismo de determinada sociedade aparece sob
caracteres comuns gerais ou abstratos, cuja determina- luz inteiramente nova se estudado em relação com a es ..
ção pode proporcionar-nos leis, as quais serão especi- trutura social. O intercâmbio de bens e serviços depen-
ficamente leis da lingUistica. de - é resultado e ao mesmo tempo meio de manter
Consideremos muito brevemente outros ramos da an- certa estrutura - de uma rede de relações entre pes-
tropologia social e sua relação com o estudo da estru- soas e grupos de pessoas. Para os economistas e polí-
tura social. Se tomamos a vida social de certa comuni- ticos do Canadá o pot/atch dos índios do noroeste da
dade local por deierminado período, digamos, um ano, América era simplesmente desperdício tolo e foi por isso
podemos observar uma soma total de atividades efetua- proibido. Para o antropólogo era o mecanismo para ma-
das por pessoas que a compõem. Podemos também nutenção da estrutura social de linhagens, clãs e meta-
verificar certa atribuição dessas atividades a determi- des, com o qual se combinava uma ordem hierárquica
nadas pessoas que fazem umas coisas enquanto outras definida por privilégios.
pessoas fazem outras. Esta repartição de atividades, A plena compreensão das instituições econômicas das
equivalente ao que às vezes se chama divisão do tra- sociedades humanas exige seu estudo sob dois ângulos.
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De um deles o sish!ma econômico é encarado como o estudos profissíonais. Mas para a pesquisa científica da
mecanismo pelo qual os bens de várias espécies e natureza do direito é insuficiente. Os dados com que
em diversas quantidades são produzidos, transportados, deve lidar o cientista são eventos que ocorrem e podem
transferidos e utilizados. Do outro ângulo o sistema eco- ser observados. No campo do direito, os fatos que o
nômico é uma série de relações entre pessoas e grupos cientista social pode observar e admitir como dados são
que mantém, e é mantido, pelo, i~tercâmbio ou ci_rcula- os efeitos que tramitam nas cortes de justiça. São eles
ção de bens e serviços. Deste ultimo ponto de vista o a realidade, e para o antropólogo social são o mecanis-
estudo da vida econômica das sociedades assume o lu- mo ou processo pelo qual se restauram, se mantêm ou
gar como parte do -estudo geral da estrutura social. se modificam certas relações sociais definíveis entre pes-
As relações sociais só são •observadas, e só podem ser soas e grupos. A lei é a parte da maquinaria pela qual
descritas em relação à conduta recíproca das pessoas se mantém certa estrutura social. O sistema de leis de
em jogo. A forma de uma estrutura social tem de ser determinada sociedade só pode ser plenamente compre-
descrita, portanto, pelos padrões de conduta segui~os endido se estudado em relação com a estrutura social,
pelos indivíduos e grupos 110 trato mútuo. Estes padroes e reciprocamente a compreensão da estrutura social exi-
são parcialmente formulados em normas que em nossa ge, entre outras coisas, um estudo sistemático das ins-
própria sociedade distinguimos das regr~s de boas ma- tituições legais. .
neiras moral e direito. As normas, evidentemente, só Venho falando de relações sociais, porém até agora
existe:n no reconhecimento que delas têm os membros não dei uma definição rigorosa. Existe relação social
da sociedade; seja no reconhecimento escrito, _quando entre dois ou mais organismos individualmente quando
se estabelecem como normas, ou quando cumpridas na há certo ajuste de seus respectivos interesses, pela con-
prática. Esses dois modos de reconhecimento, como todo vergência de interesse, ou pela limitação de conflitos
pesquisador de campo sabe, não sã~ a m,:sma coisa e que possam surgir da divergência de interesses. Em-
ambos têm de ser tomados em constderaçao. prego o termo «interesse» aqui no sentido mais amplo
Se declaro que em toda sociedade as normas de boas possível, para designar toda conduta que consideremos
maneiras, moral e direito são parle do mecanismo pelo proposital. Falar de um interesse implica um sujeito
qual certas relações sociais são mantidas vivas, tal de- e um objeto, bem como certa relação entre eles. Sempre
claração, suponho, será recebida como truísmo. Mas é que declaramos que um sujeito tem certo interesse em
um daqueles truísmos que muitos escritores sobre ~ so- determinado objeto podemos declarar a mesma coisa
ciedade humana aceitam verbalmente e contudo igno- afirmando que o objeto tem certo valor para o sujeito.
ram nas discussões teóricas, ou em suas análises des- Interesse e valor são termos correlatos, que se reforem
critivas. A questão não é a existência da norma em toda a dois aspectos de uma relação assimétrica. ·
sociedade, mas o que precisamos saber para uma c?m- Desta maneira, '◊ estudo da estrutura social leva ime-
preensão científica é precisamente como essas coisas diatamente ao estudo de interesses ou valores como de-
atuam em casos gerais e particulares. terminantes das relações sociais. A relação social não
Consideremos, por exemplo, ,o estudo do direito. Se resulta da semelhança de interesses, mas repousa ou
examinarmos a bibliografia sobre jurisprudência veremos no interesse mútuo de pessoas em outra, ou em um ou
que as instituições legais são estudadas quase sempre mais interesses comuns, ou ainda numa combinação de
mais ou menos abstratamente em relação ao restante ambos os modos. A mais elementar forma de solidarie-
do sistema social a que pertencem. Isto é sem dúvida dade social verifica-se quando duas pessoas estão in-
o método mais conveniente para os advogados em seus teressadas em produzir certo resultado e cooperam para
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~----------------- ,----··-~--------------.... .

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este fim. Quando duas ou mais pessoas têm um interesse de um machado ou escavadeira, do signifícâdo de certa
comt;m em certo objeto, pode-se dizer que esse objeto palavra ou símbolo do propósito de um decreto legis-
tem um valar social para as pessoas assim associadas. lativo, em vez de empregar a palavra função para tudo.
Se, então, praticamente todos os membros de dada so- «Função» tem sido termo técnico muito fecundo em fi-
ciedade têm interesse no cumprimento das leis, podemos siologia e por analogia com seu emprego naquela ciên-
dizer que a lei tem valor social. O -estudo dos valores cia seria meio muito conveniente de exprimir importante
sociais neste sentido éi pois, parte do estudo da estru- conceito nas ciências sociais. Como estou acostumado
tura social. a empregar a palavra, seguindo Durkheim e outros, de-
Foi deste ponto de vista que em estudo anterior enfo- finiria eu a função social de certo modo socialmen-
quei o que se pode chamar pertinentemente de valores te padronizado de agir ou pensar como relacionado
rituais, isto é, os valores expressos nos ritos. ~- mitos. com a estrutura social e para cuja existência e conti-
E' talvez, de novo, truismo aUrmar que a rehg1ao é o nuidade contribui. Analogamente, num organismo vivo, a
cimento que amalgama a sociedade. Mas para uma com- função fisiológica das batidas do coração, ou a secre-
preensão cientifica precisamos saber exatamente c~mo t~I ção de suco gástrico, está. relacionada com a estrutura
acontece, e isto constitui assunto para extensas mvest1- orgânica para cuja existência ou continuidade contribui.
gações em muitas formas diferentes de sociedade. E' neste sentido que estou interessado em coisas como
Como último exemplo, permitam-me mencionar o es- a função social do castigo do crime, ou a função social
tudo da magia e bruxaria, sobre o que existe extensa dos ritos totêmicos das tribos australianas, ou dos ritos
bibliografia antropológka. Indicaria a obra do Dr. fúnebres dos insulares de Andaman. Mas não é isto que
Evans-Pritchard sobre os Zande como exemplo esclare- tanto o Prof. Malinowski ou o Prof. Lowie entendem
cedor do que pode ser feito quando essas coisas são por antropologia funcional.
sistematicamente investigadas, quanto ao papel que de- Além dessas duas divisões do estudo da estrutura so-
sempenham nas relações sociais dos membros de dada cial a que chamei de morfologia e fisiologia social, há
comunidade. uma terceira, que é a investigação dos processos pelos
quais as estruturas sociais se transformam, de como no-
As instituições sociais, do ponto de vista que tentei
vas formas de estruturas surgem. Os estudos da trans-
resumidamente expor, no sentido de modos padroniza- formação social nas sociedades incultas têm quase que
dos de conduta, constituem o maquinismo pelo qual a exclusivamente se limitado a um processo especial de
estrutura social, que é uma rede de relações sociais, mudança, a modificação da vida social sob a influência
mantém a existência e continuidade próprias. Hesito em ou dominação de invasores ou conquistadores europeus.
empregar o termo «função», que nos últimos anos tem
sido usado e do qual se abusa, com inúmeros significa- Tornou-se moda recentemente entre alguns antropó-
dos, vagos muitos deles. Ao invés de ser empregado para logos tratar as transformações deste tipo sob o título
estabelecer diferenças, como devem ser os termos cien- de «contacto cultural». Pelo termo podemos entender os
tíficos, é empregado agora para confundir as coisas que efeitos unilaterais ou bilaterais de interação entre duas
devem ser esclarecidas. Porque é freqüentemente empre- sociedades, grupos, classes ou regiões com diferentes
gado em lugar de palavras mais comuns como «uso», formas de vida social, diferentes instituições, usos e
idéias. Assim é que no século XVIII houve importante
«propósito» e «significado». Parece-me mais apropriado intercâmbio de idéias entre a França e a Inglaterra, e
e prático, bem como mais erudito, falar do uso ou usos no século XIX assinalada influência do pensamento ale-
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mão tanto na França como na Inglaterra. Essas intera- mais -«culturas• estão em interação (método sugerido
ções são, evidentemente, aspecto constante da vida so- por Malinowski em sua Introdução ao Memorandum XV
cial, mas não implicam obrigatoriamente qualquer mu- do International Institute of African Language and Cul-
dança sensivel de estrutura social. ture sobre «Métodos de Estudo da Cultura de Contacto
As transformações que estão ocorrendo entre os povos na África> 1938), é simplesmente um meio de fugir à
incultos da Africa são de tipo muito diferente. Conside- realidade. Porque o que está acontecendo na África do
remos uma colônia ou possessão africana de uma nação Sul, por exemplo, não é a interaç~o da cultura inglesa,
européia. Há uma região que foi anteriormente habitada africana (ou boer), hotentote, vánas culturas bantos e
por .africanos com sua estrutura social própria. Os eu- indiana, mas a interação de indivíduos e grupos dentro
ropeus, por meios pacíficos ou violentos, estabeleceram de uma estrutura social que está em si mesma em pro-
controle sobre a região, sob o que chamamos de regime cesso de transformação. O que estã acontecendo numa
«colonial», Nova estrutura social surge e depois passa a tribo transkeiana, por exemplo, só pode ser descrito pelo
desenvolver-se. A população agora inclui certo número reconhecimento de que essa tribo foi incorporada num
de europeus - funcionários do governo, míssionários, amplo sistema estrutural político e econômico.
comerciantes e, em alguns casos, colonos. A vida social Faltam-nos quase completamente dados históricos au-
da região não é mais simplesmente um processo depen- tênticos para o estudo cientifico de sociedades primitivas
dente das relações e interações dos povos nativos. Er- em condições isentas do domínio por sociedades mais
gue-se ali nova estrutura politica e econômica na qual evoluídas que resultam nessas sociedades compósitas.
os europeus, embora poucos em número, exercem influ- Não podemos estudar, mas tão-somente especular sobre
ência dominadora. Europeus e africanos constituem clas- os processos de mudança que ocorreram no passado de
ses diferentes no seio da nova estrutura, com línguas que não temos registros. Os antropólogos especulam so-
diferentes, diferentes costumes e modos de vida, bem bre transformações antigas nas sociedades dos aborígi-
como padrões de idéias e valores diferentes. Termo con- nes australianos, ou dos habitantes da Melanésia, mas
veniente para sociedades deste tipo seria «sociedades tais especulações não são história e não têm valor para
compósitas»; foi também sugerido o termo «sociedades a ciência. Para o estudo da transformação social nas
plurais». Ex:emplo complexo de sociedade compósita é sociedades que não sejam compósitas a que aludimos
dado pela União Sul-Africana com sua única estrutura temos que contar com o trabalho de historiadores que
polftica e econômica e uma população que engloba po- lidem com documentos autênticos.
vos de fala inglesa e fala africana, povos de descendên- Sabemos que em certos círculos de antropologia o
cia européia, os chamados «homens de cor» da provín- termo «antropólogo evolucionista» é quase ofensivo, sen-
cia do Cabo, progênie de holandeses e hotentotes, os do porém aplicado sem maiores discriminações. Assim,
hotentotes remanescentes, os «malaios» da Cidade do Lewis Morgan é chamado de evolucionista, embora re-
Cabo, descendentes de pessoas do arquipélago malaio, jeitasse a teoria da evolução orgânica e quanto à so..
hindus e maometanos da índia e seus descendentes, e ciedade acreditasse, não em evolução, mas em desen-
certas tribos bantos que constituem a maioria da popu- volvimento, que ele concebia como o constante aperfei-
lação da União tomada como um todo. çoamento material e moral da humanidade a partir de
O estudo das sociedades compósitas, descrição e aná- implementos de pedra bruta e promiscuidade sexual até
lise dos processos de mudança que nelas ocorrem é ta- as máquinas a vapor e casamento monogâmico de Ro-
refa difícil e complicada. A tentativa de simplificá-lo, chester, Nova Iorque. Mas até antievolucionistas como
considerando o processo como único no qual duas ou Boas acreditam no progresso.
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Penso ser conveniente empregar o termo «progresso> a 500 enquanto a comunidade política é 'ainda menor,
para o processo pelo qual os seres humanos adquirem e as ;elações econômicas pela troca de bens e serviç~s
maior co-ntro!e sobre o meio- flsíco mediante o aumento estendem-se apenas por limitada amplitude. A parte a di-
de conhecimento e aperfeiçoamento da técnica pelas in- ferenciação por sexo e idade, hã pouca diferenciação de
venções e descobrimentos. O modo pelo qual hoje somos posição social entre pessoas ou classes. Podemos con-
capazes de destruir consideráveis porções de cidades por trastar com isto os sistemas de estrutura social que ve-
bombardeios aéreos é um dos mais recentes e impres- rificamos hoje na Inglaterra ou nos Estados Unidos.
sionantes resultados do progresso. O progresso não é Deste modo, o processo de história humana que se po-
a mesma coisa que evolução social, mas está muito in- deria chamar de evolução social, a meu ver apropria-
timamente relacionado com ela. damente, poderia ser definido como o processo pelo qual
A evolução, tal como entendo o termo, refer-e-se es- sistemas de grande amplitude de estrutura social engen-
pecificamente ao processo de surgimento de novas for- draram ou substituíram sistemas menores. Aceitável ou
mas de estrutura. A evolução orgânica tem dois aspec- não este parecer, sugiro que o conceito de evolução so-
tos importantes: l) no curso dela pequeno número de cial seja aquele que exige ser definido em termos de
espécies de organismos enseja número muito maior de estrutura social.
espécies; 2) mais complexas formas de estrutura orgâ- Não dispomos de tempo nesta oportunidade para ana-
nica vêm à existência pelo desenvolvimento a partir de lisar a relação do estudo da estrutura social com o es-
formas mais simples. Embora me sinta incapaz de ligar tudo da cultura. Para uma interessante tentativa de reu-
qualquer sentido definido a frases como «evolução da nir os dois estudos, mencionaria o livro de Oregory
cultura». ou «evolução da linguagem», penso que a evo- Bateson Naven. Não me empenhei de modo algum em
lução social é uma realidade que o antropólogo social tratar da antropologia social como uma totalidade e de
deve reconhecer e estudar. Como a evolução orgânica, todos os seus ramos e divisões. Esforcei-me apenas em
ela pode ser definida por dois aspectos. Houve um pro- dar-lhes uma idéia muito geral do tipo de estudo ao
cesso pelo qual, a partir de pequeno número de formas qual achei cientificamente proveitoso dedicar considerá-
de estrutura social, muitas formas diferentes surgiram vel e sempre crescente parcela do meu tempo e energia.
no curso da história; isto é, houve um processo de di- A única recompensa que busquei, penso que em certo
versificação. Em segundo lugar, através deste processo grau obtive: algo como uma penetração na natureza do
mais complexas formas de estruturas sociais surgiram, mundo do qual somos parte, que só paciente aplicação
ou substituíram as formas mais simples. do método das ciências naturais pode proporcionar.
Se os sistemas estruturais devem ser classificados de
acordo com sua maior ou menor complexidade é pro-
blema que requer exame. Mas há evidência de visível
correlação íntima entre complexidade e outro aspecto
dos sistemas estruturais, a saber, a extensão do campo
das relações sociais. Num sistema estrutural com limi-
tado campo social total, uma pessoa média ou típica é
posta em relações sociais diretas e indiretas com ape-
nas pequeno número de outras pessoas. Em sistemas
desk tipo podemos encontrar a comunidade lingüística
- o corpo de pessoas que falam uma língua - de 250
250 251

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