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CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES

SEMESTRE DE INVERNO 2022/2023

CUMPRIMENTO DE CERTAS OBRIGAÇÕES

HIPÓTESES PRÁTICAS DE APOIO ÀS AULAS – 3º conjunto

1. António foi absolvido num processo de condenação intentado por Bernardo. Dado que a
absolvição foi baseada na apresentação de documentação falsa, António quer agora cumprir
a sua dívida. Como é credor de Bernardo pela mesma importância, poderá fazer uma
compensação? Não havendo compensação, poderá António consignar em depósito a
prestação?

SOLUÇÃO: A partir do momento em que possa ver-se no desejo de cumprimento de


António uma obrigação natural (e, na realidade, existe um dever moral cujo cumprimento
corresponde a um dever de justiça) nada impede que compense a sua dívida com o crédito
civil que tem sobre Bernardo (cfr. a al. a) do nº 1 do art. 847º). É mais delicada a resposta à
segunda questão, pois não parece que o processo de consignação em depósito esteja talhado
para o cumprimento das obrigações naturais. Sem embargo do teor do art. 404º é preciso
notar que no texto do art. 841º há referência à expressão “coisa devida”. Mesmo a doutrina
está dividida. O que parece possível é um mero depósito não judicial, extinguindo-se a
obrigação caso o credor não levante a prestação.

2. Ana, Luís e Clara vincularam-se a pagar 600€ a Dora no regime menos favorável à credora.
Ana, demandada para o pagamento da totalidade da dívida, foi absolvida com fundamento
em coação moral. Dora dirige-se a Luís pedindo o pagamento dos 600€. Poderá fazê-lo?
Tendo sido convencionado o regime mais favorável para Dora, que direito poderá exercer o
cumpridor Luís, sabendo-se que Dora só podia pedir a Clara a sua parte na dívida e que
Ana foi absolvida? A resposta seria a mesma no caso de Ana estar apenas insolvente?

SOLUÇÕES: Como se trata de uma obrigação conjunta (não houve estipulação de


solidariedade mas, implicitamente, de conjunção, regime plural este menos favorável para
o credor),Luís só tem que pagar a sua parte, ou seja, 200€. Sendo convencionado um
regime solidário, Luís pode pedir, em direito de regresso, 200€ a Clara (cfr. o art. 527º).
Quanto à parte de Ana, a interpretação declarativa do art. 526º (“…ou não puder por outro
motivo cumprir a prestação…”) faz repercutir sobre Luís e Clara a parte respeitante a essa
devedora. Consequentemente, Clara tem que pagar 300€ a Luís, suportando este a sua parte
(200) mais metade da parte (proporcional) de Ana, ou seja, 100 €. Estando Ana insolvente,
a resposta seria idêntica.

3. Em março de 2012, Abel, produtor de vinho, ficou obrigado a entregar a Camilo 1.000
litros de vinho tinto. Ficou estipulado que o lugar de cumprimento seria a quinta de Abel e
que este colocaria o vinho à disposição de Camilo em certa data a combinar. Logo que
separou os 1.000 litros, Abel comunicou a Camilo que o poderia buscar a partir de 1 de
Abril. Camilo não veio buscar o vinho e no dia 4 um incêndio fortuito destrói os 1.000
litros. Terá Abel de preparar outros 1.000 litros? E se o incêndio tivesse ocorrido antes de 1
de Abril, desaparecendo todo o vinho tinto de Abel?

SOLUÇÃO: A obrigação contraída por Abel é uma obrigação genérica (será de género
ilimitado se chegarmos à conclusão que Camilo não está apenas interessado no vinho tinto
de Abel). A obrigação genérica pode estar inserida ou não numa compra e venda (cfr., a
este propósito o art. 918º). Tendo Abel várias qualidades de vinho tinto, por aplicação do
art. 539º irá escolher uma delas, devendo ainda, para ser efetuada a concentração, cumprir
o acordo das partes. Abel não deixou de o fazer, tanto mais que fora convencionada uma
“dívida de procura” (ver o nº 15 das Lições). Camilo vai incorrer em mora do credor,
ocorrendo o incêndio num momento em que a propriedade do vinho já é de Camilo (cfr. o
art. 408º em conjugação com o disposto no art. 541º). Em rigor, a concentração dá-se com
a colocação do vinho à disposição de Camilo. A mora do credor apenas reforça e agrava
uma situação jurídica já definida. Se Camilo tivesse vindo no dia 1, teria vindo buscar o
que já era dele. Abel está, pois, exonerado de cumprir novamente. Se o incêndio ocorresse
antes do dia 1, teríamos que aplicar o regime do art. 540º. Abel teria de cumprir, adquirindo
o vinho noutro produtor (caso a obrigação não fosse de género limitado) e mesmo que essa
aquisição resultasse em prejuízo para ele.

4. Por contrato celebrado, em 2006, entre António e Berto, este ficou obrigado a pagar ao
primeiro 1.000€. O cumprimento ocorreria em meados de 2009. Poderia António exigir
uma atualização da obrigação, tendo em conta a desvalorização da moeda ocorrida entre
2006 e 2009? Suponha que António emprestou a Ricardo 4.000€, por cinco anos, com juros
anuais de 8% e sem prestação de qualquer garantia. Mutuante e mutuário acordaram que os
juros que não fossem pagos no termo de cada ano seriam imediatamente capitalizados. É
válida esta estipulação?

SOLUÇÃO: Trata-se de uma obrigação pecuniária de soma ou de quantidade. Como tal, o


seu cumprimento está sujeito ao princípio nominalista (art. 550º), não havendo, sequer,
qualquer estipulação de correção monetária.
No segundo caso, Ricardo é devedor de duas obrigações pecuniárias, sendo uma delas de
juros (remuneratórios). A taxa dos juros convencionados está dentro dos limites legais (ver
os arts. 559º-A e 1146º,1). Quanto à questão do anatocismo é de notar que o acordado pelas
partes preenche uma das hipóteses previstas no nº 1 do art. 560º. A estipulação é válida até
porque é respeitado o limite do nº 2 do preceito.
CASOS PARA RESOLVER EM AULA

Caso 1

Ana é credora de Beatriz, Carlota, Delfina e Ester, em virtude de uma indemnização em que
estas foram condenadas, em Janeiro de 2012, no valor de €60.000,00. Sendo Ana amiga de
Beatriz há muitos anos, decide perdoar-lhe a dívida afirmando contudo que isso não prejudica a
sua faculdade de exigir a totalidade dessa quantia às restantes devedoras. Entretanto, Ana falece
e Carlota sucede-lhe como única herdeira.

a) Diga que direitos assistem a Carlota no plano das relações internas e no plano das
relações externas.

B, C, D e E são responsáveis solidários perante A (arts. 497º e 513.º do Código Civil). As


quotas de B, C, D e E presumem-se iguais (artigo 516º).

B pode invocar a remissão: na hipótese do n.º 1 do art. 864.º, aproveita às outras


codevedoras, na hipótese do art. 864.º, n.º 2, não aproveita, nem prejudica as outras. Neste
caso, estamos perante esta segunda hipótese, pelo que as co-obrigadas, pagando,
conservam o direito de regresso em relação a B.

Tendo em conta que A faleceu, sucedendo-lhe C, como única herdeira, a dívida extingue-se
por confusão própria (art. 868º) relativamente a esta. Nos termos do art. 869º as demais
obrigadas ficam exoneradas apenas na parte relativa a essa devedora. C passa a ser credora
de B, de D e de E em partes iguais e pelo valor de €15.000 em relação a cada uma delas.

Todavia, A havia exonerado B, embora por remissão própria (artigo 864º, n.º 2), o que
significa que C apenas pode exigir de D e de E; qualquer uma destas, se pagar, pode
exercer o seu direito de regresso em relação aos outros, incluindo B, pela parte que lhe
compete.

b) Imagine agora, em alternativa à alínea anterior, que Ana não faleceu e que, em
Setembro de 2015, contacta Carlota exigindo-lhe o pagamento desse valor. Carlota
considera a atitude de Ana despropositada e diz-lhe que nada pagará, pois a dívida
encontra-se prescrita. Terá razão?

O prazo de prescrição desta dívida é de três anos (art. 498º, n.º 1), pelo que C terá razão. A
prescrição tem de ser invocada para que a dívida civil se transforme numa obrigação natural
(303º). Efeitos da obrgação natural (artigo 304º).
Caso 2

Em Novembro de 2014, Sérgio, empresário têxtil, comprometeu-se a fornecer a Tiago,


comerciante, 200 metros de determinado tecido feito em seda, tendo ficado acordado que a
entrega na loja de Tiago seria feita no dia 2 de Janeiro de 2015 porque antes dessa data Tiago
estava muito ocupado com as vendas de Natal. Estipulou-se ainda que Tiago se consideraria
desvinculado do contrato se o tecido não fosse entregue no dia estabelecido.

a) Classifique, quanto à modalidade, a obrigação assumida por Sérgio.

Modalidade da obrigação – obrigação genérica: o objecto mediato da prestação está apenas


determinado pelo seu género e por certa medida ou quantidade – artigo 539º. É uma
obrigação com objecto indeterminado mas determinável, cumprindo-se a obrigação com a
entrega da quantidade estipulada daquele género.

Trata-se ainda de uma obrigação de género limitado (“determinado tecido feito em seda” –
o género está circunscrito a um objecto com certas características.

Nesta obrigação genérica tem de haver concentração, na medida em que o dever de prestar o
direito da contraparte não incide sobre todo o género mas sobre a quantidade que for
considerada (artigo 541º).

b) Suponha que no dia 20 de Dezembro de 2014, Sérgio propõe-se entregar o tecido a Tiago,
que recusa, dizendo que tem o estabelecimento cheio de encomendas para o Natal e não tem
espaço para armazenar o tecido. A recusa será legítima?

Função do prazo acordado pelas partes – trata-se aqui de um prazo certo ou termo essencial
A essencialidade do termo resultou de acordo expresso entre as partes – trata-se de um
termo essencial subjectivo absoluto – artigo 777º.
Regra geral, o cumprimento antecipado é eficaz.
Mas, neste caso, o devedor pretende antecipar o cumprimento e o credor recusa – esta
antecipação colide com o princípio da pontualidade (prazo existente a favor do credor),
provocando prejuízos ao destinatário da prestação, sendo legítima a recusa na aceitação da
antecipação – artigo 779º.

c) Imagine agora que, no dia combinado, Sérgio se apresenta para fazer a entrega mas, em
virtude de uma falha técnica, apenas consegue entregar 100 metros de tecido e não a
quantidade que havia sido combinada. Tiago recusa a encomenda. Quid iuris?

Questão de saber se o credor tem de aceitar o cumprimento parcial ou se pode recusar.


Princípio geral da pontualidade – art. 406º, n.º 1: o cumprimento deve ser integral e não por
partes, a não ser que os contraentes tenham convencionado – art. 763º. Ou seja, o devedor
esta obrigado a cumprir a totalidade, não podendo, a não ser com o acordo do credor,
cumprir parcialmente. Mas o credor pode renunciar a esse benefício, aceitando o
cumprimento parcial, o que neste caso não sucedeu.

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