ARTIGO CIENTÍFICO RESENHADO: BELLO FILHO, Ney de Barros; LEAL,
Bruno Hermes. “Ecomafia”: a Experiência Italiana no Enfrentamento dos Crimes Ambientais de Perfil Mafioso. Revista Direito Público, Brasília, v. 17, n. 95, p. 153- 184, set. 2020.
I. RESENHA
Cunhado em 1994 pela associação civil Legambiente, a expressão
“ecomafia” representa uma interseção entre o direito ambiental e o direito penal no sentido de dar forma à crescente onda crimes ambientais cometidos pelas organizações mafiosas do sul da Itália. A adoção desse termo ocorre em meio a debates na Europa envolvendo conceitos como “práticas ecocidárias” e a discussão de alternativas punitivas a organizações criminosas que atentem contra o meio-ambiente. Contudo, antes de se aprofundar no conceito de “ecomafia”, os autores do referido artigo investigam o desenvolvimento histórico da Cosa Nostra siciliana, a qual se tornou, exclusivamente, sinônimo de “máfia”, ao contrário de ouras organizações, como ‘Ndrangheta e Comorra, que são reconhecidas pelas suas denominações oficiais. O nascimento da Cosa Nostra remonta a 1848, ano de surgimento de diversos grupos de malfeitores na Sicilia, estimulados pelas próprias autoridades locais a promoverem a ordem pública, fornecerem segurança privada e defenderem propriedades rurais. Assim, sob essa aparência de garantidores da ordem, as organizações mafiosas foram vistas por muito tempo como uma espécie de padrão comportamental, um grupo social que carregava uma série de valores muito Universidade de Brasília Faculdade de Direito
próprios. Tal noção mudou drasticamente em 1964, quando 43 membros
desses grupos foram condenados em sentença prolatada pelo magistrado Cesare Terranova, evento esse que abriu portas para o trabalho feito por Giovanni Falcone nos anos 1980. Ao longo de toda sua existência, a máfia demonstrou grande capacidade de se moldar às práticas e ao perfil empreendedor de sua época, produzindo aos poucos o chamado “capitalismo mafioso” e a “empresa mafiosa”. Muitos autores, no entanto, defenderam por muito tempo a dificuldade de exportação da máfia, por esta depender profundamente dos recursos e do ambiente local. Falcone, por sua vez, discordava ao afirmar que ao adotar elementos de uma linguagem transfronteiriça, como o tráfico de opioides e a prática de crimes ambientais, a Cosa Nostra consegue se posicionar em um contexto internacional. Nesse contexto, a nova máfia reivindica novos espaços e práticas, expandindo-se de modo a romper as fronteiras paradigmáticas da máfia tradicional. A “ecomafia”, uma das frentes de expansão da nova máfia, apenas ganha destaque após denúncias de ativistas ecológicos. Ela se divide em 4 eixos de atuação: “ciclo do cimento”, “racket animali”, “archeomafia” e “ciclo de rejeitos”. O artigo dá especial atenção ao “ciclo de rejeitos”, já que esse representa quase 30% do total de crimes ambientais apurados em 2017 e é punido autonomamente desde a década de 1990. O tráfico ilícito de rejeitos foi agregado ao rol de espécies delitivas do Código Penal italiano em 2018, após uma grande reforma no sistema punitivo do país. Ele é considerado um delito grave pela doutrina, havendo, quando este estiver configurado, o emprego de meios invasivos de investigação e medidas cautelares pessoais. Importante destacar que o tráfico ilícito de rejeitos é um crime de perigo presumido, o que significa que não se requer efetivo prejuízo ao ambiente para sua configuração.
II. CRÍTICA Universidade de Brasília Faculdade de Direito
O artigo “Ecomafia”: a Experiência Italiana no Enfrentamento dos
Crimes Ambientais de Perfil Mafioso, dos professores Ney de Barros Bello Filho e Bruno Hermes Leal, incialmente, desenha de maneira muito clara a história da máfia e a sua capacidade de adaptação às demandas econômicas que as diferentes épocas trazem. Apesar de remontar ao século XIX, conhecer o início da atuação da máfia, enquanto milícia protetora de interesses privados, é essencial para compreender a sua forma de organização atual e a permanência do uso da força para alcançar objetivos tão ligados ao mundo contemporâneo.
Da mesma forma, o mapeamento do histórico legislativo referente à
“ecomafia”, com destaque para o crime de tráfico ilícito de rejeitos, é bastante rico, reforçado pela apresentação e explicação dos conceitos-chave nos capítulos anteriores. A percepção de que o art. 452-quaterdecies do Código Penal italiano possui um caráter prioritariamente antropocêntrico é bastante interessante, pois revela que, para o legislador italiano, a manutenção da ordem pública ainda se encontra acima da tutela do meio- ambiente, o que denota uma espécie de desnivelamento do direito penal em direção ao direito ambiental nesse tema.
O referido artigo, no entanto, não explora tanto as reflexões que o direito
brasileiro poderia tirar do exemplo italiano. Três anos após o rompimento da Barragem de Brumadinho, o Estado brasileiro ainda não instituiu punições mais graves para empresas responsáveis pela ocorrência de eventos como esse. O não aprofundamento nessa matéria é compreensível pelo risco de ultrapassar os limites metodológicos do artigo, mas a discussão é bastante pertinente para o presente Brasil, prestes a aprovar a PL do Licenciamento Ambiental.